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Mortimer J.

Adler
Dialética

Tradução: Bernardo Santos

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Sumário

Sumário
Prefácio
Parte I — A Descoberta da Dialética
Introdução
Traços de Controvérsia
Espécimes do Discurso Humano
Parte II — A Descrição da Dialética
A Descrição Empírica: Linguagem
A Descrição Empírica (cont.): Natureza Humana
A Descrição Lógica
A Descrição Metafísica
Parte III — A Interpretação da Dialética
Filosofia e Ciência
O Objeto de uma Summa Dialectica
A Atitude Dialética
Apêndices
Apêndice A
Apêndice B
Apêndice C
Apêndice D
Apêndice E
Apêndice F
Apêndice G
Nossas outras publicações
Prefácio
Para justificar a intenção deste livro, eu preciso apenas apelar para os prazeres e desconfortos que a maioria dos
seres humanos já experimentou em conversas e discussões. Trata-se de uma tentativa de examinar as circunstâncias
e condições da controvérsia a fim de entender quais são suas limitações inevitáveis, suas características e valores
intelectuais. Se a importância da conversação parece um exagero quando se faz dela o tema de uma análise assim tão
elaborada, as implicações de tal análise podem levar o duvidoso leitor a compartilhar de minha avaliação sobre o
discurso controverso como sendo uma das ocasiões efetivas da vida da razão, independentemente de como e onde
quer que ele ocorra.
Dialética é um nome técnico conveniente para o tipo de pensamento que ocorre quando os seres humanos entram em
disputa ou quando levam adiante, em reflexão, a consideração polêmica de alguma teoria ou idéia. Ela é apresentada
aqui como uma metodologia significativamente diferente do procedimento do cientista empírico ou do método do
matemático. Trata-se de um processo intelectual no qual todos os homens se engajam na medida em que se
comprometem a criticar suas próprias opiniões ou as opiniões dos outros e dispõem-se a enfrentar as dificuldades
que surgem na comunicação por causa da oposição e do conflito de diferentes percepções. A dialética é relevante
para os assuntos humanos sempre que os homens se encontram em acordo ou desacordo sobre questões teoréticas.
Não se trata apenas de um método para lidar com discordâncias, mas de uma atitude a ser adotada na direção de um
acordo que o interpreta apenas como relativo à situação em que foi alcançado.
Estou na posição incomum de ser genuinamente indiferente quanto ao fato de os leitores deste livro aceitarem ou
discordarem de sua doutrina. Qualquer que seja sua maneira de lidar com a teoria da dialética, parece-me que eles
devem reconhecê-la como um método a fim de contestá-la ou confirmá-la. Se eu tiver descrito quais são os
processos essenciais pelos quais as diferenças teoréticas são encontradas e resolvidas, a maneira pela qual as idéias
são traduzidas umas nas outras para fins de esclarecimento e compreensão, então não tenho nada a temer em relação
a qualquer oposição que as teses fundamentais deste livro provoquem. Meu oponente deve ser um dialético para
discutir comigo, e não ficarei perturbado se, durante tal discussão, conseguirmos nos entender melhor, embora isso
implique em alguma correção ou alternância da teoria aqui apresentada. Qualquer mudança, se for feita
dialeticamente, não prejudicará a teoria que a sofre.
Meu objetivo foi mostrar a dialética como sendo a técnica da conversação ordinária, quando ela é confrontada com o
choque de opiniões, e como sendo a forma essencial do pensamento filosófico. Um fato bastante conhecido sobre as
discussões às quais os homens se entregam é que elas se tornam filosóficas. A filosofia não é uma profissão
esotérica. Ela é imanente em qualquer conversa que recorra à definição e à análise em vez de recorrer à experiência;
cabe a qualquer mente que entre em uma discussão entender em vez de acreditar. A filosofia, ao que me parece, é
nada mais nada menos do que a dialética. Ela é um método e uma atitude intelectual, não um assunto especial ou um
sistema.
Aqui, uma vez mais, sou compelido pela natureza de minha teoria a enfrentar a discordância com indiferença. Não
deixo de perceber que a doutrina que desenvolvi pode ser traduzida nos termos de outras teorias, subordinada a elas
e recebendo um significado diferente. Todavia, tal tratamento seria, em si mesmo, um exemplo de dialética, que
seria outra repetição da maneira tradicional pela qual os filósofos, bem como todos os outros homens, têm
enfrentado as divergências de opinião. A única outra alternativa seria a negação dogmática. Essa, eu diria, é a única
maneira pela qual uma teoria da dialética poderia ser efetivamente anulada. Para não ser um dialético, é preciso ser
um dogmático — independentemente de como essa oposição fundamental seja interpretada.
Gostaria de indicar aos leitores o ensaio do Sr. Scott Buchanan intitulado Possibility (Possibilidade), publicado nesta
Biblioteca, como correlativo dialético e, talvez, corretivo, de muitas das teorias aqui expostas. Sou grato ao Sr. Mark
Van Doren e ao Sr. Malcolm McComb pela leitura do manuscrito.
M. J. A.
Nova Iorque.
Setembro de 1927.
“Não se deve discutir com todo mundo, nem praticar com o homem da rua, pois há pessoas com as quais qualquer
argumentação pode degenerar.”
Aristóteles (Tópicos)
Parte I — A Descoberta da Dialética
Introdução
A atividade característica de Deus, de acordo com Aristóteles, é pensar sobre o pensamento. Como Deus, segundo
essa perspectiva, é o filósofo perfeito, não é de todo inadequado que, entre os homens, os filósofos tenham se
engajado com muita frequência nessa atividade. Porém, sendo homens e, de certa forma, divinos, eles nunca foram
totalmente bem-sucedidos. Isso pode ser visto no fato de que a preocupação com as considerações metodológicas
ocorreu em todos os estágios da história do pensamento europeu ocidental. Os problemas específicos e os termos em
que eles podem ter sido temporariamente resolvidos mudaram, é claro, de tempos em tempos. No entanto, em cada
época, houve alguma tentativa de definir qual é o ideal do pensamento humano e de descrever o processo mais
adequado para atingir esse objetivo.
De modo geral, a metodologia de um período, seja ela explicitamente declarada como uma lógica ou uma
psicologia, ou talvez meramente exemplificada em seus produtos intelectuais, é um sensível indicador da
intelectualidade típica do período. Se isso fosse dito de forma muito geral sobre os períodos clássico, medieval e
moderno, dificilmente seria algo questionável. É importante para nosso propósito fazer essa afirmação apenas na
medida em que este livro alega ser um desvio das concepções tradicionais de pensamento predominantes nesta e,
talvez, em outras épocas. E para tornar essa afirmação significativa, é necessário definir a novidade da presente
tentativa, bem como indicar suas fontes na tradição. Pode ser demonstrado que estamos aqui empenhados em
focalizar e cristalizar uma série de tendências que sempre existiram, que às vezes foram proeminentes e que
recentemente ganharam nova ênfase.
A literatura tradicional sobre metodologia — e aqui não é feita nenhuma distinção entre a lógica normativa e os
vários relatos psicológicos acerca do pensamento — pode ser resumida na declaração de algumas teses fundamentais
que têm se repetido e que, portanto, adquiriram certa obviedade e convencionalidade: (1) Pensar é uma questão de
ter e lidar com idéias. (2) Pensar é um processo que uma mente individual realiza por si mesma quando tem idéias e
lida com elas. (3) O pensamento é uma atividade da razão e é essencialmente independente do propósito e do desejo
irracionais. (4) O pensamento busca terminar em conhecimento; isto é, o pensamento repousa na verdade.
Essas teses formam uma doutrina altamente convencional, mas uma doutrina à qual, no entanto, foi negada a
unanimidade de concordância pela afirmação, em um momento ou noutro, de opiniões contrárias a seu respeito. Ao
examinar cada uma dessas afirmações com mais cuidado, isso será mantido em mente, e as opiniões divergentes
serão apresentadas em cada caso. Essas tendências divergentes sugeriram, e talvez até mesmo formularam
parcialmente, a doutrina deste livro.
(1) Pensar é uma questão de ter e lidar com idéias. As idéias podem ser definidas como imagens na mente, ou como
proposições, ou como julgamentos, ou mesmo como pensamentos sem imagens. Há um sentido, talvez, no qual uma
idéia é ou tem algo a ver com uma ou outra dessas entidades. E o pensamento certamente não ocorre
independentemente das idéias em um ou em outro desses sentidos. A lógica comum e a psicologia tradicional não
cometeram um erro flagrante quando fizeram essa afirmação. A dificuldade reside no que foi omitido e, em alguns
casos, excluído da descrição do pensamento. Foi apenas recentemente que a insuficiência dessa descrição foi
sugerida por duas tendências não relacionadas no pensamento contemporâneo, o behaviorismo, por um lado, e um
interesse renovado na linguística, por outro.
Não se pretende aqui defender o behaviorismo. Isso não está necessariamente implícito quando se faz referência à
insistência do psicólogo behaviorista sobre a relação entre pensar e falar. Nem mesmo o dilema, sobre se o
pensamento pode continuar à parte da linguagem ou se o pensamento deve ser identificado com a atividade da
linguagem, precisa nos preocupar no momento. Nosso interesse está principalmente na afirmação da importância da
linguagem como uma agência no pensamento. Essa asserção não nega a tese que está sendo considerada. Ela apenas
sugere outro aspecto do processo de ter e lidar com idéias, que as definições anteriores da idéia como uma imagem,
um julgamento ou uma noção omitiram. Isso faria com que a tese fosse a seguinte: pensar é uma questão de ter e
lidar com idéias, (em grande parte ou inteiramente) por meio da linguagem.
O behaviorismo surgiu em uma época em que psicólogos e lógicos interessados no problema do pensamento
estavam preocupados com a teoria do significado. Mas o behaviorismo, embora tivesse uma teoria especial do
pensamento, contribuiu pouco para a consideração mais obscura, e talvez filosófica demais, da natureza do
significado. Curiosamente, no entanto, o que parece ser o resultado de uma discussão prolongada sobre o significado
é bastante favorável ao behaviorismo. Os lógicos puros e os matemáticos estavam interessados no significado
apenas no sentido de implicação; os introspectivos e, talvez, os psicólogos puros estavam interessados no significado
apenas enquanto atributo de uma imagem ou como uma entidade consciente ou gegenstand em si. Restou àqueles
que abordaram o problema como o tema central da linguística fornecer a declaração mais adequada e detalhada de
todas as questões envolvidas[1]. Uma vez mais, é preciso entender claramente que nenhuma definição ou teoria do
significado é aqui aceita. O ponto importante é que, ao investigar o significado em termos de linguagem, em termos
do funcionamento dos símbolos em qualquer notação, obteve-se uma fenomenologia completa dos processos pelos
quais as palavras, ou outros símbolos, passam a ter os vários significados que têm. Essa fenomenologia pode não ter
resolvido nenhum problema, mas pelo menos os esclareceu ao enumerar os muitos significados da própria palavra
"significado".
O pensamento como uma questão de idéias torna-se, portanto, não apenas uma questão geral de linguagem, nos
termos do behaviorismo, mas, mais especificamente, uma questão de significados que podem ser expressos
claramente, se não em última instância, em termos de relações verbais e das características do processo simbólico.
Não se trata de afirmar que o pensamento é tal ou qual; nosso objetivo é apenas observar as modificações da tese
original introduzidas pela psicologia behaviorista e pela teoria linguística do significado, duas tendências
divergentes da tradição principal.
É interessante e importante lembrar que a teoria da linguagem é um elemento radical e talvez subversivo apenas na
tradição especificamente moderna, de Descartes e Locke até o presente. Ela era diferente tanto na época clássica
quanto na medieval. Sem documentação acadêmica, essa afirmação pode ser apoiada chamando a atenção para a
relação íntima entre gramática e lógica no Órganon de Aristóteles e para a ordem dos estudos no trivium medieval:
gramática, retórica e dialética. É difícil sugerir que haja uma concordância entre esses dois exemplos de uma relação
existente entre a estrutura da linguagem e o procedimento do pensamento, e a observação contemporânea de uma
relação semelhante. De fato, a literatura medieval nos fornece várias doutrinas discordantes sobre a linguagem e, em
Aristóteles, as relações entre a gramática e a lógica podem ser encontradas pelo pesquisador que estiver atento a
essas questões. Elas não são explicitamente expostas pelo próprio Aristóteles. Entretanto, pelo menos essas
referências nos levam à conclusão de que foi somente a partir do século XVII que a descrição e a teoria do
pensamento ignoraram ou subestimaram a relevância e o significado da linguagem, da gramática e da retórica. É,
portanto, contra o contexto dos últimos três séculos que o interesse renovado e a ênfase na linguagem são
importantes.
(2) O pensamento é um processo que uma mente individual realiza por si mesma quando tem idéias e lida com elas.
A ênfase nessa afirmação está no fato da individualidade. De acordo com a opinião convencional aqui exposta, o
pensamento pode assumir qualquer forma, ou seja, devaneio, raciocínio, reflexão pragmática, procedimento
experimental, ou o pensamento pode ser por analogia, indução ou dedução, mas sempre será descrito como um
processo no qual uma única mente se envolve. É difícil desvendar as bases históricas para o lugar-comum que essa
tese alcançou, mas não é improvável que essa ênfase sobre o indivíduo que pensa tenha sido historicamente
conectada com a opinião igualmente convencional de que todo pensamento pode ser descrito exaustivamente em
termos de dedução e indução ou de alguma forma delas.
A objeção que pode ser levantada contra essa tese, e as divergências históricas que levam a essa objeção, atacam as
duas cláusulas ao mesmo tempo. O pensamento pode ser um processo realizado por duas mentes e depender, para
sua existência, da interação dessas duas mentes; e se o pensamento for sempre assim condicionado, ele pode ter uma
estrutura formal que não seja realmente redutível às formas canônicas de indução ou dedução.
Qualquer pessoa que medite por um momento sobre a experiência da conversação humana — uma conversação
destinada a estabelecer ou dispor de opiniões e talvez, por isso, chamada de argumentativa ou polêmica —
concordará que essa conversação é um tipo de pensamento no qual uma mente individual só pode participar por
meio da interação mútua de uma ou mais mentes. E se não for negado que a conversação ou argumentação é um tipo
de pensamento, será admitido que se trata de um tipo de pensamento que difere dos padrões do laboratório e da
biblioteca, e que não poderia ser adequadamente analisado ou descrito por referência a termos lógicos comuns.
O fato da conversação e da argumentação humana é tão onipresente entre as pessoas que podem estar minimamente
preocupadas com a natureza do pensamento, que parece estranho que a tradição tenha ignorado esse fenômeno tão
relevante. Com efeito, é mais uma vez a tradição especificamente moderna, desde a Renascença, que tem se
contentado com suas fórmulas comuns sobre indução e dedução. Há grandes exceções tanto no pensamento clássico
quanto no medieval.
Os diálogos de Platão, qualquer que seja a interpretação final e satisfatória que se faça deles, exemplificam
perfeitamente as qualidades cogitativas do discurso humano. O fato de Platão ter empregado o diálogo como forma
literária pode ser devido à influência dos mimes de Sófron sobre as tendências poéticas de sua natureza; mas também
há uma base considerável para se pensar que Platão escreveu diálogos porque apreciava as origens do pensamento
na conversação. O fato de Platão ter tido essa percepção não é surpreendente quando lembramos que sua carreira
intelectual foi iniciada e nutrida entre os sofistas. Ademais, Platão é responsável pelo termo "dialética", um termo
que geralmente designa os processos de pensamento discursivo (ou conversacional).
O contraste e a oposição das tradições clássicas e modernas com relação a esse ponto ficam bem claros por uma
insinuação de uso verbal. Platão não teria ficado ressentido com a identificação da sofística e da dialética, se nos
fosse permitido distinguir entre a sofística boa e a ruim, entre a sofística de Sócrates e a de Thrasymachus — embora
pudéssemos esboçar um sorriso com a distinção. No mínimo, ele teria percebido sua semelhança formal. No entanto,
nos últimos três séculos, a sofística tornou-se uma palavra de opróbrio e depreciação par excellence e, sem qualquer
reconhecimento da estrutura formal, foi empregada como sinônimo de dialética e de "escolasticismo" — outro item
que a tradição moderna jogou no lixo ou levou ao ridículo e ao abuso.
O fato de o escolasticismo ser assim designado e classificado não é de todo inadequado, pois os escolásticos eram
mestres da arte que os diálogos de Platão exemplificavam e elogiavam, e que eles convencionalmente chamavam de
dialética. Não podemos aqui entrar em um relato adequado sobre a natureza da dialética e o papel que ela
desempenhava no pensamento medieval, mas podemos observar algumas de suas afiliações intelectuais que a
definirão contra o contexto da tradição.
A dialética não era entendida como um método de investigação nem de demonstração. Era um método de
argumentação, de controvérsia e de disputa. Provavelmente, na medida em que a argumentação ocupou uma parte
tão grande da vida intelectual da Idade Média, a dialética foi valorizada; e provavelmente, na medida em que a
investigação, o experimento e a demonstração foram as preocupações intelectuais dominantes da era introduzida por
Galileu e Newton, a dialética foi ignorada, seu valor subestimado ou condenado, sua forma mal compreendida. Esse
fato de mudança de interesse e ocupação, juntamente com uma certa interpretação do Órganon de Aristóteles,
popularizada pelo Novum Organum de Bacon, provavelmente explica a concepção de que o pensamento é uma
questão de indução e dedução, um caso de inferência geralmente, se não exclusivamente, realizado por uma única
mente.
A importância da dialética como um dispositivo educacional também é significativa. Lembramos que, em A
República, o treinamento do rei-filósofo deveria ser concluído com a dialética, "a pedra de toque que está no topo de
todas as ciências"; que, na educação do cavalheiro romano, conforme refletido e delineado nos escritos de Cícero, a
retórica era um dos fundamentos; e que, na organização da escola medieval, o trivium compreendia gramática,
retórica e dialética. O que antes era considerado indispensável na formação de um cavalheiro ou de um filósofo
agora se tornou um elemento que deve ser cuidadosamente excluído do currículo, por ser subversivo à disciplina
científica. Em vez disso, a lógica, indutiva e dedutiva, tornou-se o curso de estudo exigido, e vale a pena observar
que ela falhou completamente em alcançar a importância no esquema moderno que a dialética ocupava na
antiguidade e na Idade Média. Ela deixou de ser uma disciplina considerada necessária no treinamento da mente
científica para se tornar um acessório a esse treinamento, ou meramente uma consideração da própria disciplina em
abstrato, um conjunto de regras e práticas formais. Ao contrário, a dialética manteve sua vitalidade e floresceu no
solo em que nasceu. Certamente, em Montaigne, e até mesmo no Dr. Johnson, a retórica e a capacidade de conversar
bem eram reconhecidas como os adjuntos distintivos do homem educado.
A relação reiterada da dialética com a retórica e a gramática sugere que nossa discussão anterior sobre o papel que a
linguagem desempenha no pensamento se torna novamente relevante. Por um lado, a importância da linguagem é
admitida tanto no interesse clássico quanto no medieval pela dialética. Os diálogos de Platão parecem estar, em
parte, preocupados com a definição de termos e em tornar as distinções claras em palavras. O estudante se tornou
apto a estudar e praticar a dialética por meio da disciplina preliminar de gramática e retórica. Por outro lado, o
estudo muito recente da linguagem contribui, de um ângulo totalmente diferente, com outra confirmação da
interdependência significativa e íntima, não apenas da linguagem e do pensamento em geral, mas especificamente da
linguagem e do tipo de pensamento que chamamos de conversacional ou dialético.
Essa contribuição é feita conjuntamente pela antropologia e pela psicologia. O estudo da última sobre a origem dos
hábitos de linguagem na criança[2] leva à teoria de que, após o período de egocentrismo verbal, o valor básico na
aquisição de palavras é o uso da linguagem para se comunicar. Somente depois que a criança adquire um
vocabulário para comunicar seus desejos ou sentimentos em seu ambiente social é que ela pode, ou tende a, usar
esse vocabulário para fins de expressão a-social, ou inteligente, mas não comunicativa. Em outras palavras, falar
consigo mesmo é um desenvolvimento muito posterior, e talvez superior, ao de falar com os outros. O tipo de
pensamento que ocorre no que é tecnicamente chamado de fala sub-vocal é derivado da anterior fala vocalizada da
comunicação direta.
O antropólogo relata uma descoberta semelhante nos hábitos linguísticos dos povos primitivos. Suas formas de
linguagem são adaptadas principalmente às necessidades de comunicação, de fazer e responder perguntas, de dar
ordens ou fazer declarações de importância social, em vez de serem usadas para registrar observações ou distinções
no discurso. Ficamos tão acostumados a considerar a linguagem como um dispositivo extraordinariamente bem
adaptado para registrar as observações e distinções que somos capazes de fazer que não percebemos que, entre os
povos menos desenvolvidos, talvez menos "sofisticados", a linguagem tem a função muito mais simples de
comunicação direta.
O pensamento socializado pode ser, se essas evidências forem válidas, mais primitivo do que o pensamento que é
feito fora do ambiente social e é, ao mesmo tempo, inteligente em vez de autista. O pensamento, se é que está
relacionado à linguagem, pode ser primitivamente uma questão de falar no sentido de discurso social, uma questão
de conversar. A dialética, ou o refinamento da conversação, é certamente um desenvolvimento posterior, uma
sofisticação da fala, por assim dizer; e, da mesma maneira, o uso da linguagem em processos intelectuais que não
são sociais ou conversacionais é uma prática derivada. À luz dessas distinções, é estranho que a tese que estamos
considerando, ou seja, que o pensamento é um processo que a mente individual realiza por si só, tenha ganhado
tanto peso convencional e que a metodologia da tradição moderna tenha se preocupado tão exclusivamente com a
indução, a dedução e formas semelhantes de inferência, ignorando completamente o pensamento dialético.
Deve-se reconhecer uma exceção importante à tradição moderna. Hegel, entre os filósofos, não apenas reconheceu,
mas enfatizou a distinção entre a lógica normativa comum e o método da dialética, tanto que, de fato, a frase
"dialética hegeliana" se tornou um slogan de desaprovação ou elogio. Hegel generalizou o método para além dos
limites do discurso humano e de seu emprego em controvérsias e disputas, indo, portanto, além de Platão ou
Abelardo. Com Hegel, o método se torna o padrão subjacente de toda atividade intelectual e, é claro, de toda
mudança no universo, já que tudo o que é real é racional. Neste ponto, não podemos nos deter para avaliar a posição
hegeliana, ou mesmo para contrastá-la completamente com os usos historicamente anteriores da dialética. Ela
contribui para nossa discussão atual em um aspecto: sugere que a dialética é uma forma que pode ser analisada e
contemplada independentemente de sua ocorrência em um discurso ou disputa efetiva. Em outras palavras, a
dialética é um tipo de pensamento que deve ser diferenciado do pensamento indutivo ou dedutivo utilizado pela
"mente única", e o que parece estar implícito é que a dialética envolve uma dualidade de mentes. De fato, isso ocorre
em conversas e disputas comuns; mas o que Hegel nos leva a ver é que a mente pode conversar ou disputar consigo
mesma e, ao fazê-lo, participa do pensamento dialético e não de outros tipos de pensamento. O que é formalmente
necessário para a dialética não são duas mentes efetivamente diferentes, mas sim uma atual diversidade ou
dualidade, uma oposição ou conflito, e isso pode ocorrer dentro das fronteiras de uma única mente. Quando isso
ocorre, é provável que essa mente continue com o pensamento dialético, e é isso que foi ignorado pela segunda tese
da metodologia tradicional do pensamento moderno.
(3) O pensamento é uma atividade da razão e é essencialmente independente do propósito ou desejo irracional. Essa
é uma maneira antiga e, em muitos aspectos, nobre de se considerar o pensamento, mas não é inequívoca. Ela foi
interpretada de várias maneiras em diferentes épocas. Significa que a razão é auto-suficiente e auto-dependente; que
a razão não é influenciada pelas forças da irracionalidade; que a razão é independente da fé; que o pensamento não é
influenciado pelo desejo ou emoção, pelo querer ou propósito; que o pensamento é um assunto puramente
intelectual, constituído e regulado apenas pela razão, e não é afetado pelas limitações da natureza humana ou dos
materiais humanos, especificamente da linguagem. A intenção não é submeter essas declarações a evidências ou
provas, mas simplesmente entender o que elas afirmam e o que elas negam. E, talvez, a discussão possa ser
esclarecida pela redução da variedade de significados especiais que a tese pode ter à sua forma mais geral. Essa é a
tese do intelectualismo — o que James[3] teria chamado de "intelectualismo vicioso" — e pode ser declarada da
seguinte maneira: O pensamento é uma atividade da razão que não emprega elementos não-racionais ou elementos
não submetidos à razão. Várias objeções a essa tese podem ser, e têm sido, levantadas, e a consideração delas
explicará a força efetiva da própria tese.

A antítese mais óbvia é, evidentemente, apresentada pela psicologia e pela psicanálise recentes[4]. De acordo com a
análise psicológica, hoje familiar, o pensamento é mais frequentemente racionalização do que raciocínio. Com
frequência, afirma-se que o pensamento é sempre racionalização e nunca raciocínio. A distinção entre racionalização
e raciocínio definitivamente não deve ser interpretada em termos lógicos. Trata-se de uma distinção em termos do
ato psicológico. A racionalização é um caso de pensamento em que as razões são apresentadas para apoiar uma
conclusão, uma crença ou uma opinião aceita ou sustentada com base em outros motivos que não as razões
apresentadas. Esses fundamentos podem ser chamados de pré-conceitos, complexos emocionais, desejos conscientes
ou inconscientes, etc. O raciocínio, por outro lado, é um caso de pensamento no qual a conclusão, a crença ou a
opinião é alcançada e defendida somente por meio das razões que são descobertas e consideradas nos processos de
pensamento. O ponto em questão, traduzido nos termos da tese que estamos discutindo, torna-se uma questão de
saber se a razão é auxiliar da convicção ou do pré-conceito pré-racional, servindo meramente ao ofício da
racionalização ou da justificação, ou se a razão funciona independentemente de tais forças, sendo que o processo de
pensamento realmente leva às conclusões que são então, e somente então, aceitas como convincentes.
Sem entrar em detalhes sobre as evidências da teoria psicológica acerca da prioridade de elementos não-racionais no
pensamento, seria bom apresentar algumas das outras implicações da teoria sobre os assuntos em questão. Essa
teoria afirma que o pensamento serve a um propósito que, por si só, não deve ser submetido ao pensamento ou ao
raciocínio. O termo propósito, aqui, representa qualquer um dos vários itens, como pré-conceitos, complexos ou
opiniões em que já acreditamos ou em que queremos acreditar. Não importa a forma que o pensamento assume, ele
sempre, de acordo com essa teoria, tem um propósito e, nesse sentido, não é independente de elementos não-
racionais. Porém, é claro que no tipo específico de pensamento que já chamamos de controverso ou conversacional,
esses elementos não-racionais parecem ter maior força e influência. Pelo próprio fato de a dialética ser um tipo de
argumento ou disputa, o jogo de emoções e propósitos tem a oportunidade de se tornar mais sutilmente entrelaçado
com a oposição de razões e mais difícil de ser desvendado.
Há três fontes da não-racionalidade no pensamento dialético, três focos de intrusão do irracional. Em primeiro lugar,
um argumento geralmente é motivado pelo desejo de convencer os oponentes ou, pelo menos, de aniquilar a
oposição levantada. A polêmica, portanto, envolve partidarismo, e o partidarismo, até certo ponto, decorre do pré-
conceito. Em segundo lugar, certas proposições são às vezes invocadas na argumentação como tendo uma fonte
supra-cogitativa, quer essa fonte seja especificamente designada como autoridade de um tipo ou de outro, fé,
intuição ou outra forma de percepção especial. Como elas derivam de considerações supra-racionais, tais
proposições não serão submetidas à razão. Em terceiro lugar, certas proposições são negadas devido à falta de
percepção, ou seja, a inteligibilidade e, portanto, a pertinência intelectual de uma proposição é negada. Tal negação
seria explicada pelo psicólogo em termos de um bloqueio ou impedimento emocional. Em suma, o pensamento é
influenciado por argumentos especiais, percepções especiais e mal-entendidos, essas anomalias no procedimento
racional que surgem das atitudes emocionais e intencionais da natureza humana.
Cada uma dessas dificuldades que o pensamento precisa enfrentar, e outras intimamente relacionadas, receberá uma
análise detalhada mais adiante. Por ora, basta sugerir que, na medida em que o pensamento tende a ser
demonstrativo ou argumentativo e a se ocupar com proposições a serem afirmadas ou negadas, ele pode ser
suscetível às influências não-racionais acima enumeradas, tanto em sua origem quanto no curso de seu
desenvolvimento em direção a uma conclusão. Isso, é claro, é diretamente contrário à tese convencional da tradição.
A psicologia dos últimos anos não é a única fonte de objeção à visão de que o pensamento é puramente racional. A
teoria lógica comparativamente recente, especialmente no campo da lógica matemática e nos ramos da matemática
pura que lidam com a teoria dos postulados e com as geometrias não-euclidianas, formulou o procedimento
demonstrativo de uma forma que deixa claro o uso de fatores não-demonstráveis. Esse é o paralelo lógico da análise
psicológica que revela a ação da emoção e do propósito no pensamento.
Platão certamente parece ter tido consciência, às vezes, de que a argumentação estava ocorrendo dentro das
limitações de certas hipóteses e definições, que, por sua vez, não eram submetidas à argumentação. Euclides e
Espinosa, não se pode duvidar, devem ter tido uma perspectiva de seu dispositivo metodológico comum de
demonstração geométrica, a prova de um certo corpo de proposições em termos de certas definições arbitrariamente
estabelecidas, certos axiomas tidos como evidentes e certos postulados tidos como certos. E em um sentido,
certamente, o método da teologia é análogo ao da geometria, os artigos de fé, os dogmas credenciais, funcionando
como definições e postulados na limitação e demarcação do campo do procedimento racional. A Escritura e o Cânon
fornecem bases axiomáticas.
Mas foi somente quando os pensadores matemáticos elaboraram a teoria dos postulados e analisaram as fontes e
propriedades da demonstração doutrinária que os princípios metodológicos implícitos nessas instâncias anteriores
adquiriram seu significado pleno. Os principais pontos da teoria dos postulados são os de que nenhuma
demonstração pode ser feita, exceto em termos de algumas proposições que não são demonstradas, embora não
necessariamente não-demonstráveis; que essas proposições não demonstradas, geralmente chamadas de postulados,
são consideradas verdadeiras sem prova; que o processo de definição exige a aceitação de certos termos como
indefiníveis em qualquer conjunto de definições; que tais indefiníveis são considerados como tendo significado
preciso, embora indefinidos; que, em resumo, qualquer demonstração lógica, seja ela chamada de doutrina ou
sistema, depende, em sua origem lógica, de um conjunto de primitivos — postulados, definições e indefiníveis — e
que, em qualquer sistema ou doutrina, esses primitivos não são submetidos aos processos de demonstração.
Esses primitivos, portanto, são elementos não-racionais no processo de pensamento, e isso é igualmente verdade se
esse pensamento for indutivo ou dedutivo, demonstrativo ou argumentativo. Em geral, eles não são considerados
absolutos, ou seja, não há um único conjunto de primitivos que seja obrigatório para todo pensamento e necessário
para todo sistema. Postulados e definições são os equivalentes lógicos do que o psicólogo chama de pré-conceitos e
pensamento intencional. Eles são escolhidos ou selecionados, em vez de serem intelectualmente obrigatórios e
racionalmente inevitáveis. O nome mais geral para esses elementos é "proposições intuitivas", quando a intuição é
considerada não a maneira pela qual conhecemos uma proposição verdadeira, mas a maneira pela qual conhecemos
uma proposição considerada verdadeira. A primeira dessas duas definições de intuição torna a proposição
axiomática ou obrigatória; a última a torna um postulado, que é selecionado ou não de acordo com os propósitos
intelectuais que governam a instância específica do pensamento. Em ambos os casos, entretanto, a intuição
representa uma fase supra-cogitativa do pensamento e é indispensável para os processos de demonstração e
argumentação.
O trabalho de Hans Vaihinger e, talvez, o movimento pragmático no campo da filosofia, também são parcialmente
responsáveis pela oposição a uma metodologia puramente intelectualista. A teoria das ficções lógicas do primeiro e
a ênfase do segundo sobre a disposição de acreditar[5] contribuem, de ângulos bastante diferentes, para o mesmo
ponto de vista geral de que o pensamento, por um lado, é forçado a empregar elementos que são irracionais ou, pelo
menos, não-racionais e, por outro lado, que o pensamento é uma atividade motivada, seja o propósito o ajuste
prático a um ambiente ou uma consideração puramente intelectual, como o desenvolvimento de uma doutrina ou a
demonstração de um credo. A lógica, à luz desses pontos de vista, é vista como um instrumento que não fornece
seus próprios fins; seu funcionamento é determinado para ela, não por ela. A lógica é, como todas as ferramentas,
sem valor a menos que sejam fornecidos de outras fontes os materiais sobre os quais ela pode operar. Ela é um
instrumento para lidar com opiniões e, obviamente, não pode ser usada para criar opiniões, nem pode ser usada na
ausência delas. A menos que se tenha algo para se provar ou se demonstrar, os métodos de prova e demonstração
são ociosos. As conclusões a serem provadas devem ser alcançadas por outras faculdades, por insight ou
imaginação; uma vez dadas, a lógica funciona dinamicamente em sua função adequada de estabelecer meios para o
fim determinado.
Esses assuntos serão discutidos em mais detalhes posteriormente. Nosso interesse atual é meramente contrastar a
tese de que o pensamento é uma atividade da razão independente de todos os elementos não-racionais, com várias
formas da antítese de que o pensamento é, tanto na origem quanto em sua determinação progressiva, algo arbitrário
e, de certa forma, não-racional. O argumento pode ser apresentado em termos lógicos ou psicológicos.
(4) O pensamento busca terminar em conhecimento, ou seja, o pensamento repousa na verdade. Essa é
provavelmente a mais fundamental das quatro teses apresentadas. Ela é amplamente aceita, apesar da variedade de
significados atribuídos na interpretação do conhecimento e da verdade. E a questão abordada, quando a objeção é
levantada contra o ideal de verdade, é provavelmente a mais crucial a ser enfrentada no desenvolvimento do
argumento deste livro.
É necessária pouca explicação para a proposição. Ela implica, obviamente, que o pensamento é uma agência na
obtenção do conhecimento. Isso pode ser afirmado de várias maneiras, cada uma delas, entretanto, dando uma
implicação ligeiramente diferente. Pensar é lidar com idéias a fim de chegar a um conjunto de idéias que possa ser
afirmado como verdadeiro. Pensar é uma maneira de responder a estímulos ambientais para obter um ajuste final,
consumatório e satisfatório. O pensamento é uma tentativa de construir um sistema de proposições que corresponda
aos fatos e, portanto, que seja conhecimento dos fatos, ou seja, proposições verdadeiras. O pensamento conclui com
a afirmação ou negação de certas proposições e é um bom pensamento na medida em que as proposições afirmadas
são verdadeiras e as proposições negadas são falsas. Em outras palavras, a bondade do pensamento deve ser julgada
em termos de seu valor de verdade.
Qualquer oposição a essa tese sempre assume a forma, não de negar absolutamente que a verdade seja relevante para
o pensamento, mas de definir a verdade de tal forma que sua relevância para o pensamento seja bastante alterada. Na
discussão que se segue, é importante ter em mente que nenhuma teoria sobre a natureza da verdade está sendo
preferida a qualquer outra. Os pontos de vista contrastantes na interpretação da tese em consideração estão apenas
sendo enumerados e contrapostos.
No início deste século, houve um grande furor sobre o significado da verdade. Desde então, ele se extinguiu. O
pragmatismo foi responsável por levantar a nuvem de poeira e nunca descartar adequadamente todas as partículas
assim perturbadas. Logicamente, a questão principal era entre as teorias da verdade da coerência e da
correspondência, mas o centro da tempestade da controvérsia girava mais frequentemente em torno de distinções
como a mediação ou o imediatismo da verdade, a aproximação relativa da verdade ou sua absolutez final. E a
disputa alcançou seu estágio mais vulgar quando o dilema foi declarado em termos de se uma idéia era verdadeira
"porque funcionava" ou "funcionava" porque era verdadeira.
Todos os pontos controversos acima, por mais importantes que sejam, alteram muito pouco a tese de que a verdade é
o critério aplicado na avaliação do pensamento. Se na teoria da coerência um julgamento é verdadeiro por causa de
sua posição no nexo lógico do Absoluto ou se na teoria da correspondência uma idéia é verdadeira porque "se
encaixa nos fatos" de alguma forma; se o pensamento consegue saber absolutamente, se é que consegue saber, ou se
seu conhecimento é altamente relativo às suas circunstâncias, ainda assim, o pensamento é bom em qualquer caso,
na medida em que é verdadeiro. Há um significado comum a todos esses usos do ideal de verdade, que é o de que o
pensamento deve ser julgado em termos de algo extrínseco a si próprio, um absoluto de algum tipo, não fazendo
diferença se é o conhecido Absoluto do idealismo objetivo ou os absolutos disfarçados que são chamados de fatos
pelo empirismo e pelo pragmatismo. Não faz diferença se a conformidade com o absoluto é uma relação temporária
ou final, o absoluto em si não muda, e a verdade é boa de uma vez por todas ou se torna cada vez melhor à medida
que se torna mais e mais aproximada. O ponto central a ser enfatizado é que a qualidade da verdade em todos esses
casos, apesar das diferenças declaradas, é essencialmente a mesma em um aspecto, que é uma relação extrínseca que
ocorre entre o pensamento e algo que não é o próprio pensamento.
É em outra direção que ocorre um desvio realmente sério da metodologia convencional. Assim como a lógica
matemática e os estudos afiliados ofereceram anteriormente um profundo contraste com a concepção tradicional de
pensamento, aqui eles apresentam um uso do valor de verdade igualmente divergente. A verdade é uma qualidade
intrínseca a um sistema de proposições. Uma breve consideração sobre a estrutura dos sistemas deixará isso claro.
Uma doutrina consiste em seu conjunto de postulados e suas proposições. Os postulados são considerados
verdadeiros. Eles não são verdadeiros em relação a nada além deles mesmos. Eles são verdadeiros em si mesmos,
porque são tomados para fins sistemáticos dessa maneira. As definições também são consideradas verdadeiras, ou
não são verdadeiras nem falsas se forem apenas referências notacionais arbitrárias. As proposições são verdadeiras
se estiverem em uma determinada relação lógica específica com os postulados e definições, e falsas se não
estiverem. A verdade e a falsidade das proposições são sua qualidade em uma relação sistemática, inteiramente
intrínseca, e sem relação com quaisquer fatos, proposições ou padrões fora do sistema. O próprio sistema como um
todo tem certa qualidade de verdade se seus postulados forem auto-consistentes e independentes, e se não contiver
proposições falsas, mas isso, mais uma vez, é obviamente um atributo intrínseco do sistema, e não uma qualidade
que ele possui por estar em relação a qualquer coisa que não seja ele mesmo.
A variedade e a complexidade dos sistemas simbólicos e logísticos são muito grandes. Não é possível fazer uma
descrição adequada deles aqui. O que é importante é o contraste entre o pensamento matemático (ou geométrico) e o
pensamento científico (ou empírico) mais familiar com relação à verdade, bem como com relação ao procedimento
atual. Esse contraste deve ser desenvolvido um pouco mais.
O pensamento empírico deve ser diferenciado do pensamento matemático por esta condição, entre outras, de que o
primeiro submete seus processos racionais ao julgamento de validade em termos de critérios extrínsecos, fatos,
experimentos, etc., enquanto o segundo submete seus processos racionais ao julgamento de validade apenas em
termos de critérios intrínsecos, consistência, demonstração, etc. A tese original de que o pensamento busca terminar
em conhecimento, que busca repousar na verdade, tem evidentemente uma força bastante diferente se for entendida
à luz de requisitos empíricos ou matemáticos. Em um caso, o pensamento é controlado por toda parte por uma
referência de verdade a entidades que vão para além de seus próprios processos; no outro, o pensamento é
controlado por regras de verdade ou demonstração válida cuja referência completa se esgota nos processos do
próprio pensamento.
Os requisitos do procedimento empírico podem ser resumidos em uma cláusula da tese original, de que o
pensamento é de alguma maneira relevante para a experiência. A experiência é aqui empregada como um termo
genérico para qualquer uma das entidades ou itens que foram previamente designados como extrínsecos ao
pensamento. Tais entidades foram denominadas de várias maneiras como "fatos", "realidades", "natureza",
"matéria", "experiência imediata (em oposição à mediata ou reflexiva)", "dados", "objetos" ou "eventos". Trata-se de
qualquer entidade[6] que, em qualquer instância, não seja uma "idéia", um "julgamento" ou uma "proposição"; as
entidades assim classificadas são aquelas sobre as quais são feitas idéias, julgamentos ou proposições, e é no sentido
dessa relação entre essas duas classes exclusivas de entidades que se afirma que o pensamento é, de alguma forma,
relevante para a experiência, que ele deve levar em conta a experiência, que é um pensamento verdadeiro quando
preenche certos requisitos em relação à experiência.
Deve ficar claro, a partir da exposição anterior, que o tipo de pensamento que um sistema in ordine geometrico
representa não apenas não satisfaz os requisitos empíricos, mas nega sua relevância. A cautela lógica torna
conveniente uma certa distinção neste ponto. Não se está afirmando que o pensamento matemático ou geométrico
não tem um objeto, o que significaria que ele criou um conjunto de proposições elaboradas a partir do nada. Afirma-
se, entretanto, que o pensamento que assume a forma lógica descrita como matemática não deriva sua validade da
referência ao seu objeto, mas da referência à sua própria estrutura interna. O que pode parecer intrigante e, talvez,
incongruente em relação às duas afirmações anteriores é dissipado pela constatação de que um sistema geométrico
define seu próprio objeto de estudo com tanta precisão que, se for verdadeiro internamente, é equivalente a dizer que
é verdadeiro em relação ao seu objeto de estudo. Seus "fatos" estão realmente contidos em suas definições, seus
postulados e suas proposições; qualquer que seja o ser ou a realidade que eles possam ter para além dos limites de
seu significado definido no sistema dado, isso é ignorado por esse sistema.
O pensamento geométrico tem sido chamado de "pensamento se-então", porque seu padrão é que se tais e tais
postulados são verdadeiros, então tais e tais proposições são verdadeiras. Ele não afirma a verdade dos postulados;
tampouco afirma a verdade das proposições independentemente da verdade hipotética dos postulados. Os postulados
podem ou não ser verdadeiros; as proposições podem ou não ser verdadeiras por si mesmas, em termos dos fatos ou
da realidade, ou em algum outro sistema. No entanto, não se afirma nem se nega que elas sejam ou não sejam. O que
se afirma é apenas que, se tal e tal é assim, então tal e tal é assado, e que, para fins de determinação de um sistema
de tais relações, estamos assumindo que tal e tal é assim. A verdade ou validade entra nesse sistema como uma
régua entra no processo de medição. Se isso, então aquilo é verdadeiro ou falso. Isso ou decorre disso ou não, e se
decorre ou não, pode ser determinado com os elementos fornecidos por regras de inferência correta e regras de
demonstração. Deve-se entender que essas regras de inferência ou de demonstração são assumidas como
verdadeiras. Elas não poderiam ser demonstradas como verdadeiras sem serem elas mesmas assumidas. Verdade ou
validade, então, no pensamento geométrico é meramente uma certa relação entre proposições em um sistema, de
modo que se uma é assim, então a outra é assim; a verdade está ausente quando uma relação é obtida entre
proposições em um sistema de modo que se uma é assim, ou a outra não é assim, ou não é possível afirmar ou negar
a outra. Se algum postulado ou proposição de um sistema for encontrado ou considerado como não-verdadeiro,
então qualquer outra proposição que dependa dele para ser demonstrada não será refutada, mas sim não-provada. O
problema da validade de dois sistemas que de alguma forma se contradizem ou são inconsistentes entre si não é
relevante no momento. Ele será analisado posteriormente.
O fato de que a verdade é, de alguma maneira, um padrão para julgar os produtos do pensamento não foi negado em
nenhuma parte da discussão anterior; em vez disso, foi definido o contraste entre o uso desse padrão e suas
implicações, no tipo de pensamento que "é de alguma forma relevante para a experiência" e no tipo de pensamento
que segue o padrão "se-então".
Há, entretanto, um desvio mais radical da convenção adotada pela metodologia tradicional. Foi mencionado um tipo
de pensamento que tem sido chamado de conversacional, argumentativo ou dialético. A forma ou o padrão desse
tipo de pensamento não foi descrito ou discutido, exceto na medida em que os diálogos de Platão, a técnica do
debate medieval de teses e a lógica de Hegel foram indicados para exemplificá-lo, ou na medida em que a
experiência comum de conversações e disputas humanas foi invocada para dar significado denotativo à referência.
Sem entrar aqui na análise da dialética que será o objetivo deste livro apresentar, pode ser possível sugerir, talvez de
forma grosseira, em que sentido se pode dizer que a verdade é irrelevante para a dialética. A dialética pode ser, em
outras palavras, um exemplo de pensamento no qual a tese convencional de que o pensamento termina em verdade
se encaixa, se é que se encaixa, ainda menos do que no pensamento geométrico.
A análise de argumentos ou disputas de qualquer tipo, sem a tentativa de revelar o padrão lógico que os envolve e
informa, leva à observação bastante comum de que eles terminam em acordo ou desacordo entre os disputantes, e
não em verdade. Pode ser comum afirmar que quando duas partes em uma disputa concluem em acordo, elas
chegaram à verdade, mas parece não haver fundamentos lógicos para essa opinião comum. Pode-se apenas dizer, se
quisermos ser cautelosos, que o acordo implica que eles se entendem, ou que um renuncia à sua posição em favor da
posição de seu oponente, ou vice-versa, ou que ambos assumiram uma terceira posição diferente das duas originais,
ou que eles são capazes de traduzir suas opiniões mutuamente de tal forma que cada um mantém sua posição
original e, ao mesmo tempo, reconhece e entende o outro. As várias opiniões em discussão podem ou não ser
verdadeiras, seja empiricamente ou no sentido "se-então"; o fato de serem verdadeiras ou não parece não ser, de
forma alguma, genuinamente determinado pelo acordo dos disputantes no caso.
Um argumento que permanece sem solução, ou seja, que não termina com um acordo, deve ser interpretado de
forma semelhante. A irresolução implica que os dois disputantes não se entenderam, ou que nenhum deles cedeu sua
posição em favor do outro, ou que o processo de tradução mútua não ocorreu. Não está implícito que nenhuma das
duas posições não resolvidas seja falsa, que ambas sejam falsas ou que ambas sejam verdadeiras, embora, no sentido
empírico ou no sentido se-então, elas possam estar em qualquer um desses estados de validade.
Os argumentos são concluídos de duas maneiras: acordo ou desacordo, mas é preciso fazer uma distinção importante
entre dois tipos de entidades sobre as quais o acordo e o desacordo podem ocorrer. Dois disputantes podem estar
discutindo certas opiniões ou certos fatos. Assim que um "fato" é introduzido na discussão, a controvérsia genuína
cessa. Ou a referida entidade é admitida como um fato e, nesse caso, não há mais nada a ser dito sobre ela, a menos
que outras declarações ou opiniões sejam feitas sobre ela. Nesse caso, a disputa continua em relação a essas opiniões
e não aos fatos. Ou a entidade em questão não é admitida como um fato, e nada mais pode ser dito sobre ela. Em
geral, portanto, pode-se declarar que os argumentos são concluídos pela introdução de "fatos", ou pela concordância
ou discordância das partes do argumento, em relação às opiniões em questão.
Até que uma análise mais completa da dialética seja feita, o significado preciso do valor-verdade nesse processo de
pensamento não pode ser determinado. Por enquanto, deve ser suficiente indicar brevemente a relação da dialética
com o pensamento geométrico e o pensamento empírico com relação à tese sobre a verdade.
No pensamento argumentativo, dois sistemas de proposições parecem estar em oposição. É sobre esses dois sistemas
opostos que a disputa parece estar ocorrendo. Assim, na medida em que a validade das proposições em um dos
sistemas deve ser determinada, a dialética se assemelha muito ao procedimento geométrico. A determinação é feita
em termos de implicação de acordo com os cânones da demonstração. Contudo, na medida em que a validade dos
dois sistemas deve ser determinada, para que os oponentes possam concordar ou discordar de alguma maneira
específica, surge um problema que ainda não foi tratado. Esse é provavelmente o principal problema da dialética no
que diz respeito à verdade e, por enquanto, é necessário apenas salientar que a verdade dos sistemas em conflito não
é determinada por referência a critérios extrínsecos, mas por um processo interno — o processo essencial da
dialética — que se assemelha muito ao procedimento geométrico e não satisfaz de modo algum os requisitos
empíricos. A dialética é um processo do pensamento que nunca busca a verdade no sentido empírico, embora,
acidentalmente, seja frequentemente concluída pela intrusão de "fatos". Seria mais preciso dizer que os fatos
interrompem ou destroem a dialética; eles não fornecem à dialética uma conclusão lógica; e é nesse último sentido
que a dialética não visa à verdade empírica.
É evidente, também, que a argumentação, isto é, a argumentação humana efetiva, depende da linguagem, ou pelo
menos, deve empregar a linguagem; e que isso acrescenta ao problema de determinar a verdade das proposições na
argumentação, o problema de determinar seu significado. Pode ser, mas não está sendo afirmado aqui, que o fim da
dialética seja a compreensão em vez da verdade, que a dialética busque determinar o significado das proposições ou
opiniões em debate, em vez da verdade relativa delas. Se assim fosse, a conclusão de um argumento por acordo
implicaria a obtenção de entendimento ou a capacidade de traduzir mutuamente de um sistema para outro, e não a
obtenção da verdade. A verdade na dialética ou na argumentação pode significar nada mais do que esse acordo ou
tradução. Em outras palavras, os argumentos podem levar à verdade quando levam a um entendimento comum.
Por fim, a questão deve ser levantada com relação a proposições isoladas. Na medida em que o pensamento é
geométrico ou dialético, as opiniões ou declarações, proposições ou idéias sempre ocorrem em um contexto definido
que é ou deveria ser capaz de determinar definitivamente seu significado e, em alguns casos, sua demonstrabilidade.
Os requisitos do pensamento empírico parecem possibilitar que uma proposição, opinião ou idéia isolada seja
verdadeira fora de qualquer contexto definido, se ela tiver uma certa relação específica com os fatos do caso. Essa
questão será abordada em uma fase posterior de nossa discussão; ela é levantada aqui apenas para qualificar ainda
mais a força precisa da tese de que o pensamento busca terminar em verdade, uma vez que a verdade de uma
proposição isolada parece ser obtida em bases diferentes da verdade de proposições em contextos demonstrativos ou
dialéticos.
Deve-se repetir, em resumo, que a quarta e última tese empregada na exposição da concepção tradicional acerca da
natureza do pensamento não foi negada ou afirmada. Ela foi meramente considerada em relação aos problemas que
sua interpretação gera e em relação aos três tipos diferentes de pensamento, o empírico, o tipo se-então ou
geométrico e o argumentativo ou dialético. Parece evidente que a tese tem uma força e um significado diferentes em
cada um desses casos.
Traços de Controvérsia
A discussão anterior trouxe à tona uma série de atitudes contrastantes com relação ao caráter do pensamento, seus
métodos e seus fins definitivos. A doutrina convencional foi exposta submetendo-se suas teses à interpretação e à
oposição de várias considerações diversas e antitéticas. No decorrer dessa exposição, observou-se que havia uma
certa congenialidade intelectual entre esses pontos de vista divergentes. Talvez agora seja possível criar uma nova
doutrina que expresse essa divergência de forma mais sistemática. Essa seria uma nova metodologia; talvez fosse
melhor dizer que seria uma metodologia diferente, pois é uma síntese de muitas concepções que são historicamente
familiares com algumas que são recentes e novas. Pelo menos, ela apresentará uma teoria e uma análise do
pensamento, tanto em relação a seus fatores quanto a seus ideais, em nítido contraste com o entendimento
convencional e aceito dessas questões.
O pensamento empírico ou científico recebeu uma formulação completa. Na verdade, é precisamente o pensamento
empírico ou científico que é descrito pela metodologia convencional da tradição moderna, a metodologia da indução
e da dedução, do pensamento cujo fim é a determinação da verdade sobre os fatos. O pensamento geométrico ou
matemático também não está isento de uma exposição cuidadosa na literatura do método. É apenas a dialética que,
pelo menos na tradição moderna, não foi tratada adequadamente. Tanto a cultura antiga quanto a medieval
apreciaram seu significado, e a última formulou cuidadosamente grande parte de sua técnica, tanto na teoria quanto
na prática. É a dialética que descobrimos, ou redescobrimos, na crítica feita às teorias tradicionais. A formulação da
dialética como uma doutrina metodológica não apenas fornecerá um comentário sobre um tipo de pensamento que
foi negligenciado em favor da ciência e da experiência, mas também reunirá em uma única declaração a concepção
histórica mais antiga da dialética com uma série de interesses dissociados, em especulações recentes, que deveriam
ser aliados a ela.
A dialética não precisa ser descoberta, exceto teoricamente. Na prática, ela é um instrumento intelectual comum, um
dispositivo que a maioria dos seres humanos emprega em qualquer conversa que se torne contenciosa ou
argumentativa; ela é a maneira pela qual as opiniões humanas são opostas umas às outras, defendidas, atacadas,
criticadas, combinadas. Entretanto, em sua maior parte, a dialética, como esse conjunto de processos intelectuais,
não foi reconhecida explicitamente. A descoberta da teoria da dialética certamente deve esclarecer e aperfeiçoar sua
prática. Ela pode fazer mais do que isso. Por teoria da dialética entende-se uma análise metodológica completa dos
fatores psicológicos, por um lado, e da estrutura lógica e suas implicações, por outro. Essa análise pode levar a uma
interpretação radical a respeito da ciência e da filosofia e pode instituir um conjunto divergente de valores
intelectuais. Quaisquer que sejam as consequências de tal empreendimento — e certamente seria insensato prevê-las
ou julgar seu valor antecipadamente — a tentativa de descrever a dialética é justificada em razão de seu surgimento
contínuo no discurso atual que, em grande parte, forma nossa vida intelectual, e em razão do fato de que a dialética
representa uma doutrina de dissidência em relação à metodologia convencional.
A descoberta da dialética foi realmente feita em termos das objeções levantadas contra algumas das teses já
discutidas e, de modo geral, portanto, pode-se fazer uma declaração preliminar dos atributos e fases da dialética a
serem incluídos em nossa exposição.
Em primeiro lugar, a dialética pode estar preocupada com idéias, mas em sua ocorrência atual, a dialética está
preocupada com idéias apenas na medida em que elas são expressas linguisticamente. A controvérsia e a
argumentação são geralmente descritas, às vezes de forma elogiosa e às vezes depreciativa, como mero
"verbalismo". A argumentação é quase invariavelmente uma questão de palavras. Se as palavras forem consideradas
símbolos com significados que nem sempre são determinados com precisão, então uma das principais funções da
argumentação ou da dialética é introduzir a definição no discurso. A dialética e o estudo da linguística estão,
portanto, intimamente relacionados, uma vez que ambos se ocupam da relação entre a linguagem e o pensamento,
entre a linguagem e os fenômenos de significado. Uma das primeiras tarefas na descrição da dialética, portanto, é
lidar com os problemas da linguagem.
A dialética é o pensamento em discurso; seu reino de existência é o universo do discurso; e determinar as relações
que existem entre os itens do discurso é, em parte, definir a natureza da dialética. Ela é inteiramente uma questão de
palavras, mas não é "mero verbalismo", a menos que as palavras sejam consideradas entidades insignificantes.
Termos e proposições, palavras e sentenças são os símbolos e as declarações de significados. É a confusão e a
contradição de significados que criam problemas no discurso e dão origem à dialética.
Em segundo lugar, a dialética é uma forma de pensamento que não pode ser adequadamente caracterizada ou
completamente subsumida às regras de indução e dedução. Isso parece estar ligado ao fato de que a dialética
depende de uma situação intelectual que não é relevante ou suscetível aos processos de indução ou dedução em
qualquer maneira simples de seu uso. Essas últimas são técnicas de investigação e demonstração, e estão disponíveis
para os propósitos da ciência natural ou da geometria, respectivamente. Entretanto, a situação intelectual que nos
confronta no caso de argumento ou controvérsia é uma situação em que o propósito fundamental é o de resolver uma
oposição de opiniões, e a dialética, como técnica de resolução, tem um padrão formal próprio para regular seu
procedimento adequado. A descrição da dialética envolve, portanto, uma análise do procedimento pelo qual os
conflitos no discurso são resolvidos.
A controvérsia atual ocorre quando duas mentes estão envolvidas em uma disputa. É evidente que essa disputa só
pode ocorrer porque os dois indivíduos em questão são, de alguma forma, partidários. Eles tomaram partido; estão
defendendo ou atacando crenças ou proposições. O partidarismo, portanto, é um fator essencial no caso da dialética.
Mas o partidarismo não implica necessariamente em uma dualidade efetiva de mentes individuais; ele existe sempre
que a oposição ocorre no discurso e permanece sem solução. A apreciação dessa oposição e a tentativa de resolvê-la
requerem partidarismo, quer a apreciação seja o ato de uma única mente ou o resultado de duas mentes em conflito
intelectual.
Em terceiro lugar, a discordância das mentes ou as questões controversas no discurso que uma única mente pode
tentar resolver dialeticamente não são de origem puramente racional ou intelectual. Persuasões emocionais de um
tipo ou de outro, as limitações e excentricidades da compreensão e da interpretação, os propósitos que controlam a
vida teórica e a prática, são mais ou menos responsáveis, em parte, pela geração de disputas ou dificuldades com
relação à opinião ou convicção. Os mesmos fatores operam também ao longo do curso de qualquer instância de
argumento ou dialética e, obviamente, é preciso levá-los em conta para que a análise psicológica do pensamento
dialético seja adequada.
Ademais, nenhum argumento pode definir todos os seus termos ou prosseguir sem que sejam feitas suposições,
implícita ou explicitamente. Pode ser que os argumentos ocorram fundamentalmente por causa das diferenças de
definição e da diversidade de suposições por parte dos disputantes. Ou, no caso da oposição de opiniões, essa
oposição pode ser igualmente causada por diferenças de definição e de suposição. Se a dialética é a técnica pela qual
tais oposições são tratadas, então é evidente que ela deve estar intimamente preocupada com a declaração cuidadosa
e explícita de premissas ou postulados e com a definição exata dos termos no discurso.
Na medida em que a definição e a postulação são arbitrárias, as conclusões que delas decorrem devem ser
qualificadas por esse caráter de sua fonte. Duas opiniões conflitantes, em outras palavras, não podem ser
consideradas isoladamente. Elas não ocorrem isoladamente, mas sim no contexto de uma controvérsia. Isso é
semelhante à situação que as proposições ocupam em um sistema. O significado de tais proposições e de opiniões
controversas é inteiramente determinado por seus contextos sistemáticos. E se sua oposição tiver que ser resolvida,
ela deve ser resolvida em termos das definições e postulados dos quais os elementos em questão derivam.
A dialética, então, enfrenta essa alternativa. Ela envolve partidarismo na medida em que ocorre somente na presença
de opções intelectuais genuínas; mas na medida em que reconhece que a questão com relação à qual é ativamente
partidária surge por meio de diferenças arbitrárias na definição e na suposição, ela deve assumir uma certa
imparcialidade com relação à questão em pauta. Em outras palavras, ela deve entender que, se isso é assim, então
aquilo se segue, mas se aquilo é assim, então isto se segue. Até que se possa provar que isso é assim ou aquilo é
assim, a imparcialidade deve ser mantida em relação ao que se segue de qualquer um dos conjuntos de suposições.
Essa atitude de imparcialidade não precisa, de modo algum, ser inconsonante com o partidarismo ativo com o qual o
processo dialético se empenha em derivar consequências das diversas premissas e em tentar resolver as diferenças de
definição e suposição envolvidas. Se a resolução for efetuada, o partidarismo cessa, e a necessidade de
imparcialidade também. No processo dialético, a imparcialidade intelectual em relação aos dois lados da questão em
disputa parece ser exigida pelas próprias condições que geram o partidarismo e a própria disputa. Quando essas
condições são removidas de qualquer instância do discurso, a própria dialética cessa.
Em quarto lugar, se a dialética é genuinamente um problema no discurso, ela não pode, de maneira alguma, ser
impedida, facilitada ou dirigida pela adição de, ou referência a, "fatos". Se um "fato" for introduzido na discussão, o
argumento termina nesse ponto e deve ser retomado em outro lugar. Contestar um "fato" implica um mal-entendido
sobre o que são os fatos ou uma diferença de opinião quanto ao significado dos fatos em questão. Se o primeiro for o
caso, o argumento é irrelevante. Os fatos não podem ser descobertos no discurso ou por meio de qualquer discussão.
Eles são descobertos por investigação, observados, apontados, acordados ou presumidos. Se o último for o caso, é
adequado que o pensamento discursivo ocorra, pois o objetivo desse pensamento é esclarecer e estabelecer
significados. A argumentação não se preocupa com o que é, mas com o que deve ser entendido[7].
Segue-se, portanto, que a verdade, quando considerada como uma relação extrínseca do pensamento com entidades
que estão além dos processos de pensamento, não pode ser alcançada pelo pensamento dialético, quer a resolução da
questão dialética seja alcançada ou não. A única maneira pela qual os critérios de validade podem ser empregados
no julgamento da argumentação é na criação de regras de inferência pelas quais se pode verificar se certas opiniões
são demonstráveis em termos de outras. Se for assim, pode ser que se siga ou não que tal é o caso; e o
estabelecimento da conclusão de que tal é o caso pode ser válido ou inválido de acordo com isso. Mas essa validação
ocorre inteiramente dentro dos limites do próprio discurso e não tem referência aos fatos, à experiência ou a
qualquer outra entidade ou elemento de caráter não discursivo. Isso não implica que o discurso seja totalmente
alheio ao universo não-discursivo. A relação que de fato existe entre esses dois reinos é um dos problemas a serem
tratados posteriormente na análise mais completa sobre a dialética. O que é sugerido pela presente discussão é
apenas que, embora possam ocorrer controvérsias sobre opiniões e proposições nas quais se acredita, ou seja, que
são consideradas verdadeiras em algum sentido da palavra que não seja "validamente decorrente de", não há nada na
natureza do processo dialético em si que possa estabelecer a verdade de uma proposição ou opinião em qualquer
sentido que não seja o de "validamente decorrente de". Portanto, não se pode dizer que a dialética resulta em crença;
talvez seja possível mostrar mais tarde que, muito pelo contrário, a dialética, em suas atitudes conjuntas de
partidarismo e imparcialidade, desencoraja totalmente a atitude de crença. Dito de forma mais radical, a crença é tão
irrelevante quanto os fatos para a natureza do discurso dialético.
Isso conclui uma breve declaração preliminar da dialética como uma metodologia e dos problemas a serem
encontrados na descrição detalhada dessa metodologia. Ela pode ser resumida nas seguintes teses:
(1) A dialética é um problema no discurso.
(2) A dialética surge por meio da oposição de significados no discurso.
(3) A dialética, ao reconhecer essa oposição, deve ser partidária em sua tentativa de resolver a oposição.
(4) A dialética, ao reconhecer os fundamentos que impedem a resolução de diferenças arbitrariamente estabelecidas,
deve ser imparcial em relação às consequências dessas diferenças.
(5) A dialética está confinada inteiramente ao domínio do discurso e, portanto, não tem consideração pelas entidades
que estão fora do discurso.
(6) Como a dialética leva em consideração apenas os significados das entidades no discurso, ela não pode
estabelecer verdades ou garantir crenças que dependam da relação entre o discurso e os itens que não estão no
discurso.
Expor adequadamente esses seis princípios relativos à dialética como um método de pensamento e desenvolver suas
implicações é a tarefa da segunda parte deste livro. Eles são apresentados aqui de forma arbitrária. A análise mais
elaborada que se seguirá deve revelar seus fundamentos psicológicos e lógicos, deve definir explicitamente as
concepções e declarar os postulados em termos dos quais a própria dialética pode ser discutida dialeticamente.
Espécimes do Discurso Humano
A dialética poderia ter sido descoberta de outra forma que não por meio da crítica da teoria tradicional e da
consideração da história. Ela poderia ter sido observada onde efetivamente ocorre — nas práticas de conversação
dos seres humanos, em seus argumentos e controvérsias, ou naqueles diálogos que a mente mantém consigo mesma
a fim de solucionar suas dificuldades intelectuais. Em outras palavras, poderia ter sido descoberta na esfera própria
de seu ser — no discurso.
Contemplar a dialética como ela é realmente ocasionada e nas diversas maneiras de sua ocorrência é algo que deve
preceder a tentativa de descrevê-la analiticamente. O discurso pode ser transformado em um objeto de estudo, e a
análise pode então reduzir a variedade de suas manifestações a uma ordem abstrata. Essa ordem abstrata não deve
parecer imposta ao processo dialético; ao contrário, ela deve parecer ser, tal como é, derivada de todas as várias
maneiras pelas quais a dialética pode ocorrer; e para garantir essa percepção, a observação deve preceder a análise.
Também pode ser afirmado que o processo dialético nunca ocorre de fato no padrão formalizado que a análise
subsequente revela; com relação a essa estrutura formal, as instâncias dialéticas de conversação, argumentação e
deliberação intelectual são incompletas, em uma ordem alógica, ou imperfeitas, por meio de um ou outro possível
desvio do procedimento arquetípico. Essa imperfeição recomenda que esses casos sejam objeto de ilustração, pois se
o discurso humano incorporasse a dialética em sua perfeição abstrata e formal, a análise dele poderia ser algo belo,
mas certamente de pouca utilidade.
Os exemplos a seguir foram escolhidos por serem bastante comuns e humanamente familiares; se eles desenvolvem
profundidade, isso por si só é uma circunstância comum, pois é da natureza da profundidade ser onipresente no
discurso. A maioria das conversações humanas geralmente diminui ou pára no ponto em que considerações
profundas e abstrusas parecem inevitáveis se a conversação for prolongada; e isso deve ser bem observado, pois é
essa inevitável condução do discurso para a dialética, e da dialética para a filosofia, que pode ser considerada como
o significado mais profundo tanto do discurso quanto da dialética, e que pode ocasionar uma reinterpretação do
significado da filosofia. Esse, entretanto, é o tema da terceira parte deste livro. Por enquanto, o exame dos espécimes
do discurso deve ser realizado simplesmente com o objetivo de exibir, à maneira de um botânico ou entomologista, a
variedade de espécies que, no entanto, parecem possuir uma certa homogeneidade de forma. O único comentário a
ser feito sobre esses espécimes no momento destina-se apenas a orientar a observação deles, mas não a analisá-los.
Eles são apresentados em uma ordem que visa, grosso modo, progredir de casos extremamente simples para casos
mais complexos e intrincados. Nem todos assumem a forma dramática do diálogo; alguns são conversações do tipo
que ocupam momentos de solilóquio.
(I)
Conta-se a história do Sr. Lincoln que, em uma de suas primeiras campanhas para a legislatura, ele se voltou para
seu oponente e disse: "Sr. Fulano de Tal, se eu chamasse a cauda de uma mula de perna, quantas pernas a mula
teria?"
O Sr. Fulano de Tal respondeu, depois de pensar um pouco: "A mula teria então cinco pernas. Senhor". "Não", disse
o Sr. Lincoln, "a mula teria apenas quatro pernas, pois o fato de chamar a cauda de perna não a torna uma".
A conversa não foi adiante. Tanto o Sr. Lincoln quanto a platéia ficaram satisfeitos com a afiada e conclusiva
investida, que parecia distinguir o Sr. Lincoln por seu excelente senso equestre, e seu oponente por ter sido feito de
idiota sem ser chamado de tal.
Mas a conclusão não é totalmente satisfatória quando considerada independentemente da ocasião política específica
em que foi útil. Poder-se-ia levantar uma objeção quanto à fácil solução do Sr. Lincoln para sua própria pergunta. Se
a cauda for chamada de perna, há uma resposta para o enigma que não é nem cinco nem quatro. Poderíamos
argumentar que a mula em questão teria apenas uma perna, pois se o apêndice específico que está pendurado no
limite coxical da coluna vertebral for designado como uma "perna", com esse símbolo mantendo seu significado
habitual e convencional, então parece questionável, pelo menos, se os quatro apêndices que servem de suporte para
o corpo da mula podem ser designados adequadamente pelo mesmo nome. A dificuldade surge, em grande parte,
porque o nome "perna" e o nome "cauda" podem ser definidos tanto para conotar certos aspectos estruturais do
corpo da mula e certas funções que eles desempenham na vida da mula; como também para denotar ou apontar para
isso ou aquilo sobre a mula. "Chamar a cauda de perna", que o Sr. Lincoln considerou uma questão menos sutil do
que realmente era, cria o conflito no discurso sugerido acima e permite três afirmações possíveis: que a mula tem
apenas uma perna; que ela tem apenas quatro pernas; que ela tem cinco pernas.
Essas três afirmações, em resposta à pergunta "Quantas pernas tem a mula em questão?" ilustram uma série de
coisas que acontecem com frequência no discurso. Incidentalmente, três tipos de mente são mais ou menos
exemplificados, na recusa de senso comum do Sr. Lincoln em fazer distinções no discurso que não pareçam ser
questões de fato, na identificação pelo Sr. Fulano de Tal de distinções no discurso com questões de fato e na
concepção dialética de um terceiro sobre o problema como sendo meramente o de fazer distinções no discurso. O Sr.
Lincoln e seu oponente estavam ambos preocupados com uma questão que poderia ser formulada da seguinte forma:
"Quantas pernas tem uma mula se você chamar a cauda de perna?" Eles se aproximaram de uma experiência
dialética da qual não desfrutaram porque não entenderam corretamente a única questão que poderia ser considerada:
"O que significa chamar a cauda de uma mula de perna?" O que a princípio parecia ser uma questão de fato torna-se,
portanto, uma questão de discurso, e a dialética ocorre assim que qualquer uma das três respostas é dada à segunda
dessas duas perguntas.
Não se está afirmando aqui que a resposta correta para essa pergunta é um, quatro ou cinco. Fazer essa afirmação
seria equivalente a afirmar a resposta como uma questão de fato, e um discurso adicional seria desnecessário. O fato
de a pergunta oferecer a possibilidade de três respostas, nenhuma das quais necessariamente precisaria ser afirmada
como uma questão de fato, indica o caráter dialético da pergunta e enfatiza o aspecto fundamental do discurso que o
torna dialético, a possibilidade de oposição e controvérsia.
O aspecto do processo dialético que se preocupa com o problema da definição é bem ilustrado por essa história. A
força da definição, seu alcance, a relação entre suas dimensões denotativa e conotativa poderiam ser estudados em
termos dessa simples questão no discurso que surgiu ao se chamar uma cauda de perna. E, em parte, a atitude
adotada em relação a cada uma das três respostas e a compreensão que se tem de seu significado seriam
determinadas, finalmente, pela teoria de definição aplicada. Se a cauda for chamada de perna e as pernas
continuarem a ser chamadas de pernas, os significados de "cauda" e "perna" serão alterados; ou talvez, se a cauda for
chamada de perna e as pernas forem chamadas de outra forma, então "cauda" receberá o significado de "perna", pelo
menos até o ponto em que caudas e pernas permaneçam distinguíveis e numeráveis de maneira precisa, se as pernas
forem chamadas por outro nome. Não há dúvida de que as caudas jamais seriam confundidas de fato com pernas; é
simplesmente uma questão de quantas caudas ou pernas uma mula tem, "se a cauda for chamada de perna".
Cada uma das três respostas à pergunta é verdadeira em termos de um contexto interpretativo específico,
determinado pelo ato de definição; e é verdadeira somente no contexto de um ou outro sistema de termos definidos.
O fato de a mula ter cinco pernas é uma proposição que não pode ser significativa, nem verdadeira, nem falsa, se
considerada como uma proposição isolada, uma entidade abstraída de seu contexto no discurso. Isso se aplica
igualmente às outras duas afirmações possíveis. Mas se a proposição for entendida à luz de certas definições que
podem ser oferecidas, ela pode se tornar inteligível e verdadeira. Sua verdade seria a verdade de seguir
adequadamente a partir de uma origem arbitrária no discurso. Por si só, ela não seria nem verdadeira nem falsa; nem
sua verdade deve ser julgada em termos dos fatos. Presume-se que os fatos, se forem fatos, permaneçam inalterados,
mas cada uma das proposições pode ser interpretada sistematicamente de modo que possa ser afirmada de maneira
significativa e verdadeira. A mula pode andar sobre suas quatro patas e abanar sua cauda solitária para sempre, e
nunca ser capaz de determinar a resposta à pergunta dialética feita sobre ela. Ela prestou um excelente serviço, no
entanto, ao ilustrar claramente uma das principais funções da dialética no tratamento de afirmações, não como
capazes de serem verdadeiras em si mesmas em status isolado, nem capazes de serem verdadeiras em relação aos
fatos, mas apenas em termos de um contexto sistemático de interpretação, um conjunto de outras proposições,
algumas das quais são definitivas.
Levar adiante esse pequeno discurso sobre as propriedades da mula em um esforço para resolver algumas das
dificuldades que foram geradas levaria a discussão a fazer distinções e definições abstrusas e sutis sobre identidade,
semelhança e diferença, substância e atributos, estrutura e função. Nesses termos, poderia ser possível chegar a um
entendimento das três afirmações que resolveria suas ambiguidades, ajustaria suas reivindicações conflitantes e
talvez tornasse possível sua tradução mútua. Mas as conversações humanas geralmente ficam muito aquém dessas
buscas intelectuais definitivas, em parte porque a introdução do obscuro e do sutil frequentemente evoca epítetos de
depreciação ou de protesto, como "sofisma" ou "confusão" ou "escolasticismo", ou até mesmo, às vezes, "dialética";
Tal julgamento não seria injusto, pois certamente seria dialético; mas tão certamente seria implicitamente dialético
em sua origem quanto o seria em seu eventual término.
(2)
Muitas vezes, depois de assistir à apresentação de uma peça, uma pessoa confessa que gostou e acrescenta, como
elogio, que as personagens eram muito reais.
Seu companheiro não sentiu prazer com a apresentação e, particularmente, não encontrou justificativa para a
afirmação de que as personagens eram muito reais. Muito pelo contrário. Tratava-se de uma peça ruim pelo simples
fato de que a dramatis persona parecia ser tão absurdamente fictícia e impossível. O desempenho competente foi
desperdiçado em uma mistura pouco convincente.
Um terceiro membro do grupo achou a peça encantadora, mas justamente porque as caracterizações eram muito
fantasiosas, estranhas e improváveis. Uma obra de grande imaginação.
Se eles estiverem em um ambiente físico favorável à discussão, com xícaras ou copos, e tiverem tempo para
desperdiçar de forma ociosa, ocorrerá uma discussão. A controvérsia provavelmente girará em torno da "realidade"
afirmada e questionada com relação aos personagens ou, de modo mais geral, talvez, do "realismo" de toda a peça.
A discussão não pode ser sobre se a peça foi agradável ou não; certamente foi em dois casos, e não no terceiro, e
embora esses fatos tenham sido indubitavelmente responsáveis pela ocorrência da controvérsia e pelas diferenças de
opinião, o discurso que resulta disso deve ignorá-los. O prazer foi experimentado por duas pessoas, mas por razões
diferentes; enquanto duas pessoas que concordam essencialmente com o ponto em questão não concordam de forma
alguma com a coloração emocional de sua percepção comum. Isso é óbvio na maneira pela qual elas formulam seus
julgamentos de maneira diversa, com intenções mais ou menos semelhantes.
A discussão que ocorre nunca determina, é claro, se as razões dadas para considerar a peça satisfatória ou
insatisfatória foram de fato os determinantes causais da decisão e da reação à peça, ou se foram apenas aquelas
razões, dadas após a resposta e o julgamento estéticos, que são tecnicamente chamadas de racionalizações. O
argumento não está preocupado com esse problema, embora em outro momento possa estar; no momento, ele está
preocupado com a questão do realismo da peça. A possibilidade de determinantes emocionais e não-racionais nessa
discussão não deve ser esquecida, mesmo que eles nunca possam entrar e ser declarados no discurso[8]. Eles
constituem os imponderáveis de qualquer argumento, seus fatores não-discursivos e irracionais.
As personagens eram reais, diz um deles; elas eram reconhecíveis. Conheço suas duplicatas na vida.
Não é assim, diz o segundo. São muito exagerados e extravagantes. São psicologicamente impossíveis. Você deve
estar enganado em relação a seus conhecidos se esses são os protótipos deles.
Eles parecem muito diferentes de meus amigos, diz o terceiro. Contudo,certamente não são irreais no sentido de
serem psicologicamente impossíveis. É exatamente isso que é encantador neles. São possibilidades psicológicas,
talvez bastante fantásticas, mas bastante consistentes em suas próprias naturezas.
Tenho certeza de que conheço bem essas pessoas, responde o primeiro. Elas são terrivelmente reais para mim —
mas dificilmente têm naturezas consistentes. Elas não sabem do que estão falando — são neuróticas, todas elas,
assim como meus amigos.
Suponho, diz o segundo, que não adianta discutir com você se você os conhece ou não. Se você os conhece, eles
provavelmente parecem reais para você. Graças a Deus, meus amigos não são assim. Eles parecem estranhos e
impossíveis para mim. Talvez ser neurótico signifique ser irreal para mim.
É bem possível, seu extrovertido incorrigível, acrescenta o terceiro. E agora eu sei por que você não gostou da peça.
Você não a entendeu. Talvez você esteja certo (para o primeiro), eles são neuróticos. Mas eles não são tipos de
maneira alguma. Todo neurótico é tão individual quanto todo extrovertido. Eles não são reais porque se assemelham
a alguém que você conhece. Eles são indivíduos e têm caráter individual. Não são padrões abstratos a serem
comparados com os originais fora do palco. Como indivíduos, eles são muito bem feitos, bem criados.
Mas, interrompe o primeiro, você mudou sua posição. De acordo com o que você está dizendo agora, nenhuma
personagem pode ser real, se for injusto julgá-las como tipos ou porque se assemelham a alguém que você realmente
conhece. Toda personagem seria irreal nesse caso, se a personagem tiver o que você chama de individualidade.
Concordo com você (para o segundo). Essas personagens não são reais para você porque você não conhece meus
amigos; se conhecesse, provavelmente concordaria comigo, não é mesmo?
Sim, diz o segundo, eu deveria chamá-las de reais nesse caso. Para mim, a única pessoa real na peça era aquele
motorista simplório. É bem possível, e bem real.
Porém, quanto a você, o primeiro se volta novamente para o terceiro, o que a palavra real pode significar para você?
Acho que mudei minha posição, admite o terceiro. Porém, agora posso dizer claramente o que realmente penso
sobre tudo isso. Eu me oponho a chamar as personagens de uma peça de reais ou irreais. Elas são criações, assim
como você e eu somos criações e, como tal, são bons ou ruins, agradáveis ou desagradáveis, atraentes ou não
atraentes, em termos de quaisquer padrões que você queira julgar. No entanto, chamá-las de reais no sentido de se
assemelharem a uma criação de outro tipo é uma forma de falar que não faz sentido. Elas são reais se forem
parecidas umas com as outras? Será que você e eu somos reais porque talvez nos pareçamos um com o outro? Não,
isso não significaria nada. Bem, então, não faz sentido julgar as personagens de uma peça como reais porque são
protótipos ou porque você reconhece algo mais nelas.
Contudo, você não faz nenhuma distinção entre uma pessoa real e uma pessoa fictícia, pergunta o segundo. Você e
eu somos reais. Estamos vivos e existimos. E quando você chama uma personagem de real, quer dizer que, por se
assemelhar a alguém que está vivo e existe, ele poderia ser real, embora não seja. Você nunca quer dizer que a
personagem é de fato real. Você simplesmente quer dizer que a personagem poderia ser real. É uma personagem
possível. É por isso que concordo com você (para o primeiro); mas não entendo o que pensa sobre a distinção entre
real e fictício, entre possível e impossível.
Acho, pensa o terceiro, que vocês dois concordam o suficiente sobre o que querem dizer; mas receio que eu discorde
completamente de vocês dois. À medida que penso mais sobre tudo isso, parece-me que as ficções vivem e existem,
só que elas vivem e existem de uma maneira diferente da maneira como você e eu vivemos. Elas levam a vida como
personagens em uma peça de teatro ou em um livro; elas existem como ficções. Você e eu existimos como seres
humanos que nasceram de uma mulher e não do cérebro de um homem. Contudo, todos nós somos reais à nossa
maneira, embora esteja claro que as maneiras são muito diferentes. Eu deveria concordar com você que tudo o que é
possível é real, e o que é impossível é irreal, mas o que é o impossível? Eu não poderia ser você, assim como essas
personagens não poderiam existir como você e eu. Mas elas são possíveis como personagens, e existem como tais, e
são reais como tais. Se elas se contradissessem em suas próprias naturezas, então seriam impossíveis e irreais.
Todavia, elas não fazem isso. É por isso que elas são reais e possíveis para mim; mas muito diferentes de tudo o que
conheço. É por isso que gostei da peça. Ela exercitou minha imaginação.
Oh, nós concordamos essencialmente, diz o primeiro, todos nós.
Sim, diz o segundo, trata-se apenas de nossa experiência ser diferente. Se fosse a mesma, concordaríamos
perfeitamente, exceto quanto ao uso das palavras. Ele (o terceiro) quer usar a palavra real à sua maneira especial,
mas desde que entendamos a maneira como ele está usando a palavra, está tudo bem.
Nossas experiências são certamente diferentes, conclui o terceiro. Mas, mais do que isso, nossas naturezas são bem
diferentes. Eu realmente não acho que você (para o segundo) poderia gostar de uma peça como essa; e não acho que
seja apenas uma questão de uso de palavras. Acho que há boas razões para distinguir entre diferentes tipos de
existência e para tentar entender a relação entre possibilidade e realidade. Acho que não concordamos tanto quanto
você pensa.
Bem, não importa, responde o primeiro. Concordamos o suficiente. Se não pararmos por aqui, entraremos em todos
os tipos de distinções e enigmas filosóficos. Vamos deixar as coisas como estão. Já tivemos prazer e concordância
suficientes para uma noite.
E a discussão cessa ou se volta para outros tópicos. A controvérsia pode ter terminado, mas certamente não foi
concluída, e pode ou não ser possível que algum dia ela venha a ser.
Foi uma discussão sobre palavras, os significados de palavras como "real", "existir", "possível", "semelhante",
"consistente", "auto-contraditório", "ficção". Mas foi uma discussão pouco clara. Não era clara apenas porque
fatores emocionais e egocêntricos produziam diferenças de opinião; mas, mais fundamentalmente, porque essas
opiniões, por mais fundamentadas que fossem, não eram submetidas ao esclarecimento que poderia ter sido dado por
uma dialética mais completa. A dialética estava implícita em todo esse discurso, mas como ela se tornou cada vez
mais evidente no final, foi evitada deliberadamente. Por mais educado e agradável que esse discurso pudesse ser
considerado no âmbito social, intelectualmente era um exemplo de má educação.
Se o discurso tivesse se prolongado mais e fosse mais explicitamente dialético, as partes envolvidas poderiam não
ter chegado a um acordo maior do que chegaram. É difícil determinar o acordo real a que chegaram devido à
indefinição com que aceitaram e abandonaram seus termos. Mas a possibilidade de eles concordarem ou se
entenderem completamente pode ser fundamentalmente condicionada pelas limitações e privacidade de sua
experiência, pelos elementos irracionais em suas diversas personalidades, bem como, talvez, pelas profundas
dificuldades em discutir alguns dos termos que acabariam entrando na discussão. O reconhecimento de tais
condições não justifica, entretanto, uma evasão da dialética ou uma tentativa adicional de explorar as profundezas do
discurso.
Está claro que os fatos tiveram pouco papel nessa discussão. Que as personagens da peça se assemelhavam aos
amigos da primeira pessoa era um fato ou não. Isso deveria ser admitido ou, se houvesse dúvida, não poderia ser
discutido. Em vez disso, foram as implicações das semelhanças que, tomadas como certas ou admitidas como fato,
geraram discussão ao levantar a questão. Essa semelhança entre as personagens dentro e fora do palco poderia ser
usada como critério para julgar a realidade das personagens? Em outras palavras, a "realidade" poderia ser
interpretada como esse tipo de coisa? Todas as outras questões genuínas dessa pequena controvérsia eram da mesma
natureza. Elas poderiam ser apresentadas em termos de perguntas como: "O que significa dizer que as ficções podem
ser reais? O que significa dizer que uma personagem existe? O que significa dizer que uma personagem é possível?
E, ao considerar essas questões, foram feitas distinções entre o que é realmente (ou existencialmente) real e o que é
real por semelhança; entre realidade e existência; entre ficções e atualidades; entre a possibilidade que uma coisa
tem em sua própria natureza e a possibilidade que tem por causa das naturezas de outras coisas. Em suma, essa era,
pelo menos em germe, uma discussão filosófica, e é possível que ela provocasse uma brilhante dialética em
participantes mais sofisticados.
Quaisquer que sejam os pequenos rumos que essa dialética adicional possa tomar, sua conclusão poderia ser apenas
uma de dois tipos. Um único conjunto de definições e suposições poderia ser obtido por meio de um discurso
adicional, que interpretaria as afirmações originais de forma a torná-las harmoniosas, concordantes ou capazes de
tradução mútua. Por outro lado, essa resolução pode não ser alcançada; mas o esclarecimento pode resultar da
obtenção de diversos conjuntos de definições e suposições que poderiam interpretar o significado das várias
afirmações originais contrárias. As partes envolvidas na controvérsia discordariam, mas se entenderiam na medida
em que fossem capazes de perceber a derivação da opinião de seu oponente a partir de um determinado conjunto de
idéias, definitivamente declaradas. O partidarismo permaneceria nesse universo particular do discurso e, se a
natureza do partidarismo no discurso for adequadamente compreendida, a imparcialidade teria de ser mantida em
relação às várias fases partidárias. Essa atitude de imparcialidade é equivalente à percepção de que, uma vez que as
várias proposições afirmadas podem ser afirmadas verdadeiramente apenas como decorrentes de certas outras
proposições que não foram comprovadas, todas elas podem ser igualmente verdadeiras; e nenhuma delas pode ser
demonstrada, dentro dos limites do próprio discurso, como verdadeira ou falsa em si mesmas ou em relação ao
estado dos fatos. Elas podem ser verdadeiras ou falsas de qualquer maneira, mas isso não é determinável
dialeticamente. Portanto, o partidarismo deve ser acompanhado de imparcialidade.
(3)
"Amor não é um amor que se altera quando encontra alteridade."
Ela, a quem isso foi citado em uma ocasião propícia para discussão, disse: "Não é assim. O amor se altera de forma
irregular; se altera mesmo na ausência de alteração na pessoa amada".
Ele respondeu: "Eu deveria ir mais longe na direção oposta. O amor não é um amor que se altera independentemente
de quaisquer circunstâncias. O que uma pessoa sempre amou, ela não pode deixar de amar sempre. Se ela descobrir
que não ama mais, ela descobriu que realmente nunca amou".
"Você parece estar contradizendo fatos óbvios, ou então eu não o entendo. Certamente você admite que a maioria
dos homens se apaixona e desapaixona com frequência e com grande facilidade. Isso significa que eles nunca
amaram? Se assim for, o amor deve ser algo muito raro; pois quem já amou de uma forma intocada pela
inconstância ou infidelidade?"
"Amar corretamente é, sem dúvida, raro. Admito isso, e não estou ignorando os fatos. Evito contradizê-los dizendo
que se os homens se apaixonam e se desapaixonam, se amam esta pessoa agora e depois outra, então não é isso que
quero dizer com amor."
"Mas não me parece inteligente definir o amor de tal forma que a maioria dos seres humanos seja incapaz de senti-
lo. Quando digo que amo você ou qualquer outra pessoa que seja, estou relatando, honesta e sinceramente, por
enquanto, um estado de meus sentimentos. No entanto, os sentimentos são transitórios; os desejos passam durante a
noite e, pela manhã, acordamos com novas esperanças e novas suscetibilidades. Não está claro que posso amar
amanhã algo diferente do que amei hoje?"
"Pelo modo como você usa a palavra amor, o que você diz parece verdadeiro. Se o amor é uma questão de emoções,
de sentimento e desejo, eu concordo com você quanto à sua inevitável transitoriedade. O amor assim concebido seria
dependente do corpo, não no sentido vulgar, mas no sentido em que se pode dizer que o corpo ativo é a alma. O
amor, se for um problema relacionado ao mundo dos corpos, qualquer que seja sua análise final em sistemas
nervosos e glândulas, o amor assim condicionado não poderia, é claro, deixar de se alterar, de fato, conforme suas
condições se alterassem."
"Você parece me entender. Quando alguém sente que está apaixonado, esse sentimento provavelmente se deve a
todas as circunstâncias que você mencionou. A pessoa deseja possuir o objeto de seu desejo em toda a extensão de
seu desejo; e o amor persiste em tal situação até que o desejo mude ou pereça. Você entende isso muito bem, mas
parece não estar disposto a aceitar esse uso da palavra amor. Parece ser o único tipo de amor que ocorre entre os
seres humanos; de que adianta conceber o amor de outra forma?"
"Esse uso, qualquer que seja o fato da psicologia humana, exige a distinção de duas concepções de amor que
geralmente são confundidas em nossas conversas sobre ele. Quando afirmo que o amor não pode mudar, estou me
referindo a uma certa relação possível entre os seres humanos. Acredito que os seres humanos são capazes de amar
dessa forma, e devo ir além e dizer que eles só são genuinamente amantes quando amam dessa maneira. O que você
chama de amor — o estado emocional, os sentimentos, os desejos — é amor se estiver unido ou participar do estado
mental que eu chamo de amor."
"Você não deve ser arbitrário em suas definições; a maneira como você usa a palavra não é a única maneira pela
qual ela pode ser usada corretamente. Mas eu gostaria de entender seu uso. Você define o amor como um estado de
espírito?"
"Não, isso não seria muito preciso. O que quero dizer é simplesmente isto: Concordamos que o amor é o desejo de
possuir o objeto amado. Mas discordamos sobre a maneira pela qual os objetos são possuídos. Você parece pensar
que os possuímos de alguma forma física, social ou emocional, enquanto eu penso que possuímos apenas o que
conhecemos. Isso, suponho, é platonismo, o que provavelmente seria condenável aos seus olhos. No entanto,
considere por um momento o que está implícito. O conhecimento é amor na medida em que o conhecimento é a
posse de seu objeto. Estou falando, talvez, de um certo tipo de conhecimento, um conhecimento no qual a pessoa
está unida ao objeto conhecido. É a maneira pela qual se contempla essências, qualidades, formas, idéias, e não a
maneira pela qual se conhece as coisas. Se alguém ama um objeto nesse sentido, ele o possui completamente e,
como as essências, qualidades, formas e assim por diante são coisas eternas, estão totalmente fora do tempo, não
podem mudar e, portanto, a posse delas é algo eterno. A duração é realmente irrelevante para o amor. Se eu já te
amei nesse sentido, se eu já te possuí como uma certa essência, você pode mudar de fato, mas o "você" que eu amei
uma vez, essa "essência" de você, não poderia mudar e, portanto, eu sempre a amarei."
"Você desconversa. Quando você fala dessa maneira, fica bem claro para mim que não é a mim, a mim como
pessoa, que você ama. Você ama suas próprias idéias. Deus não permita que elas mudem. Você impõe a mim sua
própria concepção ideal, tenta torná-la mais real e objetiva chamando-a de minha essência, como se percebesse essa
essência em mim, em vez de me cercar com suas próprias fantasias. Essa essência é o que você ama e possui quando
olha ou contempla. Se eu me rebelar e mudar minha pessoa em relação a você, tão radicalmente que não seja mais
agradável, mesmo para um platonista, que identifica essas essências comigo, você deixará de me amar, o verdadeiro
eu que eu conheço, e talvez se volte para outro lugar. Você encontrará alguma outra mulher que se submeta à sua
feitiçaria intelectual; a idealização funcionará novamente por um tempo; você afixará as essências amadas à pessoa
dela, ou se iludirá acreditando que elas já estavam lá; e então afirmará que, como as essências não mudaram, você
ama o mesmo objeto. E isso poderia continuar por meio de infinitas mutações desse tipo. A única coisa que parece
não mudar, até onde posso ver, é o seu próprio conjunto de idéias; e seria melhor se elas mudassem!"
"Esse é exatamente o ponto — embora você pareça não gostar de reconhecer isso. Embora eu possa mudar de pessoa
para pessoa, sou monogamicamente casado com as essências que amo — ou, se preferir, com meus próprios ideais.
Está claro para mim que, se o amor é o desejo de possuir, essas essências ou ideais são as únicas coisas que posso
possuir genuinamente. Eu as possuo quando as contemplo, e esse tipo de contemplação é amor. Quando amo você e
depois outra pessoa e depois outra pessoa, é sempre a mesma coisa que amo, embora em pessoas diferentes, e
embora você pense que eu envolva a pessoa em particular com meus próprios ideais, você deve admitir que a razão
pela qual, de todas as pessoas no mundo, sou capaz de amar apenas algumas, é porque apenas algumas são
suscetíveis a essa idealização, ou como prefiro dizer, apenas algumas pessoas manifestam as essências que amo. Não
afirmei, lembre-se, que o amor é sempre o amor da mesma pessoa. Eu disse, em vez disso, que o amor não se altera
— é sempre amor da mesma forma pelo mesmo objeto. E agora deve estar claro para você que o objeto amado não é
uma pessoa, mas alguma qualidade de uma pessoa, que essa pessoa tem acidentalmente ou essencialmente. Se a
qualidade for acidental à natureza da pessoa, é provável que ela não seja duradoura nela, e o amor terá de encontrar
outra pessoa. Mas se a qualidade for da própria essência da natureza da pessoa, o amor provavelmente será dessa
pessoa até a morte."
"O que você diz é boa poesia, bom platonismo; mas não consigo ignorar a biologia. Sou um corpo, e me parece que
meu funcionamento, no amor e em outras coisas, pode ser descrito inteiramente em termos biológicos e
psicológicos, sem nenhum desses aparatos de qualidades e essências, naturezas acidentais e naturezas essenciais. E
quando sou descrita dessa forma, e meu amor é descrito dessa forma, tanto eu quanto ele podemos obviamente
mudar. Em suma, o amor me parece ser inteiramente um acidente, mas que infelizmente você nunca experimentará
em sua pura contemplação das essências etéreas. Diga que o amor das essências ou que o amor de Deus nunca
muda, mas não diga isso do amor da mulher; e sendo apenas uma mulher, era sobre isso que eu estava interessada
em falar."
"Você me acusa, com razão, de ser um platonista; mas parece pensar que isso significa ser um tolo. Não pretendo ser
um espírito desencarnado que se move entre fantasmas. Não desejo beijar uma essência fantasmagórica. Amar a
Deus independentemente de uma mulher pode ser possível, mas não tenho certeza se isso me interessa; porém, ao
amar uma mulher, desejo ser capaz de amar a Deus. Pode haver muitas mulheres, mas Deus é um só, e como é Deus
que eu amo em cada uma delas, meu amor não muda. No entanto, se você insistir em falar apenas nos domínios da
biologia e da psicologia, suponho que esteja certo, pois o discurso biológico e psicológico descreve apenas
acidentes, causas e efeitos no mundo dos corpos. Entretanto, se você pudesse perceber que o corpo e a alma são um
só, veria que, embora o amor mude conforme mudam as condições acidentais, o amor em essência permanece o
mesmo. O fato de eu a amar como pessoa certamente se deve a toda uma série de acidentes, adequadamente
descritos por um biólogo e um psicólogo; mas se eu a amo como pessoa propriamente dita, meu amor, embora
ocasionado acidentalmente, é proveniente de sua essência. Se você mudar, simplesmente não será mais a pessoa que
eu amava. Meu amor não mudou; você mudou."
"Você não poderia me amar tanto, querido, se não o amasse — suponho que isso seja ainda mais essencial!"
"Não zombe. Você não me entende?"
"Talvez, não tenho certeza. Tenho certeza apenas de que estamos falando de coisas diferentes. O amor, como eu o
entendo, sem dúvida muda, e não há razão para que não mude, e há todas as razões para que mude. Você não nega
isso. Da forma como você define o amor, pode estar certo sobre sua eternidade. Só que sua definição de amor me
parece ser puramente verbal. Você constrói um tecido de idéias e distinções, nos termos das quais sua convicção de
que o amor não deve mudar pode ser mantida. Entendo o que você diz; mas, no que diz respeito aos fatos…"
"No que diz respeito aos fatos, eu a amo e não há mais nada a ser dito sobre isso."
Ele a beijou. Ela permaneceu em silêncio. Eles repousaram em um entendimento, ou talvez muito além dele.
A proposição de que "o amor não é um amor que se altera quando encontra a alteridade" provoca um discurso entre
um platonista e uma mulher, um afirmando e o outro negando a proposição. Seu argumento desenvolve duas noções
totalmente díspares de amor. Em termos de uma delas, não é verdade que o amor seja incapaz de se alterar; em
termos da outra, não é verdade que o amor seja amor se ele se alterar. Os fatos não sustentam nem a negação nem a
afirmação da proposição; os únicos fatos que são relevantes para esse discurso são as emoções e os desejos das duas
partes envolvidas. Eles não são relevantes no sentido de que determinam, de alguma maneira, a inteligibilidade
abstrata ou a validade das afirmações contrárias a respeito do amor, mas apenas no sentido de que podem ter sido
casualmente responsáveis por gerar a diferença fundamental de atitude, temperamento e percepção que tornou a
controvérsia numa discussão sobre uma opção genuína. A controvérsia em si não expressou essas diferenças,
embora possa tê-las refletido. O que ela expressou foi um conflito entre dois domínios parciais de discurso e todas as
ramificações intelectuais, as idéias e as distinções a que esse conflito deu origem. O fato do amor pode ter iniciado a
discussão, assim como, talvez, a tenha encerrado; mas a discussão estava relacionada às definições de amor e,
embora tenha terminado, não foi concluída no sentido de ter sido resolvida.
Esse exemplo de discurso ilustra uma característica comum das conversas humanas. No decorrer de uma
controvérsia, os participantes geralmente percebem que estão discutindo sobre duas coisas diferentes e, quando
percebem que a única diferença parece ser o fato de terem usado a mesma palavra para significados diferentes e até
mesmo contrários, eles concordam. Mas isso é apenas o início da dialética, e não sua conclusão. Apenas o
esclarecimento foi realizado, não a resolução.
No presente caso, a discussão foi esclarecida pela distinção feita entre o amor descrito pelo biólogo e pelo psicólogo
e o amor descrito pelo platonista. O amor, é claro, tendo sido definido de forma diferente nesses dois universos de
discurso, era o amor em dois sentidos diferentes que estava sendo discutido, e as afirmações contrárias feitas sobre
ele poderiam ser feitas de maneira válida em um ou outro desses dois universos de discurso. Não foram feitas
afirmações contrárias sobre o "amor" tomado no mesmo e idêntico sentido.
Entretanto, no decorrer dessa discussão, foram feitas várias distinções que colocaram os dois universos de discurso
em conflito, expresso na pergunta dialética que não foi, mas deveria ter sido, feita: "O que significa amar tanto como
um corpo quanto como uma alma?" Foram feitas distinções entre essência e existência, entre as qualidades imutáveis
de uma pessoa e a personalidade altamente volátil cujos atributos são, entre circunstâncias acidentais e relações
essenciais, entre o corpo e a alma, entre ação e conhecimento, entre o conhecimento das coisas e a contemplação das
essências, entre projetar a própria construção ideal no objeto e perceber o ideal, ou a forma, nele residente, entre o
mundo do tempo e da mudança e um reino fora do tempo e inalterável. Dizia-se que o amor, embora parcialmente
definido em uma ou outra dessas concepções opostas, ocorria em ambos os reinos simultaneamente. Essa era a
intenção da declaração de que não se amava a Deus separadamente, mas a Deus por meio da mulher, não a essências
desencarnadas, mas a essências exibidas em um indivíduo. Pode-se ter chegado a um acordo com relação a duas
formas possíveis de definir o amor e com relação a duas afirmações que poderiam ser feitas sobre o amor quando
duplamente definido. Mas teria sido necessária uma dialética muito mais árdua e prolongada para resolver a
dificuldade criada por essa dupla definição. Pois se for afirmado, como foi, que o amor pode ser uma entidade única,
que tem em parte ambos os significados que as duas definições lhe atribuem, então as opiniões originais de que o
amor muda e não muda estão novamente em conflito, e esse conflito só pode ser resolvido por uma definição de
amor que combine as outras duas definições. Para chegar a essa resolução, o amor deve ser entendido de tal maneira
que um biólogo e um platonista concordem, não no fato de estarem falando de coisas diferentes, mas de estarem
falando da mesma coisa, que tanto muda quanto é eterna, e que entendam o sentido em que muda e o sentido em que
é eterno. Chegar a esse entendimento seria uma façanha da dialética, o estabelecimento de uma tradução entre dois
universos de discurso que há muito estão separados.
É possível, por outro lado, que um discurso sobre o amor entre uma mulher e um platonista nunca possa ser
resolvido, exceto de uma maneira que seja adequada à mulher. Mas o platonista perceberia que qualquer tipo de
ação seria o abandono, e não a abolição, das distinções que haviam sido criadas no discurso.
(4)
Ao viajar em um ônibus, muitas vezes a pessoa se torna reflexiva a fim de suportar o tédio da viagem. A reflexão, a
menos que seja a continuação de uma conversa interna, tende a ser a declaração de apenas uma metade de uma
dialética, sendo que a outra metade permanece implícita no discurso. O solilóquio, entretanto, é frequentemente uma
forma de reflexão em que se leva em consideração as oposições e os conflitos encontrados na elaboração de seu
tema. Essa reflexão é totalmente dialética.
Em uma viagem de ônibus comum, observa-se que os passageiros entram e saem do veículo em vários pontos ao
longo do trajeto. Poucos percorrem toda a distância de terminal a terminal. Assim, em qualquer estágio da viagem,
há um grupo de indivíduos reunidos no ônibus, sendo que as relações entre eles podem ser descritas exaustivamente
em termos de sua comunidade espaço-temporal em algum segmento da viagem total do ônibus. Indivíduos
conhecidos uns dos outros, ou de outra forma relacionados entre si, que viajam juntos ou se encontram durante a
viagem, formam um pequeno grupo de exceções à regra enunciada.
Se essas são declarações de fato, o que significam? Suponhamos que esses indivíduos nunca mais compartilhem
uma comunidade espaço-temporal semelhante e que, posteriormente, não se relacionem de nenhuma outra maneira.
Essa seria, então, a única instância de relacionamento entre esse grupo de entidades. Não, não é assim. Eles
compartilham uma comunidade espaço-temporal maior do que a que lhes é proporcionada por uma parte de uma
viagem no mesmo ônibus. Eles viajam juntos neste planeta. Estão juntos no universo e, a qualquer momento, seus
loci espaço-temporais poderiam ser traçados e a relação entre dois ou mais deles poderia ser determinada com
precisão. Não existe uma condição tal como a ausência total de relação; qualquer entidade que possa ser considerada
pertencente a um universo deve estar relacionada de alguma forma a qualquer outra entidade alocada de forma
semelhante, e a mais simples dessas possíveis relações é a espaço-temporal. O ônibus não é nada mais do que uma
sugestão microcósmica do universo.
Porém, o que está implícito na afirmação sobre um indivíduo segundo a qual ele pertence a um universo? O
indivíduo é uma parte. O universo é um todo. O todo é uma organização de partes ou um agregado de partes. Se for
uma organização de partes, as partes são determinadas por essa organização, ou seja, por suas relações definidas
com o todo e com todas as outras partes. Qualquer mudança no organismo, ou em qualquer uma de suas partes, afeta
o todo e cada uma de suas partes. Se o universo é um agregado de partes, as partes não são completamente
determinadas pelo agregado como um todo, nem por todas as outras partes ou membros do agregado. Pode até ser
que não exista nenhuma relação entre alguns dos membros de um agregado, exceto, no máximo, a relação de "e".
Dentro do universo, pode haver universos menores. Um organismo pode ser composto de organismos. E um
agregado pode ser de agregados menores. Mas a relação entre um organismo e seus sub-organismos constituintes
não é a mesma que a relação entre um agregado e seus subgrupos constituintes. O agregado não é um indivíduo. A
individualidade implica indivisibilidade; mas um agregado pode ser dividido. Um copo de água é um agregado de
moléculas de água em um copo; ele pode ser dividido em dois agregados menores de moléculas de água. As
quantidades de água são agregações; elas são divisíveis; elas são contínuas. No entanto, se dividirmos uma molécula
de água, restarão apenas átomos de oxigênio e hidrogênio na separação. A molécula de água não é fisicamente
indivisível, mas quando é dividida por eletrólise, seu caráter é destruído; ela deixa de ser uma molécula de água.
Uma molécula de água é um organismo e, como tal, é indivisível; é discreta.
Esses indivíduos nesse 'ônibus' são realmente indivíduos e organismos constituintes de um indivíduo maior, que é o
universo? Ou eles próprios são meramente agregados e componentes de um agregado maior?
Quais são os fatos no caso? Não parece haver nenhum que seja crucial para uma decisão. Parece ser inteiramente
uma questão de como os fatos, sejam eles quais forem, são interpretados.
O universo é contínuo ou é composto de entidades discretas? Se ele for totalmente contínuo e divisível, então não há
indivíduos reais nele, e ele próprio não é genuinamente um indivíduo. Ele seria um plenum, talvez de matéria ou de
éter.
Se o universo é um indivíduo, ele pode ser a organização de partes individuais componentes. Todas as suas partes
teriam de ser elas próprias indivíduos? Um indivíduo poderia conter um agregado? Dificilmente! Pois as partes de
um agregado podem não estar relacionadas, exceto por "e", e não seriam determinadas, uma vez que formam o
agregado em razão de sua indiferença à divisão. Está implícito, então, que os agregados excluem os indivíduos da
associação, por um lado, e não podem ser incluídos nos indivíduos, por outro lado? Se for assim, então a agregação
e a individualidade são propriedades exclusivas, e ambas não poderiam ser atributos da mesma concepção do
universo.
Todavia, a agregação implica continuidade, e a continuidade, seja ela um continuum espacial, um continuum
temporal ou um plenum material ou substancial, deve, em última instância, ser composta de unidades, como pontos,
instantes ou átomos. Um ponto é um indivíduo, não é? Assim como um instante e um átomo. Uma agregação,
portanto, acaba por conter indivíduos. Se o universo é meramente um agregado, ele ainda pode ter indivíduos como
algumas de suas partes.
A individualidade, portanto, parece inevitável. Mas se houver mais de um indivíduo, eles devem estar relacionados
ou não. Os indivíduos deste ônibus estão relacionados; os indivíduos de um universo estão relacionados; mas se
houver dois indivíduos, eles precisam estar no mesmo universo? Pode haver dois ou mais universos? Se houvesse
vários universos, eles poderiam estar relacionados apenas por "e" e "e" e "e" e "e". A pluralidade de universos
formaria, portanto, um agregado. No entanto, suponhamos que esses universos fossem mutuamente determinantes,
interdependentes, relacionados de forma mais definitiva e significativa do que por "e". Eles formariam então uma
organização que, se dividida, deixaria de manter seu caráter. Esse universo seria um todo, um indivíduo, e se a
relação entre os indivíduos for mais do que "e", só poderá haver um universo desse tipo.
A sociedade é um universo. Este ônibus, em um sentido, oferece uma seção transversal do universo social. Ora, se
isso for um todo, minhas relações com esses outros indivíduos são tais e tais; se for meramente um agregado,
quaisquer obrigações morais ou sociais que eu possa reconhecer seriam infundadas, pois essas relações entre nós
seriam adventícias à natureza de um agregado. Socialismo ou individualismo? Dever moral ou interesse próprio? A
escolha parece depender de como o indivíduo e seu universo são concebidos. E Deus? Deus deve ser um indivíduo.
Deus é o universo ou um indivíduo distinto do universo, ou um indivíduo do qual o universo é uma parte orgânica?
Deus poderia existir se o universo fosse um agregado, se houvesse uma pluralidade de universos, se houvesse apenas
um vasto conglomerado de indivíduos, como no cosmo atômico de Lucrécio?
De qualquer modo, a individualidade é inegável. Mas é inegável porque, caso contrário, a continuidade seria
ininteligível. A continuidade é negável? Isso é difícil de se dizer. Entretanto, a questão fundamental parece residir
aqui na questão da individualidade e da continuidade e no problema das relações. Se fosse possível tornar essas
distinções completamente claras e revelar todas as suas implicações, as afirmações feitas sobre a natureza do
universo, ou de qualquer universo, seriam mais inteligíveis. Seria possível dizer quais afirmações sobre o universo
são verdadeiras? Dificilmente. Todas elas podem ser verdadeiras, ou nenhuma delas pode ser verdadeira; mas, pelo
menos, pode-se tentar pensar consistentemente sobre o universo de uma forma ou de outra. Poderíamos pensar
verdadeiramente até esse ponto.
O ônibus chega ao seu destino; o assunto do discurso se dispersa, e o tédio da viagem foi dissipado, a reflexão cessa
por enquanto, enquanto outros assuntos são tratados.
A dialética envolvida nesse solilóquio poderia ter continuado, no entanto, provavelmente sem fim. Se levada
adiante, sem dúvida se tornaria extremamente difícil e exigiria habilidade e cuidado excepcionais na detecção das
suposições subjacentes, na explicação completa da importância das definições feitas, na derivação completa de suas
consequências e na declaração de suas oposições e contradições. Isso não poderia deixar de se tornar obscuro e
filosófico e, talvez, somente os filósofos precisem se preocupar com essas questões do discurso. Por outro lado, o
significado de muitos termos na conversação humana comum seria esclarecido por meio de um estudo mais
aprofundado dessa situação dialética. Socialismo, individualismo, obrigação moral, dever, o caráter da sociedade, a
relação do homem com seus semelhantes, com seu universo, com Deus, a natureza de Deus, o materialismo, o
panteísmo, o ateísmo, a determinação do indivíduo, a liberdade humana — essas são apenas algumas das idéias
abordadas por esse discurso, que são temas comuns em conversações. Na maioria das vezes, quando elas ocorrem
como temas em conversações comuns ou na reflexão ociosa de uma viagem de ônibus, a indefinição e a
complexidade inevitavelmente acompanham a consideração inicial delas; e a conversa ou o devaneio geralmente é
logo abandonada por ser pouco clara e insatisfatória, ou descartada por se tornar muito abstrusa e dialética. No
entanto, é somente ousando enfrentar as questões dialéticas que esse discurso apresenta e empreendendo a tarefa
dialética minuciosamente que esse discurso pode se tornar intelectualmente proveitoso. Se tais temas nos levam a
conversar uns com os outros ou com nós mesmos, devemos nos tornar filósofos.
(5)
Os argumentos que os filósofos têm, em geral, estão em conformidade com o padrão das conversas humanas. Eles se
distinguem meramente, se é que se distinguem, pela maior perícia dialética que os rege, mas esse não é um atributo
invariável. A dialética na qual os filósofos se envolvem não é mais pura do que outras controvérsias humanas, se a
pureza na dialética significar a ausência de impedimentos e determinantes emocionais, clareza absoluta ou a perfeita
exemplificação de um padrão formal no discurso. A dialética pura só poderia ser a dialética abstrata das idéias, a
dialética perfeita que é inerente ao universo do discurso, se é que ela existe em algum lugar; mas ela nunca está
totalmente residente no empreendimento humano da discussão.
No entanto, pode ser bom observar uma conversação desenvolvida de acordo com a perícia técnica que é
comumente atribuída às disputas dos filósofos.
"Você estava falando de Zeus enviando justiça e reverência aos homens", diz Sócrates a Protágoras em uma
conversa cujo tema é se a virtude pode ser ensinada, "e várias vezes, enquanto você falava, a justiça, a temperança, a
santidade e todas essas qualidades foram descritas por você como se juntas formassem a virtude. Agora quero que
me diga realmente se a virtude é um todo, do qual a justiça, a temperança e a santidade são partes, ou se todos esses
são apenas nomes de uma mesma coisa: essa é a dúvida que ainda persiste em minha mente.
"Não há dificuldade, Sócrates, em responder que as qualidades de que você está falando são as partes da virtude, que
é uma só.
"E são partes no mesmo sentido em que a boca, o nariz, os olhos e as orelhas são as partes de um rosto; ou são como
as partes do ouro, que diferem do todo e umas das outras apenas por serem maiores ou menores?
"Eu diria que eles diferem, Sócrates, no primeiro sentido; como as partes de um rosto estão relacionadas ao rosto
inteiro.
"E os homens têm uma parte e outra parte da virtude? Ou, se um homem tem uma parte, deve ter também todas as
outras?
"De modo nenhum, porque muitos homens são corajosos e não são justos, ou justos e não são sábios.
"Por que, então, a coragem e a sabedoria também são partes da virtude?
"Indubitavelmente, e a sabedoria é a mais nobre das partes.
"E todas elas são diferentes umas das outras?
"Sim.
"E cada uma delas tem uma função distinta, como as partes de um rosto; o olho, por exemplo, não é como a orelha, e
não tem as mesmas funções; e as outras partes não são semelhantes umas às outras, seja em suas funções ou de
qualquer outra forma? Agora quero saber se as partes da virtude também não diferem em si mesmas e em suas
funções, pois isso é claramente o que o símile implicaria.
"Sim, Sócrates, você está certo nisso.
"Então, nenhuma outra parte da virtude é como o conhecimento, ou como a justiça, ou como a coragem, ou como a
temperança, ou como a santidade?
"Não.
"Bem, então, suponha que você e eu investiguemos suas naturezas. Primeiro, você concordaria comigo que a justiça
é da natureza de uma coisa, não é? Essa é minha opinião, não seria a sua também?
"Sim, essa também é a minha.
"E suponhamos que alguém nos perguntasse, dizendo: "Ó Protágoras e Sócrates, o que há com essa coisa que vocês
acabaram de chamar de justiça, ela é justa ou injusta? E eu respondesse: justa; e você — votaria a meu favor ou
contra mim?
"Com você.
"Então, eu responderia àquele que me perguntou,
que a justiça é da natureza do justo: você não acha?
"Sim.
"E suponha que ele continuasse dizendo: Bem, agora, existe algo como santidade, deveríamos responder: Sim, se
não estou enganado.
"Sim.
"E você reconhece que isso é uma coisa — deveríamos admitir isso?
"Sim.
"E isso é um tipo de coisa que é da natureza do santo ou da natureza do profano? Eu ficaria irritado com sua
pergunta e diria: 'Paz, homem; nada pode ser santo se a santidade não for santa'. O que você diria a isso? Você não
responderia da mesma forma?
"Certamente.
"E depois disso, suponha que ele viesse e nos perguntasse: 'O que vocês estavam dizendo agora? Talvez eu não o
tenha ouvido direito, mas me pareceu que você estava dizendo que as partes da virtude não são iguais umas às
outras'. Eu deveria responder: "Você certamente ouviu isso ser dito, mas não me ouviu, como pensa, dizer isso; pois
Protágoras é que deu a resposta, e eu apenas fiz a pergunta". E suponha que ele se voltasse para você e dissesse: 'Isso
é verdade, Protágoras, e você sustenta que uma parte da virtude é diferente de outra, e essa é a sua posição?
"Eu não poderia deixar de reconhecer a verdade do que ele disse, Sócrates.
"Bem, então, Protágoras, assumindo isso, e supondo que ele prosseguisse dizendo: 'Então a santidade não é da
natureza da justiça, nem a justiça da natureza da santidade, mas da natureza da impiedade; e a santidade é da
natureza do não-justo e, portanto, do injusto, e o injusto é profano; como devemos responder a ele? Eu certamente
responderia a ele, em meu próprio nome, que a justiça é santa e que a santidade é justa; e eu diria da mesma forma,
em seu nome também, se você me permitir, que a justiça é a mesma coisa que a santidade, ou quase a mesma; e eu
diria com toda a certeza que a justiça é como a santidade e a santidade é como a justiça; e eu gostaria que você
dissesse se eu posso ter permissão para dar essa resposta em seu nome e se você concordaria comigo.
"Não posso simplesmente concordar, Sócrates, com a proposição de que a justiça é santa e que a santidade é justa,
pois me parece haver uma diferença entre elas ... Admito que a justiça tem uma semelhança com a santidade, pois há
sempre algum ponto de vista em que tudo é como qualquer outra coisa; o branco é, de certa forma, como o preto, e o
duro é como o macio, e os opostos mais extremos têm algumas qualidades em comum; até mesmo as partes do rosto
que, como estávamos dizendo antes, são distintas e têm funções diferentes, ainda são, em um certo ponto de vista,
semelhantes, e uma delas é como outra delas. E você pode provar que elas são semelhantes umas às outras com base
no mesmo princípio de que todas as coisas são semelhantes umas às outras; e, no entanto, as coisas que são
semelhantes em algum aspecto não devem ser chamadas de semelhantes, nem as coisas que são diferentes em algum
aspecto, por menor que seja, não devem ser chamadas de diferentes.
"E você acha que a justiça e a santidade têm apenas um pequeno grau de semelhança?
"Certamente não, mas não concordo com o que entendo ser seu ponto de vista."
Protágoras tampouco seria capaz de concordar com Sócrates até que eles tivessem esclarecido completamente o que
queriam dizer ao afirmar a semelhança e a não-semelhança de qualidades como justiça e santidade. No entanto, a
discussão se volta, nesse ponto, para a questão dos opostos e, particularmente, se uma qualidade pode ter um ou
mais opostos, por meio da qual Sócrates pretende persuadir Protágoras da semelhança entre justiça e santidade, uma
tese da qual Protágoras já estava mais ou menos convencido. Teria sido melhor determinar a natureza exata da
convicção de Protágoras do que tentar aumentá-la com outro argumento.
O aspecto mais significativo desse pequeno trecho de uma longa conversação é o papel que as alternativas e os
dilemas desempenham no desenvolvimento da dialética. No início dessa fase de sua conversa, Sócrates força
Protágoras a decidir se a virtude é um todo único do qual a justiça, a temperança e a santidade são partes, ou se todos
esses são apenas nomes de uma mesma coisa. Protágoras, no caso dessa alternativa, afirma a unidade da virtude e
sua posse da justiça e da santidade como partes. Suas outras admissões no argumento que se segue são consequência
de ele ter tomado essa decisão inicial. Se ele tivesse escolhido a outra ponta do dilema, o discurso não poderia ter
deixado de levar a consequências diferentes; ou se ele tivesse recusado a disjunção e feito uma terceira e nova
afirmação a respeito da relação da virtude com qualidades como justiça e santidade, a dialética subsequente
certamente teria sido diferente. As alternativas são tão críticas na determinação das consequências dialéticas quanto
as definições e suposições, e o hábito socrático de argumentar revela um emprego sagaz delas, às vezes de forma
bastante injusta. As conclusões a que qualquer argumento chega devem ser qualificadas pelos dilemas encontrados
no caminho, pois as conclusões foram alcançadas somente porque isto e não aquilo, e isto e não aquilo, foram
afirmados nos momentos críticos da discussão. Se as afirmações opostas tivessem sido feitas, ou ainda outras
afirmações que não foram oferecidas pelas alternativas dadas, as conclusões teriam sido diferentes.
Não está implícito aqui que as conclusões teriam sido melhores ou mais válidas, mas simplesmente que as
conclusões de um argumento devem ser vistas à luz, não apenas das pressuposições e definições, mas das
alternativas das quais elas são derivadas, se seu status dialético completo for descrito, avaliado e compreendido.
Deve-se acrescentar que, no discurso, nenhuma alternativa tem efeito convincente no curso do argumento, a menos
que seja derivada da oposição entre conjuntos de definições e suposições. Todas as alternativas que não forem
derivadas dessa forma são arbitrárias e podem ser evitadas, se isso for aconselhável. Os dilemas que surgem,
entretanto, devido a conflitos de definição ou suposição, obrigam a uma decisão, mas, pelo menos em sua origem,
são arbitrários e podem ser removidos, em vez de resolvidos, pela alteração das definições ou suposições que os
ocasionaram.
(6)
O discurso dos homens às vezes se aproxima da perfeição da dialética abstrata. Esse discurso é raro e pouco
familiar; ele é difícil de se acompanhar porque sua linguagem é técnica e seu vocabulário é especial. Contudo, por
essa mesma razão, trata-se de uma maravilha em termos de precisão e, quando é compreendido, o entendimento
possui um objeto dotado de uma bela clareza.
Houve uma época em que alguns homens eram dialéticos por profissão e por prazer. Eles tinham um talento ou um
treinamento que tornava seu discurso excelente, exemplificando da forma mais próxima possível a forma de
dialética que foi rigorosamente concebida como o regime do pensamento. Ela não apenas regulava os processos de
debate e constituía as atitudes intelectuais assumidas, mas também era cercada, em sua prática, por hábitos de
formalidade e decoro na argumentação que poderiam ser declarados como a etiqueta da razão, as boas maneiras da
conversação. Nesse sentido, a dialética pode ser a arte da conversação, bem como sua estrutura lógica. Ela pode ser
ensinada e adquirida; pode ser, como já foi algumas vezes, um dos principais objetivos da educação. Ser educado é,
nesses termos, ser capaz de usar a dialética, não apenas como um exercício filosófico ou como um meio de alcançar
o conhecimento ou a verdade, mas como uma indução aos caminhos da razão e como a capacidade de ser bem-
educado no discurso.
"Finalmente cheguei a Paris, onde, acima de tudo, naqueles dias a arte da dialética estava mais florescente, e lá
encontrei William de Champeaux, meu professor, um homem muito distinto em sua ciência, tanto por seu renome
quanto por seu verdadeiro mérito. Permaneci com ele por algum tempo, a princípio, de fato, muito apreciado por ele;
mas, mais tarde, causei-lhe grande desgosto, porque me comprometi a refutar algumas de suas opiniões, não raro
atacando-o em disputas, e, de vez em quando, nesses debates, eu era considerado vencedor."
Assim escreve Pedro Abelardo em sua Historia Calamitatum. A fama de Abelardo "na arte da dialética começou a
se espalhar pelo exterior" e, depois de fundar sua própria escola, ele voltou a conversar com Guilherme, então
Arquidiácono de Paris, pois "estava ansioso para aprender mais sobre retórica através de seus lábios; e no decorrer
de nossas muitas discussões sobre vários assuntos, eu o forcei, através do mais potente raciocínio, a primeiro alterar
sua opinião anterior sobre o assunto dos universais e, por fim, a abandoná-la completamente. Ora, a base desse seu
antigo conceito sobre a realidade das idéias universais era que a mesma qualidade formava a essência tanto do todo
abstrato quanto dos indivíduos que eram suas partes; em outras palavras, não poderia haver diferenças essenciais
entre esses indivíduos, sendo todos iguais, exceto pela variedade que poderia surgir dos muitos acidentes da
existência. Posteriormente, entretanto, ele corrigiu sua opinião, não mais sustentando que a mesma qualidade era a
essência de todas as coisas, mas que, ao contrário, ela se manifestava nelas de diversas maneiras. Esse problema dos
universais é sempre o mais controverso entre os lógicos, a tal ponto, de fato, que mesmo Porfírio, escrevendo em sua
Isagoge a respeito dos universais, não ousou tentar um pronunciamento final sobre ele, dizendo: ‘Esse é o mais
profundo de todos os problemas desse tipo’. Portanto, quando William revisou e finalmente abandonou
completamente suas opiniões sobre esse assunto, suas palestras caíram em tal estado de raciocínio negligente que
mal podiam ser chamadas de palestras sobre a ciência da dialética. Era como se toda a sua ciência estivesse ligada a
essa única questão da natureza dos universais".
As muitas discussões que Abelardo teve com Guilherme, os "raciocínios potentes" que compeliram o último a
alterar e abandonar certas opiniões a respeito dos universais, podem ser traduzidos na reconstrução imaginativa de
um único debate entre eles sobre esse que é o mais incômodo de todos os temas. A intenção de tal reconstrução[9]
não é a historicidade; sem pretender a precisão acadêmica na atribuição e declaração de opiniões, o relato dessa
controvérsia entre Abelardo e Guilherme pode ser capaz de sugerir a forma de tal debate e a técnica da dialética em
operação sobre uma questão que Porfírio chamou de "o mais profundo de todos os problemas desse tipo". O
caminho estreito da ortodoxia católica ficava entre a afirmação do panteísmo, de um lado, e do ateísmo, de outro; e a
discussão sobre a natureza dos universais tinha uma maneira infeliz de levar sutil e inevitavelmente a qualquer uma
dessas conclusões heterodoxas. Foi necessário o gênio dialético de São Tomás para manter-se ortodoxo e, ao mesmo
tempo, resolver, em alguma medida, as questões relativas ao status dos universais. Está claro que Abelardo e
Guilherme haviam se deparado com um tema importante a ser discutido, que poderia frustrar a habilidade dialética
de ambos e entregá-los ao julgamento da Igreja.
William está dando uma palestra sobre dialética. Ele afirma a realidade dos universais. Eles têm existência como
substâncias e têm um status real independente da mente. A triangularidade é um universal; a triangularidade é real e
substancial, e esse ou aquele triângulo em particular só pode existir como triângulo participando e absorvendo, por
assim dizer, a realidade e a substância da triangularidade universal. O universal é anterior em ser ao particular, cujo
caráter deriva de tal participação nele. Há, entretanto, uma ordem de prioridade entre os universais e uma ordem nas
coisas criadas. Deus, o criador, é o universal mais elevado, a substância primária, e Suas criaturas descendem Dele
em uma ordem estabelecida pelas relações lógicas que existem entre os universais, determinando seu caráter. Os
universais estão relacionados, assim como as classes, ou por estarem incluídos em ou por serem inclusivos de. Os
universais, por serem mais inclusivos, têm maior intensidade na ordem do ser. O universal, além disso, é indivisível;
ele passa para o indivíduo, ou para a coisa concreta particular, sem divisão de sua natureza. Sócrates é um homem
em razão de sua participação na substância da humanidade, e essa substância, a humanidade, entra totalmente em
Platão e Aristóteles, bem como em Sócrates, sem divisão de si mesma, "assim como a substância divina existe
totalmente e sem divisão em cada membro da Trindade".
Abelardo interrompe: "Toda a humanidade está em Sócrates?"
"Sim", diz William, "essa foi a intenção de minha declaração".
"Se ela é totalmente absorvida por Sócrates, então, não pode ser ao mesmo tempo imanente em Platão ou em
Aristóteles. Portanto, se Platão e Aristóteles são humanos, eles devem ser assim por participação na natureza
socrática. Isso parece absurdo. Concordo que o universal, seja ele a humanidade ou a triangularidade, tem alguma
realidade; mas eu deveria afirmar que ele tem a realidade de um conceito. Deixe-me fazer a seguinte pergunta: 'O
universal tem o status de um conceito ou de uma substância? "
"De uma substância."
"Essas substâncias são divisíveis ou indivisíveis?"
"Tais substâncias são absolutamente indivisíveis. Negar a existência de tais substâncias, ou de sua força energética, é
negar a existência de todos os indivíduos criados por sua energia."
"Eu não nego a energia de Deus, senhor, nem do livre-arbítrio do homem, mas nego a energia de todas as outras
substâncias ou universais. Você afirma que os universais são indivisíveis e que eles dão forma às espécies nas quais
estão inseridos e aos indivíduos das espécies."
"Sim, é o que afirmo."
"O senhor usou muitas vezes a analogia de um cristal octaedro, cujas oito faces são triângulos equiláteros perfeitos,
e insistiu que é a energia do triângulo, do conceito ou, como prefere, da substância da triangularidade, que dá ao
cristal sua forma existencial. Mas o que dá forma ao triângulo?"
"A energia da linha."
"E quanto à linha?"
"O infinito em extensão."
"E quanto a isso?"
"Depende, em última análise, da energia de Deus, como depende a substância de todas as coisas."
"Mas você disse que a substância de um universal é indivisível e que sua energia, portanto, passa total e
imparcialmente para os indivíduos que ela informa. Se isso é verdade, então a substância da Divindade não é apenas
possuída perfeitamente por cada uma das três pessoas da Trindade, mas também pela triangularidade e pela
humanidade e, por fim, a energia última deve residir e ser idêntica à substância da face do octaedro e à pessoa de
Sócrates. Não lhe perguntarei por qual princípio os indivíduos são diferenciados; mas devo concluir que, se a
humanidade existe total e indivisivelmente em cada um de nós, a divindade, que confere realidade à humanidade, à
triangularidade e a todas as outras espécies subordinadas, a divindade, o summum genus, deve estar totalmente em
cada um de nós. Não preciso lembrá-lo de que isso é panteísmo e que, se Deus é a única energia, o livre-arbítrio
humano se funde com o livre-arbítrio de Deus; a Igreja deixa de ter uma razão para sua existência; o homem não
pode ser responsabilizado por seus próprios atos, nem perante a Igreja, nem perante o Estado; e, por fim, embora a
contragosto, devo, em respeito à minha própria segurança, levar o assunto à atenção do Arcebispo, o que, como o
senhor sabe melhor do que eu, levará à sua reclusão ou coisa pior."
Assim, Abelardo pode ter compelido Guilherme a abandonar sua doutrina da realidade dos universais, ao revelar as
implicações panteístas desse realismo. O comentário do próprio Abelardo é o seguinte: "Uma grave heresia está no
fim dessa doutrina; pois, de acordo com ela, a substância divina, que é reconhecida como não admitindo forma, é
necessariamente idêntica a toda substância em particular e a toda substância em geral." Porém, Abelardo não
percebeu completamente todas as voltas dialéticas que o tema que estava sendo discutido poderia tomar. Cabe a
William, em auto-defesa e, talvez, com malícia de previsão, revelar as conseqüências inevitáveis de se levar as
contra-afirmações de Abelardo para o universo do discurso teológico.
"Se o senhor aceita a realidade substancial dos universais, está em pé de igualdade comigo, Sr. Abelardo. Mas o
senhor afirma que eles não são substâncias, mas apenas conceitos na mente. Espero que seja capaz de evitar perigos
de outro tipo. Eu o aviso de que há muitos. Estou certo em acreditar que o senhor declara que os universais são
apenas conceitos?"
"É o que afirmo."
"Devo então fazer outra pergunta. O conceito é imanente na mente do homem, na mente de Deus ou na matéria?"
"Eu não sei."
"Você deve responder. O conceito deve ter realidade em algum grau."
"Isso é verdade."
"E, seja qual for o grau de realidade, se esse grau for menor que a realidade de Deus, a natureza de sua realidade
pode ser descrita. Portanto, responda."
"O conceito, como o de humanidade ou de triangularidade, o conceito que é a existência do universal, está na mente
do homem, certamente, ou então o homem não poderia conhecê-lo. Ele pode estar também na mente de Deus, mas
não vou responder a isso agora."
"Você deve responder."
"Está na mente de Deus, pois Deus tem perfeito conhecimento de todas as substâncias."
"É o mesmo ou um conceito diferente de humanidade ou triangularidade, que está em sua mente e na mente de
Deus?"
"Eu não sei."
"Responda a isto, então. Como o homem alcança esse conceito de humanidade?"
"O conceito de humanidade é a soma de todos os homens individuais e é derivado do conhecimento dos indivíduos."
"O conceito de humanidade, assim derivado, é verdadeiro?"
"Sim."
"Então ele é dado ao conhecimento humano por Deus?"
"Eu estaria disposto a admitir isso."
"Mas o conceito de humanidade na mente de Deus também não é verdadeiro?"
"Deve ser assim."
"Então, como não pode haver dois conceitos verdadeiros de humanidade que sejam diferentes, a substância da
humanidade, se for um conceito, deve estar presente ao mesmo tempo e da mesma maneira na mente do homem e na
mente de Deus. Se for assim, você deve admitir 'que sua mente é idêntica à natureza de Deus no que diz respeito a
esse conceito. Seu panteísmo acaba indo mais longe do que o meu. Como uma doutrina da Presença Real que lhe é
peculiar, posso recomendá-la ao Arcebispo juntamente com sua delação a meu respeito'. "
Heresia de novo! Que outro caminho estava aberto para Abelardo? Guilherme parecia tão facilmente capaz de fazer
do panteísmo o termo fatal para o conceitualismo, como Abelardo havia feito com o realismo extremo de
Guilherme. Abelardo poderia ter evitado o panteísmo, entretanto, negando totalmente a realidade dos universais e
afirmando que eles eram apenas nomes. Triângulo é simplesmente o nome de um grupo de triângulos individuais;
humanidade é apenas o nome que pode ser aplicado a homens individuais. Somente os indivíduos têm existência,
realidade ou substância energética. Os universais são meros signos.
"Um signo de quê?", pergunta William.
"Um signo é um som, uma palavra, um símbolo para designar um atributo de um indivíduo que é real e existe apenas
como atributo desse indivíduo. Para além disso, sou ignorante."
"Muito bem, então. Responda a esta pergunta: Deus é conhecido como um indivíduo ou como um universal?"
"Certamente não como um indivíduo."
"A alternativa é absoluta. Senhor. Então Deus deve ser conhecido como um universal, seja ele um conceito ou uma
substância real. Mas, de acordo com sua doutrina dos nomes, Deus, sendo um universal, existe apenas como um
nome, sem qualquer outra realidade, substância ou energia. Dessa maneira, você se torna um ateu. Ademais, 'o que
mais o preocupa, a Igreja, não existe, exceto como seu conceito de certos indivíduos, que você não pode considerar
como uma unidade, e que supõem acreditar em uma Trindade que existe apenas como um som ou um símbolo. Não
vou repetir suas palavras fora deste claustro, porque as consequências para você certamente seriam fatais; mas é
óbvio que você é um materialista e, como tal, seu destino deve ser decidido por um Conselho da Igreja, a menos que
você prefira a estaca por julgamento de um tribunal secular' ".
O realismo extremo, como exemplificado na posição de William, e o nominalismo e o conceitualismo são doutrinas
que surgem no discurso a respeito dos universais como resultado de três definições diferentes da natureza dos
universais e três premissas diferentes a respeito de seu status ontológico. Afirmações contrárias são manifestas
nessas doutrinas, e quando a dialética das questões disputadas desenvolve as implicações dessas doutrinas, sempre, é
claro, dentro dos limites dos dogmas assumidos pela Igreja, as conclusões que por fim são expostas como tendo sido
implícitas nas afirmações originais equivalem a afirmações contrárias sobre tais finalidades como Deus e o universo
criado, panteísmo, por um lado, e ateísmo ou materialismo, por outro, e muitas variações de cada um.
O ponto crucial do argumento entre Guilherme e Abelardo não era, em cada caso, a demonstração da falsidade das
afirmações do oponente, mas sim sua heresia. A demonstração de que o realismo extremo termina em panteísmo e o
nominalismo em ateísmo pode, em um sentido, ser uma demonstração de erro, quando se lembra que a verdade é a
doutrina ortodoxa. Porém, também deve ser lembrado que a ortodoxia, em termos da qual as opiniões heréticas são
equivalentes às falsas, é um conjunto de proposições que não são provadas e, de fato, estão acima da demonstração.
Elas são verdades por revelação ou dogmas canônicos. Em muitos outros aspectos diferentes, sua função lógica e
serviço, no entanto, é idêntica à dos postulados e definições de um sistema geométrico.
Guilherme de Champeaux, percebendo as dificuldades inerentes a essa situação intelectual, não apenas abandonou o
realismo extremo, mas adotou o silêncio como superior à dialética, ato que provavelmente lhe rendeu a recompensa
do bispado de Chilons. Abelardo, por outro lado, permaneceu indomavelmente dialético, mas sem o discernimento
esclarecedor que poderia ter conquistado para ele o centro da ortodoxia nessa controvérsia fundamental sobre os
universais e o supremo renome dentro da Igreja. No entanto, incapaz de silenciar e desprovido de maiores talentos,
ou talvez de um melhor conhecimento de Aristóteles, suas recompensas tiveram que acontecer de outra maneira, e a
fama por uma ou outra conquista não foi a menor delas.
Dentro das condições intelectuais limitantes impostas pela doutrina autorizada, a questão do discurso sobre os
universais poderia ser resolvida pela distinção tomista entre três estados do universal, ante re na mente de Deus, in
re e post rem na mente do homem, e isso se tornou a posição ortodoxa conhecida como realismo moderado, a
verdade no sentido de ser consistente com as implicações do pronunciamento credal em todos os pontos. O
problema do universal pode, portanto, ser dialeticamente resolvido em um certo universo de discurso, que pode ser
chamado de reino da teologia católica, um universo de discurso no qual a verdade das conclusões é determinada por
um conjunto de proposições assumidas, ou não contestadas, e a resolução de questões dialéticas pode ser julgada
bem ou mal-sucedida pela mesma determinação. Nesse sentido, Abelardo e Guilherme falharam dialeticamente onde
Aquino foi bem-sucedido; mas não se deve esquecer que a conquista é limitada ao universo especial do discurso no
qual foi feita. Ela deve ser feita de forma diferente, se é que pode ser obtida, no universo do discurso que é a ciência
natural ou no universo do discurso que é o idealismo transcendental. O problema dos universais só poderia ser
finalmente resolvido se a tentativa dialética fosse empreendida no universo de discurso mais inclusivo possível; e é
certamente questionável se esse universo de discurso pode ser determinado e se, dentro dele, a resolução dialética
final pode ser alcançada.
O ponto importante aqui levantado é muito geral em sua aplicação à dialética, e sua força crítica não se limita à
disputa entre Guilherme e Abelardo e sua resolução por Tomás. Qualquer processo de dialética em um universo
parcial de discurso deve ser qualificado pela declaração das suposições e definições que criam e determinam esse
universo especial. As proposições finais que geram um universo especial de discurso governam as suposições e
definições subordinadas que podem ser feitas dentro dele; determinam, em geral, os significados de todo o seu
vocabulário; limitam as alternativas que podem ser consideradas como opções genuínas; e julgam as reivindicações
da dialética para resolver os assuntos em questão.
Muitas vezes, como no caso do argumento sobre o amor, a dialética é confrontada com uma questão que surge
porque o mesmo termo é usado em dois universos diferentes de discurso. Uma certa quantidade de esclarecimento
resulta da apreciação dessa disparidade, mas a dialética só pode se tornar mais plenamente operativa quando os dois
universos que estão separados são unidos por um conjunto de definições e suposições comuns. A tradução pode
então ocorrer entre eles, e esse conflito pode ser resolvido, enquanto antes ele só podia ser declarado. Mas essa
resolução dialética não tem caráter absoluto nem definitivo. Ela deve ser qualificada pelo conjunto de proposições
que foram assumidas como o pré-requisito do procedimento dialético — um domínio único e unificado do discurso.
Talvez — e isso aqui é apenas sugerido e não afirmado — todos os conflitos sejam conflitos não entre proposições
isoladas, mas entre universos de discurso. Se assim for, a dialética poderia então ser descrita como o processo de
unificação de universos de discurso disjuntivos e conflitantes e, quando essa unificação ocorresse, a questão seria
automaticamente resolvida, sendo que a resolução, é claro, seria sempre limitada e qualificada pelos termos em que
a unificação foi realizada.
A qualificação e a limitação só poderiam ser removidas do processo da dialética se ele ocorresse em um universo de
discurso absoluto ou todo-inclusivo. Pode haver tal universo de discurso, que é a tarefa final da dialética determinar,
e em direção ao qual todo processo parcial da dialética se esforça para levar seus problemas. Mas se o serviço da
dialética é a abolição das dificuldades no discurso pela anulação da disjunção dos universos entre os quais elas
ocorrem, então é questionável se poderia haver qualquer dialética de tal universo último de discurso. Ele teria de ser
governado, como o são todos os seus reinos subordinados e incluídos, por algum princípio que ele mesmo assumiu e
não pôde demonstrar, algum princípio como a lei da identidade e da contradição. Talvez, então, seja a tarefa da
dialética revogar essa lei, levando o mesmo processo um passo adiante; mas, ao fazê-lo, ela não tornaria impossível
todo discurso posterior e se aniquilaria? Essa é uma pergunta importante e legítima que leva a consideração da
conversação e da argumentação humana aos seus limites mais distantes. Ela deve ser confrontada, se não for
respondida posteriormente. Por outro lado, talvez não seja totalmente inadequado que a dialética, aplicada ao próprio
discurso, termine em silêncio.
Por ora, no entanto, o que foi descoberto sobre a dialética no exame de alguns exemplos típicos de conversação e
controvérsia humana merece um resumo. Isso pode ser feito por meio da declaração de uma série de teses simples
que sugerirão alguns dos temas para a descrição da dialética na Parte II, Seções 1 e 2.
1. A dialética é, em parte, um processo de definição; e, por meio da definição, ela alcança o esclarecimento de sua
questão.
2. A dialética é, em parte, um processo de reconhecimento da oposição de suposições e definições; e busca resolver
essa oposição formulando um terceiro conjunto de proposições para incluir as conflitantes.
3. A resolução só pode ocorrer em um único universo de discurso; ela é qualificada e limitada por isso. A resolução
ocorre quando os dois universos díspares do discurso, que criaram o conflito, são unificados, tornando possível a
tradução entre os reinos originais.
4. Os conflitos com os quais a dialética se preocupa são oposições no discurso, seja entre proposições em um
determinado universo de discurso, seja entre universos de discurso. Pode-se dizer que a dialética se origina no fato
da oposição.
5. As controvérsias geralmente terminam com o acordo das partes envolvidas. Esse acordo não é necessariamente
equivalente à resolução dialética, embora possa ser.
6. Os fatos, ou seja, os elementos não discursivos, nunca são determinantes para a dialética em um sentido lógico ou
intelectual; mas certos fatos, emoções, desejos, propósitos, circunstâncias econômicas, afiliações religiosas,
excentricidades pessoais e os limites da experiência pessoal, etc., são frequentemente responsáveis pela origem das
controvérsias humanas e, muitas vezes, são também responsáveis pela escolha entre certas alternativas no curso da
argumentação. Eles até mesmo limitam a compreensão individual ou ocasionam diferenças inefáveis de percepção.
Em outras palavras, podem tornar impossível que dois indivíduos conversem no mesmo universo de discurso. Tais
fatos são relevantes para a dialética como um empreendimento humano e devem ser incluídos na descrição dela; mas
devem receber um status causal, e não lógico, nessa descrição.
7. No curso de seu desenvolvimento de qualquer argumento, a dialética se depara com certos dilemas ou
alternativas. Esses dilemas são determinados, em última instância, pelas proposições que estabelecem a contradição
ou o dilema original. A escolha de qualquer alternativa subsequente é igualmente determinante para as escolhas
ainda subsequentes. Nesse sentido, a dialética pode ser descrita como um processo de lidar com dilemas co-
implicados.
8. Há uma grande variedade nas conversações humanas atuais. A prática da dialética, em outras palavras, nunca
manifesta perfeitamente a formulação teórica do processo. As conversações humanas podem ser internas consigo
mesmo ou externas com outras pessoas; elas podem começar com o que parece ser um acordo e terminar no estado
esclarecido de um desacordo; elas podem começar com o que parece ser um desacordo e terminar com o que parece
ser um acordo; esse acordo pode ou não ser equivalente à resolução da questão. Podem surgir porque dois
significados estão associados ao mesmo termo ou porque dois termos ou vocabulários estão sendo usados para
expressar o mesmo conjunto de significados. Geralmente são incompletas, não chegando a uma dialética completa
em um aspecto ou em outro; nunca são completas no sentido de que a dialética foi esgotada.
Os exemplos de controvérsia e conversação humana que foram apresentados como exemplos característicos
sugerem, além disso, duas teses, a primeira relativa ao universo último do discurso, a ser tratada na Parte II, Seção 3;
a segunda relativa ao significado da dialética, a ser discutida mais detalhadamente na Parte III.
1. A dialética tem seu ser no discurso. Ela ocorre em universos parciais do discurso. Contudo, se há um reino do
discurso em geral, a natureza da dialética deve ser interpretada, em última instância, em termos desse universo mais
geral do discurso. O significado último da dialética, portanto, pode envolver uma dialética do próprio discurso, em
termos da lei da identidade e da contradição, ou qualquer que seja o princípio que governe o universo mais
abrangente do discurso. Essa dialética seria confrontada pelo conflito do discurso e seu oposto, e sua resolução pode
resultar em favor do discurso ou do silêncio. A dialética pode continuar para sempre, servindo ao mesmo fim do
mesmo modo; ou o dialético, nesse último recurso, pode se tornar um Crátilo, descansando no gesto simples, mas
final, de balançar o dedo diante do espetáculo das coisas, enquanto aqueles que não tivessem a graça de ser mudos
dariam vazão a seu interesse em um fluxo de discurso, embora isso fosse apenas uma tolice semelhante disfarçada.
2. Assim como a dialética parece estar implícita no discurso, o discurso dialético parece levar inevitavelmente a
considerações obscuras comumente chamadas de filosóficas, teóricas ou especulativas. Em outras palavras, a
filosofia, ou a teoria em geral, seja ela "filosófica", "científica" ou "teológica", pode ser idêntica à dialética. Pode ser
que os problemas filosóficos, ou os problemas teóricos em geral, não apenas se originem no discurso dialético e não
apenas sejam capazes de ser explicados pela dialética, mas que a natureza da filosofia seja essencialmente dialética.
Assim, as conversas humanas comuns e familiares revelam a dialética e a filosofia ao mesmo tempo.
Parte II — A Descrição da Dialética
Algumas teses gerais sobre a natureza da dialética foram apresentadas. Elas foram afirmadas de forma mais ou
menos dogmática no decorrer de uma análise da metodologia tradicional e como resultado de um exame de vários
exemplos de pensamento controverso. O dogmatismo, em qualquer grau que esteja presente, pode ser removido por
uma discussão que tente detectar os fundamentos das teses apresentadas, bem como suas implicações. A necessidade
de se introduzir claramente o assunto antes de submetê-lo à análise tornou o dogmatismo um tanto conveniente, mas
não é mais necessário. O espírito da dialética é completamente não-dogmático, e seria um paradoxo, de fato, se ela
não fosse tratada de uma maneira mais compatível com seu próprio caráter.
A dialética tem seu ser no discurso, mas o discurso pode ser considerado de três maneiras: (1) como um caso
particular da experiência humana; (2) como o locus da definição e da análise; (3) como um reino do ser. Em termos
desses três aspectos do discurso, a dialética pode ser descrita de três maneiras: empiricamente, logicamente e
metafisicamente.
A descrição empírica envolve um relato psicológico das fases da natureza humana que são fatores na produção de
controvérsias e, na medida em que esses fatores podem subverter a clareza e a dignidade do discurso, um conjunto
de regras pode ser formulado como sendo a disciplina dialética da conversação. Isso também envolve uma descrição
dos fatores da linguagem, na medida em que a estrutura da linguagem proporciona uma visão das condições efetivas
da dialética no discurso. Essa descrição empírica será um tanto dogmática, tal como todas as afirmações empíricas
necessariamente o são, pois ela se preocupará com os fatos da experiência humana e da linguagem humana. Por essa
razão, e porque apenas os acidentes da dialética, em vez de seus traços essenciais, são descritos dessa maneira, o
relato empírico é, em grande parte, o menos importante dos três.
A descrição lógica envolve uma declaração explícita das definições e postulados que determinam a maneira pela
qual o discurso é dialético; e um desenvolvimento completo das implicações dessas definições e postulados. O ritmo
da dialética será exibido como a ordem serial de certos processos de definição, análise, síntese e resolução de
dilemas, e esses estágios receberão uma exposição perfeitamente abstrata. Esse tratamento da dialética será em si
mesmo dialético, na medida em que será meramente o desenvolvimento de um determinado conjunto de definições e
postulados que serão explicitamente declarados.
A descrição metafísica envolve uma elaboração adicional dessa dialética da dialética, na qual a oposição entre o
discurso como um reino do ser e o reino do ser que é não-discursivo gera a distinção entre possibilidade e atualidade
e define o universo mais geral do discurso como um reino no qual todas as proposições contraditórias permanecem
como verdades igualmente possíveis. Nessa descrição, o discurso se torna o reino da possibilidade, e a dialética se
torna a lógica formal de todas as proposições possíveis.
A Descrição Empírica: Linguagem
Uma renúncia definitiva deve ser feita desde o início. Pode-se pensar que um relato empírico acerca da dialética
inclua uma análise genética dos fatores causalmente responsáveis por sua ocorrência na experiência humana. A
gênese provavelmente seria em termos da estrutura da linguagem e das diferenças individuais na natureza humana.
No entanto, há muitos idiomas, e a ciência da linguística está longe de ser um corpo de conhecimento completo e
positivo. Parece haver muita variedade na natureza humana, mas pouca unanimidade entre os psicólogos com
relação aos fundamentos da explicação dessa natureza. Portanto, essa interpretação genética é altamente
questionável. Entretanto, há uma objeção ainda mais significativa a essa tentativa. Essa interpretação não é
relevante, por mais interessante que seja. Não é relevante porque, independentemente de a biografia de uma coisa ser
ou não responsável pelas qualidades que a coisa tem, ela nunca pode ajudar a descrever essas características ou a
avaliá-las enquanto tais. A gênese é irrelevante para a descrição e avaliação; não pode, portanto, ajudar a dizer o que
é a dialética ou quais são suas implicações, por mais que consiga expor suas origens. As origens de uma coisa
podem explicar como ela surgiu, mas não interpretam o que aconteceu.
Os fatos da linguagem e da natureza humana devem ser abordados de outro ângulo. Em que sentido eles tornam a
dialética possível? Se essa pergunta puder ser respondida, poderá ou não ser determinado sob quais condições a
dialética ocorre de fato. Será suficiente se for determinado que a dialética é possível na situação empírica.
Empiricamente, não há dificuldade em fazer a distinção entre palavras e coisas, por mais repleta de problemas que
seja a distinção lógica análoga entre proposições e fatos. Para a maioria dos propósitos da experiência e atividade
humanas, uma coisa é reconhecidamente diferente de uma palavra. Coisas e palavras estão intimamente e
significativamente relacionadas, mas dificilmente são confundidas pela mente sã. Uma palavra é uma coisa no
sentido de que é uma entidade visível, audível ou tátil, mas essas coisas são palavras na medida em que têm uma
função que outras coisas não têm, a função de simbolização. Psicologicamente, as palavras podem ser classificadas
como estímulos substitutos; elas funcionam em substituição a outros objetos, provocando respostas específicas. As
coisas podem funcionar de forma vicária, assim como as palavras, mas o significado que as palavras têm é em
referência a outras entidades que não elas mesmas, a coisas ou a outras palavras. Em sua capacidade de referência
significativa, as palavras são símbolos.
As palavras são as partes da linguagem, mas embora a maioria das linguagens familiares seja composta de palavras,
esse não é o caso universal. A linguagem da matemática, por exemplo, compreende um conjunto de entidades
notacionais significativas que geralmente são chamadas de símbolos em vez de palavras. Entretanto, ela não é
totalmente composta dessa maneira, pois na definição desses símbolos algumas palavras precisam ser usadas. Não se
conhece um sistema simbólico perfeitamente autônomo.
Por outro lado, embora os idiomas sejam, em sua maior parte, constituídos por seus vocabulários notacionais, sejam
palavras ou não, eles incluem elementos que geralmente não são notados, como gestos e sons transitórios,
grunhidos, suspiros, gritos e etc., que podem nunca mais ocorrer com o mesmo significado preciso. Esses elementos
linguísticos são, por um lado, denotativos, apontando para coisas; e, por outro lado, expressivos, dando vazão a
sentimentos. Porém, somente as palavras e os símbolos notacionais padronizados e semelhantes são capazes de ter
significados fixos, conotar outras palavras, além de apontar para coisas, e expressar idéias e sentimentos. Qualquer
que seja o valor final ou auxiliar dos gestos e da vocalização aleatória, é somente o processo de verbalização que
forma a substância do discurso.
Há muitos idiomas, tanto do tipo comum quanto do tipo técnico especial, e certas distinções devem ser feitas dentro
e entre esses grupos. A investigação antropológica de idiomas primitivos e a pesquisa filológica mais geral
coletaram uma grande quantidade de informações sobre a variedade de idiomas humanos, não apenas no que diz
respeito a vacabulários, mas também com relação aos traços gramaticais fundamentais de qualquer idioma. A
corroboração dessas descobertas veio do estudo dos hábitos linguísticos de crianças pequenas, onde novamente há
evidências de divergências em relação à gramática habitual do adulto. Concomitante à pesquisa, houve uma
tendência crescente de interpretar os dados logicamente em termos da tese de que existem tantas lógicas
fundamentalmente diferentes quanto idiomas fundamentalmente diferentes. Essa tese deve ser considerada. Ela
parece implicar não apenas que uma tradução perfeita é impossível entre os diversos vocabulários de dois idiomas,
mas também que, se esses idiomas forem estruturalmente diferentes, essas discrepâncias tornam a lógica que é
nativa de um idioma estranha ao outro. Em outras palavras, o tipo específico de afirmação possível em um idioma é
impossível em outro.
Isso pode muito bem ser verdade, mas seu significado é muito diferente, conforme seja considerado relevante para a
lógica ou para a linguagem. A lógica consiste na formulação abstrata de relações muito gerais, e é de pouca
importância para a lógica que certos idiomas sejam menos capazes do que outros de lidar com seus meios através
dessas relações. Se qualquer idioma, por outro lado, tiver implícita em sua estrutura gramatical uma relação que não
tenha sido previamente enumerada nas fórmulas da lógica, essa nova relação, para ser tratada logicamente, deve
receber uma formulação abstrata. Ela se torna parte de uma lógica. Ela não foi inventada pela linguagem em
questão; foi descoberta. A linguagem é vista aqui como um instrumento de descoberta, e não como uma fonte
genuinamente criativa. Ela não cria as distinções e relações que é capaz de estabelecer, embora possa ser uma
característica peculiar de certas línguas a capacidade de estabelecer mais relações e distinções mais finas do que é
possível por meio de outras línguas. A linguagem é, portanto, ao mesmo tempo, a agência pela qual os homens
entram no discurso e a limitação de sua atividade nele.
A importância da linguagem para o discurso não é o fato de a linguagem determinar sua lógica, pois "a razão é livre
para mudar sua lógica, assim como a linguagem para mudar sua gramática"; mas sim o fato de as peculiaridades da
linguagem formarem um conjunto de condições limitadoras para a realização de valores lógicos no discurso. Isso
pode ser claramente apreciado se a linguagem comum for comparada à linguagem da matemática ou a qualquer
outro sistema simbólico. No último caso, são usadas entidades notacionais especiais, e essas entidades recebem, na
medida do possível, um significado preciso, uniforme e convencionalizado. O número de entidades definidas é
mantido em um mínimo, reduzindo assim o número de indefiníveis que devem ser empregados e evitando ao
máximo o uso do vocabulário popular nas declarações definitórias. Quando qualquer nova entidade entra no sistema,
ela é definível e definida em termos das convenções notacionais estabelecidas do sistema. Como resultado, obtém-se
grande precisão com a máxima redução da ambiguidade intelectual. Não é difícil para esses sistemas de notação se
aproximarem da declaração perfeita dos valores lógicos que pretendem; esses universos isolados de discurso têm
poucos impedimentos para a formulação lógica do conjunto de relacionamentos que é seu objeto de estudo.
No entanto, na linguagem da fala comum e no universo indefinido do discurso a que ela dá origem, há outras
condições. As entidades notacionais são palavras. Essas palavras são os nomes de objetos, não necessariamente de
coisas físicas, nem necessariamente de objetos existentes; são nomes no sentido de que têm uma referência que vai
para além da linguagem, e a palavra objeto é aqui usada para descrever qualquer entidade que não seja um item no
discurso. Essas palavras também significam outras palavras; as palavras estão relacionadas umas às outras por
conotação, e é esse conjunto de relações que um dicionário adequado pretende enumerar exaustivamente. As
diversas maneiras pelas quais as palavras têm significado são um assunto complexo demais para a presente análise.
A distinção que é importante para a presente discussão é entre os significados denotativos das palavras e seus
significados conotativos; no primeiro uso, elas são nomes, referem-se a objetos; no segundo uso, são entidades
notacionais cujo significado é determinado pela relação com outras entidades do mesmo tipo.
Se a linguagem fosse inteiramente denotativa, o discurso não teria as ramificações elaboradas que tem, pois a
elaboração da linguagem, seu estoque de definições e distinções, deve-se em grande parte às propriedades
conotativas de seus elementos verbais. Mas se o discurso deriva sua riqueza e sua variedade dessa fase da
linguagem, ele também encontra dificuldades. É na solução dessas dificuldades que a dialética entra no discurso. As
dificuldades mencionadas são quase inteiramente dificuldades de definição. As palavras da fala comum,
diferentemente dos símbolos da matemática, não têm significados precisos e padronizados; na maioria das vezes,
diferentemente do vocabulário técnico da ciência, não são criadas com o objetivo de fazer afirmações precisas; são
criaturas orgânicas cuja longa história de variação semântica é uma evidência de sua capacidade de ambiguidade em
qualquer seção transversal temporal do uso linguístico. A linguagem comum não forma um sistema; o dicionário é
uma coleção de definições, e não uma sistematização delas; e a definição de qualquer termo envolve uma regressão
infinita no uso de outros termos, pois o número de definições e, portanto, de indefiníveis, não é deliberadamente
limitado. O único controle sobre essa regressão está na denotação; o objeto apontado pode satisfazer a demanda pela
explicação do significado de uma palavra; mas se a definição de uma palavra for tentada por meio da conotação, as
outras palavras evocadas também precisam de definição, e o processo, teoricamente, pelo menos, não tem fim,
embora na prática comum ele cesse quando se obtém o que é considerado uma definição razoável. No entanto,
permanece uma margem de ambiguidade que não existe nas linguagens especiais da matemática e de algumas
ciências.
Esse fato, de que as palavras da fala comum não são constantes, mas entidades altamente variáveis e indefinidas
com relação ao significado, é, em primeiro lugar, o obstáculo intransponível no caminho da tradução perfeita de um
idioma para outro e, em segundo lugar, a fonte de contradições, conflitos, ambiguidades, mal-entendidos e
dificuldades semelhantes no discurso de um único idioma. Os fatos nunca se contradizem; são as declarações sobre
eles que estão em contradição, e essa contradição, como será mostrado mais tarde, deve-se em grande parte à
indefinição das palavras que compõem as declarações. Essa distinção entre fatos e afirmações, se for seguida,
revelará a característica da linguagem comum que torna a dialética possível e, talvez, inevitável no discurso humano.
Em outras palavras, é a natureza do pensamento humano, na medida em que é condicionada pelo uso de palavras,
que explica a discordância e a controvérsia intelectual.
O universo dos fatos —de entidades que não estão no discurso, mas sobre as quais o discurso pode ser feito — pode
conter, em sua ordem, movimentos de dissensão e luta. Os animais lutam, assim como os átomos; mas eles se opõem
uns aos outros no que fazem, e não no que significam. Um fato difere de outro simplesmente por ser idêntico a si
próprio, e essa manutenção da identidade pode envolver quaisquer complicações, sistemas de tensão e coesão, que a
natureza absoluta dos fatos proporciona. Todavia, os fatos não afirmam nada. Eles não negam nada. São, em sua
maioria, criaturas mudas cujo poder está em sua posição e movimento, e não em sua fala. No entanto, a exceção
humana a essa regra, o fato de o homem vociferar em seu movimento entre todos os outros fatos, cria a ordem dos
fatos que são declarações, cuja relevância se dá no universo do discurso. Deve-se lembrar, ademais, que os fatos são
pacientes e indiferentes às afirmações que os enquadram de determinadas maneiras. Eles não exigem uma afirmação
em vez de outra, embora o homem tenha escondido por muito tempo as imposições de seu discurso de si próprio,
supondo que suas afirmações são governadas pelos fatos. Essa suposição obviamente depende da suposição
adicional de que os fatos são tais e tais, e isso seria meramente outra afirmação que pode ou não ser assim. Os fatos
em si simplesmente são; é apenas nas declarações do homem que eles são tais e tais; e são apenas as declarações do
homem sobre eles que podem ou não ser assim.
A possibilidade de atribuição múltipla da ambiguidade e da contradição das declarações pode ser inerente, mas não é
imediatamente óbvia no universo do discurso. As opiniões, como todos os outros fatos, podem diferir simplesmente
por serem elas próprias; elas não desafiam umas às outras por si mesmas; nem suas diferenças se tornam
necessariamente significativas. A água e o fogo convivem no mesmo mundo, tendo uma certa relação entre si. O
universo do discurso pode incluir afirmações tão antagônicas em sua intenção quanto a água é niilista em relação ao
fogo; e, no entanto, essas afirmações também podem conviver em paz, juntas apenas no sentido de uma relação
potencialmente provocadora de consequências, embora não o seja de fato. A água deve ser derramada sobre o fogo;
e as afirmações devem ser submetidas a questionamentos antes que o universo do discurso se torne vivo com a
confusão. Essa confusão, em outras palavras, não precisa ocorrer; as afirmações não precisam contradizer umas às
outras; mas isso acontece sempre que a pergunta é feita: "O que significa dizer que. . . ?"
"O que significa dizer que...?" é provavelmente a pergunta distintamente dialética; no entanto, ela provavelmente foi
feita muito antes de existirem dialéticos deliberados e filósofos profissionais; ela é feita sempre que há homens para
os quais as declarações têm significado e em cujo discurso os significados competem pelo controle. Essa competição
é a própria vida do pensamento, embora possa ser a morte do pensador. Ela surge, como sempre acontece, por meio
de processos de apropriação. Assim que o significado de uma afirmação é questionado, o status interpretativo dessa
afirmação fica claro, e a interpretação é uma forma de possuir, de se apropriar dos fatos. O fato de a interpretação ser
característica das afirmações pode ser visto no contraste entre os fatos que não dizem nada sobre si mesmos e as
afirmações que dizem algo sobre os fatos. Dizer algo é interpretar. Mas a interpretação é arbitrária e ambígua.
Muitas coisas podem ser ditas sobre qualquer fato, e qualquer declaração tem um quale de significado indefinido
que possibilita uma interpretação múltipla de seu significado. Insistir nesta interpretação em vez daquela é guardar
uma posse, afirmar a propriedade intelectual sobre fatos e significados. O fato de as interpretações poderem ser
contestadas, de podermos perguntar o que as declarações realmente significam, é indicativo não apenas dessa
possibilidade de interpretação múltipla, mas também da possibilidade de reivindicações conflitantes entre as
entidades de um universo de discurso. Em resumo, a variedade de significados que caracterizam as afirmações sobre
fatos são as fontes de discordância intelectual elementar. Não poderia haver nenhum fenômeno de discordância
intelectual se não houvesse homens para falar sobre fatos, nem esses homens jamais discordariam se não se
perguntassem o que seu discurso significa.
O pensamento e a linguagem provavelmente se sofisticam juntos. Quando uma afirmação é questionada, a resposta
primitiva é provavelmente um gesto de apontar, um movimento de denotação; a resposta mais sofisticada vai um
passo além. Ela define os significados envolvidos; registra a força denotativa da afirmação ao expressar a conotação
de seus termos. A definição no nível da conotação, portanto, exige um movimento dentro do universo do próprio
discurso, em contraste com o apontamento direto para fatos brutos. Ademais, a definição é um processo cumulativo.
Em cada ocorrência, ela marca padrões relacionais no universo de significados e logo acumula uma complexidade
que impede uma análise detalhada. No entanto, de modo geral, pode-se observar que a definição de significados
resulta necessariamente em classificações. Definir um termo é discernir uma classe, cujos membros são todos os
termos que toleram a definição dada. A definição e a classificação são, portanto, procedimentos co-implicados. Uma
classe é descrita qualitativamente pela definição de um termo; sua intenção está implícita, embora possa ser
desocupada, esgotada ou de quantidade indefinida. A importância existencial de uma classe pode ser de qualquer
tipo sem afetar a natureza intensiva atribuída a ela pela definição. Por fim, a definição não pode falhar em ser
exclusiva. Essa é sua característica mais importante. É essa característica da definição que gera a dicotomia e, ao
fazê-lo, estabelece uma diferença significativa em oposição às diferenças de identidade. A diversidade significativa é
fundada nas categorias do universo do discurso; trata-se do padrão residual de movimentos passados de definição; e
é tanto provocativa quanto reguladora de todas as futuras discursões entre termos. Certas fases da dialética, portanto,
parecem não apenas ter se originado com o desenvolvimento da linguagem, mas também ser subservientes às
condições intelectuais impostas pela linguagem ao discurso.
A matemática, por outro lado, emprega um conjunto especial de termos simbolizados por uma notação especial. O
significado desses símbolos em qualquer sistema é dado exaustivamente pela doutrina desse sistema. Se eles têm
algum significado no uso cotidiano, isso é algo totalmente além e irrelevante para seu status e importância na
matemática. Esse status e essa importância são inteiramente estruturas nesse ou naquele sistema. O sistema
determina totalmente o conteúdo simbólico de seus termos. A dialética, por outro lado, emprega a notação simbólica
da linguagem humana; embora a linguagem seja nada mais do que um instrumento para a realização do discurso, a
dialética é afetada pelo fato de que suas ferramentas específicas são as palavras da fala comum. Se alguns termos
técnicos são criados, eles são, no entanto, introduzidos em um contexto vulgar, e qualquer precisão que possam ter
se perde com essa imersão. A linguagem já é um vasto conjunto de significados antes que a dialética faça uso dela,
embora possa ser enriquecida por esse uso. Mas um valor definitivo nunca é dado a seus símbolos. A definição
dialética faz pouco mais do que organizar ou reunir significados já capturados no estoque comum de referências
verbais. Ela nunca cria, tal como o faz a definição matemática, o valor total de seus termos. Obviamente, ela só pode
tentar a definição precisa de comparativamente poucos itens; e, para isso, deve aceitar e usar o conjunto de
significados mais ou menos definidos que fazem parte do restante da linguagem.
O fato de que a linguagem comum que fornece nosso discurso comum é constituída de uma vasta rede de definições,
classificações implícitas e distinções, é uma das condições empíricas da dialética, e é importante para a descrição
dela tal como de fato ocorre. Se a dialética estivesse operando apenas com os símbolos restritos de algum sistema
especial, a tarefa que enfrentaria seria bem diferente da que lhe cabe, porque ela emprega as palavras indefinidas do
discurso comum, palavras que não são não-definidas, mas sim definidas de maneira muito variada. Pode-se dizer
que a gênese da disputa e da controvérsia é esse mesmo fator da linguagem humana.
Um segundo fator linguístico é a dupla referência dos termos em conotação e denotação. Os símbolos da matemática
e os termos técnicos especialmente desenvolvidos do vocabulário científico têm o alcance e a força de suas
denotações restritos de forma bastante precisa por sua intenção definida. Sob tais condições, a denotação e a
conotação raramente são ambivalentes. Entretanto, na situação da linguagem comum, grande parte da ambiguidade
associada a palavras familiares surge devido a algum grau de independência entre essas duas dimensões nas quais as
palavras têm significado. Além disso, o conflito de significados ocorre não apenas quando há uma contradição
conotativa, mas também quando a mesma palavra é considerada como tendo uma conotação que não está de acordo
com sua denotação comum. Essa foi a dificuldade crucial no caso em que o Sr. Lincoln chamou a cauda da mula de
outra perna. Em outras palavras, muitos dos termos da fala comum não são sinais notacionais abstratos que podem
ser investidos com qualquer valor significativo que possa ser arbitrariamente atribuído a eles para fins de discurso.
Em vez disso, são palavras concretas, cujas biografias têm sido mais práticas do que teóricas e, portanto, não são
totalmente submissas a usos puramente intelectuais[10].
A fala comum, talvez, era primitivamente uma forma de gesto, de apontar, de denotar. A referência extrínseca de
suas palavras era sua principal virtude biológica no ambiente primitivo. O fato de que as vocalizações humanas,
fossem elas emocionalmente gestuais ou comunicativas, apontavam e significavam coisas no mundo em que o
falante se movia e lutava, pode ter dado à fala seu alto valor biológico. Foi somente com a sofisticação muito
posterior da linguagem, quando os modos indicativo e subjuntivo encontraram seu lugar gramatical junto com o
imperativo e o interrogativo, que a linguagem começou a ter vida própria, para além do mundo das coisas ao qual
também se referia. Ela ainda possuía essa referência extrínseca, mas acrescentou a referência verbal intrínseca que as
palavras e afirmações têm entre si na fala desenvolvida e, assim, tornou-se uma agência para se mover no reino dos
significados ou no universo do discurso. O dicionário é uma coleção de tais referências intrínsecas; e o crescimento
de qualquer vocabulário depende da crescente disseminação e desdobramento dessas referências. Desde a sintaxe e a
estrutura gramatical mais antigas e rudimentares até a gramática maravilhosamente competente e rica do Órganon
de Aristóteles, o desenvolvimento estrutural da linguagem se deve, em grande parte, à elaboração intrínseca, embora
algumas das principais categorias tenham força principalmente denotativa. Esse crescimento pode ser traçado em
qualquer idioma que alcance qualquer permanência e qualquer estabilização dos significados aos quais suas formas
de palavras se referem; ele não parece ser algo exclusivo de um idioma em vez de outro.
A linguagem, em outras palavras, é tão "incorrigivelmente estética" quanto inevitavelmente dialética. Ela é estética
em seu lado denotativo. Sua propensão dialética é meramente a sofisticação adicional da fala que a gramática mais
antiga iniciou. Assim como as palavras têm, ao mesmo tempo, referência intrínseca e extrínseca, significado
conotativo e denotativo, também se pode dizer que a linguagem tem simultaneamente um caráter estético e dialético.
Estético é aqui entendido como sensorial; sua força adjetiva se aplica a todas as experiências sensoriais diretas e à
experiência imaginativa que é derivada delas. A referência denotativa é, em seus termos mais simples, a referência a
algum qualia, algum objeto estético, dado tanto na percepção quanto na imaginação. Uma essência foi definida
como "qualquer indivíduo lógico ou estético", e essa distinção é paralela à distinção entre a referência intrínseca e
extrínseca das palavras. Psicologicamente, a interpenetração dos hábitos linguísticos e dos hábitos perceptivos, sua
co-gênese e seu funcionamento quase invariavelmente conjunto apontam para a base da íntima ligação entre razão e
senso. O mundo de coisas que somos capazes de perceber e as relações entre elas que somos capazes de discriminar
dependem intimamente, embora não absolutamente, do tamanho de nosso vocabulário e da delicadeza de nossas
nuances linguísticas. Reciprocamente, nossa linguagem cresce com a descoberta perceptual de objetos e relações, e
com recombinações imaginativas de suas partes. A situação psicológica total e as características da experiência são
co-determinadas por reações sensoriais e verbais. É bastante natural, então, que a linguagem tenha seu lado estético
e que o mundo que conseguimos visualizar seja o mundo a respeito do qual falamos[11].
Esse fato empírico é claramente outra condição limitadora que a dialética sofre porque os materiais da esfera do
discurso em que ela geralmente se move são, em sua maior parte, os materiais de uma linguagem que serve a outros
propósitos que não os da dialética. Um dos traços fundamentais do processo dialético é o fato de ser totalmente
desconsiderativo em relação aos fatos, a quaisquer entidades que não estejam no discurso; e, no entanto, em razão de
suas denotações inerradicáveis, as próprias palavras que a dialética deve empregar no discurso estão inextricável e
incorrigivelmente conectadas aos fatos. A dialética não é alterada por isso, mas é certamente limitada por essa
condição de todas as suas ocasiões e desempenhos atuais. Ela não abre mão da restrição auto-imposta sobre a esfera
de sua atividade, a saber, o que quer que seja intrínseco ao próprio discurso; ela não vai para além do discurso,
embora o discurso possa ir para além de si próprio na medida em que seus termos tenham referência extrínseca,
denotativa, aos fatos, objetos ou coisas que eles nomeiam e apontam.
O fato de as entidades do discurso terem essa referência extrínseca restringe ainda mais a dialética. Ele limita o grau
de liberdade na redefinição de termos comuns sem torná-los ininteligíveis e errôneos. E torna extremamente
importante a distinção entre o que é próprio da argumentação e o que não o é. À luz da conexão inescapável entre
palavras e fatos, não é de se admirar que controvérsias e disputas inevitavelmente tendam a recorrer a um apelo aos
fatos, como se isso pudesse concluir o argumento sobre os significados envolvidos no discurso. Se o argumento diz
respeito às referências denotativas dos termos em discussão, a discussão poderia ser concluída dessa maneira; mas se
são as relações intrínsecas que os termos mantêm com outros termos no discurso que estão sendo disputados, então
evocar os fatos é irrelevante para a natureza do argumento. A dialética depende dessa distinção que o caráter da
linguagem torna inevitável e se limita à dimensão conotativa do discurso. Ademais, ela é automaticamente limitada
por quaisquer restrições impostas a essa dimensão do discurso pelas referências extrínsecas das entidades que a
compõem. Mas ela nunca se submete à jurisdição dos fatos se o ponto em questão for propriamente dialético, se for
uma questão de significados intrínsecos ao próprio discurso.
Um terceiro fator na natureza da linguagem que é relevante para a participação humana na dialética é a qualidade
metafórica que permeia a fala comum. A distinção entre uma declaração metafórica e uma declaração literal não é
fácil de ser feita. Supõe-se comumente que chamar a lua de rainha da noite é fazer uma afirmação metafórica,
enquanto chamá-la de satélite da Terra é ser literal; mas as bases para fazer a distinção nesse caso simples, por
exemplo, não são particularmente claras. Uma pode ter sido proferida por um poeta, a outra por um cientista. Isso,
no entanto, não é garantia, pois a linguagem da ciência é essencialmente tão metafórica quanto a linguagem da
poesia, quando se examina mais de perto as características da metáfora. A metáfora, no contexto restrito da retórica,
é o nome de um uso em que as coisas são comparadas. "A vida, como uma cúpula composta de muitos vidros
coloridos", também pode ser a nossa vidinha que "é rodeada por um sonho", e sobre essa vida o biólogo e o biofísico
fazem observações que não são menos metafóricas, embora sejam de uma ordem diferente de metáfora. A
linguagem da ciência pode ser, em sua maior parte, abstrata, enquanto a linguagem da poesia é mais frequentemente
concreta; mas mesmo essa distinção não se sustenta. Ela também não é útil, pois uma comparação que emprega
termos abstratos não é menos uma comparação do que aquela que usa imagens concretas. Seja abstrata ou concreta
em seus valores imaginativos, a linguagem parece ser totalmente metafórica.
As palavras são símbolos no mesmo sentido em que o são os itens da notação matemática. Uma declaração, como
uma forma de palavras, é como uma equação ou uma fórmula; o simbolismo dela deve ser interpretado, deve ser
compreendido. A distinção entre afirmações literais e metafóricas não pode ser defendida quando o simbolismo de
toda a linguagem é revelado. "O açúcar é doce" não é algo mais literal do que "aquele homem é um asno"; nem a
afirmação de que "Deus é o filósofo perfeito" é mais metafórica do que "o ferro enferruja". Chamar o sol de Apolo
ou chamá-lo de um globo de fogo, chamar o homem de "hóspede em sua própria casa" ou chamá-lo de homo sapiens
— todas essas atribuições são igualmente metafóricas. "A linguagem", diz Santayana, "os filósofos precisam tomar
emprestada dos poetas, já que os poetas são os pais do discurso". Ao discorrer sobre a psicologia freudiana, ele ainda
observa: "Os principais termos empregados na psicanálise sempre foram metafóricos: 'desejos inconscientes', 'o
princípio do prazer', 'o complexo de Édipo', 'narcisismo', 'o censor'; no entanto, perspectivas interessantes e
profundas podem ser abertas, em tais termos, no emaranhado de eventos da vida de um homem; e um novo começo
pode ser feito com menos ônus e menos inibição mórbida. 'As deficiências de nossa descrição', diz Freud,
'provavelmente desapareceriam se pudéssemos substituir os termos psicológicos por termos fisiológicos ou
químicos. Esses dois constituem apenas uma linguagem metafórica, mas de uso familiar por muito mais tempo, e
talvez também mais simples'. Todo discurso humano é metafórico no sentido de que nossas percepções e
pensamentos são signos adventícios para seus objetos, como são os nomes, e de modo algum cópias do que está
acontecendo materialmente nas profundezas da natureza."[12]
O fato de toda a linguagem ser metafórica é uma tese importante o suficiente para justificar uma corroboração
adicional ou, pelo menos, uma explicação. Vaihinger chamou Kant de um grande metafórico em vez de metafísico.
"Tomadas literalmente", diz Vaihinger, "nossas concepções mais valiosas não têm valor". E Havelock Ellis, levando
essa percepção adiante, escreve: "Nossas concepções, nossos sinais convencionais têm uma função ativa a
desempenhar; o pensamento em seus graus mais baixos é comparável ao papel-moeda e, em suas formas mais
elevadas, é um tipo de poesia. A imaginação é, portanto, uma parte constitutiva de todo pensamento. Podemos fazer
distinções entre o pensamento científico prático e o pensamento estético desinteressado. No entanto, todo
pensamento é, por fim, uma comparação. As ficções científicas são paralelas às ficções estéticas. O poeta é o modelo
de todos os pensadores; não há uma fronteira nítida entre a região da poesia e a região da ciência."
O problema da "verdade literal", se toda a linguagem for metafórica, é interessante. As afirmações científicas
geralmente são concebidas como capazes de ter uma verdade literal. "Mas", diz Santayana, "a ciência é uma parte do
discurso humano e necessariamente poética tal como a linguagem. Se a verdade literal fosse necessária (o que não é
o caso na prática em relação à natureza), ela seria encontrada apenas, talvez, na literatura — na reprodução do
discurso pelo discurso". É nesse sentido que uma representação dramática da dialética, os diálogos de Platão, por
exemplo, podem ser chamados de literalmente verdadeiros.
Se todas as declarações, exceto aquelas encontradas na forma retórica do discurso direto, são metafóricas, o que
significa considerar certas declarações literalmente e, além disso, afirmá-las como verdadeiras? Uma resposta pode
ser encontrada nos mesmos termos em que a maneira de entender as metáforas pode ser descrita. A vida é uma
cúpula de vidro de muitas cores? A declaração deve ser compreendida antes de ser afirmada ou negada. Em relação
à pergunta "A lua é o satélite da Terra?" o caso não é diferente. Para entender essas afirmações, elas devem ser
interpretadas em algum contexto de significados, em algum contexto literário, quer o tipo de literatura seja
classificado pelos bibliotecários como poesia ou ciência. Quando interpretada e de alguma forma compreendida, a
validade da declaração pode ser questionada. Porém, no contexto em que uma declaração metafórica é interpretada,
ela é sempre verdadeira. A situação é análoga à posição de uma proposição em isolamento ou no contexto de um
sistema ou em outro. Isoladamente, a proposição não tem verdade intrínseca, embora possa ser verdadeira no outro
sentido de estar adequadamente relacionada aos fatos. De forma isolada, não se pode dizer que a proposição seja
verdadeira ou falsa; mas no contexto de um sistema de proposições que a interpreta, ela pode ser verdadeira ou falsa.
Na situação em que é falsa, pode-se afirmar que a proposição não foi interpretada adequadamente; pelo menos,
pode-se dizer que qualquer proposição pode ser colocada em um contexto no qual seria validamente implícita. Nesse
sentido, ela é compreendida e considerada verdadeira por meio do mesmo conjunto de condições.
De modo semelhante, as declarações metafóricas consideradas isoladamente não podem ser completamente
compreendidas nem julgadas válidas ou inválidas. É somente quando são interpretadas por um ambiente contextual,
embora ele próprio seja metafórico, que seu significado se torna claro e sua adequação ao ambiente em questão é
determinada. A ciência fornece um contexto muito mais adequado para suas metáforas do que a poesia, e isso pode
explicar a suspeita de que a diferença entre a ciência e a poesia é que a primeira é literal em suas afirmações,
enquanto a segunda é metafórica. As afirmações científicas podem parecer literais porque podem ser interpretadas
de maneira mais uniforme e precisa, e mais prontamente julgadas como verdadeiras ou falsas; mas isso não se deve
ao fato de serem menos metafóricas do que outras afirmações, mas simplesmente porque a ciência é um sistema
mais ordenado de metáforas do que ocorre na poesia ou na fala comum. Uma declaração científica "literal" no
contexto de um soneto ou de uma conversa cotidiana, se esses dois últimos empregarem metáforas estranhas às
científicas, pareceria tão estranhamente metafórica e ininteligível quanto qualquer outro tipo de declaração
considerada isoladamente ou encontrada em um contexto no qual suas metáforas não fossem nativas.
O fato de a linguagem ser essencialmente metafórica[13] tem mais uma consequência, que é especialmente
significativa à luz da relação entre dialética e linguagem. O conflito de afirmações é o conflito de seus significados.
Esses significados são determinados pelos universos parciais do discurso em que as afirmações ocorrem. Os
universos parciais do discurso são, do ponto de vista de sua expressão linguística, nada mais do que configurações
metafóricas especiais, e o problema nessa situação é ajustar os contextos interpretativos das afirmações metafóricas,
uma tarefa de traduzir um modo de metáfora em outro. Contudo, o número de contextos em que uma declaração
pode ocorrer e em termos dos quais seu significado pode ser determinado é, no que diz respeito à linguagem,
indefinidamente grande, talvez até ilimitado. Nesse aspecto, a linguagem é um excelente instrumento para o
movimento da dialética no discurso, pois há um paralelismo entre o discurso como um reino do ser e a natureza da
linguagem, mesmo que o discurso seja um reino ilimitado. Deus pode ter, e de acordo com Espinosa, tem, infinitos
atributos, cada um deles infinito; mas a linguagem talvez também seja capaz de apresentar cada afirmação em
infinitos modos de metáfora.
Essa analogia entre os infinitos atributos de Deus e os infinitos modos de metáfora em que qualquer declaração
existe sugere uma regra de contradição no uso linguístico. Um atributo pode ser limitado apenas em sua espécie, ou
seja, apenas por outro atributo do mesmo tipo; mas esse seria o mesmo atributo; portanto, os atributos de Deus, de
acordo com Espinosa, são infinitos em sua espécie. Talvez, da mesma maneira, uma afirmação possa ser contradita
apenas em sua espécie, ou seja, por outra afirmação do mesmo tipo, outra afirmação pertencente ao mesmo modo
metafórico[14]. Em outras palavras, a oposição ou o conflito entre duas afirmações pode se tornar inteligível somente
se elas forem definidas como pertencentes ao mesmo modo de metáfora, o que equivale à afirmação de que as duas
afirmações devem ser definidas pelas mesmas convenções de uso linguístico para que sua contradição seja
compreendida e tratada. O fenômeno da contradição receberá uma análise lógica mais elaborada posteriormente[15].
Na controvérsia atual, entretanto, a maneira como as diferenças de opinião se apresentam certamente não é
independente do caráter altamente metafórico da linguagem usada.
De fato, parece ser essa característica da linguagem, juntamente com a indefinição de significado possuída pela
maioria de suas palavras, que torna possível e, na verdade, é responsável pela origem da controvérsia e do debate
nas conversas humanas. É em grande parte por meio do mal-entendido ou da contrariedade no entendimento que os
seres humanos passam, em seu uso da linguagem, da comunicação para a controvérsia e da controvérsia indefinida
para algum universo de discurso, no qual se tornam mais ou menos competentes na dialética.
É a habilidade humana no procedimento dialético, e não a dialética em si, que é sempre mais ou menos competente.
A descrição empírica da dialética deve levar em conta os fatores responsáveis por essa variabilidade na prática
humana da dialética como método. A enumeração de tais fatores é relevante apenas empiricamente; eles não têm
nada a ver com a exposição lógica da dialética como uma metodologia.
Alguns desses fatores já foram abordados na discussão sobre a linguagem enquanto um conjunto de condições
limitadoras da participação humana no discurso. Há outros fatores, como o grau de dotação intelectual e as
características emocionais da natureza humana, que a análise psicológica deve apresentar agora como um conjunto
adicional de condições limitantes. No entanto, antes de entrar nessa análise, seria bom resumir a discussão anterior
sobre a linguagem. Ao fazer isso, o que foi apresentado anteriormente como um relato empírico pode agora ser
traduzido em um conjunto de definições e suposições e em alguns teoremas. Nesta última forma, não há tendência
de afirmar que a descrição é verdadeira no sentido empírico; e embora os elementos dessa descrição possam ser
verdadeiros empiricamente, é importante distinguir entre o que é afirmado e a maneira pela qual é afirmado como
verdadeiro.
I. Um fato é qualquer entidade que não esteja no discurso.
II. A linguagem é um conjunto de fatos que estão em forma de símbolos.
III. Os símbolos da linguagem têm duas dimensões
de referência: (1) a outros fatos; (2) a significados no discurso.
IV. A linguagem é um instrumento para a dialética quando seu uso se limita à segunda de suas funções simbólicas.
1. As diferenças específicas entre os idiomas são irrelevantes para a natureza da lógica ou da dialética,
embora sejam bastante relevantes para seu grau de disponibilidade enquanto instrumentos.
2 . A dialética, em seu uso da linguagem comum (não-técnica) como instrumento, é condicionada pelos
seguintes fatores, que estão presentes na constituição dessa linguagem:
(I) a variabilidade dos significados discursivos das palavras;
(II) as fundadas definições do vocabulário comum da língua;
(III) as reivindicações conflitantes da referência denotativa e conotativa dos termos;
(IV) a restrição à liberdade absoluta na definição imposta pela denotação das palavras de uma
linguagem não-técnica;
(V) o caráter metafórico generalizado da linguagem.
3. A dialética nunca é determinada, embora talvez limitada em seu uso de uma linguagem, pelo aspecto
denotativo das palavras dessa linguagem.
4. A controvérsia nunca surge entre os fatos, mas apenas no reino dos significados, no discurso; e a
dialética, embora use a linguagem, nunca precisa ser sobre fatos ou estar sujeita à jurisdição dos fatos.
5. O uso da linguagem, seja para fins de expressão, comando, consulta ou comunicação, envolve os
homens em controvérsias por causa (2, I) da ambiguidade conotativa das palavras e (2, V) do caráter
metafórico generalizado da linguagem.
6. Se a controvérsia ocorre por essas razões (5), ela nunca emprega a linguagem para perguntar quais são
os fatos, mas o que os fatos significam. A controvérsia é dialética quando, com relação às declarações em
questão, é perguntado "O que significa dizer que...?".
7. Uma vez que (6) a dialética se preocupa com a interpretação de afirmações, e uma vez que a
interpretação depende de um contexto, a validade intrínseca, bem como a inteligibilidade da interpretação,
depende do contexto.
8. Aquilo que pode ser ambiguidade no uso verbal e múltiplos modos de metáfora na declaração linguística
torna-se conflitos e contradições no discurso, e a dialética tem a dupla função de esclarecer o uso das
palavras, no aspecto linguístico, e resolver as dificuldades no discurso, no aspecto lógico.
A Descrição Empírica (cont.): Natureza Humana
Os fatores psicológicos que são circunstanciais à participação humana em uma atividade de cunho tão intelectual
como a argumentação podem ser classificados em três categorias: (1) lazer, (2) inteligência e (3) temperamento. O
lazer, embora em parte determinado por uma situação econômica, é aqui entendido como algo mais do que o
descompromisso econômico; ele implica o descompromisso geral com todas as considerações práticas, uma atitude
de impraticalidade deliberada. A inteligência, qualquer que seja a definição última acordada pelos psicólogos, inclui
várias funções psicológicas, como a capacidade de linguagem, a capacidade de lidar com relações, a capacidade de
lidar com abstrações, a compreensão e a interpretação, a associação controlada e a organização de associações. Essas
habilidades são possuídas pelos seres humanos em maior ou menor grau. Qualquer deficiência dessas qualidades é
certamente uma condição limitadora do intelecto. O temperamento implica, em primeiro lugar, outra diferença
individual fundamental e, juntamente com as diferenças de inteligência, explica em parte as dificuldades que os
seres humanos encontram na tarefa de se comunicar e entender uns aos outros. Em segundo lugar, o temperamento
do indivíduo é constituído por um conjunto de desejos, vontades, propósitos e sentimentos ou complexos
emocionais, que não apenas determinam sua compreensão de uma situação intelectual, mas também são os
determinantes não-racionais do que ele escolhe racionalizar, seus preconceitos, crenças e pleitos especiais.
(I)
“É somente em um período afortunado — tanto em suas oportunidades para desengajar-se da pressão imediata das
circunstâncias como em sua ávida curiosidade — que o Espírito-da-Era pode empreender qualquer revisão direta
daquelas abstrações últimas que se escondem nos conceitos mais concretos a partir dos quais o pensamento sério de
uma era tem início”[16]. Não está implícito aqui que a atividade intelectual profunda não tenha consequências
práticas, mas afirma-se que a busca, para ser efetivamente empreendida, deve ser realizada independentemente de
quaisquer questões práticas que possa ter. A distinção comum entre ciência pura e aplicada pode ser declarada em
termos de certas distinções lógicas entre seus objetos de estudo. No entanto, há também uma diferença significativa
de atitude; a atitude teórica em oposição à atitude prática. Os empreendimentos da teoria não devem ter urgências ou
fins que vão para além de sua própria situação intelectual. A existência do empreendimento teórico pode depender
do desinteresse econômico de vários indivíduos, mas também depende de uma certa atitude dos próprios indivíduos,
uma desconsideração temporária por qualquer coisa, exceto pelas consequências intelectuais de seu
empreendimento.
Não se pode negar que a discussão e a controvérsia serviram e servem a fins práticos na experiência humana. Se não
fosse assim, grande parte das atividades dos órgãos legislativos seria supérflua; e a maioria das conversações em que
os seres humanos se envolvem não ocorreria, uma vez que, em sua maior parte, sua origem está em dificuldades
práticas e seu objetivo é remover impedimentos para ações futuras. Contudo, pode-se negar que os argumentos das
reuniões políticas e as discussões daqueles que buscam, por meio delas, uma decisão com relação à conduta, e todas
as instâncias semelhantes de conversação e disputa, sejam puramente dialéticas. A conversação é dialética apenas na
medida em que se refere ao universo do discurso; e ao ter essa referência, ela se torna inteiramente teórica. Qualquer
que seja a conclusão a que essa conversação ou discussão possa chegar, seja ela a resolução do conflito ou apenas
um esclarecimento da questão, a conclusão não tem consequência prática, pelo menos na medida em que é
considerada dialeticamente.
Isso pode ser entendido em termos da distinção entre o reino dos fatos e o universo do discurso, entre as dimensões
denotativa e conotativa da linguagem. A dialética está confinada ao universo do discurso e é expressa
existencialmente no nível conotativo do uso linguístico. A linguagem, no entanto, tem essa outra referência aos
fatos, e a conclusão de uma discussão que tenha sido um tanto dialética pode, portanto, ser considerada de forma
prática. Mas se for considerada assim, isso é irrelevante para suas fontes dialéticas, e considerá-la prática não
determina ou altera de modo algum seu status dialético.
A dialética é um empreendimento teórico ainda mais rigoroso do que a ciência pura. Sua impraticalidade é tão
grande quanto a de uma geometria não-euclidiana. Seus valores são inteiramente intelectuais ou teóricos. A ciência
pura, por exemplo, em seus ramos físicos ou biológicos, está interessada na solução de certos problemas, no
estabelecimento de certas hipóteses, na verificação adicional de certas fórmulas. Em qualquer instância particular de
pesquisa especial ou de pensamento científico, há um estado de coisas em vista que concluiria adequadamente o
esforço; essa conclusão seria uma verdade, pelo menos temporariamente — um caso de conhecimento no sentido
empírico. Todavia, a dialética, como a análise subsequente mostrará mais detalhadamente, não tem uma conclusão
genuína. Em qualquer instância do pensamento dialético, tudo o que pode ser alcançado, no máximo, é a resolução
temporária de uma contradição ou conflito no discurso. Essa resolução gera imediata e automaticamente outro
problema, ou seja, o conflito entre as proposições que compõem a resolução e suas proposições contraditórias no
discurso. Se a dialética ocorre em qualquer universo parcial do discurso, se ela emprega qualquer um dos modos
indefinidos de metáfora dos quais a linguagem é capaz, então suas conclusões estão sempre sujeitas às reversões e
alterações que são inevitáveis se forem consideradas em qualquer um dos outros universos parciais do discurso ou
traduzidas em outros sistemas parciais de significados. E como as conclusões de qualquer instância do pensamento
dialético são hipotéticas, sendo inteiramente determinadas por suas fontes doutrinárias, os postulados, definições e
dilemas dos quais derivam seu status não podem ser finais e não podem escapar das modificações de uma dialética
posterior.
O pensamento dialético, portanto, ao contrário do pensamento empírico ou mesmo do pensamento geométrico, é
genuinamente inconclusivo e, por essa razão, requer a atitude teórica e o estado de espírito de lazer no mais alto
grau. A dialética não tem qualquer finalidade intelectual que possa ser comparada à solução de um problema ou à
conclusão de um sistema, uma vez que ela está realmente preocupada em demonstrar e compreender a maneira pela
qual nenhum problema pode ser finalmente resolvido e como nenhum sistema pode ser absolutamente concluído, em
seus termos puramente intelectuais. As conversações humanas, portanto, raramente são, obviamente, dialéticas no
sentido mais estrito da palavra. Elas participam da dialética na medida em que suas maneiras e atitudes estão em
conformidade com o padrão abstrato e os ideais intelectuais da dialética; mas essa conformidade raramente, talvez
nunca, é perfeita, mesmo entre os filósofos. É notoriamente uma característica humana ser impaciente com a teoria e
ser governado pela urgência de situações práticas. A maioria dos seres humanos quase nunca pensa; e o pensamento
dos poucos que o fazem geralmente está imerso na malha de assuntos práticos e apressados. Raramente, de vez em
quando, uma conversação, discussão ou reflexão é realizada pelo prazer da atividade em si e pelos benefícios
intelectuais intrínsecos a ela. Sob tais condições, a dialética é possível e, a julgar por seus padrões, somente a
discussão ou reflexão assim condicionada pode ser dialética. A atitude de impraticalidade é, portanto, vista como
indispensável à dialética; uma discussão que busca terminar em uma conclusão última, ou em uma proposição que
seja decisiva para a ação, é tão completamente anti-dialética quanto um argumento sobre os fatos; e pelas mesmas
razões. O reino dos fatos e o mundo dos assuntos práticos são um só; e há variedades de pensamento humano
orientadas e subservientes à sua natureza e às suas necessidades. O reino dos significados, ou o universo do discurso,
e o mundo das preocupações teóricas estão igualmente unidos, e há pelo menos um tipo de pensamento que está
inteiramente confinado a eles. Por ser tão restrito, esse tipo de pensamento exige daqueles que querem participar
dele um estado de espírito de lazer e total desvinculação da finalidade ou da ação. O pensamento geométrico ou
empírico pode, em um sentido ou noutro, descansar na verdade; mas a dialética deve ter lazer sem fim, pois não
pode descansar.
O contraste é tão claro que não pode haver confusão entre o que é afirmado aqui como um ideal intelectual e o que
realmente ocorre quando os seres humanos se envolvem em conversas controversas ou na polêmica silenciosa da
reflexão. A maioria das discussões humanas é interrompida porque não há tempo para continuar ou porque há outros
assuntos mais urgentes; são episódios breves dos quais se parte para outra coisa e sobre os quais não se faz nada.
Um dos pecados de Sócrates era sua inveterada persistência na conversação. Platão captou esse aspecto da discussão
de maneira dramática nos diálogos; eles não terminam porque o argumento foi concluído, mas sim por causa da
intrusão de assuntos práticos ou outros assuntos estranhos ao tema em questão. O pouco tempo que pode ser
poupado para a conversação deve ser dedicado a ela de forma completa, livre e sem a expectativa de uma questão
prática ou recompensa intelectual. Seria necessário um tempo livre infinito para o aperfeiçoamento da dialética, e
isso não poderia ser pedido nem mesmo àqueles que se dizem filósofos. É suficiente que os momentos dedicados ao
tratamento dialético de temas em conversação e reflexão sejam dedicados integralmente — como se estivessem em
um mundo à parte. Esse desprendimento na vida intelectual é algo que os seres humanos são capazes de fazer em um
pequeno grau. Na medida em que são incapazes desse estado psicológico que tem sido chamado de atitude de
impraticalidade, ou o humor do lazer, os seres humanos são incapazes de perceber os valores que são inerentes à
conversação; e eles cometem o erro de tentar forçar o pensamento dialético a servir a outros fins que não os dela
própria. Discutir sobre os fatos ou afirmar as conclusões de um argumento como verdadeiras, empírica ou
finalmente, são os erros comuns da conversação humana. Tais falhas prevalecem porque os seres humanos são, em
geral, incapazes de levar a conversação ou discussão com lazer e de maneira não-prática; suas possibilidades
dialéticas são, portanto, perdidas para eles, ou eles disputam de uma maneira totalmente confusa e insatisfatória
porque tentam o método de argumentação sem realmente compreender, ou ser capazes de compreender, a natureza
de sua busca.
(2)
A impaciência e o pragmatismo incurável não são as únicas dificuldades psicológicas no caminho da dialética
enquanto arte da conversação. Esses são impedimentos, não para a dialética considerada abstratamente, mas apenas
para sua ocasião humana; em outras palavras, as dificuldades são aquilo que os seres humanos encontram quando
tentam ser dialéticos.
É difícil pensar — um defeito para o qual não há remédio. A falta de tempo pode ser parcialmente responsável, mas
muitas vezes há também uma falta de inteligência, ou aquilo que William James chamou de sagacidade. E na medida
em que a capacidade de pensar depende desses dons intangíveis, a lógica normativa é ineficaz em seu
aprimoramento e nenhuma prescrição de regras pode aumentar muito seus poderes. A lógica normativa lida com o
pensamento tal como ele nunca ocorre. Os hábitos de pensamento são tão idiossincráticos quanto os rostos humanos,
e aquele que quisesse regular todo o pensamento humano de acordo com uma única forma seria como o artista que
vê a humanidade de um rosto, excluindo totalmente sua individualidade. Um homem não pode dizer a outro como
pensar; ele pode simplesmente dizer ao outro como ele próprio pensa, e deixar que o modelo produza seu próprio
efeito. Pensar pode ser o nome de um grupo de atividades, assim como falar e andar. Essas atividades podem ser
descritas de modo geral; e, ao mesmo tempo, se houver sensibilidade suficiente para o idioma e o ritmo íntimo da
atividade em cada instância dele, a percepção de que dois casos de pensamento nunca são exatamente iguais será
inevitável. Os homens não pensam da mesma maneira, assim como não andam da mesma maneira, embora seja
óbvio que, de ambas as maneiras, eles possam chegar a algum lugar igualmente bem.
A capacidade de pensar varia de indivíduo para indivíduo, não apenas por causa das diferenças de hábitos pessoais,
mas porque é uma dádiva da natureza e também das circunstâncias. Ela é caprichosamente distribuída. Na medida
em que o pensamento envolve lidar com noções altamente abstratas, com sistemas relacionais complexos, com o uso
habilidoso da linguagem e a elaboração de distinções refinadas, em suma, na medida em que o pensamento exige
que a mente seja definitiva e discriminativa, pode-se dizer que ele depende da inteligência. Embora a inteligência
escape a uma descrição precisa, certamente um de seus aspectos é esse poder de abstração e percepção relacional.
Há uma alta correlação entre a posse desses poderes e a medida de inteligência. Um defeito da inteligência, portanto,
limitará um indivíduo a certos níveis de abstração e complexidade relacional; e como os processos de dialética,
mesmo na instância mais simples de disputa ou reflexão, são altamente intelectuais, a incompetência nesse aspecto é
proibitiva. Há claramente um mínimo irredutível de mentalidade necessária para o pensamento do tipo dialético.
A arte da conversação filosófica, em outras palavras, não está aberta a todos os homens. Independentemente dos
fatos, seria até romântico supor o contrário em relação a qualquer excelência. No entanto, mesmo entre aqueles que
são suficientemente dotados de intelecto, há obstáculos à comunicação e ao entendimento perfeitos que parecem
estar de alguma forma relacionados às discrepâncias de inteligência. A persistência do mal-entendido se deve a "uma
certa cegueira nos seres humanos"[17] que não é inteiramente uma questão de preconceito e parcialidade. Mesmo
aqueles que estão mais ansiosos para serem convencidos e que são sinceros em seu desejo de serem tolerantes
levantam barreiras no caminho da compreensão por meio de uma certa falta de inteligência obstinada. Talvez seja
melhor chamar isso de falta de percepção. Para entender o significado de um autor, escreveu certa vez William
James a um crítico, é preciso "primeiro compreender seu centro de visão por meio de um ato de imaginação". É a
incapacidade de fazer isso, de realizar esse exercício de percepção e imaginação, que torna grande parte do
pensamento crítico irrelevante para seu assunto e que faz com que grande parte da controvérsia seja meramente uma
questão de mal-entendido, em vez de ser uma genuína dialética de opinião.
Independentemente de o insight ser ou não um correlato da inteligência, a dialética deve invocá-lo, pois, em sua
ausência, a disputa degenera na reiteração obstinada de opiniões opostas, sem qualquer compreensão por parte dos
oponentes com relação à natureza de suas diferenças e, consequentemente, sem a possibilidade de esclarecimento ou
resolução. Pode-se dizer que esse tipo familiar de argumento comete as falácias gêmeas da suposição múltipla e da
repetição múltipla, o que seria apenas uma outra maneira de dizer que ele é conduzido sem discernimento, cada
disputante sendo dogmático sem conceder o mesmo privilégio a seu oponente. Nesses casos, a disputa pode ser
encerrada pela força maior do dogmatismo de um ou outro lado, mas tem sido totalmente insuscetível às persuasões
da prática dialética na medida em que o insight foi anulado pelas falácias dogmáticas.
O fenômeno da tradução entre sistemas discrepantes ou entre diversos modos de metáfora foi mencionado como
uma fase essencial da dialética. Trata-se de imaginação intelectual ou insight que torna a tradução possível. Os
debatedores devem concordar que estão fazendo afirmações contrárias sobre o mesmo item ou que estão fazendo
afirmações idênticas sobre entidades que, em si mesmas, são inconsistentes entre si. Até que se chegue a esse
acordo, o argumento não está localizado adequadamente em nenhum universo de discurso, e todas as afirmações são
igualmente ambíguas e irrelevantes. O estabelecimento de tal acordo é um ato de tradução que, do ponto de vista
lógico, define o universo do discurso que é comum aos participantes da disputa e, do ponto de vista psicológico,
consiste em uma convenção de entendimentos. Dessa maneira, é possível apreciar as divergências nas suposições
que estão sendo feitas e criticar as proposições apresentadas por sua relativa cogência em termos de suas próprias
fontes. A pessoa tenta entender a si própria no contexto das idéias de seu oponente e, inversamente, tenta entender
seu oponente no contexto de suas próprias idéias. No nível da linguagem, captar o centro da outra perspectiva
permite traduzir uma metáfora estranha para os usos próprios e, também, tornar a tradução mútua, tentando-a na
outra direção. A compreensão preliminar é alcançada quando o insight realiza essa tradução, e é somente após essa
tradução ter sido instituída em maior ou menor grau que o tema que está sendo discutido se torna suscetível aos
estágios mais avançados do tratamento dialético.
(3)
Em indivíduos intelectualmente competentes, a insuficiência fatal de insight nunca se deve exclusivamente a uma
falha em sua inteligência. Pelo contrário, tanto a psicologia quanto a psiquiatria enfatizam os defeitos emocionais, e
não os intelectuais, como as principais causas das aberrações de compreensão e ajuste racional. De acordo com esse
ponto de vista, o pensamento está sujeito e talvez seja controlado pelas excentricidades do temperamento, e torna-se
necessário realizar uma análise do temperamento como sendo o terceiro fator psicológico condicional ao
pensamento dialético, entre outras formas de pensamento.
Os fenômenos e as teorias gerais da psicopatologia fornecem um excelente ponto de partida, por três razões. Em
primeiro lugar, o conceito de "insight" é empregado como critério para a diferenciação das psicoses das neuroses,
dos casos de "insanidade" dos casos de desajuste menos graves. A diferenciação é, sem dúvida, grosseira, mas é
significativo para a presente discussão o fato de que a distinção entre um paciente neurótico e um "insano" ou
psicótico é que o último carece de toda a percepção de seus sintomas e de suas chamadas anormalidades. Em
segundo lugar, a distinção é feita claramente entre as dificuldades devidas à amentia ou debilidade mental e o grupo
de doenças que são distúrbios da personalidade, em grande parte emocionais ou impulsivos em caráter e origem,
mas independentes de defeito intelectual. O fator temperamental pode, portanto, ser considerado mais ou menos
isoladamente. Em terceiro lugar, entende-se que o paciente insano ou neurótico nunca é irracional no sentido de ser
incoerente ou sem cogência intrínseca. Pelo contrário, a anormalidade de tais pacientes é frequentemente sua
racionalidade excessiva. É normal ser um tanto irracional. Ademais, é claro que não é o grau em que são racionais
ou irracionais que os torna material clínico, mas os fundamentos ou pressupostos sobre os quais exercem sua
racionalidade. Um paciente que sofre do delírio de grandiosidade de que é Napoleão é, de todas as formas, racional
no desenvolvimento das implicações do tema de seu delírio. Esses delírios são muitas vezes elaborados e
maravilhosamente sistematizados e inatacáveis por argumentos ou demonstrações que tenham a intenção de
contradizê-los. Mas eles são desenvolvidos racionalmente dentro dos limites de uma ou mais suposições,
preconceitos, complexos ou crenças inquestionáveis e inabaláveis — e são esses, e não a racionalidade peculiar, que
formam a fonte patogênica da ilusão.
Assim, um paciente paranóico oferece um exemplo impressionante de certas características presentes no neurótico e
no normal, embora talvez de forma menos óbvia. Certa vez, Herbert Spencer foi confrontado por um paciente de um
asilo que o ouviu falar a um grupo de internos convalescentes. O homem estava perturbado por um riso maníaco e,
quando Spencer enfim o acalmou e o persuadiu a revelar o objeto de sua alegria, o paciente comentou
inteligentemente: "Pensar em mim aqui dentro e em você lá fora!" A distinção entre o interno e o externo é
certamente arbitrária em alguns aspectos, especialmente quando a competência lógica é considerada um fator de
risco. O paranóico sofre o julgamento ilusório de que ele é Napoleão, seja qual for o complexo histórico biográfico
dessa ilusão. Esse julgamento funciona logicamente como a premissa de um sistema dedutivo ou como a suposição
que deve ser feita em uma argumentação e, dentro dos limites definidos pela aceitação desse julgamento como
verdadeiro, o paranóico é capaz de derivar consequências racionais que são consistentes com ele, sendo que todo o
conjunto de proposições, julgamentos ou crenças finalmente alcançado forma um sistema ordenado e coerente. Ele é
classificado como um caso de insanidade porque não tem "insight" sobre suas suposições ou crenças ilusórias, e a
sociedade o interna em um asilo porque ele pode ser perigoso se não for apenas um dialético iludido, mas também
um pragmático iludido, e agir de acordo com seus julgamentos.
No entanto, muitos dos que não estão tão comprometidos, os meramente neuróticos e os convencionalmente
normais, são dialéticos pobres e pragmáticos perigosos no mesmo sentido que o indivíduo que sofre um delírio
sistematizado de grandeza, embora talvez em um grau menor. Julgada pelos padrões mais rigorosos da dialética, e
não pelos da sociedade e da psiquiatria, a falta de discernimento é tão predominante fora dos asilos quanto dentro
deles. De modo geral, os seres humanos são incapazes de avaliar as suposições sobre as quais raciocinam, os
preconceitos e as crenças inquestionáveis que racionalizam. O processo de racionalização, em si, não deve ser
deplorado. O raciocínio e a racionalização são idênticos no processo; a diferença, se houver alguma, é que o
raciocínio é auto-crítico. Ele reconhece explicitamente que suas fontes são arbitrárias; admite suas origens
irracionais, quaisquer que sejam as proposições ou julgamentos que toma como certos, como verdadeiros ou, pelo
menos, como temporariamente não demonstráveis. A racionalização, por outro lado, tanto em suas manifestações
patológicas quanto normais, geralmente oculta os preconceitos e suposições que tenta tornar razoáveis; ela não
admite que se baseia em proposições aceitas irracionalmente e acreditadas arbitrariamente; ela não poderia cumprir
sua função patológica na personalidade perturbada, se fosse auto-crítica. Por outro lado, o indivíduo que fosse
totalmente auto-crítico, que possuísse discernimento, não seria patológico e, não tendo necessidade de
racionalização, seria capaz de raciocinar. Lembre-se de que a racionalização e o raciocínio são idênticos em todos os
aspectos, exceto no que diz respeito a suas fontes ou fundamentos. O discernimento, ou a capacidade de auto-crítica,
é a característica diferenciadora da razão.
Se essas semelhanças essenciais entre o insano, o neurótico e o normal forem aceitas, talvez agora seja possível
descobrir as causas psicológicas daquilo que é chamado de delírios no primeiro caso, de personalidade neurótica no
segundo e de incapacidade de dialética no terceiro. A boa inteligência, a capacidade de raciocinar e a tendência a ser
racional são traços presentes em todos os três; é o defeito em comum de insight que protege a fonte patogênica do
delírio, converte os sintomas do neurótico em razões e torna a pessoa normal dogmática na discussão, em vez de
dialética.
A introdução da auto-crítica parece ser a medida terapêutica fundamental em todos os três casos. Se a característica
distintiva das psicoses é a perda total do insight, é questionável se essa terapia pode ser aplicada à insanidade
avançada. Esse dispositivo terapêutico, entretanto, foi extraordinariamente desenvolvido como a técnica da
psicanálise no tratamento das neuroses e como o método da geometria no campo da razão. A consideração da
psicanálise e da geometria pode levar, por um lado, a uma análise dos fatores temperamentais da personalidade que
obscurecem o insight e, por outro lado, à formulação de uma disciplina da dialética.
A psicanálise pode ser considerada como a técnica de se tornar altamente auto-consciente. Seu ideal terapêutico
pode ser formulado na máxima grega "Conhece-te a ti mesmo", cujo equivalente geométrico seria a regra de
conhecer e declarar explicitamente as próprias premissas. Um sistema geométrico conhece a si mesmo no ato de
declarar explicitamente suas definições, postulados e regras de procedimento. Mas a psicanálise como método é, em
um aspecto, ainda mais pertinente ao problema dialético do que a geometria, pois ela é uma técnica de auto-crítica
por meio da tradução.
Em uma declaração muito geral de uma síndrome típica, o paciente neurótico apresenta o quadro clínico de um
grupo de sintomas, como fadiga excessiva, ansiedades, temores estranhos, impulsões ou obsessões persistentes e, em
casos de histeria de transformação, certas doenças orgânicas que não têm base orgânica alguma e, portanto, são
consideradas neuróticas ou funcionais. As neuroses, em geral, são chamadas de doenças funcionais porque seus
sintomas não têm base suficiente em patologia orgânica ou lesões teciduais. Os sintomas, portanto, são considerados
como expressão de um distúrbio funcional; o fato de seu locus ser primariamente neurológico ou psíquico é, no
momento, indiferente. O objetivo da psicanálise é interpretar o valor expressivo preciso dos sintomas em cada caso.
A teoria, ou pelo menos uma teoria, do método psicanalítico pode ser resumida da seguinte maneira: Devido a
circunstâncias que surgem no ambiente ou na própria personalidade, a libido, ou alguma parte dela, é reprimida. Os
desejos, vontades ou impulsos e todas as idéias e hábitos associados a eles, que são assim impedidos de uma
integração normal na personalidade e da livre exaustão de suas energias, não são aniquilados pela repressão, mas
apenas impedidos. Eles formam um reservatório de energias latentes na personalidade; idéias, hábitos, impulsos com
um tom emocional unificador que se constelam como uma porção dissociada ou dividida da personalidade. Esse é o
complexo reprimido, e a tendência dessa energia reprimida é se esgotar de alguma maneira. Contudo, os hábitos
linguísticos comuns do indivíduo estão sob o controle da maior parte da personalidade e são dominados pelo censor
que foi o agente do ato original de repressão. Assim, o indivíduo é impedido de reconhecer para si mesmo,
conscientemente ou por meio de seus hábitos regulares de expressão, seus hábitos de linguagem, a existência do
complexo reprimido[18]. Em sua tendência à exaustão, o complexo reprimido de energias deve, portanto, escolher
outros meios de expressão. Os sintomas neuróticos formam um grupo de tais dispositivos expressivos, cujo conteúdo
simbólico o próprio paciente não consegue compreender, porque são capazes de interpretação adequada apenas em
termos de sua fonte, que é uma parte da personalidade que o paciente dissociou completamente de si mesmo e contra
a qual ergueu as altas barreiras da repressão. O sonho é um sintoma neurótico familiar nesse sentido, com um
conteúdo manifesto que é compreensível para a personalidade principal e um conteúdo latente que expressa a parte
reprimida e, portanto, é ininteligível para o indivíduo consciente que domina os hábitos comuns de interpretação da
linguagem.
A neurose existe, portanto, como uma condição de desintegração da personalidade devido à impossibilidade de
tradução entre duas linguagens metafóricas que as partes dissociadas da personalidade empregam: uma, a linguagem
verbal comum da personalidade consciente, em cujos termos a personalidade consciente é capaz de entender e
interpretar; a outra, a linguagem anormal e simbólica do eu inconsciente, uma linguagem cujos termos são os
sintomas que o paciente não consegue traduzir adequadamente para sua outra linguagem e, portanto, não consegue
interpretar ou entender. Nessa falta de entendimento ou percepção, nessa falta de comunicação entre duas partes da
personalidade total, nessa falta de tradução entre dois modos de metáfora que a personalidade foi forçada a usar,
consiste a incapacidade do indivíduo de entender a si próprio, a neurose do indivíduo. O método da psicanálise é
introduzir em tal personalidade o dispositivo terapêutico da auto-crítica por meio da tradução. Se a tradução for
realizada, o indivíduo compreende a si próprio, é capaz de funcionar de forma integrada, os sintomas desaparecem e
a neurose é curada. A psicanálise, em outras palavras, é uma dialética da personalidade neurótica, uma dialética da
alma que foi dividida em dois universos de discurso e que deve ser reunida pelo estabelecimento da tradução entre
eles.
A técnica da psicanálise é, como a dialética, um caso de conversação. O trocadilho segundo o qual a psicanálise é
uma conversa ad libido não é totalmente indigno; ele é significativo. Na verdade, porém, ela é ao mesmo tempo um
pouco mais e menos do que uma conversação comum, mais em sua sobrecarga emocional, menos na medida em que
é deliberadamente controlada pelo analista. O aspecto emocional é profundamente importante. O sucesso da análise
depende indispensavelmente da ocorrência daquilo que é chamado de transferência emocional do paciente para o
médico. Uma vez que essa transferência tenha sido feita, a conversação que ocorre dia após dia adquire nova força.
No decorrer dessa prolongada conversação, o paciente adquire uma percepção analítica de sua própria
personalidade, em parte em termos de sua identificação emocional com o analista e em parte em termos do novo
vocabulário, a nova linguagem que a análise coloca à sua disposição. Essa percepção analítica é equivalente a uma
coalescência gradual dos dois universos de discurso entre os quais a personalidade do paciente estava dividida. A
linguagem sintomática e simbólica do paciente é interpretada muito gradualmente, e quase imperceptivelmente, em
termos dos conceitos e metáforas que formam a substância teórica da psicologia psicanalítica. Os dois universos de
discurso díspares e antagônicos, cujo conflito causou a neurose, são assim unidos por serem ambos absorvidos pelo
universo psicanalítico de discurso, que, incluindo-os, efetua a tradução entre eles. A personalidade é supostamente
reformada e reunificada na proporção em que essa absorção e tradução ocorrem; e as energias do complexo
reprimido, que são reintegradas funcionalmente com as outras energias do organismo, encontram saídas normais
para a exaustão e os sintomas desaparecem.
O clímax terapêutico é equivalente à resolução de sistemas conflitantes em termos de um todo unificado que os
inclui. A resolução na psicanálise deve ser qualificada, como sempre deve ser, pelo conjunto de suposições e idéias
que definem o universo do discurso capaz de resolver os outros dois, e no qual sua doutrina se baseia. Nesse caso, é
claro, trata-se da teoria da psicanálise que é pressuposta, uma teoria cujos princípios geram um universo de discurso
e uma linguagem metafórica capaz de efetuar a tradução mútua entre os sistemas anteriormente disjuntivos[19].
Entretanto, não se trata apenas de uma questão de facilidade linguística. É possível que um indivíduo aprenda a
linguagem da psicanálise sem ser minimamente beneficiado terapeuticamente com isso. É o insight que, devido à
força da identificação emocional do paciente com o analista, dá às proposições assumidas da doutrina psicanalítica o
status de verdades aceitas. Nesse status, elas têm prioridade lógica e psicológica sobre as proposições e idéias dos
dois sistemas parciais conflitantes, que agora parecem ser conjuntos de meias-verdades complementares. Pela
tradução, elas se completam e, pela inclusão no novo sistema, são integradas e ordenadas. O insight analítico deve
ser realmente uma experiência emocional na qual as suposições da psicanálise recebem o valor de proposições
intuitivas, verdades imediatas cuja luz esclarece e resolve as sombras conflitantes da dificuldade neurótica.
Essa é, evidentemente, a descrição de um desempenho psicanalítico ideal. Há muitas circunstâncias que impedem
que qualquer situação concreta cumpra o ideal. A mais importante delas é a resistência que o paciente pode ter ou
desenvolver em relação à própria análise. A causa dessa resistência é idêntica em espécie à causa da repressão ou
conflito original e, a menos que essa resistência seja removida, a análise deve falhar porque, na ausência da
transferência emocional completa, o novo universo de discurso que a psicanálise introduz na conversação carece da
força intuitiva que a torna assim tão eficaz. O paciente pode adquirir a linguagem relevante para esse novo universo
de discurso, mas a menos que se identifique com o analista, ele não emprega as novas metáforas para entender a si
próprio tal como o analista o entende, e isso se torna uma aquisição meramente linguística. A resistência impede que
o paciente obtenha o insight que possibilitará a reinterpretação, assim como o conflito original, a repressão e a
dissociação causaram a perda do insight que tornou necessária a reinterpretação. Em outras palavras, se houver algo
que impeça a doutrina psicanalítica de ser assumida como verdadeira, ela não servirá ao seu propósito de resolver e
traduzir os sistemas parciais que ela poderia incluir.
A psicanálise pode falhar de uma outra maneira. O paciente pode adquirir o insight que reassocie as partes
desintegradas de sua personalidade; as manifestações simbólicas de seu eu inconsciente podem se tornar inteligíveis
para sua personalidade maior e consciente. O paciente pode ter o auto-conhecimento ou a compreensão de si próprio
e, ainda assim, os traços neuróticos de seu caráter, na medida em que aparecem em seus impulsos e qualificam suas
ações, podem não ser removidos. A compreensão pode ser alcançada e, ainda assim, não haver consequências
práticas. O fato de que isso possa ocorrer pode significar que a psicanálise é essencialmente um procedimento
dialético, e a resolução dialética, que equivale ao auto-conhecimento que conclui a análise, é inteiramente uma
questão de discurso, ou declarado psicologicamente, inteiramente uma questão de compreensão, e pode muito bem
não ter efeito na ação[20]. Se a psicanálise às vezes consegue uma alteração na conduta do paciente, bem como uma
síntese de sistemas parciais de expressão na personalidade do paciente, as duas realizações podem ser concomitantes
entre si sem estarem causalmente relacionadas. A técnica de conversação da psicanálise pode dar ao paciente insight
e entendimento; a experiência emocional da análise pode alterar sua conduta.
Deve ficar claro, a partir dessa breve exposição da psicanálise como algo análogo à dialética, que os fenômenos
psicológicos do entendimento não podem ser descritos em termos puramente intelectuais ou racionais. A perda do
insight acompanha a dissociação de elementos da personalidade causada por um distúrbio emocional grave, o
conflito de desejos ou forças sub-racionais semelhantes na personalidade. A obtenção de um novo insight depende
da identificação emocional do paciente com a personalidade integrada do analista e, por meio dessa identificação, da
aceitação intuitiva de um novo sistema de idéias que produz o insight.
A mesma descrição psicológica que foi aplicada ao papel do insight nas neuroses pode agora ser aplicada à relação
entre o insight e o dogmatismo nas conversas impessoais, nas controvérsias e disputas nas quais os chamados
indivíduos normais se envolvem. É uma observação comum que o mal-entendido está na base da controvérsia e que,
se o mal-entendido persistir, a controvérsia não poderá ser resolvida. Porém, em primeiro lugar, o que causa o mal-
entendido e o que explica os frequentes casos em que ele persiste? Quando duas pessoas não se entendem, elas são
incapazes de traduzir mutuamente suas opiniões. Essa separação entre as esferas do discurso por meio de barreiras
lógico-estanques é análoga à personalidade esquizóide que, a partir de então, precisa empregar duas linguagens
diferentes para se expressar. O mal-entendido e a dissociação podem persistir enquanto o conflito emocional
responsável por eles persistir. É a remoção, de alguma maneira, do conflito emocional que ocasiona o retorno do
insight. Isso, no caso do caráter neurótico, reúne os eus divididos no uso de uma única linguagem e, no caso de uma
discussão entre indivíduos, fornece a eles um universo comum de discurso.
Não é necessário, na presente discussão, oferecer uma descrição detalhada dos fatos psicológicos aqui sugeridos.
Eles podem ser encontrados na literatura sobre o assunto. A linha divisória entre a pessoa neurótica e a normal é
duvidosa: a mesma relação existe entre os processos emocionais e intelectuais na pessoa normal e na neurótica. Ela é
iluminada pela condição ligeiramente exagerada desta última. A psicologia normal, a psiquiatria e a psicanálise
concordam com relação à tese central de que as forças irracionais desempenham um papel crucial no
condicionamento da percepção, limitando a compreensão e determinando os usos que devem ser feitos da razão.
O dogmatismo no argumento ou na reflexão pode ser considerado, então, como um defeito de insight e, portanto,
pode ser visto como semelhante, em suas origens psicológicas, aos delírios dos insanos e às personalidades
fragmentadas que sofrem de distúrbios funcionais. O dogmatismo é uma atitude intelectual que não é auto-crítica;
ele tenta racionalizar suposições e pré-conceitos dos quais não tem consciência. Em argumentos e controvérsias, a
atitude dogmática deve resultar na persistência de mal-entendidos e desacordos. Os disputantes dogmáticos têm uma
visão limitada; incapazes de apreciar as fontes doutrinárias de qualquer um dos conjuntos de opiniões conflitantes,
não conseguem conceber e construir a doutrina que inclua as duas em oposição, a definitiva de um universo comum
de discurso no qual o entendimento possa prevalecer, a tradução ocorrer e algum acordo ser alcançado.
A analogia entre a condição neurótica e a atitude de dogmatismo pode ser levada um passo adiante. A psicanálise
desenvolveu o tratamento terapêutico das doenças funcionais; a neurose é removida ou melhorada pela aquisição do
insight analítico como resultado da terapia. Talvez, da mesma maneira, a dialética possa ser formulada como um
conjunto de regras para a eliminação do dogmatismo na argumentação. A análise psicológica que revelou os
obstáculos no caminho da prática humana da dialética pode agora ser usada para sugerir o que é comparável a uma
lógica normativa — uma disciplina da dialética. O dogmatismo pode ser fundamentalmente congênito à natureza
humana; ele pode estar enraizado em seu solo irracional. A tentativa de banir o dogmatismo das disputas não é a de
negar os fatores fundamentais que condicionam o pensamento de qualquer tipo e, particularmente, o pensamento
dialético; é, antes, a de levá-los em conta para elaborar um regime pelo qual possam ser disciplinados.
A geometria alcança a auto-crítica. As regras que governam a construção de sistemas geométricos exigem a
explicação completa da doutrina assumida para a demonstração das proposições do sistema. Talvez seja por isso que
Platão sugeriu o estudo da geometria no curso de tornar-se um dialético; e o fato biográfico de ele próprio ter sido
um geômetra dá peso à sugestão. O lógico matemático se aproxima do limite do partidarismo puramente intelectual.
Seria um tanto doutrinário tentar uma interpretação da preferência emocional pelos postulados Lobechevskianos em
vez dos Riemannianos. Os elementos arbitrários da estrutura racional da geometria não parecem ter sua origem em
tendências temperamentais ou em vicissitudes emocionais; eles são intelectuais, embora não sejam fatores
demonstráveis ou raciocinativos no sistema. Por essa mesma razão, não há problema de tradução entre os vários
sistemas de geometria. O insight racional que dá a qualquer conjunto de postulados seu status intuitivo, em um
determinado sistema, não se limita a esse sistema; ele reconhece qualquer propriedade possuída pelos conjuntos de
postulados de outros sistemas. Em outras palavras, o insight de um geômetra não se limita a um único sistema
geométrico; é, antes, uma compreensão da geometria em geral, um insight que define o universo geométrico do
discurso, incluindo todos os sistemas parciais. Com o uso de certas fórmulas de transformação e regras de
isomorfismo, a tradução pode ser estabelecida entre qualquer número de geometrias.
Se a prática humana da dialética, então, quiser escapar do dogmatismo, ela deve, como a geometria, não apenas
reconhecer as suposições particulares que geram uma atitude partidária na controvérsia, mas também deve ser capaz
de compreender que cada instância de partidarismo é gerada de modo semelhante. Em outras palavras, ela deve ter
uma visão da natureza geral do universo do discurso no qual ocorre a controvérsia intelectual. Essa percepção não
eliminaria o partidarismo indispensável à argumentação; ela simplesmente o complementaria com uma atitude de
imparcialidade. O discernimento do discurso em geral negaria a pretensão de qualquer universo parcial de discurso à
finalidade e afirmaria a possibilidade de inclusão de quaisquer dois universos parciais em um terceiro universo que
poderia resolver suas diferenças ou efetuar a tradução mútua entre eles, embora esse terceiro universo de discurso
seja ele próprio parcial e exija tratamento semelhante.
Entretanto, a prática humana da dialética não é exatamente diferente da prática da geometria, pois sofre a influência
de fatores temperamentais. A situação de argumentação e disputa entre os seres humanos na conversação e na
reflexão é muito mais parecida com a situação do conflito neurótico do que com a oposição de diversos sistemas
geométricos. Nesta última situação, há certamente um mínimo de ligação emocional nos processos intelectuais
envolvidos; qualquer pessoa capaz de ser um geômetra teria necessariamente uma percepção suficiente sobre
geometria para apreciar não apenas a estrutura de um único sistema, mas sua parcialidade que torna possível outros
sistemas divergentes. Mas nas neuroses há um conflito de sistemas partidários sem a percepção da natureza de sua
parcialidade e, portanto, sem a percepção de um sistema mais inclusivo sob o qual eles poderiam ser incluídos e por
meio do qual poderiam ser resolvidos. No entanto, a psicanálise envolve mais do que a descoberta de um novo
universo de discurso; a percepção que foi perdida por causa de uma crise emocional é recuperada não apenas por
meio da conversação, mas também, e talvez principalmente, por uma alteração de temperamento.
O psicanalista é capaz de enumerar as principais resistências emocionais que operam contra o insight analítico. Em
geral, elas são da mesma ordem de condições psicológicas que as crises emocionais e os conflitos patogênicos. O
fracasso da terapia está sempre no nível emocional, e não nos termos intelectuais do tratamento. O insight não pode
ser forçado em uma pessoa que emocionalmente não está disposta a recebê-lo; e a conversação racional, por si só, é
claramente impotente para operar essa mudança emocional. Em outras palavras, a psicanálise pode consistir em um
universo de discurso capaz de resolver todos os conflitos neuróticos em geral e em um método de tratamento
projetado para efetuar uma transformação emocional no paciente a fim de permitir a aceitação de um novo universo
de discurso e qualquer insight que ele possa produzir. O fracasso do método em qualquer caso específico é uma
circunstância acidental que não é relevante para a teoria do tratamento. O fato de a psicanálise nem sempre
funcionar não refuta a psicanálise; prova simplesmente que alguns indivíduos não podem ser psicanalisados.
A dialética, em sua função de disciplina para neutralizar as tendências ao dogmatismo que prevalecem nas
conversações humanas, está, de certa forma, na mesma situação da psicanálise. O universo inclusivo do discurso que
a dialética invoca como capaz de resolver controvérsias e disputas só é eficaz se os indivíduos envolvidos tiverem a
percepção dialética. Quaisquer que sejam os fatores temperamentais que levem ao dogmatismo, eles podem ser os
mesmos fatores que comporiam um conjunto de resistências emocionais à aquisição desse insight. A dialética pode
sugerir um método para remover essas resistências por meio da substituição de uma série de outras atitudes
emocionais por atitudes dialéticas em vez de dogmáticas. Essa disciplina pode ter sucesso ou fracassar em qualquer
caso individual; quando fracassa, é porque a transformação emocional não foi efetuada. O temperamento do
indivíduo pode ser incuravelmente dogmático e, assim, ser para sempre incapaz da percepção da dialética. Isso de
modo algum impugna a teoria da dialética, ou o método e a disciplina que essa teoria formula como procedimento
normativo; deve ser considerado simplesmente como um acidente inevitável no reino das diferenças individuais
fundamentais. Com isso claramente exposto, as poucas regras simples que o conhecimento empírico da situação
humana em que os homens discursam sugere podem agora ser apresentadas.
(I) A Exposição da Emoção. — Se o amor está inseparavelmente ligado à lógica, é melhor que ele seja confessado
do que clandestino. É humanamente impossível disputar e, ao mesmo tempo, ser neutro. Pelo contrário, a
participação em uma discussão exige que o indivíduo seja partidário, e esse partidarismo é interior e, portanto, deve
ser exterior, sendo uma questão do temperamento e do intelecto da pessoa. Royce escreveu certa vez sobre Hegel
que sua dialética era a lógica da paixão, o que significa que era a lógica do conflito. Por outro lado, o conflito
raramente é um assunto exclusivo da razão. Quanto mais delicada for a sensibilidade emocional de um indivíduo,
quanto mais apaixonado ele for, mais intensamente ele sentirá as diferenças envolvidas em qualquer assunto. A
vitalidade da polêmica depende, como William James tão bem percebeu e disse tão claramente, da vitalidade de suas
opções e da urgência da necessidade de se exercer a disposição de acreditar ou, em outras palavras, o partidarismo
intelectual em relação a elas.
Pode ser difícil, pode ser impossível, para os seres humanos obterem esclarecimento emocional na argumentação.
Talvez só depois da psicanálise, e talvez nem mesmo depois disso, os indivíduos consigam discernir e confessar o
que é irracional e desordenado em seu discurso. Contudo, pelo menos um passo é dado em direção à disciplina da
argumentação se os participantes da disputa suspeitarem da possibilidade de motivação emocional e tendência
temperamental. E se, além disso, for cultivado o hábito da auto-análise, de exibir o próprio amor junto com a
exposição da própria lógica, o argumento se purifica e a dialética se torna possível. A argumentação permanece
confusa e a dialética é impedida enquanto todas as considerações pertinentes não forem explicadas. Portanto, se o
temperamento em suas preferências e aversões submersas e profundas for relevante para a controvérsia, e na medida
em que for, a exposição dessas forças melhora a qualidade dialética da controvérsia. Uma vez francamente expostos,
os fatores emocionais são privados de qualquer função lógica ambígua no argumento; eles não são razões e não
devem ser tratados como tal. Eles são, ao contrário, como postulados, a fonte de razões e, como postulados, devem
ser admitidos para que o processo resultante seja o raciocínio a partir de bases conhecidas, e não a racionalização de
um viés oculto ou de uma premissa implícita.
(II) Postulação Explícita. — A argumentação deve ser auto-crítica tanto no nível intelectual quanto no emocional.
"A grande contribuição de Platão para a discussão", escreveu recentemente John Dewey, "aquela que ele toma
emprestado da geometria e se orgulha em contribuir para a filosofia, é que todas as premissas são hipóteses,
definindo problemas, e que o valor da conclusão consiste em sua explicação do significado das premissas". Platão
pode ter aprendido muito dos métodos geométricos com Pitágoras; pode ter tomado emprestado o método de
empregar premissas como hipóteses; mas ele reconhecia plenamente que não precisava se tornar um geômetra para
fazer isso. O princípio de tornar as suposições de alguém aparentes foi adotado por ele como um princípio geral de
uma boa discussão e, com sua profunda sensibilidade para as qualidades do discurso, ele percebeu a importância
dessa regra.
Qualquer instância de raciocínio consecutivo, qualquer tentativa de demonstração e prova, qualquer pleito
controverso envolve definições e afirmações que não podem ser racionalmente fundamentadas ou demonstradas
dentro dos limites da instância em questão. Essas proposições são postuladas, são exigidas para fins de
demonstração. Como postulados, elas não precisam ser demonstradas, pois são consideradas como se fossem
verdadeiras; elas têm o status de proposições intuitivas.
Essas proposições intuitivas constituem o insight de um indivíduo em seu próprio argumento. É a incapacidade de
detectar e expressar essa percepção explicitamente que impede o disputante individual de reconhecer os
fundamentos de seu próprio pensamento e, ao mesmo tempo, de perceber as fontes das afirmações de seu oponente.
É essa limitação do insight que causa o mal-entendido ou a falta de entendimento que cria e persiste em tantas
controvérsias e que deve ser removida para que o processo dialético de tradução e resolução possa ocorrer. A regra
da postulação explícita elimina essa condição; e quaisquer que sejam os obstáculos que existam na natureza humana
para suas exigências, seja a inércia intelectual ou a confusão emocional, esse é um princípio que parece ser
obrigatório para a argumentação, se quiser evitar a futilidade e a insignificância.
A detecção dos postulados precede, em alguns casos, sua declaração explícita. Não há uma regra determinada para a
detecção de postulados; trata-se de um processo que expressa a percepção racional de um indivíduo. É provável que,
quando os postulados não são completamente revelados, a falta de clareza possa ter uma origem temperamental. Por
esse motivo, a primeira e a segunda regras estão intimamente relacionadas entre si. Ambas são regras para o
estabelecimento do insight, mas uma tenta regular as fases emocionais e a outra as fases intelectuais do processo.
(III) A Atitude de Imparcialidade[21]. — A imparcialidade é consequência de um partidarismo esclarecido. Se um
indivíduo é capaz de apreciar o contexto irracional no qual seu próprio pensamento ocorre e reconhecer
explicitamente as suposições das quais seu pensamento deriva, seu partidarismo se torna auto-crítico; se ele estende
ao seu oponente a cortesia intelectual dos mesmos privilégios que ele mesmo considerou necessários, seu
partidarismo é qualificado pela imparcialidade. A atitude proposta não é a de se ignorar as diferenças relativas na
cogência das razões ou de se abandonar a crítica racional. Recomenda-se simplesmente que a presença de fatores
arbitrários no discurso seja enfrentada pela imparcialidade em relação aos derivados justificados desses fatores. Em
outras palavras, se um acordo encerra uma controvérsia, as conclusões não devem ser vistas como finais, mas como
inteiramente relativas ao universo do discurso por meio do qual a resolução foi alcançada. Esse universo de discurso
não está isento de suas proposições intuitivas, mas, embora o insight que ele produz possa ter unido os insights
parciais conflitantes, ele é, em si, parcial. Se, por outro lado, o desacordo for esclarecido em vez de resolvido, os
insights parciais persistirão em conflito porque, devido a uma circunstância ou outra, não houve tradução e síntese.
Em ambos os casos, a conclusão ou as conclusões são parciais, pois são relativas a suas origens arbitrárias,
percepções especiais e postulados selecionados. Portanto, em relação a qualquer conclusão de controvérsia ou
argumento, a atitude de imparcialidade deve ser mantida.
A sugestão da inseparabilidade do espírito partidário e da atitude de imparcialidade pode parecer um paradoxo
psicológico. A dificuldade óbvia dessa sugestão é admitida; os dois estados de espírito são um tanto incongruentes,
mas estão relacionados como as fases ativa e passiva do mesmo evento. A participação ativa na argumentação é
necessariamente partidária, e pode ser possível adotar a atitude de imparcialidade em relação à rede de oposições e
contradições intelectuais apenas em uma consideração retrospectiva, como uma cláusula de qualificação para
qualquer conclusão. Em alguns indivíduos que habitualmente têm o temperamento dialético, é até possível que,
durante todo o curso do pensamento controverso, os acentos do partidarismo e da imparcialidade possam constituir
seu ritmo, como se um coro grego acompanhasse toda a ação dos antagonistas pela repetição da injunção lógica de
que qualquer proposição afirmada pode ou não ser assim, de acordo com a aceitação ou rejeição das intuições nas
quais ela se baseia[22].
As atitudes correlativas de antagonismo e distanciamento são exemplificadas de forma impressionante nas
personalidades de duas figuras contemporâneas. Suas vidas, passadas por um tempo na mesma comunidade,
apresentam a discussão entre eles, embora seus escritos, em sua maior parte, quase não se toquem. No relato de
alguém que conheceu os dois, diz-se que a principal qualidade de George Santayana é o desapego, enquanto em
William James prevalece "não o desapego, mas o apego". Santayana, assim como Espinosa, tentando disciplinar o
espírito à luz da razão, deve "libertá-lo do contágio irracional das idolatrias locais e dos impulsos tribais". O filósofo
deve até mesmo transcender a controvérsia de seus companheiros para discernir seu significado. Santayana
proclamou o princípio de sua aposentadoria em sua própria observação de que "no éter não há ventos de doutrina"
[23]
. Nessa extensão serena, uma mente poderia habitar sem ser movida por correntes de opinião e livre para
testemunhar sua dispersão na atmosfera abaixo. O filósofo, para modificar o antigo gracejo, deve ter a cabeça acima
das nuvens, não dentro delas.
Em William James, o poder de apreciação vívida era grande, ao passo que, em contraste, o dom temperamental de
Santayana era o distanciamento quase alienígena. James empenhava sua mente na compreensão de toda doutrina
partidária que se apresentava e quase sempre conseguia captar "o centro de sua visão". O fato de que "sua mente era
maior do que qualquer sistema conhecido" pode ser dito com justiça sobre James, pois ele se dedicava
principalmente a iluminar a trajetória de sistemas em conflito, por meio de simpatia imaginativa e percepção
acolhedora. Para ele, a filosofia significava a presença de uma oposição espiritual real, e ele sempre insistia em
critérios para distinguir a controvérsia genuína do argumento sem significado ou consequência. Sua liberalidade e
mente franca muitas vezes resultaram em ambiguidade lógica e raciocínio inconsistente, mas as raízes primitivas do
partidarismo em qualquer questão nunca permaneceram opacas para ele. O apreço que James tinha por seus
oponentes era provavelmente a projeção de uma rica percepção de seu próprio e profundo partidarismo, assim como
a compreensão simpática de Santayana por outras mentes é limitada àqueles que, como ele, se exercitam na
contemplação e não na controvérsia.
Uma maneira de ver o contraste entre esses dois homens é em termos de uma interpretação dramática. James era
realmente partidário apenas de sua própria filosofia; quando ele alcança uma gama mais ampla de partidarismo,
trata-se de uma conquista dramática, a assunção de um papel. Santayana também assume um papel, a atitude de
desapego; ele é dramaticamente desapegado de todos os pontos de vista, exceto, e isso pode ser injusto, exceto a
filosofia que é a sua própria. O fato de ser assim não diminui de modo algum a diferença essencial das qualidades de
desapego e partidarismo nos escritos e temperamentos desses dois homens. Cada um deles captou e enfatizou um
estado de espírito da situação dramática da dialética, James, o espírito combativo e ativo do movimento do
pensamento, e Santayana, a serenidade do intelecto na contemplação do pensamento humano quando se está de
alguma maneira afastado dele. Ambos os estados de espírito são necessários para a dialética, embora possam estar
separados temporalmente, um motivando o argumento, o outro retrospectivo. James estava conduzindo a
controvérsia; Santayana está, talvez, analisando-a. Somente um dramaturgo, como Platão, pode combinar
adequadamente os dois.
O exercício da imaginação intelectual é, portanto, visto, no caso de James, como tendo lhe proporcionado uma
percepção de diversas doutrinas diferentes da sua, e nessa capacidade de ser partidário de várias formas, James
alcançou, pelo menos dramaticamente, a liberalidade intelectual. Se o distanciamento de Santayana, por outro lado,
deve ser complementado por uma apreciação simpática da controvérsia, a imaginação intelectual deve ser evocada
para interpretar as percepções parciais conflitantes. É na representação dramática da dialética, tal como a discussão
posterior apontará, que o partidarismo e a imparcialidade se qualificam adequadamente, e essa construção dramática
da situação humana na qual a dialética pode ocorrer é essencialmente um trabalho da imaginação.
(IV) A Atitude de Impraticalidade. — Quaisquer que sejam as dificuldades enfrentadas pela dialética em sua
ocorrência efetiva que não tenham sido consideradas pelos três princípios anteriores desse regime normativo do
pensamento controverso, elas podem ser reguladas por este quarto princípio. A regra de que o argumento deve ser
considerado com total impraticalidade pode, de fato, atingir a própria fonte da dificuldade. É concebível que a
resistência dos seres humanos ao esclarecimento emocional, à postulação explícita e à liberalidade intelectual surja
da maneira séria com que eles se envolvem em controvérsias. Se alguma vez eles considerassem a argumentação
como totalmente separada do mundo da ação, o domínio dos assuntos no qual as consequências práticas são
importantes, eles poderiam descobrir que o livre exercício da imaginação intelectual está ao seu alcance. Se a
argumentação for considerada um assunto puramente intelectual, a resistência à exposição dos determinantes
emocionais é removida porque a tendência temperamental destina-se principalmente às crenças com importância
prática e, ademais, porque a regra da postulação explícita e a atitude de imparcialidade indicam que a dialética não
está preocupada com crenças genuínas. A crença é um incidente na vida prática. No reino da teoria, no universo do
discurso, as proposições podem ser afirmadas como verdadeiras, seja por serem postuladas ou demonstradas, mas
elas nunca são consideradas verdadeiras em qualquer outro sentido. Somente a crença em proposições como
verdadeiras por causa de determinações reais ou factuais constituiria crença produtiva de ação específica no domínio
dos fatos. Na medida em que os fatores emocionais na argumentação estão concentrados em crenças de ordem
prática, e não de ordem teórica, a atitude de impraticalidade priva-os de sua força, e quando a argumentação se torna
um assunto puramente intelectual, a declaração explícita de suposições e o uso da imaginação para alcançar uma
visão imparcial tornam-se mais facilmente reguladores de seu curso.
A afirmação de que a controvérsia ou a dialética não devem ser levadas a sério foi melhor formulada em termos de
tragédia e comédia[24]. Ela não deve ser considerada trágica se a tragédia for entendida como a atribuição do status
de atualidade ao que é meramente possível. O espírito cômico, por outro lado, reside na percepção da referência das
idéias ao reino da possibilidade. A atitude de impraticalidade na dialética é o pressuposto do espírito cômico assim
definido, o que pode ser chamado de senso de humor filosófico. O universo do discurso se torna o reino da
possibilidade, e a vida da dialética nesse reino deve, portanto, ser vista com o espírito elevado da comédia. Na
medida em que o universo do discurso pode ser interpretado sem referência à atualidade — se isso é ou não
absolutamente assim, ainda não se determinou — a dialética escapa da tragédia; e é completamente inconsonante
com sua natureza levá-la a sério no sentido trágico de vê-la à luz da atualidade.
Um paralelo esclarecedor pode ser traçado entre a tragédia grega e o caráter dramático da dialética. O herói trágico
que segue seu orgulho (hubris) até a inevitável calamidade do desenlace fatal é como o dialético que segue uma
idéia implacavelmente até o ponto do desastre lógico — inconclusividade, relatividade discursiva. Em nenhum dos
casos há a moderação humana, a humildade adequada. A desgraça trágica parece ser inerente à natureza da própria
atividade. Mas há o deus ex machina da tragédia grega, e há o novo começo na atividade dialética que é bom no
exato momento da frustração. Pois não importa como um argumento ou controvérsia termine, a conclusão, se
entendida imparcialmente, gera mais atividade dialética. Se esse evento for tomado de forma não-prática, não haverá
frustração. Somente se alguém espera uma questão prática é que a inconclusão intrínseca do processo dialético é
uma frustração. Para a maioria dos seres humanos, portanto, a tragédia essencial não é amenizada dessa maneira. É
preciso ter o temperamento dialético e o senso de humor que lhe é próprio para ser capaz de rir da aparente tragédia
do pensamento.
O drama dialético pode ser encarado como uma comédia pelo indivíduo cuja imparcialidade intelectual e cuja
atitude de impraticalidade permitem que ele entre na argumentação como um assunto teórico cujo significado está
exclusivamente no reino da possibilidade. A inconclusão e a inconsequência do argumento tornam-se, então, a
realização do processo dialético, e não sua frustração.
A seriedade sem alívio com que a mente prática empreende a tarefa de pensar é, por si só, mais trágica do que a
percepção de que o jogo do pensamento é interminável e praticamente fútil[25]. Ela contempla o espetáculo da
dialética e não sorri. Platão sorriu; e talvez Espinosa tenha sorrido, um pouco tristemente. Uma visão ligeiramente
superior é suficientemente elevada para provocar o sorriso que é um gesto de imparcialidade e de liberdade em
relação às exigências da prática. A mente que foi adequadamente temperada por essas atitudes é capaz de vivenciar a
tragédia aparente por ser completa e implacavelmente dialética, e também de se afastar dela, ilesa, intocada, apenas
sorrindo. Em sua imparcialidade diante de todas as idéias, em sua liberdade em relação ao que é realmente uma
defesa especial, em sua capacidade de acolher qualquer noção, seja ela verdadeira ou crível, essa mente desfruta do
insight dialético que torna a controvérsia e a reflexão atividades sãs, e tem aqueles momentos de riso tranquilo que
os tornam o que Platão chamava de "querido deleite".
(4)
As quatro regras que foram enunciadas não formulam a técnica da dialética. Em vez disso, elas constituem sua
etiqueta. Elas não têm a intenção de descrever a dialética, mas de definir a forma de boas maneiras intelectuais pelas
quais a conversação humana deve ser governada se quiser se tornar dialética. As atitudes e os dispositivos prescritos
não criam a dialética, mas a tornam possível. Elas podem ser consideradas como a disciplina intelectual que a
dialética exige de seus devotos.
Não se sugere aqui que qualquer argumento atual seja regido por esse conjunto de princípios reguladores. Nenhum
processo atual é controlado dessa maneira pela formulação normativa de seu procedimento adequado. Uma lógica
normativa não oferece uma fórmula ou um padrão abstrato no qual qualquer caso atual de pensamento encaixe suas
variáveis. A lógica é normativa se funcionar como um controle sobre o erro e a má conduta no pensamento; suas leis
de pensamento são as regras para a detecção e correção de falhas e dificuldades em qualquer amostra atual de
reflexão; elas não procuram impor sua forma generalizada sobre a variedade de modos em que o pensamento como
evento psicológico pode ocorrer.
A análise psicológica revela fontes de dificuldade e confusão na controvérsia, impedimentos para o estabelecimento
do padrão formal da dialética e para a realização de seus objetivos metodológicos. Como metodologia da
controvérsia, a dialética deve, portanto, formular uma disciplina normativa com relação aos fatores psicológicos que
determinam a situação humana da controvérsia, bem como uma teoria dos fatores lógicos que determinam sua
estrutura abstrata. As regras que compõem essa disciplina servem, não como um conjunto de direções para o
procedimento controverso, mas como um conjunto de medidas corretivas às quais as dificuldades psicológicas que
provavelmente surgirão na tentativa de alcançar a forma dialética podem ser referidas. Para cumprir essa função,
essas regras devem ser relevantes, por um lado, para as condições psicológicas da dialética e, por outro lado, para
sua natureza abstrata. Em geral, essa dupla relevância é obtida nas quatro regras mencionadas; e a descrição lógica
da dialética que se seguirá indicará a harmonia dos aspectos regulativos e constitutivos da metodologia.
A análise da natureza humana pode sugerir a disciplina que deve ser imposta a ela para que seja capaz de adotar
boas maneiras na conversação e na controvérsia; mas o fato de essas convenções serem boas maneiras só pode ser
determinado por referência a uma concepção ideal do que a conversação e a controvérsia deveriam ser. Essa
concepção ideal será apresentada como uma descrição lógica da dialética. Se a controvérsia quiser ser dialética, ela
deve realizar os valores dessa forma. A dupla referência de uma disciplina normativa a fatores psicológicos e às
considerações abstratas da lógica formal pode ser ilustrada no caso da quarta regra enumerada, a atitude de
impraticalidade. Por um lado, ela implica que, se o procedimento da dialética é irrelevante para a determinação dos
fatos, então a dialética não tem utilidade prática quando a utilidade é concebida como valores consequentes no
domínio da ação. Por outro lado, isso implica que se a natureza humana é fortemente motivada por considerações
práticas, pelas urgências do ajuste prático, então essas tendências na natureza humana são incompatíveis com a
busca da dialética. É importante observar que, em ambos os casos, as implicações são afirmadas, e não as cláusulas
das implicações. Essas duas implicações estão unidas em uma terceira afirmação que declara que se a conversação e
a disputa humanas devem possuir uma certa forma, então as condições sob as quais essa posse pode ocorrer devem
ser determinadas pelo caráter lógico da forma e pelos fatores psicológicos da discussão humana. Se, então, a
praticalidade é um fator psicológico e a irrelevância factual é um aspecto lógico da dialética formal, a regra que
prescreve a atitude de impraticalidade declara uma das condições pré-requisito para que a controvérsia humana se
torne dialética. Uma interpretação semelhante do tipo "se-então" poderia ser dada para cada uma das outras regras,
revelando sua função de ligação entre a psicologia e a lógica. Não é uma relação abstrata entre a psicologia e a
lógica que está sendo indicada, mas sua co-determinação específica da conversa atual, na medida em que ela é
conduzida por seres humanos que podem tentar impor a ela a forma de dialética. Seria melhor dizer que os seres
humanos podem procurar desenvolver a forma dialética que é inerente ao seu pensamento polêmico. A dialética não
foi descoberta em sua natureza abstrata, embora uma descrição lógica possa exibi-la dessa maneira; seus traços
foram descobertos por uma análise das metodologias tradicionais de pensamento e por um exame de espécimes da
discussão humana. Em outras palavras, os aspectos lógicos da controvérsia são tão naturais a ela quanto os fatores
psicológicos que podem influenciá-la. O significado dessas regras pode ser interpretado desta forma: elas enfatizam
a disciplina dos fatores psicológicos a fim de remover qualquer impedimento que eles possam apresentar para a
explicação clara das características dialéticas que são inerentes à conversação e que foram descobertas.
Uma analogia, assim como um mito, é um excelente dispositivo para unificar uma exposição que tenha feito várias
excursões. Há uma diferença óbvia entre luta e esgrima; e é para a diferença análoga entre disputa e dialética que
estamos apelando aqui. A luta, em suas muitas formas de luta bruta, é mais primitiva e mais universal do que o
encontro educado com armas. A esgrima é, de certa forma, a civilização da luta. Ela é diferente da luta tanto em
relação ao seu objetivo quanto à sua maneira. Na esgrima, não se busca aniquilar o oponente por quaisquer métodos
que sejam justos na guerra, mas sim vencer o oponente de acordo com as regras específicas que regem a competição.
A luta em geral é qualificada como boa quando alguém vence; mas no refinamento da luta exemplificado pela
esgrima, a qualidade da bondade reside não no fato de que a vítima e o vencedor são distinguidos, mas mais
propriamente na execução formal de feitos de habilidade. E em todas as formas de combate que são governadas por
regras, o jogo olímpico, a corrida de carruagens, a batalha de cavaleiros, o duelo, o jiu-Jitsu e a dialética, que pode
ser acrescentada aqui como o refinamento da disputa deseducada — em todos eles, o desempenho dos competidores
geralmente se aproxima do limite de sua bondade à medida que a competição se torna cada vez mais indecisiva.
Nessa analogia, a dialética e a esgrima surgem das mesmas forças psicológicas primitivas que a disputa e a luta, mas
sua diferença, como de fato sua excelência especial, é que seu objetivo foi modificado e sua ocorrência regulada por
uma etiqueta. Ademais, os fatores que fazem com que os homens lutem podem ser dificuldades no caminho da
esgrima, em vez de ajudas. Uma pessoa totalmente belicosa e combativa não é necessariamente um excelente
esgrimista ou um bom combatente em qualquer competição em que a técnica prevaleça, e não a força. A má forma
em feitos de habilidade é geralmente o resultado de muita força. Para se submeter a qualquer tipo de regra, é preciso
moderação. Não que a esgrima pudesse continuar de forma persuasiva sem os ingredientes emocionais do encontro
pugnaz, a cautela, o medo, a raiva, o impulso retaliatório. Mas a competição com floretes se tornaria uma briga ou
um massacre se uma ou outra dessas forças emocionais ficasse desregulada e privasse qualquer um dos
competidores da postura necessária para a arte do floretista. A postura em qualquer desempenho desse tipo é uma
atitude, assumida deliberadamente ou por hábito e adquirida de acordo com as especificações. A dialética depende
da postura, do cultivo de certas atitudes, assim como o duelo, se quiser se diferenciar em objetivo e excelência da
disputa comum. Nesse aspecto, ela é uma arte, um conjunto de maneiras, que torna a controvérsia graciosa e
competente, imbuindo-a de um certo equilíbrio de temperamento. A dialética não pode continuar sem esse equilíbrio
de temperamento, da mesma forma que, por estar fundamentada na natureza humana, não pode prescindir do próprio
temperamento. Esse equilíbrio pode ser obtido melhor quando a dialética é concebida dramaticamente. Em uma
conversa representada dramaticamente, a dialética, tornada auto-consciente, teria o equilíbrio necessário para sua
execução artística. Em tal encenação, ela teria a qualidade de equilíbrio que a visão de uma eventual imparcialidade
infundiria até mesmo em um partidarismo momentâneo. A excelência formal na conversação ocorreria quando ela
fosse completamente disciplinada na arte da dialética e, assim como o duelo perfeito pode ser melhor representado
em um palco, essa disciplina perfeita pode ser exibida de forma mais adequada, não na conversação atual, mas em
uma representação dramática dela.
Essas representações podem ser artificiais, no sentido em que o jogo de espadas em Hamlet o é, mas ainda assim são
essencialmente dialéticas, tanto quanto a encenação do jogo de espadas é essencialmente um duelo. Nos diálogos de
Platão, por exemplo, são observadas todas as condições e efeitos da controvérsia atual. A variedade de opiniões, o
antagonismo de premissas e definições e as consequências dessa oposição — o processo dialético em todos os
detalhes e elementos é criado exatamente como poderia ocorrer em qualquer seção transversal dos assuntos
intelectuais humanos, caso fossem devidamente disciplinados. O drama que Platão cria não é imaginação livre de
sua parte; é mais um relatório e uma crítica dos eventos relatados. O leitor é persuadido de que há uma discussão em
andamento e, certamente, na medida em que o leitor está envolvido na oposição de opiniões, a discussão assim
dramatizada é tão genuinamente dialética quanto as discussões que o próprio Platão muito provavelmente teve no
curso de sua vida diária. Os diálogos de Platão[26], em outras palavras, são uma espécie de destilação da dialética,
uma destilação em retrospecto, revisando e relatando eventos ocorridos. Isso provavelmente explica o equilíbrio e a
indecisão final que o argumento tem quando é representado dramaticamente na forma de dialética. Essas qualidades
não são produtos de um artifício dramático; o equilíbrio e a inconclusão devem ser observados em qualquer processo
dialético quando ele é visto com imparcialidade. É nesse sentido que Platão, como dramaturgo, reúne melhor o
partidarismo e o desapego que compõem a dialética do que James e Santayana sozinhos, quando são considerados
homens "reais" em vez de atores em uma peça de pensamento.
O jogo do pensamento! Na medida em que o pensamento é dialético, ele é lúdico no sentido de um jogo levado no
espírito cômico e que serve a fins pouco práticos. Talvez todo pensamento seja lúdico nesse sentido, mas a dialética
certamente o é, governada como é pelas atitudes e valores que foram atribuídos ao seu regime. Trata-se de um jogo
no qual todos os seres humanos capazes de uma conversação inteligente e de certos refinamentos temperamentais
podem se envolver, embora talvez sua ocorrência mais ideal seja no solilóquio, a conversação que o indivíduo
mantém consigo mesmo. A dificuldade para encontrar outras mentes com as quais seja agradável conversar, cuja
linguagem de pensamento seja suficientemente parecida com a nossa, que sejam igualmente receptivas a certas
regras de etiqueta intelectual e capazes do equilíbrio necessário para se adequar a elas, pode assim ser evitada. Por
outro lado, pode haver uma homogeneidade emocional muito grande em uma única pessoa, e o poder gerador de
percepções divergentes e opiniões partidárias se perderia no solilóquio. Uma única mente, entretanto, poderia criar
uma representação dramática do passado dialético. Isso exigiria o exercício da imaginação intelectual; implicaria a
ressuscitação vívida dos oponentes na controvérsia histórica e a apresentação dessa oposição sem solução final —
em outras palavras, a manutenção da imparcialidade e da inconclusão dialéticas. Esse seria o artifício da dialética, e
não a arte dela, que é o conjunto de regras para a realização de uma argumentação atual. É bom fazer essa distinção,
uma distinção análoga àquela entre a criação teatral de um evento e o evento que ocorre naturalmente. A ilusão do
teatro se baseia na identidade formal do evento fora e dentro do palco. O mesmo acontece com a dialética; quer ela
esteja sendo vivenciada dramaticamente ou atualmente, quer alguém a possua em reflexão solitária ou se envolva
nela conversando com outras mentes, ela deve, no entanto, ser dialética em essência, em forma distinta.
As quatro regras que foram enumeradas e discutidas constituem a disciplina pela qual a conversação humana se
torna capaz de dialética. Elas podem descrever algo da maneira pela qual a disputa deve ser conduzida, assim como
as regras de esgrima ou boxe descrevem algo da natureza das competições que elas regulam. Por meio dessas regras,
a luta pode se tornar esgrima e a disputa, dialética. Mas essas regras não descrevem o padrão formal ao qual elas se
referem, a situação empírica que elas buscam regular. A dialética deve agora ser considerada em sua forma abstrata
para que essa referência empírica seja mais completamente inteligível. A dialética pode ser descoberta na situação
humana, e os fatores empíricos que condicionam sua ocorrência nela podem ser analisados; no entanto, embora
alguns de seus traços sejam indicados por essa descoberta e essa análise, sua estrutura essencial pode ser exibida
adequadamente apenas pela análise lógica contida em uma descrição formal da dialética.
A Descrição Lógica
A dialética pode receber uma descrição puramente lógica na medida em que seu locus está inteiramente no universo
do discurso. Para tornar essa descrição auto-crítica, é necessário que certas definições e suposições sejam
explicitadas.
O universo do discurso é definido como um domínio de entidades entre as quais há várias relações especificáveis.
As entidades são relações: termos e proposições. As relações são implicação, oposição, contradição, ordem
sistemática e ordem hierárquica.
A dialética é definida como uma série de atos lógicos. Um ato lógico é uma atualização das relações que são
potenciais no universo do discurso. As relações enumeradas são atualizadas por processos específicos ou atos
lógicos: oposição pelo ato de definição, implicação pelo ato de análise, ordem sistemática e hierárquica em parte
pela análise e em parte pelo ato de síntese. Há um problema a ser discutido posteriormente com relação à síntese; e
outro com relação à contradição, em relação aos atos de afirmação e negação.
Um ato lógico é declarado em uma proposição e pode ter o status de uma definição, um postulado ou um teorema.
Como entidades proposicionais no discurso, as definições, os postulados e os teoremas são a mesma coisa. Eles
diferem em sua função lógica como atualizações das relações existentes entre outras proposições. Isso pode ser
chamado de sua função sistemática.
Um sistema é um conjunto de proposições relacionadas por implicação. As implicações são geradas pelo conjunto
de postulados, que é a doutrina[27] do sistema, ou seja, suas definições e suposições; os teoremas estabelecem suas
implicações.
A implicação não apenas organiza as proposições de forma sistemática, mas também hierárquica. Uma hierarquia é
uma ordem de entidades de acordo com níveis que são determinados pela análise das relações parte-todo que
existem entre elas. Os sistemas, assim como as proposições, podem ser colocados em ordem hierárquica.
Essa afirmação preliminar pode ser resumida da seguinte maneira: a dialética está no discurso tanto passiva quanto
ativamente. A dialética está no discurso de forma passiva ou potencial, na medida em que certas relações existem
entre as entidades do discurso, e de forma ativa, na medida em que ela constitui um processo de atualização dessas
relações por meio de definição, análise, síntese, sistematização e ordenação hierárquica. A descrição lógica da
dialética está mais imediatamente preocupada com a dialética enquanto uma série de atos e, secundariamente, com a
natureza última do discurso. Se o discurso é, em última análise, dialético, a dialética pode receber uma descrição
metafísica, mas isso está para além das preocupações da presente discussão.
Uma descrição lógica da dialética, empregando algumas das definições já enumeradas, não pressupõe a total
irrelevância da psicologia e da linguagem. De fato, é a relação precisa que esses dois elementos têm com a lógica
que deve ser postulada cuidadosamente.
Pressupõe-se que uma declaração verbal seja a expressão de uma proposição; essa suposição implica que há uma
diferença genuína entre a declaração enquanto forma de palavras e a proposição que por meio dela é declarada. A
diferença é análoga à diferença entre símbolos e seus significados. Uma proposição é aquilo que a tradição clássica
chama de idéia, uma forma significativa; e uma declaração verbal, se for significativa, é significativa por referência
a idéias.
Há dois tipos de declarações meramente verbais: primeiro, declarações compostas de palavras que, isoladamente ou
em conjunto, não têm significado. Não pode haver nenhuma declaração desse tipo. Toda declaração pode ser
significativa ou inteligível para alguém. Mas se houver, em um determinado caso, uma forma insignificante de
palavras, é isso que se entende, em primeiro lugar, por uma declaração meramente verbal. Em segundo lugar, as
declarações que definem o uso de um símbolo, uma palavra ou qualquer outra entidade notacional e se referem
apenas às entidades de um determinado idioma ou sistema notacional, mas não às entidades no discurso. Elas são,
portanto, meramente verbais e devem ser distinguidas das afirmações definitivas que têm caráter proposicional.
A dialética, por conseguinte, na medida em que é um assunto lógico, nunca pode ser meramente verbal; ao contrário,
presume-se que as declarações verbais têm importância lógica na medida em que constituem uma agência para
expressar e lidar de outra maneira com proposições ou idéias.
Como formulação das relações existentes entre qualquer conjunto de entidades definidas, a lógica, assim como a
geometria, é uma teoria abstrata e não é de modo algum iluminada por uma análise dos processos intelectuais do
profissional da lógica. Qualquer sistema lógico, nesse sentido, declara suas regras de procedimento e sua doutrina; o
sistema, em outras palavras, exibe a si próprio, e os processos pelos quais ele faz isso são inteiramente lógicos. Não
há nenhum ato psicológico envolvido, exceto o ato de percepção, e isso é tão relevante ou irrelevante para a natureza
intrínseca de um sistema lógico quanto para qualquer outro objeto de percepção.
Por outro lado, quando a lógica é considerada a formulação de uma série de atos, ela não é totalmente independente
de processos de tipo psicológico. Um ato lógico tem duas referências. Uma instância de análise, por exemplo, é uma
atualização no sentido aristotélico de certas relações de implicação. Isso não cria as relações; mas as descobre ou
discerne. E, por meio dessa descoberta ou discernimento, torna atuais as implicações dadas que antes eram apenas
potenciais. Quando uma implicação potencial se torna atual, significa que ela é exibida em uma situação específica
por um processo de análise. A análise como uma agência de atualização é um ato lógico. Mas, assim como as
proposições são expressas em declarações linguísticas, os atos lógicos são realizados pelas mentes e, nesse sentido,
são processos psicológicos. Nada mais está implícito aqui do que a afirmação de que o pensamento é, ao mesmo
tempo, uma preocupação psicológica e lógica, e que, embora possa ser descrito separadamente, primeiro em um e
depois no outro conjunto de termos, o pensamento dialético só é atual quando é, ao mesmo tempo, um evento
psicológico e um assunto de caráter lógico. O pensamento é um evento psicológico se ocorre em uma situação
temporal e é a atividade de uma entidade orgânica; é um caso de caráter lógico se, em sua ocorrência, atualiza
relações implícitas na estrutura lógica do discurso. O pensamento é, portanto, um ato em dois sentidos: um ato no
sentido de algo feito e um ato no sentido de algo atualizado. A lógica pode ser uma descrição do pensamento
enquanto uma classe de atos nesse último sentido, mas não se deve esquecer que a atualização implica atividade, e
que o pensamento como atividade é um assunto psicológico.
A dialética pode receber uma descrição puramente lógica apenas na medida em que se trata de uma atualização do
discurso de uma determinada maneira. Isso seria um relato sobre a dialética enquanto uma série de atos lógicos e,
para entender a natureza desses atos ou processos lógicos, será necessário primeiro tentar uma breve exposição de
uma teoria lógica do discurso, ou seja, uma consideração das entidades no domínio do discurso e das relações que
podem existir entre elas. A atualização pressupõe uma condição de potencialidade. Se a dialética for considerada
uma série de atos lógicos, a estrutura lógica potencial a ser atualizada é pressuposta. A descrição lógica da dialética,
portanto, envolve tanto a teoria especial de uma estrutura relacional quanto um relato sobre os processos particulares
relacionados a essa estrutura, como o actus é para o passus.
Em razão dessa dupla referência, a dialética difere essencialmente da lógica matemática e simbólica, por um lado, e
da lógica comum da inferência indutiva e dedutiva, por outro. A primeira é a lógica das relações; a última é a lógica
dos atos, em grande parte, se não exclusivamente. A lógica matemática e simbólica está interessada no
desenvolvimento de sistemas, na análise de suas estruturas e no exame de sua força demonstrativa e validade. A
lógica da inferência se preocupa com a descrição de determinados processos e com a formulação de regras para a
correção de erros no procedimento. Ela depende de "leis do pensamento" que constituem a doutrina de um sistema
abstrato, mas, enquanto lógica de inferência, não desenvolve as implicações dessa doutrina separadamente da
descrição dos processos inferenciais que a doutrina justifica. A dialética, considerada logicamente, distingue-se pelo
fato de que ela participa da natureza da teoria sistemática da lógica matemática e simbólica e também se assemelha à
lógica comum em sua descrição de certos processos que são atos psicológicos e lógicos. Diferentemente da lógica
matemática, a dialética não é geométrica, ou seja, não está interessada em sistemas per se, mas sim na relação de
sistemas em conflito. A oposição é o tema fundamental da lógica da dialética. Ademais, a lógica matemática
geralmente emprega entidades notacionais especiais, enquanto a dialética usa os símbolos, as palavras, da fala
comum como sua agência no discurso. Nesse último aspecto, ela se assemelha à lógica da inferência, mas também
difere dela por coordenar sua fase descritiva com o desenvolvimento de uma doutrina abstrata relativa à estrutura
lógica do discurso.
Por fim, essa pesquisa preliminar é concluída com a apresentação de duas considerações adicionais que são
relevantes para a descrição lógica da dialética. Em primeiro lugar, entre os atos lógicos atribuídos à dialética há três,
síntese, afirmação e negação, que não podem ser derivados da teoria do discurso. Esses três atos não são previstos
por nenhuma das relações implícitas no discurso. Eles não são atos genuinamente lógicos, uma vez que isso implica
atualização; devem, portanto, ser atividades psicológicas que, nesse sistema específico, são a-lógicas. Resta à
discussão a seguir tornar esse ponto claro e indicar a coordenação das atividades psicológicas e dos atos lógicos no
padrão completo do processo dialético. Contudo, é evidente agora que a afirmação e a negação são atos que exibem
a relação de contradição entre as proposições. Classificá-los como psicológicos implica que não há contradição no
discurso, pois se houvesse, a afirmação e a negação poderiam ser classificadas como atos lógicos e não como
psicológicos. O desenvolvimento dessa implicação é extremamente importante e será considerado um dos problemas
centrais na descrição metafísica da dialética. Em segundo lugar, qualquer que seja a análise lógica do discurso
apresentada na presente exposição, ela é apresentada como o desenvolvimento de uma doutrina que é explicitamente
postulada. Isso dá origem a uma série de problemas, um dos quais já foi mencionado, que pode ser melhor tratado
mais tarde na seção a ser dedicada à metafísica do discurso como um reino do ser e às potencialidades da dialética
nele.
Por ora, há duas tarefas a serem realizadas em conjunto; primeiro, a exposição de um nexo lógico que se relaciona à
dialética como a estrutura se relaciona à função, ou como o passus se relaciona ao actus; e, segundo, a descrição da
dialética como uma atividade, ao mesmo tempo lógica e psicológica.
(I)
Os itens do discurso são os termos e as proposições. Uma proposição é uma relação de termos. Os termos são
classes, quando uma classe é entendida como um conjunto de condições de identidade que determinam a correlação
de itens. Os itens que satisfazem o conjunto específico de condições são incluídos na classe; os itens que não
satisfazem as condições são excluídos da classe. Uma proposição que estabelece a relação entre classes é, na
verdade, uma fórmula ou uma função proposicional; ela estabelece a relação entre variáveis que determinados
valores podem satisfazer.
As classes são relacionadas como parte e parte, todo e parte, parte e todo. Essas relações podem ser generalizadas
como relações de exclusão, de inclusão, ou seja, de implicação. Todo item ou termo no discurso é uma classe e pode
ser uma parte ou um todo, de acordo com o que é visto em um contexto de relações ou em outro. Uma parte é uma
classe que implica definitivamente outras partes, e tanto as exclui quanto é excluída delas. Uma parte está incluída
em um todo, mas não implica esse todo; a parte pressupõe o todo, o que equivale a dizer que o todo ao qual essa
parte pertence implica essa parte. O todo é uma classe que inclui uma parte e todas as outras. O todo, ademais, é
uma classe que, quando definida, implica alguma classe diferente dela mesma, que ela exclui e pela qual é excluída.
O todo, portanto, é ele próprio uma parte, em relação a outras partes, e ao todo que as inclui, e pelo qual elas estão
implícitas. Qualquer classe é um todo quando é considerada como implicando e incluindo outras classes como suas
partes; qualquer classe é uma parte quando é considerada como implicando mas excluindo outras classes como
partes similares. As partes estão, portanto, fraternalmente relacionadas, e essa é uma relação de reciprocidade
simétrica, de implicação e exclusão definitivamente, e de implicação e exclusão definitivamente uma da outra. As
partes estão relacionadas filialmente a um todo, e o todo está relacionado paternalmente às partes, e essas relações
são assimétricas, pois a parte é incluída e implicada pelo todo, enquanto o todo inclui e implica as partes.
A estrutura relacional parte-todo é a mesma, quer seja concebida na linguagem de um pensador tão antigo como
Aristóteles, ou nos termos de um pensador tão recente como Whitehead, quer seja expressa em termos de classes,
proposições, funções proposicionais ou parâmetros[28]. É bom lembrar isso porque a tendência hoje em dia é evitar
qualquer comparação com Aristóteles, até mesmo negar a identidade estrutural que está obviamente presente. A
mesma relação funcional específica é obtida de modo idêntico entre as espécies e os gêneros de Aristóteles, entre as
essências de Whitehead, ou objetos eternos de graus de complexidade abstrativa, e entre as proposições e os
sistemas de proposições da lógica matemática. Em todos os casos, resulta uma hierarquia ordenada, e as relações
parte-todo são reguladoras dessa ordem, quer os parentes sejam concebidos como classes ou como proposições ou
como entidades de qualquer outro tipo. Essa ordem hierárquica é independente da natureza material ou do caráter
abstrato dos itens assim ordenados. Os itens precisam apenas satisfazer as condições de relação parte-todo. Essa
relação é formalmente independente de qualquer instância específica dela, como a relação de classes enquanto partes
e todo, que é meramente um entre outros tipos possíveis de complexos materiais de parte-todo.
Na ordem hierárquica determinada pela relação entre partes e todo, o todo é de ordem superior às partes que ele
inclui e de ordem inferior ao todo que, por sua vez, o inclui. As partes de um mesmo todo são da mesma ordem. A
implicação ocorre somente entre entidades da mesma ordem, ou seja, entre partes do mesmo todo, ou entre uma
entidade de ordem superior e entidades de ordem inferior, ou seja, entre um todo e suas partes. Uma parte não
implica um todo; ela pressupõe um todo.
A estrutura hierárquica das partes e do todo, sejam elas classes, proposições ou parâmetros, pode ser uma hierarquia
finita ou infinita. Ela é finita se houver algum todo que não tenha outro e, portanto, não seja parte de nenhum todo
de ordem superior; ou é finita se houver alguma parte que seja de ordem primordial, ou seja, que não contenha
partes e, portanto, não seja, por sua vez, um todo. Se a hierarquia for vista como finita, o resultado será o conhecido
enigma da classe de todas as classes possíveis, que é um membro de si mesma, e a discussão se envolverá nas
dificuldades da teoria dos tipos. Entretanto, isso não é motivo para afirmar que a hierarquia é infinita. Ela é infinita
somente se não houver nenhuma ordem primordial e nenhuma ordem mais elevada de entidades, nenhum todo que
não seja ele mesmo uma parte, nenhuma parte que não seja ele mesmo um todo. O fato de as entidades no discurso
estarem relacionadas em uma ordem hierárquica infinita, e não em uma ordem finita, é um corolário dos postulados
da dialética[29]. Isso implica que qualquer entidade pode ser definida e analisada, ou seja, qualquer entidade no
discurso é passível de tratamento dialético, ou ainda, que o discurso é infinitamente suscetível à dialética. O
significado desse fato será ampliado em uma discussão posterior.
Termos, proposições e sistemas são de níveis diferentes na ordem hierárquica das relações entre o todo e as partes.
Um termo é parte de uma proposição, uma proposição é parte de um sistema; os sistemas, portanto, são de uma
ordem superior às proposições que eles incluem e as proposições são de uma ordem superior aos termos que elas
relacionam. Um termo, se definido, torna-se uma proposição, que então inclui outros termos de ordem inferior como
suas partes. Uma proposição, se analisada, torna-se um sistema, que inclui outras proposições como suas partes; e
essas proposições de ordem inferior, se analisadas posteriormente, podem se tornar sistemas contendo proposições
de ordem ainda inferior. Em outras palavras, há sistemas de ordem superior e inferior, assim como há proposições e
termos de ordem superior e inferior.
Ademais, os termos, as proposições e os sistemas estão relacionados como todo e parte, por meio de implicações,
inclusão e exclusão. Se forem da mesma ordem, os termos, as proposições e os sistemas excluem uns aos outros e
implicam uns aos outros, pois ser da mesma ordem significa que são partes do mesmo todo. Termos, proposições e
sistemas de uma ordem superior implicam e incluem termos, proposições e sistemas, respectivamente, de ordens
inferiores. Um termo, proposição ou sistema não apenas inclui e implica entidades da ordem imediatamente inferior,
mas também todas as entidades de ordens derivadas sucessivas. Um todo, por sua vez, não apenas inclui suas partes,
mas todas as partes de suas partes. Por fim, termos e proposições de ordem inferior não implicam, mas pressupõem
proposições e sistemas de ordem superior que os incluem e pelos quais são implicados. Um termo, proposição ou
sistema não apenas pressupõe as entidades da próxima ordem mais alta, mas também todas as entidades de ordens
derivadas sucessivas. Uma parte, por sua vez, não apenas pressupõe um todo, mas também todos os todos mais
inclusivos aos quais o todo da ordem mais alta seguinte pertence como parte.
Essas relações ocorrem potencialmente entre as entidades do discurso. Certos atos lógicos são necessários para
exibi-las, para definir termos e revelar suas implicações, para analisar proposições e revelar suas implicações, e para
ordenar proposições em sistemas que elas pressupõem. A dialética é operativa no discurso na medida em que exibe
as relações que compreendem a estrutura hierárquica parte-todo das entidades do discurso. A descrição lógica da
dialética a partir dessa série de atos não só explicará que tipo de processo é a dialética quando considerada
abstratamente, mas também poderá ajudar a esclarecer a análise anterior da estrutura lógica, implícita no discurso,
que a dialética serve para atualizar.
Em termos de sua função sistemática, ou seja, em termos de sua relação com outras proposições ou termos, as
proposições podem ser classificadas como definições, postulados ou teoremas. Essa classificação é importante, pois
a dialética nunca trata as proposições isoladamente, mas apenas no contexto de outras proposições. Será importante,
portanto, antes de prosseguir, deixar claro o que está implícito nessa classificação.
Uma proposição definitiva indica a natureza intensiva de um todo e o conjunto de condições que limitam a
associação de classes subordinadas a esse todo. Essas entidades ou classes subordinadas que satisfazem as condições
determinadas pela definição de um determinado todo estão implícitas como suas partes. Porém, a definição faz mais
do que estabelecer uma classe como um todo. Definir é delimitar ou diferenciar; a diferenciação é a indicação de
uma possível alteridade. Ou seja, quando a definição estabelece uma classe como um todo, ela também determina
uma ou mais classes por exclusão de suas propriedades; se não fosse assim, qualquer entidade definida seria uma
classe infinita. Há sempre pelo menos uma outra classe, a negativa dicotômica formal, cujas condições de identidade
são excluídas pelas condições de identidade da classe que está sendo definida.
As classes que são estabelecidas e diferenciadas pela definição de qualquer conjunto são coordenadas. Elas se
implicam mutuamente por definição e se excluem mutuamente. Como classes coordenadas, elas estão relacionadas
como partes de algum todo de ordem superior; elas pressupõem essa classe supraordenada, que, por sua vez, quando
definida, as implicará como suas partes e também implicará alguma outra classe ou classes coordenadas com ela
mesma como partes de outro todo de ordem superior.
A definição tem, portanto, três propriedades. Ela estabelece a natureza intensiva de uma classe como um todo,
implicando classes subordinadas como suas partes. Ela diferencia a classe dada de todas as outras classes que são
excluídas por suas condições definitivas de identidade; e essas outras classes podem, por sua vez, ser definidas e
receber um caráter positivo, além de servir meramente à função negativa de delimitar a intensão da primeira classe.
Quando assim definidas, cada uma dessas outras classes será estabelecida como um todo, implicando classes
subordinadas como partes. Esse grupo de classes coordenadas e mutuamente exclusivas são inteiras apenas em
relação às suas classes membros subordinadas; em relação umas às outras, elas implicam umas às outras como
partes que pressupõem algum todo supraordenado. As partes que não estão nessa coordenação definitiva, ou seja,
que são desordenadas, não pressupõem o mesmo todo. No entanto, as classes coordenadas não são absolutamente
exclusivas, pois, se fossem, não poderiam ser membros de algum todo supraordenado, como partes do qual todas
devem satisfazer as condições de identidade desse todo. A terceira função da definição, portanto, é como a primeira;
ela estabelece uma classe que será supraordenada e inclusiva do grupo de classes coordenadas definidas e
diferenciadas em um nível hierárquico inferior e, por meio dessa definição e diferenciação, implicam umas às outras
como partes coordenadas e se excluem parcialmente por suas condições de identidade particulares.
Postulados e teoremas são proposições analíticas. Eles não determinam as condições de identidade de uma classe
como um todo. Eles expressam a relação de um todo com suas partes subordinadas ou de partes coordenadas entre
si. Postulados e teoremas, em outras palavras, servem para analisar a natureza de um determinado todo e determinar
a ordem das partes em um todo, ou seja, os níveis hierárquicos dentro de um determinado todo. Uma classe que é
definida é um todo relacionado por implicação a dois outros tipos de entidades: outras classes coordenadas que ela
implica como uma parte que implica outra parte do mesmo todo; e outras classes subordinadas que ela implica como
um todo que implica suas próprias partes. O ato de definição exibe as implicações do primeiro tipo; elas podem ser
chamadas de implicações definidoras ou coordenadas de uma classe. O processo de análise exibe as implicações do
segundo tipo; elas podem ser chamadas de implicações analíticas ou subordinadas de uma classe.
Os postulados são proposições analíticas de ordem superior a qualquer um dos teoremas cuja função é a análise das
implicações subordinadas dos postulados. Isso equivale a dizer que os postulados implicam os teoremas, enquanto
os teoremas pressupõem, mas não implicam os postulados, em um determinado conjunto de proposições. Os
postulados são analíticos de um ou mais conjuntos definidos; eles não decorrem das definições, mas não são
independentes das definições, cujas implicações subordinadas eles servem para exibir. A análise dessas implicações
subordinadas determina a relação das partes implícitas com o todo definido, a relação das partes entre si dentro do
todo dado e a ordem das partes. Como os teoremas exibem as implicações das partes derivadas dentro do esquema
de relações postuladas, os teoremas são implícitos e demonstráveis pelas definições e postulados, assim como as
entidades de níveis subordinados são implícitas pelas entidades superiores na ordenação hierárquica de qualquer
todo.
Os postulados, por serem analíticos dos conjuntos que são definidos, são sempre analíticos e nunca definitivos. Mas
os teoremas que estabelecem as relações das classes subordinadas dentro da hierarquia definida e ordenada pelas
definições e postulados são analíticos e definitivos. Os teoremas são definitivos se estabelecerem qualquer uma das
classes subordinadas como um todo com partes de uma ordem hierárquica inferior, de acordo com a regra de ordem
determinada pelos postulados do sistema. Eles exibem as implicações definitivas de qualquer um desses conjuntos
subordinados, indicando e diferenciando outras classes coordenadas com ele, que, quando definidas, são conjuntos
semelhantes com classes subordinadas. Os teoremas são analíticos quando exibem as implicações obtidas entre
qualquer uma dessas classes subordinadas e suas partes, ou as implicações pelas quais as partes estão relacionadas
umas às outras, ou a ordem das partes em uma determinada classe. Por sua vez, as partes de qualquer uma dessas
classes subordinadas podem ser definidas, analisadas e ordenadas por outros teoremas. Os teoremas, portanto, são
proposições de status hierárquico diferente, de ordem superior ou inferior, assim como as entidades que eles
definem ou analisam podem ser de ordem superior ou inferior, de acordo com sua posição na ordem analítica do
todo original, que foi determinada pelo conjunto original de postulados e definições. Os teoremas de ordem superior
implicam e demonstram os teoremas de ordem inferior, assim como os teoremas de ordem superior são implicados e
demonstrados pelas definições e postulados. A ordem hierárquica de qualquer conjunto definido e analítico,
portanto, determina a ordem das proposições descritivas desse conjunto, bem como a ordem hierárquica de todos os
conjuntos e partes subordinados que são derivados dele pela análise.
Um conjunto de proposições, algumas das quais são definições, algumas das quais são postulados e as demais são
teoremas, é chamado de sistema. O sistema é um todo analítico[30], estabelecido pelas proposições definitivas, um
todo cuja ordem hierárquica é determinada pelos postulados. Os teoremas completam a explicação analítica da
ordem sistemática implícita nas definições e postulados que, juntos, formam o que é chamado de doutrina do sistema
ou conjunto de postulados. As regras de demonstração apenas expressam as relações implicativas que ocorrem entre
as partes de qualquer sistema. A doutrina de um sistema não é demonstrada, pois em um determinado sistema as
definições e os postulados não são implicados por nenhuma outra proposição. Além disso, as definições e os
postulados devem ser independentes, ou seja, não devem implicar uns aos outros. Um postulado que é implicado por
outro postulado é demonstrável dessa forma e, portanto, é um teorema no sistema em questão, e não um postulado.
As definições e os postulados de qualquer sistema devem ser consistentes[31] entre si; se não forem, teoremas
contraditórios podem ser demonstrados no sistema, e a presença de uma contradição em um sistema indica que
algumas de suas partes não são membros do mesmo todo. Todos os teoremas de um sistema devem estar implícitos
na doutrina do sistema; alguns dos teoremas são demonstráveis apenas em termos das definições e postulados, sendo
esses os teoremas de ordem mais elevada; todos os teoremas de ordens inferiores são demonstráveis em termos da
doutrina e dos teoremas supraordenados. A própria ordem dos teoremas é determinada pela doutrina do sistema.
As proposições de um sistema são, portanto, afirmadas como verdadeiras em um de dois sentidos: intuitivamente ou
demonstrativamente. Os postulados e as definições são proposições intuitivas; eles são aceitos como verdadeiros
para fins de análise do todo ou do sistema que eles estabelecem e definem. Os teoremas são proposições
demonstrativas; eles são aceitos como verdadeiros se forem provados em termos do conjunto de postulados, se
estiverem implícitos na doutrina do sistema. As implicações analíticas da doutrina estabelecem o teorema como suas
consequências lógicas. A relação de implicação pode ser declarada em geral pela fórmula: se isto, então aquilo. A
verdade disto implica a verdade daquilo; a verdade daquilo pressupõe, mas não implica a verdade disto. A força de
um sistema pode ser resumida da seguinte maneira: a doutrina é afirmada como verdadeira por suposição e o status
das proposições que a compõem é intuitivo; os teoremas do sistema são afirmados como verdadeiros por implicação
e têm o status de proposições demonstrativas. A afirmação das implicações como verdadeiras é equivalente à
afirmação da doutrina do sistema como verdadeira, pois a verdade das implicações está implicada na verdade da
doutrina. A verdade dessa implicação deve ser assumida como uma regra de procedimento na demonstração. Sua
demonstração em qualquer conjunto de proposições envolve uma regressão infinita. A regra da implicação, portanto,
é aceita intuitivamente, ou seja, é um postulado da dialética[32].
A discussão até este ponto negligenciou a característica essencial da dialética que a distingue da lógica comum dos
sistemas dedutivos. A dialética se preocupa com o desenvolvimento de sistemas coerentes apenas secundariamente;
ela se preocupa principalmente com a oposição de entidades, sejam elas termos, proposições ou sistemas. A dialética
é o processo de lidar com a oposição. Nesta exposição formal da dialética, estamos lidando de maneira abstrata com
o método de disputa, controvérsia, argumento. Nas seções anteriores deste livro, a tese de que a dialética difere das
metodologias tradicionais foi afirmada e talvez exemplificada. Ela tem algumas semelhanças com os traços dos
sistemas logísticos e matemáticos e com o tipo de pensamento que é comumente descrito como inferência indutiva e
dedutiva. Essas semelhanças provavelmente já ficaram suficientemente claras. Agora é necessário deixar igualmente
claros os traços distintivos da dialética que justificam seu status como uma metodologia divergente e que, nessa
formulação abstrata de seus dispositivos metodológicos, indicarão sua relevância para as características da discussão
humana e do pensamento controverso. A dialética será assim revelada quando sua forma abstrata for vista como a
lógica das oposições no discurso. Assim, o processo dialético se torna uma série de atos lógicos que constituem o
método para lidar com as oposições no discurso.
É preciso fazer mais uma especificação. A oposição entre entidades no discurso, sejam elas termos, proposições ou
sistemas, é, em si, dialética em sua origem. Ela surge no ato da definição, na medida em que a definição envolve
diferenciação, negação e exclusão. Há, portanto, duas fases em qualquer instância da dialética: primeiro, a origem e
a elaboração de um conflito no discurso e, segundo, a resolução do conflito e a tradução de universos parciais do
discurso. A exposição subsequente tentará mostrar de que maneira surgem as oposições no discurso e de que
maneira elas são resolvidas; e, no decorrer dessa exposição, ficará claro que a dialética sempre lida com sistemas,
em vez de proposições isoladas, e com sistemas em oposição, em vez de em isolamento; que a resolução dialética
nunca é final, mas sempre produz mais oposição; que o ato de síntese que completa as funções de definição e análise
é um ato imaginativo, em vez de estritamente lógico; e que o insight, a resolução e a tradução são fases correlativas
do mesmo ato. Tal exposição começa com uma distinção entre oposição e contradição. O problema fundamental
levantado por essa distinção será considerado mais adiante.
(2)
A oposição não deve ser confundida com contradição. A última é um caso de negação. A primeira é a afirmação da
alteridade. A oposição é uma transição de uma coisa para outra sem negar a primeira. É o ato de ignorar. "É como a
atenção que, selecionando uma coisa e rejeitando a outra, desconsidera sem negar a outra; não há contradição no
processo. De fato, desconsiderar uma coisa sem negá-la é apresentar outra. A alteridade é o original da
desconsideração, enquanto a contradição é a desconsideração pervertida e pecaminosa."[33]
Essa distinção entre oposição e contradição é esclarecida pela percepção de que o ato de definição atualiza a
oposição sem levar à contradição. A oposição surge por meio da desconsideração implícita em qualquer definição.
Mas essa desconsideração nada mais é do que a força que a implicação definitiva tem na diferenciação de classes
parcialmente exclusivas. Definir uma classe e, assim, estabelecê-la como um todo, não contradiz de modo algum
todas as outras classes que não foram definidas dessa maneira; mas as desconsidera no sentido de que as estabelece
como outras classes que, se definidas, se tornariam inteiras em seu próprio direito. Todas essas outras classes têm a
propriedade comum de não serem a classe definida e de serem definitivamente excluídas dela, embora implicadas
por ela e implicando-a. É nesse sentido que elas são as outras da classe definida, e desconsideradas por ela,
anuladas, mas não negadas, excluídas e ignoradas, talvez, mas definitivamente implícitas como outras classes de
classificação coordenada, em vez de contraditas.
Sendo a dialética, em parte, um processo de definição, surgindo como resposta à pergunta "O que significa dizer
que...?", ela está, portanto, engajada em lidar com a oposição de significados, quando esses significados são
considerados conotações de classe. Mas isso não esgota a natureza da dialética, pois é o que a dialética faz com essa
oposição que cria seu movimento peculiar no universo do discurso.
O primeiro estágio, então, é a oposição de proposições definitivas, quando a oposição é entendida como significando
que as proposições nessa relação definem entidades diferentes, mas não contraditórias. A oposição pode ser
declarada pela afirmação de cada uma das duas proposições assim relacionadas; mas a afirmação da oposição entre
duas definições não nega nenhuma delas. Não há nenhuma negação envolvida, exceto, talvez, a negação de que uma
entidade seja a outra. Essa negação é equivalente à afirmação da oposição e é sua implicação.
A classe definida e as outras classes diferenciadas e opostas a ela são estabelecidas como conjuntos coordenados.
Como conjuntos, são passíveis de análise. O ato de analisar um todo é um processo de exibição das implicações que
um todo tem para suas partes, e as implicações e a ordem obtidas entre as próprias partes. As partes de um todo,
embora todas filialmente relacionadas a ele, podem não ser da mesma geração, sendo fraternalmente relacionadas
como coordenadas ou relacionadas como sub-todo e partes após análise posterior. A análise, em outras palavras, ao
seguir as implicações de qualquer classe estabelecida por definição como um todo, gera uma ordem hierárquica de
relações parte-todo dentro desse todo, e essa ordem hierárquica pode ser chamada de todo analítico ou sistema
dedutivo. O material de tal sistema é um conjunto de classes, uma das quais é supraordenada a todas as demais,
sendo o restante relacionado coordenadamente, ou como sub-bens e subpartes. Esse conjunto de classes está em
ordem hierárquica. Como um caso de discurso, o sistema consiste em um conjunto de proposições e postulados
definitivos e um grupo de teoremas, determinados pela ordem de demonstração e pela ordem hierárquica dos
materiais do sistema. O sistema em si pode ser considerado como um todo, cujas partes são todas as proposições que
o compõem. O sistema como um todo é estabelecido por sua doutrina, ou seja, um conjunto de definições e
postulados, que são as proposições que definem e analisam as classes supraordinadas do sistema e determinam a
ordem de todos os seus elementos derivados. Em outras palavras, assim como uma classe é definida como um todo
por uma proposição, e esse todo é analisado por outras proposições, um sistema é estabelecido por sua doutrina e se
torna um todo analítico por meio da exposição de suas implicações dedutivas pelo conjunto de proposições que
compõem seus teoremas.
O segundo estágio da dialética é, portanto, o processo de análise, uma série de atos lógicos pelos quais o todo
estabelecido pela definição é transformado em um todo analítico, ou um sistema de proposições. A dialética pode
começar com uma proposição isolada, mas ao passar de sua fase definitória para a analítica, um conjunto ou sistema
de proposições é gerado, e todo procedimento dialético posterior é ocupado com qualquer proposição apenas em seu
contexto sistemático e não isoladamente. Isso é verdadeiro para o conjunto de proposições que formam a doutrina do
sistema, bem como para seus teoremas. As definições e os postulados são tratados sistematicamente na medida em
que são compreendidos em termos de suas implicações; os teoremas, de certa maneira, os explicam ou, pelo menos,
exibem seu significado. Os teoremas, por outro lado, são tratados sistematicamente na medida em que são
compreendidos em termos da doutrina que pressupõem; as definições e postulados os demonstram e determinam seu
significado. Qualquer proposição isolada pode ser entendida de duas maneiras: ou em termos de suas implicações ou
de seus pressupostos, ou seja, ou como a fonte doutrinária de um sistema de proposições, ou como uma proposição
que está implícita em alguma doutrina e interpretada em termos de todo um sistema de proposições.
Há uma diferença fundamental entre essas duas maneiras de tratar proposições isoladas. No primeiro caso, em que
uma proposição é entendida em termos de suas consequências sistemáticas, o processo é de análise, de derivação das
implicações definidoras e analíticas da doutrina que a proposição original continha. A análise é aqui um ato lógico
no sentido de que sua função é exibir ou atualizar as relações de implicação existentes entre as entidades
consideradas. Mas na segunda instância em que uma proposição é entendida em termos do sistema ao qual pertence
como parte, o processo é aquele que, por falta de um nome mais preciso, pode ser chamado de síntese. É um
processo que consiste em encontrar o sistema capaz de demonstrar a proposição, a doutrina e os teoremas que a
proposição isolada dada pressupõe e pelos quais ela está implícita. No entanto, esse ato de encontrar, esse ato de
síntese, não é um ato lógico no sentido estrito, pois é somente depois que o sistema de proposições do qual a
proposição original é um membro que foi encontrado que as relações de implicação podem ser exibidas ou
atualizadas. Seguir implicações e empregar pressuposições são, nesse importante aspecto, totalmente diferentes. O
ato de síntese requer o exercício da imaginação intelectual, um ato de insight em vez de um ato de análise lógica. A
diferença entre análise e síntese é a diferença familiar entre detectar os postulados de um sistema e deduzir os
teoremas de um sistema a partir dos postulados; não há regra para o primeiro processo; o último é guiado pelas
regras de implicação e demonstração. É claro que, uma vez que os postulados tenham sido detectados, uma vez que
o todo ao qual uma parte pertence tenha sido encontrado, então um processo de retorno à análise pode completar a
pressuposição da parte desse todo, exibindo a implicação do todo para a parte.
A síntese constitui o terceiro estágio da dialética, o estágio no qual a resolução da oposição é efetuada; mas como a
dialética nunca trata de proposições isoladas, a oposição que é resolvida pela síntese deve ser a oposição de sistemas
de proposições. Será necessário examinar o que está envolvido na oposição de sistemas antes de proceder a uma
exposição do processo de síntese e do evento de resolução.
Um sistema é um todo analítico. Ele é definido por sua doutrina, um conjunto de definições e postulados. A
definição de um sistema, assim como a definição de qualquer classe, não apenas estabelece essa classe como um
todo capaz de ser analisado, mas também diferencia essa classe de outras classes que são excluídas dela por sua
intensão ou conjunto de condições de identidade. (Um sistema, nesse sentido, é como um parâmetro; é um
parâmetro cujas proposições são subparâmetros de vários graus de classificação subordinada[34].) Essas outras
classes que a classe definida nega e exclui são suas outras classes ou seus opostos. Elas são coordenadas com ela,
uma vez que não são seus membros nem estão na relação supraordenada com ela de todo para parte. Essas classes
coordenadas implicam umas às outras de forma definidora; e cada uma dessas classes coordenadas, quando definida
por conta própria, é estabelecida como um todo capaz de análise posterior e elaboração sistemática. Em outras
palavras, a definição de um sistema implica em um sistema ou sistemas coordenados, um grupo de conjuntos
analíticos da mesma ordem hierárquica. Diz-se que esses sistemas estão em oposição, não em contradição; são
simplesmente sistemas diferentes, excluindo um ao outro, e as partes de um ao outro, e todas as partes das partes de
um ao outro. A oposição de quaisquer duas proposições, portanto, é equivalente à oposição de sistemas, pois
qualquer proposição, seja ela um teorema, um postulado ou uma definição, é uma parte de um sistema como um
todo. A oposição de proposições envolve a oposição dos sistemas aos quais elas pertencem, na medida em que as
proposições são tratadas de forma definidora e analítica. A oposição das duas proposições pode ser resolvida
encontrando-se, por meio do ato de síntese, o sistema único ao qual elas pertencem. Assim, vê-se que a definição e a
análise criam e desenvolvem a oposição sistemática das proposições; e a síntese efetua uma resolução sistemática
dessa oposição.
Em um breve resumo, portanto, a definição e a análise desenvolvem proposições sistematicamente. Os inteiros
sistemáticos, assim como outras classes inteiras no discurso, não apenas implicam suas partes analiticamente, mas
também implicam seus outros ou opostos de forma definidora. A definição de um sistema, portanto, exibe suas
relações de oposição a outro(s) sistema(s), bem como suas propriedades intrínsecas. Os sistemas opostos estão
reciprocamente em oposição e são exclusivos uns dos outros; eles são igualmente inteiros analíticos, tendo
proposições como suas partes, organizadas e ordenadas por relações de implicação. Essas partes de conjuntos
analíticos estão em oposição na medida em que os sistemas aos quais pertencem estão em oposição. Por outro lado,
a oposição de duas proposições envolve a oposição dos sistemas que elas pressupõem. Entender a oposição de
proposições, portanto, requer a interpretação sistemática das proposições, a aplicação à oposição dos processos
dialéticos de definição e análise. Esses dois primeiros estágios da dialética elaboram a oposição de proposições na
oposição de sistemas, e quando esses sistemas são tratados como um todo em si mesmos, a oposição entre eles é
esclarecida na medida em que (1) cada sistema foi definido por sua doutrina e (2) seus teoremas foram
demonstrados e desenvolvidos. Por meio de definição e análise, a dialética alcança o esclarecimento de uma
oposição, ou, em outras palavras, as consequências sistemáticas de uma oposição são estabelecidas. Ainda resta à
dialética alcançar a resolução do conflito assim esclarecido.
Qualquer uma de um grupo de classes coordenadas pode ser estabelecida como um todo na medida em que for
definida e analisada. Dessa maneira, suas partes são exibidas e ordenadas. Se for encontrado algum todo, alguma
classe supraordenada, após definição e análise, será considerado como implicando duas ou mais dessas partes. Mais
de uma única classe supraordenada pode ser pressuposta por um grupo de entidades coordenadas; mas apenas uma
classe supraordenada próxima é pressuposta por duas ou mais entidades coordenadas entre si e definitivamente
implicadas umas nas outras, uma vez que, em suas relações de implicação e exclusão, tais entidades são partes que
pressupõem um todo.
A definição, ao estabelecer uma classe como um todo, que então implica seu oposto, também estabelece a mesma
classe como uma parte, que somente em associação com o conjunto de um ou mais opostos implícitos ou outros
excluídos pressupõe alguma classe inteira ou supraordenada pela qual eles estão incluídos. Cada uma dessas classes
inclui suas partes, que, por sua vez, são organizadas de forma coordenada ou como subconjuntos e subpartes. Segue-
se, então, que qualquer todo assim estabelecido por definição é um todo parcial, e isso porque, em relação a seus
opostos ou outros, ele é a parte, juntamente com eles, de algum todo de ordem superior. E esse todo, por sua vez,
deve ser um todo parcial. Se qualquer todo não fosse parcial, a ordem hierárquica seria finita, e isso seria contrário a
um corolário do postulado da dialética de que qualquer classe pode ser definida. Portanto, como a definição leva à
oposição, e como a oposição é uma condição de parcialidade e exclusão, o processo dialético implica uma ordem
hierárquica infinita de entidades no discurso.
Os sistemas são inteiros analíticos, mas quando considerados em oposição, são parciais e incompletos. Eles são
inteiros com relação às suas proposições subordinadas e membros, mas com relação a outros sistemas coordenados
que se opõem a eles por definição doutrinária, e que eles similarmente se opõem e excluem, eles implicam uns aos
outros como partes de algum sistema mais inclusivo que é pressuposto por eles e os implica por sua vez. Agora pode
ficar claro que as entidades em oposição não são apenas partes no nível da oposição, embora tenham o status de todo
para entidades subordinadas, mas também que elas excluem umas às outras parcialmente, em vez de absolutamente.
Se elas se excluíssem absolutamente, não poderiam implicar definitivamente uma à outra como partes de alguma
classe supraordenada, e não poderiam estar em oposição, pois uma classe que não é definitivamente implicada não é
a outra ou o negativo da classe definida. Ademais, a exclusividade absoluta de duas classes significaria que elas não
tinham absolutamente nenhuma condição de identidade em comum, que não tinham pontos de interseção; portanto,
segue-se que elas não poderiam ser membros de alguma classe comum, pois a participação em um todo envolve a
satisfação das condições de identidade e dos requisitos definitivos desse todo. A maneira pela qual as partes se
excluem umas às outras, portanto, é sempre parcial e nunca absoluta. Segue-se também que a oposição pode ocorrer
apenas entre as partes do mesmo todo, pois a oposição é incompatível com a exclusão total na medida em que a
oposição surge por meio da implicação definitiva e a implicação definitiva é criativa da exclusão parcial, mas é
incompatível com a exclusão total.
Se a oposição só pode ocorrer entre as partes de um todo, e nunca entre as partes totalmente excluídas de todos os
diferentes, então a oposição contém em si a fonte de sua própria resolução. É necessário apenas que seja encontrado
o todo que inclua as partes dadas em oposição e as implique. Até que essa classe supraordenada seja estabelecida, as
entidades em oposição têm o status de todo em oposição. Elas implicam umas às outras e se excluem parcialmente.
Nessa relação de oposição e exclusão parcial, elas se tornam partes que pressupõem um todo de ordem superior.
Essa classe supraordenada, quando estabelecida analiticamente, implica as entidades em oposição e as inclui como
suas partes. As entidades dadas ainda estão em oposição se consideradas como um todo, mas quando recebem o
novo status de partes de um todo mais inclusivo, pode-se dizer que a oposição foi resolvida. A distinção pode ser
feita do seguinte modo: a oposição de entidades como unidades coordenadas é uma oposição efetiva, uma vez que a
ênfase está em sua exclusividade parcial uma da outra; a oposição de entidades como partes subordinadas de um
todo é uma oposição resolvida, uma vez que a ênfase está em sua participação comum na classe supraordenada que
as implica analiticamente como suas partes.
Os sistemas, quando são considerados como um todo analítico, estão em oposição efetiva. Quando eles são vistos
como sendo apenas parcialmente exclusivos um do outro, quando se descobre que têm linhas de interseção ou
algumas condições de identidade comuns que pressupõem um sistema de ordem superior que os inclui, a oposição
entre eles é capaz de ser resolvida. Ela é de fato resolvida quando o sistema supraordenado é estabelecido pela
definição doutrinária e quando, por meio de outros processos de análise, as doutrinas e os teoremas dos sistemas
subordinados que eram parcialmente exclusivos uns dos outros são considerados partes implícitas, demonstráveis e
ordenadas pela doutrina do sistema supraordenado. Sua relação entre si pode ser alterada pela ordem dedutiva
determinada pela doutrina que os demonstra; algumas das proposições podem ser excluídas do novo todo analítico,
sendo incapazes de demonstração ou relação implicativa nesse novo todo.
O ato de síntese é o processo dialético pelo qual essa resolução é alcançada. Assim como a definição e a análise
serviram para estabelecer sistemas como conjuntos analíticos e para esclarecer sua oposição, a síntese torna essa
oposição ineficaz ao encontrar um conjunto que implica e inclui os sistemas em conflito como suas partes. A síntese,
diferentemente da análise e da definição, não é a exibição de relações de implicação obtidas entre entidades
coordenadas entre si ou entre entidades relacionadas como todo e parte. Pois as partes não implicam o todo que as
inclui; o ato de síntese é, portanto, a-lógico; o todo que as partes co-implicadas pressupõem deve ser encontrado por
um salto imaginativo, por um ato de intuição, quando a intuição é considerada um método de descoberta por alguma
outra via que não a implicação.
A síntese, embora não possa ser descrita em termos de relações de implicação, pode ser exposta em outros termos. A
situação em que dois sistemas estão em oposição envolve algum grau de interseção entre os dois sistemas, sendo os
pontos de interseção uma analogia linear para o compartilhamento de condições de identidade comuns. Se não fosse
assim, os dois sistemas seriam totalmente, e não parcialmente, exclusivos e, portanto, não poderiam estar em
oposição. A descoberta desses pontos de interseção leva, por imaginação, inferência ou intuição, à descoberta
adicional do supersistema que eles pressupõem. O ato de descoberta aqui não pode ser interpretado ou explicado
logicamente. O que é pressuposto é um sistema cuja doutrina possui as condições de identidade ou pontos de
interseção comuns aos sistemas em oposição e, portanto, implica os últimos sistemas como suas partes, reorganiza-
os e resolve o que antes era uma oposição efetiva entre eles. A resolução da oposição sistemática é, nesse sentido,
equivalente à síntese sistemática.
Mas é preciso observar que a síntese não completa o processo dialético. A resolução não é efetuada até que a
definição e a análise estabeleçam a doutrina do sistema supraordenado e desenvolvam plenamente suas implicações
analíticas. Em outras palavras, a descoberta da parcialidade dos sistemas em oposição e, portanto, de seus pontos de
interseção, leva à intuição adicional de uma doutrina que definirá um sistema capaz de incluir os sistemas em
oposição e, assim, resolver essa oposição. Todavia, o ato de intuição não completa a tarefa, pois o sistema assim
descoberto deve ser estabelecido como um todo analítico antes que a resolução seja de fato efetivada. A doutrina do
sistema e sua ordem dedutiva devem ser determinadas, e isso requer definição e análise adicionais. Quando isso é
realizado, os sistemas em oposição não são mais conjuntos analíticos em oposição efetiva, mas são analisados nas
partes proposicionais de um novo conjunto analítico e, portanto, em oposição resolvida, ordenada, demonstrada e
implícita.
Há dois outros aspectos da síntese e da resolução que devem ser mencionados. O primeiro é que a síntese de
sistemas parciais deve, em seu lado analítico e dedutivo, observar as regras da estrutura sistemática, segundo as
quais um sistema pode conter como seus teoremas apenas as proposições implícitas e demonstráveis por sua
doutrina. Qualquer proposição que não esteja implícita dessa maneira é inconsistente com o sistema e é excluída
dele. Ela não faz parte do sistema. Quando a oposição entre dois sistemas parciais é resolvida por sua síntese em um
único sistema de ordem superior, as entidades proposicionais dos dois sistemas subordinados devem ser submetidas
à ordem implícita pela doutrina do sistema superior. As proposições que são inconsistentes com essa doutrina, ou
seja, incapazes de serem implícitas e demonstradas por ela, devem ser excluídas da resolução. Tais proposições
formam um conjunto de proposições que, individual ou coletivamente, permanecem em oposição efetiva ao sistema
estabelecido pela doutrina que as excluiu. Se elas forem absolutamente excluídas, não estarão nessa relação de
oposição, mas se forem excluídas e implicadas como opostas, permanecerão em oposição parcial e, se receberem
elaboração sistemática, uma nova oposição de sistemas surgirá e exigirá um sistema de ordem ainda mais elevada
para ser resolvida. Nesse sentido, a resolução foi apenas uma resolução parcial e não uma resolução final e absoluta.
No ato da resolução, uma nova oposição é gerada. Fica claro, então, que todas as resoluções dialéticas devem ser
apenas parciais. A oposição original foi expressa em termos de exclusão parcial. Essa exclusão parcial é equivalente
a alguns pontos de interseção ou a algum compartilhamento de condições de identidade. O grau de interseção, ou o
grau de pressuposição comum, pode se aproximar da coincidência das linhas de implicação, ou identidade absoluta,
como um limite. Se ela fosse de fato obtida, não haveria exclusão parcial dos dois sistemas; eles não seriam dois
sistemas; e não haveria oposição. A própria natureza da oposição, portanto, torna impossível a ocorrência de uma
resolução absoluta ou final, uma vez que a resolução ocorre por meio da descoberta de um sistema sintético com
base nos pressupostos comuns dos sistemas em oposição. Na medida em que os sistemas em oposição são
parcialmente exclusivos e na medida em que têm pontos de interseção ou condições de identidade comuns, a
resolução dessa oposição será mais ou menos parcial e resultará na exclusão de um número menor ou maior de
proposições do novo sistema encontrado ao descobrir as pressuposições dos sistemas em oposição, e definido e
analisado pela doutrina descoberta por um salto intuitivo a partir dessas pressuposições.
Um outro ponto surge com relação à exclusão de proposições no ato da síntese. Ele diz respeito ao processo de se
determinar a seleção das proposições a serem incluídas. Se a doutrina do sistema for enquadrada de uma maneira,
então certas proposições do agregado total em questão estão implícitas e são passíveis de inclusão; se a doutrina for
enquadrada de maneira diferente, então outras do agregado total estão implícitas e são passíveis de inclusão. Por
outro lado, as proposições dos dois sistemas subordinados estão em relações de oposição e implicação entre si. Se
algumas dessas proposições em oposição devem ser incluídas, então algumas outras proposições que elas implicam
devem ser incluídas, e as proposições às quais elas se opõem, excluídas. Os postulados do sistema resultante devem
ser estruturados de acordo. Isso pode ser chamado de processo de lidar com dilemas co-implicados e, embora seja
parcialmente uma questão de análise e parcialmente de síntese, há um ato de escolha envolvido que não pode ser
incluído em nenhum dos procedimentos lógicos descritos. É claro que a dialética nunca lida com proposições
isoladas, mas também não lida com sistemas isolados. O fato da oposição é onipresente na situação dialética. Os
sistemas em oposição podem ser considerados como conjuntos de dilemas co-implicados entre suas proposições
componentes, e a resolução da oposição sistemática depende, em parte, do exercício de escolha com relação às
alternativas envolvidas e, posteriormente, do desenvolvimento das implicações e pressuposições dessa escolha por
meio de análise e síntese. A dialética, ao contrário da lógica matemática, nunca é meramente dedutiva; é sempre um
processo de lidar com oposições e dilemas. Ademais, está claro que, em qualquer instância de oposição sistemática,
há mais de uma resolução possível, mais de uma síntese possível, dependendo de quais dilemas são resolvidos e
quais são deixados sem solução. Todas as proposições dos sistemas em oposição não podem ser assimiladas; a
escolha entre dilemas co-implicados determina quais proposições devem ser unificadas e quais devem ser excluídas.
Há um segundo aspecto em que toda síntese e resolução dialética é incompleta e provisória. O sistema
supraordenado que efetua a resolução por uma doutrina capaz de demonstrar e implicar algumas, mas não todas, as
proposições dos dois sistemas subordinados que foram sintetizados, é definido por essa doutrina. O ato de definição
diferencia imediatamente o novo sistema como um todo analítico de seus outros, ou opostos, os outros sistemas que,
quando definidos de forma semelhante, tornam-se todos analíticos coordenados com ele. Em outras palavras, o ato
de definição, necessário para o estabelecimento do sistema que efetua a síntese e a resolução, implica, ao mesmo
tempo, uma nova oposição. Essa nova oposição ocorre em um nível mais alto da ordem hierárquica do que a
oposição anterior. Tal oposição é esclarecida pela elaboração analítica e pela definição dos sistemas em oposição.
Essa oposição, tal como a anterior, envolve apenas a exclusão parcial dos opostos, e isso prepara o terreno para uma
nova resolução em termos de um terceiro sistema de nível hierárquico ainda mais alto. O processo se repete: a
descoberta de pontos de interseção, ou condições de identidade comum, a descoberta da doutrina capaz de efetuar a
síntese necessária e, em seguida, o estabelecimento do novo sistema como um todo analítico pelas implicações
definitivas e analíticas da doutrina intuitivamente descoberta em termos das pressuposições dos sistemas
subordinados em oposição. A nova síntese resolve a oposição, mas somente à custa da exclusão de proposições
inconsistentes com sua doutrina e, portanto, incapazes de demonstração. Com o estabelecimento desse novo sistema
e a resolução da oposição de alguns dos elementos dos dois sistemas subordinados, surgem duas novas oposições
efetivas, primeiro entre as proposições excluídas, mas implícitas, pelo novo sistema e as proposições que formam
esse sistema e, em segundo lugar, entre o sistema como um todo analítico e os outros todos analíticos que ele
implica definitivamente e exclui parcialmente. Essas oposições podem ser resolvidas de maneira semelhante. O
processo dialético no esclarecimento e resolução de oposições é sempre o mesmo, e é inevitável e inalteravelmente
qualificado por (ou limitado por sua natureza a) parcialidade e inconclusividade.
Esse atributo do processo dialético, sua inevitável frustração — se nunca chegar a uma resolução final é frustração
—, está relacionado ao corolário da dialética que determina que a estrutura hierárquica do universo do discurso seja
infinita e não finita. Pode haver alguma classe ou sistema final, mas assim que é submetido ao exame dialético, ele
inevitavelmente gera seu negativo e é definitivamente relacionado ao seu outro por oposição. A dialética, desde que
permaneça no universo do discurso, sua esfera própria, e funcione adequadamente, nunca poderá repousar em
qualquer sistema final ou todo último que alcance uma resolução absoluta de todas as oposições de sistemas parciais
subordinados a ela. Um ser humano pode deixar de ser um dialético e aceitar tal entidade, mas, inversamente, aceitar
tal entidade significa que o processo dialético cessou ou foi abandonado. Qualquer instância dada de procedimento
dialético deve chegar ao fim na situação humana, já que os dialéticos também são seres humanos e devem parar de
conversar para fazer outras coisas. Porém, esse término arbitrário e, por assim dizer, pragmático, não significa a
finitude da hierarquia de classes ou sistemas, nem torna a dialética essencialmente capaz de efetuar a resolução final
e absoluta de qualquer oposição no discurso. Significa simplesmente que uma discussão foi interrompida e que, se
continuasse indefinidamente, a hierarquia discursiva seria tão infinita quanto a dialética seria interminável.
(3)

A forma reguladora da dialética pode agora ser resumida em um conjunto de proposições simples. A definição de
qualquer entidade, seja ela uma classe, uma proposição ou um sistema, implica, por suas funções negativas de
diferenciação e exclusão parcial, alguma entidade (ou entidades) que são suas outras. Essas outras entidades podem
então ser definidas, e o conjunto de entidades assim estabelecido é coordenado entre si e em oposição. Cada uma
dessas entidades, considerada em termos de sua própria definição, é um todo. A análise de cada um desses conjuntos
exibe um conjunto de partes e a ordem dessas partes; essas partes estão relacionadas ao todo por implicação e
inclusão. Esse grupo de inteiros analíticos, considerado em termos de sua oposição um ao outro, é coordenado entre
si e simetricamente implica e exclui parcialmente um ao outro. Nessa relação de exclusão, eles são partes,
pressupondo algum todo ainda indeterminado. Dizer que um todo é pressuposto em vez de implícito é análogo a
dizer que ele deve ser descoberto e postulado, em vez de deduzido e demonstrado. A síntese é o processo de se
determinar o todo que inclui o grupo subordinado de todos os analíticos em oposição. É o caráter positivo dessas
entidades subordinadas, em vez de qualquer força implicativa que elas possuam, que sugere ou leva à descoberta de
alguma entidade que possa estar em relação a elas como um todo em relação às partes, implicando-as assimétrica e
inclusivamente, tal como a análise posterior demonstrará, mas não sendo implicada por elas. Essa entidade é
visualizada intuitivamente por um ato de imaginação intelectual, auxiliada, mas não governada logicamente, pela
convergência parcial das entidades em oposição. A convergência parcial das entidades em oposição é correlativa à
sua exclusão parcial; se fossem totalmente exclusivas, não seriam coincidentes em nenhum aspecto e, portanto,
nenhum todo comum poderia ser encontrado para incluí-las. A entidade supraordenada é descoberta pela síntese
intuitiva dos conjuntos parciais, e o conteúdo dessa intuição pode então ser expresso em um conjunto de proposições
definitivas e analíticas, que formam a doutrina da entidade supraordenada descoberta. Essas definições e postulados
têm o status de proposições intuitivas; e em suas funções definitivas e analíticas, elas estabelecem a entidade
descoberta como um todo com partes, sofrendo certas relações ordenadas. As proposições dos sistemas
subordinados que são sintetizadas nesse todo analítico de ordem superior tornam-se teoremas, implícitos e
demonstrados pela doutrina do sistema mais inclusivo. Nem todas as proposições são tratadas dessa maneira;
algumas são inconsistentes com a doutrina do sistema sintético; aquelas que são assim parcialmente excluídas do
novo sistema formam um agregado, e talvez um ou mais sistemas, de proposições em oposição ao sistema que as
excluiu parcialmente. A doutrina que define o novo sistema não apenas exclui parcialmente certas proposições da
filiação como teoremas em sua ordem dedutiva, mas, por definição, também exclui outros sistemas coordenados
com ela mesma. Assim, a síntese, ao mesmo tempo, resolve parcialmente a oposição de entidades ou sistemas em
níveis hierárquicos subordinados ao nível do sistema sintético e também gera novas oposições entre ela e as
entidades coordenadas, que, por sua vez, exigem uma síntese adicional pela descoberta intuitiva de uma entidade
ainda supraordenada. A natureza infinita da hierarquia parte-todo é expressa na inevitabilidade da parcialidade; toda
oposição é um exemplo de exclusão parcial; toda resolução é um exemplo de síntese parcial e incompleta; toda
síntese, sendo parcial, provoca outras oposições.
Esses processos de definição, que geram a oposição de partes e estabelecem inteiros parciais; de análise, que
desenvolvem a estrutura interna e a ordem desses inteiros parciais, demonstrando a força implicativa desse todo
sobre suas partes; de síntese, que intuitivamente engloba essas partes em algum todo de ordem superior e estabelece
esse todo por meio de uma doutrina intuitiva de definições e postulados que, por sua vez, o analisam e exibem sua
parcialidade e as oposições que ele implica; esses processos constituem o movimento da dialética em um universo
de discurso cuja estrutura hierárquica foi considerada infinita. A dialética não tem fim, no sentido de uma síntese e
resolução conclusiva, absoluta ou final das oposições. Ela pode ser repetida com tantas entidades quantas existirem,
com tantas entidades quantas puderem ser submetidas a esse tratamento. Se o desenvolvimento dialético tiver de
parar, e de fato parar, em qualquer estágio de sua trajetória, porque as exigências pragmáticas de um ambiente
biológico e do organismo humano inevitavelmente encerram a conversa, pelo menos o ritmo e a direção do processo
são suficientemente exemplificados, e a possível repetição interminável dos três acentos principais desse ritmo
dialético é mantida.
(4)
O resumo anterior conclui a descrição lógica da dialética. Agora é necessário avaliar essa descrição em outros
termos que não os próprios e examinar seu significado. Para fazer isso, a discussão primeiro retornará à descrição
empírica da dialética e tentará interpretar os aspectos da dialética em sua ocorrência empírica em relação ao relato
lógico que acabou de ser feito. Esse será um processo dialético em si próprio, no sentido de que a interpretação
assume a forma de tradução; as descrições empíricas e lógicas serão sintetizadas. Essa síntese revelará certas
implicações que não foram discutidas anteriormente em nenhuma das descrições parciais, e o seguimento dessas
implicações levará ao que pode ser chamado de uma descrição metafísica da dialética. Se a discussão parar nesse
ponto, suas limitações práticas serão indicadas, mas não sua finalidade ou conclusão.
Em relação aos aspectos controversos da conversação humana, a forma lógica da dialética pode ser pensada de
várias maneiras. Os empiristas inveterados podem preferir pensar que a forma da dialética é uma abstração dos
atributos e fases concretos da conversação humana, condicionada como é pela linguagem e pelo temperamento. A
dialética pode ser descrita abstratamente, mas seu status é apenas o de uma formulação de uma grande variedade de
ocorrências específicas e particulares. Certos traços do argumento atual são selecionados, isolados e generalizados, e
as hipóstases em que esse processo de análise empírica pode resultar constituem o que se entende por estrutura
lógica da dialética. O argumento atual é dialético em seu próprio direito, na medida em que tem certos traços, e não
porque se conforma a uma estrutura lógica que nada mais é do que um derivado linguístico, dada a reificação
ilusória.
Por outro lado, pode-se sustentar que o caráter lógico da dialética tem um status independente da experiência, da
natureza humana e da linguagem. A dialética tem esse caráter lógico em seu próprio direito, na medida em que é
vista como ocorrendo no universo do discurso como um reino do ser que é independente da experiência. A
conversação humana é dialética na medida em que é informada pela natureza abstrata da dialética, e essa extensão é
limitada pelas condições impostas ao discurso humano pela agência indispensável da linguagem e pela intrusão
inevitável da natureza humana. A dialética no abstrato, ou em seu status universal, é independente dessas limitações;
é somente no evento particular de uma instância empírica da dialética que as condições limitadoras operam.
Segundo essa perspectiva, a forma lógica da dialética é reguladora da dialética atual, e esta última se aproxima da
perfeição da forma na medida em que a controvérsia humana é disciplinada por referência às exigências do
procedimento abstrato.
Decidir entre os méritos do primeiro e do segundo desses pontos de vista é irrelevante para a discussão da dialética
como metodologia. A oposição desses pontos de vista é essencialmente a mesma que a oposição entre Abelardo e
Guilherme de Champeaux, o tema dialético do nominalismo em oposição ao realismo. Trata-se, de fato, de uma
questão fundamental, que deve ser enfrentada dialeticamente e não dogmaticamente. Fazer isso, no entanto,
envolveria uma discussão dialética em vez de, como se pretende, uma descrição do significado metodológico da
dialética. E para esse último propósito, o segundo ponto de vista é adotado, não dogmaticamente, mas pela
postulação de certas teses que concluem a seção sobre linguagem[35]. Esse ato de postulação é equivalente à
admissão de que um sistema parcial é aqui desenvolvido e que suas oposições não são negadas, mas
temporariamente ignoradas.
A atitude metodológica da presente discussão pode, talvez, ser melhor expressa da seguinte maneira: a descrição
lógica da dialética é um mito regulador. Assim como a cidade perfeita de Platão nos céus, ela pode ser mencionada,
independentemente de existir por si só, por seres humanos que, em sua situação terrestre e empírica, se deparam com
os fenômenos da argumentação — e do governo! O mito pode ter sua própria beleza; pode até mesmo ser uma
realidade definitiva em vez de uma ficção; mas, no momento, é um pouco de fabricação lógica que, como outras
fábulas, pode terminar com uma moral e servir para iluminar os assuntos humanos.
Em primeiro lugar, está claro que nenhum argumento ou controvérsia atual jamais se assemelha totalmente, ou
mesmo em grande parte, à forma abstrata da dialética. O exame anterior, neste livro, de vários casos de conversação
e disputa revelou a discrepância entre o que acontece atualmente e o padrão formal de definição, oposição, análise,
síntese, definição e oposição em sucessão lógica. Empiricamente, a dialética começa com qualquer uma dessas fases
e pode ou não se desenvolver a partir delas, pode ou não atingir um grau mínimo de resolução. É tão importante
perceber isso que será bom enumerar em detalhes a variedade de ocorrências específicas que constituem o discurso
humano. Em seguida, será tentada uma tradução dessas instâncias específicas em termos abstratos.
(1) Às vezes, as pessoas concordam em relação a uma proposição isolada, mas, após uma conversa mais
aprofundada, descobrem que o que elas consideravam ser a mesma proposição não tem o mesmo significado para
ambas. A identidade da declaração verbal, que foi interpretada de forma diferente por cada um, deu-lhes a ilusão de
concordância. Como essa ilusão foi desfeita, a conversa termina em desacordo.
Esse é um exemplo em que o ato lógico de análise é realizado. No decorrer da conversação, as implicações da
proposição original foram derivadas analiticamente. Mas cada um dos indivíduos derivou implicações diferentes do
que eles pensavam ser a mesma proposição. Isso sugeriu a eles que a mesma afirmação significava coisas diferentes
para cada um deles. A afirmação original é retomada e cuidadosamente definida por cada um dos participantes da
disputa. Os atos lógicos de definição nesse ponto demonstram a oposição entre dois sistemas de interpretação. Como
o desacordo foi esclarecido pelo desenvolvimento analítico desses dois sistemas, o argumento não vai adiante nesse
caso específico.
(2) Dois indivíduos concordam com relação a certas opiniões. No decorrer da conversa, eles tentam encontrar os
fundamentos de sua convicção comum, mas, ao fazê-lo, descobrem que não estão de acordo com as suposições
envolvidas. Percebendo suas diferenças nesse ponto, eles retornam ao tema original da discussão e descobrem que,
na proporção em que divergem com relação às suposições que fazem, sua interpretação do que pensavam ser uma
crença comum é diferente. Concluem, portanto, com algum grau de discordância.
Esse é um exemplo em que a tentativa de demonstrar certas proposições levou à descoberta de dois conjuntos
opostos de postulados capazes de fazer a demonstração. A elaboração analítica adicional dos dilemas envolvidos,
então, exibiu as diversas implicações e pressuposições das afirmações originais. A discordância é esclarecida e o
argumento não vai adiante.
(3) Uma conversação é iniciada com as partes concordando em relação a uma série de noções muito gerais que são
relevantes para o tema da discussão. A discussão prossegue para desenvolver as consequências desse acordo
aparente, mas na escolha entre os dilemas complicados que são encontrados no caminho, os participantes descobrem
que não concordam com o conjunto de consequências a serem derivadas do que eles pensavam ser suas suposições
comuns. Ao re-examinarem suas idéias iniciais com mais cuidado, descobrem as diferenças de opinião que causaram
sua oposição. A discussão termina com concordância parcial e discordância parcial.
Esse é um exemplo em que o desenvolvimento analítico do que aparentemente é um sistema único resulta em um
conjunto de implicações alternativas. A escolha exercida com relação a esses dilemas torna-se a base para a
redefinição da doutrina pressuposta. De acordo com os conjuntos de proposições selecionadas para inclusão, dois
sistemas diferentes são determinados. O argumento conclui com o esclarecimento de uma oposição sistemática.
(4) Duas pessoas leram um determinado livro. Elas acham que concordam com as teses nele promulgadas, mas
desejam saber exatamente o que entendem ser a doutrina do livro e se elas entendem a mesma coisa. A conversa
entre elas é uma experiência agradável na descoberta do grande número de idéias e princípios envolvidos e na
declaração de muitas das oposições que a teoria que está sendo discutida cria. Eles desfrutam dessa experiência de
entendimento comum e aparente concordância.
Esse é um exemplo da elaboração analítica de um sistema estabelecido por um conjunto de teses. A doutrina é
pressuposta, e a discussão apenas exibe o que está implícito na forma de teoremas subordinados e dilemas co-
implicados. Assim, o sistema é compreendido em termos de si próprio e em termos das doutrinas às quais se opõe.
Na medida em que as oposições foram declaradas, a conversa foi um tanto dialética.
(5) Uma disputa começa e termina com discordância; mas, no decorrer da controvérsia, os disputantes deixam claro
um para o outro não apenas os fundamentos de sua discordância, mas também suas consequências posteriores. Esse
é outro exemplo de dialética engajada meramente no esclarecimento de questões, diferindo do anterior apenas pelo
fato de que aqui ela qualifica uma disputa, enquanto antes era ocasionada por uma tentativa de alcançar um
entendimento comum.
(6) Os indivíduos entram em disputa sobre uma proposição afirmada por um deles. Para entender melhor essa
proposição, eles procuram encontrar a doutrina pressuposta que a explica. Eles descobrem que estão fazendo
suposições diferentes e, considerando sua oposição nesse ponto, encontram certos pontos de convicção comum. Isso
permite que eles formulem uma doutrina com a qual ambos concordam e, em termos desse acordo, chegam a um
entendimento comum do tema original de sua controvérsia. Assim, ambos são capazes de afirmar a mesma
proposição no mesmo sentido.
Esse é um exemplo de dialética realizada de forma mais completa. A tentativa de demonstrar uma determinada
proposição requer a intuição da doutrina que ela pressupõe; a tentativa de demonstrar o oposto da proposição dada
produz outra doutrina. Descobre-se que essas doutrinas têm certos pontos de interseção ou condições de identidade
comuns; e sua oposição sistemática é resolvida pela descoberta sintética do sistema supraordenado que seus pontos
de interseção pressupõem. Atos de definição e análise estabelecem esse sistema e determinam a inclusão e a ordem
de certas proposições como seus teoremas, entre elas a proposição do desacordo original. A oposição original é,
portanto, resolvida pela obtenção de algum insight comum por parte dos disputantes, sendo esse insight expresso na
doutrina que efetua a resolução. Essa doutrina, é claro, tem status intuitivo, mas enquanto no caso das doutrinas
subordinadas em oposição sistemática, duas percepções díspares estavam presentes, o sistema que efetua a resolução
é fundado por uma intuição intelectual comum aos dois indivíduos.
(7) No decorrer da conversação, os indivíduos se encontram em desacordo geral, mas ao mesmo tempo concordam
com relação a uma série de questões relativamente menores. Eles se concentram em seus pontos de concordância e,
ao descobrirem o que está pressuposto, alcançam um grau de entendimento maior do que o que tinham na origem. A
elaboração adicional do que está implícito em sua percepção comum encerra o argumento com um acordo bastante
geral.
Esse é outro exemplo de resolução dialética. A oposição sistemática com a qual o argumento começou é resolvida
pelo estabelecimento intuitivo de um terceiro sistema que é pressuposto pelas proposições com as quais eles
concordaram. Definições e análises posteriores esclarecem seu acordo e revelam as fontes da oposição que deu
início à controvérsia. Em termos de sua percepção comum, eles agora são capazes de traduzir mutuamente suas
diferenças originais e dissipar quaisquer discrepâncias de doutrina que tenham prevalecido anteriormente.
(8) Uma discussão progride da discordância para o acordo entre seus participantes. No entanto, embora se tenha
chegado a um acordo sobre a maioria dos pontos em questão, os participantes da disputa percebem que esse acordo
só foi alcançado se certas pontas soltas forem deixadas de fora da discussão. Eles percebem que somente ignorando,
por enquanto, certos pontos em questão é que podem chegar a qualquer acordo com relação a outros assuntos.
(9) Um exemplo semelhante ao anterior é quando dois indivíduos, ao chegarem a um acordo após uma discussão,
percebem que, se uma terceira pessoa estivesse presente, eles estariam agora conjuntamente em oposição a essa
terceira pessoa. Em outras palavras, eles percebem que seu acordo não exclui a possibilidade de mais controvérsias,
e isso é equivalente à qualificação de uma resolução dialética pela exibição de mais oposições envolvidas. Um
sistema supraordenado pode sintetizar e, até certo ponto, unificar dois sistemas conflitantes subordinados a si
próprio, mas quando ele próprio é definitivamente estabelecido, é imediatamente implicado em oposição a outros
sistemas que são seus coordenados hierárquicos.
(10) Às vezes, os argumentos vão do acordo ao desacordo e ao acordo novamente, ou, inversamente, do desacordo
ao acordo e ao desacordo novamente. Seria impossível fazer uma enumeração exaustiva dos vários modos e padrões
em que ocorrem as controvérsias e conversações atuais. Porém, em geral, os exemplos anteriores exemplificam um
pouco a variedade de maneiras pelas quais o discurso humano é mais ou menos informado pela estrutura lógica e
pelos processos da dialética. Muitos desses exemplos são dialéticos em apenas um aspecto ou noutro, e são
extremamente simplificados e incompletos se julgados em termos do padrão abstrato do procedimento dialético. No
entanto, todos são casos de argumentação ou conversação em que um determinado modo de procedimento parece
produzir certos resultados. É isso que torna relevante o mito metodológico da forma lógica da dialética. Será
esclarecedor examinar agora casos de argumentação malsucedida, ou seja, exemplos de conversas ou disputas cuja
forma é ruim, ou, o que é equivalente, exemplos de controvérsia que, de uma forma ou de outra, evitam a dialética
ou não a alcançam.
(11) As pessoas geralmente se contentam com esclarecimentos. Para elas, é suficiente que a conversa permaneça
dentro dos limites de um acordo educado e, assim, se reafirme. As múltiplas oposições que cercam seus limites são
ignoradas e, com isso, a dialética é evitada. É considerado indelicado ser forense; as conversas que tendem a se
tornar abstrusas e filosóficas, em suma, dialéticas, são socialmente proibidas. O ponto significativo, no entanto, não
é o fato de a polêmica ser considerada desagradável por algumas pessoas, mas sim o fato de que, se uma conversa
não se submeter à consideração das oposições sobre as quais ela se debruça, ela não poderá se tornar dialética. O
esclarecimento por si só não é suficiente.
(12) Há a experiência familiar de argumentação na qual os disputantes parecem não ter um ponto de encontro
comum. Esse tipo de argumento está, é claro, fadado a ser estéril de questões intelectuais; sua futilidade é
equivalente ao seu caráter não-dialético. Disputas desse tipo geralmente duram horas até que se perceba que, embora
tenha havido uma discussão aparente, não há oposição genuína de opiniões. Os indivíduos envolvidos estavam
falando sobre coisas totalmente diferentes e, por essa razão, a disputa entre eles era ilusória e, portanto, incapaz de
ser resolvida ou mesmo esclarecida.
Esse é um caso em que as proposições afirmadas respectivamente por dois indivíduos são totalmente exclusivas, e
não parcialmente exclusivas uma da outra. A semelhança verbal das afirmações que unem as proposições
frequentemente mascara a ruptura absoluta entre o que cada um pretende e cria a ilusão de um argumento aparente.
As proposições que são totalmente exclusivas umas das outras não estão em oposição efetiva; elas não têm
condições de identidade comum; elas não implicam uma à outra definitivamente; elas são incapazes de inclusão em
alguma classe ou todo supraordenado. A dialética é completamente proibida por essas condições e pode entrar em
tal situação somente na medida em que algum universo comum de discurso possa ser encontrado, ou, em outras
palavras, na medida em que a exclusão total seja transformada por processos de análise, definição e síntese em
exclusão parcial, que então pressupõe imediatamente a possibilidade de resolução dialética.
(13) Em alguns casos de dissipação de contendas, o acordo que conclui o caso é considerado sem qualquer
qualificação. Os disputantes ou afirmam que as proposições de sua conclusão são verdadeiras independentemente
das limitações dos fundamentos de seu argumento, ou não percebem que a controvérsia futura inevitavelmente
implica em qualquer acordo que tenha sido alcançado. Mais uma vez, isso é uma falha em ser completamente
dialético, e o discurso humano é frequentemente defeituoso nesse aspecto específico. Isso pode ser atribuído ao fato
de que os disputantes não assumem uma atitude de imparcialidade em relação aos assuntos do discurso, uma atitude
que expressa a percepção da inconclusão e da relatividade de qualquer instância da dialética. O acordo visto com
imparcialidade é entendido como sendo apenas temporário e determinado por uma resolução parcial; o desacordo
visto com imparcialidade é entendido como sendo igualmente temporário e capaz de uma resolução eventual.
(14) No decorrer da argumentação, um indivíduo pode afirmar uma proposição como um fato. Toda a argumentação
cessa nesse ponto. Uma proposição cujo status é factual e não discursivo é incapaz de qualquer tratamento dialético,
desde que seja considerada em suas determinações factuais. Se o significado do fato for questionado, é possível que
a argumentação continue na interpretação do fato. Mas se uma proposição é meramente afirmada como factual e seu
oposto é negado como contrário ao fato, a oposição é imediatamente anulada; as proposições tornam-se totalmente
exclusivas e não têm co-implicação. O significado adicional desse ponto será discutido mais detalhadamente
posteriormente. Por ora, é suficiente ver que uma proposição pode ser tratada dialeticamente apenas quando é
considerada em um campo de implicações. Em tal contexto, ela é capaz de implicação e demonstração, e de
subsunção hierárquica, e, portanto, suscetível aos processos de definição, análise e síntese. Mas um fato qua fato não
é logicamente demonstrável, nem tem qualquer status hierárquico. Portanto, afirmar uma proposição como um fato é
tirá-la do campo das implicações e do alcance da dialética. A atitude de impraticalidade é necessária aqui para
disciplinar a natureza humana e evitar a tendência comum de introduzir fatos no discurso.
(15) Em todas as instâncias de argumentação em que não se chega a um acordo, e há muitas delas, a culpa reside nos
poderes limitados da imaginação intelectual e nas condições temperamentais que circunscrevem sua liberdade.
Quando o insight está confinado respectivamente às intuições díspares que geram os sistemas em oposição,
nenhuma síntese pode ocorrer e, portanto, nenhuma resolução. O que é necessário é a liberdade intelectual para
transcender as limitações de qualquer percepção parcial e, por meio de um salto imaginativo, alcançar uma visão
mais abrangente das coisas. Qualquer sistema é baseado em uma doutrina cujas proposições têm status intuitivo em
relação aos teoremas demonstráveis do sistema. A oposição de sistemas é, portanto, uma oposição de intuições
díspares, e a realização de sua síntese só pode ocorrer se cada um dos disputantes for capaz de ampliar sua
percepção ou de obter uma nova percepção que será expressa na forma de novas proposições intuitivas. Essas
podem então estabelecer um sistema de nível supraordenado, capaz de incluir e resolver os sistemas fundados nos
insights parciais. Portanto, a síntese é sempre um ato de intuição intelectual. As atitudes disciplinares de postulação
explícita e clareza emocional são necessárias para seu exercício livre e eficaz.
A discussão anterior deixa clara, em primeiro lugar, a relação entre a forma lógica reguladora da dialética e as
medidas disciplinares propostas para tornar a natureza humana capaz da forma de discurso assim regulada. A atitude
de imparcialidade reconhece a intenção infinita da hierarquia discursiva e a parcialidade de qualquer conclusão
dialética; a atitude de impraticalidade reconhece a irrelevância das determinações factuais para as questões do
discurso e libera a dialética do objetivo de chegar a conclusões finalmente verdadeiras ou verdadeiras
extrinsecamente; e os princípios da clareza emocional e da postulação explícita são auxiliares da liberação do insight
e da imaginação intelectual, culminando no ato da síntese intuitiva.
Em segundo lugar, as teses desenvolvidas na discussão sobre a linguagem podem agora ser traduzidas em seus
equivalentes lógicos. A ambiguidade das afirmações verbais causa a aparente concordância ou discordância que tão
frequentemente ocorre na argumentação, e que a dialética precisa esclarecer determinando a força proposicional
precisa das afirmações verbais. A afirmação é compreendida quando é colocada no contexto de outras afirmações
que a definem e explicam, no que foi chamado de modo de metáfora ou universo de discurso. Os modos de metáfora
e os universos de discurso são equivalentes aos sistemas de proposições, no contexto dos quais o significado de
qualquer proposição individual é determinado. A oposição de sistemas é a formulação lógica do conflito de
afirmações em diversos modos de metáfora ou universos de discurso díspares; mas esse conflito só é inteligível se os
modos de metáfora e os universos de discurso não forem totalmente disjuntos. Essa disjunção seria equivalente à
exclusão total e à falta de co-implicação. Os disputantes devem ter alguma linguagem em comum; até certo ponto,
eles devem se mover no mesmo universo de discurso para argumentar de forma inteligível e para chegar a qualquer
acordo ou resolução de suas diferenças.
Ademais, o fenômeno da tradução que ocorre entre universos de discurso pode agora ser formulado em termos da
subsunção de dois sistemas parciais em oposição sob o sistema que os inclui e unifica[36]. As proposições dos dois
sistemas em oposição são mutuamente traduzíveis em razão de sua intervalência parcial com o conjunto de
proposições que compreende o terceiro sistema que efetuou sua síntese. A síntese lógica é, portanto, a expressão
parcial da intervalência de cada um dos sistemas unificados, com o sistema que efetua a síntese, e na medida em que
essa intervalência é obtida, a tradução entre eles se torna mais ou menos possível. A intervalência de sistemas com
pontos de interseção ou condições de identidade em comum é o aspecto lógico da congruência de universos parciais
de discurso ou a sobreposição de modos de metáfora, e o fenômeno da tradução pode ser expresso em qualquer um
desses conjuntos de termos. É pelo fenômeno da tradução que os seres humanos entendem uns aos outros e é
essencialmente esse o objetivo de toda conversação e discussão humana. O acordo e a compreensão são, portanto,
ambas funções do mesmo fenômeno — a tradução de sistemas, universos de discurso ou metáforas, como resultado
de sua intervalência parcial e sua unificação parcial. O valor humano da resolução dialética está no fato de que, por
um lado, ela depende da possibilidade de tradução e, por outro lado, ela atualiza essa possibilidade.
A tradução às vezes ocorre na fase preliminar da dialética que esclarece a questão por meio dos atos de definição e
análise. Isso é o que acontece quando as pessoas discordam e ainda assim se entendem. Mas o fato de poderem se
entender de alguma maneira é essencialmente incompatível com a permanência de sua discordância, pois, na medida
em que ocorre o entendimento e a tradução, os sistemas em oposição são de certo modo equivalentes, compartilham
condições de identidade e são suscetíveis à unificação e à síntese. A síntese efetua a resolução que o entendimento
preliminar indicou ser possível, e essa resolução completa o mero entendimento e o torna mais eficaz pelo
estabelecimento de um acordo. A dialética visa à resolução, bem como à tradução, e a conversação e a controvérsia
humanas certamente buscam o acordo para completar o entendimento.
(5)
A relação entre a descrição da dialética em termos de linguagem e da natureza humana, por um lado, e em termos de
forma lógica, por outro, foi agora explicitada. Em outras palavras, o mito da natureza abstrata da dialética no
universo do discurso serviu ao seu propósito metodológico de iluminar e talvez explicar as características do
discurso concreto na situação atual da argumentação e da controvérsia humanas. No entanto, há uma discrepância
fundamental, cuja consideração levanta o problema mais crucial a ser enfrentado no relato lógico da dialética. A
solução do problema é crítica; ela não apenas tem a ver com a própria essência da dialética, mas revela que essa
característica essencial da dialética é o que a torna intelectualmente significativa.
A discrepância mencionada é entre o que parece ser uma contradição no argumento atual e o que se afirma ser uma
oposição em vez de uma contradição no discurso. A contradição é uma relação entre proposições exibidas pelos atos
de afirmação e negação. A discrepância surge porque a discussão humana está infectada com afirmações e negações,
ao passo que as entidades proposicionais no domínio do discurso simplesmente são; elas não são nem afirmadas nem
negadas; elas são meramente entretidas. Há, portanto, um conflito entre os fenômenos da contradição e da oposição
que requer esclarecimento e resolução.
A contradição surge por meio da afirmação de duas proposições relacionadas de modo que a afirmação de uma delas
é equivalente à negação da outra. A oposição surge por meio da implicação da alteridade na definição, em sua
função de diferenciação e anulação. Mas a negação não é anulação. Duas proposições em oposição não se
contradizem; elas se anulam na medida em que se excluem parcialmente. Duas proposições em contradição, por
outro lado, excluem-se totalmente. Essa é uma diferença significativa entre oposição e contradição.
Acredita-se que o fato da discordância, que é a causa da controvérsia e da disputa entre os seres humanos, seja
devido ao fenômeno da contradição. Um indivíduo afirma o que outro nega. Se isso for verdade, então se segue que
o desacordo e as controvérsias atuais que ele gera no discurso humano não são passíveis de tratamento dialético,
pois se a dialética é incapaz de tratar proposições em exclusão absoluta, ela estará proibida de lidar com
contradições. Esse é o ponto crucial do problema. Tentaremos agora enfrentar essa dificuldade fazendo a distinção
entre a contradição de proposições isoladas e a contradição de proposições em sistemas. Se puder ser demonstrado
que não pode haver contradição de proposições em contextos sistemáticos, então se seguirá que, como a dialética, ao
lidar com qualquer conjunto de proposições, sempre gera seus contextos sistemáticos, o fenômeno da contradição é
essencialmente irrelevante para a dialética.
Afirmar uma proposição é equivalente a afirmar sua verdade. A regra da contradição é a de que, se uma de um par
de proposições contraditórias for verdadeira, a outra, sua contraditória, deve ser falsa. Portanto, negar uma
proposição é o mesmo que afirmar a verdade de sua contraditória, e vice-versa. No caso de pares isolados de
proposições, então, a contradição deve ser interpretada em termos da relação das proposições com os fatos. A
afirmação de uma proposição isolada como verdadeira é uma afirmação de que os fatos são tais e tais; a proposição
contraditória tem sua verdade negada porque os fatos não são tais e tais.
Mas as proposições são entidades no discurso. Qualquer que seja a relação que tenham com os fatos, elas também
estão em relação a outras proposições, sendo que o conjunto dessas relações compreende o campo da implicação.
Afirmar uma proposição como verdadeira tem, portanto, dois significados além do que acabamos de declarar: pode
significar que a proposição tem status intuitivo, ou seja, que é assumida como verdadeira; ou pode significar que
tem status demonstrativo, ou seja, que é implicada verdadeiramente por outras proposições, que são elas mesmas
demonstradas ou postuladas. Essas duas definições de verdade descrevem o que pode ser chamado de verdade
sistemática ou intrínseca, uma vez que a verdade aqui depende, e depende apenas, da relação das proposições entre
si no discurso. A verdade de uma proposição isolada pode ser chamada de verdade extrínseca, uma vez que depende
da relação da proposição com entidades fora do discurso, fatos em vez de proposições.
A dialética, que consiste em processos de definição, análise e síntese, nunca pode se aplicar a uma única proposição
isolada ou a um par de tais proposições em contradição. Ela pode começar com um par de proposições em aparente
contradição, devido aos atos de afirmação e negação, mas se quiser ser eficaz, a dialética deve reinterpretar a
contradição como meramente aparente e mostrar que ela é, antes, uma instância de oposição. Ela faz isso colocando
as proposições em questão em contextos sistemáticos, exibindo suas relações de implicação, de forma definitiva e
analítica. Como membros de um sistema, as proposições são afirmadas verdadeiras intrinsecamente, seja como
assumidas ou demonstradas, em vez de extrinsecamente, e com esse tipo de afirmação a dialética é capaz de
prosseguir.
Porém, agora surge um curioso paradoxo. Se as proposições em aparente contradição não são, por causa de suas
implicações, membros do mesmo sistema, elas não podem se contradizer sistematicamente. Elas podem, é claro,
ainda estar em contradição em termos dos fatos, mas isso é em seu status como proposições isoladas, e não como
elementos de um sistema. Como uma proposição é definida pelo sistema de proposições ao qual pertence, ela não
pode ser contradita por uma proposição pertencente a outro sistema e definida por esse outro sistema, se esse outro
sistema tiver alguns elementos doutrinários em comum com o primeiro sistema. Nesse caso, os dois sistemas seriam
apenas parcialmente exclusivos um do outro e, portanto, estariam em uma relação de oposição, e não de contradição.
Isso pode ser afirmado mais claramente, talvez, da seguinte forma: a afirmação de que uma proposição é verdadeira
em um sistema significa que ela é um postulado ou definição assumida como verdadeira, ou um teorema provado
como verdadeiro. O fato de uma proposição ser negada em um sistema significa que ela não é assumida nem
demonstrada nesse sistema, o que equivale a dizer que ela é inconsistente com esse sistema e, portanto, não é
membro dele. Um sistema é um conjunto de proposições consistentes entre si. A menos que o sistema seja
logicamente imperfeito, não pode haver proposições contraditórias entre os membros do sistema. Todas essas
proposições são excluídas do sistema por seu desenvolvimento definitivo e analítico. Uma proposição excluída de
um sistema não pode ser afirmada nem negada em termos do sistema. Ela é simplesmente negada, ou seja, excluída
do sistema pela doutrina que determina a força demonstrativa do sistema. Se a proposição excluída deve ser
afirmada, não em relação aos fatos, mas em relação a outras proposições, ela deve ser afirmada no contexto de outro
sistema, com cujos membros ela é consistente, seja como um postulado ou como um teorema[37].
A relação das duas proposições que estavam em aparente contradição deve agora ser determinada pela relação dos
respectivos sistemas nos quais elas são verdadeiras. Os dois sistemas podem estar em uma relação de oposição ou de
contradição. Se estiverem em oposição, estão relacionados um ao outro como partes de um todo supraordenado. Se
estiverem em contradição, não estão relacionados dessa forma; são totalmente exclusivos um do outro. Porém, isso
não pode ser, pois se fossem totalmente exclusivos um do outro, sua contradição não poderia ser determinada
sistematicamente, pois dois sistemas são inconsistentes um com o outro exatamente no mesmo sentido em que duas
proposições são inconsistentes uma com a outra, ou seja, pela determinação de suas relações de implicação. Dois
sistemas podem ser inconsistentes entre si apenas na medida em que são parcialmente membros de algum sistema
mais inclusivo, sendo esse último sistema capaz de demonstrar algumas de suas proposições membros, mas não
todas elas. Dois sistemas, portanto, se não forem idênticos um ao outro, devem ser apenas parcialmente
inconsistentes um com o outro, se sua inconsistência tiver que ser determinada. Portanto, não há dois sistemas que
possam estar em relação de exclusão total um do outro e, ao mesmo tempo, serem julgados inconsistentes com
outro. Eles podem ser inconsistentes apenas como membros de um sistema mais inclusivo, assim como as
proposições podem ser inconsistentes apenas como elementos em um sistema. Dois sistemas, portanto, não podem
estar em contradição se a contradição envolver exclusão total; mas se a contradição não envolver exclusão total,
então, na medida em que ocorre entre sistemas ou entre os elementos proposicionais dos sistemas, é o mesmo que
oposição.
Isso pode ser resumido nas seguintes afirmações: (1) Proposições contraditórias só podem ocorrer em um único
sistema, uma vez que sua inconsistência entre si é determinada por sua relação implicativa com outras proposições, e
essas relações implicativas determinam um sistema. (2) Mas um sistema consistente exclui todas as contradições de
suas proposições membros. (3) As contradições de um determinado conjunto de proposições que formam um
sistema só podem, portanto, ocorrer fora do sistema desse determinado conjunto. Elas podem ou não formar um
sistema, de acordo com o fato de serem tratadas analiticamente ou não. Se não forem tratadas dessa maneira, no
entanto, elas têm o status de proposições isoladas e, portanto, só podem ser afirmadas da mesma maneira que as
proposições isoladas. (4) No entanto, se forem colocadas em um contexto sistemático próprio, elas não podem
contradizer as proposições do primeiro sistema, pois isso seria inconsistente com a afirmação (1), a saber, que
proposições contraditórias só podem ocorrer dentro de um único sistema. (5) Portanto, se as proposições estão em
aparente contradição, mas pertencem a sistemas diferentes, os dois sistemas devem pertencer a alguns sistemas mais
inclusivos. (6) Contudo, os dois sistemas não são totalmente exclusivos um do outro; as proposições de seus
membros devem ser, em alguma medida, consistentes entre si e, em alguma medida, inconsistentes entre si. (7) O
sistema supraordenado exclui as proposições-membro dos sistemas subordinados que são inconsistentes com seu
caráter analítico. (8) Essas proposições podem ser novamente consideradas como estando em aparente contradição
com as proposições incluídas no sistema. (9) Entretanto, se elas forem sistematicamente desenvolvidas, ficará claro
que a contradição é apenas aparente, e não real. Pois, mais uma vez, descobre-se que os sistemas são apenas
parcialmente exclusivos, em vez de estarem em total exclusão e contradição. (10) Portanto, pode-se concluir que, na
medida em que a relação das proposições é determinada pelo sistema ao qual elas pertencem, e a relação dos
sistemas de proposições é determinada pelo sistema supraordenado ao qual esses sistemas pertencem, as entidades
no discurso, sejam elas proposições ou sistemas, nunca podem estar em contradição, desde que sejam tratadas
inteiramente como entidades no discurso, ou seja, tratadas sistematicamente, o que equivale a serem tratadas
dialeticamente.
O dilema enfrentado por essa linha de raciocínio pode ser definido da seguinte maneira: ou não pode haver um
sistema consistente, ou não pode haver proposições contraditórias em relação a qualquer sistema. Esse dilema é
resolvido pela distinção entre a exclusão parcial e total de proposições de um sistema. Qualquer sistema pode ser
consistente se excluir certas proposições; mas se as excluir totalmente, ele as coloca em relação de contradição com
ele mesmo. Por outro lado, se as excluir parcialmente, o sistema pode ser consistente e, ainda assim, estar
relacionado às proposições excluídas por oposição, e não por contradição. Portanto, em termos da onipresença da
exclusão parcial como a relação entre proposições e sistemas, o dilema é resolvido: os sistemas podem ser
internamente consistentes e, ao mesmo tempo, não estar sujeitos à contradição por proposições tornadas externas a si
mesmos por exclusão.
Na medida em que a dialética depende da definição, a exclusão parcial ocorre universalmente entre as proposições
ou sistemas submetidos ao tratamento dialético. A definição é incapaz de estabelecer a exclusão total. Portanto, a
contradição é irrelevante para as proposições tratadas de forma definidora e analítica. A contradição só pode ocorrer
entre proposições isoladas. Mas a dialética não pode lidar com proposições isoladas. Portanto, a dialética é
confrontada apenas com a relação de oposição entre proposições e sistemas, e nunca com a relação de contradição.
A contradição, se ocorrer apenas entre proposições isoladas, deve ser determinada pela relação dessas proposições
com os fatos. Em nenhum outro sentido uma proposição isolada pode ser afirmada verdadeira, e a menos que uma
das duas proposições seja afirmada verdadeira, a outra não pode ser negada, e elas não estão em contradição. Porém,
a relação entre uma proposição e um fato é uma relação entre uma entidade no discurso e uma entidade que não está
no discurso, e essa relação em si não pode estar no discurso[38]. Portanto, segue-se que no universo do discurso a
relação de contradição nunca existe, embora possa existir entre proposições isoladas em relação ao reino dos fatos.
Essa conclusão é equivalente às afirmações já feitas de que a intrusão de um fato interrompe a dialética, de que a
verdade extrínseca é irrelevante para a dialética, de que a dialética só se preocupa com a oposição de entidades no
discurso e de que, ao lidar com relações de implicação definitiva e analítica, ela só afirma a verdade de uma
proposição sistematicamente ou em sua relação intrínseca com outras proposições.
Com relação a uma proposição isolada considerada como uma proposição isolada no discurso, a máxima dialética é
que ela pode ou não ser verdadeira, o que significa que ela não pode ser verdadeira nem falsa. Isso vale para a
proposição enquanto ela mantiver um status isolado no discurso. Se ela for colocada em um contexto sistemático e
for consistente, será uma proposição verdadeira nesse sistema e somente nesse sistema; sua verdade é determinada
pela estrutura interna do sistema. Sempre que for considerada meramente como uma proposição isolada, tudo o que
pode ser afirmado é que ela pode ou não ser verdadeira. Essa é uma disjunção genuinamente problemática, e não
uma disjunção apodíctica, como geralmente é concebida. Dizer que uma proposição isolada, considerada meramente
como uma entidade no discurso, pode ou não ser verdadeira não significa que ela deva ser verdadeira ou falsa. Se ela
pode possivelmente ser verdadeira ou falsa, então ela atualmente pode ser verdadeira ou falsa. É nesse sentido que
se diz que a verdade é irrelevante para uma proposição isolada considerada meramente como uma entidade no
discurso.
Essa demonstração de que duas proposições isoladas não podem se contradizer, na medida em que são tratadas
discursivamente, corrobora a disjunção problemática com relação a qualquer proposição isolada, que pode ou não
ser verdadeira. De acordo com essa disjunção, uma única proposição isolada não pode ser verdadeira nem falsa; ela
pode apenas ser entretida. Segue-se, então, que se um par de proposições isoladas é considerado em aparente
contradição, essa contradição deve ser meramente aparente, porque se a verdade ou falsidade de nenhuma
proposição pode ser afirmada, a contradição não pode ser afirmada. Uma das duas proposições deve ser afirmada
como verdadeira para que sua contraditória seja negada. Mas uma proposição isolada pode ou não ser verdadeira.
Portanto, ela nunca pode estar em uma relação de contradição. Isso se aplica, é claro, apenas às proposições em suas
relações discursivas, e não em relação aos fatos.
Em um sistema, entretanto, as proposições podem ser verdadeiras ou falsas; e no mesmo sentido em que sua verdade
é determinada pela força implicativa do sistema, sua inconsistência entre si é determinada. Uma proposição em um
sistema, portanto, pode não apenas ser verdadeira, mas também estar em uma relação de inconsistência com outras
proposições. Essas proposições inconsistentes não são negadas como verdadeiras; elas são simplesmente negadas
como verdadeiras no sistema dado, o que é equivalente a serem excluídas do sistema. Elas são negadas em vez de
contestadas. A inconsistência das proposições é a mesma que a relação de oposição entre elas: ambas dependem da
exclusão parcial, e não total; e em ambas a verdade de uma, de um par de proposições inconsistentes. não implica a
falsidade da outra, porque a verdade da primeira é determinada em um determinado sistema, e a última é meramente
excluída desse sistema, e pode ser similarmente verdadeira em algum outro sistema, que por sua vez excluiria a
primeira proposição como inconsistente com ela. O que parece ser a contradição de proposições em um sistema é,
portanto, visto como uma relação de inconsistência ou oposição, envolvendo desconsideração e não negação. A
relação de inconsistência permite que ambas as proposições do par, entre as quais ela ocorre, sejam verdadeiras em
sistemas diferentes, enquanto a contradição permite que apenas uma das proposições do par seja verdadeira; a outra
deve ser falsa.
Duas teses podem ser formuladas com relação ao valor de verdade das proposições como entidades no discurso: (1)
Uma proposição isolada pode ou não ser verdadeira, ou, em outras palavras, não é nem verdadeira nem falsa. A
contradição não pode ocorrer, portanto, entre proposições isoladas. (2) Qualquer proposição pode ser verdadeira em
algum sistema no qual ela é determinada implicitamente. O fato de uma proposição ser falsa significa que ela não
está implícita em um determinado sistema, o que equivale a ser excluída desse sistema por ser inconsistente com ele.
Duas proposições no mesmo sistema, portanto, não podem permanecer em uma relação de contradição; e duas
proposições em sistemas diferentes podem ser ambas verdadeiras em seus respectivos sistemas e, portanto, não
podem estar em contradição. A relação que se estabelece entre elementos de um sistema, ou sistemas diversos, ou
entre sistemas como um todo analítico, é uma relação de inconsistência. A inconsistência deve ser uma relação de
exclusão parcial. Se envolvesse exclusão total, dois sistemas inconsistentes um com o outro não seriam unidades
parciais, mas unidades absolutas[39], incapazes de síntese posterior. A hierarquia das entidades discursivas seria
finita. Portanto, na medida em que as entidades do discurso são tratadas dialeticamente, sua inconsistência é sempre
uma relação de exclusão parcial, e a relação de exclusão total ou contradição nunca ocorre entre elas.
Se a contradição é uma relação que nunca ocorre entre as entidades do universo do discurso, há, então, duas
implicações adicionais de importância primordial a serem extraídas, uma com relação à natureza da dialética em sua
ocorrência atual na controvérsia humana, e a outra com relação à natureza do universo do discurso no qual a
dialética tem sua natureza formal e abstrata.
Em primeiro lugar, então, na medida em que a discussão humana é dialética, ela nunca se depara com contradições.
Os desacordos, se forem sempre instâncias de oposição em vez de contradição, são sempre passíveis de resolução.
Se a afirmação e a negação ocorrem na controvérsia humana e têm como objetivo a afirmação ou a negação de um
fato, então a discussão deixa de ser dialética. Mas se a afirmação ou a negação for pretendida dialeticamente, ou
seja, como afirmação ou negação das relações implicativas ou demonstrativas de uma proposição em um sistema,
então tais atos de afirmação ou negação exibem relações de inconsistência em vez de contradição. A inconsistência
determina a exclusão de uma proposição de um sistema, mas essa exclusão é sempre parcial e, portanto, uma
instância de oposição e não de contradição. A natureza lógica da dialética pode, portanto, ser resumida da seguinte
maneira: a dialética lida exclusivamente com a oposição entre entidades no discurso; toda oposição é passível de
resolução; toda resolução é inconclusiva, sendo em si mesma tão parcial quanto as entidades entre as quais a
oposição foi resolvida. A conversação e a argumentação humanas, na medida em que são dialéticas, nunca precisam
terminar em desacordo, mas, por outro lado, se terminarem em acordo, esse acordo não é final, e as proposições que
o expressam são verdadeiras apenas no mesmo sentido limitado em que o acordo é estabelecido. Elas são
verdadeiras no sentido de serem consistentes com uma doutrina que é reconhecidamente parcial e inconclusiva. A
atitude dialética em relação a tais acordos, portanto, deve ser de imparcialidade. O partidarismo que gera a
controvérsia deve ser qualificado pela imparcialidade em relação a quaisquer conclusões a que se chegue. A
dialética não está interessada na verdade final sobre qualquer coisa, nem na atualidade; ela está interessada no que
pode ou não ser verdade, ou seja, na possibilidade. Trata-se de um processo de considerar qualquer idéia como
possivelmente verdadeira, de se engajar no partidarismo intelectual provocado por essa suposição e de manter, ao
mesmo tempo, uma atitude de imparcialidade intelectual durante todo o processo.
Isso leva à segunda implicação. Se o universo do discurso está livre da relação de contradição; se qualquer entidade
no discurso pode ou não ser verdadeira; se o universo do discurso é uma ordem hierárquica infinita cujos elementos
estão em oposição infinita, e cada oposição é capaz de uma resolução apenas parcial e inconclusiva, então o
universo do discurso deve ser um reino de possibilidades. A análise do universo do discurso como o reino da
possibilidade constitui uma descrição metafísica da dialética.
A Descrição Metafísica
Uma teoria metafísica é um sistema analítico cuja característica diferenciadora é o fato de afirmar ser a análise de
um todo último. É claramente uma instância da dialética em seu aspecto sistemático, mas sua reivindicação de ser a
análise de um todo último lhe confere uma qualidade completamente dogmática, uma vez que um todo último
transcende a oposição, e a teoria que é seu equivalente analítico teria o status de finalidade.
Se houver algum todo que seja ao mesmo tempo último e infinito, a teoria metafísica que apresenta a definição e a
análise desse todo pode estar livre de dogmatismo e ser completamente dialética. A postulação de tal classe última
não seria dominada pelas dificuldades da teoria dos tipos, uma vez que, sendo infinita, essa classe última seria
indeterminada. Ela seria última no sentido de incluir todas as entidades de uma determinada ordem e não ser
incluída de forma semelhante. Ela não poderia incluir a si mesma porque, sendo indeterminada, não teria o status de
uma entidade da ordem especificada e, portanto, não poderia fazer parte dessa ordem. No entanto, seria determinada
em um aspecto, que é com relação à relação ordenada de suas partes. Esse todo último seria ao mesmo tempo
determinado e indeterminado se fosse considerado como a ordem determinada de uma classe infinita de entidades.
Com relação ao número de entidades incluídas, a classe seria infinita ou indeterminada; com relação à ordem de sua
inclusão, a classe seria altamente determinada.
O universo abrangente do discurso é um todo último no sentido definido. Ele inclui todas as entidades de uma
determinada ordem; termos, proposições, sistemas e todos os universos parciais superiores do discurso. A ordem
dessas entidades é a estrutura hierárquica das relações parte-todo, e essa é uma ordem tanto infinita quanto
determinada. Na medida em que o universo abrangente do discurso é uma classe indeterminada, ele não pode ser
uma parte de si mesmo; e na medida em que é determinado, como a ordem de seus membros, ele não pode ser um
membro dessa ordem, pois ele é essa ordem.
Deve-se observar, além disso, que o universo abrangente do discurso é designado como um todo último, e não como
o todo último. Se fosse o todo último, teria de ser completamente indeterminado e absolutamente inclusivo. Mas o
universo do discurso é determinado como uma certa ordem de entidades, e essa determinação define a natureza do
universo do discurso de tal forma que ele é exibido em oposição a uma ordem de entidades que não estão no
discurso. O universo do discurso, sendo de certa forma determinado, é, portanto, capaz de definição e análise; e essa
definição e análise não apenas determinam o universo do discurso, mas, por diferenciação e exclusão parcial,
determinam e implicam seu oposto. Seu oposto, conforme determinado pela força negativa da definição, é
meramente a classe de todas as entidades que não estão no discurso.
A teoria metafísica cujo postulado é a existência de um universo abrangente de discurso pode, portanto, ser
avançada dialeticamente. Ela tentará, em primeiro lugar, uma definição e análise do todo último que postulou; e, em
segundo lugar, tentará lidar com a oposição provocada pela definição e análise desse todo, cujo esclarecimento ou
resolução só pode ter o status dialético de inconclusão e parcialidade. Isso equivale a dizer que a teoria metafísica,
se for dialética, deve ocorrer no universo do discurso que ela postula e tenta analisar, uma vez que a dialética é
definida como ocorrendo apenas no universo do discurso. Isso não é paradoxal, embora possa parecer. Qualquer
teoria metafísica é um sistema parcial, mesmo que seja o equivalente analítico de um todo último; pois esse todo,
sendo capaz de ser analisado, deve ser determinado e, nesse sentido, deve ser ele mesmo parcial. No mesmo sentido,
então, que o universo abrangente do discurso pode ser ao mesmo tempo infinito e determinado, ele pode incluir em
si mesmo a teoria metafísica que afirma ser seu equivalente analítico.
As duas tarefas que se impõem a uma descrição metafísica da dialética já foram declaradas. A primeira é a definição
e a análise do universo do discurso como um todo último, infinito e determinado. A dialética tem sua existência no
universo do discurso. Ela ocorre geralmente em universos parciais do discurso, mas se há um reino do discurso em
geral, a natureza da dialética deve, em última análise, ser interpretada em termos desse universo abrangente do
discurso.
Porém, como essa interpretação metafísica da natureza da dialética em termos do discurso em geral ocorre no
discurso e deve se submeter aos processos da dialética, se quiser evitar o dogmatismo, uma segunda tarefa lhe é
imposta. A doutrina metafísica, ao definir o universo do discurso, torna-se um sistema determinado, portanto parcial
e em oposição. O esclarecimento e, talvez, a resolução dessa oposição é a segunda tarefa; em certo sentido, trata-se
de uma consideração dialética do discurso como um todo e, como a dialética está sendo descrita em termos desse
todo, a discussão, nesse ponto, entra em uma dialética da própria dialética, por mais anômalo que isso possa parecer.
(1)
A postulação de um universo geral de discurso não envolve necessariamente qualquer predicação ontológica. O
postulado, ademais, não deve ser confundido com uma proposição existencial; é, antes, uma proposição intuitiva na
doutrina metafísica que está sendo desenvolvida aqui, e deve ser considerada como tendo a mesma força de uma
função proposicional.
Postula-se que há um universo abrangente de discurso que tem o caráter de uma classe infinita de entidades
ordenadas cuja estrutura é determinada.
O universo do discurso considerado como esse todo final é um reino do ser. As entidades desse reino do ser são
especificadas como termos, proposições, sistemas, universos parciais do discurso e as relações que se estabelecem
entre essas entidades. As relações foram especificadas como relações de implicação, inclusão e exclusão, e relações
derivadas como consistência, intervalência, pressuposição e identidade.
Não há entidades que não estejam relacionadas nesse domínio. Um termo pode ser considerado como uma relação
de termos subordinados. Uma proposição é uma relação de termos e, portanto, é uma relação de relações. Um
sistema é uma relação de proposições. Um universo parcial de discurso é uma relação de sistemas. Essa hierarquia
de relações pode ser desenvolvida infinitamente em qualquer direção. O universo do discurso é um reino infinito
porque é essa hierarquia de entidades relacionais. Embora infinito, o universo do discurso é um todo que inclui
partes no sentido de uma forma com conteúdo. Em outras palavras, ele é um todo porque é formalmente
determinado.
É o caráter determinado e preciso desse reino infinito que é metafisicamente significativo e requer análise. Esse
caráter é tal que identifica o universo do discurso com o reino da possibilidade. No entanto, ele não esgota o reino da
possibilidade, mas satisfaz todos os seus requisitos.
A possibilidade é um último metafísico. Ela não é definida aqui. Alguns de seus traços específicos serão exibidos,
no entanto, na análise do discurso como um domínio que tem o caráter de possibilidade.
A possibilidade tem três especificações: (1) a inclusão de toda entidade e seu oposto; (2) a relação de toda entidade
assim incluída com todas as outras entidades; (3) a determinação de toda entidade assim incluída e de todas as
relações em que ela se encontra.
O universo do discurso como um reino do ser cumpre estas especificações: (1) inclui todas as entidades de um
determinado tipo e todos os seus opostos. (2) Sua ordem hierárquica relaciona cada entidade assim incluída com
todas as outras entidades, mas nem todas estão relacionadas proximamente. (3) Toda entidade assim incluída pode
ser definida e analisada.
Mas o universo do discurso inclui apenas todas as entidades de um certo tipo, ou seja, certas relações especificadas.
Ele não esgota, portanto, o reino da possibilidade; é idêntico a ele em caráter, em intenção, mas não em extensão. A
possibilidade inclui o reino da atualidade, e as entidades desse reino são totalmente excluídas do universo do
discurso. A relação entre possibilidade e atualidade e suas implicações para o discurso e a dialética serão discutidas
mais adiante.
A estrutura determinada do universo do discurso é a forma lógica da dialética, na medida em que a dialética está
potencialmente no discurso. Em outras palavras, a natureza metafísica da dialética pode ser descrita em termos da
possibilidade das infinitas determinações de uma classe infinita de entidades infinitamente relacionadas, todas essas
determinações tendo uma certa forma prescrita. Essa forma é determinada pelo caráter geral das relações que
ocorrem entre as entidades no discurso e foi definida na descrição lógica da dialética.
A dialética, tal como a potencialidade completa do discurso, é perfeitamente inesgotável. É uma classe infinita de
determinações lógicas, nenhuma delas ou grupo delas pode ser tomado isoladamente. A dialética pode ser definida
metafisicamente como a estrutura lógica do universo do discurso quando este é considerado como uma classe
infinita de partes, todas elas internamente relacionadas. O universo do discurso é, portanto, um todo, capaz de
infinitas determinações. Nesse sentido, é um reino de possibilidades, e a dialética se torna a classe de todas as
determinações possíveis no discurso.
As implicações dessa definição estão de acordo com as considerações anteriores. Em razão da forma lógica da
dialética, a relação de contradição não existe no universo do discurso. Se tal fato ocorresse, o discurso não poderia
ser um reino de possibilidades, pois certas entidades seriam então excluídas. A inconclusividade da dialética, além
disso, é correlativa à classe infinita de possíveis oposições entre as entidades do discurso e sua infinita relação. Por
fim, no sentido em que a dialética é potencial no discurso como um reino de possibilidade, sua inconclusividade é
inesgotável. Ela é determinada como uma forma lógica, mas o conteúdo dessa forma compreende a classe ilimitada
de possíveis estruturas relacionais que cumprem suas determinações.
Como uma atividade em qualquer ocasião atual, a dialética retém essas características essenciais, mas sem a
perfeição que ela tem como possibilidade de discurso. A dialética pode ser de fato sempre inconclusiva, mas sua
inconclusão inesgotável é apenas uma possibilidade. Como uma série de atos lógicos, a dialética atualiza apenas
algumas de todas as determinações possíveis no discurso. O processo dialético ativo, portanto, sempre tem a
aparência de partidarismo, ao passo que, em seu estado de potencialidade passiva no discurso, tem o aspecto de
perfeita imparcialidade. A dialética, entretanto, deve combinar essas duas características, embora na ocasião atual da
dialética, o partidarismo exibido seja limitado e a imparcialidade seja mantida apenas imperfeitamente.
A atualidade em geral pode ser definida como uma limitação da possibilidade. Tudo o que é atual deve ser possível,
mas nem tudo o que é possível é ou pode ser atual. A atualidade é um conjunto de possibilidades que exclui
totalmente outras possibilidades de pertencerem ao conjunto. Essa exclusão é determinada pela lei da contradição. O
que no reino da possibilidade é a oposição de entidades é a relação de contradição no reino da atualidade. A
possibilidade é totalmente inclusiva de todas as entidades; a realidade é totalmente exclusiva de algumas entidades.
Em termos do universo do discurso, a atualidade é expressa como apenas um sistema possível de proposições,
internamente consistente, mas parcial e em oposição a outros sistemas possíveis. No entanto, essa é uma
interpretação da atualidade em termos de discurso como um reino de possibilidades. A oposição entre atualidade e
possibilidade pode, entretanto, ser vista em termos de atualidade e não de possibilidade. Se essa oposição deve ser
considerada dialeticamente, ela deve continuar no domínio do discurso como a tentativa de esclarecer e resolver a
oposição entre dois sistemas, neste caso, duas teorias metafísicas.
(2)
A atualidade é um fim último metafísico e é considerada aqui sem uma definição adequada. Algumas das
características que a especificam, entretanto, podem ser enumeradas: (1) é uma classe finita de entidades
internamente relacionadas entre si; (2) o oposto de cada entidade assim incluída é totalmente excluído dessa classe
como contraditório; (3) entre as outras determinações dessa classe de entidades estão as determinações dimensionais
de tempo e espaço: as entidades que satisfazem essas determinações podem ser chamadas de existências, eventos ou
ocasiões atuais.
A atualidade enquanto classe de todos os eventos ou existências possíveis exclui totalmente o universo do discurso
em seu caráter metafísico como um reino de pura possibilidade. As entidades do discurso não satisfazem as
especificações da atualidade; as determinações do discurso como um todo são inconsistentes com as determinações
da atualidade. Em sua relação de exclusão total com o discurso, a atualidade torna-se a classe de todas as entidades
que não estão no discurso, o que, na discussão anterior, foi designado como o reino dos fatos, em contraste com o
discurso como o reino das proposições.
Essa teoria da atualidade não pode ser levada adiante dialeticamente. Ela postula a atualidade como uma classe de
entidades que não estão no discurso e como um todo finito último, totalmente exclusivo do universo do discurso
como outro todo último. Mas a relação de exclusão total não pode ocorrer dentro do universo do discurso; portanto,
a relação entre o discurso e a atualidade, quando assim definida, não pode ser tratada discursivamente, e a dialética
deve dar lugar ao silêncio como a resolução dogmática dessa oposição. O reino dos fatos ou eventos é o reino das
existências brutas em si mesmas ininteligíveis; o universo do discurso é a ordem dos inteligíveis, e a relação entre
esses dois reinos, sendo uma relação externa, não está incluída no discurso e é, portanto, ininteligível.
Há uma maneira alternativa de declarar a relação entre a atualidade e o discurso de modo a torná-la inteligível e
capaz de uma dialética posterior. A atualidade está incluída no reino das possibilidades que são tanto atuais quanto
não-atuais. A atualidade e o discurso são, portanto, incluídos como partes da possibilidade como um todo. A
atualidade pode ser incluída como uma classe de possíveis eventos ou existências, ou como um sistema de
proposições verdadeiras sobre esses eventos ou existências. No primeiro status, a atualidade ainda seria externa ao
reino do discurso: no segundo status, como um sistema de proposições existenciais verdadeiras, a atualidade é
interna ao discurso, como o reino de todos os sistemas possíveis, assim como os eventos atuais estão incluídos no
reino de todas as entidades possíveis. Pode ser possível agora resolver a oposição entre os domínios da atualidade e
do discurso, se essa oposição puder ser tratada como a relação entre um sistema e todos os outros sistemas possíveis.
Contudo, após um exame mais aprofundado, a dialética é novamente frustrada. A atualidade é incluída no discurso
como um sistema de proposições verdadeiras e existenciais. O sistema como um todo afirma a verdade, e cada uma
das proposições isoladas, com importância existencial, afirma a verdade isoladamente. O sistema exclui todas as
proposições que são contraditórias com seus membros e todos os sistemas contraditórios com ele mesmo. Elas não
são excluídas como opostas, pois poderiam ser verdadeiras em algum outro sistema. Entretanto, o sistema do atual
afirma ser o sistema de todas as proposições verdadeiras; o que quer que seja excluído dele é, do ponto de vista do
sistema do atual, categoricamente falso. Todas as proposições excluídas do sistema têm sua verdade categoricamente
negada. A exclusão é, portanto, a exclusão total da contradição. O sistema de atualidade é determinado em sua
relação com todos os outros sistemas possíveis pela lei da contradição. A relação entre o sistema discursivo da
atualidade e o restante do universo do discurso é, portanto, incapaz de consideração dialética. A atualidade como um
sistema de proposições existenciais verdadeiras é adequadamente incluída no universo do discurso, mas quando é
assim incluída e tratada em termos de suas afirmações como um sistema de atualidade, é completamente
inconsistente (em contradição) com o caráter do universo do discurso como um reino de possibilidade e com a
estrutura lógica desse reino que torna possível a atividade da dialética. Ademais, as proposições de tal sistema
afirmam ser verdadeiras isoladamente. Elas são proposições existenciais; sua verdade, portanto, é uma relação
extrínseca entre a proposição dada e a ordem dos fatos e das existências. O sistema como um todo, em sua
reivindicação de verdade, está nessa relação externa com a ordem dos fatos e das existências. Mas a relação entre
uma proposição ou um sistema de proposições e o domínio dos fatos é uma relação externa às entidades no discurso.
Portanto, ela não pode ser considerada discursivamente, e a verdade que é afirmada quando essa relação é exibida,
indicada ou denotada é irrelevante para os processos da dialética[40].
Essa discussão pode ser resumida da seguinte forma: (1) Na medida em que a atualidade é um reino de existências
ou eventos brutos, ela é totalmente exclusiva do discurso e ininteligível, tanto em si mesma quanto em sua relação
com o discurso. O silêncio dogmático é a única solução para essa dificuldade. (2) Na medida em que a atualidade é
incluída no discurso como um sistema verdadeiro de proposições existenciais, cada uma delas verdadeira
isoladamente, ela é governada pela lei da contradição. Mas a lei da contradição não se aplica ao universo do discurso
na medida em que a estrutura lógica desse universo é dialética. No entanto, em sua determinação dialética, o
universo do discurso é um reino de pura possibilidade. A atualidade, portanto, como um sistema no discurso é
inconsistente com a natureza do discurso como o reino da dialética. A oposição entre o sistema da atualidade e todos
os outros sistemas possíveis no discurso é genuinamente uma contradição, e não uma oposição, e, portanto, não pode
ser resolvida. A dialética é novamente silenciada. (3) Mas essa conclusão apenas reafirma o que foi descrito, tanto
lógica quanto metafisicamente, como a natureza da dialética. A dialética é inteiramente um assunto no discurso, e
somente na medida em que o discurso é um reino de possibilidade. Um sistema de proposições que alega ser
verdadeiro como o sistema da atualidade altera o caráter do discurso relevante para sua consideração ao introduzir a
lei da contradição; e, ademais, envolve o discurso em uma relação extrínseca com a ordem dos fatos ou existências.
Nesses dois aspectos, a dialética é excluída de tal discurso. (4) A dialética não pode lidar com a relação de
atualidade e possibilidade como uma relação entre a existência bruta e o discurso, uma vez que a relação entre o
ininteligível e o inteligível é em si mesma ininteligível ou, em outras palavras, uma vez que essa relação é externa ao
discurso. A dialética também não pode lidar com a relação de atualidade e possibilidade como uma relação entre um
sistema discursivo verdadeiro e todos os outros sistemas possíveis no discurso, pois isso envolve uma relação de
contradição e uma relação extrínseca entre proposições existenciais e os fatos com relação aos quais elas
reivindicam verdade. (5) A conclusão é, portanto, que a relação entre atualidade e possibilidade é incapaz de
resolução dialética, na medida em que a atualidade é tomada existencialmente ou discursivamente, como uma ordem
de entidades genuinamente diferente do status de entidades meramente possíveis. Essa conclusão é equivalente à
tese da descrição metafísica da dialética, de que a dialética é exaustiva e inteiramente um assunto no reino da
possibilidade; ela é passivamente potencial nele como a ordem determinada das entidades daquele reino, e a
atividade da dialética é limitada à exibição das relações potencialmente residentes no universo do discurso como o
reino das infinitas possibilidades dialéticas.
Deve ficar claro, sem necessidade de muitas outras declarações, que se o sistema de proposições que reivindica o
status distintivo de ser o sistema do atual fosse tratado meramente como um sistema possível no discurso, ele estaria
em oposição a outros sistemas possíveis e seria capaz de um procedimento dialético. Mas esse tratamento seria
equivalente a negar sua relevância para a atualidade. Seus membros proposicionais não seriam considerados como
existenciais, mas sim como funções proposicionais. Isoladamente, eles não seriam nem verdadeiros nem falsos; sua
única reivindicação de verdade seria em termos de sua consistência no sistema dado, e o próprio sistema seria
estabelecido não pela verdade existencial de sua doutrina, mas pela verdade postulada das proposições que ele
sustentava intuitivamente. Portanto, todas as proposições excluídas de tal sistema não seriam negadas, pois
isoladamente não seriam nem verdadeiras nem falsas, e em um contexto sistemático consistente, cada uma delas
seria verdadeira. A exclusão seria parcial; seria uma relação de oposição e suscetível de esclarecimento e resolução
dialética. A atualidade como um sistema de proposições no discurso pode ser tratada como um sistema meramente
possível, em conformidade com as especificações do universo do discurso como o reino da possibilidade dialética.
Todavia, essa transformação é equivalente à negação de que o sistema é relevante para a atualidade, e essa negação é
equivalente à afirmação de uma contradição final entre a atualidade e a possibilidade no discurso, que não é
suscetível à resolução dialética. A dialética deve, portanto, limitar-se à possibilidade ou ficar em silêncio.
Há duas outras consequências da discussão anterior, que são de fundamental importância. A primeira tem a ver com
a interpretação da relação de implicação. A segunda tem a ver com a relação entre linguagem e lógica, entre o
processo de dialética nas ocasiões atuais de controvérsia e argumentação humana e a potencialidade passiva da
dialética no discurso possível.
(1) A implicação pode ser concebida de duas maneiras: ou como exaustivamente contida como uma relação entre
entidades no discurso, ou como uma relação entre entidades no discurso cujo significado está em sua referência a
uma situação atual. Em ambos os casos, a implicação pode ser descrita como a relação de inclusão entre um todo e
suas partes, ou como a relação de exclusão parcial entre as partes coordenadas de um todo. Essas relações podem ser
formuladas da seguinte maneira: se isto, então aquilo[41]. No primeiro caso, não há referência à atualidade. A
implicação ocorre somente entre entidades no discurso; quando a implicação é afirmada, sua verdade é afirmada,
mas essa verdade é meramente uma consequência lógica, uma consequência de. Porém, no segundo caso, afirma-se
que, sem a referência da implicação à atualidade, as implicações não seriam certificadas; que as implicações
exibidas em um todo definido e analítico têm significado em sua referência às relações parte-todo de algum todo
atual. A afirmação da verdade das implicações é a afirmação da verdade da equivalência entre um todo analítico e
um todo atual[42].
A dialética deve interpretar a implicação na primeira dessas duas maneiras; a segunda interpretação envolveria o
discurso em relação à atualidade e imporia a qualidade de verdade extrínseca às relações de implicação com as quais
a dialética deve lidar. E isso é impossível em termos da natureza lógica e metafísica da dialética. A primeira
interpretação da implicação está, portanto, implícita na definição e nos postulados da dialética como uma
metodologia. Além disso, o antagonismo entre essas duas interpretações da implicação é, na verdade, uma
reafirmação da oposição entre a mera possibilidade e a atualidade genuína. A oposição pode ser declarada no
discurso, mas não pode ser tratada dialeticamente nele. Essa oposição deve ser ignorada pela dialética; se qualquer
uma das duas teorias da implicação fosse afirmada ontologicamente, o resultado seria uma metafísica dogmática.
(2) A dialética foi descrita empiricamente e logicamente. Há uma oposição entre essas duas descrições que é, de
certa forma, paralela à relação entre atualidade e possibilidade, pois a dialética em sua ocasião atual, em sua
ocorrência empírica na conversação e controvérsia humanas, é uma limitação da dialética como estrutura formal do
discurso possível. Essa oposição pode ser resolvida em termos da hipótese metafísica aqui apresentada com relação
à natureza da possibilidade. Deve-se entender que, nessa perspectiva, a possibilidade como um reino do ser é
meramente um postulado metodológico e não recebe nenhum status ontológico em oposição ao status ontológico da
atualidade. A distinção, se tiver de ser feita no discurso, deve ser feita dialeticamente e não ontologicamente; não se
nega à experiência e à lógica um status ontológico diverso; mas esse status não precisa ser afirmado para que a
distinção entre elas seja discutida dialeticamente.
Em primeiro lugar, a linguagem é a agência indispensável do discurso atual. Quaisquer que sejam as outras
circunstâncias empíricas relevantes, os elementos da linguagem indispensáveis à discussão e à disputa humana a
distinguem da dialética considerada em sua abstração. Essa é a distinção entre palavras e declarações, por um lado, e
termos e proposições, por outro. Mas a linguagem tem duas dimensões, na referência denotativa e conotativa de seus
elementos. As palavras e afirmações referem-se denotativamente ao que foi chamado de fatos, entidades que não são
palavras ou afirmações e que podem ser designadas como objetos ou eventos existentes. As palavras e afirmações
também se referem conotativamente a outras palavras e afirmações. Nessas duas dimensões, a linguagem esgota as
várias referências ou significados de seus símbolos, que podem, portanto, ser classificados como extrínsecos ou
intrínsecos em seu funcionamento.
A oposição entre atualidade e possibilidade, entre linguagem e discurso, entre declarações e proposições, está,
portanto, contida na natureza da própria linguagem. Na medida em que as declarações têm importância existencial,
elas são declarações de atualidade; na medida em que as declarações têm importância meramente linguística, elas
são expressões de possibilidade. No primeiro caso, a linguagem é insignificante para o discurso, assim como as
proposições existenciais no próprio discurso não têm outras implicações no discurso, desde que sejam tratadas
apenas em seu status de proposições existenciais. No último caso, a linguagem é a agência por meio da qual os seres
humanos podem se envolver em um discurso de caráter dialético.
Ademais, na dimensão de sua referência intrínseca, a linguagem não é apenas naturalmente dialética, mas também
completamente metafórica. A consideração anterior desse assunto será lembrada como tendo atribuído a todas as
declarações um status metafórico em vez de literal e, além disso, como tendo sugerido que, em sua dimensão
conotativa, a linguagem era composta de infinitos modos de metáfora. A analogia foi então feita entre os infinitos
modos de metáfora e o Deus de Espinosa, com infinitos atributos, cada um deles perfeito. Mas agora o universo do
discurso como um reino de possibilidade pode ser substituído nessa analogia pela substância ou Deus. O universo do
discurso é um todo determinado, mas também ilimitado, pois é uma classe infinita de entidades, infinitamente
relacionadas internamente umas com as outras. Qualquer entidade, portanto, pode estar em infinitos conjuntos de
relações; qualquer afirmação pode ocorrer em infinitos modos de metáfora.
Quaisquer que sejam suas limitações empíricas e o status de suas entidades simbólicas como atualidades ou
existências, a linguagem, pelo lado de sua referência intrínseca, é capaz de uso dialético no discurso e, nos recursos
ilimitados de sua propriedade metafórica, a linguagem satisfaz os requisitos do discurso como um reino de
possibilidade.
Em segundo lugar, a lógica pode ser vista como potencial ou atual. Ela é potencial como o conjunto de relações que
determinam a ordem de uma classe de entidades; ela é atual como a exibição dessas relações. A exibição é efetuada
por uma série de atos lógicos, ou atualizações. A dialética pode ser considerada logicamente de ambas as maneiras,
seja potencialmente no discurso como sua determinação formal, seja atualmente, sempre que uma série incompleta
de atos lógicos de definição, análise e síntese exiba universos parciais de discurso.
Porém, a dialética pode ser atual em dois sentidos e, nessa duplicidade, a linguagem e a lógica convergem. Sua
atualidade empírica é alcançada por meio da agência da linguagem; sua atualidade formal é alcançada por meio da
atividade lógica. A atividade lógica, entretanto, é meramente possível se for considerada como um processo abstrato
que exibe relações no discurso; ela só é atual quando é um evento psicológico, quando é uma instância do
pensamento humano. O pensamento humano, além disso, emprega a linguagem, que em sua dimensão conotativa é
uma agência para a atividade lógica. A atualidade da dialética é, portanto, a congruência da linguagem em sua
referência lógica ou discursiva e a lógica como uma atividade no evento psicológico do pensamento humano. O fato
de o pensamento humano ser ao mesmo tempo um caso de linguagem e um processo lógico é outra expressão da
mesma convergência.
A oposição entre a descrição da dialética empiricamente em termos de linguagem e psicologia e a descrição da
dialética logicamente é, portanto, resolvida, se as duas descrições forem interpretadas metafisicamente em termos da
distinção entre atualidade e possibilidade. A oposição é incapaz de tal resolução, e se torna dogmática, se o domínio
da linguagem e do processo psicológico, por um lado, e o domínio da lógica, por outro, forem afirmados
ontologicamente. A distinção ontológica então afirmada seria uma distinção de fato, e não de discurso, e
transcenderia a dialética. Mas o uso metafísico das categorias de possibilidade e atualidade é analítico e definitivo,
em vez de ontológico, e ao ser analítico e definitivo, é essencialmente uma distinção dialética que é feita e, portanto,
suscetível à resolução que foi oferecida.
A Metafísica de Aristóteles, especialmente no que diz respeito às categorias de atualidade e potencialidade, tem sido
frequentemente interpretada como tendo importância ontológica[43]. A maneira como Aristóteles usa as categorias de
potencialidade e atualidade pelo menos sugere outra leitura da Metafísica. Potencialidade e atualidade são termos
empregados na análise das relações em que qualquer item se encontra, e o item idêntico pode ser atual em uma
relação e potencial em outra. O item idêntico não pode ter alocação ontológica diversa, mas pode ser analisado de
forma diversa.
As três descrições da dialética podem agora ser concluídas em um resumo dialético. Qualquer que seja a oposição
entre a descrição empírica e a lógica, ela pode ser resolvida em termos de uma teoria metafísica da dialética, tanto
atual quanto possível. O sistema metafísico que efetua a síntese entre os dois sistemas parciais é determinado por um
conjunto de definições e postulados que são considerados intuitivamente, e esse conjunto de definições e postulados
se torna a doutrina da dialética.
O resumo é o seguinte: (1) A dialética é potencial na situação empírica; isto é, o pensamento humano e a linguagem
humana têm a potencialidade de exibir a dialética. (2) A dialética é potencial na situação lógica, ou seja, o universo
do discurso em suas determinações relacionais é idêntico à possibilidade da dialética. É nesse sentido que o universo
do discurso é um reino de possibilidades. (3) O universo do discurso é, portanto, uma atualização das
potencialidades lógicas da linguagem e do pensamento humanos; e a ocorrência empírica do pensamento dialético é
uma atividade que atualiza a dialética possível. (4) Mas a atualidade é sempre uma limitação da possibilidade. A
atualidade da dialética é, portanto, incompletamente inconclusiva, enquanto a possibilidade da dialética é
exaustivamente inconclusiva. (5) A atividade da dialética é, portanto, ao mesmo tempo, a atualização, mas de forma
diferente, das possibilidades da linguagem e da lógica; é a condição de identidade na qual elas convergem: a
dialética é a forma lógica do discurso em relação à linguagem e ao evento psicológico do pensamento; enquanto a
atividade dialética é a exposição incompleta da estrutura formal do universo do discurso.
A doutrina metafísica da dialética pode ser apresentada da seguinte maneira:
I. O universo do discurso é um todo último, infinito, mas determinado.
II. A determinação do universo do discurso é a relação parte-todo de suas entidades em uma ordem hierárquica de
implicação.
III. Toda entidade no discurso está internamente relacionada a todas as outras entidades, mas com graus variados de
proximidade.
IV. A dialética é definida em potencialidade como a estrutura formal do universo do discurso e, na atualidade, como
a atividade que exibe essa estrutura com algum grau de limitação.
Seguem alguns teoremas que foram demonstrados com relação à natureza da dialética e do universo do discurso;
1. A relação de contradição não existe no universo do discurso.
2. O universo do discurso é, portanto, ontologicamente um reino de possibilidades.
3. A dialética é, portanto, inteiramente restrita ao universo do discurso.
4. A dialética, portanto, não pode tratar da relação entre os domínios ontológicos do discurso e da existência.
5. Qualquer oposição no discurso pode ser resolvida.
6. Qualquer resolução dialética é parcial e inconclusiva.
7. Potencialmente, a dialética é absolutamente inconclusiva.
8. Atualmente, a dialética é relativamente inconclusiva.
9. A dialética pode perceber apenas um valor de verdade intrínseco e esse valor de verdade nunca pode ser
finalmente estabelecido.
10. Qualquer proposição isolada não é nem verdadeira nem falsa intrinsecamente no discurso; e em algum sistema,
qualquer proposição é verdadeira.
Essa não é uma enumeração exaustiva dos teoremas envolvidos, e eles são colocados em uma ordem dedutiva
aproximada. Eles são as teses mais importantes que foram discutidas nas seções anteriores.
A dialética é agora estabelecida dialeticamente. Seu significado intelectual geral deve ser interpretado. As atitudes
intelectuais de impraticalidade e imparcialidade, que são obviamente relevantes para a natureza da atividade
dialética, sugerem, em parte, a avaliação a ser feita sobre a descrição do pensamento que foi aqui desenvolvida. Se
esse pensamento ocorre em conversações humanas, sejam elas polemicamente reflexivas em solilóquios ou
controversas e argumentativas, torna-se importante entender o que significa a conversação humana, quais valores ela
é capaz de realizar e quais valores são irrelevantes para ela. Na medida em que as conversações humanas são
dialéticas, elas parecem assumir um caráter filosófico. A avaliação da conversação humana pode, portanto, equivaler
a uma interpretação da filosofia.
Parte III — A Interpretação da Dialética
As conversações humanas tendem a se tornar confusas ou a recorrer à observação e à investigação para julgar os
assuntos em questão. Elas se tornam confusas quando definições abstratas são introduzidas, distinções são
multiplicadas, tornadas tênues e sutis. Geralmente, faz parte das boas maneiras sociais renunciar a discussões desse
tipo ou talvez desviar a conversa para outros temas. Para levar a discussão adiante seria necessário, ao que parece,
um certo conhecimento técnico; portanto, ela deve ser deixada para o discurso de especialistas em seus colóquios
particulares, assim como problemas obscuros de engenharia, arqueologia ou medicina, se abordados em uma
conversa educada, são imediatamente suspensos para o julgamento dos especialistas envolvidos. Por outro lado, a
observação e a investigação com o objetivo de determinar as respostas às questões levantadas em uma conversação
não exigem menos proficiência técnica e treinamento do que a elaboração de distinções no discurso.
A filosofia e a ciência, em seu aspecto histórico e tal como são tradicionalmente concebidas, parecem ser as duas
técnicas especiais às quais as conversações humanas devem recorrer eventualmente. Os filósofos, por um lado, são
um grupo de especialistas em controvérsias abstrusas e sutis; os cientistas, por outro lado, têm treinamento especial
nos métodos de investigação e observação, além de uma perspectiva quanto aos requisitos desse procedimento. Em
termos das duas tendências de conversação, portanto, não é difícil distinguir entre filosofia e ciência. Se for possível
distingui-las, também pode ser possível interpretar a natureza da filosofia e da ciência em termos das diferentes
tarefas que a discussão humana parece impor a elas.
Essa interpretação pode ser feita geneticamente. O antropólogo e o historiador podem reunir evidências para apoiar a
inferência de que a filosofia e a ciência eram, em sua origem, métodos para responder às perguntas levantadas pelas
conversações humanas; e o desenvolvimento e o refinamento desses métodos, em si mesmos e em diferenciação uns
dos outros, podem ser rastreados historicamente. Mas está claro que o levantamento de evidências históricas é
sempre altamente seletivo e que as evidências coletadas nunca são inequívocas. A história fundamentada do
pensamento humano possibilita inúmeras interpretações diversas sobre a ciência e a filosofia como
empreendimentos intelectuais. A presente interpretação, portanto, será realizada de forma analítica e não genética. A
história pode ser invocada para exemplificar, mas não para substanciar ou provar, as considerações gerais
encontradas nesta análise.
Deve-se entender que definir a filosofia ou a ciência de uma determinada maneira não equivale a afirmar o que a
filosofia ou a ciência são, ou o que elas foram. Por ser arbitrária, a definição não pode negar a possibilidade de
outras definições; e por ser interpretativa, a definição não afirma o que uma coisa é, mas sim o que ela significa. A
filosofia, em outras palavras, não precisa ser de fato como é definida. Definir uma coisa não é dizer o que ela é, mas
o que se concebe que ela seja. A concepção floresce em um universo de discurso, enquanto a coisa pode ter seu ser
em outro lugar. Deixar de perceber essa disparidade entre a possível natureza de qualquer coisa e sua definição é dar
direito e poder ilimitados à prática de nomear. Essa percepção pode ser difícil no nível da lógica e da abstração; mas
é a mesma percepção que governa nossas relações educadas com outros homens; e até mesmo as crianças a possuem
quando, ao se defenderem de provocações verbais, reconhecem essa diferença na rima sobre paus e pedras.
Um erro mais comum seria supor que a definição de filosofia ou de ciência indica, não o que ela é, mas o que
deveria ser. Os nomes são usados com muita frequência dessa maneira de legislação moral sobre as coisas; se elas
não são o que são chamadas, pelo menos deveriam ser. Esse erro pode ser evitado se o processo de definição for
claramente entendido como tendo força tanto denotativa quanto conotativa. Quaisquer valores que pareçam ser
impostos ao objeto definido não são obrigatórios, uma vez que a conotação do termo é reconhecidamente
estabelecida de maneira arbitrária.
A análise que se segue, portanto, deve ser considerada como uma teoria, e nada mais. É uma peça de dialética. Ela
tentará tratar a filosofia e a ciência à luz do discurso humano — um domínio que já foi descrito em detalhes. Em
primeiro lugar, será considerado o significado de identificar a filosofia com a dialética, e a filosofia será, assim,
distinguida da ciência até o momento. Em segundo lugar, será considerada a relação entre a filosofia, como
empreendimento dialético, e a ciência, tanto como procedimento empírico quanto como teoria. E, em terceiro lugar,
serão comparados os valores intelectuais que qualificam os diversos empreendimentos da filosofia e da ciência. Uma
vez que as técnicas da filosofia e da ciência parecem ambas relacionadas às necessidades e tendências da
conversação humana, os objetivos da conversação humana podem ser esclarecidos nessa discussão, e o valor da
dialética na vida intelectual será indicado. A conclusão pode ser que a filosofia é uma obrigação de qualquer pessoa
que esteja disposta a entrar em uma controvérsia ou discussão. A dialética pode ser inevitável.
Filosofia e Ciência
A filosofia é aqui definida como atividade dialética em geral. O local de sua ocorrência é a controvérsia ou disputa
intelectual. Nem todas as conversações humanas realmente se tornam filosóficas; em alguns casos, elas são
encerradas pela referência a fatos já determinados, ou pela tentativa de determinar os fatos por algum tipo de
procedimento empírico; em outros casos, elas evitam a obrigação total do processo dialético. No entanto, na medida
em que a dialética surge no esclarecimento e na resolução das oposições que formam os temas da conversação, surge
a filosofia.
Deve-se ressaltar que essa concepção de filosofia não é totalmente incongruente com o uso comum. O exame
anterior, neste livro, de vários argumentos típicos revelou o que normalmente se quer dizer quando se fala de uma
conversação que se tornou filosófica. A história da filosofia, ademais, é certamente, em parte, uma história de
controvérsia intelectual — da oposição de opiniões e teorias. Não há nada de incomum em uma concepção de
filosofia que simplesmente pretende relatar essas duas circunstâncias. Mas essa concepção é aqui levada um passo
adiante. A identificação do pensamento filosófico com a atividade da dialética é equivalente à afirmação de que
apenas o pensamento que está envolvido de certa maneira com o fenômeno da controvérsia é filosófico. Assim, a
filosofia se torna exaustivamente um assunto no universo do discurso. Essa afirmação tem uma série de implicações
esclarecedoras para a interpretação da filosofia.
(1) A filosofia não tem um assunto especial, nem problemas especiais. O grupo de temas e problemas que foram
classificados por acidente histórico como o objeto de estudo da filosofia não é uma demarcação adequada de seu
objeto de estudo. Esses problemas, entretanto, não são classificados de forma inadequada; são temas familiares
gerados por quase todas as discussões gerais. Contudo, a questão é que eles são apenas a representação de uma
tradição filosófica, e não a indicação denotativa precisa do objeto da filosofia.
O objeto de estudo da filosofia é aqui definido como qualquer universo parcial de discurso; seus problemas são
quaisquer oposições existentes entre as entidades subordinadas desse universo parcial, ou entre esse universo parcial
e algum outro coordenado com ele mesmo. Com relação a esse assunto e a esses problemas, a filosofia é
simplesmente o método da dialética, uma forma específica de atividade intelectual que pode ser aplicada a qualquer
universo parcial de discurso que sofra oposição. A filosofia, portanto, está preocupada apenas com a possibilidade.
Em contraste, o objeto da ciência em geral é a atualidade, e não a possibilidade. Seus problemas podem ser
apresentados como questões relativas à natureza das coisas. E com relação a esse assunto e a esses problemas, a
ciência é um método de determinar, por meio de experimentos ou investigações de algum tipo, quais são os fatos.
Assim como existem universos parciais de discurso, também existem campos parciais de atualidade, e as ciências
especiais têm como objeto de estudo separado esses campos parciais; seus métodos especiais são concebidos para
satisfazer as exigências da investigação nesses diferentes campos.
A filosofia e a ciência podem ser vistas não como métodos, mas como corpos de proposições, como sistemas, teorias
ou instâncias de conhecimento. As distinções entre elas podem ser feitas de maneira ainda mais precisa nesses
termos.
A atualidade é uma classe de entidades que não são declarações, ou seja, que não expressam proposições ou se
referem a entidades no discurso. Essa classe de entidades deve ser designada como a primeira ordem de fatos. A
segunda ordem de fatos é a classe de entidades que são declarações sobre a primeira ordem de fatos. As proposições
que essas declarações expressam formam um universo parcial de discurso. Esse universo de discurso contém o
conjunto de proposições que compõem as ciências. A terceira ordem de fatos é a classe de entidades que são
declarações sobre a segunda ordem de fatos, ou seja, declarações sobre declarações. As proposições que essas
declarações expressam formam um universo parcial de discurso que é o corpo da opinião filosófica. Uma proposição
científica é expressa em uma afirmação sobre fatos de primeira ordem, que geralmente são designados como
existências ou relações existenciais, entidades no campo da atualidade. Uma proposição filosófica é expressa em
uma declaração sobre fatos de segunda ordem, ou seja, sobre as declarações que expressam proposições em algum
universo parcial de discurso.
A ciência e a filosofia, vistas como corpos de proposições, são, portanto, ambas consideradas universos parciais de
discurso, mas a ciência é um universo de discurso cujo assunto é a atualidade, enquanto a filosofia é um universo de
discurso cujo assunto são outros universos parciais de discurso. A ciência, como método, preocupa-se com a
determinação e a manipulação de fatos que não são declarações; seus problemas em geral podem ser expressos na
pergunta típica: "Qual é o fato em relação a...?". A filosofia, como método, está preocupada em tornar as afirmações
inteligíveis; seus problemas em geral podem ser expressos nas perguntas típicas: "O que significa dizer que...?" e
"Que afirmações diversas podem ser feitas sobre...?".
(2) A atualidade como um domínio ontológico é irrelevante para a filosofia. A filosofia, sendo confinada por seu
objeto de estudo e método ao universo do discurso, lida apenas com sistemas de possibilidade. A filosofia, portanto,
não pode fornecer conhecimento ou alcançar a verdade, quando o conhecimento e a verdade são considerados
qualificações de uma proposição, ou um conjunto de proposições, em uma determinada relação com os fatos atuais.
O tipo de verdade que é relevante para o procedimento científico, a verdade empírica ou a relação extrínseca do
discurso com a atualidade, é totalmente irrelevante para a atividade filosófica. Ela não está interessada em saber se
as proposições isoladas que formam seu objeto de estudo são verdadeiras ou falsas. Quando são consideradas
meramente como entidades no discurso, elas não podem ser nem verdadeiras nem falsas em si mesmas. Elas podem
ter status intuitivo ou demonstrativo em um sistema de proposições e, dessa maneira, serem verdadeiras por
suposição ou por implicação; ou podem ser excluídas de um sistema por serem inconsistentes com ele, mas não são
provadas falsas por isso. Elas são, então, proposições isoladas ou proposições verdadeiras como postulados ou
teoremas de algum outro sistema em oposição ao primeiro. Assim, a filosofia se preocupa com a verdade apenas
como uma relação entre proposições, como uma relação sistemática de proposições intrínsecas no discurso. E não há
proposições absolutamente verdadeiras ou falsas no universo do discurso filosófico.
Isso estabelece outro ponto de distinção entre filosofia e ciência, quando a filosofia é identificada com a dialética. O
objetivo que parece estar implícito na natureza do pensamento empírico ou científico é a descoberta da verdade
sobre as coisas, quer a verdade seja considerada absoluta ou pragmática. A ciência está interessada em algum tipo de
conhecimento. O pensamento filosófico depende desse conhecimento apenas na medida em que o conhecimento
como um corpo de proposições fornece um universo parcial de discurso que é assunto para a dialética. Porém, ela
não está preocupada com seu objeto de estudo enquanto conhecimento. Seu interesse é inteiramente na importação
sistemática de proposições e na resolução de oposições sistemáticas. O valor-verdade entra apenas como um
subproduto dos processos dialéticos de análise, síntese e definição. Ele está envolvido na determinação do que segue
e do que não segue, do que pode ou não ser implícito e demonstrado.
(3) O pensamento filosófico não pode terminar em crença, quando a crença é considerada a afirmação de qualquer
conjunto de proposições como extrinsecamente verdadeiro. Em um sentido ainda mais geral, a filosofia nunca
termina em crença. O estabelecimento de qualquer sistema como internamente verdadeiro gera imediatamente um
conjunto de oposições com outros sistemas, eles próprios internamente verdadeiros; e se alguma dessas oposições
for resolvida, a resolução não é final, pois novas oposições são provocadas de forma semelhante pelo
estabelecimento do sistema que efetua a síntese. A filosofia pode estar preocupada com a crítica de crenças, mas a
atitude de imparcialidade que é tão essencial à filosofia como atividade dialética deve impedir a atribuição de
finalidade a qualquer posição intelectual alcançada filosoficamente. Nesse sentido, a filosofia não chega a nenhuma
conclusão real, é incapaz de ser auxiliar de qualquer fé genuinamente definitiva, não pode ser a garantia de nenhuma
crença. Nesse sentido, a filosofia se distingue claramente da teologia, bem como da ciência[44].
A teologia costuma ser extremamente dialética em seu método. Isso foi particularmente verdade no caso dos grandes
teólogos católicos. Mas a doutrina da Igreja, as verdades da revelação, impõem uma limitação à atividade dialética.
Os artigos de fé introduzem uma referência dogmática na dialética, da mesma forma que a "atualidade" da ciência
natural. A verdade canônica pode ser considerada para fins dialéticos como a doutrina postulada de um sistema; mas
quando essa doutrina recebe o status de verdade absoluta, em vez do papel convencional de um conjunto de
proposições intuitivas, a atividade dialética gerada por ela é circunscrita e limitada. O sistema teológico é uma peça
de dialética parcial que é considerada final e última, porque seus postulados são considerados verdadeiros em última
instância. A atitude religiosa que qualifica o pensamento teológico é, portanto, vista como incompatível com a
atitude de imparcialidade.
A ciência, assim como a teologia, é profundamente religiosa. O campo da atualidade que ela postula como seu
objeto de estudo, ela postula necessariamente, em vez de tentativamente, e meramente como a convenção de um
sistema. A atualidade é o cânone científico. A ciência tem outros artigos de fé. Ela postula a lei da contradição e a lei
da uniformidade e da determinação. No entanto, essa é uma postulação dogmática, e não dialética. Ela não admite
alternativas. O ideal da ciência, em termos dessas suposições iniciais, é a obtenção de um sistema de conhecimento
verdadeiro em última instância. Se a ciência pode ou não realizar de fato esse ideal é irrelevante no momento. O
ponto é que o método científico e o pensamento científico são motivados por um conjunto de crenças genuínas e, no
final, esperam alcançar, ou pelo menos se aproximar, de um sistema no qual se possa acreditar genuinamente. A
atitude de imparcialidade é, portanto, vista como incompatível com a natureza da atividade científica, e é essa
atitude que distingue principalmente o empreendimento filosófico.
(4) Historicamente, a própria filosofia tem sido frequentemente religiosa, seja porque os filósofos não foram
completamente dialéticos, seja porque confundiram seus objetivos com os ideais da ciência ou da teologia. A última
consequência da identificação da filosofia com a dialética é a total liberdade da filosofia em relação ao dogmatismo.
Um sistema filosófico ou uma teoria metafísica é um exemplo de partidarismo intelectual no discurso. Entretanto,
entender a natureza do partidarismo em uma controvérsia ou argumento é equivalente à manutenção da
imparcialidade em uma determinada situação intelectual. Uma teoria filosófica, portanto, deve ser vista como um
fragmento ou parte de uma dialética executada de forma incompleta; como tal, ela não tem finalidade alguma. Ela
pode ser o resultado de um processo completo de definição e análise, mas é dialeticamente inconclusiva, pois a
oposição que o sistema gera é temporariamente ignorada. A teoria filosófica é dialeticamente estabelecida se as
oposições nas quais ela se apóia forem meramente ignoradas; se forem negadas, essa negação é equivalente a
afirmar a verdade final da teoria em questão. Tal afirmação seria dogmática.
Uma teoria filosófica, em outras palavras, é apenas metade de uma conversação, uma única voz em uma
controvérsia. Considerar isso de outra maneira seria inconsistente com a definição de filosofia como atividade
dialética e permitiria que a filosofia se tornasse dogmática. A dualidade é indispensável à conversação, e o
partidarismo é inseparável da controvérsia. E se o dogmatismo entra no argumento, seja na forma de referência à
atualidade, seja na invocação de credos inquestionáveis, a dialética é imediatamente interrompida. Essas três
circunstâncias qualificadoras da conversação descrevem a natureza da filosofia. Trata-se do partidarismo na
controvérsia, qualificado pela imparcialidade crítica em relação a seus resultados.
Há certas vantagens em se conceber a filosofia dessa maneira. Em primeiro lugar, a filosofia assim definida se
distingue claramente, em seus métodos, propósitos e objeto de estudo, da ciência, por um lado, e da teologia, por
outro. A diferenciação precisa é o primeiro pré-requisito de uma boa definição. Em segundo lugar, não apenas o
caráter do pensamento filosófico é descrito ao identificá-lo com os atos dialéticos de definição, análise e síntese, e os
processos de esclarecimento, resolução e tradução, mas a própria dialética é avaliada por essa identificação. Ela
assume importância como a técnica essencial da filosofia e como sua atitude intelectual fundamental de
imparcialidade.
E, em terceiro lugar, o espetáculo da história da filosofia pode ser visto de uma forma que o torna um fenômeno
mais inteligente do que poderia parecer. A história da filosofia é uma história de frustração, se a filosofia for
concebida como comparável ou semelhante à ciência. Ela é o registro do conflito de sistemas contraditórios, cada
um deles reivindicando a finalidade dogmática e a verdade suprema, uma reivindicação que se torna aparentemente
absurda pela pluralidade dos reivindicadores. Mas se a filosofia não é nada mais do que o desenvolvimento de
sistemas de pensamento e a resolução de suas oposições, e se ela não faz nenhuma reivindicação de verdade
extrínseca ou conclusividade, então ela é muito apropriadamente o registro de uma controvérsia interminável. A
história da filosofia é uma conversação contínua, que se prolonga por milênios; ela tem sido continuamente dialética
ou controversa, embora essa qualidade tenha sido mascarada pela atitude dogmática que a maioria dos filósofos tem
mantido em relação a seus pronunciamentos.
Os críticos da filosofia sempre apoiaram suas depreciações apontando para sua história. A filosofia não progrediu
como a ciência. A filosofia não resolveu os problemas antigos e partiu para novos problemas; seus problemas são
persistentes. A filosofia não acrescentou nada ao estoque de conhecimento; ela é ofuscação, futilidade e frustração.
Essa depreciação é justificada se a filosofia pretende satisfazer os fins que lhe são imputados por seus críticos.
Tradicionalmente, os filósofos têm cometido o erro de conceber erroneamente sua tarefa, seu objeto de estudo e seu
instrumento; as críticas, nesse sentido, são merecidas. No entanto, isso equivale a dizer que esses filósofos têm sido
dogmáticos em vez de dialéticos. O progresso no sentido em que ocorre nas ciências naturais é irrelevante para a
filosofia. A filosofia nunca resolve seus problemas, pois não tem problemas específicos para resolver. Qualquer que
seja a aparência dos problemas persistentes na história da filosofia, isso se deve ao fato de que, na tradição do
pensamento europeu, houve, até certo ponto, uma continuidade intelectual e um vocabulário fundamentado do
discurso filosófico. Quaisquer que sejam os problemas que a tradição filosófica tenha enfrentado repetidamente, ela
os resolveu parcialmente em muitas ocasiões diferentes, de muitas maneiras diferentes; mas a resolução em cada
caso foi temporária e inteiramente relativa à situação intelectual em que ocorreu. A filosofia não aumentou o estoque
de conhecimento nem culminou em verdades fundamentais ou crenças fixas; se sua natureza fosse essencialmente
dialética, não poderia ser de outra forma. A futilidade que lhe é atribuída é, sem dúvida, um atributo próprio do
empreendimento filosófico; ele deve ser completamente não-prático se quiser ser dialético e, em termos dos valores
pragmáticos que as ciências naturais passaram a satisfazer, não é de se admirar que a filosofia seja denunciada como
fútil. Contudo, essa denúncia, por outro lado, é de certa forma uma corroboração da identificação da filosofia com a
dialética. Por fim, a filosofia termina, não apenas em futilidade, mas em frustração; ela não chega a lugar algum,
nem mesmo intelectualmente. Mas isso também é um atributo próprio da filosofia enquanto dialética. Ela nunca
deve chegar a uma conclusão, a uma resolução última, a uma teoria definitiva. O fato de a história da filosofia ter
sido uma crônica a respeito da frustração intelectual ilustra ainda mais o fato de ela ter sido uma trajetória de
dialética. A oposição nunca pode ser totalmente removida do universo do discurso no qual ocorre a controvérsia
filosófica.
A concepção da filosofia como dialética pode explicar alguns dos atributos do panorama histórico, mas não altera os
padrões de valor que são invocados pelas críticas usuais à filosofia. Em um sentido, isso torna a crítica irrelevante,
uma vez que a filosofia assim concebida não pretende satisfazer os valores pragmáticos ou dogmáticos mencionados
por seus críticos. No entanto, a justificativa da filosofia pode ser feita positivamente em termos do conjunto de
valores intelectuais que ela tenta satisfazer. Isso será feito mais adiante.
Uma inspeção da história da filosofia pode descobrir os exemplos da tese anterior. A filosofia tem sido obviamente
controversa. Os escritos dos filósofos de qualquer geração foram estimulados pelas opiniões e teorias de seus
antecessores. A opinião provocou a opinião, e a crença antagonizou a crença. O pensamento filosófico recebeu seu
maior impulso não do comércio com o mundo, mas do contato de um filósofo com outro. A oposição tem sido a
semente fértil da produção filosófica. A fórmula de que o universo do discurso filosófico é expresso por declarações
feitas sobre declarações, em sua maior parte, parece ser corroborada.
O que poderia ser mais aparentemente uma história da dialética foi mascarado, entretanto, pela confusão de atitudes
que permeou a história do pensamento filosófico. A maneira dogmática pela qual a maioria das teorias filosóficas foi
apresentada, a sugestão de que os sistemas estiveram em contradição absoluta em vez de meramente em oposição, a
ausência de distinção entre o que era especulação pré-científica[45] e o que era argumento teórico, com a consequente
confusão de referências empíricas e discursivas, a falta de clareza com relação ao sentido em que o pensamento
filosófico poderia satisfazer um valor de verdade e os sentidos em que a verdade e a atualidade eram irrelevantes
para a filosofia — esses fatores tornaram o espetáculo histórico muito difícil de ser interpretado e fizeram da
filosofia um empreendimento muito duvidoso e indescritível. Ao excluir da história da filosofia todas as passagens
em que os filósofos se entregaram à imitação da ciência, a maior parte do segundo livro do Ensaio de Locke, por
exemplo, que é psicologia pré-científica, ou a cosmogenia e a "filosofia natural" de Descartes, que é física pré-
científica, e apagando todas as evidências de afirmação e negação dogmática das partes mais teóricas, o tecido
dialético da história da filosofia poderia ser analisado em fios de um argumento prolongado que não chegou, e não
pode chegar, a uma conclusão em nenhuma de suas pontas soltas ou de seus fios desemaranhados.
Se os filósofos foram conscientemente dialéticos, eles o foram mais no método do que na atitude. Sua maneira de
debater, sua técnica de definição e análise e o modo como os filósofos compreenderam ou refutaram seus oponentes
por meio de processos de tradução e absorção foram suficientemente dialéticos. O defeito tem sido a incompletude,
geralmente devido a um dogmatismo corruptor de um tipo ou de outro. Em outras palavras, muitos filósofos têm
sido dialéticos, de certa forma, na prática, sem entender as implicações teóricas dessa prática, as atitudes intelectuais
que ela envolve e os fins que ela é capaz de servir. Por essa razão, as teorias filosóficas que foram o trabalho de
processos dialéticos foram apresentadas como sistemas finais, em vez de parciais, no discurso; e a pluralidade de tais
sistemas finais apresentou a imagem de uma contradição irremediável, em vez de sugerir a situação dialética de
oposições no discurso que a dialética posterior poderia resolver.
Os sistemas filosóficos de Descartes e Leibniz, por exemplo, são dialéticos em sua execução, mas dogmáticos em
sua atitude, tanto em seus preconceitos científicos quanto religiosos. Os teólogos dos séculos XII e XIII eram
mestres consumados da técnica aqui descrita, mas eles a exerciam dentro dos limites da verdade revelada, uma
doutrina dogmática com a qual todas as outras proposições devem ser consistentes, ou então totalmente excluídas do
sistema de teologia como contraditórias e, portanto, falsas. No pensamento contemporâneo não há vigor intelectual,
exceto no pragmatismo, e isso, tanto na atitude quanto na prática, é uma negação completa da dialética e, portanto,
da filosofia de acordo com a concepção aqui desenvolvida. Os sistemas metafísicos de Aristóteles, Espinosa e Kant
são obras maravilhosas de dialética, mas são sistemas parciais; são como vozes isoladas que não foram
harmonizadas com a polêmica que provocam. A filosofia de Hegel é a que mais se aproxima da expressão
consciente da dialética como método e como teoria; sua única falha, talvez, seja o fato de que ela termina na Idéia
Absoluta, na qual todas as oposições são resolvidas. Ele abandona a inconclusão do processo dialético em favor de
um dogmatismo definitivo.
A única figura na história do pensamento que pode ser interpretada como compreendendo plenamente a natureza da
filosofia como dialética é Platão. Os diálogos formam uma representação dramática da conversação humana como o
locus do pensamento filosófico. Neles, o filósofo e o dialético são identificados. O tema de um diálogo platônico é
uma oposição de opiniões, uma oposição que geralmente surge no decorrer da conversação. A oposição é
esclarecida e, talvez, resolvida, apenas para sofrer o enfrentamento de outra oposição, e assim por diante. Não há
uma resolução definitiva da controvérsia intelectual que forma o diálogo; muitas doutrinas são propostas; seus
significados são esclarecidos; mas nenhuma é provada de maneira dogmática. À luz da presente discussão, não há
filosofia nos diálogos de Platão exceto na dialética que está contida neles. Nesse sentido, Platão é o primeiro e,
infelizmente, o último filósofo a compreender perfeitamente a natureza de sua própria tarefa e os traços de sua
técnica[46].
Deve-se dar crédito a Hegel, entretanto, pela formulação explícita da estrutura lógica da dialética. No entanto, em
primeiro lugar, essa estrutura lógica é imanente ao atual enquanto sua forma e processo; e, em segundo lugar, ela é
concebida como uma hierarquia finita. Com isso, Hegel deixa de assumir a atitude dialética em relação ao próprio
processo dialético — a disposição filosófica de imparcialidade que é capaz de testemunhar a inconclusão de
qualquer empreendimento teórico. Hegel exemplifica o fracasso de uma dialética que evita a frustração final, e nessa
aversão dogmática ele é imperfeitamente filosófico. Ele é um dos primeiros historiadores modernos da filosofia e,
provavelmente, o primeiro que tentou escrever essa história como uma espécie de progresso dialético. Em uma série
de passos triádicos, um argumento ou tese, sua negação por algum outro argumento ou tese e a resolução do
argumento em algum terceiro argumento ou tese, a história da opinião é desenvolvida como uma estrutura piramidal
de trilogias. Se essa concepção arquitetônica é a beleza do método de Hegel, é também sua ruína, pois a pirâmide
perfeita deve ter uma pedra de coroação. Deve haver uma categoria que resolva as dificuldades geradas por todas as
outras, uma última resolução de uma última antítese. Se a Ideia Absoluta é ou não a fonte da paz dialética não é algo
que precisa ser debatido aqui; o que está sendo contrastado aqui é a atitude que esse fim último expressa com a
atitude de considerar a dialética como interminável, que a presente exposição enfatizou como tão essencial para a
filosofia.
Esse contraste pode se tornar mais vívido se trocarmos Hegel por Platão. Suponhamos que Platão tenha abordado a
tarefa que Hegel empreendeu. A suposição não exige muito, pois comentários recentes mostram que os diálogos
tratam, em sua maior parte, de opiniões contemporâneas que Platão está submetendo à crítica, opiniões que, nem é
preciso dizer, não eram suas. O método de crítica, que ele mesmo chamou de dialética, consistia em tomar uma
opinião como premissa e explicá-la[47]. Opiniões contrárias são sugeridas, e o diálogo prossegue com o exame
alternativo dos fundamentos e implicações de várias hipóteses. Na maioria dos casos, o diálogo termina de forma
inconclusiva. Platão não faz nenhuma tentativa de sintetizar os erros de seus predecessores em qualquer verdade
final própria. Ele permite que as oposições permaneçam sem regeneração, e entre elas estão as doutrinas que a
tradição agora chama de próprias de Platão. A conversação é deixada tal como foi iniciada, sem que se saiba ou
acredite em mais nada, mas com os possíveis significados de muitas coisas mais claros. Os conversadores se
encontram por acaso, encontram seus temas nas declarações um do outro e saem para cumprir um compromisso ou
para voltar ao banho ou ao jantar. Eles são enriquecidos filosoficamente pelo que experimentam, mas não possuem
mais conhecimento ou mais verdade, nem é provável que acreditem nas últimas observações feitas por Sócrates.
Eles foram enriquecidos pelo exercício filosófico de suas próprias mentes. Foram filósofos porque discutiram, não
para acreditar em uma coisa em vez de outra, mas apenas pela experiência da própria dialética.
À luz dos diálogos, portanto, não é difícil imaginar como Platão escreveria a história da filosofia se tentasse fazê-lo
hoje. Seria um relato dialético sem a superestrutura hegeliana; em certo sentido, não seria história de forma alguma,
pois Platão teria exibido a dialética da opinião historicamente registrada sem o aparato irrelevante de uma trajetória
lógica no tempo. Esse livro poderia ser chamado de Summa Dialectica[48],
O presente volume serve ao seu propósito se for o prolegômeno para a Summa Dialectica que deve ser escrita. Nesse
trabalho futuro, o que aqui é apenas a sugestão mais simples da interpretação da filosofia histórica em termos de
dialética seria cumprido em detalhes. Embora as filosofias históricas pudessem constituir seu objeto de estudo, o
tratamento não seria histórico. Ele se preocuparia com teorias e não com pensadores. Seria estritamente dialético em
sua forma, provavelmente valendo-se das vantagens literárias do diálogo em vez dos dispositivos usuais do tratado
ou do procedimento geométrico. A Summa Dialectica seria, em parte, a exposição dos argumentos envolvidos nas
teorias, sistemas e filosofias que foram relatados ou registrados. Mais do que isso, ela necessariamente se esforçaria
para levar o processo dialético para além do ponto em que uma ou outra atitude dogmática o tivesse limitado
historicamente. Nesse sentido, seria um trabalho genuinamente criativo, além de ser a aplicação crítica da dialética a
um determinado campo de assunto. Todavia, seria um resumo apenas por exemplificação; não poderia, se fosse
completamente dialético, pretender resumir toda a polêmica que já existiu ou toda a controvérsia que poderia existir.
O método de exemplificação a ser empregado em tal empreendimento consistiria em traçar a linha de qualquer
argumento como o desenvolvimento em série de oposições entre doutrinas parciais e das resoluções parciais dessas
oposições. A linha, é claro, sendo infinitamente composta da mesma maneira, não poderia ser exaustivamente
revelada na exposição da controvérsia. Mas duas coisas teriam sido realizadas. Em primeiro lugar, todas as linhas de
argumentação tangentes ou que se intersectam[49] com a linha dada teriam sido indicadas; e, em segundo lugar, a
linha dada teria sido suficientemente definida, da mesma maneira que uma série infinita é definida pela descrição de
uma parte própria e pelo método de exaustão em direção a um limite. O mesmo tratamento definitivo poderia então
ser dado a todas as outras linhas de dialética que foram geradas na primeira instância; e elas, por sua vez,
produziriam outros loci de argumento, tangenciais ou de interseção. É difícil determinar a figura geométrica final
com a qual a Summa Dialectica se conformaria antes do empreendimento; talvez fosse uma esfera infinita cuja área
fosse um plenum de linhas ilimitadas, cada uma das quais tangenciando ou cruzando com todas as outras linhas em
algum ponto de sua extensão. Ela pode ser imaginada como uma esfera de luz sem limites, cada ponto da qual sendo
um centro gerador de raios de luz, cada raio um foco para todos os outros. Se assim fosse, então a Summa Dialectica
como um todo não poderia ser nada mais do que a exposição parcial e incompleta do campo da dialética pelo
método de exibição de uma parte própria e aproximação do limite de seu desenvolvimento hierárquico.
Os valores do volume aqui proposto certamente não podem ser declarados ou julgados antes da tentativa; sua
execução pode ou não ser possível em termos do plano preliminar. No entanto, quaisquer que sejam as outras
esperanças que a realização de uma Summa Dialectica possa cumprir, ela tem esta dupla promessa: primeiro, a de
declarar algumas das preocupações intelectuais fundamentais que a história da filosofia compreende, esclarecendo as
oposições, indicando algumas de suas possíveis resoluções e, talvez o mais importante de tudo, efetuando um maior
ou menor grau de tradução entre um sistema ou teoria e outro. Isso aumentaria a inteligibilidade da controvérsia
filosófica, provavelmente reduziria o que parece ser uma multiplicidade de diferenças e desacordos teóricos aos
termos mais simples nos quais a dialética poderia ser reconstruída; e, dessa forma, a filosofia histórica pode
contribuir para o esclarecimento dos processos filosóficos do presente e do futuro, a continuidade da filosofia em
discussões controversas, seja por filósofos profissionais ou não.
Em segundo lugar, o assunto de uma Summa Dialectica incluiria não apenas os escritos teóricos e sistemáticos que
têm sido tradicionalmente classificados como filosofia, mas também o universo científico do discurso, ou seja, o
corpo de proposições científicas, organizadas como sistemas teóricos. A ciência, em outras palavras, seria submetida
à dialética e, nesse tratamento, o discurso científico teria o status de teorização meramente possível e
necessariamente parcial. Para entender o que está implícito nesse programa filosófico, será necessária uma breve
análise do assunto da Summa que está sendo projetada.
O Objeto de uma Summa Dialectica
O universo do discurso científico pode ser descrito como um conjunto de proposições que pretendem ser declarações
de fatos ou proposições sobre a atualidade. O discurso científico faz parte de um universo mais abrangente de
discurso que constitui o objeto da dialética, pois considera qualquer proposição possível. Mas a característica
diferenciadora de uma proposição científica entre todos os outros itens possíveis no discurso é sua afirmação do fato
e sua reivindicação de mais do que uma possível verdade por estar relacionada extrinsecamente a coisas que não
estão no discurso, à realidade ou atualidade, substância ou existência. Essa assertividade e essa reivindicação são
claramente incompatíveis com o procedimento dialético. Portanto, torna-se necessário explicar de que maneira o
discurso científico pode ser considerado como objeto de estudo da dialética; e é somente o discurso científico que
requer essa explicação. Quaisquer que sejam os outros campos parciais de assunto abrangidos por uma Summa
Dialectica, eles são naturalmente adequados para tal inclusão e tratamento, em razão de serem inteiramente sistemas
de discurso, meramente teoréticos, meramente possíveis.
O próprio universo do discurso científico é subdividido em muitos campos parciais. Há ciências teoréticas, por um
lado, como teologia, ontologia, cosmologia, epistemologia, metafísica, matemática, lógica, ética e estética. Esses
termos técnicos designam o que tem sido tradicionalmente considerado como ramos da filosofia, mas se a filosofia é
dialética, esses ramos são mais adequadamente classificados como ciências teoréticas, já que em todos os casos eles
têm as duas qualidades dogmáticas da ciência, a afirmação da verdade e a relação com a atualidade. São ciências
diferentes na medida em que têm diferentes campos de assunto; são teoréticas na medida em que seu método é
inteiramente um processo no discurso. Seu caráter anômalo seria revelado ao chamá-las de ciências dialéticas. A
matemática e a lógica podem ser completamente dialéticas se nenhuma afirmação ontológica estiver ligada às suas
respectivas doutrinas. Elas seriam, então, meramente sistemas possíveis, em vez de ciências.
Por outro lado, há as ciências empíricas, como as físicas, biológicas e sociais, diferentes por causa da distinção em
seus temas e métodos, mas iguais em ser ciências por causa de suas reivindicações dogmáticas e iguais em ser
empíricas por causa do traço comum em seus diversos métodos de manipulação ou tratamento de eventos atuais ou
objetos existentes. É essa característica que as distingue do grupo das ciências teoréticas. No entanto, as ciências
empíricas não são totalmente indutivas, seja na forma experimental, estatística ou heurística. As ciências físicas, por
exemplo, na medida em que alcançam a formulação matemática, são dedutivas no método e altamente teoréticas, e
todas as outras ciências empíricas tentam se aproximar da estrutura teorética da mecânica, terrestre e celeste, como
um ideal. Na medida em que são dedutivas e se tornam teoréticas, as ciências empíricas são dialeticamente
articuladas. As ciências sociais ainda estão no estágio da linguagem de bebês, mas até mesmo elas fizeram alguma
tentativa de clareza teorética.
Essa análise pode ser generalizada na afirmação de que, na medida em que qualquer ciência atinge a forma teorética,
seu universo de discurso tem estrutura dialética. No caso das ciências empíricas, suas propriedades teoréticas ou
dialéticas não são incompatíveis com seus métodos experimentais ou empíricos. O trabalho de previsão e verificação
e o método de múltiplas hipóteses de trabalho são, em parte, instâncias do procedimento dialético.
Em outras palavras, qualquer ciência considerada meramente como uma teoria, como um sistema no discurso, é um
exemplo de elaboração dialética. No entanto, a dialética é incompleta se o sistema não for submetido às oposições
que inevitavelmente provoca. Entretanto, à luz dessa oposição, qualquer sistema se torna meramente parcial. Seu
status é o de possibilidade, e qualquer outra consideração dialética sobre ele deve desconsiderar qualquer
reivindicação que o sistema tenha de estar relacionado à atualidade, de ser extrinsecamente verdadeiro. Porém, é
exatamente essa afirmação que distingue qualquer universo parcial de discurso como científico. Isso vale igualmente
para as ciências teoréticas e empíricas.
Assim, para que as ciências se tornem, em parte, objeto de estudo da Summa Dialectica proposta, elas podem ser
consideradas de duas maneiras. A primeira foi sugerida pelo Sr. Scott Buchanan em seu tratado intitulado
Possibility[50]. Resumidamente, uma ciência pode ser considerada como uma ordem de parâmetros. Sua estrutura é
sistemática e sua função é analítica; como um sistema, ela é analítica e essa análise é relevante para algum todo
atual. Uma ciência é o equivalente analítico de algum todo atual. Mas a análise é sempre um assunto intelectual; seu
status é o de uma possibilidade. Qualquer ciência é apenas uma das muitas análises possíveis de um determinado
todo atual. Esse tratamento não anula a alegação de verdade de uma ciência, mas reinterpreta a importância dessa
alegação de verdade e torna a ciência empírica comparável aos mitos e a qualquer sistema puramente teorético. Em
suas formas intelectuais, todos são sistemas igualmente possíveis, analíticos de algum todo atual e equivalentes uns
aos outros na proporção em que são verdadeiros; isto é, equivalentes ao todo atual que analisam. A declaração mais
completa dessa interpretação da ciência pode ser encontrada no livro do Sr. Buchanan.
A segunda maneira de considerar as ciências está de acordo com a teoria da dialética aqui desenvolvida. Qualquer
ciência pode ser considerada inteiramente em seu aspecto teorético e, nesse aspecto, é meramente um sistema
discursivo e pode ser tratada inteiramente como um assunto no universo do discurso. Sua verdade é determinada
intrinsecamente, como no caso de qualquer outro sistema ou teoria. Seu significado é determinado, não em relação à
realidade ou atualidade, mas em relação às oposições sistemáticas que a definição de sua doutrina gera. Considerado
dessa maneira, qualquer universo parcial de discurso científico é totalmente suscetível à dialética; mas deve-se
admitir que o universo parcial de discurso assim tratado não possui mais nenhum dos traços distintivos de uma
ciência. Ele é pura teoria; é uma possibilidade intelectual.
Há concordância entre a formulação paramétrica do Sr. Buchanan e a teoria da dialética em suas cláusulas
principais, mas não no que diz respeito à relação do analítico com o todo atual que a primeira interpretação postula.
Esse ponto de discordância sugere uma questão dialética entre as duas teorias que não pode ser adequadamente
abordada aqui; em parte, ela foi tocada na discussão anterior sobre a relação entre discurso e atualidade. A
elaboração adicional dessa oposição é um tema para a própria Summa Dialectica.
Agora deve ficar claro de que maneira a história da filosofia se torna objeto de estudo da dialética. A história da
filosofia é o registro documental do desenvolvimento das ciências teoréticas. Ao privá-las de qualquer propriedade
dogmática que possam possuir, a filosofia, em seu papel de dialética, pode incorporá-las à matriz de uma Summa
Dialectica. A filosofia pode lidar de modo semelhante com as ciências empíricas. A implicação é que a filosofia é
um método para lidar com qualquer universo parcial de discurso[51]; ela é um método determinado pela natureza do
discurso em geral. E esse método é a dialética.
A relação entre a filosofia como um método e o discurso científico como um fragmento de seu objeto de estudo
pode ser determinada pela análise anterior. No entanto, ainda há um conflito entre a filosofia como método e a
ciência como método, um conflito entre a dialética e o empirismo. Essa oposição pode ser declarada como uma
oposição de valores intelectuais e, no esclarecimento dessa oposição, será dado o último passo para explicar o
significado da dialética, definindo os valores intelectuais específicos que ela é capaz de satisfazer.
A Atitude Dialética
A dialética está confinada inteiramente ao universo do discurso: seu objeto de estudo é o discurso e seu próprio
movimento é expresso em proposições. Trata-se de um método de compreensão e de crítica.
O método da ciência empírica pode ser descrito, de modo geral, como um método de pesquisa e investigação. Ele se
preocupa com a descoberta e a determinação de fatos de primeira ordem, eventos e existências e suas relações atuais.
A teoria científica pode residir no discurso, mas seu método, na medida em que é empírico e indutivo, é um
movimento entre as coisas; e é por meio do exercício de seu método que a teoria científica reivindica verdade e
relevância para a atualidade.
Em termos de seu método e de sua reivindicação, a ciência representa uma atitude intelectual em profundo contraste
com a atitude da dialética. A atitude empírica é uma ênfase em dois valores, o valor dogmático da crença e o valor
pragmático da ação. O pensamento científico satisfaz esses dois valores: em sua reivindicação de uma verdade
extrínseca e determinada, pode resultar em crença; ao lidar com entidades no campo da ação, pode resultar em
conduta. Em outras palavras, a ciência é capaz de ser aplicada.
Por outro lado, a atitude dialética é uma ênfase nos valores de imparcialidade e impraticalidade, de descrença e
inação. Trata-se de um tipo de pensamento que satisfaz esses dois valores: na inconclusividade essencial de seu
processo, evita sempre repousar na crença ou na afirmação da verdade; por meio de sua restrição total ao universo
do discurso e de sua desconsideração por qualquer referência que o discurso possa ter à atualidade, é desprovida de
qualquer questão prática, não pode fazer diferença no modo de conduta[52].
Os valores do empirismo não se limitam à vida prática. São valores genuinamente intelectuais, pois são
determinantes para um certo tipo de pensamento. De acordo com o empirismo, a descoberta de verdades, o
estabelecimento de crenças e a regulação do comportamento humano em conformidade com elas são os objetivos
importantes do pensamento. A dialética não nega esses valores, ela simplesmente propõe que há outros valores
intelectuais além desses e que há um tipo de pensamento diferente do pensamento empírico ou científico que é capaz
de satisfazer esses valores. Os valores da dialética, ademais, não estão confinados à vida teórica. Eles têm uma certa
importância prática na medida em que impõem ao pensamento a consciência de sua irrelevância para os assuntos
práticos, para a vida e para a conduta. A ação é total e brutalmente pragmática; nunca é um assunto para a dialética,
exceto em retrospecto, e então, na reflexão, torna-se meramente teoria ética. O pensamento dialético pode estar de
alguma forma relacionado ao procedimento empírico, no sentido de que os processos dedutivos e analíticos estão
envolvidos em qualquer instância de descoberta ou pesquisa empírica complicada. Mas o pensamento dialético e o
empírico são claramente pólos opostos nos valores que pretendem satisfazer. Essa é a polaridade fundamental da
atividade intelectual em geral: justiça à plenitude do concreto, por um lado, e a considerações abstratas e universais,
por outro. O pensamento científico tenta cumprir esses dois objetivos alternativos e, portanto, tem a dificuldade de
enfrentar uma oposição final; enquanto o pensamento dialético abole a oposição como algo irrelevante para sua
natureza. A dialética admite que é incapaz de lidar com a plenitude do concreto; ela pode até ir mais longe e afirmar
que nenhum pensamento é capaz de lidar com a plenitude do concreto. Isso, em certo sentido, é o primeiro passo na
crítica da ciência.
A conversação humana, como foi visto, se for controversa ou argumentativa, tende à dialética ou à investigação. Os
valores intelectuais tanto do empirismo quanto da dialética são, portanto, relevantes para a situação em que a
conversa ocorre sobre um tema disputado ou um ponto de discórdia. Pode ser possível resolver a questão com
referência aos fatos, e isso envolverá o recurso aos processos de pensamento empírico, experimento, investigação,
pesquisa efetiva de um tipo ou de outro. Mas o recurso ao empirismo é equivalente à renúncia da conversação. O
argumento é trocado pela investigação. O pensamento científico não é conversacional, mesmo que tenha importância
crucial em questões assim desenvolvidas. A outra alternativa é recorrer a um tipo de pensamento que é
intrinsecamente conversacional, um tipo de pensamento que lida com os desacordos que surgem no discurso
humano, tratando-os como oposições intelectuais, capazes de algum esclarecimento e alguma resolução em um
discurso posterior.
Não é importante decidir entre essas duas alternativas em geral; isso depende do temperamento dos indivíduos
envolvidos na controvérsia e do caráter do tema específico em qualquer ocasião de disputa. Algumas mentes são
incapazes de assumir as atitudes intelectuais de impraticalidade e imparcialidade necessárias para a busca dialética; e
para alguns os fins de tal procedimento não têm valor. A controvérsia muitas vezes acaba sendo uma discussão sobre
os fatos e, quando isso é descoberto, a discussão deve ser adiada em prol da investigação. Os significados dos fatos,
sejam eles quais forem, podem ser determinados pela conversação, mas a conversação nunca pode determinar o que
é um fato e o que não é. Somente questões que possam ser interpretadas como oposições no discurso, e não como
disputas sobre os fatos, são os temas adequados da conversação intelectual.
É importante, portanto, distinguir entre essas alternativas na conversação. A conversação deve ser abandonada
quando se torna ineficaz em qualquer instância específica ou, se ela se voltar para a dialética como método para lidar
com suas dificuldades, deve observar as condições que lhe são impostas. O objetivo deste livro é definir essas
condições na descrição da dialética como um método. Ademais, se a conversação escolher a forma dialética de lidar
com suas questões controversas, ela deve se submeter aos valores intelectuais que essa forma de pensar é capaz de
satisfazer. Esses valores são fundamentalmente diferentes dos valores imanentes ao pensamento científico ou
empírico. As implicações dessa diferença já foram resumidas. Resta apenas declarar, de modo muito geral, o valor
humano e a importância da filosofia, se o seu locus for a conversação e se seu método e atitudes forem os da
dialética.
A filosofia, entretanto, não é apenas o instrumento da liberdade intelectual. Ela é uma experiência do espírito
cômico, para aqueles que a apreciam na busca dialética da conversação. "A tragédia essencial do pensamento
humano", escreveu-se, é "sua tarefa inevitável e sua frustração inevitável". No entanto, para o filósofo, a inevitável
frustração da dialética não é uma tragédia; sua inconclusão é o símbolo da possibilidade infinita. A limitação que a
atualidade impõe ao pensamento é trágica; mas o empreendimento do pensamento como uma aventura no reino da
possibilidade é a essência do espírito cômico na vida intelectual. Ser um dialético completo em conversações ou
reflexões é ser um filósofo que se envolve nos partidarismos da controvérsia, mas um que nunca perde a
imparcialidade em relação a todas as considerações teoréticas relevantes.
A filosofia é a emancipação do intelecto e o cultivo do espírito cômico. Ela também pode ser uma forma de se tornar
sensível à vida, uma forma de se tornar sensível às diferenças e oposições que permeiam o mundo humano, porque
ele é feito não apenas de coisas brutas, mas com significados no discurso.
Apêndices
Apêndice A

A palavra "doutrina" é usada em todas as exposições lógicas e metafísicas para designar qualquer grupo de
proposições que sejam complementares e que tenham implicações. Uma vez que o conjunto de proposições que
formam um sistema são coerentes e têm implicações, um "sistema" é aqui às vezes chamado de "doutrina". Contudo,
com mais frequência, "doutrina" denota o conjunto de proposições assumidas ou intuitivas, os postulados e as
definições, diferentemente das proposições demonstrativas ou teoremas. É nesse sentido que a frase "a doutrina do
sistema" é usada; e, a menos que indicado de outra maneira, "doutrina" significa a doutrina de um sistema. Esse uso
difere arbitrariamente do significado dado à palavra na lógica matemática, em que "doutrina" e "sistema" são usados
de forma intercambiável.
Apêndice B
A frase "todo analítico" é usada em todo o texto, exceto quando especificado de outra forma, para se referir a
qualquer conjunto de proposições estabelecidas por definição como um sistema e articuladas dedutivamente por
análise. Um todo analítico é, portanto, sempre um todo parcial e, como um todo parcial, um sistema é sempre
analítico. Essa definição de "todo analítico" determina os significados das palavras "equivalência" e "intervalência".
Os sistemas são equivalentes quando são valores igualmente satisfatórios em substituição às variáveis de uma
função comum do sistema, ou seja, quando são mutuamente traduzíveis ponto a ponto. Os sistemas são intervalentes
quando estão incluídos parcialmente em algum sistema supraordenado, ou seja, quando são sintetizados. Aqui,
portanto, está a distinção entre a tradução do sistema e a resolução de sua oposição efetiva. A resolução é um
subcaso da tradução; é uma tradução incompleta ou parcial. A tradução perfeita, o caso limite, é uma expressão de
identidade.
Na página 211 do texto, o uso de "todo analítico" pelo Sr. Buchanan é discutido. Nesse uso, um todo analítico
também é um sistema, mas é "analítico" em razão de sua equivalência analítica a algum todo atual. A intervalência
se torna a relação entre dois sistemas, ou conjuntos analíticos, que são mais ou menos equivalentes a algum todo
atual.
A diferença entre esses dois usos para o mesmo conjunto de termos é paralela à oposição entre duas teorias de
implicação desenvolvidas no texto. (Consulte a página 211 e seguintes).
Apêndice C
A discussão da lei da contradição em relação ao procedimento dialético foi concluída com a tese de que não há
contradições dentro ou entre sistemas quando eles são tratados dialeticamente. Qual deve ser, então, o critério
operacional para a compatibilidade de dois ou mais postulados de uma determinada doutrina?
Os postulados da doutrina Alfa podem ser considerados como os teoremas do sistema supraordenado Beta. Se os
postulados fornecidos forem demonstrados pela doutrina do sistema Beta, não só será provado que eles são teoremas
consistentes em Beta, mas também que são compatíveis como postulados da doutrina Alfa. Mas essa demonstração
de sua compatibilidade depende da consistência da doutrina Beta, cujos postulados devem, por sua vez, ser provados
compatíveis como teoremas consistentemente implícitos no sistema supraordenado Gama. E isso obviamente
continua em uma regressão infinita.
A compatibilidade de postulados é, portanto, reduzida em toda parte à consistência de teoremas, e isso equivale a
sustentar que não há teste final para a compatibilidade de postulados no procedimento dialético. Essa tese, ademais,
é eminentemente apropriada para a teoria lógica da dialética. A compatibilidade de qualquer conjunto de postulados
é um assunto tão relativo quanto a validade de qualquer sistema; e o teste de um pressupõe adequadamente o outro, e
vice-versa.
Apêndice D
A relação entre uma proposição (uma entidade no discurso) e um fato (uma entidade não-discursiva) é descrita ao
longo da presente exposição como uma relação que transcende o discurso e é recalcitrante e resistente a ele. A
relação denotada, em outras palavras, não pode ser declarada no discurso. Isso parece ser precisamente o que
Bertrand Russell se refere como "a tese mais fundamental da teoria do Sr. Wittgenstein", em sua Introdução ao
Tractatus Logico-Philosophicus: "Aquilo que tem de estar em comum entre a sentença e o fato não pode, conforme
ele (Wittgenstein) argumenta, ser dito por sua vez na linguagem. Em sua fraseologia, só pode ser mostrado, não dito,
pois o que quer que digamos ainda precisará ter a mesma estrutura". É com esse insight que Wittgenstein conclui na
Proposição 7: "Não se pode falar sobre isso, deve-se ficar em silêncio."
Apêndice E
Dois tipos de relação implicativa foram enunciados neste livro. Um deles pode ser chamado de implicação analítica;
é a relação entre um todo e qualquer uma de suas partes, e essa relação não é recíproca. O outro tipo de relação
implicativa pode ser chamado de implicação definitiva; é a relação entre elementos coordenados, entre uma parte e
suas outras, ou opostos. A implicação definitiva é recíproca.
É evidente que a implicação na dialética não tem o mesmo significado que tem na maioria dos tratados sobre lógica
formal ou matemática. E é quase crucial para a compreensão da doutrina deste livro que a distinção de significado
seja esclarecida. Uma breve análise da implicação no sentido mais usual ajudará a ilustrar essa distinção. Whitehead
e Russell, na Introdução ao Principia Mathematica, apresentam uma formulação geral de sua concepção de
implicação. Deve-se lembrar que as quatro idéias primitivas para eles são disjunção, contradição, conjunção e
implicação. Eles procedem à derivação das duas últimas a partir das duas primeiras, observando, entretanto, que o
processo poderia, com maior dificuldade, ser revertido. Assim sendo, a implicação é definida em termos de
disjunção e contradição. Assim, a proposição p implica a proposição q se não-p ou q for verdadeiro. O Principia
denomina isso como a forma geral da proposição "se-então". A função disjuntiva é expressa em uma proposição (a
saber, não-p) e outra (a saber, q) sendo verdadeira. Mas a "razão" pela qual q é verdadeiro e, portanto, pela qual p
implica q está na noção de contradição. Não-p não pode ser verdadeiro, se p for verdadeiro; a lei da contradição
determina que, se uma proposição p for verdadeira, sua contraditória não-p é falsa. Essa é a implicação material. A
implicação estrita do professor Lewis, de Harvard, embora diferente em detalhes técnicos, também se baseia na lei
da contradição.
Três questões surgem imediatamente: (1) Qual é a resolução da oposição entre a implicação que depende da
contradição (material ou estrita) e a implicação (analítica ou definitiva) tal como usada neste livro? (2) Qual é o
status lógico do verdadeiro? (3) Que considerações são logicamente pertinentes à descoberta da verdade, ou seja, à
demonstração?
Veremos que qualquer solução para a primeira será em termos da relação de exclusão; as outras duas envolvem a
relação de inclusão.
Considerado dialeticamente, o sistema ou universo parcial do discurso, que efetua uma resolução parcial da oposição
entre o sistema no qual a implicação material é um elemento e algum outro sistema, será superior aos sistemas em
oposição. Deve-se lembrar que a contradição não ocorre entre sistemas; e ainda que, dada uma proposição, sua
"contradição formal", como uma de suas indefinidas outras, é simplesmente excluída do sistema no qual ela (a
proposição dada) está. A proposição "contraditória" está relacionada, como qualquer uma das outras, à proposição
dada por exclusão parcial: uma implica a outra definitivamente. Os sistemas estão relacionados da mesma forma, por
exclusão parcial e implicação definitiva. E o sistema que "contradiz" o sistema no qual a implicação material é
afirmada, será, em termos dialéticos, simplesmente um outro sistema, e relacionado a ele por exclusão. A oposição
gerada entre os dois será capaz de ser resolvida em algum sistema supraordenado. Da mesma forma, a proposição
que "contradiz" a proposição que afirma a implicação material é um outro excluído, e a oposição assim gerada é
capaz de uma resolução parcial semelhante. A exclusão, vale lembrar, é parcial, e a resolução é igualmente parcial.
A proposição na qual a resolução é efetuada será descoberta pela síntese em termos de condições de identidade
comuns. Na proposição de implicação material, o elemento "p implica q" pressupõe uma relação entre p e q. O
elemento disjuntivo pressupõe uma relação entre não-p e q. Da mesma maneira, a contradição pressupõe uma
relação entre p e não-p. Em qualquer proposição que seja a "contraditória" da implicação material, se p, q e não-p
estiverem envolvidos, haverá pressuposições comuns. Portanto, a proposição supraordenada na qual a oposição é
parcialmente resolvida, e que é pressuposta por ambas as proposições subordinadas opostas, pelo menos declarará:
há uma relação entre p e q.
Agora é necessário inspecionar a fórmula: "Se isto, então aquilo", que é a forma alternativa para a proposição: "p
implica q Isso, expandido, afirma: "se isto é verdade, então aquilo é verdade". Essa também é a afirmação do que foi
chamado aqui de implicação analítica. Deve-se lembrar que, no breve resumo da implicação material, nenhum
significado foi dado à verdade. Russell e Whitehead também não tentam dar esse tratamento em sua formulação.
Nesse ponto, entretanto, o status dialético de "verdadeiro" deve ser considerado para que a afirmação dialética da
implicação fique perfeitamente clara. "Verdadeiro" ou "validamente decorrente de" é uma função proposicional e a
constante que é admitida depende do sistema para o qual é relevante. Isso apenas reafirma uma proposição deste
livro, de que o significado de um elemento no discurso (neste caso, "verdadeiro") depende do contexto em que ele
aparece. Em outras palavras, dialeticamente considerado, um elemento (sendo um símbolo) não tem significado
isolado. Isso é particularmente difícil no caso de "verdadeiro", por dois motivos. Em primeiro lugar, "verdadeiro"
geralmente tem uma importância extra-lógica que está ligada à "experiência". É por causa da imperfeição do
discurso humano que essa importância extra-lógica se torna um fator efetivo no pensamento humano. A prática da
dialética, por outro lado, tenta, na medida do possível, eliminar esse condicionamento psicológico. Considerado
logicamente, "verdadeiro" tem um significado em um contexto que pode ser o objetivo da dialética descobrir. Mas
essa primeira dificuldade só aumenta a segunda. Em poucas palavras, a regra de demonstração deve, em qualquer
sistema (mesmo em uma análise lógica da dialética), ter status intuitivo, ou seja, ser postulada para evitar uma
regressão infinita. Em outras palavras, a demonstração da regra de demonstração não pode ocorrer dentro do sistema
no qual essa regra de demonstração é regulativa. E essa mesma condição parece dar à regra da demonstração um
significado extra-lógico que pode facilmente se tornar repleto de antinomias epistemológicas. Uma análise lógica da
dialética, se quiser ser completa, deve lidar com essa situação.
Uma análise mais aprofundada revelará que, em termos puramente lógicos, essa dificuldade aparente é reconciliada
dentro dos limites estabelecidos. "Verdadeiro" ou "validamente decorrente de" foi designado como uma função
proposicional. Será observado que ela é equivalente à regra da demonstração ou, nos termos deste texto, à
implicação analítica. A regra de demonstração para qualquer sistema será o elemento constante que, para esse
sistema, é admitido na função proposicional "verdadeiro" ou "validamente decorrente de". Porém, foi dito que isso
deve ser separado do sistema. Deve-se lembrar, entretanto, que duas relações são possíveis: exclusão ou inclusão.
Como isso obviamente não constitui uma outra, não pode ser relacionado por exclusão. E como a inclusão não é
recíproca, a regra de demonstração deve residir em um sistema supraordenado ao sistema do qual ela é reguladora. A
demonstração atual nesse sistema, no entanto, depende de uma regra de demonstração que também reside em um
sistema ainda supraordenado. Isso desenvolve a estrutura na qual subsiste logicamente a regressão infinita da
demonstração de qualquer regra de demonstração. E é por causa disso que qualquer análise atual da dialética deve
ser forçada a postular uma regra de demonstração, de implicação analítica, que é separada e pressuposta por esse
sistema. Finalmente, deve-se ter em mente que, exatamente da mesma forma que nenhum termo ou proposição tem
significado dialético à parte de seu contexto, nenhum sistema tem significado à parte de seu contexto de sistemas
supraordenados e coordenados.
É evidente, então, (1) que a implicação material, dependendo da disjunção e da contradição, deve ser demonstrada
por uma regra de implicação cujo fundamento é supraordenado; e (2) que o termo "contradição" tem um significado
particular, dependendo do contexto em que se encontra. Neste texto, ele é traduzido como oposição ou alteridade, e
essa tradução é, obviamente, relativa ao contexto. Nenhum dos termos tem uma validade extra-lógica fora de seu
contexto. Mais importante, fica claro que a implicação material é apenas um método de demonstração; e que as
conclusões podem ser obtidas de forma válida por meio de outros procedimentos demonstrativos. Qualquer que seja
o método de demonstração para um sistema, ele será a constante admitida para a função proposicional, "validamente
decorrente de" ou "implicação", relevante para esse sistema. Assim, a "verdade coerente" é estruturalmente possível,
o que resultará em teoremas terminais muito estranhos ao que a psicologia elogiosa do "pensamento rigoroso" tem
exigido até agora. Ademais, o "absurdo" que é o teste para a inadmissibilidade de constantes em funções
proposicionais será considerado uma função proposicional equivalente para "falso" que, como o "contraditório
formal" de "verdadeiro", é meramente um outro, e relacionado a ele por exclusão. Quaisquer que sejam os critérios
psicológicos ou supra-cogitativos que possam ser utilizados, dialeticamente as constantes do "absurdo" não apenas
não são irrelevantes para a "verdade", mas estão definitivamente implícitas nela.
E da mesma maneira que uma análise da proposição supraordenada que resolvia a oposição entre implicação
material e implicação definitiva repousava na condição de identidade: "há uma relação entre p e não-p"; assim a
proposição supraordenada que resolve a oposição entre demonstração por implicação material e demonstração por
implicação analítica, repousa na condição de identidade: "há uma relação entre p e q" — onde p é supraodinado.
Uma determinação adicional dessa função invocaria, como foi demonstrado, uma proposição ainda supraordenada
que, da mesma forma, nesse contexto, seria apenas parcialmente determinada.
Três teses, portanto, resumirão esta discussão.
1. A implicação é a subsistência de relações entre entidades no discurso.
2. A implicação definitiva é a relação de exclusão pela qual outras coordenadas são relacionadas a um determinado
elemento; a implicação analítica é a relação entre um elemento e seus subordinados.
3. "Verdadeiro" e "falso" são funções proposicionais, cujas determinações parciais são as determinações parciais das
relações entre elementos implícitos.
Apêndice F
Platão é mencionado no texto como o único filósofo histórico que exemplifica completamente a atitude dialética e
cujo trabalho é uma incorporação do procedimento dialético. Essa representação de Platão torna-se extremamente
hostil à concepção ortodoxa e convencional sobre ele, chegando ao ponto de ignorar totalmente as "doutrinas
platônicas", seja como um mal-entendido perpetrado e perpetuado pela tradição acadêmica, seja como irrelevante
para o filósofo Platão. Um desvio assim tão radical na construção histórica exige claramente alguma evidência e
corroboração. As evidências e os argumentos em apoio a essa teoria sobre Platão não podem ser apresentados em
detalhes aqui. Os leitores serão remetidos a um trabalho futuro do professor F. J. E. Woodbridge, a quem estou
profundamente grato por minha introdução a Platão à luz dessa interpretação renovadora dele. As três citações a
seguir, entretanto, são apresentadas como exemplo, em vez de documentação adequada e discussão autorizada.
A primeira é uma breve citação das Cartas de Platão, Epístola VII, 341, b-d. Nessa passagem, Platão se refere
àqueles que pretendem expor suas doutrinas filosóficas.
"Ouvi dizer também que ele (Dionísio) escreveu desde então sobre os assuntos nos quais eu o instruí na
época, como se estivesse compondo um manual próprio que diferisse inteiramente da instrução que
recebeu. Não sei nada sobre isso. Sei, no entanto, que outros escreveram sobre esses mesmos assuntos, mas
eles próprios não sabem quem são. De qualquer modo, posso fazer uma afirmação em relação a todos os
que escreveram ou que podem escrever com a pretensão de ter conhecimento dos assuntos aos quais me
dedico, independentemente de como pretendem tê-lo adquirido, seja por meio de minha instrução, da
instrução de outros ou por sua própria descoberta. Em minha opinião, tais escritores não podem ter
conhecimento real do assunto. Eu certamente não compus nenhum trabalho a respeito, nem o farei no
futuro, pois não há como colocá-lo em palavras da mesma forma que acontece com outros estudos. A
familiaridade com o assunto deve vir depois de um longo período de instrução sobre o assunto em si e de
companheirismo íntimo, quando, de repente, como uma chama acesa por uma faísca saltitante, ele é gerado
na alma e imediatamente se torna autônomo.
"Além disso, pelo menos sei que, se houver um tratado ou uma palestra sobre esse assunto, eu poderia
fazê-lo melhor. Também tenho certeza de que ficaria muito triste se visse um tratado desse tipo mal escrito.
Se eu achasse possível tratar adequadamente do assunto em um tratado ou palestra para o público em geral,
que melhor realização teria havido em minha vida do que escrever uma obra de grande benefício para a
humanidade e trazer a natureza das coisas à luz para todos os homens? No entanto, não acho que a tentativa
de informar a humanidade sobre esses assuntos seja uma coisa boa, exceto no caso de alguns poucos que
são capazes de descobrir a verdade por si mesmos com pouca orientação. No caso dos demais, fazer isso
despertaria em alguns um desprezo injustificado de uma maneira completamente ofensiva; em outros,
certas esperanças elevadas e vãs, como se tivessem adquirido algum conhecimento impressionante."
A segunda é uma citação do recente trabalho de A. E. Taylor sobre Platão (pp. 201-2). Nesta passagem, que ocorre
no final de um estudo elaborado do Phaedo, Taylor descreve o método socrático, o método que Platão chamou de
dialética ou filosofia.
"A decepção, diz Sócrates, confirmou sua opinião de que ele não era 'bom' em ciências naturais e que
deveria tentar encontrar uma saída para sua 'dúvida universal' por meio de sua própria inteligência, sem
confiar em 'homens de ciência', os quais pareciam ser capazes de provar apenas uma coisa — que todos os
outros estavam errados. Sua descrição do 'novo método' nos revela imediatamente que se trata de algo
característico da matemática. Trata-se de um método de considerar 'coisas' investigando as λόγοι ou
'proposições' que fazemos sobre elas. Sua característica fundamental é que ele é dedutivo. Começa-se com
o 'postulado', ou princípio não demonstrado, que se considera mais satisfatório e prossegue-se para extrair
suas consequências ou 'implicações', provisoriamente colocando as consequências como 'verdadeiras' e
quaisquer proposições que entrem em conflito com o postulado como falsas (100a). É claro que, como será
esclarecido mais adiante, um 'postulado' (ὑπόθεσις) que implica consequências que não condizem com os
fatos ou que são destrutivas entre si é entendido como algo refutado. Mas a ausência de contradição nas
conseqüências de um 'postulado' não é considerada prova suficiente de sua verdade. Se um adversário que
contesta seu postulado lhe pedir para defendê-lo, você deve deduzir o próprio postulado a partir de um
postulado mais último, e esse procedimento deve ser repetido até que você chegue a um postulado que seja
'adequado' (101e 1), ou seja, um postulado que todas as partes envolvidas na discussão estejam dispostas a
admitir. (Itálico meu. — M.J.A.) A regra especial mais importante do método, entretanto, é aquela,
também enfatizada por Descartes, de que uma ordem adequada deve ser observada. Não devemos levantar
a questão da verdade de um 'postulado' em si até que tenhamos descoberto primeiro exatamente quais são
suas consequências. A confusão entre esses dois problemas distintos é o grande erro do ἀντελογικά
(101e). Apesar da depreciação bem-humorada de seu procedimento como sendo o de um amador, Sócrates
evidentemente, assim como Descartes, refletiu cuidadosamente sobre a natureza do método geométrico e,
assim como ele, está propondo introduzir o mesmo método na investigação científica em geral."
A terceira citação é da Autobiografia de John Stuart Mill. Por volta dos 12 anos de idade, ele foi apresentado a
alguns dos diálogos de Platão e, nessa idade, conseguiu fazer a distinção que está sendo discutida aqui. Ele escreve,
em retrospecto:
"Desde então, tenho sentido que o título de platonista pertence, com muito mais razão, àqueles que foram
cultivados e se esforçaram para praticar o modo de investigação de Platão, do que àqueles que se
distinguem apenas pela adoção de certas conclusões dogmáticas, extraídas principalmente das obras menos
inteligíveis, as quais, pelo caráter de sua mente e de seus escritos, não se sabe se ele próprio considerava
como algo mais do que fantasias poéticas ou conjecturas filosóficas."
O leitor pode não ter tido a grande vantagem do aprendizado inicial de John Stuart Mill, mas, depois de seguir o
argumento deste livro, pode-se esperar que ele, pelo menos, assuma uma atitude dialética em relação à questão
existente entre a concepção ortodoxa de Platão como autor de "conclusões dogmáticas" e o Platão aqui apresentado
como autor de reproduções dramáticas da dialética e como filósofo, no sentido de que nele se encontram um certo
temperamento intelectual e um certo método.
Apêndice G
A distinção feita no texto entre filosofia e ciência tem um paralelo interessante nas afirmações feitas por
Wittgenstein nas proposições 4.111 e 4.112 do Tractatus: "A filosofia não é uma das ciências naturais. (A palavra
'filosofia' deve significar algo que está acima ou abaixo, mas não ao lado das ciências naturais). O objeto da filosofia
é o esclarecimento lógico dos pensamentos. A filosofia não é uma teoria, mas uma atividade. Um trabalho filosófico
consiste essencialmente em elucidações. O objetivo da filosofia não é obter um número de 'proposições filosóficas',
mas tornar as proposições claras. A filosofia deve tornar claros e delimitar nitidamente os pensamentos que, de outra
maneira, são, por assim dizer, opacos e embaçados."
E ele continua a fazer uma declaração que se harmoniza com o argumento no texto sobre a relação da Summa
Dialectica com seu objeto de estudo, a relação da filosofia como dialética com a epistemologia, por exemplo, que é
tradicionalmente considerada um ramo da doutrina filosófica: "A psicologia não está mais relacionada à filosofia do
que qualquer outra ciência natural. A teoria do conhecimento é a filosofia da psicologia." (4.1121)
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[1]
Consulte C. K. Ogden e I. A. Richards, The Meaning of Meaning na Biblioteca Internacional de Psicologia, cap. IX, passim.
[2]
Veja Jean Piaget, The Language and Thought of the Child, na Biblioteca Internacional de Psicologia, etc.
[3]
William James, psicólogo e filósofo americano. N.T.
[4]
A presente discussão limita-se aos traços do que a psicanálise chama de pensamento inteligente, em contraste com o pensamento autista. Sobre a relação
entre esses dois tipos de pensamento e hábitos de linguagem, consulte Piaget, op. cit., pp. 43-9. Para minha própria discussão sobre a relação entre o
pensamento autista e o inteligente, quando eles entram em conflito, veja abaixo.
[5]
O autor aqui se refere à obra de William James, The Will to Believe. (N.T.)
[6]
A palavra "fato" é usada ao longo deste livro para designar essa classe de entidades. Ela deve ser diferenciada do uso lógico de "fato" como o que uma
proposição afirma ou denota, e da descrição da proposição como um "fato lógico". A menos que seja declarado ou qualificado de outra forma, fato é aqui
restrito para significar um objeto, evento ou uma existência — o que quer que seja o objeto de uma proposição, mas nunca o seu sujeito. Um fato, em
outras palavras, é sempre transcendente e sempre um indivíduo.
[7]
A casuística jurídica é um excelente exemplo da maneira dialética de proceder com relação aos "fatos". Um determinado conjunto de fatos é aceito como
evidência, e o processo do casuísta é tornar uma interpretação mais convincente ou, talvez, mais agradável do que outra. Deve-se observar que a casuística
consiste em interpretar os dados, e nunca em apresentar ou descartar provas. Da mesma forma, os processos de diplomacia, de diagnóstico médico e de
deliberação moral ou estética são dialéticos, pois os fatos — eventos internacionais, sintomas etc. — são considerados como estabelecidos, e a tarefa é
determinar seu significado.
[8]
Ver abaixo, Natureza Humana, (3 - II) Postulação explícita.
[9]
Em Mont St Michel and Chartres (pp. 294-302), Henry Adams tenta uma reconstrução desse tipo, mais imaginativa do que histórica, de uma discussão
entre "Guilherme de Champeaux, arquidiácono de Paris, e Abelardo, um dialético independente". Devido à sua extensão, ele é aqui parafraseado em sua
maior parte e citado apenas ligeiramente. O presente relato diverge do do Sr. Adams por ser um pouco mais direto e simples em sua exposição do caso.
[10]
Cf. F. G. Crookshank, Suplemento II, The Meaning of Meaning, para uma discussão sobre o conflito entre denotação e conotação no diagnóstico
médico.
[11]
Cf. Henry Head, Aphasia, and Kindred Disorders of Speech, Cambridge University Press, 1927.
[12]
Trecho de A Long Way Round to Nirvana (Development of a suggestion found in Freud’s Beyond the Pleasure), disponível na obra Some Turns Of
Thought In Modern Philosophy. N.T.
[13]
Cf. Scott Buchanan, Possibility, cap. I.
[14]
Qualquer poema é um excelente exemplo de modos de metáfora. Isso é especialmente verdade no caso de A Divina Comédia. Dante afirma
explicitamente que ela pode ser entendida de quatro modos diferentes: o literal, o alegórico, o moral e o anagógico. A Divina Comédia é igualmente
verdadeira em qualquer um desses quatro modos de metáfora, pois eles são estritamente isomórficos e podem ser traduzidos um para o outro. Podem
ocorrer conflitos de significado em uma única interpretação do poema, mas não entre os diferentes sentidos em que ele pode ser entendido.
[15]
Cf. Parte 2, Seção II.
[16]
Alfred North Whitehead, A Ciência e o Mundo Moderno (1925), cap. II. (O itálico não está no texto).
[17]
Referência a On a Certain Blindness in Human Beings, de William James (1899). (N.T.)
[18]
A repressão emocional pode ter ocorrido, como no caso do complexo de Édipo, antes da aquisição de hábitos de linguagem bem desenvolvidos ou antes
que eles tenham se socializado. A disjunção pode, portanto, ocorrer entre o que é verbalizado e o que não é verbalizado na personalidade, ou entre o uso
inteligente e o autístico de dispositivos expressivos.
[19]
É importante perceber que o sistema conceitual da psicanálise é estruturado de forma a ser universalmente aplicável à natureza humana. Não há
nenhum desvio patológico que seja tão singular, nenhuma normalidade tão profunda, que não possa ser interpretada em termos psicanalíticos.
[20]
Em outras palavras, a psicanálise, enquanto desempenho dialético, pode ser completa; mas, como etapa da terapia, depende de uma série de
circunstâncias práticas que nem sempre estão sob controle.
[21]
O significado de imparcialidade pode ser definido em termos da distinção entre aceitar e afirmar uma proposição ou um dilema.
[22]
Na conclusão de Além do Princípio do Prazer, Freud expressa a atitude de imparcialidade em uma confissão esclarecedora: "Poderiam me perguntar se
estou convencido dos pontos de vista aqui expostos e, em caso afirmativo, até que ponto. Minha resposta seria que nem eu mesmo estou convencido, nem
estou procurando despertar convicção nos outros. Mais precisamente, não sei até que ponto acredito nelas. Parece-me que a característica afetiva,
‘convicção’, não precisa ser levada em consideração aqui. Certamente, podemos nos entregar a uma linha de pensamento e segui-la até onde ela nos levar,
simplesmente por curiosidade científica ou — se preferir — como advocatus diaboli, sem, no entanto, fazer um pacto com o diabo a respeito... Confio
pouco na assim chamada intuição: o que vi dela me parece ser o resultado de uma certa imparcialidade do intelecto — só que as pessoas, infelizmente,
raramente são imparciais quando estão preocupadas com as coisas mais importantes, os grandes problemas da ciência e da vida. Minha crença é a de que ali
todos estão sob o domínio de preferências profundamente arraigadas, nas mãos das quais eles involuntariamente se jogam ao perseguir sua especulação."
[23]
O recente ensaio do Sr. Santayana, Platonism and the Spiritual Life, é um comentário extraordinário sobre o significado da imparcialidade intelectual.
[24]
O Sr. Scott Buchanan desenvolveu as implicações metafísicas da comédia e da tragédia em seu tratado sobre a Possibilidade. Suas definições são aqui
empregadas sem referência adicional ao contexto original.
[25]
Para algumas mentes, a percepção de que o pensamento pode ser lúdico sugere que ele evita a "realidade" e prossegue em um mundo de "faz de conta".
Isso, no entanto, pode ser traduzido na afirmação de que o pensamento pode ser dialético e ocorrer no reino das possibilidades.
[26]
As peças de Shaw também são, em parte, representações dramáticas de conversação na forma de dialética.
[27]
Consulte o Apêndice A para obter a definição de "doutrina".
[28]
Para uma discussão adequada dos parâmetros nesse contexto, o leitor deve consultar Possibility, cap. II. O parâmetro, um conceito emprestado da
matemática, tem três propriedades: (1) um conjunto de condições de identidade; (2) uma ordem de partes ou sub-parâmetros; (3) um campo de
variabilidade. Uma classe considerada conotativamente tem as duas primeiras propriedades de um parâmetro; e considerada denotativamente, uma classe
tem a terceira característica paramétrica de extensão variável.
[29]
Os postulados da dialética são apresentados abaixo (A Descrição Metafísica I). O corolário pode ser provado da seguinte maneira: se a hierarquia fosse
finita, haveria alguma classe que não teria outra, sendo uma totalidade. Mas isso é incompatível com as determinações do universo do discurso. Portanto,
segue-se que a ordem hierárquica do discurso é infinita, um corolário do postulado de que o universo do discurso tem determinações infinitas.
[30]
Consulte o Apêndice B para obter a definição de "conjunto analítico".
[31]
Consulte o Apêndice C para ver a discussão sobre a compatibilidade dos postulados.
[32]
Veja o Apêndice E, para discussão da teoria da implicação.
[33]
W. H. Sheldon, "The Dichotomy of Nature", Journal of Philosophy, XIX (1922).
[34]
Ver Possibility, loc. cit., cap. II.
[35]
No final do capítulo A Descrição Empírica: Linguagem.
[36]
Consulte o Apêndice B para ver a discussão sobre intervalência e equivalência em relação à resolução e à tradução.
[37]
Veja o Apêndice C, para discussão sobre a compatibilidade de postulados.
[38]
Ver Apêndice D.
[39]
Esses sistemas finais se contradizem, e um seria absolutamente verdadeiro e o outro falso. A exclusão total é, portanto, vista como equivalente à
contradição.
[40]
Ver Apêndice D.
[41]
Ver Apêndice E, para uma discussão mais completa da teoria da implicação.
[42]
Ver Possibility, loc. cit., cap. V.
[43]
Ver Possibility, cap. VII.
[44]
Ver Apêndice G.
[45]
A "especulação pré-científica" é usada aqui para designar a reflexão ou teorização sobre o assunto científico antes da investigação empírica do campo
relevante da atualidade. É uma especulação de poltrona sobre os fenômenos, e pode ter valor e certos méritos próprios, mas não satisfaz os requisitos da
ciência empírica ou da filosofia como dialética. Trata-se do que Santayana chamou de "física retórica" e "psicologia literária".
[46]
Consulte o Apêndice F para obter material relevante para essa interpretação de Platão.
[47]
Ver Apêndice F.
[48]
Ver Possibility, cap. IX.
[49]
A interseção já foi usada para designar condições comuns de identidade ou equivalência; a tangência expressa de forma semelhante a característica de
intervalência entre sistemas.
[50]
Cap. IX.
[51]
Ver Apêndice G.
[52]
A consideração da casuística em geral ou sofisma sugere um comentário sobre a tendência do empirismo de valorizar a mera acumulação de fatos. Se
todos os fatos fossem coletados, classificados e submetidos a uma inteligência onisciente, ainda haveria a tarefa de compreendê-los; a possibilidade de
múltiplas interpretações ainda permaneceria.

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