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SÉRIEͳESTUDOS

Periódico do Programa de Pós-Graduação em


Educação da UCDB
Série-Estudos publica ar gos de caráter teórico e/ou empírico na área da Educação.

Série-Estudos – Periódico do Programa de Pós-Graduação em


Educação da UCDB, n. 37 (jan./jun. 2014). Campo Grande : UCDB,
1995.
Semestral
ISSN 1414-5138
V. 23,5 cm.
1. Educação 2. Professor - Formação 3. Ensino 4. Polí ca Edu-
cacional 5. Gestão Escolar.

Indexada em:
BBE – Biblioteca Brasileira de Educação (Brasília, Inep)
EDUBASE – UNICAMP
CLASE – Universidad Nacional Autónoma de México
LATINDEX – Directorio de publicaciones cien ficas seriadas de America La na, El Caribe,
España y Portugal
Missão Salesiana de Mato Grosso
UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
Ins tuição Salesiana de Educação Superior

SÉRIEͳESTUDOS
Periódico do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UCDB

Campo Grande-MS, n. 37, p. 1-332, jan./jun. 2014.


UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO
Ins tuição Salesiana de Educação Superior

Chanceler: Pe. Gildásio Mendes dos Santos


Reitor: Pe. José Marinoni
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Hemerson Pistori
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação: Heitor Queiroz Medeiros

Série-Estudos – Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB – Publicada desde 1995

Editores Responsáveis Conselho Editorial


José Licínio Backes (backes@ucdb.br) Adir Casaro Nascimento
Maria Cris na Paniago Lopes (cris na@ucdb.br) Maria Cris na Paniago Lopes
Ruth Pavan (ruth@ucdb.br) Ruth Pavan
Regina Tereza Cestari de Oliveira
Heitor Queiroz Medeiros

Conselho Cienơfico
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Amarílio Ferreira Junior – UFSCar Luís Carlos de Menezes – USP
Belmira Oliveira Bueno – USP Maria Izabel da Cunha – UNISINOS
Celso João Ferre – UTFPR Marilda Aparecida Behrens – PUCPR
Graça Aparecida Cicillini – UFU Romualdo Portela de Oliveira – USP
Emília Freitas de Lima – UFSCar Sonia Vasquez Garrido – PUC/Chile
Gaudêncio Frigo o – UERJ Susana E. Vior – Universidad Nacional de Luján
Hamid Chaachoua – Université Joseph Fourier (UNLu)/Argen na
(UJF)/França Valdemar Sguissardi – UFSCar/UNIMEP
Iara Ta ana Bonin – ULBRA Yoshie Ussami Ferrari Leite – UNESP

Direitos reservados à Editora UCDB (Membro da Associação Brasileira das Editoras Universitárias –
ABEU):
Coordenação de Editoração: Ereni dos Santos Benvenu
Editoração Eletrônica: Glauciene da Silva Lima
Revisão de texto: Maria Helena Silva Cruz / Afonso de Castro
Bibliotecária: Clélia Takie Nakahata Bezerra – CRB n. 1/757

Av. Tamandaré, 6.000 – Jardim Seminário


CEP: 79117-900 – Campo Grande – MS – Fone/Fax: (67) 3312-3373
e-mail: editora@ucdb.br – hƩp://www.ucdb.br/editora
Editorial

Este editorial, com muita tristeza, dedicamos a uma companheira que durante
quase três décadas foi docente da UCDB. Nesse período, dentre outras inúmeras
a vidades, foi cofundadora e editora desta revista, foi coordenadora do PPGE-UCDB
por mais de seis anos e criou e coordenou o GEPPES, grupo de pesquisa referência
na área de polí cas públicas, em âmbito regional e nacional. Estamos falando de
Mariluce Bi ar, colega que nos deixou no início do ano. Seu falecimento ocorreu
no dia 18 de fevereiro de 2014. Apesar de sua doença, diagnos cada alguns meses
antes, tudo aconteceu de forma abrupta, deixando um vazio muito grande em nossos
corações e em toda a comunidade acadêmica. Sua incansável dedicação, seriedade
e compromisso polí co com seu trabalho educa vo certamente não terão como ser
igualados, mas há um imenso desejo polí co e pedagógico em dar con nuidade à sua
luta, pela qual, como pudemos testemunhar, ela comprome a seu tempo familiar
e pessoal, entre outros. Para a professora Mariluce Bi ar, o compromisso com as
causas educacionais, sobretudo com os grupos historicamente excluídos, sempre
foi prioridade, haja vista as inúmeras publicações que resultaram de seu trabalho
em relação à expansão da educação superior, como forma de destacar e valorizar a
democra zação da educação neste nível, bem como as reflexões produzidas sobre
as ações afirma vas que sempre ra ficaram o necessário fortalecimento da demo-
cracia e dignidade dos grupos socioculturais excluídos.
Dedicamos a ela este número da revista, que apresenta um dossiê sobre
“Inter/mulƟculturalidade e formação de professores”, temas em que ela também
se fez presente, discu ndo, defendendo os interesses dos excluídos, conforme já
dissemos anteriormente, e lutando para a construção de um mundo “onde caibam
todos os mundos”. Lembramos, inclusive, que este é o quinto dossiê, resultado
dos Seminários Internacionais Fronteiras Étnico-culturais e Fronteiras da Exclusão.
O editorial do quarto dossiê foi feito pela própria Mariluce Bi ar, confirmando sua
ar culação com essas temá cas. Ela apresentou, na época, o histórico dessa série
de dossiês, ressaltando a importância da temá ca. Nas palavras de Mariluce Bi ar:
O primeiro dossiê, dessa série de quatro, foi publicado em 2003, quando o
Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB definia a proposta de im-
plantação da Linha de Pesquisa “Diversidade Cultural e Educação Indígena”. Em
2006, foi publicado o segundo dossiê, in tulado “Fronteiras Étnico-culturais e
Fronteiras da Exclusão”, que reuniu os textos do Seminário de mesmo tulo,
organizado pela Linha de Pesquisa que, naquele ano, acumulava uma consis-
tente produção cien fica na área dos estudos culturais. Em 2009, ocorreu a
publicação do terceiro dossiê, denominado “Educação e Interculturalidade:
mediações conceituais e empíricas”, e, em 2011 a Série-Estudos torna público
o quarto dossiê, in tulado “Fronteiras”. (BITTAR, 2011, p. 02).
O Dossiê deste número, “Inter/mul culturalidade e formação de professores”,
organizado pela professora Adir Casaro Nascimento e pelo professor José Licínio
Backes, ressalta entre outras coisas, como destaca a Professora Adir Casaro Nasci-
mento na apresentação, os saberes outros que estão presentes no nosso co diano
acadêmico e a importância de “[...] registrar os impactos conceituais e iden tários
que os estudos nos provocam”.
Além do dossiê, são apresentados o Ponto de Vista “Interferências culturais:
@ pesquisador@ integral na vacuidade amorosa” e 10 ar gos, que fazem parte
da demanda con nua e que também possibilitam reflexões sobre a educação e
a sua complexidade. Eles versam sobre aspectos de formação, trabalho docente,
educação especial e avaliação, entre outros. O primeiro, in tulado “Papel dos for-
madores, modelos e estratégias forma vos no desenvolvimento docente”, de Ana
Ignez Belém Lima Nunes e João Ba sta Carvalho Nunes, apresenta uma discussão
sobre o papel do formador na formação con nuada e delineia algumas propostas
para a melhoria dessa formação.
O segundo ar go, “Necessidades forma vas dos professores do ciclo I do
Ensino Fundamental de Presidente Prudente, SP: uma contribuição para o desen-
volvimento profissional do professor”, de Carla Regina Calone Yamashiro e Yoshie
Ussami Ferrari Leite, apresenta uma análise das necessidades forma vas dos do-
centes, apontando a importância de diagnos cá-las para o planejamento de ações
referentes à formação con nuada.
O terceiro ar go, “Um estudo sobre a formação do pedagogo e o ensino da
matemá ca nos anos iniciais do ensino fundamental”, de Simone Marques Lima e
Ademar de Lima Carvalho, analisa os desafios do ensino da matemá ca pelo peda-
gogo, concluindo que estão relacionados ao processo de formação, à organização
da sala de aula e, principalmente, à natureza pedagógica.
O quarto ar go, “A racionalidade subjacente às práxis do professor no contexto
da educação superior”, de Isabel Magda Said Pierre Carneiro, Ludmila de Almeida
Freire e Maria Marina Dias Cavalcante, discute a práxis do professor bacharel no
ensino superior, a necessária formação para esse po de atuação, bem como a
ressignificação do saber prá co do professor.
O quinto ar go, “O professor de apoio na rede regular de ensino: a precarização
do trabalho com os alunos da Educação Especial”, de Silvia Maria Mar ns, analisa
o trabalho dos profissionais de apoio da educação especial. A pesquisa conclui que
há um processo de intensificação e precarização do trabalho docente, evidenciando
o modelo de inclusão presente nas escolas.
O sexto ar go, “Educação e inclusão em escolas de educação básica: análise
preliminar”, de Nerli Nonato Ribeiro Mori, baseado na pesquisa sobre inclusão e
educação básica feita nas cinco regiões do país, destaca que há um grande desafio
para avançar no acesso dos excluídos e nas prá cas educacionais efe vas para aten-
der alunos que têm outras formas de aprendizagem, que não aquela desenvolvida
por padrões preestabelecidos.
O sé mo ar go, “Avaliação e educação no Brasil: avanços e retrocessos”, de
Roberta Muriel Cardoso, discute a importância da avaliação para a qualidade da
educação, ques onando, ao mesmo tempo, o sistema de avaliação em relação à
possibilidade de servir como fiscalização e controle por parte do Estado.
O oitavo ar go, “A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura
na pintura de Gio o di Bondone”, de Terezinha Oliveira e Meire Aparecida Lóde
Nunes, apresenta uma pesquisa de campo da História da Educação, abordando a
expansão comercial e formação do homem do século XIII.
O nono ar go, “O velho Jornal: voz dos anseios socioeduca vos em Sorocaba”,
de Vania Regina Bosche , realiza uma análise do jornal como fonte histórica, espe-
cificamente o jornal O Operário, mostrando aspectos da mobilização das operárias
no começo do século XX.
O décimo e úl mo ar go, “Tecnologias sociais e a educação para a práxis
sociocomunitária”, de Renato Kraide Soffner, propõe uma reflexão sobre as tecno-
logias sociais para que possam contribuir com a práxis educa va sociocomunitária,
mediada pelas tecnologias.
Esperamos que tanto as leituras dos ar gos do dossiê, quanto os ar gos de
demanda con nua, contribuam para a construção de um mundo justo e igualitário
pelo qual tanto lutou Mariluce Bi ar, lembrando que “[...] os processos educacionais
de formação da cidadania podem exigir anos ou décadas de inves mentos de um
país, cujos reflexos no desenvolvimento qualita vo da sociedade apenas as futuras
gerações poderão plenamente desfrutar” (BITTAR, 2005, p. 115).

Professores do PPGE/UCDB
Sumário

Ponto de vista

Interferências culturais: @ pesquisador@ integral na vacuidade amorosa ..................15


Cultural interferences: the integral researcher in loving emp ness ................................. 15
Jacques Gauthier

Dossiê: “Inter/mul culturalidade e formação de professores”

Apresentação: Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão e o diálogo com as


culturas ancestrais: uma construção diİcil, mas possível ............................................33
Adir Casaro Nascimento
Las trampas de la interculturalidad .............................................................................47
The interculturalism pi alls ............................................................................................. 47
Bartomeu Melià, s.j.
Delimitación de fronteras territoriales interculturales a parƟr de experiencias
colegiadas de formación .............................................................................................55
Intercultural territorial borders delimita on from collegiate training experiences .......... 55
Rossana Stella Podestá Siri
Desarrollo educaƟvo intercultural: fronteras jurídicas e insƟtucionales permeadas,
pero transiciones etnoculturales y sociolingüísƟcas en juego social ............................71
Intercultural educa onal development: legal and ins tu onal permeated borders
but ethnocultural and socio transi ons in social game .................................................... 71
Héctor Muñoz Cruz
Interculturalidade, idenƟdade e decolonialidade: desafios políƟcos e educacionais....89
Interculturality, iden ty and decoloniality: poli cal and educa onal challenges ............ 89
Reinaldo Ma as Fleuri
Formação de professores na perspecƟva de uma educação culturalmente
diversificada: breves considerações .......................................................................... 107
Teacher Educa on in perspec ve of a culturally diverse educa on: Brief
Considera ons ................................................................................................................ 107
Ahyas Siss
Otair Fernandes
Inter/mulƟculturalidade e formação conƟnuada de educadores: o protagonismo
do movimento social negro por uma Pedagogia Decolonial ...................................... 121
Inter/mul culturalism and in-service teacher educa on: the empowerment of
the black movement for a Decolonial Pedagogy ............................................................ 121
Eugenia Portela de Siqueira Marques
Direitos humanos e educação intercultural: as fronteiras da exclusão e as minorias
sub-representadas – os indígenas no ensino superior ............................................... 141
Human rights and intercultural educa on: the boundaries of exclusion and
underrepresented minori es – indigenous in the higher educa on ............................... 141
Antonio H. Aguilera Urquiza
Estudos curriculares no Brasil: o (não) lugar dos conceitos de interculturalidade,
mulƟculturalismo, hibridismo, raça, etnia e gênero .................................................. 155
Curriculum Studies in Brazil: the (non) place of the concepts of hybridism,
interculturality, mul culturalism, race, ethnicity and gender ........................................ 155
José Licínio Backes

Ar gos

Papel dos formadores, modelos e estratégias formaƟvos no desenvolvimento docente.. 167


Role of teacher educators, forma ve models and strategies in teacher development...... 167
Ana Ignez Belém Lima Nunes
João Ba sta Carvalho Nunes
Necessidades formaƟvas dos professores do ciclo I do Ensino Fundamental de
Presidente Prudente, SP: uma contribuição para o desenvolvimento profissional
do professor ............................................................................................................. 187
Teacher’s trainings needs of elementary school in Presidente Prudente, SP: a
contribu on to the professional development of teacher .............................................. 187
Carla Regina Calone Yamashiro
Yoshie Ussami Ferrari Leite
Um estudo sobre a formação do pedagogo e o ensino da MatemáƟca nos anos
iniciais do Ensino Fundamental................................................................................. 201
A study about pedagogue forma on and the teaching of Mathema cs in the first
years of Elementary School ............................................................................................ 201
Simone Marques Lima
Ademar de Lima Carvalho
A racionalidade subjacente à práxis do professor no contexto da educação superior ... 215
The subjacent ra onality to the teacher’s praxis in the context of higher educa on ..... 215
Isabel Magda Said Pierre Carneiro
Ludmila de Almeida Freire
Maria Marina Dias Cavalcante
O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho com
os alunos da Educação Especial ................................................................................ 227
The professional of support in regular educa on network: the precariousness of work
with students in Special Educa on ................................................................................ 227
Silvia Maria Mar ns
Educação e inclusão em escolas de educação básica: análise preliminar ................... 247
Educa on and inclusion in primary schools: preliminary analysis .................................. 247
Nerli Nonato Ribeiro Mori
Avaliação e educação no Brasil: avanços e retrocessos.............................................. 263
Evalua on and educa on in Brazil: advances and setbacks........................................... 263
Roberta Muriel Cardoso
José Dias Sobrinho
A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura na pintura de GioƩo di
Bondone .................................................................................................................. 275
The expulsion of the merchants from the temple: a study of usury in the pain ng of
Gio o di Bondone........................................................................................................... 275
Terezinha Oliveira
Meire Aparecida Lóde Nunes
O velho Jornal: voz dos anseios socioeducaƟvos em Sorocaba .................................. 295
The old Journal: the voice of the socio-educa onal aspira ons in Sorocaba ................. 295
Vania Regina Bosche
Tecnologias sociais e a educação para a práxis sociocomunitária .............................. 309
Social technologies and educa on for the communitarian praxis .................................. 309
Renato Kraide Soffner

Resenha

Pesquisar, bricolar, reinventar e subverter ................................................................ 323


Research, bricolage, redo and transform ....................................................................... 323
Genivaldo Frois Scaramuzza
Ponto de vista
Interferências culturais: @ pesquisador@ integral na
vacuidade amorosa
Cultural interferences: the integral researcher in
loving empƟness
Jacques Gauthier*
* Filósofo, doutor em Educação, professor-pesquisador
em Estudos culturais. Centro Universitário Jorge Amado
(UNIJORGE), Salvador, BA.
E-mail: jacques.jupaty@gmail.com

Resumo
A par r dos conceitos de vigilância amorosa e de vacuidade amorosa procuramos orientações é cas
e epistemológicas para pesquisas interculturais. O símbolo dá acesso aos aspectos luar e cruel do
conhecimento, ignorados pela ciência eurodescendente, mas presentes nas epistemologias afrodes-
cendente e indígenas, na forma de Oxum e da Onça. Daí a ampliação da epistemologia solar euro-
descendente para conexões energé cas indígenas e africanas, rumo à formação d@ pesquisador@
integral, que integra o Cruel e o Carinhoso num pensar com o coração. Podem ser desenvolvidas
ciências interculturais a par r dos enraizamentos filosóficos de cada povo. Após Bergson erigindo
a intuição em método entramos no transe como método, principalmente em referência ao contato
budista com a vacuidade e à prá ca de disposi vos dançantes. Assim se cria a transculturalidade
pela ex nção do Ego, inclusive, acadêmico – e pela entrada na quinta dimensão do saber.
Palavras-chave
Transculturalidade. Sociopoé ca. Epistemologia.

Abstract
Based on the concepts of Loving Surveillance and Loving Emp ness we seek ethical and epistemo-
logical orienta ons for intercultural research. The symbol gives access to both moonlight and cruel
aspects of knowledge, ignored by euro-descendant science, but present in the afro-descendant
and indigenous epistemologies, as Oxum and Ounce. Hence the expansion of eurodescendant solar
epistemology for Na ve and African energe c connec ons, towards the forma on of the Integral
Researcher, who integrates the Cruel and the Affec onate in a way of Thinking-with-the-Heart.
Intercultural sciences can be developed from the philosophical rootedness of each people. A er
Bergson erec ng the intui on in a method, we entered the trance like method, primarily in reference
to the Buddhist contact with emp ness and the prac ce of dancing devices. Thus the transcultura-
lity for the ego’s ex nc on is created (including the academic one) – and for the entry in the Fi h
Dimension of Knowledge.
Key words
Transculturality. Sociopoe cs. Epistemology.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 15-29, jan./jun. 2014
sas ciências acadêmicas, já que esses
Os brancos desembarcam. O conhecimentos dos colonizados são
canhão! rigorosos, complexos e metódicos, e
Há de se submete ao ba smo, se sua eficiência não depende da crença
ves r, trabalhar.
das pessoas nas bases filosóficas das
(Arthur Rimbaud – Uma estação
referidas culturas. As plantas de po-
no inferno)
der indígenas podem curar qualquer
Poder-se-ia quase dizer que as pessoa de vários males, somá cos,
lições pedidas por Montaigne psicológicos e espirituais, sem que
aos índios do Brasil desembocam, essa pessoa acredite nas mitologias
através de Rousseau, na vas. Da mesma maneira, não pos-
Nas doutrinas polí cas da Revolu- so esperar o mesmo comportamento
ção francesa. de um filho ou uma filha de Ogum,
(Claude Lévi-Strauss – Nous som- orixá guerreiro da metalurgia e da
mes tous des cannibales)
agricultura, e de um filho ou uma fi-
lha de Oxaguiã, guerreiro da paz e da
Amor, vigilância e vacuidade espiritualidade mais refinada.
2) Portanto, em todo rigor, o maior desa-
No ano de 2010 criei – na inter- fio é aceitar os caminhos, os métodos
ferência com lembranças de interações que essas ciências u lizam, por mais
com parceiros e parceiras de pesquisa estranhos que possam parecer. Por
que foram colonizados em vários can- exemplo, vou valorizar a fala de um
tos do planeta-Terra – o conceito de xamã que está me dizendo que tal ou
vigilância amorosa (GAUTHIER, 2010a), qual saber lhe foi revelado em estado
que por força própria se radicalizou em de transe, seja dançando, seja no efei-
vacuidade amorosa. to de uma planta, seja, até, sonhando.
– De fato, o primeiro conceito, a Para resumir a vigilância amorosa
Vigilância Amorosa, é apenas o apelido pelos seus efeitos, direi que existe para
de uma prá ca social de pesquisa que o cien sta social apenas uma questão
significa que é ca e, sobretudo, epis- válida: O que me ensinam meus parceiros
temologicamente devemos nos vigiar, e parceiras de pesquisa? No meu caso,
vigiar nossa postura no sen do da total afrodescendentes e indígenas, dos mo-
abertura ao outro, ao diferente. O de- vimentos sociais e da educação popular.
safio é não somente aceitar os achados Sempre ficou óbvio que me ensinavam
científicos dos outros (por exemplo, – numa concepção dialógica da leitura
a fitoterapia indígena, a psicologia do do mundo inspirada em Paulo Freire –
candomblé, etc.), e sim: a ver, no mínimo, as minhas próprias
1) Considerá-los como momentos de costas, ao me mostrarem o que meu
uma verdadeira ciência, iguais a nos- inconsciente cultural e ins tucional me

16 Jacques GAUTHIER. Interferências culturais: @ pesquisador@ integral na vacuidade amorosa


impedia de ver. Mas nas minhas costas em posição de entrega total ao outro,
há muito peso, o peso da colonialidade, na investigação comum do que vem
não porque sou francês de nascimento, surgindo em nós como parceiros e par-
mas porque fui educado na cultura aca- ceiras na maravilhosa aventura humana
dêmica eurodescendente, o que pode do “co-existir”, do “co-emergir” e do
acontecer, também, a um afrodescen- “co-nascer” no pensamento.
dente ou a um indígena. Não se pode esconder que nossa si-
– A Vacuidade Amorosa radicaliza tuação é paradoxal: esse “conascimento”
essa postura, na interferência com a fi- é ao mesmo tempo a forma mais aguda
losofia budista da vacuidade elaborada do conhecimento e sua ex nção – a ex-
como “Caminho do Meio” pelo filósofo nção do conhecimento, já que acontece
e iogue indiano Nagarjuna (c. 150-250), no silêncio da intuição e do transe com-
acessível no Brasil através do luminoso par lhados. A maior clareza ofusca, tal
comentário do Dalai Lama (2011). O como o relâmpago: ela é a ex nção da
conceito de vacuidade aponta para a im- clareza ordinária, logo, da linguagem, da
permanência de toda e qualquer forma razão, das palavras que nunca poderão
de realidade – o que inclui, obviamente, significar o que está sendo vivenciado.
o “eu”, que é só ilusão. Nada é indepen- O sublime pós-doutorado, neste sen -
dente, mas a vacuidade não é o vazio; é o do, é ouvir os pássaros cantar, as flores
vazio de existência independente: todos desabrochar, ou melhor, ouvir as flores
os seres, minerais, animais, vegetais, hu- desabrochar e ver os pássaros cantar,
manos ou mesmo, deidades, são inter- conforme nos ensinou o poeta Arthur
dependentes e surgem como nuvens na Rimbaud na sua prá ca do “longo, imen-
vacuidade do céu azul. Diferentemente so e sensato desregramento de todos os
das filosofias hinduístas e espíritas ou da sen dos”:
teosofia, inexiste qualquer forma de “eu
superior”, de alma ou espírito individual, Escrevia silêncios, noites, anotava o
mesmo se formas individualizadas se inexprimível. Fixava ver gens. Criei
apresentam no mundo empírico. todas as festas, todos os triunfos, to-
dos os dramas. Tentei inventar novas
Por que utilizo o conceito de
flores, novos astros, novas carnes,
vacuidade amorosa na minha prá ca
novos idiomas. (RIMBAUD, 2009).
de pesquisa? Porque somente ao me
conscien zar da radical inconsistência Precisamos aqui de pronto socor-
das minhas crenças teóricas, das minhas ro, pois o risco é sério de perder o uso
linhas de pesquisa, posso anular em da palavra, da escrita, de enterrar nossos
mim os efeitos da ilusão do pensamento computadores e laptops ou jogá-los no
separado, que é o pão de hoje, a paixão mar. Milagre: o socorro vem da noção de
e a razão de ser da academia. Logo, é símbolo, que resiste ao que Muniz Sodré
na vacuidade do amor que me coloco chamou de “exterminação do sen do”

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 15-29, jan./jun. 2014 17


em referência à semântica científica Talvez expressando a revolta do
eurodescendente. Deste lado descolo- intelectual negro na moda estruturalista
nial do mundo, Muniz Sodré observa da época, Muniz Sodré luta – em bom
que no candomblé e mais geralmente, filho de Xangô – contra o imperialismo
no pensamento negro, o símbolo é de do signo, da significação e do signifi-
fundamental importância: cado. Por quê? Porque o pensamento
O símbolo é um operador de es- colonial quer exibir todos os segredos
trutura, um agenciador de vazios, e exterminar o sagrado, na plena luz
de formas sem significados atuais, solar da racionalidade. Não pode ter au-
uma vez que a “significação” é a sência, mistério, entrega a energias não
própria regra de organização, a racionais, tudo deve ser desvelado na
regra sintá ca, o valor cons tuinte presença pura da luz. E essa luz sempre
de uma linguagem, que introduz é solar, filha dos Gregos, e nunca luar,
o indivíduo numa ordem cole va. terna, meio velada, bruxa e feminina,
(SODRÉ, 1988, p. 46-47). na direita linha de Oxum, mãe das águas
Pelo símbolo entro numa comuni- doces e dos mistérios da fecundação.
dade; o símbolo é um duplo elo: entre Nem é a noite profunda das manchas da
minha mente e uma ausência (o “vazio” Onça, que apontam nas Américas para
de significado atual, que é também a a crueldade do nosso mundo interior,
abertura a uma mul plicidade indefinida na qual o guerreiro e a guerreira de si
de significados virtuais) e entre a mesma devem mergulhar, para renascerem,
e a comunidade ritualís ca que dá vida defini vamente iniciados.
ao símbolo, que o atualiza aqui e agora Uma consequência imensa (cujos
nas energias do dia (ou da noite) de hoje, efeitos foram e ainda são fontes de mui-
diferente das energias do ontem ou do tas doenças) dessa pretensão exclusiva-
amanhã. mente solar: o corpo está velado, enges-
Aqui encontramos proximidade sado, parado, reduzido a uma máquina
com o pensamento budista, já que, dife- apenas percebida quando se recusa a se
rentemente do Brahman hinduísta como conformar às ordens da mente, ou, sim-
estado de vazio essencial que é a eter- plesmente, de funcionar corretamente.
nidade mesma, a vacuidade budista só Tal é o corpo eurodescendente, frente
existe no aqui e agora, na singularidade ao corpo afro, asiá co ou índio, ou seja,
de cada evento, por exemplo, no encon- àqueles corpos que foram colonizados,
tro ou desencontro entre dois seres, no nus ou quase, lubrificados, sempre em
perfume de uma flor ou no fedor do lixo, movimento (visível ou invisível), que se
e não como uma substância global, um apresentam como sendo a mesma coisa
envelope que conteria todos os eventos que a mente. Os nagôs entenderam isso
possíveis do presente, do passado e do direto, já que na figura do Rei da Terra
futuro. Obaluaê encontram ao mesmo tempo

18 Jacques GAUTHIER. Interferências culturais: @ pesquisador@ integral na vacuidade amorosa


a energia solar e o poten ssimo fogo cável do deus solar à imagem do qual
secreto da terra. nossa razão teria sido feita segunda a
Do lado europeu, Bergson (1974, meta sica que dominou a Europa du-
2006) mostra que a intuição pode ser rante séculos, e sim de desvelar nossa
erigida em método de conhecimento própria consciência. Pretendo, aqui e
da realidade, no sen do de sen rmos a agora, dar con nuidade ao projeto de
duração e os ritmos internos de outros Bergson, hibridizado pelas matrizes
seres, ao mergulharmos igualmente no decoloniais dos pensamentos indígena,
nosso próprio devir e sen rmos nossas afrodescendente e oriental.
próprias vibrações vitais. Ele enfa za o
papel das “emoções criadoras suprarra- Histórias de onças, de sedução e
cionais” no transporte nas durações e extinção
harmônicas vitais de outros seres, um
A consciência, o “eu” – se eu seguir
pouco como um músico faz vibrar nossas
minha intuição do pensamento indígena
cordas ín mas e cria ressonâncias ines-
tolteca – é manchada, da mesma forma
peradas. Na linguagem, os suportes des-
que o Jaguar, a Onça é manchada. Aqui
sas emoções são as metáforas e imagens
temos um símbolo potente para pensar-
poé cas, na condição de serem u liza-
mos o claro e o escuro em nós, a luz e a
das com certa prudência metodológica:
sombra, o sol e a lua. Sei que a lua não
Escolhendo imagens tão disparata- é a sombra do sol, mas são maneiras de
das quanto possível, impediremos falar e há, conforme disse Bergson, de
que uma qualquer dentre elas nos desapegar da sedução de uma ima-
venha a usurpar o lugar da intuição gem só, para visualizarmos e sen rmos
que ela está encarregada de evocar,
profundamente a própria tensão que a
pois, neste caso ela seria imedia-
tamente expulsa por suas rivais.
imagem tolteca da Onça está gerando
Fazendo com que todas exijam em nós. A Onça é Tezcatlipoca, espelho
de nosso espírito, apesar de suas fumante, noite estrelada, jovem guerrei-
diferenças de aspecto, a mesma ro, vento da noite... é a imagem viva da
espécie de atenção e, de alguma crueldade que nos é dada com a vida,
forma, o mesmo grau de tensão, que está em nós, com a qual devemos
acostumaremos pouco a pouco a lidar, que devemos aceitar, na qual deve-
consciência a uma disposição bem mos mergulhar e que devemos elaborar,
particular e bem determinada, metamorfosear, para pudermos ser ini-
precisamente aquela que deverá ciados ao mistério da vida e da morte,
adotar para aparecer a si mesma para pudermos nos tornar seres huma-
sem véu. (BERGSON, 1974, p. 23).
nos integrados. Geralmente as pessoas
Não se trata mais de desvelar o querem somente venerar e vivenciar as
Real na luz absoluta, ilimitada e impla- energias de Quetzalcóatl, a Serpente de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 15-29, jan./jun. 2014 19


plumas, energias solares, luminosas e contrário possui a beleza dos papagaios e
harmoniosas, e fogem do processo ini- proclama a realidade do poder feminino,
ciá co de uma maneira ou outra, quan- tanto como possibilidade de gerar filhos
do acontece o tempo de lidar com as quanto como natural iniciação aos mis-
energias simbolizadas pelas manchas na térios mais escuros, secretos e sagrados
pele da Onça que essas pessoas também da vida. Além disso, mostra que sem a
são, simbolizadas pelo deus Tezcatlipoca, par cipação das mulheres e do poder
da energia do qual elas par cipam. Ou feminino, nenhuma comunidade pode
prendem-se na crueldade, sem conse- sobreviver e crescer. Do lado da África,
guirem elaborá-la e transformá-la em uma epistemologia feminina existe com
doce luar. É como se nosso eu crís co certeza no pensamento-Oxum que,
vesse medo de enfrentar o sacri cio no meu ver, proclama a igualdade na
e ficasse parado, apegado à sua própria diferença como princípio de vida e de
sombra. Vi tantos e tantas, bebendo cria vidade na arte, na ciência e na polí-
a bebida sagrada indígena ayahuasca, ca (ver PRANDI, 2001; OLIVEIRA, 2003,
fugindo da provação do manchado, da 2007; SODRÉ, 1999, 2002).
sombra e da noite. A lição da África é que homens
Em termos de pesquisa, afirmo podem ser de Oxum, que a fecundidade
que não podemos ter medo do lado inici- e sedução femininas existem no coração
á co das nossas pesquisas, nem do mer- do guerreiro. Em O terreiro e a cidade,
gulho que pedem nas sombras do viver, Muniz Sodré mostra como, na África, é
nem do enfrentamento da crueldade do necessário ser um “coração puro” para
nosso próprio ser. Fortes são os efeitos poder ser atravessado pelo Axé, ser “um
cogni vos das “manchas da Onça”. coração vazio de intenções meramente
A imagem luar afrodescendente individuais, para que prevaleça a força
é Oxum, guerreira da sedução. A Oxum da comunidade” (SODRÉ, 2002, p. 102).
pertence o ventre da mulher e a lua Há uma epistemologia cole va e, posso
cheia. A maternidade é sua grande acrescentar, marcada por intensidades
força. Oxum é essencialmente o orixá diferenciadas: não se pensa dentro da
das mulheres, preside à menstruação, intensidade Oxum como se pensa den-
à gravidez e ao parto. Portanto, ela de- tro da intensidade Xangô ou dentro da
sempenha importante função nos ritos intensidade-Obaluaiyê.
de iniciação, que são formas de gestação Hoje estou tentando ampliar o
e (re)nascimento. Orixá da maternida- pensar acostumado da aventura cien-
de, Oxum ama as crianças, protege a tífica eurodescendente, identificado
vida, cuida e tem funções misteriosas como solar, ao relacioná-lo com outro
de cura. Ela mostra que a menstruação, po de pensamento, outra polaridade,
em vez de cons tuir mo vo de vergonha luar. Isso ressoa em nós com a conhe-
e de inferioridade nas mulheres, pelo cida polaridade masculino/feminino,

20 Jacques GAUTHIER. Interferências culturais: @ pesquisador@ integral na vacuidade amorosa


ou ocidental/oriental, ou ainda cérebro área da reabilitação pós-operatória – à
esquerdo/cérebro direito. Mas com um dança: “Existem encontros surpreen-
obje vo diferente, colegas filósofos afro- dentes entre a pesquisa cien fica atual
descendentes tranquilamente podem ir e aqueles saberes an gos que funcio-
além, ao diferenciarem o pensamento navam por analogia” (citado em Pensée
em pensamento-Oxum, pensamento- du corps de BASILE DOGANIS, 2012, p.
Oyá, pensamento-Xangô, pensamento- 33 – tradução minha)... Funcionavam e
Ossaim, etc., e inventar técnicas de con nuam funcionando por analogia. Da
pesquisa que evidenciem esses pensa- mesma maneira que Fritjof Capra (1995)
mentos diferenciados1. Não pensando in tulou seu livro mais famoso O Tao
com polaridades, e sim com diferenças da sica, poderíamos escrever um livro
energéticas. Uma nova ciência assim teorizando O Axé das ciências humanas
pode ser criada, cheia de promessas. e sociais ou outro, em relação ao pen-
O pensar-luar como Oxum é total- samento animista, problema zando O
mente diferente do pensar-luar como Xamanismo como método nas ciências
Onça. Mas podemos integrar essas duas humanas e sociais, ou ainda, pensando
formas de pensamento em dois momen- em Clarissa Pinkola Estés (2007), um livro
tos do mesmo processo iniciá co: há de que considere A Mulher selvagem como
mergulhar na sua própria crueldade – in- sujeito epistêmico nas ciências sociais e
clusive, para consigo – para transformá- humanas.
la em cuidado – inclusive, para consigo. Assim, pesquisadores africanos
Logo, para poder fazer uma ciência e afrodescendentes, indígenas ou mu-
que integre o Cruel e o Carinhoso; para lheres poderiam desenvolver ciências
contemplar o projeto desta nova epis- interculturais (conforme o exemplo dado
temologia que estamos contribuindo a por F. Capra na intercultura crí ca entre
firmar; para elaborar cole vamente, na o Tao e o universo quân co) a par r dos
igualdade e na diferença, uma Ciência seus próprios enraizamentos filosóficos
com Afeto. E já encontramos uma pro- e metodológicos, o que seria uma con-
posição: “Quem ainda tem medo da sua tribuição ímpar para o avanço cien fico
Onça interna dificilmente poderá pensar da humanidade.
com o Coração”. Se quisermos viajar para o Oriente,
Como escreveu Hubert Godard, ao contemplarmos as thangkas – ima-
dançarino e teórico de várias prá cas gens que servem de suporte à meditação
corporais, da terapia – notadamente na no tantrismo betano – encontramos
de um lado as divindades coléricas que
protegem os ensinamentos de toda ata-
1
Tentei ir nessa direção em Gauthier (1999). O livro ca ou perversão e queimam o espírito,
de Judith Gleason, Oyá – um louvor à deusa africana
(1999) está cheio de intuições maravilhosas, que o/a purificando-o das emoções negativas
leitor/a entrevê... pela u lização da própria energia dessas

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emoções e, de outro lado, as divindades nossos parceiros de culturas não euro-
de compaixão que abrem o coração (ver descendentes, da transculturalidade.
MEULENBELD, 2001). Essas “divindades” No nosso Ego estão presentes nossas
estão dentro da pessoa, já que inexiste teorias, metodologias e prá cas acadê-
separação alguma, no Budismo, entre o micas! Principalmente, nossa dificuldade
fora e o dentro, o exterior e o interior e, em Pensar com o Coração, que devemos
mais geralmente, entre os seres. Mas es- aprender, num processo realmente ini-
sas imagens apenas podem ser compre- ciá co, a superar.
endidas ao serem relacionadas à prá ca Para realizar essa aprendizagem,
da meditação que cria um “Corpo sem há de reconectar a cabeça com o que
Órgão”, para falar como Gilles Deleuze se situa mais baixo no corpo, e também
e Félix Gua ari (1997) em Mil Platôs2. valorizar os conhecimentos adquiridos
Assim, no corpo em estado extático graças à a vidade do cérebro direito,
gotejam pérolas de lua, enquanto o sol principalmente, a intuição. Aqui rece-
interior expande sua energia. bemos uma ajuda ímpar dos nossos pró-
O que significa isso em relação à prios parceiros de pesquisa. Mais uma
nossa prá ca de inves gadoras e inves - vez pedirei ajuda a Muniz Sodré que,
gadores? Além dos segredos e mistérios no caso da cultura afrobrasileira, fala
iniciá cos do tantrismo, o ins gante é a de “micropensamento corporal”, que:
ex nção do eu. Passamos de um eu: – ao “Vive mais de objetos externos (búzios,
mesmo tempo solar e luar na nossa refe- vegetais, animais etc.) do que internos,
rência mesoamericana; – expressão de no sentido que a psicologia costuma
intensidades energé cas diferenciadas atribuir a “objeto interno” (psiquismo
conforme nossa referência afroamerica- subje vado) (SODRÉ, 1999, p. 186).
nas, a um estado de indis nção entre o Impossível não pensar nos “micro-
eu e o não eu. Trata-se de uma exigência poderes” segundo Foucault (1984)! Os
extrema: de reconciliação entre saber e nossos corpos são percorridos por mi-
sabedoria, ciência e espiritualidade. cropoderes e micropensamentos, e não
vamos deixar de lado nem a problemá-
Da vacuidade amorosa à dança e ao ca polí ca da nossa ligação rizomá ca
transe como método com forças e formas de dominação ins -
tuídas, nem a problemá ca cogni va da
A Vacuidade amorosa é o des- nossa ligação rizomá ca com a Natureza
prendimento de nós mesmos e a pró- como ser pensante.
pria caminhada nossa rumo à ex nção Aqui encontramos uma aliada
do Ego – condições da cocriação, com extremamente potente, onipresente
nos momentos importantes da vida das
2
Trabalhei esse conceito na sociopoé ca (GAUTHIER, comunidades indígenas e afrodescen-
2010b). dentes: a Dança, com a ampliação da

22 Jacques GAUTHIER. Interferências culturais: @ pesquisador@ integral na vacuidade amorosa


consciência pessoal que ela favorece divindade na forma da dança de uma en-
– até a ín ma sensação de atuação das dade. E ainda de mil outras maneiras, já
forças criadoras da Natureza através de que mil e mais (10.000 dizem os chineses
nós, como uma arma preta e vermelha para falarem de muitos e muitos) são os
para a afirmação de novas potências elos que percorrem um corpo humano,
frente aos micropoderes ins tuídos. sobretudo, dançando. Como Bergson
Assim, o corpo é um santuário (2006) erigiu a intuição em método,
entre individualidade e cole vidade, per- vamos erigir o transe em método.
corrido de intensidades e linhas de fuga
que apenas pedem para serem amplia- Dona Zabelê, Dona Jovita e Mestra
das em direção de fora (tecendo novos Geovanda na Quinta Dimensão
disposi vos revolucionários no agir, no
sen r e no pensar, conforme teorizaram Um dos eventos que mais me mar-
NEGRI, 2003, e DELEUZE e GUATTARI, caram em 20 anos de pesquisas sociopoé-
1997), e em direção de dentro – ao en- cas foi quando as grandes guerreiras Pa-
trarmos nas zonas escuras e ambíguas taxó Zabelê e Jovita, mulheres de grande
da sombra, da fera e do silêncio interior sabedoria e espiritualidade, cien stas na
(ver GAUTHIER, 2010c). sua cultura, propuseram à jovem então
O disposi vo dançante deve tornar mestranda Maria Geovanda Ba sta reali-
possível esse duplo movimento, de den- zar a produção dos dados da sua pesquisa
tro para fora e de fora para dentro, que sociopoé ca sobre o brincar em comu-
nos liga aos outros corpos do grupo, bem nidades Pataxó do Extremo-Sul da Bahia
como, à nossa in midade velada e, pro- dentro de um ritual indígena, a dança
vavelmente, a outros corpos – invisíveis. sagrada Awê. Convocar os Encantados,
O transe é um método. Decisivo, as en dades espirituais, para produzir
para a criação científica em situação dados num pesquisa acadêmica: eis
transcultural. Pois é: o transe é a vivência um bom exemplo de transculturalidade
somá ca de um princípio cósmico, que (ver BATISTA, 2003, assim como, do lado
ressignifica o vazio presente no símbolo, afrodescendente, a transculturalidade a
antes mesmo de a língua e o conceito se flor de pele do sambista: Samba, dono do
tornarem possíveis. O que Muniz Sodré corpo de MUNIZ SODRÉ, 1998).
caracteriza como “envolvimento mútuo Hoje estou em condição de teori-
dos seres” no subcapítulo “Corpo e sa- zar um pouco esse po de evento, com a
grado” (in SODRÉ, 1999, p. 178-187), é a ajuda do conceito de “quinta dimensão”,
base do transe. É uma interpretação bas- que vou explicar brevemente.
tante “branca” ver apenas uma en dade A percepção do relevo é tornada
penetrando um corpo, seu “cavalo”, sua possível pelo fenômeno que Gilbert
“matéria”. Pode o transe ser visto, ao Simondon (2005) chama de “disparação”,
avesso, como um corpo expressando sua ou seja, pelo fato de que cada olho pos-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 15-29, jan./jun. 2014 23


sui uma visão plana e que, a par r da (inclusive na região ocupada pelo
leve divergência entre os dois olhos, o nosso cérebro). A região da nossa
cérebro cria uma imagem emergente, mente onde essa energia se reflete
em três dimensões (não posso deixar de é, portanto, uma forma de contraes-
paço, um espaço virtual ou mundo
pensar como poderíamos u lizar essa
interior, potencialmente tão vasto
metáfora para pensar o Perspec vismo
quanto o mundo exterior.
de Eduardo Viveiros de Castro (2009),
dentro das nossas pesquisas)3. Sabemos Quem nunca ficou perturbado
desde Einstein que, de fato, o espaço pela visão de um holograma – essas fi-
é também o tempo, ou seja, o espaço- guras onde cada parte proporciona uma
tempo. São as quatro dimensões às quais visão da totalidade e contém essa totali-
estamos acostumados. dade? É muito provável que o universo
Mas tanto na intuição como no seja cons tuído de múl plos hologramas
transe, estamos na posição de quem está – ou, numa visão mais radical, seja um
vendo o mundo em quatro dimensões, holograma – sendo o ser humano (e
digamos “realistas” e “racionais”, en- provavelmente, muitos outros seres),
quanto o terceiro olho vê coisas outras, o partes hologramáticas da totalidade
ouvido interno ouve coisas outras, o pró- que, apesar da nossa semelhança com
prio corpo tem sensações outras até, no ela, nem podemos imaginar, tanto ela é
xamanismo indígena, metamorfosear-se “cheia de vazio”.
em Onça, Cobra, Beija-Flor ou Águia, e, Para completar essa concepção
no Candomblé e na Umbanda, a pessoa original do espírito, da “mente” humana,
entrar em vibrações de frequências su s, vou trazer aqui a noção de “hiperes-
inacostumadas no nosso mundo co dia- paço”, criada por Edwin Gora (1979),
no em quatro dimensões. conforme sua apresentação por Dane
A ngimos a quinta dimensão na Rudhyar (1975, p. 24):
intuição e no transe, quando se ligam O espaço não é um recipiente vazio
o mundo exterior e o mundo interior, onde se depositam substâncias
consoando. materiais; ele é a inter-relação de
Marc Seifer (2011, p. 172) expressa todas as a vidades (biocósmicas,
as coisas assim: intraestelares e galác cas). [...] A
qualidade dessa interação e dessa
Em cada região do espaço há um interdependência, que ocorre em
mapa da estrutura do universo diferentes níveis de organização
ou planos de existência, varia de
3
acordo com cada nível.
Tentei pensar a noção de transculturalidade a par r
dos conceitos de “disparação” e de “transdução”, Afirmar que vivemos em cinco
especialmente elaborados por Gilbert Simondon, aos
quais Deleuze e Gua ari se referem com carinho e
dimensões, e que a ngimos a quinta so-
intensidade (ver GAUTHIER, 2009). mente pela intuição e pelo transe é uma

24 Jacques GAUTHIER. Interferências culturais: @ pesquisador@ integral na vacuidade amorosa


hipótese filosófica razoável; sem dúvida, E, como já disse, encontramos aqui
não menos razoável que aquela na qual os pensares africanos e afrodescenden-
é baseada a ciência acadêmica ins tuída, tes, onde há tantos modos de pensar,
de transparência absoluta entre o mun- ou seja, de racionalizar e intuir, quanto
do real e o mundo que a ngimos pelo existem pos de energias su s, de ven-
nosso conhecimento4. tos sagrados chamados de “orixás”.
Será essa quinta dimensão o Orun Num certo dia, ao dirigir para a
nagô, mundo dos orixás, dos ancestrais, universidade, o erê Machadinho veio em
dos seres de luz... onde existe também mim e disse: “Sabe, Velhote (ele me cha-
um duplo de tudo que está no nosso me assim), o que você está procurando,
mundo, o Ayiê? Será essa dimensão o o segredo da iluminação, é brincar – a
Eixo do Mundo, caminho pelo qual o vida, o mundo, é um terreno de jogo.
xamã realiza sua obra de inteligência, Rir e brincar”.
comunicação e cura?
Sempre ao seguir Simondon e seu @ pesquisador@ integral
conceito de “disparação”, posso imaginar
O que integra os modos mul cul-
o quanto Eduardo Viveiros de Castro ou
turais de pensar e de fazer ciência é o
um xamã gostaria de me ouvir, já que no
sonho de uma ciência que pense com o
perspec vismo cada ser é como uma vi-
Coração6, bem como, nossa determina-
são de dois olhos, e o universo, múl plas
ção em realizar esse sonho.
visões integradas de múl plos pares de
Da mesma maneira que Amit
olhos, criando um mundo em milhares
Goswami (2006) conceitualizou a noção
e milhares de dimensões... o mundo
de “medicina integral” e de “médico
que compar lhamos, plantas, minerais,
quân co”, ao integrar numa ampla vi-
animais e ancestrais. Humildemente,
são todas as formas de cura, da mais
chamaremos de “quinta dimensão” a di-
sica e mecanicista à mais espiritual,
mensão que integra todas as outras que
proponho o conceito de... “pesqui-
não conhecemos na nossa experiência
sador@ quântic@” não sei, mas de
do dia a dia, mas que podemos a ngir
“pesquisador@ integral”, com certeza.
em processos iniciá cos de transe e in-
Como o médico alopá co bioquímico
tuição5, no silêncio ou na dança.
em Goswami, o pesquisador acadêmico
4
clássico trabalhando sobre seus sujeitos
A cada vez que penso nisso venho acordando para
um fato: a ingenuidade extrema daqueles que pensam
que coincidem o mundo real e o mundo modelizado
pelo nosso pensamento, qualquer que seja sua com- E a infinidade de atributos que nem podemos nos
plexidade e/ou su leza. representar?
5 6
Mais uma vez, Spinoza: entre a infinidade de atribu- Thich Nhat Hanh, par cularmente em Cul vando
tos infinitos que definem a Natureza, ou seja, Deus, a mente de amor (2000) é de boa ajuda para intuir o
conhecemos apenas dois, a Extensão e o Pensamento. Pensar com amor.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 15-29, jan./jun. 2014 25


de pesquisa (pesquisando os indígenas, pensar na vida co diana e intuicetos
os afrodescendentes, os integrantes do – misturas de conceitos e intuições,
movimento popular etc.) encontra-se no como quando voltamos para a terra
degrau mais baixo da escada cien fica. após experiências espirituais intui vas
Não se trata de negar seus aportes (eu intensas e devemos colocar em prá ca
gostaria de ter um cérebro tão potente nossas aprendizagens;
quanto o de Lévi-Strauss), e sim de am- - ele/ela cria conhecimento em parceria
pliar nossa compreensão, ao desenvol- e interdependência com seus compa-
vermos um entendimento da prá ca de nheiros e companheiras de pesquisa
pesquisa que integre as “lições” – como no aqui e agora dos momentos com-
escreveu Lévi-Strauss (2013) a propósito partilhados, sem querer nada além
da influência dos indígenas daqui sobre desse conhecimento local, sem querer
a Revolução francesa através de Mon- generalizar, mas oferecendo as criações
taigne e Rousseau7 – dadas pelos nossos do cérebro-coração-corpo cole vo a
parceiros e parceiras de pesquisa8. eventuais leitores e leitoras de ar gos,
Quais as caraterís cas d@ pesqui- livros etc. como alimento para sua
sador@ integral? própria reflexão, seu próprio conheci-
- ele/ela pensa com o seu corpo inteiro, mento, seu próprio ser (e, obviamente,
seus pés, seu sexo, suas mãos, suas à comunidade anfitriã da pesquisa);
entranhas, seu sopro, seu coração, - ele/ela utiliza técnicas artísticas de
seus sen dos e sua cabeça; produção de dados de pesquisa, por
- ele/ela pensa dançando, meditando, elas facilitarem o acesso ao não-dito,
fazendo uso do terceiro olho, do tran- ao demais óbvio, ao perigoso, ao recal-
se e da intuição: a dança e o transe cado pelos membros do grupo-pesqui-
são, entre outros, seu método; sador, em interação com entrevistas
- ele/ela toma a sério as ilusões fecun- cole vas ou individuais que mobilizam
das da imaginação, tanto como as da mais o aspecto racional do ser;
razão, do mito e da matemá ca; - obviamente, ele/ela não se impõe
- ele/ela cria confetos – misturas de con- como pesquisador@ sobre as pes-
ceitos e afetos, conforme o modo de soas, nem atrás, nem em frente,
nem debaixo delas... e sim se torna
um@ facilitador@ de pesquisa, ne-
7
Ao refle r sobre as civilizações das Américas, Mon- gociando um disposi vo dialógico e
taigne elaborou a pergunta de saber qual é a natureza
do laço social – e Rousseau radicalizou o olhar cri co autogerido onde todos e todas são
sobre a civilização europeia com seus conceitos de copesquisadores, sendo ele/ela, @
“liberdade de independência” no Estado de Natureza e facilitador@, aquele que segura o bom
de “liberdade polí ca” no Estado Civil, que inspiraram
os revolucionários de 1789 e 1793. desempenho deste disposi vo, guar-
8
Um passo importante: o livro Par-delà nature et dião da solidariedade, igualdade na
culture de Philippe Descola (2005). diferença e diferença na igualdade no

26 Jacques GAUTHIER. Interferências culturais: @ pesquisador@ integral na vacuidade amorosa


decorrer da pesquisa (se for necessá- permanência, cavando a con nuidade
rio, apontando relações de poder que abstrata do nosso caminhar na terra. Per-
podem colocar em perigo a igualdade demos assim a vigilância e abertura ao
e solidariedade do grupo, ou descon- presente, a esse momento precioso do
fiando do gosto perigoso que temos agora, diferente de todos que vivemos
pela unanimidade, pela homogenei- e de todos que viveremos, perdendo
zação dentro do grupo, enquanto se a oportunidade de afinar nossas sen-
trata de pensar as diferenças com os sações, de ouvir nossa intuição, de nos
diferentes – cada um@ diferente mas comunicar com as energias vitais mansas
não independente d@ outr@). ou inquietantes que agem no contexto e
Seria falsa humildade mais que fazem o que estamos.
falta de humildade negar que tenho Olhando cara a cara suas feridas
orgulho de a Sociopoé ca responder a internas e mergulhando nelas para se
essas exigências (GAUTHIER, 2012). curar, trabalhando seus monstros ín -
mos, ou seja, para assim dizer, vivencian-
O caminho da formação d@ do um processo de iniciação, @ pesqui-
pesquisador@ integral sador@ integral está se formando para
acolher o humano – a integralidade da
É um vício epistêmico e existencial, experiência cogni va dos seus parceiros
já no nosso modo de s(ab)er, o hábito e parceiras de pesquisa.
terrível que temos de acreditar na nossa

Referências
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Recebido em julho de 2012


Aprovado para publicação em agosto de 2012

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Dossiê: “Inter/mulƟcul-
turalidade e formação
de professores”
Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão e
o diálogo com as culturas ancestrais: uma construção
diİcil, mas possível
Adir Casaro Nascimento*
* Doutora em Educação. Professora do PPGE/UCDB.
E-mail: adir@ucdb.br

“O acesso das populações indígenas à edu-


cação superior era [é] apenas o inicio de um
longo e complexo desafio. É preciso que a
ins tuição acadêmica reconheça que está
diante de outras formas de conhecimento,
igualmente relevantes, que devem merecer
respeito e valorização se, se pretende esta-
belecer um diálogo entre saberes e culturas.”

“A questão dos saberes tradicionais na for-


mação do profissional é: [...] As demandas
indígenas são cole vas e a universidade pre-
cisa se preparar para dialogar com os sabe-
res e não apenas sobre exclusão/inclusão.”
(ANTONIO BRAND)1

“[Brand] Transformou a universidade em es-


paço de visibilidade para os povos indígenas
com a realização de eventos nacionais e in-
ternacionais sobre temas como diversidade
cultural, sustentabilidade, educação, conhe-
cimentos tradicionais e presença indígena na
academia. Dessa forma, os índios passaram a
par cipar de discussões num ‘novo espaço’,
nunca antes por eles ocupado”.
(PEREIRA, 2012, p. 239)

1
Registro feito por André Lázaro, durante a primeira reunião do Grupo Estratégico de Análise da
Educação Superior (GEA-ES), maio de 2012. MEC/Brasília (LÁZARO, 2013).

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 33-46, jan./jun. 2014
Começar a apresentação deste e estudiosos da questão indígena imple-
dossiê com as falas de Antonio Brand2, mentaram, em especial, na UCDB com
e sobre ele, tem sen do por ter sido o o obje vo de oportunizar o acesso e a
grande mentor e ar culador da realiza- permanência dos povos indígenas e de
ção dos SEMINÁRIOS INTERNACIONAIS: sua autonomia no contexto acadêmico.
FRONTEIRAS ETNICO-CULTURAIS E A presença dos povos indígenas4,
FRONTEIRAS DA EXCLUSÃO, que teve a notadamente no Programa de Pós-
sua primeira edição em 2002. Talvez, a Graduação em Educação, e de nossa in-
sua intenção primeira tenha sido abrir tenção de “aprender a ouvir as vozes dos
um espaço para uma discussão acadê- que vivem nas fronteiras étnico-culturais
mica sobre o processo de construção e da exclusão: um exercício co diano
das iden dades/diferenças e dos “hori- e decolonial” (BACKES; NASCIMENTO,
zontes históricos” (CUSICANQUI, 2013) 2011, p. 25), tem nos ins gado
das populações indígenas, mas que, com [...] recorrentemente a pensar so-
a criação da linha de pesquisa “Diversi- bre outros tempos e espaços, sobre
dade Cultural e Educação Indígena”, no o que significa viver, sobre como é
Programa de Pós-Graduação em Educa- possível construir outras narra vas
ção da Universidade Católica Dom Bosco iden tárias. Ins gam-nos também a
(UCDB), o evento amplia esta discussão pensar em como resis r, subver-ter,
para as iden dades afro-descendentes, ressignificar prá cas de colonização
de gênero, dos movimentos sociais po- e de subordinação (BACKES; NAS-
pulares, entre outras. O FRONTEIRAS CIMENTO, 2011, p.26).
faz parte de um conjunto de ações3 que
Questões estas que fazem parte do
Brand e mais um grupo de pesquisadores
nosso dia a dia e que norteiam/desnor-
teiam as nossas leituras de mundo, as
2
Antonio Jacó Brand, doutor em História, profes- nossas ressignificações e reorientação de
sor e pesquisador do PPGE/UCDB e coordenador nossa episteme, agora atravessadas por
do NEPPI/UCDB. Faleceu no dia 3 de julho de
outras epistemes, trazidas por aqueles
2012, em Porto Alegre, RS.
3
Fazem parte deste conjunto de ações o Núcleo
4
de Estudos e Pesquisas dos Povos Indígenas (NE- No PPGE/UCDB, em especial na Linha de Pes-
PPI); a Revista TELLUS, especializada na temá ca quisa Diversidade Cultural e Educação Indígena,
indígena; bolsas para acadêmicos indígenas nos além dos alunos indígenas temos, também,
cursos de graduação (eventos que antecedem a alunos afro-descendentes, de movimentos po-
realização do FRONTEIRAS); a criação da Linha pulares e, ainda, os que pesquisam a presença
de pesquisa “Diversidade Cultural e Educação da interculturalidade na educação escolar. Neste
Indígena no PPGE”; o Programa REDE DE SA- texto a nossa atenção está centrada na presença
BERES – permanência de indígenas no ensino dos alunos indígenas e na provocação que esta
superior; Observatório da Educação Escolar In- presença nos faz de pensar na possibilidade
dígena/CAPES/MEC/INEP (ações implementadas de construção de outras narra vas, de revisar
a par r de 2003). nossas prá cas e linguagens.

34 Adir C. NASCIMENTO. Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão e o diálogo com...


que foram silenciados, subalternizados cultural (CANDAU, 2009; SILVA, 2000),
e, sobretudo, indicam o lugar que ocu- entre outros estudiosos que envolvem
pamos nessa relação tão tensa e, ao colonialismo, colonialidade e lutas por
mesmo tempo, tão enriquecedora. Uma descolonização. Tendo este contexto
relação sempre aberta ao imprevisível, como cenário, a questão de fundo é
em uma interminável construção, des- fazer emergir um debate com novas
construção e reconstrução de fronteiras. configurações em torno da produção
Relação, em condições diferentes, entre de conhecimento, outras formas cons-
sujeitos (nós não índios e eles, índios) tuídas de saber e suas relações com
profundamente marcados pelo legado os campos disciplinares ins tuídos pela
eurocêntrico colonizador e, ainda, que e na modernidade.
vivemos na colonialidade e que, de certo A presença indígena nas IES tem
modo, a decolonialidade é um processo provocado uma tensão no espaço acadê-
a ser vivido por ambos os lados. mico, no sen do de considerar o conhe-
Dentro desse contexto amplo de cimento a par r da diferença, de outras
espaços e vivências, ensaiando a cons- lógicas epistemológicas que não a pro-
trução de uma interculturalidade crí ca duzida pela cultura ocidental e imposta
(WALSH, 2013), e sempre resvalando, como condição única de compreensão e
escorregando no que também a autora concepção de mundo. Gera instabilida-
chama de interculturalidade funcional des de cunho epistemológico e metodo-
e interculturalidade relacional, destaco lógico que dão consistência aos desafios
aqui, de maneira mais pontual, as expe- de pensar relações tais como: culturas
riências vividas com a presença dos aca- locais, culturas híbridas e globalização;
dêmicos indígenas no PPGE/UCDB, neste o território acadêmico com as diversas
possível “diálogo com as culturas ances- formas de produção de conhecimento; a
trais” que, a todo o momento, agonizam academia e a produção de conhecimento
os nossos discursos acadêmicos ainda sobre as diferenças; a universidade como
muito sustentados pela modernidade, espaço público requisitado pelos índios
ao mesmo tempo em que infiltram os como garan a de sustentabilidade étni-
seus saberes, mesmo que hibridizados, ca e de reelaboração de conhecimento
no espaço considerado “sagrado” da a par r de lógicas de compreensão de
academia. mundo, como âncoras para a produção
A necessidade de ar cular a ci- de alterna vas de sustentabilidade eco-
ência ocidental com os conhecimentos nômica (NASCIMENTO, 2006).
ancestrais dos povos indígenas e grupos A linha de pesquisa Diversidade
étnicos (GRÜMBERG, 2005; WALSH, Cultural e Educação Indígena, desde sua
2009) envolve a prá ca de “tradução criação em 2004, já recebeu 15 acadê-
e negociação” (BHABHA, 1998), de micos indígenas, 10 que já concluíram e
diálogo iden tário (HALL, 1997) e inter- cinco em andamento no curso (quatro

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 33-46, jan./jun. 2014. 35


mestrandos e um doutorando). Esses latino-americanos de ancestralidade
alunos indígenas trazem, de certa manei- indígena.
ra, outros saberes, saberes hibridizados, Neste campo de reflexões, as
construídos nos processos de negocia- discussões giram em torno de: mul /
ção e/ou ar culação, atravessados por interculturalismo; homogeneização/
outros marcos epistemológicos e produ- monocultura; naturalização e desnatu-
zidos na esteira de um con nuo jogo de ralização das relações sociais; espaços
forças e, nesse sen do, o grande desafio entre fronteiras culturais: entre luga-
para nós, sempre foi: como criar um am- res, terceiro espaço, não polaridades,
biente de rigorosidade acadêmica, capaz binarismos; diálogo entre saberes: a
de subverter a “norma” estabelecida presença de epistemes outras na cons-
de “cien ficidade”, de hierarquização e trução do conhecimento; colonização,
assimetria entre os chamados conheci- pós-colonização, colonialidade, deco-
mentos universais (legi mados como o lonialidade, descolonização; relações
certo e o bom para todos a ngirem a epistemológicas entre o norte e o sul; a
civilidade moderna) e os saberes outros modernidade e a organização colonial
(senso comum, populares, tradicionais, do mundo; negociação, articulação,
folclóricos, exó cos, obscuros, inferiores hibridação, tradução, tradição; alteri-
e, em alguns casos satanizados...)? Ou dade, outridade; subalternização, ocul-
seja, como não respeitar os conheci- tação, silenciamento; epistemologias
mentos trazidos, apenas como ponto de e espiritualidade; as ciências sociais e
par da, para depois abandoná-los, ou os estudos do outro: os metarrelatos,
seja, “acolhê-los”, capturá-los uma vez a norma vidade em contraposição ao
mais e afetá–los com um “outro” discur- primi vo, arcaico, pré-moderno.
so colonizador? Como abrir espaço para É interessante registrar os impac-
tos conceituais e identitários que os
os saberes/culturas ancestrais e produzir
estudos provocam. Depoimentos como5:
legi midade para estas culturas, legi -
- “a gente se acha com os autores porque
mando-as para o diálogo em condições
têm histórias semelhantes a nossa e isso
iguais, apesar das suas diferenças. Onde
ajuda a compreender melhor os conflitos
estava/está a diferença: no conteúdo,
de iden dade que temos. A gente se vê
método, na forma, no uso...?
no entre-lugares, no terceiro espaço, não
Construindo/desconstruindo sem-
vivemos nas polaridades das culturas”;
pre fomos intensificando os nossos diá-
– “é possível reconhecer os conhecimen-
logos com os indígenas mediados por
autores como Bhabha, Brand, Stuart
5
Hall, Canclini, Gauthier, Fleuri, Walsh, Depoimentos registrados durante as aulas ou
reuniões do grupo de pesquisa e que, embora
Candau, Mignolo, Escobar, Fanon, Freire,
sejam enunciados por um deles, há sempre uma
Meliá, Quijano, Boaventura Souza Santos concordância e reforço dos demais indígenas
entre outros, bem como as reflexões de presentes no grupo.

36 Adir C. NASCIMENTO. Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão e o diálogo com...


tos tradicionais com ‘carga’ de conheci- perceber: transitar neste espaço é uma
mento teórico também, de poder ser realidade”;
visível e se manter em um espaço não - “desafios da construção do diálogo
indígena”; intercultural/ancestral porque não co-
- “percebo a necessidade de descons- nhecemos o caminho, a lógica com a qual
trução daquilo que foi colocado como um conhecimento foi produzido pelos
verdade”. Esta percepção é sempre ancestrais. Conhecimentos no campo
acompanhada da constatação de que da agricultura, da medicina, da astro-
esse é um “processo dolorido”, pois “é nomia, da matemá ca entre outros”.
preciso desacreditar naquilo que foi Citam como exemplos a domes cação
dito e imposto”, ou seja, infiltrado como de alguns alimentos, o conhecimento
verdade absoluta e que fixou a ideia de medicinal das ervas.
inferioridade e incapaz. A desconstrução - “a Linha III é um espaço acadêmico que
traz a insegurança, mas a perspec va de permite o registro dos sen mentos (nas
construir o jeito de ser alimenta posi - discussões, nas dissertações, nas teses,
vamente o processo; nos ar gos)”.
- “a cultura é dinâmica, se movimenta Nesse contexto, somos sempre
e ressignifica. A cultura tem que ser surpreendidos por perguntas e/ou con-
cultivada e nutrida para sobreviver. testações às teorias, até então, nunca
Tem que ser buscada no e pelo próprio presentes em nossos estudos. Os textos,
grupo. Buscar as respostas revigoradas e as teorias em determinados momentos
ampliadas dentro daquilo que é possível provocam certa irritação epistemológica
negociar”. nos alunos indígenas que nos permitem
- “desenvolve a sensibilidade de enxergar evidenciar pelo menos duas situações: 1-
o outro, promove o reconhecimento de apesar de todo projeto de colonização/
diversos saberes, outros saberes”; subalternização/ocultação da pluralida-
- “as experiências vividas no processo de de saberes no processo histórico de
de colonização e, por isso, não é só uma produção da modernidade, os saberes,
questão teórica”; quando permi dos, se fazem presentes
- “os indígenas mais jovens não têm e 2- como já apontaram colegas do Pro-
maturidade construída no esforço para grama (PAVAN; LOPES; BACKES, 2014,
dialogar com os conhecimentos tradi- p. 169) relatando suas experiências de
cionais, com a cultura ancestral, porque construção de um diálogo intercultural
isto não se constrói fora do contexto, com indígenas, “É preciso sempre colo-
ou seja, o trânsito entre o passado e o car em xeque as teorias e ressignificá-
futuro, o sico e o espiritual, sen r que las [...] aprendemos que as teorias não
os ancestrais estão aqui. Ouvir e enten- devem ser vistas como inques onáveis”.
der os ventos, a chuva, o sol, a lua. O No bojo dessas questões teóricas
ocidente ra essa sensibilidade de sen r colocadas, o Programa tem agora o índio

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 33-46, jan./jun. 2014. 37


como pesquisador, não mais como o ou- do e envergonhado? Como aprender e
tro a ser conhecido, mas alguém que tem produzir com eles, os indígenas
que descentrar, estranhar a sua própria [...] outras maneiras de ler, indagar
história, vivências e fazer a “antropologia e inves gar, de olhar, saber, sen r,
de si mesmo”, a etnografia dele e de seu escutar e estar que desafiam a razão
povo. Ele não é mais o informante nem o única da modernidade ocidental,
“objeto” a ser observado e descrito. É no- tensionam nossos próprios marcos
tável o fato de que todas as dissertações disciplinados de estudos e interpre-
e projetos de teses defendidas ou em tação, e façam ques onar desde e
andamento no PPGE estão ar culadas com racionalidades, conhecimen-
com seu povo, com a sua comunidade. tos, prá cas e sistemas civilizatórios
“Assim a gente vai ter mais força para e de viver radicalmente dis ntos.
lutar pelo nosso povo”. Dialogando com (WALSH, 2010, p. 222).
a teoria da academia dizem “lutar con- Como temos um espaço, de certa
tra a subalternização que já aconteceu forma, privilegiado, a linha de pesquisa
e que ainda acontece e poder fazer a III, como dizem os alunos: “dos índios,
decolonização do saber, do poder e do dos afro e dos amigos dos índios e dos
ser”, parafraseando Walsh (2010). afro”, e os objetos de pesquisa são todos
Isso tem sido o grande desafio para relacionados aos problemas concretos
construir este diálogo: subverter o olhar, de suas comunidades, temos feito um
a escuta, a narra va, a compreensão. grande exercício de não nos colocarmos
Como permi r isso sem encarcerar em no lugar deles e impor a per nência dos
nossos métodos, em nossa linguagem, autores e a nossa própria per nência
em nossos textos? Como orientar sem de pensamento e dizer para eles quem
engessá-los em nossas prescrições, em são eles. Temos feito uma vigilância
nossas receitas? Como acreditar que epistemológica no sen do de escutar
eles, os índios, vão fazer ciência, mas as suas diferenças e ar cular a teoria
com outro olhar, com outra linguagem, com as suas diferenças. Reteorizar a
com outra lógica? Como fazer tudo isso teoria ou até mesmo colocar em crise
sem perder a rigorosidade que a pro- aquela teoria que, em nossa leitura,
dução de conhecimento exige? E mais, daria conta da reconstrução “radical do
como colocar em crise, conhecimentos ser, do poder e do saber” (OLIVEIRA;
já produzidos pelo outro autorizado e CANDAU, 2010, p. 24). Reconhecemos
legi mado pela academia? Como dar haver um dado de ancestralidade nas
validade aos conhecimentos que vêm da leituras que eles fazem que nós “filhos
inspiração, da intuição, da ancestralida- do ocidente” não conseguimos perceber,
de e que ficam arraigados na memória, pois somos capturados pelas armadilhas
no imaginário, por mais que ele tenha dos “conhecimentos universais” univer-
sido violentado, que ainda seja escondi- salizados pelo poder de homogeneizar

38 Adir C. NASCIMENTO. Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão e o diálogo com...


e esconder a pluralidade que todo texto temos ousado, especificamente com
tem, que afeta o leitor a depender de sua relação às pesquisas de pós-graduação:
iden dade. Por outro lado, sem perder permi r o texto na língua indígena (com
a rigorosidade, como diz Eliel Benites tradução); realizar as bancas de defesas
(2014, p. 3), nos agradecimentos de sua nas aldeias permi ndo a apresentação
dissertação, a linha de pesquisa III do trabalho para a comunidade na língua
[...] em suas lições co dianas de indígena, e a úl ma experiência que ve-
pensar e fazer reflexão, pautadas mos e que nos afetou muito, foi a par -
por uma postura sempre muito cipação de uma mestre tradicional, uma
rigorosa, lúcida e crí ca, são fonte sábia da aldeia, como parte efe va da
inesgotável de inspiração. Sem um banca, fazendo as suas considerações na
ambiente de intenso e elevado de- língua indígena (impressionante como se
bate intelectual, essa pesquisa não transforma, se empodera quando passa
teria fru ficado, no qual pude exer- a falar na língua) e avaliando junto aos
citar, com liberdade, minhas ideias.
demais membros da banca.
No esforço intencional de construir Nessa direção, relembrando
o diálogo com as culturas ancestrais, des- Brand, a demanda para o ensino supe-
de a academia, as ações desenvolvidas rior e a pós-graduação stricto sensu tem
na UCDB, em suas mais diferentes a vi- se caracterizado como novo elemento
dades têm feito o exercício, enquanto na luta por autonomia e construção de
espaço ambivalente e fronteiriço, de polí cas de sustentabilidade dos povos
ouvir as vozes dos “ancestrais” (reza- indígenas de Mato Grosso do Sul, na con-
dores, os anciãos, lideranças polí cas, temporaneidade. A universidade passa
outros pesquisadores indígenas com a ser entendida como um espaço a mais
mais experiência neste conflituoso e de diálogo e negociação entre lógicas e
tenso diálogo), bem como de priorizar a formas dis ntas de entender o ser huma-
presença indígena nos projetos que tra- no e suas relações com a natureza. Como
tem da questão indígena, como é o caso lembra Pereira (2012, p. 239),
de um dos Observatórios da Educação,
Com o apoio de Brand, os acadê-
que define suas bolsas prioritariamente
micos indígenas encontraram na
para indígenas e contempla as ações de academia um espaço favorável à
pesquisa e extensão nas comunidades investigação dos conhecimentos
indígenas e, também, do Grupo de Pes- pra cados pelos especialistas de
quisa Educação e Interculturalidade/ suas próprias culturas, que, na
CNPq, em que todos os par cipantes, maioria dos casos, não passam
indígenas ou não, têm como temá ca pelo letramento. Nesse sentido,
de pesquisa, a questão indígena. os pesquisadores indígenas não se
Na tenta va de subverter a crista- viam constrangidos à repe ção de
lização, a norma vidade da academia, conhecimentos alheios à realidade

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 33-46, jan./jun. 2014. 39


de suas comunidades, mas foram superioridade e universalidade quando
es mulados e preparados para a escrevemos, quando falamos, quando
prá ca da interculturalidade, na co- olhamos. Sim, temos uma linguagem
nexão e trânsito entre o sistema de corporal carregada por preconceitos,
conhecimento indígena e o sistema desconfianças, certezas. “Acolhemos”,
de conhecimento da academia.
“respeitamos” a diferença ao mesmo
Chegar à universidade significa tempo em que escondemos a infiltração
apropriar-se de ferramentas que permi- dos saberes outros em nossas iden da-
tam aos índios protagonizar a reescrita des... Ainda brigamos com o nosso car-
de suas histórias, uma outra história tesianismo, iluminismo, materialismo...
até então não alcançada pelo cânones É nessa perspec va, de abrir es-
escolares/acadêmicos, bem como inver- paços e tempos para a construção de
ter o ponto de par da para a busca de diálogo entre saberes e de ressignificar
alterna vas de solução para os proble- as nossas prá cas de formação, nossa
mas contemporâneos. (NASCIMENTO; e daqueles que aqui chegam, que os
BRAND; AGUILERA URQUIZA, 2011). Seminários Internacionais Fronteiras
Como aponta Escobar (2005, p. 133), Étnico-culturais e Fronteiras da Exclusão,
“como transformar o conhecimento local coordenados pela Linha de Pesquisa Di-
em poder, e este conhecimento - poder versidade Cultural e Educação Indígena,
em projetos e programas concretos?” a Linha III, têm sido realizados em toda
Ou seja, como aprender a a sua trajetória. Com o evento de 2012,
[...] ar cular saberes no sen do de em sua quinta edição, o FRONTEIRAS co-
conhecimentos acumulados, modos memora os seus 10 anos com a temá ca
de produção de conhecimentos, e “Inter/multiculturalidade e formação
modos de comunicação; sua forte de educadores”, buscando intensificar,
vinculação com os entornos sociais entre outras questões: a reflexão e o
dos quais fazem parte; aprender diálogo entre pesquisadores e represen-
precisamente as maneiras nas tantes de movimentos sociais de dife-
quais [prá cas] (as) interculturais rentes estados do Brasil e de diferentes
conseguem ar cular pesquisa com países sobre inter/mul culturalidade e
docência, com extensão e com formação de educadores, e o incen -
vinculação com a comunidade?
vo à ar culação entre conhecimentos
(MATO, 2010, p. 4).
acadêmicos e as outras formas de co-
Essa tem sido a nossa “experiência nhecimento tendo em vista a formação
de aprender a ouvir as vozes dos que es- de educadores numa perspec va inter/
tão posicionados nas fronteiras da exclu- mul cultural. Nesse sen do, este dossiê,
são” (BACKES; NASCIMENTO, 2011, p. 25). que contempla as reflexões em torno da
Entraves? Somos filhos da mo- temá ca do V Seminário, está organiza-
dernidade!!! Escorregamos em nossa do com oito ar gos e a Resenha, cujos

40 Adir C. NASCIMENTO. Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão e o diálogo com...


autores, que vivem atravessados teorica- O segundo ar go do dossiê, “De-
mente e como prá cas de vida (acadêmi- limitación de fronteras territoriales
ca ou não) pela inter/mul culturalidade, interculturales a par r de experiencias
par ciparam da programação do evento colegiadas de formación”, de Rossana
como palestrantes e observadores da Stella Podestá Siri, Inves gadora de la
dinâmica metodológica do seminário Benemérita Universidad Autónoma de
e deram os seus pareceres no sen do Puebla y Profesora de la Universidad
de qualificar os próximos seminários. Pedagógica Nacional-211, apresenta
Muitos desses autores são parceiros o processo de construção do que cha-
históricos na trajetória do FRONTEIRAS, ma de “una escuela de pensamiento”,
desde a sua primeira edição. que tem como obje vo a formação de
O primeiro ar go do dossiê é de identidades de todos que participam
Bartomeu Meliá, antropólogo jesuíta da proposta, indígenas e não indígenas,
espanhol radicado no Paraguai, da Uni- baseada na “interaprendizaje intercul-
versidad Católica N. Sra. de la Asunción tural”. Ancora a sua experiência em
e Cepag/Asunción estuda e convive com modelos de formação decolonial, “ba-
o povo Guarani há mais de 50 anos no sada en la fuerza de los conocimientos
Paraguai, traz para nossa reflexão uma indígenas sin dejar de relacionar los sa-
problema zação sobre “Las trampas de beres occidentales”. Podestá Siri conclue
la interculturalidad”. Tendo como eixos observando que “El re-posicionamiento
as relações entre a cultura, iden dade e es permanente, los diálogos entre ac-
interculturalidade, Meliá, de uma forma tores son cruciales dependiendo de
detalhada e didá ca, descreve o que los momentos”, evidenciando que a
chama de “La piel de la interculturalidad” construção da interculturalidade é um
como realizar o fundamento da primei- processo permanente e con nuo e que
ra e primordial interculturalidade que está sempre atravessado por tensões e
consiste no exercício que o interlocutor conflitos, embora enriquecedor.
tem que fazer de mirar-se no outro, ver o Héctor Muñoz Cruz, professor-in-
mesmo e ver o diferente, pois “La inter- ves gador em sociolinguís ca, polí cas
culturalidad supone el reconocimiento da linguagem e educação bilíngue em
pleno de la diferencia de la piel del otro regiões indoamericanas, da Universidad
y no hay interculturalidad cuando la piel Autónoma Metropolitana-Iztapalapa,
del otro, especialmente lo que dice con México, é o autor do terceiro ar go do
su lengua – que precisamente llama- dossiê, que tem como tulo “Desarrollo
mos lengua – es negada, despreciada e educa vo intercultural: fronteras jurídi-
incluso maltratada. Pero tampoco hay cas e ins tucionales permeadas, pero
interculturalidad cuando uno mismo no transiciones etnoculturales y sociolin-
quiere reconocer y amar su propia piel, güís cas en juego social”. Nesse ar go
la cubre y la disfraza”. Héctor Muñoz Cruz ao problema zar as

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 33-46, jan./jun. 2014. 41


relações entre as transações sociocul- par r de estudos recentes que “proble-
turais e sociolinguís cas, os estudantes ma zam o modelo polí co de Estado-
indígenas e a educação escolar e a pro- Nação e estudam suas implicações na
dução da interculturalidade, observa vida e nas polí cas dos povos indígenas
que “Uno de los retos fundamentales de na América La na, considerando que o
la educación intercultural es compren- reconhecimento dos povos originários
der adecuadamente las dinámicas del como sujeitos de sua história implica re-
bilingüismo social, de la comunicación ver cri camente o imaginário produzido
intercultural de facto y las innovadoras no processo colonizatório sustentado pe-
configuraciones de las iden dades” e las culturas hegemônicas globalizadas”.
aponta para o fato de que as comuni- A par r desses estudos e tendo a inter-
dades indígenas têm adotado um com- culturalidade como eixo central, começa
portamento de ordenamento sociocul- por apontar que este é um conceito
tural e sociolinguís co diferenciado do ainda em debate, mas que se apresenta
que preveem as normas vigentes nos como um desafio da colonialidade e que,
processos reais da educação escolar e, em contraponto com a jus ça coloca o
nesse sen do, observa que as mudan- Estado-Nação em cheque. Na sequên-
ças educacionais que têm acontecido cia destaca os estudos que apontam a
nos úl mos anos têm obedecido a um relação entre a interculturalidade e as
ordenamento hierárquico que pressu- polí cas educacionais indígenas, bem
põe: primeiro os processos políticos, como, a possibilidade de reconsiderar
segundo, os processos econômicos e, em as iden dades indígenas. Analisa os es-
terceiro lugar, o trabalho sobre a cultura. tudos que aprofundam a discussão entre
Na sequência, o quarto ar go é a interculturalidade e decolonialidade
uma produção de Reinaldo Ma as Fleu- na prá ca educa va. Como conclusão,
ri, parceiro histórico do FRONTEIRAS, traz os estudos que veem a educação
pesquisador do Ins tuto Federal Catari- intercultural como uma possibilidade de
nense/bolsista Capes e da Universidade descolonizar o poder e o saber.
Federal de Santa Catarina/pesquisador Ahyas Siss e Otair Fernandes
produtividade/CNPq que apresenta professores e pesquisadores da Uni-
parte dos resultados da pesquisa em versidade Federal Rural do Rio de Ja-
rede desenvolvida no âmbito do projeto neiro (UFRRJ), parceiros ins tucionais
integrado de Pesquisa: “Educação inter- desde a edição de 2006 do Seminário,
cultural: decolonializar o saber e o poder, em especial Ahyas Siss e Aloisio Mon-
o ser e o viver”, com financiamento do teiro, colaboram com o quinto ar go
CNPq no período de 2010-2014, sob o para este dossiê. O ar go “Formação
tulo Interculturalidade, iden dade e de professores na perspec va de uma
decolonialidade desafios polí cos e edu- educação culturalmente diversificada:
cacionais. Fleuri organiza o seu ar go, a breves considerações” concentra a sua

42 Adir C. NASCIMENTO. Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão e o diálogo com...


atenção na temá ca do V Seminário, a lógica hegemônica e homogeneizadora
ou seja, a formação de educadores em da cultura ocidental e eurocêntrica, que
uma perspectiva inter/multicultural. se impôs e inviabilizou “outras lógicas e
Formar educadores cujas iden dades outros saberes”. Para Marques “o desafio
são produzidas no seio de “sociedades posto é ressignificar as marcas deixadas
caracterizadas não apenas pela diversi- pela colonialidade” nos currículos, nos
dade cultural e desigualdade social mas, processos de formação inicial e con -
sobretudo, por possuírem uma herança nuada dos educadores. Nesse sen do,
escravista e colonial que a estrutura e às a “decolonização epistêmica deve ser
suas relações, como é o caso da socieda- uma das estratégias que possibilitarão
de brasileira”, é para os autores um dos a pedagogia decolonial”.
mais importantes desafios. Nessa pers- “Direitos humanos e educação
pec va, destacam a atuação dos Núcleos intercultural: As fronteiras da exclusão
e Estudos Afro-brasileiros e Indígenas e as minorias sub-representadas – os
(NEABIs) nos processos de formação de indígenas no ensino superior”, de autoria
professores que os ins tui como atores de Antonio H. Aguilera Urquiza, antropó-
fundamentais nos processos de “des- logo, professor e pesquisador da Univer-
construção das desigualdades sociais sidade Federal de Mato Grosso do Sul e
e etnicorraciais que contribuem para professor colaborador do PPGE/UCDB,
exclusão de grande parcela da população é o sé mo capítulo do dossiê. Par ci-
afrodescendente dos bens construídos pante a vo dos Seminários Fronteiras,
socialmente”, e entre eles certamente Aguilera Urquiza, tendo como referência
está a educação. o campo teórico dos Estudos Culturais
O sexto artigo, “Inter/multicul- e Estudos Pós-coloniais e a realidade
turalidade e formação con nuada de dos indígenas do Mato Grosso do Sul,
educadores: O protagonismo do movi- faz suas reflexões sobre a situação dos
mento social negro por uma Pedagogia estudantes indígenas nas Ins tuições de
Decolonial”, é de autoria de Eugenia Ensino Superior do estado, em especial,
Portela de Siqueira Marques, professora no que refere às relações de saberes, aos
e pesquisadora da Universidade Federal direitos básicos destas sociedades e às
de Dourados (UFGD). Tendo com suporte condições de acesso e permanência na
“as lutas e pressões protagonizadas pelo Universidade, tendo como perspec va
Movimento Negro brasileiro que histori- o “diálogo intercultural como direito
camente reivindicou o direito à educação humano básico das minorias”.
para a população afro-brasileira”, a auto- Fecha a sessão de ar gos, o texto
ra discute a formação de educadores na “Estudos curriculares no Brasil: o (não)
perspec va da inter/mul culturalidade lugar dos conceitos de interculturalida-
ancorada nos teóricos pós-coloniais e de, mul culturalismo, hibridismo, raça,
nas legislações que colocam em questão etnia e gênero”, José Licínio Backes,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 33-46, jan./jun. 2014. 43


professor e pesquisador da Linha III – Di- devem ser debatidas por mulheres e
versidade Cultural e Educação Indígena / sujeitos fora da heteronorma vidade?”
PPGE/UCDB e um dos organizadores dos Finalmente como parte do dossiê,
Seminários Fronteiras. Tendo como cam- Genivaldo Frois Scaramuzza, professor
po empírico os trabalhos apresentados da Universidade Federal de Rondônia
no Grupo de Trabalho Currículo (GT 12) (UNIR), Departamento de Educação
da Associação Nacional de Pós-Gradu- Intercultural e doutorando em Educa-
ação e Pesquisa em Educação (ANPEd) ção pela UCDB, realiza a resenha do
no período 2008-2012, totalizando 69 livro Metodologias de Pesquisas Pós-
trabalhos, Backes observa que o foco de Crí cas em Educação, organizado por
análise dos trabalhos está no “(não) lugar Dagmar Estermann Meyer e Marlucy
dos conceitos de hibridismo, intercultu- Alves Paraíso e publicado pela Editora
ralidade, mul culturalismo, raça, etnia Mazza Edições, Belo Horizonte, 2012.
e gênero no campo do currículo, cuja Scaramuzza observa que os capítulos
centralidade ou não produz um conjunto que compõem a obra estruturam-se
de efeitos para esse campo”. No decor- de forma harmônica, e que, “apesar
rer das análises, o autor evidencia, pelo de versarem elementos e estratégias
menos, duas situações: 1- “os conceitos de pesquisas dis ntas, não perdem a
são u lizados mais como adje vos para coerência com a perspec va pós-crí ca
qualificar diferentes realidades do que que apresentam. Produzem a flexibiliza-
como substan vos e que o seu signifi- ção dos instrumentos, das ferramentas
cado é pouco explicitado nos trabalhos de pesquisas, contestando o ‘caráter
apresentados”; 2- “pouca presença (não- norma vo dos métodos de pesquisas’
centralidade) dos conceitos e temá cas canônicos contidos nos manuais”. O
de gênero e relações étnico-raciais, bem resenhista alerta, ainda, que os textos
como de questões ligadas à intercultura- têm em comum um modelo de expo-
lidade e ao mul culturalismo no campo sição “Pedagógico no sen do de que
do currículo”. Backes termina o texto, permite pensar as metodologias como
coerente com o campo teórico que sus- possibilidade de condução da pesquisa
tenta a sua análise, compreendendo que para além das regras estabelecidas por
essas evidências são “fruto das relações premissas fixas e caminhos certos, mas,
de poder” e, por isso, coloca a verdade como uma forma de produzir pesquisas
em agonia, perguntando: “não será por mais abertas, sem, contudo, perder a
que, produtos da lógica colonial e da rigorosidade de uma ciência séria”.
colonialidade (QUIJANO, 2002; WALSH, Sabemos que o modelo atual
2013), nós, educadores, con nuamos de universidade não foi pensado para
pensando que relações étnico-raciais atender a todos/as, mas sim, é herdeira
devem ser discu das por grupos subal- da matriz eurocêntrica, de um po de
ternizados e que relações de gênero hegemonia não apenas sociocultural e

44 Adir C. NASCIMENTO. Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão e o diálogo com...


econômica, mas também, epistêmica. É ficismo”, ao trazer, em sua bagagem,
nesse ponto que a presença de indígenas os saberes secularmente acumulados
nas universidades começa a ques onar o e utilizados por suas comunidades e
que chamamos de hegemonia do “cien- ancestrais.

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Recebido em fevereiro de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

46 Adir C. NASCIMENTO. Fronteiras étnico-culturais e fronteiras da exclusão e o diálogo com...


Las trampas de la interculturalidad
The interculturalism piƞalls
Bartomeu Melià, s.j.*
* Doctor en ciencias religiosas por la Universidad de
Estrasburgo.
E-mail: bmelial@hotmail.com

Resumen
El presente ar culo trae una reflexión acerca del concepto de la interculturalidad y sus trampas.
Par endo de un ejercicio de bilingüismo en el cual la piel de cada uno es un primer dato que marca
las diferencias entre los hablantes, nos aproximamos a las condiciones de un posible diálogo entre
personas diferentes. La cultura sólo se ve y se percibe a través de la piel que habitamos; esta cultura
es un sistema de comunicación mediante el parentesco, el intercambio de bienes y la reciprocidad
de mensajes y símbolos. La interculturalidad supone el reconocimiento pleno de la diferencia de
la piel del otro y no hay interculturalidad cuando la piel delotro, especialmente lo que dice con su
lengua - que precisamente llamamos lengua- es negada, despreciada e incluso maltratada. Pero
tampoco hay interculturalidad cuando uno mismo no quiere reconocer y amar su propia piel, la
cubre y la disfraza.
Palabras clave
Cultura. Iden dad. Interculturalidad.

Abstract
This ar cle presents a reflec on on the concept of mul culturalism and its pi alls. Star ng an exercise
of bilingualism in which the skin of each one is the first data/sign that makes differences between
speakers, we approach the condi ons of a possible dialogue between different people. Culture only
seen and perceived through the skin we inhabit, and this culture is a system of communica on throu-
gh kinship, the exchange of goods and reciprocity of messages and symbols. Interculturalism entails
full recogni on of the difference in someone else and there is not mul culturalism when the skin
of the other person, especially what he says with his language precisely call is denied, neglected
and even maltreat. But there is not interculturalism when each one do not want recognize and love
their own skin, covers and disguises.
Key words
Culture. Iden ty. Interculturalism

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 47-54, jan./jun. 2014
Los peritos toman el pulso del ánimo en esa misma piel puede surgir el primer
la lengua contraste, que se manifiesta en rechazo
y de ella dijo el Sabio : “Habla, si quieres
y desagrado, an pa a y discriminación.
que te conozca”
Baltasar Gracián, Oráculo manual y arte No puede ni quiere mirarle a la cara.
de prudencia. El primer ejercicio que hace el
Aforismo 148 interlocutor es mirarse en el otro, ver lo
mismo y ver lo diferente. No es por ca-
1 La piel de la interculturalidad sualidad que el primer ejercicio que han
solido hacer los aprendices de antropó-
Usted está frente a una persona logo sea intentar entender lo común de
que habla, pero usted no en ende lo lo diferente. Usted está sentado frente al
que habla y sin embargo quiere esta- otro, que es reflejo y pintura de sí mismo;
blecer un diálogo con ella. Las palabras, mejor si ambos están desnudos para que
en este caso, no sirven para ese diálogo, nada distraiga la atención de lo esencial.
pues carecen de significado y de sen do. Usted señala una parte de su cuerpo y
Entre las dos palabras, la del otro y la el otro le da nombre; puede ser que el
suya, hace falta un algo en que posarse; otro también quiera saber como usted
digamos la piel. Es el gran significante. lo nombra.
Así usted se pone frente a otra La mayoría de los vocabularios
piel; está frente a lo único que sí ene interculturales han nacido de este o otro
significado; está en un cara a cara con el ejercicio semejante. Después usted o él
otro; está frente a su piel que es lo que le puede ves rse, entrar en la casa, cami-
da la primera revelación de otro ser, de nar por la selva, cantar y danzar con él,
otro modo de ser. Ver la piel y sen rla – comer y dormir, caminar, caminar mucho
tal vez tocarla – es el fundamento de la porque en caminando se hace camino al
primera y primordial interculturalidad. andar, y va nombrando la piel del mundo,
¿Por qué interculturalidad? Porque en su paisaje, sus olores, sus aires, sus días
esa piel hay una historia tal vez de miles y sus trabajos.
de años, que me dicen su historia que Las lenguas manifiestan su poten-
no es mi historia. Es la piel de eso que cialidad en su piel y en las crisis por las
llamamos cultura como sistema de co- cuales esa piel está pasando, de creci-
municación mediante el parentesco, el miento, de acné y pecas, de arrugamien-
intercambio de bienes y la reciprocidad to, de brillo y opacidad; hay piel sana y
de mensajes y símbolos, como decía hay piel enferma.
Claude Lévi-Strauss. Lo único visible y Lo más profundo de la palabra es
tangible. Las dos pieles pueden ser muy su piel. Al hablar te veo, y si no hablas
diferentes: rojiza, negra – y sus ma ces no te veo del todo. La lengua es también
–, blanca – y sus ma ces –, labios finos piel y del placer tác l de esa piel de la
o gruesos, nariz chata o aguileña. Desde lengua viene el buen gusto de la lengua

48 Bartolomeu MELIÀ, s.j. Las trampas de la interculturalidad


y la lengua de buen gusto. Así como las anécdota que leemos en las primeras
palabras de un diccionario están conte- páginas de Bilingüismo y lenguas en con-
nidas dentro de las tapas del libro, las tacto, de Miguel Siguan (2001, p. 13), por
palabras vivas del hablante están dentro desgracia no es sólo prejuicio de campe-
de la piel que habitamos y que nos ha- sinos rudos, sino que está en la base de
bita; lo que no está dentro de esa piel, los proyectos coloniales, de los cuales
no existe; la piel de la lengua es nuestro la globalización actual es vór ce y afán.
hábitat. Una lengua despellejada está en El colonizador, cuanto más bárbaro, se
peligro de muerte. pregunta con mayor descaro: “pero ¿es
El Verbo se hizo carne. Y nos dio la lengua eso que hablan esos?” Porque, si
posibilidad de ser interculturales porque hombres y mujeres somos iguales, ¿por
nuestra carne también se hace verbo. qué hemos de tener lenguas tan dife-
Las lenguas de fuego de Espíritu son rentes? Así quiere imponer su lengua,
intercomunicables porque son lenguas la suya, a todos, y si el pie no entra en el
y están reves das de piel. Aun hablar zapato que él vende, que le corten el pie.
en lenguas mís cas pasa por la lengua.
La lengua es la piel que habito. 2 Teko: modo de ser, de estar, ley,
En la película La piel que habito, Pedro costumbre, hábito
Almodóvar lleva la metáfora al extremo:
sexo e iden dad se transforman al cam-
biar de piel. La piel – y su lengua – hace tekoser; estado de vida; condición; estar;
costumbre;
al monje, no su hábito que siempre es ley; hábito; che rekomi ser; mi vida, condición
externo, aunque en cierto modo remeda »h-; gu-«;
la piel />teko’a1cogerle su costumbre; imitar;
Ahora bien, por otra parte, para chereko’ame imita/; /aheko’ayo le imito;
ser intercultural hay que ser radicalmen- aheko’arukahacer que le imite;
>heko’a/;ñanderemieko’arãmaIesuChristo Ñ. J.
te monolingüe por convicción. Aunque
el que hemos de imitar es Jesú Cristo nuestro
no unilingüe. El colonialista no concibe Señor
que haya otras lenguas, otras pieles; y Antonio Ruiz de Montoya, Tesoro de la lengua
así pretende descalificarlas y hasta ne- guaraní, Madrid, 1639.
garlas como feas, débiles e inservibles.
Las grandes tragedias de la humanidad La interculturalidad se da en la
se han originado al no aceptar la peil del relación de uno en más. Y hay relación
otro y lo que ella con ene. porque hay más de una cultura, y hasta
“Qué raro, yo hablo, y ellos hablan, relación entre subculturas o dialectos.
y no nos entendemos”. “Es que hablan de La traducción que da Montoya de
otra manera”, le aclaró mi amiga. “Ah, la palabra teko, de la cual registra combi-
pero ¿se puede hablar de otra manera?”, naciones y acepciones que se ex enden
exclamó la asombrada campesina”. Esta por sobre 21 columnas (diez páginas) de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 47-54, jan./jun. 2014 49


su diccionario: Tesoro de la lengua gua- fuera, los indios le llaman, pongamos
raní (1639, p. 363-368), corresponde casi por caso, ñaneramõi – nuestro abuelo –,
literalmente a la que ofrece el “fundador ¿se ha roto la muralla de la exclusividad
de la antropología moderna” Edward para dar la entrada al ñande? El ñande
Burne Tylor, al principio de su Primi ve ene recursos para incluir lo diferente.
Culture (TYLOR, 1871). Un alemán del principio de siglo XX, Curt
En Montoya parece haberse dado Unkel, que convivió con los Guaraní-
una notable interculturalidad, excepto Apopokúva, durante una celebración en
en religión, como era de suponer en la la que par cipaba fue llevado al centro
época. Eso no quita que fuera tomado de la danza y se le impuso un nuevo
como chamán o pajé, reencarnación del nombre: Nimuendajú – aquel que se ha
hechicero Kuarasy , ‘Sol Resplandecien- dado un lugar entre nosotros, y es aúreo
te’; él lo sabía y su biógrafo Francisco y eterno. Con esto no se llamaba sola-
Jarque, de quien es el dato, lo habrá oído mente con un nuevo nombre, sino que
de sus propios labios. ahora, como guaraní, él era su nombre.
La afirmación de una cultura pro- Esa persona ha sin duda entrado en el
pia no excluye en principio la posibilidad ñande de la inclusión, es decir, de la
de interculturalidad; es más bien la con- interculturalidad. En adelante, Unkel se
dición necesaria para que el diálogo sea llamará defini vamente Nimuendajú y
entre iguales, aunque diferentes. todos sus escritos aparecerán bajo ese
El guaraní ha categorizado la nombre. ¿Es ya guaraní? Probablemente
primera persona del plural en dos pa- no, pero ahora se sabe aceptado en el
labras diferentes: ñande – inclusivo – y nuevo teko, del cual ya estaba par ci-
ore – exclusivo. Entre las personas de un pando desde hacía unos años.
mismo teko – de una cultura o modo de Yo veo una cierta analogía con
ser propio –, se usará siempre el ñande, el pasaje del evangelio de San Lucas
incluso en sus voces reflexivas y recípro- (18, 24-29), en el cual el hombre rico
cas; cuando se excluye a otra persona, es invitado al ñande de Jesús que es
o grupo de personas, del círculo de ese de pobreza, pero que los discípulos
‘nosotros’, que puede revelarse como todavía consideran imposible. ¿Quién
género, forma de cultura, estatus social, podrá entonces interculturarse? Ahí
poder, color, etc., y que en realidad sólo está dada la dimensión mística de la
veo por la piel - se usara el exclusivo ore. interculturalidad, que no suele aparecer
La interculturalidad persiste en eliminar en ningún programa de educación ni en
las exclusiones. ninguna polí ca estatal, y sin embargo,
¿Cómo una persona excluida por el cualquier intento de interculturalidad sin
ore, podría pasar a entrar en el ñande? esa dimensión está abocado al fracaso.
¿Es esto posible? Es muy di cil, pero no Inculturarse en una nueva lengua pue-
imposible. Cuando a una persona de de ser también igualmente di cil, pero

50 Bartolomeu MELIÀ, s.j. Las trampas de la interculturalidad


no imposible. La relación de amor es el a cabo por el Ins tuto Lingüís co de
único camino. Verano, trabajan en el supuesto de que
De hecho, dialogar con las culturas las palabras enen un valor abstracto
de la pobreza es la piedra de toque de la que las hace sin más intercambiables
interculturalidad. mediante la técnica de la traducción,
basada en la ilusión de que cada térmi-
3 La farsa del bilingüismo no puede tener su correspondiente en
otra lengua y en otra cultura, como un
Debes diamante aislado. Encontrarse con el
tener en otro en otra lengua y mediante palabras
cuenta que copar cipadas es un camino que puede
el juego de llevar a la misma cancha, pero en ella no
lenguaje es, hay automá camente interculturalidad.
por así El bilingüismo que ene al inglés como
decirlo, algo segundo término nos ene curados de
imprevisible; espantos. Muchos programas de inglés
es suelen ser vehículos y puentes de decul-
decir, que turación por su intención de propaganda
carece de colonial, que pretenden la asimilación
fundamento. duradera y defini va en otro sistema, en
Ni otra piel. El fracaso es rotundo.
razonable, Más aún, la lengua nueva puede
ni no representar tal infección que hace que
razonable. las palabras muden de sen do y de signi-
Es como ficado en mi propia lengua al inscribirlas
nuestra vida. en otra cultura, en este caso la colonial,
Ludwig Wi genstein, 1969
que es otro teko, otra cultura.
Hablando la misma lengua, se pro-
La contrefaçono remedo de la in- ducen bilingüismos que rompen la uni-
terculturalidad suele ser el bilingüismo, dad de la lengua y la tercerizan. Véanse
porque en vez de ser un diálogo compar- algunos casos de esta evolución históri-
do con personas, pieles y culturas dife- ca, cultural y polí ca que en vez de ir en
rentes – por lo memos dos – y se reduce el sen do de una interculturalidad han
a un juego de correspondencias en un ido en el sen do contrario de deculturar
mundo llevado a tal punto de abstrac- una lengua en elinteriorde la propia piel
ción en el cual las palabras de la lengua y desconyuntarla. La que parece todavía
son usadas y abusadas sin la lengua. Los la misma lengua se ha conver do en otra
bilingüismos bíblicos, las traducciones lengua, que en realidad ene, por otra
de la biblia, especialmente las llevadas parte, todo el derecho de exis r, que

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 47-54, jan./jun. 2014 51


ene su belleza y encanto y es usada por caso. Se ha creado un tercer tekoy una
todo un pueblo, el paraguayo en este tercera lengua.

Pre- colonial Siglo XVII (Montoya) Siglo XXI


jopói manos abiertas dar cosas, dar de comer regalo, obsequio
tepy venganza venganza, paga precio de algo
kua a marca, dibujo pintura, dibujo, papel papel, carta
karai profeta, mago español, cris ano señor, bau zado
tupã dios del trueno dios de los cris anos un dios de los Guaraníes; dueño
del trueno y de las lluvias

Como ya se dijo en el Mundo sobre todo a otro sistema económico


Guaraní (MELIÀ, 2006, p. 105-106), “los que afecta también a la economía de la
cambios se dieron en todos los campos comunicación de mensajes, es decir, la
culturales – la lengua es la matriz y el lengua y los símbolos; esto es, el sistema
paradigma cultural por excelencia –, de la representación y de la figura.
en el parentesco, en la economía, en la Esos ejemplos citados se pueden
religión, en la polí ca, pero también en extender a casi todas las palabras del
lo más ordinario de la vida co diana. Al diccionario, incluyendo las par culas –
decir guaraní paraguayo insis mos en morfemas – de relación, aspectos mo-
que no sólo se trata sólo de una lengua dales y temporales. La deixis propia de
hablada por los paraguayos, sino una los diferentes sistemas: el señalamiento
nueva sociedad no indígena que habla mediante ciertos elementos lingüís cos,
una lengua indígena, y todo ello dentro que indican presencias y ausencias,
de una homogeneidad de lenguaje no- modos de estar, cercanías y distancias,
table, hasta nuestros días. ayeres y futuros, inmediateces en el
“En los “cambios semán cos” se empo o alejamientos, situaciones de
constata que una palabra – y a veces empo primordial, admiraciones, es un
una frase – ha mudado su significado a lo campo en el cual la interculturalidad se
largo de años y siglos. Las causas de es- hace especialmente di cil y mo vo de
tos cambios de significado son muchas y desinteligencias. ¿Qué significa el “había
complejas, pero una de las principales es sido que era mi madre” del castellano
la transformación histórico cultural de la paraguayo, o el “mañana o sea pasado
sociedad que habla esa lengua. El guaraní, mañana”? Ahí un lengua se traspone
lengua indígena, se hace también lengua en otra lengua, es guaraní con palabras
de los paraguayos, que no se iden fican, castellanas. ¿Puede uno de fuera entrar
sin embargo, con los Guaraníes, sino con en ese comportamiento bilingüe que
los colonos españoles. Que pertenecen tanto le extraña?

52 Bartolomeu MELIÀ, s.j. Las trampas de la interculturalidad


Pero está siempre amenazante la co, pues al tornarse bilingües muchos de
farsa del bilingüismo que no es propia- ellos pierden lo que tenían y dominaban
mente la perplejidad a la que nos condu- y apenas arañan lo que supuestamente
cen ciertas expresiones de la otra lengua, tendrían que conseguir. Los bilingüismos
que al final podemos llegar a entender y diglósicos son engañosos y farsantes.
hacérnoslas propias, sino el uso colonial Los verdaderos bilingüismos, cuando
de la prác ca de ese bilingüismo, que, no son interculturales, podrían, sí, deshacer
siendo tal, ha tenido que encontrar otro esa maldición de Babel es el unilingüis-
nombre: diglosia. mo. La maldición no está en las muchas
En esta diglosia las dos lenguas lenguas, sino en el poder único que se
están desequilibradas por presupuestos atribuyen a sí mismo los viciosos deten-
discriminatorios y ac tudes de valor. Una tores del monoteísmo, la monarquía y el
es la lengua de rango, superior, oficial, monopolio.
escrita y decretal, al fin la lengua del Un guaraní boliviano que fue a
poder y de la riqueza; la otra es coloquial, vivir a América del norte, decía: “cuanto
la de la calle, sin escritura, sin poder y más estuvecon el inglés, me volví más
reducida al uso de los pobres. Esta dis- guaraní”. “Me hice más mallorquín, en
nción diglósica es origen y efecto de la cuanto me volví más guaraní”, podría
falta de interculturalidad entre los que también decir quien escribe estas líneas.
están en contacto a veces durante siglos, Creo que nunca he sido tan jesuita como
pero sin diálogo real. cuando, a fines del 70, estuve cantando
Aparece entonces una tercera len- y danzando durante 12 a 14 horas por
gua, que un misionero del siglo XVIII, el día durante semanas con los Enawené
padre José Cardiel, tachaba de jerigonza Nawé del río Juruena (Brasil), recién
y algarabía, lengua corrupta y adulterada contactados. Ahí sen a que me volvía,
(MELIÀ, 2013, p. 67). no un jesuita a pico, sino pico.
¿Qué interculturalidad sería po- Esta especie de alegato contra
sible entre el plantador de soja y el el bilingüismo tramposo no descalifica
campesino desplazado por esa misma enteramente el intento y posibilidades
soja? ¿Hay bilingüismo entre el amo y reales de una cierta interculturalidad que
el esclavo? se construye a par r de la capacidad y
Los programas de bilingüismo en gracia de sen r internamente que hay
realidad di cilmente superan la diferen- otra piel, que la puedo mirar y respetar
cia radical de sistemas; de hecho, ellos y entrar en diálogo con ella, porque
mismos la engendran y promueven. El nunca dejé de ser yo mismo, limitado y
caso de los indígenas a los cuales se diferente, pero par cipe de la Palabra
orienta hacia el bilingüismo es dramá - fundamental, el Ayvú rapytá guaraní.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 47-54, jan./jun. 2014 53


Referencias
GRACIÁN, Baltasar. Oráculo manual y arte de prudencia. Madrid: [s.n.], 1947.
MELIÀ, B. La tercera lengua. Cepag: Asunción, 2013.
______. Mundo Guaraní. Cepag: Asunción, 2006.
MONTOYA, Antonio Ruiz, Tesoro de la lengua guaraní. Madrid, local, 1639.
SIGUAN, M. Bilingüismo y lenguas en contacto. Madrid: Aliança Editorial, 2001.
TYLOR, Edward Burne . Primi ve Culture, London: local, 1871.
WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty. Oxford: Basil Blackwell, 1969.

Recebido em julho de 2012


Aprovado para publicação em agosto de 2012

54 Bartolomeu MELIÀ, s.j. Las trampas de la interculturalidad


Delimitación de fronteras territoriales interculturales
a parƟr de experiencias colegiadas de formación
Intercultural territorial borders delimitaƟon from
collegiate training experiences
Rossana Stella Podestá Siri*
* Doutora en Ciencias Antropológicas por la Universi-
dad Metropolitana-Iztapalapa, México. Inves gadora
de la Benemérita Universidad Autónoma de Puebla y
Profesora de la Universidad Pedagógica Nacional-211.
E-mail: rossanapodesta8@yahoo.com.mx

Resumen
En este ar culo pretendo dar cuenta de los orígenes de una escuela de pensamiento que estamos
impulsando en México, en dis ntos estados de la República, cuyo propósito es poner en prác ca
un trabajo forma vo basado en el interaprendizaje intercultural y colegiado del territorio a lo largo
y ancho de la noamérica. Si bien hablaré de sus orígenes, me abocaré primordialmente a la expe-
riencia llevada a cabo en el estado de Puebla, que es la que hemos desarrollado con un equipo de
trabajo interestatal de maestros indígenas y no indígenas. La misión grupal es la puesta en prác ca
de modelos de formación de-coloniales para construir una escuela para el arraigo (BERTELY, 2006,
2008, 2009) basada en la fuerza de los conocimientos indígenas sin dejar de relacionar los saberes
occidentales.
Palabras clave
Interaprendizaje. De-colonización. Fronteras interculturales.

Abstract
In the present ar cle we try to describe the origins of the school of thought that we are promo ng in
México in various loca ons of the Republic; its object is to put into prac ce a forma ve work based
on a shared intercultural learning all along the La n American geography. Although I will be talking of
the origins, I will concentrate primordially on the field experience I carried out in the area of Puebla,
which is the work we have developed among a team of indigenous and non indigenous teachers of
the zone. The shared - collec ve mission is the undertaking of pu ng into prac ce the decoloniz-
ing models of forma on to construct a school for the grounding (BERTELY, 2006, 2008, 2009) based
on the force of the indigenous knowledge with out displacing its rela ons to western knowledge.
Key words
Interlearning. Decoloniza on. Intercultural borders.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 55-70, jan./jun. 2014
1 Experiencias, reposicionamientos, hoy formamos parte de un mundo tan
cambios paradigmáticos complejo como el que cons tuimos. Por
eso los resultados educa vos lamenta-
Muchos años me han permi do bles que alcanzamos hoy en América
hacer un recuento de lo realizado en La na y que en México se han develado
disciplinas como sociolingüís ca, antro- en este sexenio, reflejan que el ochenta
pología y educación. He visto los alcan- por ciento de los niños de educación
ces y los logros obtenidos, pero también secundaria presentan resultados insufi-
me he percatado de nuestras profundas cientes en lecto-escritura y matemá cas,
limitaciones en los distintos estudios habilidades básicas3. Y esto se debe en
de ciencias sociales realizados desde el que no hemos tenido la capacidad de
occidente. Las herramientas y teorías reconocer los territorios interculturales
que se han expresado desde la cultura sobre los que imponemos, desde el
que prevalece en nuestro mundo, no estado y desde arriba (BERTELY, 2006),
puede con nuar de la manera en la que una sola visión educa va cuando nues-
la hemos aprendido, sin ser cues onada, tras realidades son tan diversas. La gran
ampliada, integrando a todos los actores, pregunta es qué abonan las ins tuciones
que son co-rresponsables del mundo formadoras de maestros, y por qué no
en construcción en el que habitamos. las universidades, acerca de la riqueza
Sobre todo cuando se trata de educar de conocimientos que forjan estados
para un mundo intercultural como el nacionales interculturales como el me-
que tenemos en toda Latinoamérica. xicano, proclamados desde los noventa
Originada por pueblos mal llamados por lo menos en la mayoría de los que
indígenas1. A los que se le sumaron más comprenden América La na.
tarde los conquistadores y la raza negra Las maneras de educar de cada
esclava durante décadas. Nuestra his- pueblo no sólo albergan estrategias es-
toria no es fácil, porque no sólo hemos pecíficas, sino valores (GASCHÉ; VELA,
impuesto la manera de educar sino los 2012) e intereses propios que, aunque
paradigmas eurocéntricos, sin consultar, las ciencias sociales la noamericanas
sin incorporar a todos los actores2 que han indagado, aún no hemos reconocido
ni incorporado los conocimientos pro-
1
México ocupa el octavo lugar mundial en di- fundos que aún perduran en el sustrato
versidad lingüís ca y segundo lugar en América
La na (Comisión Nacional para el Desarrollo de
los Pueblos Indígenas, CDI, 2010). para todos” (Coordinación General de Educación
2
Por ello las currículas educativas oficiales Intercultural Bilingüe, CGEIB, 2001) y currículas
son únicas, uniformes sin respetar la compleja flexibles e interculturales.
3
organización sociolingüís ca que actualmente Comunicación oral en varias conferencias dic-
tenemos. A pesar de los intentos paradigmá cos tadas por la Subsecretaria de Educación Básica,
como es el caso de una “Educación intercultural la maestra Alba Mar nez Olivé en 2013.

56 Rossana Stella PODESTÁ Siri. Delimitación de fronteras territoriales interculturales a par r de...
cultural con nental gracias a una praxis culas educa vas, proponer la formación
de resistencia (GASCHÉ, 2008 a y b). de los maestros es conocer el territorio
En este trabajo sólo me abocaré a que tenemos delante. Sin entenderlo, y
expresar una experiencia de coautoría, con esto expreso la necesidad de “cami-
de co-responsabilidad en la que la que narlo”, “vivirlo” así como de estudiarlo
escribe sólo significa una voz entre mu- en sus múl ples variables sociopolí cas,
chas4. Además escribo desde la cultura es casi imposible armar con é ca y res-
en la que fui educada, la occidental, pero ponsabilidad la educación de los futuros
con la amplitud que me permi ó abrirme mexicanos que habitan el espacio donde
a otros saberes hacer que no son los estos referentes se entrecruzan. Este
míos pero que están en este mundo. Por ejercicio que realizaré a con nuación es
ser letrada y cer ficada la academia me sólo un ejemplo del análisis contextual
cede este lugar para esbozar el complejo que para cada país debería proponerse y
entramado que hemos logrado, durante que América La na en su conjunto esbo-
más de siete años, en un proceso de zara. De esta manera se podría planear
formación de maestros indígenas inte- más allá de las fronteras convencionales5
grantes de pueblos mexicanos. y a par r de las variables que la misma
ciencia social ha arrojado.
2 ¿Conocemos el territorio? ¿Desde En primer lugar muchos territorios
dónde? estatales de los países han sido divididos
geopolí camente par endo, arbitraria-
Una de los primeros pasos para
mente, territorios ancestrales que no te-
edificar polí cas públicas, armar currí-
nían las fronteras que hoy visualizamos.
Por ello, si pensamos interculturalmente,
4
El equipo nacional está encabezado por la Dra.
5
María Bertely Busquets del Centro de Inves ga- Nos parece importante señalar dos casos re-
ciones y Estudios Superiores en Antropología cientes donde la formación reúne estudiantes
Social y el del Estado de Puebla lo componemos no sólo del país que la ofrece, sino invita, a
los maestros y maestras Anastacio Cabrera, Elena estados colindantes a pensar, estudiar, analizar
San llán, Odilia Hernández, Jazmín Guarneros, temá cas comunes sin fracturar las fronteras
Stefano Sartorello, Raúl Gu érrez, Eusebia Texis, geopolí cas establecidas. Por ejemplo, la crea-
Ofelia Rosas, Pascuala Juárez, Antonia Aguilar, Ju- ción del PROEIB-Andes, en Bolivia, maestría en
ben no Arce, Carina Texis, Francisco Arcos, Juan educación que privilegió la entrada de maestros
Victoriano, Jesús Mar nez, Manuel Hernández, andinos de varios países colindantes o el caso de
Juan Guzmán y M. Irma Gómez, entre muchos la Universidade Federal da Integração La no-
otros maestros que al terminar su formación pa- Americana (UNILA) que ene la intensión de
san a formar parte de la Red Educa va Induc va ser una Universidad internacional que reúne a
Intercultural (REDIIN) y que se ex ende hoy a alumnos de países fronterizos, y de otras partes
cinco estados de la República mexicana así como del mundo, para pensar juntos tareas inmediatas
a otros países la noamericanos, principalmente, de profesionales que habitan en un territorio
Perú y Brasil. ancestral que fue común.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 55-70, jan./jun. 2014. 57


respetando como dice el Convenio 169 para atender de acuerdo a estas cultu-
de la Organización Internacional del Tra- ras que por razones polí cas quedaron
bajo (OIT, 1989, p. 10), en su ar culo 1: divididas siglos atrás.
[...] Los gobiernos deberán respetar En segundo lugar no hemos reco-
la importancia especial que para las nocido, más que discursivamente, las
culturas y valores espirituales de lenguas que se hablan en ese territorio y
los pueblos interesados reviste su la localización de sus asentamientos. En
relación con las erras y territorios, el estado de Puebla tenemos siete pue-
o con ambos, según los casos que blos originarios (Figura 1, donde el color
ocupan o u lizan de alguna otra rojo significa los lugares donde mas de
manera y en par cular los aspectos la mitad de la población habla la lengua
colec vos de esa relación. indígena e inclusive los monolingües son
Es necesario tomar en cuenta que mayoritarios) y en el caso de la ciudad
las fronteras modernas no enen la fun- capital por migraciones recientes intra e
cionalidad que la prác ca milenaria de inter estatales tenemos más de cuarenta
los pueblos originarios aún man enen. y ocho lenguas indígenas (INEGI, 2010).
Por ello las fronteras educa vas deben Esto nos lleva a desa os educa vos de
ser flexibles. Los estados deben aliarse relevancia.

Figura 1
Fuente: Elaboración propia con datos estadís cos del Ins tuto
Nacional de Estadís ca y Geogra a (INEGI, 2010)

58 Rossana Stella PODESTÁ Siri. Delimitación de fronteras territoriales interculturales a par r de...
En tercer lugar, este estado es más oscuros son los más marginados).
rural. Más del setenta y siete por cien- Por ende si sobreponemos a éstos las
to de los municipios son de alta y muy lenguas mencionadas, así como otras va-
alta marginación (Figura 2, los lugares riables, veremos la coincidencia espacial.

Figura 2 - Grado de marginación en el estado de Puebla


Fuente: Consejo Nacional de Población (CONAPO, 2010)

A esto debemos aunarle la descrip- zonas. Puebla ene un sesenta y cuatro


ción de las caracterís cas de las escuelas por ciento de escuelas mul grado6.
que el estado ha colocado en estas

6
Nuestras universidades formadoras de docen-
tes no instruyen para atender un salón mul gra-
do y en los estados de la República Mexicana con
mayor can dad de pueblos indígenas predomi-
nan este po de escuelas.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 55-70, jan./jun. 2014. 59


Tabela 1 - Estados con mayor cantidad Otro tema importante es qué sis-
de escuelas multigrado. temas educa vos están en qué si os. Y
ahí también vemos que el de las escuelas
ESTADOS ESCUELAS MULTIGRADO ubicadas en zonas indígenas no son in-
Veracruz 252 631 dígenas sino regulares. A ello debemos
Chiapas 239 090 agregar que los maestros contratados
Oaxaca 135 900 por el sistema indígena no hablan la
Puebla 114 258 lengua de sus alumnos y muchas regio-
Guerrero 93 476 nes enen grados de monolingüismo
Michoacán 87 781 altos en lengua materna, como es el
Tabasco 83 841 caso de Sierra Negra, una de las sierras
Fuente: Reforma Integral de la Educación Básica más vitales lingüís camente en náhuatl
(RIEB, 2010) y mazateco del estado que nos ocupa.
La concatenación de variables,
ruralidad, marginalidad, uso de lenguas
Entonces la primera pregunta que
originarias, pruebas estandarizadas de
nos planteamos es, si en estos lugares
aprovechamiento, organización esco-
es donde tenemos las situaciones más lar y preparación de los maestros nos
complejas ¿por qué no cuidamos la ca- muestran que en la prác ca deberían
lidad del personal que enviamos, tanto re-plantearse muchas de las acciones
lingüística como educativamente? Es actuales, porque los resultados siguen
evidente que las acciones que empren- siendo desfavorables en esas zonas del
damos tomando en cuenta un verdadero territorio donde la complejidad inter-
reconocimiento del territorio son las que cultural se acentúa. Los lentos avances
impactarán sobre los resultados educa - los adjudicamos al poco desarrollo, sin
vos que nos hemos propuesto alcanzar. embargo, jamás se ve el entramado
Es decir, no contamos con todos originario, porque somos incapaces de
los maestros sino que éstos se agrupan atender el interés que demanda nuestra
en escuelas dependiendo del número de sociedad, en la que vivimos juntos. En el
alumnos que muchas veces rebasan la fondo la idea no es resolver sino man-
capacidad deseable. Tenemos escuelas tener este statu quo de desigualdades
unidocentes, bidocentes, tridocentes, te- que siguen reproduciendo una sociedad
tradocentes, y de organización completa. gobernada por una idiosincracia que no
Sin embargo, las zonas más carenciadas corresponde a las culturas na vas de
adolecen del equipo humano (manejo nuestro con nente. No basta reconocer
de la lengua indígena y metodologías la interculturalidad sino co-construir un
de enseñanza mul grado intercultural) mundo retomando los orígenes que nos
que se requiere si nuestro principio fuera van dando vida y eso es responsabilidad
aba r el rezago educa vo. de todos. Concatenando las visiones

60 Rossana Stella PODESTÁ Siri. Delimitación de fronteras territoriales interculturales a par r de...
territoriales intra y extraterritoriales. De 3 Proceso profesional, investigador:
esta manera nos encaminados a co-cons- actor y aprendiz permanente
truir un esfuerzo educa vo compar do.
De acuerdo a las necesidades planteadas Nuestro trabajo de campo nos va
por los mismos sujetos para proteger y enseñando el camino en el caso de los
empoderar su territorio. cien ficos sociales que nos dedicamos
A esta lectura analí ca le siguen a educación8. Esa es nuestra primera
otras que occidente no conoce, las in- gran huella y el termómetro de nuestra
traterritoriales que son ancestrales y aser vidad. La interacción permanente
que enen una lógica poco descubierta con la gente y el conocimiento de sus
para la cultura nacional. De las cuales territorios afianza nuestra vocación. Pero
son poseedoras los pueblos indígenas también nos va marcando nuestras limi-
(LANDABURU, 1998; BERTELY, 2008; taciones, hasta donde podemos avanzar
GIMÉNEZ, 1996). Ellos son alfabetos y donde debemos parar. Es la misma
territoriales7 cada espacio de su hábitat gente la que nos da la oportunidad de
es reconocido, nombrado, adorado, ve- conocer y esto depende de nuestro com-
nerado, etc. El trabajo forma vo descrito portamiento social, de nuestra entrega,
a con nuación, tanto con niños como de nuestra empa a, de nuestro amor
con maestros despliega el territorio hacia los otros.
visto, vivido y sen do por los mismos Así como mi principio fue conocer
habitantes. sus prác cas de vida relacionadas con el
Si no sumamos y entrelazamos am- uso de la lengua indígena, posteriormen-
bas miradas, indígena y no indígenas no te me di cuenta que debía integrarlos,
estamos en condiciones de co-construir dándoles un papel protagónico para
escuelas de pensamiento interculturales. avanzar juntos en un crecimiento y cono-
El aporte central de este ar culo radica cimiento intercultural. Sin ellos me sen-
en delinear acciones principales para su a dividida. Además, como ciudadanos
edificación. y poseedores de una cultura milenaria
no podían quedar como espectadores
de mis propias interrogantes (PODESTÁ,
2007). ¿Y cuáles eran sus propios inte-
reses?
Este trabajo que inicié, hace más
7
Por ello niños indígenas a edades muy tempra- de dos décadas, con niños me permi ó
nas pueden recorrer su territorio sin perderse, par r de sus propias realidades educa-
orientándose cardinalmente (DE LEÓN, 2005).
Sus etapas tempranas de desarrollo manifiestan
8
otras habilidades que niños occidentales no Por supuesto que también lo es para otras
poseen, porque cada cultura ene una relación disciplinas pero me remito a educación por ser
estrecha con el hábitat. a la que me he dedicado.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 55-70, jan./jun. 2014. 61


vas (PODESTÁ, 2000). Puse en prác ca 4 Otras maneras de educar (nos)
el afianzamiento de su lectoescritura en
su lengua y en español pero a par r de La confluencia de dis ntas expe-
un diálogo interindígena donde la fuente riencias en el campo de la intercultura-
era el conocimiento de su propio terri- lidad da pie a la formación de un equipo
torio. ¿Quién no conoce el lugar donde de trabajo en Chiapas, que fue crecien-
nació para contar cómo es? (PODESTÁ; do, desde hace más de una década (BER-
NIÑAS; NIÑOS NAHUAS, 2002, 2011). TELY, 2009a). Las expecta vas de varios
Este es el espacio afec vo más impor- confluyeron hacia una misma causa. La
tante de nuestra vida. Con él vamos más importante, dar respuesta a co-
forjando lo que somos. munidades que querían una educación
Este preámbulo en mi carrera por diferente (BERTELY, 2004; SARTORELLO,
más de diez años fue dándome herra- 2013) y atendiendo las necesidades de
mientas para ir abriendo mi concepción sus pueblos (BERTELY, 2009) tal y como lo
y permi rme experiencias educa vas marca el Convenio 169 de la OIT. Así un
donde somos muchos actores lo que grupo de maestros nombrados por sus
estamos involucrados (PODESTÁ, 2009). propias comunidades dieron inicio a este
Pueblos dis ntos que convergemos en trabajo; cons tuidos en la Nueva Unión
un mismo lugar para hacer una educaci- de Maestros para la Nueva Educación
ón diferente. Una educación que no sólo de México (UNEM), e independientes se
sea unidireccional sino pluridireccional y sumaron a armar un equipo que invitó a
colegiada. Una educación cambiante y Jorge Gasché, inves gador suizo-francés
adecuada a las necesidades de los ciu- que había trabajado con pueblos huito-
dadanos, que tenga movimiento al igual tos y boras en la Amazonía peruana; una
que nuestras realidades. Pero lograr pe ción similar a dicho inves gador fue
estos cambios y esta sintonía significa realizada, años antes, por la Asociación
romper con viejos conceptos aprendi- Interétnica de Desarrollo de la Selva
dos en la misma universidad (PODESTÁ, Peruana (AIDESEP), para pensar juntos
2012). Estar atentos y sensibles a las en una educación que respondiera a
realidades de los diferentes pueblos que las necesidades de sus pueblos pero
conforman este mundo. No basta con es- par endo del bagaje cultural milenario
tar cer ficado, sino la sensibilidad socio- del cual eran portadores. Edificar una es-
polí ca juega un papel preponderante cuela para el arraigo (BERTELY, 2009) que
para poder crear una nueva escuela de tuviera en la base el sustento de los co-
pensamiento9. nocimientos indígenas prac cados hasta

A los que más nos cuesta todo este trabajo es


9
Los egos deben hacerse a un lado y trabajar con a quienes fuimos formados en occidente (PO-
la esencia social y afec va de nosotros mismos. DESTÁ, 2013).

62 Rossana Stella PODESTÁ Siri. Delimitación de fronteras territoriales interculturales a par r de...
ahora y que ar culara los conocimientos formación de maestros indígenas dentro
occidentales-escolares. Es decir formar a de las universidades. Nos planteamos
los jóvenes maestros comunitarios para impulsarlo en la Universidad Pedagógica
esta tarea. La experiencia de Gasché Nacional 21110, que está en la ciudad
en la Amazonía durante más de treinta de Puebla y a la que concurren innume-
años ha posibilitado en su persona no rables jóvenes indígenas de distintos
sólo estar formado en occidente sino pueblos que quieren ser profesores.
haber cursado la segunda universidad Surgieron muchas interrogantes pero
bajo los aprendizajes de estas dos etnias una de ellas era re-plantearnos:
con las que aprendió una parte de sus
mundos. De todas maneras el intenso 5 ¿Desde dónde y cómo trabaja occi-
proceso de interaprendizaje le permi ó dente en la formación de los futuros
una intercomprensión (GASCHÉ, 2008a) maestros indoamericanos?
que muchos intelectuales, por más que
hayamos estudiado en célebres ins tu- La realidad que tenemos en la
ciones y realizado trabajo de campo no mayoría de universidades mexicanas
hemos aún alcanzado. Creo que hay un para la formación de maestros indíge-
tema interesante a discu r en nuestras nas está relacionada con la formación
universidades y es la formación experi- occidental que tenemos instaurada. El
mental que hemos logrado pero, en cada paradigma angelical (GASCHÉ, 2008)
uno de nuestros interiores, sabemos y que pretende discursivamente forjar una
deberíamos poner a debate los alcances educación intercultural basada en el diá-
y limitaciones que occidente esconde. En logo y el respeto (SCHMELKES, 2005) sin
un mundo intercultural la complejidad analizar las razones en las que se instaura
de los aprendizajes y las maneras de el conflicto intercultural. Por ejemplo:
educar no podrían ser posibles sin una • Nuestra lógica nos parece natural y la
gran apertura polí ca-é ca-social que única universalmente valedera.
acogiera la inmensa riqueza que nos • Di cilmente imaginamos, comprende-
cons tuye. La experiencia de trabajo mos o nos abrimos a otras formas de
comenzó a tener sus frutos y se forma- racionalidad.
ron los primeros profesores indígenas • Creamos inter-comprensión entre
que sus comunidades habían solicitado. nosotros mirando sus mundos desde
Estos nuevos profesores pero también fuera.
campesinos fueron modelando un tra- Y de esta manera se forma a miles
bajo educa vo que permi a establecer de jóvenes que proceden de culturas
una escuela para el arraigo comunitario. muy diferentes con nuestra propia óp ca
La gran pregunta que nos hacíamos es si
sería posible que un modelo con estos 10
Simultáneamente se dio en otras UPNs del
resultados se pudiera retomar para la país, Chiapas, Oaxaca. Michoacán y Yucatán.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 55-70, jan./jun. 2014. 63


de ver y pensar el mundo, arrasando con de sus vidas y la de sus ancestros. Por
sus cosmovisiones. Creando un conflicto ello, las historias personales han tenido
de saberes y repi endo teorías genera- un peso fundamental para ir hilando
das desde fuera de sus culturas, lo que reflexivamente y desde sus propias in-
imposibilita una verdadera apropiación terpretaciones (TEXIS, E., 2009; TEXIS,
en su formación. Miran como extraños C., 2010; GÁMEZ, 2010; HERNÁNDEZ,
sus realidades en vez de verlas con sus 2010). El concepto de ambivalencia
propias lógicas de concebir el mundo. juega un papel preponderante al inicio
En esto ubicamos la escuela de pensa- de su formación (GASCHÉ, 2008). Este
miento de la que hablamos. No podemos trabajo analítico significa un proceso
seguir colonizando sus mentes (PODES- personal que abarca su historia de vida.
TÁ, 2013), sino tenemos que hacer un Ningún maestro-alumno ambivalente
esfuerzo para poner en prác ca sus for- puede ser maestro indígena en estricto
mas de inves gar, de querer la educación sentido. Desmenuzar su historia, en-
poniendo delante las necesidades de los contrar los caminos tomados para dejar
habitantes de estos territorios. de ser indígena nos y les ocupa unos
Los diplomados “Explicitación y cuantos meses. Es importante destacar
sistematización de conocimientos in- que esta primera parte está a cargo de
dígenas” y “Elaboración de materiales una “pareja pedagógica” donde uno de
educa vos interculturales y bilingües” los maestros es indígena y el otro no lo
fueron el punto de arranque que pre- es pero ambos están formados en inter-
tendía poner en prác ca esta formación culturalidad11 (PODESTÁ, 2012, 2013).
alterna va que revierte la óp ca occi- Debemos comentar que la mayoría
dental (ARCOS et al., 2012). Sin embargo, de ellos reconoce el papel de la educaci-
la hemos ampliado una vez concluido ón básica en esta re-conversión de sus vi-
estos diplomados que han llevado apro- das, en este alejamiento de sus familias,
ximadamente un periodo de dos años al en este romper con su comunidad para
interior de una Licenciatura denominada
en Educación pre-escolar y primaria para
11
el medio indígena (LEPEPMI, 1990). Si Quien escribe no es indígena pero estoy es-
pecializada en sociolingüís ca y antropología
bien esta licenciatura está diseñada
educa va. Y mi pareja es el maestro Anastacio Ca-
desde una óp ca angelical y discursiva, brera, filósofo náhuatl. Trabajar en equipo en un
al incorporar los diplomados se trabaja mismo salón ha sido una experiencia de apertura
con otro paradigma intercultural (GUAR- de ambos. Los alumnos al mismo empo enen
NEROS, 2011; HERNÁNDEZ, 2014) que la posibilidad de tener de uno y de otro aspec-
privilegia el análisis del conflicto en los tos dis ntos sobre la interculturalidad de la que
somos producto. Esto ayuda al posicionamiento
que han vivido por siglos sus culturas. De propio de ellos y de nosotros. Es una sinergia
esta manera la teoría revisada implica la compleja. Este sólo es uno de los diálogos de su
profundización y análisis permanente formación. El otro se da indígenas con indígenas.

64 Rossana Stella PODESTÁ Siri. Delimitación de fronteras territoriales interculturales a par r de...
ser diferente con el fin de “progresar”, de con sus propios lentes no con lentes de
“civilizarse”, de “volverse gente de razón” fuera. Por ello, uno de los grandes retos
como occidente lo repite una y otra vez. de esta escuela de pensamiento es for-
Lo importante es la toma de conciencia mar jóvenes maestros que hacen inves-
por parte de ellos sobre esta terrible re- gación haciendo, no tomando notas.
alidad generada por la propia ins tución Sino par cipando como parte del pueblo
escolar. Con esta re-conciencia miran al que por cierto le deben la vida. Estos
nuevamente sus orígenes y los vuelven procesos de re-encuentro han dado
a tomar con mucha más fuerza porque trabajos escritos por indígenas desde su
empiezan a re-conocer los valores posi- propia lógica y concepción (ROSAS, 2014;
vos de sus propias culturas. Que éstas GÁMEZ, 2010; TEXIS, 2009)13.
también enen conocimientos y que son Se han re-encontrado con sus
milenarios, al igual que están los cono- infancias, con sus familias y han profun-
dizado lo que tenían trunco, el cono-
cimientos escolares u occidentales. Ese
cimiento ancestral que aún portan los
re-descubrir es parte del largo trabajo
pueblos en miles de ac vidades socio-
de inves gación que ellos comienzan a
económicas (GALLEGOS, 2008) que dan
desarrollar con sus propios pueblos. Y la
cuerpo a sus culturas y muestran el cómo
explicitación de sus conocimientos no la hacer la educación intercultural posible
hacen con herramientas occidentales de (AGUILAR et al., 2012).
la academia, tal y como se especifica en
la mayoría de las currículas de formación 6 A modo de conclusiones
de maestros. La formación la logran
mediante el diálogo con otros maestros Simplemente quise compar r una
indígenas12. Con ellos ven sus realidades, experiencia en proceso donde quienes
formamos esta escuela de pensamiento
estamos abiertos a enriquecernos sobre
12
Uno de los aspectos a destacar es que el otras maneras de diseñar y llevar a cabo
aprendizaje de cómo explicitar los conocimientos la formación de maestros. La apertura es
indígenas de sus culturas la aprenden con pro-
fesores no cer ficados de Chiapas que como se
ha mencionado fueron los pioneros en México. de colonización de nuestras universidades. Pare-
La prác ca adquirida, el mandato de sus comu- ce fácil pero la apertura debe ser significa va de
nidades los coloca en un lugar irremplazable, parte de quienes somos occidentales y tenemos
inamovible para esta etapa. Ese diálogo entre la creencia de que perdemos terreno.
13
iguales no lo puede sus tuir un inves gador Por el momento contamos con trece propues-
formado en la academia como es mi caso. Mis tas pedagógicas que manifiestan el proceso edu-
palabras, mi formación y mi óp ca no logra lo ca vo de-colonizador alcanzado. Se encuentran
que ellos logran. Esto abre una línea de inves - en los archivos de la biblioteca de la Universidad
gación, desde los propios pueblos indígenas, que Pedagógica Nacional-211 y estamos armando
son las metodologías na vas. Poner y permi r el una colección de autoría magisterial que el
desarrollo de las mismas resquebraja el proceso próximo año tendremos publicada.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 55-70, jan./jun. 2014. 65


de ambos lados, y sólo la horizontalidad pendiendo de los momentos. Hay cosas
de relaciones permite alcanzarla. La for- que de una vez por todas debemos dejar
tuna de discu r juntos, de tomar como hacer a otros porque nosotros tenemos
base nuestra propia historia y reflexionar serias limitaciones expresadas por las
a par r de ella nos abre un nuevo hori- mismas culturas que hemos decidido
zonte. El nivel reflexivo nuestro y de los acompañar. Dis ntos materiales edu-
maestros alumnos manifiesta el camino ca vos creados por ellos como son el
emprendido de mutuo crecimiento. El calendario socionatural y las tarjetas de
re-posicionamiento es permanente, los inter-autoaprendizaje son una muestra
diálogos entre actores son cruciales de- fiel de lo alcanzado.

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Recebido em março de 2013


Aprovado para publicação em abril de 2014

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 55-70, jan./jun. 2014. 69


Desarrollo educaƟvo intercultural: fronteras jurídicas
e insƟtucionales permeadas, pero transiciones
etnoculturales y sociolingüísƟcas en juego social
Intercultural educaƟonal development: legal and
insƟtuƟonal permeated borders but ethnocultural
and socio transiƟons in social game
Héctor Muñoz Cruz*
* Sociolingüista y educador chileno. Doctorado en
lingüís ca hispánica por El Colegio de México. Estudios
de Licenciatura en castellano, Universidad del Norte,
Antofagasta, Chile. Profesor-inves gador en sociolin-
güís ca, polí cas del lenguaje y educación bilingüe en
regiones indoamericanas, Departamento de Filoso a,
Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa,
México, DF. E-mail: hmunoz2@prodigy.net.mx

Resumen
Las regulaciones jurídicas incluyentes y de pluralismo han creado mejores condiciones sociales e
ins tucionales para instalar plenamente la interculturalidad en las escuelas actuales. Sin embargo,
las transiciones etnoculturales y sociolingüís cas no operan con las reglas legales. Uno de los retos
fundamentales de la educación intercultural es comprender adecuadamente las dinámicas del
bilingüismo social, de la comunicación intercultural de facto y las innovadoras configuraciones de
las iden dades.
Palabras clave
Interculturalidad en educación escolar. Estudiantes indígenas. Transiciones socioculturales y socio-
lingüís cas.

Abstract
The inclusive pluralism and legal regula ons have created be er social and ins tu onal condi ons
to fully install mul culturalism in today’s schools. However, ethno-cultural and socio-transi ons do
not operate with the legal rules. One of the fundamental challenges of intercultural educa on is
properly understand the dynamics of social bilingualism, intercultural communica on de facto and
innova ve configura ons of iden es.
Key words
Intercultural educa on school. Indian students. Cultural transi ons and sociolinguis c.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 71-88, jan./jun. 2014
Prolegómeno tos, cabe preguntar qué ha acontecido en
poco más de cuatro décadas con las fron-
Desde hace décadas se dice que ha- teras de exclusión y discriminación en las
brá educación bilingüe en México, sociedades la noamericanas. También
como un reflejo de la diversidad preguntar ¿de qué están hechas las fron-
lingüís ca y cultural del país, pero teras etnoculturales y lingüís cas que
todo eso ha sido “un cuento” […]
persisten aún con ma ces diferenciados
Hasta ahora a los niños indígenas se
en la inmensa mayoría de las interrela-
les había enseñado sólo el castella-
no y una vez aprendido se mandaba ciones entre comunidades y lenguaje, a
al cuerno a sus lenguas maternas pesar de los notables cambios jurídicos
(LEÓN PORTILLA, 2007). e ins tucionales contemporáneos? Al
abrigo amplio de estas interrogantes,
En ámbitos de la antropología la- me propongo en este trabajo esbozar
noamericana, se conciben la Primera brevemente el postulado de que la per-
declaración de Barbados: por la libera- sistencia de las fronteras ene relación
ción del Indígena (enero de 1971) y la con aspectos sustan vos del bilingüismo
creación del Consejo Mundial de Pueblos social, de los intercambios comunica -
Indígenas – expresión de la emergencia vos interculturales y de las innovadoras
contemporánea de los movimientos indí- reconfiguraciones de iden dades, que
genas por la autodeterminación – como no hemos conseguido comprender y
eventos de viraje radical para pensar menos introducir coherentemente en un
la situación de los pueblos indoameri- desarrollo escolar de la interculturalidad
canos, desde perspec vas an colonia- proposi va e incluyente.
listas, no indigenistas y reivindica vas Hay que reiterarlo. Se están trans-
(ARREGI ORUE, 2014). formando las interrelaciones entre los
Esteban Emilio Mosonyi – uno de Estados nacionales y los pueblos indí-
los redactores de la mencionada decla- genas del con nente. Tal vez los cam-
ración y además uno de los primeros bios más importantes se manifiesten
acuñadores de la expresión ‘educación en las regulaciones mul culturales de
intercultural bilingüe’ – plantea su inclusión-participación y la paulatina
convicción de que ambos eventos son sus tución de los parámetros asimilacio-
el punto de par da en América La na nistas y homogeneizadores, en el marco
para instalar la filoso a educa va inter- de odiseas mul culturales plurales que
cultural para niños indígenas como una proclaman los instrumentos jurídicos
alterna va a las tradiciones indigenistas cons tucionales, en un sen do apro-
y castellanizadoras de la educación es- ximado a las propuestas de Kymlicka
colar en comunidades indígenas (1998). (2009) y Levy (2000). Es decir, hay mucha
Sin revisar más a fondo el significa- mayor apertura en los protocolos de
do y el impacto de ambos acontecimien- actuación gubernamental, más subsidios

72 Héctor Muñoz CRUZ. Desarrollo educa vo intercultural: fronteras jurídicas e ins tucionales...
y consultas previas, pero no autonomía tarse al poder y al mercado, y para
ni control comunitario de los recursos moldear los flujos de información
naturales y culturales de los pueblos a su favor. (Pedro Ibarra y Salvador
indígenas. Mar I Puig, en Brysk, 2009, p. 15).
Un soporte estratégico de este Una consecuencia – un tanto pa-
corrimiento ideológico y é co consiste radójica – es que los avances globales
en que los actores polí cos y académi- obtenidos en la con enda global rebasan
cos, aliados de los pueblos indígenas y las acciones de la administración de los
minorías contemporáneas, han u lizado sistemas educacionales y también el
de un modo intensivo y muy eficiente los alcance de los protocolos de actuación
escenarios de la polí ca global – desde de las ins tuciones públicas. En efecto,
Declaraciones y programas de Naciones ciertas prác cas de pluralización y de
Unidas hasta redes sociales en internet e inclusión par cipa va, al parecer, repre-
inicia vas mediá cas – como espacios de sentan exigencias y retos de ingeniería
movilización, financiamiento y ges ón. ciudadana mul cultural y lingüís ca que
Aunque de forma diferenciada y las ins tuciones públicas y privadas no
con logros muy desiguales en cada país, saben cómo introducirlos en el funcio-
la interacción entre representantes de namiento co diano del servicio a los
pueblos indígenas y administradores de usuarios.
ins tuciones globales ha favorecido la Algunas de tales prác cas de plu-
difusión de fuertes impactos é cos y el ralismo e inclusión lingüís cos consisten
logro de mayores subsidios procedentes en acciones de alternancia lingüís ca
de las instancias del poder y la hegemo- y de comunicación intercultural en las
nía capitalista neoliberal. Expresado en ins tuciones oficiales y en muchos con-
términos de Brysk (2009), las dirigencias textos sociales públicos, en medidas de
de los pueblos indígenas han construi- reconocimiento ins tucional de innova-
do interrelaciones con las cabezas del ciones sociolingüís cas innovadoras, en
pueblo global, sobre la base de una acciones de recuperación de prác cas
inédita combinación de la polí ca de etnoculturales en escenarios internos
los derechos, el pluralismo cultural y la y transnacionales de la migración y en
internacionalización. la aceptación del empoderamiento de
ejercicios de consulta y consen miento
Y en base a ello se ha tejido uno
de las comunidades minoritarias y mi-
de los movimientos sociales más
importantes de las úl mas décadas: norizadas sobre los recursos naturales y
el movimiento global por los dere- socioculturales.
chos de los pueblos indígenas. Estos Es importante hacer notar que las
nuevos actores (los movimientos nuevas polí cas públicas y los esfuerzos
indígenas globalizados) han podido institucionales de apertura han acti-
desarrollar estrategias para enfren- vado transiciones en la perspec va de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 71-88, jan./jun. 2014. 73


los derechos indígenas y el desarrollo güe fueron integradas completamente
ges onario de las comunidades. Estas a la norma vidad, al discurso y a las
transiciones que implican un ‘desplaza- acciones de profesionalización y forma-
miento’ cultural y epistemológico de la ción de las ins tuciones vinculadas con la
sociedad y del sistema educacional hacia educación escolar indígena y otros ciclos
concepciones de inclusión, gestión y educacionales1 , produciendo impactos
vinculación con el desarrollo económico de recreación, modernización, recupera-
y polí co, que no se han traducido aún ción o… de ruptura con las experiencias
en éxitos etnolingüís cos, en el sen do y tradiciones educa vas de los pueblos
propuesto por Fishman e García (2011). andinos, patagónicos, amazónicos, cari-
Adquiere mucho sen do, en con- beños y mesoamericanos.
secuencia, intentar una aplicación A par r de las materializaciones
educacional del postulado de B. Keeney que muestra el proceso de intercultu-
(1988), que define la é ca y la esté ca de ralización de ins tuciones públicas, se
los cambios globales como un asunto de puede afirmar que las administraciones
la mayor importancia para las sociedades gubernamentales y educacionales se
contemporáneas. sumaron y se comprome eron con los
La implicación de este postulado objetivos sociopolíticos occidentales
es que se requiere de un diseño de y globales, de atención tutelar a los
pluralismo armónico, de concepciones pueblos minoritarios y minorizados
y prác cas sociales de igual dignidad (PANARARI; MOTTA, 2012).
con acciones de integración de las di- Sin embargo, con el mencionado
ferencias, sobre la base de inéditas e sustento sociopolí co y é co, compar-
innovadoras negociaciones entre los do por los Estados nacionales, no ha
actores de la institucionalización del sido posible aún construir y poner en
mul culturalismo en las sociedades y funcionamiento un sistema diferenciado
en los Estados. Estos fenómenos con- de educación intercultural bilingüe en
temporáneos cons tuyen el marco de todas y cada una de las comunidades in-
referencia para la discusión sobre la edu- dígenas de los países la noamericanos.
cación intercultural que deseo proponer La implementación escolar de la intercul-
turalidad resulta todavía un obje vo no
en esta ocasión.
sólo remoto, sino que poco consolidado
en lo que respecta a la definición y ca-
Trayectoria de la interculturalidad
racterís cas de este po de educación.
como doctrina escolar oficial
Esteban E. Mosonyi (2004) descri-
En el rango aproximado de los be muy bien la situación:
úl mos quince años, la polí ca de inter-
culturalidad para todos y la propuesta 1
Que incluyen la educación básica, la educación
escolar de educación intercultural bilin- media y la educación superior.

74 Héctor Muñoz CRUZ. Desarrollo educa vo intercultural: fronteras jurídicas e ins tucionales...
En efecto, en las numerosas confe- innegables los cambios favorables
rencias de expertos e igualmente en producidos en el nivel informa vo,
las reuniones de los movimientos conciencia étnica y voluntad de ac-
indígenas, se reitera habitualmente tuar de los docentes y de las propias
un consenso poco menos que indis- comunidades. De todas maneras,
cu do, según el cual la Educación el desfase entre teoría y praxis per-
Intercultural Bilingüe respeta las siste todavía y es necesario trazar
iden dades étnicas y lingüís cas, estrategias para su superación a
u liza los idiomas indígenas en el mediano plazo, ya que en la cues -
proceso de enseñanza–aprendizaje ón indígena no podemos ser largo-
aproximadamente durante la mi- placistas (MOSONYI, 2004, p. 2-3).
tad del espacio- empo educa vo,
mientras que las formas y conte- Algo parecido se pudo observar en
nidos educa vos no autóctonos se Bolivia en 1994, con mo vo del lanza-
introducen en forma democrá ca, miento de la reforma educa va nacional
horizontal, no compulsiva y or- de vocación interculturalista (MUÑOZ,
gánicamente ar culada con cada 1997). Se anota en el informe técnico de
manifestación del acervo educa vo la evaluación del Proyecto de Educación
aborigen. Intercultural Bilingüe, bajo el patrocinio
Todo esto suena hermosísimo, pero del Ministerio de Educación y Cultura de
en la prác ca se dan todavía mul -
la época y de Oficina Bolivia de UNICEF:
tud de escollos de muy di cil supe-
ración, especialmente en ambientes En esta nación, como en tantas
donde los derechos indígenas sólo otras a nivel mundial, se ha depo-
se cumplen de manera aleatoria. sitado una confianza ilimitada en
Cuando descendemos al terreno este principio fundamental de la
de lo real, nos encontramos con teoría contemporánea de la edu-
la eterna letanía de que muchos cación bilingüe. Sin embargo, este
de los maestros no son indígenas, principio del desarrollo lingüísti-
que sí son indígenas no están bien co y comunicativo no puede ser
preparados o suficientemente mo- implantado directamente en los
vados, que algunas comunidades alumnos indígenas. Es más, contra
no defienden la cultura propia, que lo previsto, la interculturalidad y el
la infraestructura y los materiales plurilingüismo social propios de la
presentan carencias impresionan- interdependencia planetaria actual
tes, que la supervisión obstaculiza y otros procesos de naturaleza no-
el desempeño de los maestros y lingüís ca de la sociedad boliviana
pugna por desindianizar cualquier parecen producir efectos divergen-
inicia va innovadora. tes, y hasta contrarios, en el desar-
Los diagnós cos que se han elabo- rollo lingüís co de los alumnos. Por
rado hasta la fecha no presagian un lado, los factores sociales inter-
ningún op mismo, aun cuando son vienen con mayor fuerza, necesidad

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 71-88, jan./jun. 2014. 75


y mo vación que el sistema escolar tercultural a todos los ciclos educa vos
bilingüe en el desarrollo de las del sistema nacional y iii) en los niveles
habilidades comunica vas de los estatales, regionales y municipales, crear
niños, especialmente en las regio- mecanismos par cipa vos de promoci-
nes dominadas por el bilingüismo ón y defensa de los derechos lingüís cos
funcional (zona ribereña del Lago
y culturales. Asimismo, se valora el papel
Ti caca y zona fronteriza de Oruro
con Chile). Por otro, factores socia-
que enen los educadores intercultura-
les asociadas a la marginalidad y les en el desarrollo convergente de la
rela vo aislamiento de sociedades educación escolar, para lo cual se espera
serranas y rurales, respecto del pro- una nueva profesionalización intercultu-
ceso de globalización, dificultan de ral (MUÑOZ, 2014).
un modo muy severo la exposición Como en todas las la tudes del
de los alumnos al uso co diano del planeta, las presiones que provienen del
castellano (caso de las regiones mul culturalismo ins tucional y, muy
quechuas serranas de Chuquisaca y especialmente, del multiculturalismo
Cochabamba; también de la región de facto que moldea las interrelaciones
guaraní del Izozog, Santa Cruz), tor- de contacto, contagio y dominio entre
nando utópico el cumplimiento del
poblaciones etnoculturamente diversas
plazo previsto para la transferencia
lingüís ca en el tercer grado de la
que par cipan en procesos globales de
educación primaria (MUÑOZ, 1997, migración, comercio, comunicación,
p. 11 y ss). información, tecnología y arte. Históri-
camente, el resultado más frecuente de
En realidad, este resultado es mu- las interrelaciones en el espacio mul -
cho más frecuente de lo que pudiéramos cultural ha sido la hegemonía cultural y
esperar, pero en los documentos de lingüís ca que, en México, se expresa en
cualquier reforma educa va bilingüe, los las polarizaciones entre cultura nacional
buenos deseos suplantan a la realidad mexicana y culturas extranjeras, pos-
sociolingüís ca y sociocultural. tergando a un nivel subalterno la inter-
En un ejercicio reciente de con- relación entre cultura hispanohablante
sulta sobre educación a indígenas me- mexicana y las culturas indomexicanas.
xicanos se respaldó el cambio de la Ley A través de un sondeo muy re-
General de Educación, en lo que respecta ciente, el Ins tuto Nacional de Lenguas
a la educación escolar indígena, espe- Indígenas (2013) ha podido constatar
cialmente en tres aspectos: i) otorgar que las comunidades indígenas actuales
capacidad ges onaria a las comunida- funcionan mediante configuraciones
des indígenas para conducir, planificar sociolingüís cas que abarcan patrones
y evaluar los procesos escolares en sus comunica vos múl ples, con esquemas
localidades; ii) ampliar la aplicación de de bilingüismo principalmente funcional
la filoso a y polí ca de educación in- (oral), con modelos internos de pres gio

76 Héctor Muñoz CRUZ. Desarrollo educa vo intercultural: fronteras jurídicas e ins tucionales...
en discusión entre generaciones adul- impactos de los gobiernos y las ins tu-
tas y jóvenes y con un indesmen ble ciones públicas acerca de las culturas,
proceso de cambio de lengua materna identidades y lenguas minoritarias y
en niños y jóvenes indígenas, aun en minorizadas (WOEHRLING, 2005). En
aquellas regiones que históricamente el fondo, lo que está en juego es la
han mostrado una alta lealtad etnolin- necesidad de que las polí cas globales
güís ca. Estas caracterís cas muestran y gubernamentales identifiquen con
que las comunidades indígenas de habla mayor precisión los fenómenos sociales
han adoptado un diseño de ordena- y económicos que impiden el desarrollo
miento sociocultural y sociolingüís co equita vo y democrá co en las socieda-
muy dis nto a lo que se plantea en la des, lo cual se vincula con metodologías
norma vidad vigente y en los procesos de cambio que involucran a todos los ciu-
reales de educación escolar. dadanos. En este marco, las ins tuciones
En los diferentes escenarios re- públicas enen que aumentar la capaci-
gionales de la experiencia de consulta dad de influir en la transformación de la
en México que se comenta, se expre- sociedad, a par r de generar abundante
saron concepciones y representaciones información y mejor conocimiento para
diversas acerca de lo que se en ende explicar las correlaciones entre los diver-
por educación intercultural bilingüe sos hechos sociales. Y también de gene-
(EIB). Con todo, es muy significativa rar pronós cos sobre las consecuencias
y mayoritaria la preferencia por este que resultarían de tomar determinadas
enfoque educacional, al punto de ser decisiones.
considerada como la mejor alterna va
para favorecer el desarrollo educa vo y Representaciones y materialización de
sociocultural. Una interpretación rápida la interculturalidad escolar
permite señalar que en esta preferencia
subyace la implicación de que los proce- Desde una perspec va materia-
sos educa vos escolares deben contri- lista, la interculturalidad posee una
buir a la supervivencia de las lenguas, ontología múltiple y ambigua en los
las identidades y culturas indígenas, escenarios educacionales indígenas.
complementando poderosamente los Se combina al comienzo con enfoques
procesos domés cos e informales de pluralistas que enen gran influencia en
transmisión intergeneracional en los las metodologías de enseñanza bilingüe
ámbitos familiares y comunales. o plurilingüe que buscan transformar
En el transcurso de la historia bre- las relaciones de iden dad y armonizar
ve de la interculturalidad ins tucional el aprendizaje y uso de lenguas, para
puede observarse una relativamente alcanzar una genuina competencia pluri-
rápida evolución de paradigmas para lingüe (CAVALLI, 2007; CANDELIER et al.,
posicionar las responsabilidades y los 2007; NOGUEROL, 2010). Pero, a la vez,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 71-88, jan./jun. 2014. 77


se convierte en un referente sectorial de sobre la educación intercultural bilingüe’
la respuesta que ofrece el Estado como (KNUUTILA, 2002)3.
polí ca educa va para los estudiantes Las representaciones etnolingüís -
indígenas. También es un componente cas contenidas en las demandas indíge-
de profesionalización de recursos docen- nas actuales han profundizado el disenso
tes y un factor programá co en miles y en los escenarios ins tucionales porque
miles de procesos escolares en contextos implican reconocimiento y par cipación
de población indígena, que hacen lo que ges onaria de los pueblos indígenas en
pueden en esta dirección. el uso y control de los recursos materia-
La ins tucionalización tan sorpren- les, culturales, educa vos y lingüís cos,
dentemente rápida de las propuestas lo que permi ría acrecentar el papel que
interculturales, sin embargo, ha reno- pueden jugar las visiones ‘indígenas’ en
vado y profundizado la brecha histórica, la cons tución plural de la humanidad
el conflicto ideológico, las diferencias mul cultural (FOUCAULT, 1999).
de interpretación/representación entre
las ins tuciones del Estado y las comu- Aportes de la investigación y de evalu-
nidades indígenas sobre los obje vos aciones de proyectos interculturales
e intereses que están en juego con
Bajo el alero antropológico, inves-
esta filosofía educativa (STEVENSON;
tigadores del lenguaje profundizaron
MAR-MOLINERO, 2006) 2 , problema
el “descubrimiento” de la diversidad
que ha impedido la generalización cua-
lingüís ca y cultural en nuestros países,
lita va de la interculturalidad escolar y,
descubrimiento sorprendentemente
par cularmente, la reciprocidad é ca
reciente y fascinante para los ciudada-
en el compromiso con el proyecto in-
nos del mundo mul cultural, que se le
tercultural y plurilingüe de la nación. A
concibe como comodín para sustentar
juzgar por los resultados insuficientes
cualquier modelo de educación bilingüe
que muestra de la educación indígena
intercultural.
escolar en el sen do de esta discusión,
La investigación referida a los
se puede afirmar que las concepciones y
procesos de enseñanza y aprendizaje en
las acciones ins tucionales no generaron
resultados confiables ni certeros y que
existe un ‘conflicto de representaciones 3
Las pretensiones de representación confia-
ble, infalible o, dicho más enfá camente, de
representación legí ma acerca del papel de las
2
Una consecuencia queda clara al menos: el concepciones y de las prác cas educa vas, de
pluralismo étnico y la diversidad lingüís ca y las comunidades y de los actores bilingües en la
cultural son realidades innatas y sicas de la edificación y éxito de la educación intercultural
realidad, mientras que los compromisos con configuran una interacción histórica de desen-
polí cas y proyectos obedecen a razones é cas tendimiento entre Estado, ins tuciones públicas
y esté cas (LEVY, 2000). y pueblos indígenas.

78 Héctor Muñoz CRUZ. Desarrollo educa vo intercultural: fronteras jurídicas e ins tucionales...
contextos interculturales, sin embargo, de negros, hispanos, asiá cos), con sus
poco ha contribuido a conocer y, al me- normas lingüís cas y comunica vas lo-
nos, imaginar cómo deben concebirse cales, es gma zadas socialmente como
las intervenciones pedagógicas cultural- “sub-estándares”, pero cons tu vas de
mente per nentes. Las inves gaciones redes sociales muy densas y cohesionan-
de sociolingüís ca educacional se han tes, generadoras de una fuerte iden dad
concentrado tan sólo en algunas re- (MILROY, 1980).
giones indígenas del país; no permiten En suma, las inves gaciones antro-
establecer una visión del estado que pológicas, educa vas y sociolingüís cas
guarda el problema en el conjunto nacio- permiten establecer dos líneas constan-
nal. Sigue predominando el énfasis en la tes como soportes del desarrollo edu-
normalización de lenguas y alfabetos, en ca vo: por una parte, una concepción
desmedro de las inves gaciones evalu- de la etnicidad como una modalidad
a vas, cualita vas y del seguimiento de de reproducción cultural (BERNSTEIN,
experiencias. 1971) de comunidades lingüís cas no
La gran mayoría de las situacio- extensas (regionales). Y por otra, el reco-
nes sociolingüís cas en estudio no se nocimiento de que nuestros países son
perfilan únicamente por mo vaciones mul culturales y mul étnicos. Por tanto,
académicas, sino que surgen principal- estas dos condiciones debieran perfilar
mente de contextos reales de conflictos polí cas públicas que universalicen la
interculturales en proceso. De algún interculturalidad como rasgo y forma del
modo, en todos los casos se observa sistema educa vo nacional, ins tucional
la tendencia dominante en la sociedad y que se u licen para la configuración
nacional, que consiste en la asimilación democrática, justa y armónica de las
o integración de las minorías étnicas al relaciones mul culturales.
nacionalismo hispanohablante o lusita- Es de imaginar la inmensa riqueza
noparlante; así se refuerza uno de los del conocimiento acumulado en las di-
obje vos globales de la estructura del versas ciencias sobre las culturas origina-
poder nacional. Pero, al mismo empo, rias de América. Esto hace surgir la inter-
se observa una rela va sensibilización y rogante sobre el po de relaciones que
aceptación de la heterogeneidad étnica existen entre la ciencia con los diversos
del país, lo que explica parcialmente el niveles del desarrollo educa vo. ¿Logran
crecimiento moderado de estudios y permear los discursos y prác cas de los
acciones sobre el ámbito de la etnicidad. sectores que construyen la polí ca y de
En este planteamiento se susten- los que componen el sistema educacio-
taba, por los años sesenta, la famosa nal? Tal vez las ins tuciones formadoras
“hipótesis de la diferencia”, que admi a sean las que más aprovechan los aportes
la existencia de microcomunidades al in- cien ficos, aunque de una manera toda-
terior de las megalópolis (barrios, ghetos vía no metódica ni exhaus va.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 71-88, jan./jun. 2014. 79


En resumen, las diferentes inves- más coherentes con una concepción
gaciones y evaluaciones nos hacen ver de funcionamiento intercultural y pluri-
que la prác ca misma de la educación lingüís co de las ins tuciones públicas
intercultural bilingüe ha ido perfilando (MUÑOZ, 2014, p. 321).
una serie de campos de problemas afines.
Hasta la fecha, las bases teóricas y las La construcción escolar de la intercul-
implicaciones de los dis ntos modelos de turalidad
evaluación no han sido suficientemente
sistema zadas, cri cadas y ajustadas. Mo- Un conjunto de fenómenos es-
delos tales como el de calidad educa va, tratégicos están asociados a la relación
de equidad, de per nencia cons tuyen interculturalidad-educación. Estos fe-
ejes transversales que aglu nan de un nómenos generan visiones y prác cas
modo par cular los dis ntos indicadores acerca de los procesos intergrupales e
y requieren de un análisis mucho más interculturales de cons tución, diferen-
cuidadoso y profundo. La sugerencia de ciación e integración de las sociedades
Fishman (1989) en torno al impacto de contemporáneas, en los cuales iden dad
estos esfuerzos en el desarrollo de teorías y etnicidad se encuentran ín mamente
relevantes es plenamente vigente. relacionados con la cultura.
Frente al panorama presentado Para acceder al sen do profundo
arriba, cabe establecer que – al menos, de los discursos acerca de la mul cul-
en México –, en el curso de la úl ma dé- turalidad e interculturalidad y a la vez
cada, entre una veintena de eventos te- establecer la coherencia de las prác cas
má camente diversos, se intensifica los educa vas es necesario generar un en-
ejercicios por edificar una glotopolí ca tendimiento entre los diversos actores,
ins tucional asociada a prác cas de con- desde una perspec va pedagógica.
sulta y consen miento con comunidades Propongo el siguiente repertorio
etnolingüís cas, con el fin de incrustar inicial.
el carácter par cipa vo y ges onario El quiebre de la ecuación déficit =
en políticas educativas diferenciales, diferencia. La histórica controversia en-
compa bles con la diversidad lingüís ca tre las hipótesis del déficit y de la diferen-
y cultural de estudiantes indígenas. Se cia ha dejado marca en las definiciones
intenta de este modo contrarrestar efec- de los desempeños escolares. En efecto,
tos del pluralismo cultural hegemónico y las reivindicaciones del mul culturalis-
de las relaciones macrosociolingüís cas mo entran al sistema educa vo público
diglósicas, regulando las trasposiciones a través de la inacabable discusión en
polí cas, comunica vas, culturales, edu- torno al rendimiento y éxito escolar de
ca vas y didác cas. Con impactos poco los niños provenientes de “minorías”,
visibles todavía, comienzan a promover- sean étnicas, culturales, religiosas, etc.
se proyectos y acciones par cipa vas, En la percepción de muchos educadores,

80 Héctor Muñoz CRUZ. Desarrollo educa vo intercultural: fronteras jurídicas e ins tucionales...
pedagogos y polí cos encargados de las can también la estructura de las desi-
ins tuciones escolares, el fracaso esco- gualdades económicas así como el po
lar refleja un “impedimento” o “déficit” de estra ficación social vigentes, que se
distintivo que a menudo se tiende a desenvuelven en un entorno dinámico
equiparar con la “pertenencia étnica o y heterogéneo. De ello dependerá el
la condición de inmigrante”. estatus que posee el grupo étnico en la
Percepción de la educación escolar sociedad mayoritaria y su capacidad de
desde la pobreza y desigualdad. Se ha su- compe r por los recursos. De este modo,
brayado con insistencia que las prác cas la etnicidad actúa como un mecanismo
educa vas y de socialización reflejan y de inclusión y exclusión de grupos so-
refuerzan las desigualdades propias del ciales.
sistema de clases. Esta acusación adquie- El replanteamiento de la cultura
re tonos más graves cuando se atribuye propia. El análisis de la evolución del
a las prác cas educa vas, dentro y fuera mul culturalismo desde sus orígenes
de la escuela, una profundización de la como un conjunto de movimientos
distribución desigual no sólo del cono- sociales hasta su institucionalización
cimiento, sino también de la capacidad como una polí ca de reconocimiento
de sacar un mejor provecho del mismo de la diferencia y de acción afirma va
(BRUNER, 1995). ha demostrado cómo el concepto o, por
Parece oportuno preguntarnos de lo menos, la imagen de lo cultural y lo
qué modo los patrones de conducta de iden tario se han ido convir endo en
los más desfavorecidos se transmiten a armas del debate intelectual y polí co.
través de la familia dando origen a formas La discusión teórica acerca de la
picas de los pobres para enfrentar la interculturalidad así como de los “pro-
vida. De hecho, la pobreza altera aspectos blemas” que ésta desencadena en la
de la universalidad, por un lado, y de la prác ca educa va a menudo ha girado
diversidad cultural, los cuales suelen girar en torno al carácter esencializante del
en torno al intercambio recíproco de los concepto de cultura. Cabe preguntar-
sistemas simbólico, afilia vo y económi- nos si las distintas culturas humanas
co. Alterar la par cipación humana en cuyas caracterís cas e interrelaciones
cualquiera de estos sistemas equivale a se busca definir o en las que se pre-
forzar un cambio en la forma peculiar en tende intervenir pedagógicamente
que el hombre realiza sus come dos en ¿existen como entidades inmutables
la vida. Aquí se aprecia la importancia de en su esencia, o son constructos hu-
la pobreza, ya que afecta la estructura manos, históricos y por tanto sujetos a
familiar, al propio sen do simbólico del cambio? Si reafirmamos el interés por
valor, al sen miento personal de control. establecer bases mul culturales crí cas
De lo anterior se deriva que los en la educación, resulta central asumir
procesos de iden ficación étnica impli- que las tradiciones no “existen” por sí

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 71-88, jan./jun. 2014. 81


solas ni independientemente de lo que a otros grupos con los cuales existen
pensamos y hacemos, se reinventan día interacciones, son definidos por sus
a día por nuestra dedicación, nuestra miembros como rasgos dis n vos de las
memoria y visión selectiva y nuestro culturas que interactúan y que se suelen
comportamiento. Las autenticidades presentar con un lenguaje biologizante,
culturales, por tanto, se postulan; y el por ejemplo recurriendo a terminología
significado de su existencia “real” es que de parentesco y ascendencia (GARCÍA
muchas personas siguen ese postulado CASTAÑO, 1999).
(Cf. DIETZ, 2001, p. 214). Estas fronteras o diferencias étni-
Si las culturas no se definen ni cas dan lugar a una “polí ca étnica”,
dis nguen por diferencias de contenido, donde ciertos grupos dentro de una
sino por sus respec vas formas de orga- sociedad compiten por el poder polí co
nización de las diferencias internas, al o influencia al nivel nacional o local. Y
estudiar fenómenos de interculturalidad cuando se juega a la “polí ca étnica” en
es indispensable analizar la relación que nombre de otros intereses pueden surgir
en estas situaciones se establece entre situaciones graves de conflicto y violen-
las diferencias intraculturales, existentes cia. Quizás la situación más peligrosa
al interior de un grupo y las diferencias surge cuando un determinado grupo
interculturales, las que separan e iden - étnico ocupa el poder al nivel nacional
fican un grupo de otro. Se requiere, por o local, de tal forma que el resto de los
tanto, de un análisis de los discursos y las grupos étnicos de ese país resultan fa-
“polí cas de iden dad” que intercultu- vorecidos o discriminados. Cuando esto
ralizan, a la vez que intraculturalizan, las ocurre, los diferentes grupos étnicos y
prác cas de los miembros de cada uno culturales tratan de negociar para que
de los grupos que componen la sociedad se les hagan nuevas concesiones polí-
contemporánea internas (García Castaño cas y/o se restauren ventajas que han
1999). perdido con la nueva situación. Lo que
Pedagogización de lo étnico. Étnico tenemos entonces es un fenómeno de
y etnicidad son términos sencillos y poli zación de la cultura y un proceso
factuales usados para describir las ca- cumula vo que refuerza el separa smo
racterís cas culturales dis n vas de un étnico (UNESCO, 1997, p.31).
grupo par cular. Sin embargo, lamenta- Al igual que el grupo étnico, la na-
blemente estos términos son frecuente ción tampoco es una esencia primordial,
- y equivocadamente- usados para acen- sino un constructo del nacionalismo, de
tuar en lugar de celebrar las diferencias la misma forma que el grupo étnico es
entre grupos diferentes (UNESCO, 1997, un producto de la etnicidad. Ambos “ar-
p. 30). La etnicidad es una forma de or- tefactos culturales” cons tuyen “comu-
ganización de los grupos sociales cuyos nidades imaginadas”, cuyos miembros se
mecanismos de delimitación frente agrupan no a par r de una interacción

82 Héctor Muñoz CRUZ. Desarrollo educa vo intercultural: fronteras jurídicas e ins tucionales...
co diana real y observable, sino por una simbólico que posibilita una comunicaci-
iden ficación en el fondo fic cia (DIETZ, ón, un diálogo, una interacción propicia
2001). para el pensamiento, el conocimiento
La invención y posterior estanda- y el desarrollo sicosocial, situado en
rización de las denominadas lenguas las coordenadas de la matriz cultural
nacionales han resultado ser uno de los indígena. Este es el impacto ideológico
mecanismos más eficaces para crear de la sus tución del paradigma de la
integración cultural, es decir, el proceso educación bilingüe bicultural, hasta el
de monolinguización es un fiel indicador momento. Antes, en los años 70, la doc-
del avance del nacionalizante de la no- trina del bilingüismo y biculturalismo en
ción de país. la educación indígena había remplazado
En sus reivindicaciones de un de- la vieja propuesta integracionista de los
recho a la diferencia, tanto las llamadas años 30 llamada “educación bilingüe”.
naciones sin Estado o naciones contra Se trata. Por tanto, de un con nuo que
el Estado como gran parte de los movi- arranca de la concepción lingüís ca de
mientos indígenas confirman la centra- la educación bilingüe, pasa por una fase
lidad estratégica del factor lingüís co. de dualidad lingüís ca en un marco pre-
Curiosamente, tanto el nacionalismo ferentemente monocultural y ende en
nacionalizante como el etnonacionalis- nuestros días a una concepción cultural
mo disidente enen a percibir el pluri- y de derecho (MUÑOZ, 1998; 2001).
lingüismo como un problema. Gracias al multiculturalismo la
La potencia socializadora de la intervención pedagógica asume y reac-
narra va de las iden dades de origen. tualiza la histórica misión de es gma zar
La formulación de la historia cien fica a lo ajeno para integrar y nacionalizar lo
de la educación indígena se sustenta propio.
con frecuencia en el procedimiento de Sobre la base de convergencias
iden ficar rasgos o factores principales globales, cada país ha identificado y
de la etnicidad o indianidad. Ciertamen- construido sus términos específicos de
te, se manejan los elementos ya clásicos oferta de educación indígena, produ-
tales como el lenguaje, la iden dad, la ciéndose un notable enriquecimiento
tradición oral, cosmovisión y cultura ma- de las polí cas y programas educa vos
terial. Las concepciones de la educación concernientes a los pueblos indígenas.
indígena escolarizada muestran dis ntas Nicaragua, por ejemplo, debe consoli-
jerarquizaciones de esos factores de la dar la educación indígena y la profesio-
etnicidad. Por esta razón, la apropiación nalización docente en relación con la
de la propuesta intercultural bilingüe autonomía y desarrollo socioeconómico
pasa por instalar la cultura y la iden dad de la costa caribe. Guatemala hace otro
en el centro de la acción educa va, den- tanto en el contexto de los acuerdos de
tro de la cual el lenguaje es el artefacto paz y de desarrollo sostenible. Colombia

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 71-88, jan./jun. 2014. 83


debate sobre la etnoeducación en co- en los próximos años, con nuarán sus
nexión con el reconocimiento jurídico impactos y no se detendrá con las legis-
cons tucional de la territorialidad de laciones. No obstante, se espera de la
sus pueblos indígenas. Brasil aplica una escuela un papel que no puede afron-
estrategia par cipa va y descentralizada tar porque en las interdependencias
para definir los parámetros curriculares de la globalización la comunicación, la
diferenciales de su oferta de educación información, los servicios y la é ca inter-
indígena, que es significa vamente pe- cultural no se ar culan ni se solucionan
queña en comparación con el sistema desde la escuela, sino que cons tuyen
general de educación. Bolivia ha logrado la función de las industrias culturales.
importantes avances en cobertura y per- Como bien plantea Stavenhagen (en
manencia de alumnos indígenas e inten- NIETO, 1999), las nuevas democracias
ta enriquecer toda la educación nacional la noamericanas tendrán que asumir
con la propuesta intercultural bilingüe, los entornos pluriculturales y mul ét-
sobre una base demográfica indígena nicos de sus poblaciones en el marco
mayoritaria (aproximadamente 60% de de un concepto diferente de ciudadanía
la población nacional). Chile comienza multicultural. En cierto sentido, esta
en el 2001 un proyecto experimental de propuesta institucional abandona el
implantación de un modelo intercultural discurso dominante, correspondiente a
bilingüe en 150 escuelas que está conve- un criollismo excluyente o un mes zaje
nido con el BID a 3 años y medio, con el incluyente y hegemónico, que excluía a
propósito de profundizar el proceso de los pueblos indígenas.
emergencia de esta polí ca. En México,
la más reciente propuesta ins tucional Conclusión
ofrece con nuidad en los esfuerzos ini-
ciados en décadas anteriores y plantea Ha cambiado la ortodoxia de las
profundizar el énfasis en la equidad y reformas educa vas en pro de la calidad
calidad de los aprendizajes, así como de e inclusiòn y, por ende, lo que se espera
ampliar la descentralización (MUÑOZ, de los nuevos programas de profesio-
1998). En el marco de tan diversas visio- nalización intercultural, del uso de las
nes y estrategias de los países, cabe pre- tecnologías de la información, de los
guntar ¿cuáles son los conceptos propios maestros indígenas y de los aprendizajes.
de la educación indígena del presente? En la actualidad hay mucho más polí ca
Y sobre todo ¿qué estrategias emplear social sobre los temas y mayor exigencia
para desencadenar las transformaciones de eficacia de los actores ins tucionales.
necesarias? Las polí cas públicas orientadas
La mul culturalidad contemporá- específicamente a los pueblos autócto-
nea definirá el entorno real de las posibi- nos de nuestro con nente son concep-
lidades de desarrollo de las comunidades ciones aplicables a tres cues ones cen-

84 Héctor Muñoz CRUZ. Desarrollo educa vo intercultural: fronteras jurídicas e ins tucionales...
trales: democracia polí ca, desarrollo indígenas, aun en aquellas regiones que
económico e iden dad, las cuales se han históricamente han mostrado una alta
expresado en acciones ins tucionales lealtad etnolingüística. Estas caracte-
y discursos públicos sobre una variada rís cas muestran que las comunidades
gama de categorías tales como auto- indígenas de habla han adoptado un
determinación, educación intercultural diseño de ordenamiento sociocultural y
bilingüe, derecho indígena, cosmovisión sociolingüís co muy dis nto a lo que se
original, tradición oral, medicina y tecno- plantea en la norma vidad vigente y en
logía tradicional y muchas, muchas otras. los procesos reales de educación escolar.
Las presiones que provienen del El largo proceso de invención de
mul culturalismo ins tucional y, muy la EIB en nuestros países pasará primero
especialmente, del multiculturalismo por una di cil y costosa experiencia de
de facto que moldea las interrelaciones legi mación y de aperturas polí cas y
de contacto, contagio y dominio entre culturales. Posteriormente, sobre esas
poblaciones etnoculturamente diversas bases habrá que garan zar el poder de
que par cipan en procesos globales de par cipación y decisión de las socieda-
migración, comercio, comunicación, des indígenas y entrar así en la cons-
información, tecnología y arte. Históri- trucción intercultural del currículo y las
camente, el resultado más frecuente de implementaciones didác cas coherentes
las interrelaciones en el espacio mul - a los principios de la EIB.
cultural ha sido la hegemonía cultural Existen concepciones y represen-
y lingüís ca que, en México se expresa taciones diversas acerca de lo que se
en la dualidad cultura nacional mexicana entiende por educación intercultural
vs. cultura extranjera, postergando a un bilingüe (EIB). Con todo, es muy significa-
nivel subalterno la interrelación cultura va y mayoritaria la preferencia por este
hispanohablante mexicana vs. culturas enfoque educacional, al punto de ser
indomexicanas. A través de un sondeo considerada como la mejor alterna va
muy reciente, el Ins tuto Nacional de para favorecer el desarrollo educa vo
Lenguas Indígenas (2013) ha podido y sociocultural. El significado de esta
constatar que las comunidades indígenas preferencia con ene la implicación de
actuales funcionan mediante configu- que los procesos educa vos escolares
raciones sociolingüís cas que abarcan deben contribuir a la supervivencia de
patrones comunica vos múl ples, con las lenguas, las iden dades y culturas
esquemas de bilingüismo principal- indígenas, complementando poderosa-
mente funcional (oral), con modelos mente los procesos domés cos e infor-
internos de pres gio en discusión entre males de transmisión intergeneracional
generaciones adultas y jóvenes y con en los ámbitos familiares y comunitarios.
un indesmen ble proceso de cambio La historia de los cambios educa-
de lengua materna en niños y jóvenes vos ocurridos en estos úl mos años

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 71-88, jan./jun. 2014. 85


enseñan que se ha asumido de facto un minos y en las concepciones de la edu-
orden jerárquico en estas prioridades: cación, que no se conectan claramente
primero, los procesos polí cos (recono- ni con el desarrollo económico ni con la
cimiento jurídico de la etnodiversidad, democracia de la postmodernidad.
democracia par cipa va, acuerdos de Como una estrategia para favore-
paz, autonomía y autodeterminación, cer la con nuidad y robustecimiento de
territorialidad, etc.). Segundo, los pro- la herencia etnolingüís ca y cultural, se
cesos económicos (programas compen- propone que el sistema escolar nacional
satorios, organizaciones coopera vas, adopte la cultura y la lengua indígena
asistencia a los migrantes, becas alimen- como área programá ca obligatoria en
cias, despensas familiares). Y por úl - todos los ciclos educacionales y genera-
mo, el trabajo sobre la cultura. Es decir, lice metodologías y propuestas propias
las respec vas sociedades nacionales del enfoque intercultural bilingüe en
no han asumido todavía la educación todo el espectro de la educación nacio-
intercultural, el bilingüismo adi vo y la nal. En úl ma instancia, la mayor forta-
etnodiversidad como cues ones y pla- leza consis ría en que administradores,
taformas centrales de su futuro. Habría educadores y familias asuman autén ca,
mucho que decir al respecto, pero tal vez plena y coherentemente los proyectos e
la clave de esta situación de postergación iden dades etnolingüís cas.
de lo educa vo se encuentre en los tér-

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Recebido em fevereiro de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

88 Héctor Muñoz CRUZ. Desarrollo educa vo intercultural: fronteras jurídicas e ins tucionales...
Interculturalidade, idenƟdade e decolonialidade:
desafios políƟcos e educacionais1
Interculturality, idenƟty and decoloniality: poliƟcal
and educaƟonal challenges
Reinaldo Ma as Fleuri*
* Doutor em Educação pela Universidade Estadual de
Campinas. Professor tular da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC/CNPq, FC/CAPES).
E-mail: rfleuri@gmail.com

Resumo
A conceituação de interculturalidade tem sido importante para a implementação de polí cas educa-
cionais. Entretanto, cons tui um campo complexo de debate entre múl plas perspec vas que não
podem ser reduzidas um esquema universal. Neste contexto, as lutas por jus ça social e por construir
sociedade plural, democrá ca, requerem a compreensão dos fundamentos epistemológicos da so-
ciedade moderno-colonial, bem como a problema zação dos processos de subalternização e raciali-
zação inerentes à cons tuição do sistema-mundo atual. Estudos recentes, referenciados neste ar go,
problema zam o modelo polí co de Estado-Nação e estudam suas implicações na vida e na polí cas
dos povos indígenas na América La na, considerando que o reconhecimento dos povos originários
como sujeitos de sua história implica em rever cri camente o imaginário produzido no processo colo-
nizatório sustentado pelas culturas hegemônicas globalizadas. A desconstrução da matriz colonial do
poder implica em desarmar o disposi vo de “raça”, que vem sendo historicamente acionado para a
distribuição, dominação e exploração da população mundial no contexto capitalista-global do trabalho.
E do ponto de vista do saber, torna-se necessária uma ressignificação epistemológica do conhecimen-
to, que desconstrua o pressuposto moderno colonial da “universalidade” das “ciências” e considere
as complexidades e as ambivalências produzidas no encontro entre os diferentes saberes e culturas.
Palavras-chave
Interculturalidade. Decolonialidade. Indígenas.

Abstract
The concept of interculturalism has been important for the educa onal policies. However, it is a
complex field of debate among mul ple perspec ves that can not be reduced to a universal scheme.
In this context, the struggles for social jus ce and to build pluralis c and democra c society requi-
res an understanding of the epistemological founda ons of modern-colonial society, as well as the

1
Neste ar go apresentamos parte dos resultados da pesquisa em rede desenvolvida no âmbito do
projeto integrado de Pesquisa: “Educação intercultural: decolonializar o saber e o poder, o ser e o
viver”, com financiamento do CNPq no período de 2010 -2014.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014
ques oning of the processes of racializa on and subordina on inherent to the current world system.
Recent studies, referenced in this ar cle, problema ze the Na on-State poli cal model and study its
implica ons in life and poli cs of indigenous peoples in La n America. The recogni on of indigenous
peoples as subjects of their stories implies cri cally review the imagery produced the coloniza on
process supported by globalized hegemonic cultures. The deconstruc on of the colonial matrix of
power implies disarm the device of “race “, which has been historically triggered for distribu on,
domina on and exploita on of the world’s popula on in the capitalist global context. And from the
standpoint of knowledge, it is necessary an epistemological reframing of knowledge that deconstructs
the modern colonial assump on of “universality” of “science” and consider the complexi es and
ambivalences produced in the encounter between different cultures and knowledges.
Key words
Interculturalism. Decoloniality. Indigenous.

Interculturalidade: conceito em debate Ayaz Naseem considera que estas pers-


(Introdução) pec vas não representam a totalidade
das possibilidades conceituais u lizadas
A conceituação de interculturalida- pelos docentes e profissionais da área.
de ou de mul culturalismo tem sido de Também não são concepções monolí cas
grande importância para a elaboração e/ou consensuais, uma vez que que cada
e implementação de polí cas educacio- uma destas tendências teóricas se cons-
nais, orientando o desenvolvimento de tuem com base em intensos debates.
propostas curriculares e de formação de A diversidade de propostas e pers-
professores. Neste sen do, Mohamed pec vas interculturais impede-nos de
Ayaz Naseem (2012, p. 23-36), pesqui- produzir esquemas simplificatórios efica-
sador de origem paquistanesa na Uni- zes. Mas, por isso mesmo, torna o debate
versidade de Concórdia (Montreal, CA), par cularmente aberto e cria vo. Para
em seu ar go “Perspec vas conceituais além da polissemia terminológica, teóri-
sobre o multiculturalismo e a educa- ca e polí ca rela va ao mul culturalismo,
ção mul cultural: uma inves gação do interculturalismo, transculturalismo,
campo”, inves ga, a par r do contexto cons tui-se um campo de debate que
canadense, perspectivas conceituais se torna paradigmá co justamente por
com as quais os docentes e profissionais sua complexidade: a sua riqueza consiste
engajados em pesquisa educacional bus- justamente na mul plicidade de perspec-
cam entender as dinâmicas das polí cas vas que interagem e que não podem ser
de mul culturalismo. Estas perspec vas reduzidas por um único código e um úni-
incluem, dentre outras, concepções de co esquema a ser proposto como modelo
multiculturalismo conservador, multi- transferível universalmente.
culturalismo liberal e liberal de esquer- Entretanto, a perspectiva con-
da, mul culturalismo crí co, educação ceitual fundamental em torno da qual
an rracista e educação an -opressão. se situam as questões e as reflexões

90 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, iden dade e decolonialidade: desafios polí cos...


emergentes neste campo é o da possibi- mul culturalidade, na opinião de Adeela
lidade de se respeitar as diferenças e de Arshad-Ayaz (2012, p. 53-60), professora
integrá-las em uma unidade que não as paquistanesa na Universidade de Con-
anule, mas que a ve o potencial cria vo córdia (Montreal, CA), em seu estudo
e vital da conexão entre diferentes agen- “Mul culturalismo transnacional: um
tes e entre seus respec vos contextos. modelo para a compreensão da diver-
Marie McAndrew e coautoras sidade” - aponta para a necessidade de
(2012, p. 37-52), ligadas ao Centro reconceitualizar e redefinir a educação
de Estudos Étnicos das Universidades mul cultural de acordo com as neces-
Montrealenses (CEETUM), no artigo sidades do mundo globalizado e inter-
“A formação inicial do profissional es- conectado do século XXI. Com efeito, o
colar sobre a diversidade etnocultural, modelo atual de educação mul cultural
religiosa e linguís ca nas universidades predominante no contexto canadense é
quebequenses: um primeiro balanço” ineficiente e tem do impacto limitado
- estudam concepções de intercultura- devido ao fato de que os educadores e
lidade que se configuram no contexto as educadoras estão enredados em uma
educacional canadense e que orientam estrutura com falhas de construção, a
a formação de educadores, através do qual é focada essencialmente na cultura
diagnós co que elaboraram do estado em um contexto nacional e ofusca os
atual da formação inicial de futuros aspectos de jus ça social em âmbito
professores rela va à diversidade et- planetário.
nocultural, religiosa e linguística nas No Brasil, a expressão “diversidade
universidades quebequenses. O estudo cultural” tem sido usada como mul cul-
mostra que, mesmo se este campo tem turalismo, principalmente pelo poder
conhecido uma expansão significa va público, revelando dis ntas proposições.
nas licenciaturas nos úl mos dez anos, Maria Conceição Coppete et al. - pro-
tanto no plano de oferta de curso, fessora na Universidade do Estado de
quanto nas inovações pedagógicas, este Santa Catarina e doutora pela Univer-
desenvolvimento ocorreu principalmen- sidade Federal de Santa Catarina – em
te de maneira improvisada. Verifica-se seu ar go “Educação para a diversidade
uma diversidade e ambiguidade de numa perspec va intercultural” (2012,
ancoragem conceitual e a ausência de p. 231-262) destaca o conceito de diver-
exigências e de orientações ministeriais sidade no campo norma vo, passando
claras quanto à sua legi midade e aos pelas Ciências Sociais e alcançando sua
obje vos que deveria buscar. dimensão cultural. Apresenta o conceito
Entretanto, a análise crí ca das de educação intercultural e suas implica-
diferentes concepções, assim como das ções na prá ca pedagógica. Dentro dessa
polí cas e as prá cas educacionais que abordagem, culturas diferentes são
configuram o complexo campo da inter- entendidas como contextos complexos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014. 91


e a relação entre elas produz confron- epistêmico e é co de transformação e
tos entre visões de mundo diferentes. decolonialidade. Tal concepção se dis-
Essa educação favorece a construção ngue dos sen dos e usos que se faz
de um projeto comum, mediante o qual da interculturalidade numa perspec va
é possível integrar dialeticamente as funcional ao sistema dominante. Argu-
diferenças. Sua orientação está focada menta, usando como exemplo o caso
na construção de uma sociedade plural, do Equador, que a interculturalidade
democrá ca e eminentemente humana, somente terá significação, impacto e
capaz de ar cular polí cas de igualdade valor quando assumida de maneira
com polí cas de iden dade. crí ca, como ação, projeto e processo
A luta por jus ça social, indicada que procura intervir na reestruturação
por Arshad-Ayaz (2012), bem como por e reordenamento dos fundamentos
construir sociedade plural, democrá - sociais que racializam, inferiorizam e
ca, apontada por Coppete et al. (2012), desumanizam, ou seja, na própria matriz
requerem a redefinição dos sen dos da da colonialidade do poder, tão presente
interculturalidade, comentados por Ayaz no mundo atual.
Naseem (2012) e McAndrew (2012), A interculturalidade crí ca aponta,
interpelando a uma compreensão dos pois, para um projeto necessariamente
fundamentos epistemológicos da socie- decolonial. Pretende entender e enfren-
dade moderno-colonial que caracteriza a tar a matriz colonial do poder, que ar -
nossa história de povos subalternizados. culou historicamente a ideia de “raça”
Neste contexto, Catherine Walsh como instrumento de classificação e con-
(2012, p. 61-74), pesquisadora na uni- trole social com o desenvolvimento do
versidade equatoriana Simon Bolívar, capitalismo mundial (moderno, colonial,
em seu estudo “Interculturalidad y (de) eurocêntrico), que se iniciou como parte
colonialidad: Perspec vas crí cas y po- da cons tuição histórica da América.
lí cas”, enfa za que a mul plicidade de
sen dos da interculturalidade no atual Interculturalidade: o desafio da colo-
contexto inter-transnacional resulta, nialidade
por um lado, das lutas dos movimentos
sociais-políticos-ancestrais e de suas Diferentemente do colonialismo
demandas de reconhecimento, de direi- – que diz respeito à dominação polí ca
tos e de transformação social. Por outro e econômica de um povo sobre outro
lado, a importância da interculturalidade em qualquer parte do mundo – a colo-
no mundo contemporâneo está ligada nialidade indica o padrão de relações
às configurações globais de poder, do que emerge no contexto da colonização
capital e do mercado. A autora defende a europeia nas Américas e se constitui
perspec va de interculturalidade que se como modelo de poder moderno e
configura como projeto polí co, social, permanente. A colonialidade atravessa

92 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, iden dade e decolonialidade: desafios polí cos...


pra camente todos os aspectos da vida, de conhecer e de se organizar destes po-
e se configura, segundo Walsh, a par r vos e, assim, subalternizá-los e sustentar
de quatro eixos entrelaçados. a matriz racista que cons tui a diferença
O primeiro eixo – a colonialidade colonial na modernidade.
do poder – refere-se ao estabelecimento As relações entre povos diferentes
de um sistema de classificação social vêm, pois, se cons tuindo historicamen-
baseado na categoria de “raça”, como te no ocidente numa perspec va colo-
critério fundamental para a distribuição, nial, ou seja, como amplos movimentos
dominação e exploração da população de dominação econômico-politica e
mundial no contexto capitalista-global subalternização sociocultural. No úl mo
do trabalho. O segundo eixo é a colo- milênio, as sociedades europeias lidera-
nialidade do saber: a suposição de que ram amplos processos de distribuição,
a Europa se cons tua como centro de dominação e exploração da população
produção do conhecimento descarta mundial. A contradição colonial se confi-
a viabilidade de outras racionalidades gura por processos imperialistas em que
epistêmicas e de outros conhecimentos o superdesenvolvimento dos países do
que não sejam os dos homens brancos “Norte” traz consequências econômicas
europeus ou europeizados, induzindo a e polí cas, culturais e ambientais que
subalternizar as lógicas desenvolvidas agravam as vulnerabilidades dos povos
historicamente por comunidades an- do “Sul”. Este paradoxo é analisado por
cestrais. O terceiro eixo, a colonialidade Paul Carr e Gina Thesée (2012, p. 75-
do ser, é o que se exerce por meio da 90) – “Lo intercultural, el ambiente y la
subalternização e desumanização dos democracia: Buscando la jus cia social
sujeitos colonizados, na medida em que y la jus cia ecológica” - ao problema -
o valor humano e as faculdades cogni - zar a concepção de “desenvolvimento
vas destas pessoas são desacreditados sustentável”, que evita ques onar o mo-
pela sua cor e pelas suas raízes ances- delo hegemônico de desenvolvimento.
trais. O quarto eixo é o da colonialidade O autor e a autora consideram que as
da natureza e da própria vida. Com base finalidades imperialistas deste modelo
na divisão binária natureza/sociedade subalterniza as culturas que domina,
se nega a relação milenar entre mundos invalidando os saberes de que são por-
bio sicos, humanos e espirituais, des- tadoras. Neste contexto – tal como indi-
cartando o mágico-espiritual-social que cado acima por Arshad-Ayaz - propõem
dá sustentação aos sistemas integrais contra-hegemonicamente um encontro
de vida e de conhecimento dos povos entre as culturas em que se conjugam a
ancestrais. Desacreditar esta relação jus ça social e a jus ça ambiental, numa
holís ca com a natureza, tecida pelos perspec va de democracia mais ampla,
povos ancestrais, é a condição que torna par cipa va e funcional para o conjunto
possível desconsiderar os modos de ser, da humanidade.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014. 93


Nesta direção – tal como Catherine complexa diversidade cultural? Esta é a
Walsh enfa za - construir cri camente pergunta que o autor busca responder
a interculturalidade requer transgredir a par r da perspec va intercultural. Ao
e desmontar a matriz colonial presente colocar em discussão a visão monocultu-
no capitalismo e criar outras condições ral das polí cas do Estado-Nação, o autor
de poder, saber, ser, estar e viver, que defende a necessidade de promover a
apontem para a possibilidade de con- refundação de outro modelo de Estado,
viver numa nova ordem e lógica que capaz de assumir a realidade ecológica,
partam da complementaridade e das social, polí ca e cultural do mundo con-
parcialidades sociais. Interculturalidade temporâneo.
deve ser assumida como ação delibera- Tal perspectiva problematiza as
da, constante, con nua e até insurgente, concepções e as polí cas de intercultu-
entrelaçada e encaminhada com a do ralidade que vêm sendo formuladas e
decolonializar. implementadas por diferentes Estados-
Nações, na medida em que representam
Interculturalidade e justiça: o Estado- as cosmovisões e os interesses de grupos
Nação em cheque socioculturais e étnicos que, iden fica-
dos como uma única nação, subalterni-
As lutas por se reconfigurar rela-
zam os grupos cons tuídos por culturas
ções de jus ça sociocultural e ambiental
e animados por projetos sociopolí cos
são sustentadas por processos de resis-
diferenciados. Questionam-se as po-
tência dos povos e grupos socioculturais
líticas interculturais que entendem a
colonizados. Estas lutas vêm colocando
diversidade cultural na busca de incluir,
em questão o próprio estatuto da forma
subjugando, os grupos étnicos historica-
atualmente hegemônica de organização
mente colonizados.
polí ca do Estado-Nação.
Para problematizar os sentidos
Nesta linha de pensamento e ação
das polí cas interculturais dos Estados-
sociopolí ca, José Marín (2010, p. 287-
Nações, os estudos de Boris Ramírez
322), em seu ar go “Perú: Estado-Nación
Guzmán trazem significa vas contribui-
y sociedad multicultural. Perspectiva
ções teóricas. Em seu ar go “Intercul-
actual”, busca entender histórica e cul-
turalidade em questão: análise crí ca a
turalmente o modelo polí co de Estado-
par r do caso da Educação Intercultural
Nação e sua aplicação na América La na.
Bilíngue no Chile” (GUZMÁN, 2012, p.
Focaliza par cularmente o caso do Peru,
87-118), onde apresenta resultados de
considerando as suas repercussões:
sua pesquisa de mestrado defendida na
Como assumir a realidade mul cultural
Universidade Federal de Santa Catarina
de nossas sociedades, em diferentes
(Brasil), o autor pondera que durante
domínios, como a educação, bem como
as úl mas duas décadas o conceito de
a gestão da rica biodiversidade e da

94 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, iden dade e decolonialidade: desafios polí cos...


interculturalidade ganhou destaque no governos provinciais, seguem caminhos
cenário das polí cas públicas no Chile. opostos dentro de um sistema judicial
Por um lado, os povos indígenas que imposto, estranho e complicado. Povos
convivem nesta nação, têm buscado ob- autóctones são desalojados por proces-
ter reconhecimento jurídico e preservar sos de apropriação irregular das terras e
sua autonomia. O Estado, por outro lado, de negação de seus direitos fundamen-
tem inves do em polí cas voltadas para tais. Não obstante, os povos indígenas
a inclusão desta população na estrutura procuram se inserir posi vamente no
societária do país. Neste contexto, o sistema político, judicial, legislativo,
autor faz uma leitura crí ca do entendi- cultural e social do Estado, tentando con-
mento de interculturalidade sustentado viver e manter suas iden dades como
pelo Estado Chileno. Procura avaliar os povos originários. Para isto, buscam o
deslocamentos epistemológicos e discur- fortalecimento de suas iden dades e
sivos que o Estado realiza ao engendrar de suas propriedades pela autogestão,
a Educação Intercultural para indígenas, assim como por práticas de relações
enquadrando-a no contexto social con- interculturais. Por exemplo, assumem
temporâneo do Chile. Enfim, este ar go o manejo ambiental de Parques Nacio-
traz uma contribuição para a discussão nais, promovem a instalação de bairros
crí ca das bases teórico-jurídicas em que interculturais para os setores indígenas
se estabelecem os projetos oficiais de e populares urbanos, desenvolvem polí-
Interculturalidade e Educação no Chile. cas educa vas próprias e interculturais
O conflito entre os povos ances- na cidade e no campo, assim como a
trais originários e o Estado construído articulação com outros movimentos
desde a perspec va colonial é também sociais. O autor e a autora indicam a
estudado no contexto do cone sul- necessidade de se repensar o conceito
americano, pelos antropólogos Raúl de interculturalidade do ponto de vista
Díaz e Jorgelina Villarreal, integrantes “originário” e “comunitário”, de modo a
do Centro de Educação Popular e Inter- des tuí-la da manipulação folclórica que
cultural (CEPINT) e pesquisadores da não modifica a sua subalternidade. Tam-
Faculdade de Ciências da Educação da bém revisam conceitos (e prá cas), tais
Universidade Nacional de Comahue, Pa- como patrimônio, cultura, iden dade,
tagonia, Argen na. Em seu ar go “Teoría em vistas de una sociedade democrá ca
y prác ca intercultural: polí cas públicas e intercultural.
y estrategias interculturales originarias Nesta linha de estudos, Jorge
para una articulación con identidad” Gasché Suess (2010, p. 279-305), pes-
(DÍAZ; VILLARREAL, 2010, p. 189-210), quisador do Ins tuto de Inves gaciones
o autor e a autora consideram que os de la Amazonía Peruana (Peru), analisa
vínculos entre os povos originários com as contradições entre os valores sociais
os Estados nacionais, bem como com os da floresta (da população indígena e

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014. 95


mes ça rural amazônica) e os valores da floresta, ou seja, à construção de um
econômicos e sociais neoliberais inspira- modelo de sociedade baseado em valo-
dores e mobilizadores da polí ca estatal res sociais diferentes dos da sociedade
peruana, em seu ar go, “La ignorancia dominante.
reina, la estupidez domina y la conchu- A contradição entre os processos
dez aprovecha. Engorde neo-liberal y de subalternização dos povos ancestrais
dieta bosquesina” (GASCHÉ SUESS, 2010, la no-americanos e sua histórica luta
p. 279-305). De modo par cular, focali- emancipatória é estudada por Edgar
za a raiz do conflito violento que opôs, Esquit (2010, p. 252-266), pesquisador
em julho de 2009, indígenas peruanos no Ins tuto de Estudios Interétnicos,
Awajún y Huampis do Alto Maranhão Universidad de San Carlos de Guatema-
às forças policiais durante a repressão la, em seu ar go “Nociones Kaqchikel
de una ação de protesto na região de sobre la opresión y la lucha polí ca en
Bagua. A população indígena denun- Guatemala, siglo XX”. O autor discute a
ciava a permanência de um ambiente construção de conceitos pelos indígenas
de violência latente e reagia à polí ca Kaqchikel, em sua vida co diana e na
extrativista (petroleira e mineira) do luta polí ca, no campo de poder gua-
Governo na Amazônia. O autor aponta temalteco, no século XX. Defende que
os valores sociais da floresta implícitos na história da formação nacional deste
no comportamento pessoal co diano país os Maias em geral e os Kaqchikel em
das comunidades amazônicas. Evidencia par cular se posicionaram poli camente
os valores sociais neoliberais tal como se para consolidar noções e prá ca que os
manifestam nos escritos do Presidente ajudaram a definir a subalternidade e as
da República do Peru, em suas decisões lutas pela emancipação. Estes conceitos,
polí cas tomadas mediante Decretos evidentemente, foram construídos nas
Supremos, assim como em um vídeo relações complexas que os Kaqchikel ou
produzido por um economista que cri ca os Maias veram com o Estado autoritá-
as bases socioeconômicas da floresta, rio, as elites econômicas, os camponeses
par cularmente a propriedade cole va e os outros grupos étnicos. Ao mesmo
da terra. O autor, deste modo, rela vi- tempo, os conceitos foram modelados
za e denuncia o o mismo faná co e o no contato dos indígenas com o libera-
posi vismo estreito dos defensores da lismo, a economia nacional e mundial,
ideologia neoliberal dominante. Enuncia assim como com organizações polí cas
uma série de problemas sociais causados e religiosas. Finalmente, o autor se po-
pela aplicação irrestrita da doutrina neo- siciona em relação à formação histórica
liberal nos países do Norte e que devem colonial e neocolonial sobre a qual se
incitar os polí cos neoliberais à modera- baseou a formação do Estado e da nação
ção e a um esforço de compreensão da guatemalteca, ressaltando as formas em
alteridade e da especificidade da cultura que os Maias definiram seu lugar e sua

96 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, iden dade e decolonialidade: desafios polí cos...


luta no contexto da formação nacional do debate no México sobre a definição
e estatal guatemalteca. do conceito de educação intercultural e
Estes estudos, desenvolvidos em da implementação de alguns programas
diferentes contextos nacionais la no- inovadores de educação baseados neste
americanos, evidenciam uma concepção enfoque. Sua análise das experiências
crí ca de interculturalidade emergente pedagógicas e práticas interculturais
da insurreição étnica dos povos ances- dos professores é baseada em dados de
trais, que foram historicamente coloni- campo coletados em escolas públicas,
zados e subalternizados no processo de localizadas em bairros pobres da Cidade
cons tuição dos Estados-Nações. Por um do México, onde há uma mistura entre
lado, este processo histórico configurou pobreza e etnicidades. São escolas que
a independência dos territórios ameri- tentam realizar ações afirma vas, in-
canos em relação às suas metrópoles corporando estudantes indígenas para
coloniais. Mas, por outro lado, manteve ensinar novos valores de convivência na
a subalternização e invisibilidade polí ca escola. Contudo, os professores enfren-
e cultural dos povos autóctones, na me- tam dificuldades para alcançar as metas
dida em que os Estados se cons tuíram educacionais.
com base no pressuposto racista do reco- Do ponto de vista da etnicidade,
nhecimento de apenas uma iden dade estes estudos indicam que estudantes
nacional, que incorpora os interesses das indígenas incluídos nas escolas (como
elites coloniais em manter o controle e as do México) desafiam os educadores
a concentração do poder econômico- a ensinar novos valores de convivência
polí co capitalista. na escola e a problema zar os entendi-
mentos a respeito da convivência entre
Interculturalidade e políticas educa- diferentes culturas nos contextos social
cionais indígenas e educacional.
No contexto brasileiro, Telmo
As polí cas de interculturalidade Marcon (2010, p. 97-118) – pós-doutor
do Estado-Nação vêm apresentando pela Universidade Federal de Santa
ins gantes questões também do ponto Catarina e professor do Programa de
de vista educacional. Pós-graduação em Educação da Uni-
Os novos desafios que a intercul- versidade de Passo Fundo – em seu
turalidade vem pondo aos docentes são ar go “Educação indígena diferenciada,
analisados por Nicanor Rebolledo, pro- bilíngue e intercultural no contexto das
fessor de Antropologia na Universidade polí cas de ações afirma vas”, discute
Pedagógica Nacional (México). Em seu as perspec vas da educação indígena no
texto “La interculturalidad: nuevos de- contexto das polí cas de ações afirma -
safios para los docentes” (REBOLLEDO, vas e da recente legislação brasileira que
2012, p. 23-48), aborda alguns ângulos trata da educação indígena. Constata

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014. 97


que as mudanças ocorridas nos úl mos geográficas facilmente podem ser su-
anos nas polí cas de educação reco- peradas. Com isto, o sen do do termo
nhecem formalmente a diversidade e a “estrangeiro” tem mudado. Constata-
pluralidade étnico-cultural da sociedade se que o “ser estrangeiro” tem mais a
brasileira. Em relação aos indígenas, a ver com o modo de ser, de sen r-se, do
Cons tuição Federal de 1988 e a Lei de que com aspectos territoriais e com um
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, determinado local.
de 1996, dão passos importantes na As estruturas de sen mentos que
formulação de princípios gerais visando configuram a subalternização e mar-
a uma educação diferenciada, bilíngue e ginalização das culturas e dos povos
intercultural. Mas o autor ques ona em originários resultam de processos de
que medida e em que sen dos a legis- colonização, cujos efeitos socioculturais
lação rela va à educação intercultural precisam ser reconhecidos e enfrentados
indígena foi construída em diálogo com cri camente. Zayda Sierra, Sabinee Sini-
os diferentes grupos socioculturais. guí e Alexandra Henao (2010, p. 219-252)
As dificuldades de se estabelecer - pesquisadoras do Grupo Diverser, da
um diálogo crí co entre os diferentes Universidade de An oquia, Medellin, Co-
sujeitos socioculturais na definição das lombia - em seu ar go “Acortando la dis-
polí cas educacionais resultam da fal- tancia entre la escuela y la comunidad Ex-
ta de reconhecimento iden tário dos periencia de construcción de un currículo
povos indígenas, que são dos como intercultural en la Ins tución Educa va
estrangeiros nas terras de seus próprios Karmata Rúa del Resguardo Indígena de
ancestrais. Uma reflexão sobre esta Cris anía, Colombia”, consideram que a
questão é apresentada por Valdo Barce- própria história da escolarização - que ar-
los e Sandra Maders (2012, p. 119-142), rebatou os filhos das famílias dos setores
pesquisadores da Universidade Federal pobres e grupos étnicos subalternos sob
de Santa Maria, no ar go “Habitantes de o pretexto de prepará-los para melhorar
Pindorama – de na vos a estrangeiros”. suas condições de vida - tem produzido
O autor e a autora estudam os processos mais obstáculos do que oportunidades
culturais que levaram os na vos desta para as comunidades mais vulneráveis da
terra de Pindorama (índios brasileiros) sociedade. Na verdade, a escolarização
a se sen rem estrangeiros em suas pró- dos grupos socioculturais pobres e su-
prias terras. O autor e a autora mostram balternos contribuiu para a discriminação
que a questão do ser “estrangeiro” não social, ao priorizar apenas a formação das
se reduz a uma dimensão geográfica, habilidades necessárias para um trabalho
tal como se pensava até recentemen- assalariado e mal remunerado. Inclusive,
te. Hoje, com a facilidade de acesso as escolas frequentadas por alunos de
às informações, seja pela internet ou baixa renda também são as mais carentes
pelos meios de transporte, as fronteiras de recursos sociais, sicos e humanos.

98 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, iden dade e decolonialidade: desafios polí cos...


O problema tem sido ainda mais imagem social dos povos colonizados
dramá co em contextos indígenas em como “indígenas”. Neste sen do, o ar -
que a escola foi ins tuída numa perspec- go de Leandro Belinaso Guimarães e Ma-
va colonizadora e doutrinária, em clara ria Lucia Wortmann (2010, p. 306-318),
oposição a prá cas culturais ancestrais, “Passando a limpo a Amazônia através da
contribuindo, assim, para a destruição literatura de viagem: ensinando modos
da coesão social na família e na comuni- de ver” discorre sobre os modos como
dade. Hoje, nas comunidades indígenas, a floresta Amazônica foi produzida no
a gestão de suas escolas foi entregue as início do século XX pela literatura de
autoridades e a professores indígenas. viagem de Euclides da Cunha. O ar go
Mas estas comunidades enfrentam as debruça-se, sobretudo, sobre o conjunto
consequências históricas e sociais da de mo vações da viagem euclidiana à
colonização. Neste ar go, Zayda Sierra e floresta. Argumenta que naquela época
coautoras estudam o potencial da escola se ins tuiu a necessidade de inscrever
para contribuir para os processos organi- a floresta Amazônica no mundo como
zacionais de uma comunidade indígena. um ambiente desencantado, caótico,
Iden ficam as enormes dificuldades para bárbaro e selvagem. Era preciso apagar,
reconstruir processos de par cipação ou passar a limpo, uma literatura de via-
a va e de autonomia, decorrentes tanto gem do século XIX que marcara a floresta
de pressões externas (sociedade maiori- como um lugar idílico, tranquilo e encan-
tária, sistema de ensino formal) quanto tado. Dessa forma, aponta uma descon-
de conflitos internos. É doloroso reco- nuidade entre a literatura de viagem
nhecer cri camente esses problemas do século XIX (sobretudo aquela que
internos que os povos autóctones hoje sofrera fortes contaminações român cas
enfrentam, mas é um passo necessário da “esté ca do sublime”) e a literatura
para adquirirem força e conseguirem li- sobre a Amazônia de Euclides da Cunha,
dar com as diversas pressões que afetam que inaugura os modos diferentes de se
a vida dos povos indígenas. ver a floresta e os povos que nela vivem.
Os textos de Euclides da Cunha sobre a
Interculturalidade: reconsiderar as Amazônia são vistos no ar go como pe-
identidades “indígenas” dagógicos, por nos ensinarem como, no
início do século XX, a floresta foi confi-
Reconhecer e interagir com os gurada e como os sujeitos que lá viviam
povos originários como sujeitos de sua foram cons tuídos e posicionados, por
história, implica em se rever cri camen- exemplo, relativamente à raça. Com
te o imaginário produzido no processo inspiração nos estudos culturais que
colonizatório e sustentado pela cultura assumem perspec vas pós-modernas, o
hegemônica. A literatura tem sido um autor e autora buscam entender as signi-
poderoso disposi vo de construção da ficações atribuídas à floresta e, também,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014. 99


aos processos que posicionam de modos ramento destes povos historicamente
específicos os sujeitos que nela habitam, subalternizados. Claudio Luiz Orço e Rei-
como resultantes de configurações teci- naldo Ma as Fleuri (2010, p. 335-347),
das na história e na cultura, indicando em seu ar go “O processo educa vo:
que foram cons tuídos e posicionados cultura e iden dade indígenas” discutem
rela vamente à raça. a questão de “Como a escola pode con-
Tal perspec va implica em des- tribuir no processo de revitalização da
construir a lógica da colonialidade, cultura e da iden dade indígena caingan-
que tem configurado as relações com gue na educação básica?” A pesquisa,
os povos ancestrais na América La na. desenvolvida junto à Escola Indígena de
Assumindo este intento, Valéria Apare- Educação Básica Cacique Vanhkrê, mu-
cida Calderoni e Adir Casaro Nascimento nicípio de Ipuaçu, SC, buscou aprofun-
(2012, p. 303-318) - em seu ar go “Sa- dar a compreensão do papel da escola
beres tradicionais indígenas, saberes tendo em vista uma atuação pedagógica
ocidentais: suas intersecções na edu- transformadora, que contribua para a
cação escolar indígena” - desenvolvem revitalização da cultura e da iden dade
uma reflexão sobre a relação da lógica indígena caingangue e a preservação
da colonialidade com a legi mação dos dos seus valores e de sua iden dade.
conhecimentos tradicionais nas escolas Observam que as discussões mais inten-
indígenas das aldeias. Abordam os desa- sas acerca da educação indígena ficam
fios postos à educação escolar indígena por conta de alguns professores, mesmo
quanto a negociação e a tradução entre que o projeto pedagógico da unidade
os saberes tradicionais e os saberes escolar tenha uma grande preocupação
ocidentais. Aponta para a importância para com o processo de revitalização da
de uma revisão do pensamento colo- cultura e iden dade indígena. Porém,
nial, em especial a necessidade de uma nem todos os professores estão suficien-
ressignificação epistemológica sobre os temente preparados para desempenhar
conhecimentos legitimados. Questio- tal função. Mesmo assim, é possível
nam a crença de que basta formalizar a desenvolver um trabalho numa perspec-
educação escolar indígena. Defendem a va histórico-cultural crí ca que atenda
importância, numa perspec va intercul- aos interesses e anseios da escola e da
tural crí ca, de se considerar as comple- comunidade caingangue. Isso só é pos-
xidades e as ambivalências produzidas sível com a organização de um trabalho
no encontro com os diferentes saberes cole vo e com a corresponsabilidade
intrínsecos ao processo educa vo. dos envolvidos no processo educa vo.
A consideração da complexidade Para além dos saberes e das prá-
dos saberes ancestrais dos povos indíge- cas formalizadas pela prá ca escolar,
nas, cons tui-se como uma necessidade a educação dos povos ancestrais se
importante para promover o empode- configura principalmente em prá cas

100 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, iden dade e decolonialidade: desafios polí cos...
socioculturais, tais como as “técnicas cria uma mediação sociocultural para
corporais”. Este entendimento é ilustra- interagir com os não indígenas. Ainda,
do pelo trabalho de Eliton Clayton Rufino ao mesmo tempo em que a dinâmica da
Seára (2012, p. 319-334) no ar go “Mo- aldeia é alterada, favorecendo o seden-
vimento em diálogo: Técnicas corporais tarismo, a prá ca despor va promove
dos Guarani da aldeia de M’Biguaçu”. o movimento sico e se configura como
Mediante a convivência por sete me- um dos campos de mediação e interação
ses na aldeia M’Biguaçu, localizada na com a sociedade brasileira.
grande Florianópolis, SC, Brasil, o autor Sob o mesmo enfoque de estudo
observou como os Guarani interagem da iden dade étnica dos Xokleng/Lak-
com os elementos de sua cultura tra- lãnõ em Santa Catarina, Cá a Weber
dicional tendo o corpo como o lugar (2010, p. 253-274), Mestre em Educa-
primeiro desta relação. Nesse sen do, ção pela Universidade Federal de Santa
descreve e discute elementos culturais Catarina, em seu ar go “Escolarização,
como as pinturas, brincadeiras e os jogos ensino superior e iden dade étnica: a
tradicionais da aldeia, estabelecendo um experiência das professoras Xokleng/
movimento dialógico de compreensão Laklãnõ”, estudou as implicações dos
de tais elementos com outras referências processos de formação universitária de
culturais Guarani. mulheres Xokleng/Laklãnõ para a forma-
O estudo da importância das ção iden tária desta importante etnia
práticas corporais na constituição da que vive no Estado de Santa Catarina,
identidade dos povos originários em Brasil.
Santa Catarina é também desenvolvido,
do ponto de vista da apropriação pelos Interculturalidade e decolonialidade
Laklãnõ/Xokleng de uma prá ca cultural na prática educativa
corporal exógena (o futebol), por Anto-
nio Luis Fermino (2012, p. 335-354) em No contexto da sociedade globa-
seu ar go “O jogo de futebol e o jogo lizada, diferentes movimentos sociais
das relações entre os Laklãnõ/Xokleng”. buscam descontruir os disposi vos de
O autor verifica uma mudança de habi- sujeição, mediante o desenvolvimento
tus entre os Laklãnõ/Xokleng, que teve de processos de ar culação em rede. O
início a par r do primeiro contato com a encontro radicalmente democrá co en-
sociedade não indígena, ou seja, com os tre sujeitos e grupos diferentes implica
conflitos entre os colonizadores os povos o desenvolvimento da escuta do outro,
indígenas. Impelidos a “sair do mato”, os aliada a uma capacidade de autocrí ca.
povos indígenas adotaram prá cas cultu- Mais do que uma a tude de comisera-
rais ambivalentes. O futebol, por exem- ção e solidariedade para com o outro, a
plo, ao promover a “ocidentalização” interculturalidade implica uma revisão
dos povos indígenas, simultaneamente radical das perspec vas socioculturais,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014. 101


polí cas e epistemológicas que mobili- com um embate. A impossibilidade de
zam a interagir com o outro. conhecer radicalmente o outro produz
Nesta perspec va, Rosanna Cima como que um curto-circuito, uma es-
(2012, p. 103-114), em seu ar go “Re- pécie de desnorteamento no modo de
desenhar os mapas do encontro: qual pensar de quem com ele interage. Mas
trabalho de cura com os migrantes”, a desorientação pode ser um terreno
analisa sua experiência de pedagoga e fér l de se promover a necessidade e
pesquisadora ao desenvolver o trabalho o desejo de parar, de voltar a ouvir, de
em âmbito social e psicopedagógico com voltar a olhar os próprios passos, de re-
os migrantes no Norte da Itália. Pelo tomar os próprios confins e as próprias
exercício da reflexão e da escuta, pela interrogações.
disponibilidade à formação e reelabora- Com esse entendimento, desde
ção con nua no processo de cooperação outro ponto de vista, Clara de Freitas
com os parceiros, é possível reconhecer Figueiredo - em seu ar go elaborado
o olhar com que observamos os outros junto com Reinaldo Ma as Fleuri (2010,
homens e as outras mulheres que vêm p. 157-166) “‘Entrelugares’ iden ficados
de longe. Deste modo, podemos com- numa experiência de intercâmbio univer-
preender melhor o que é preciso mudar sitário na Itália” – reflete sobre sua expe-
do nosso trabalho e descobrir inusitados riência de estágio de intercâmbio acadê-
pontos de vista sobre o trabalho educa- mico, quando estudante de pedagogia,
vo, social e clínico com as pessoas e as na Universidade de Roma 3 e com um
famílias migrantes. movimento de educadores e educadoras
Na primeira etapa de seu proces- italianos, o Movimento de Cooperação
so de pesquisa, Rosanna Cima deu-se Educa va. A autora e o autor analisam o
conta de que as formas das dificuldades caráter mul dimensional e complexo de
das famílias migrantes, mulheres e ho- experiências educa vas realizadas na in-
mens, refletem inevitavelmente o olhar teração entre sujeitos e movimentos so-
e os sistemas de atribuição de sen do ciais de iden dades culturais diferentes,
próprios de quem os observa. A par r de modo a colaborar para a elaboração
da reflexão sobre o próprio trabalho, de referenciais teórico-metodológicos
os pesquisadores e as pesquisadoras para a Educação Intercultural. A atuação
se deram conta das posições, por vezes no “entrelugar” entre duas ou mais cul-
obsoletas e coloniais, que assumem ao turas, par cularmente em processos mi-
entrar em contato com os outros. gratórios, permi u iden ficar a diferença
Cada profissional, normalmente, de enfoque da educação intercultural,
acredita estar preparado para acolher o entre os países do norte e do sul. Nesta
outro. Talvez seja por isso que o choque dupla perspec va, buscaram entender
cultural tem sempre a caraterís ca do a eminente importância da educação
imprevisível e de algo que se parece intercultural como mediadora das rela-

102 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, iden dade e decolonialidade: desafios polí cos...
ções dos imigrantes com os autóctones, jurídicas dos projetos estatais nacionais
bem como a importância da u lização de de interculturalidade.
processos de trocas interculturais para a O ponto de vista crí co da inter-
desesterio pização, a descolonização e culturalidade evidencia, portanto, a
(des)subalternização cultural. necessidade de se desenvolver novas
perspec vas de poder, que desconstru-
Educação intercultural: decolonializar am a lógica do mercado e da hegemo-
o poder e o saber (Conclusão) nia capitalista e visem à construção de
relações democráticas participativas,
A desconstrução da matriz colonial fundadas na jus ça social e coerentes
do poder implica em desarmar o dispo- com os interesses do conjunto da hu-
si vo de “raça”, que vem sendo histori- manidade e com a autonomia de cada
camente acionado para a distribuição, grupo sociocultural.
dominação e exploração da população As polí cas educacionais recentes,
mundial no contexto capitalista-global de fato, reconhecem formalmente a di-
do trabalho. Diferentes movimentos so- versidade cultural e promovem polí cas
ciais, que se ar culam rizoma camente de educação bilíngue e intercultural. Mas
no mundo atual, vêm desenvolvendo estas polí cas têm sido construídas sem
estratégias decoloniais. A rebelião dos o diálogo com os grupos socioculturais
povos ancestrais colonizados, par cu- interessados. A cidadania dos povos
larmente na América La na, ques ona o indígenas é pouco reconhecida. Os “in-
pressuposto racista e o caráter monocul- dígenas”, iden ficados como “selvagens”
tural dos Estados-nacionais. Denuncia a (seja vistos com pacíficos, seja como
violência latente e a ideologia neoliberal bárbaros), são ainda percebidos como
dominante que favorecem a manuten- “estrangeiros” no território nacional.
ção do controle e da concentração do Os processos socioculturais e educacio-
poder econômico-polí co nas mãos dos nais coloniais invalidaram suas culturas
setores capitalistas hegemônicos. Os ancestrais minando sua coesão social e
povos originários reconhecem cri ca- gerando de conflitos internos que fragi-
mente os processos de subalternização lizam sua capacidade de resistência às
a que foram subme dos historicamente pressões da sociedade hegemônica.
e assumem as lutas por fortalecer suas Do ponto de vista do saber, verifi-
iden dades e auto-gerenciar seus terri- ca-se que as significações racistas atribu-
tórios. Grupos étnicos subalternizados ídas aos povos originários condicionam a
se mobilizam na busca por reconstruir interação intercultural entre os saberes
relações de justiça e equidade entre tradicionais e os saberes ocidentais.
os diferentes grupos socioculturais na Torna-se, pois, necessária uma ressignifi-
gestão da vida e do meio-ambiente, co- cação epistemológica do conhecimento,
locando em discussão as bases teórico- que desconstrua o pressuposto moderno

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 89-106, jan./jun. 2014. 103


colonial da “universalidade” das “ciên- Os confrontos interculturais, que
cias” e considere as complexidades e as se ampliam e se acirram com a intensi-
ambivalências produzidas no encontro ficação da migração e da mobilidade in-
entre os diferentes saberes e culturas. ternacional no contexto da globalização
As prá cas educacionais, par cu- do mundo contemporâneo, desafiam
larmente as escolares, são interpeladas cada grupo a refletir e a assumir os
na perspec va decolonial do saber a con- próprios limites e limiares na relação
tribuir no processo de revitalização das intercultural com o outros. Isto implica
culturas e das iden dades dos povos ori- em decolonializar os paradigmas de
ginários. As pesquisas mostram que, na conhecimento cons tuídos pela moder-
busca de recuperar as prá cas culturais nidade. O pensamento fronteiriço, com
tradicionais e de se apropriar cri camen- efeito, coloca em cheque o ideário mo-
te de prá cas culturais ocidentais, os po- derno de uma cultura única e universal.
vos originários tentam, em interação com A emergência de múl plos paradigmas
os outros grupos socioculturais, compre- desafia os diferentes sujeitos sociocul-
ender os múl plos significados, por vezes turais ao reconhecimento recíproco e à
paradoxais, das mediações interculturais solidariedade entre diferentes formas
com as sociedades em que vivem e traçar de ser-sen r-pensar-agir nas relações
suas estratégias interculturais. sociais e ambientais.

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Recebido em agosto de 2013


Aprovado para publicação em fevereiro de 2014

106 Reinaldo M. FLEURI. Interculturalidade, iden dade e decolonialidade: desafios polí cos...
Formação de professores na perspecƟva de uma
educação culturalmente diversificada: breves
considerações
Teacher EducaƟon in perspecƟve of a culturally
diverse educaƟon: Brief ConsideraƟons
Ahyas Siss*
Otair Fernandes**
* Doutor em Educação. Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: ahyassiss@gmail.com
** Doutor em Ciências Sociais. Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
E-mail: otairfernandes@gmail.com

Resumo
O ar go é um convite à reflexão acerca da importância da formação de educadores na perspec va de
uma educação culturalmente diversificada voltada para sociedades caracterizadas não apenas pelas
diversidade cultural e desigualdade social mas sobretudo, por possuírem uma herança escravista e
colonial que a estrutura e às suas relações, como é o caso da sociedade brasileira. Trata-se de um
dos mais importantes problemas que nos desafia a todos, professores, pesquisadores e alunos cuja
centralidade é o compromisso da produção de conhecimentos nos campos conformados pela edu-
cação e pelas relações étnico-racial, social, polí ca e ideológica problema zando, ressignificando e
a ins tuindo em um processo efe vamente democrá co na perspec va de negros e indígenas. Esse
foi o tema do V Seminário Internacional: Fronterias Étnico-Culturais e Fronteiras da Exclusão – inter/
mul culturalidade e formação de educadores, realizado em 2012, na Universidade Católica Dom
Bosco (UCDB) em Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave
Educação. Formação de professores. Mul culturalimo.

Abstract
The ar cle is an invita on to reflect on the importance of teacher training in the perspec ve of a
culturally diverse educa on facing socie es characterized not only by the diversity and cultural and
social inequali es but also they have a slave and colonial heritage that structure them and their
rela onships as is the case of Brazilian society . This is one of the most important issues that chal-
lenge us all , teachers , researchers and students whose centrality is located on the commitment
to produce knowledge in the field of thema c formed by formed by educa on and ethnic-racial ,
social rela ons, poli cal and ideological ques oning , redefining and establishing this produc on
in a truly democra c sense from the perspec ve of blacks and indigenous . That was the theme of
the Fi h Interna onal Seminary: Fronterias Ethnic and Cultural Boundaries and Exclusion - inter /

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 107-119, jan./jun. 2014
mul cultural educa on and educators, happened in 2012 , in Dom Bosco Catholic University (UCDB)
in Mato Grosso do Sul, Brazil.
Key words
Educa on. Teacher Educa on. Mul culturalism.

Considerações iniciais este é um assunto que desafia a todos


nós, professores e pesquisadores, que
O reconhecimento do mul cultu- assumimos como preocupação central
ralismo e da interculturalidade é fenô- o combate ao racismo em todas as suas
meno recente nas sociedades contem- dimensões e buscamos construir um
porâneas. Nacional e internacionalmen- po de produção de conhecimentos que
te, ele se faz notar pelo desenvolvimento tem como base a temá ca étnico-racial
de um conjunto de ações no campo das como questão cultural, social, polí ca e
polí cas públicas, sobretudo, na área da ideológica demandada na luta contra o
educação, em par cular na formação ini- racismo ins tucional em nosso país.
cial e con nuada de professores voltadas Neste sen do, a educação com-
não apenas aos diferentes grupos étni- preendida como lócus privilegiado de
cos e sociais, mas por eles produzidas. formação humana, em particular a
Cabe observar que esse reconhecimento formação de professores, assume papel
não aconteceu ao acaso, mas resulta estratégico se configurando em espaço
de processos de lutas históricas dos onde se trava uma luta co diana contra
diferentes pos de movimentos sociais, o racismo e as desigualdades sociorra-
em par cular aqueles relacionados à ciais, carregado de tensão e de conflito.
cultura, à diversidade étnico-racial e as Por isso, entendemos o espaço escolar
questões de iden dade como aquelas como um campo de luta onde as prá cas
empreendidas pelos movimentos sociais polí cas e ideológicas devem ser consi-
negros, indígenas e feministas, dentre deradas na proposição de projetos que
tantos outros. visam à transformação desse espaço.
Este artigo está voltado para o É sob esta perspec va que enten-
estabelecimento de algumas reflexões demos a importância dos Seminários
sobre a formação de educadores no “Fronteiras Étnico/Culturais e Fronteiras
contexto de uma sociedade mul cul- da Exclusão” promovidos pela UCDB,
tural com foco na educação cultural- através de seu Programa de Pós-Gradu-
mente diferenciada. Como temática ação em Educação. Desde o ano de 2002
central do V Seminário Internacional: quando do primeiro seminário, esses
Fronteiras Étnico-Culturais e Fronteiras encontros vem ganhando crescente des-
da Exclusão, ocorrido em setembro de taque e relevante importância acadêmica
2012, na Universidade Católica Dom ao divulgar conhecimentos localizados na
Bosco (UCDB), em Mato Grosso do Sul, confluência das áreas das desigualdades

108 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspec va de uma educação...
e diversidades etnicorraciais e da edu- ção da temá ca. A importância desses
cação brasileira, oferecendo subsídios eventos cien ficos pode ser mensurada
e orientações às ações educa vas de pela relevância acadêmica das pesquisas
intervenção pedagógica expressas pelas que para eles convergem, bem como
“Diretrizes Curriculares Nacionais para pelo interesse que eles vem despertando
a Educação das Relações Étnico-Raciais” na academia e fora dela.
além de favorecerem o ensino da cultura O tema em voga no V Seminário
Afro-Brasileira, africana e indígena ao Internacional: Fronteiras Étnico-Cultu-
possibilitarem a circulação de conhe- rais e Fronteiras da Exclusão – Inter/
cimentos relacionados aos campos da mul culturalidade e formação de educa-
educação superior e das relações étnico- dores permite uma discussão ins gante
raciais brasileiras em consonância com a e desafiadora tendo em vista sua com-
Lei 11645/2008, que altera a Lei n. 9.394, plexidade temá ca e as várias relações e
de 20 de dezembro de 1996, modificada interseções que podem ser estabelecidas
pela Lei n. 10.639/2003. entre os termos aqui focalizados.
Cabe lembrar que até bem pouco
tempo, eventos acadêmicos centrados 1 Educação culturalmente diferenciada:
nos campos de pesquisa da educação e contextualização
das relações etnicorraciais eram raros
nas universidades brasileiras. Esse pa- O termo educação inter/multi-
norama começou a mudar a par r do cultural, segundo Fleuri (2003), foi u -
final dos anos oitenta do século passado. lizado por Stephen Stoer e María Luiza
De lá para cá, vêm se mul plicando os Cortesão, de Portugal, para indicar o
debates, as análises e a produção teórica conjunto de propostas educacionais que
situados nesses campos. Congressos, visam promover a relação e o respeito
Encontros, Seminários e Simpósios na- entre grupos socioculturais, mediante
cionais e internacionais como ocorridos processos democráticos e dialógicos.
em diferentes espaços acadêmicos como Trata-se de uma proposta de “educação
UCDB, UERJ, UFES, UFF, UFRRJ, UFRJ, para a alteridade” configurada por uma
UNESP/USP, ANPEd, ANPOCS dentre perspec va de convivência democrá ca
tantos outros, bem como a criação de ampla entre diferentes grupos e culturas,
um Grupo de Trabalho voltado para essa em âmbito nacional e internacional.
temá ca na ANPEd (GT 21 Educação e Tal proposição recebe diferentes de-
Relações Etnicorraciais), cons tuem-se nominações nos Estados Unidos e em
em momentos privilegiados de aglu - países da Europa, como pedagogia do
nação de pesquisadores de todo país e acolhimento, educação para diversidade,
do exterior proporcionando discussão e educação comunitária, educação para
divulgação de conhecimentos, tornando a igualdade de oportunidades ou, mais
visíveis o crescimento e a complexifica- simplesmente, educação intercultural.

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A ideia de uma educação na pers- étnicas, religiosas, nacionalistas, den-
pec va inter/mul cultural deve surge tre outras. Tais movimentos eclodiram
com o fenômeno da globalização e o nas úl mas décadas do século XX em
aparecimento de novos padrões de países como Estados Unidos Inglaterra,
regulação social propondo a noção da França, dentre outros. Por força desses
unidade na diversidade como alterna va movimentos, as formas pelos quais os
às proposições do inter e do mul cul- diferentes grupos sociais construíram
turalismo (STOER, 2001). Oriunda dos a sua história e pautaram as questões
movimentos sociais e educacionais nos das diferenças e das desigualdades na
Estados Unidas e nos países da Europa, agenda pública das sociedades capita-
ela deriva de um processo histórico mais listas contemporâneas e culturalmente
amplo marcado pelo fenômeno do mul - estra ficadas tornaram visíveis.
culturalismo que se expressa de diferen- Ao ques onarem e problema za-
tes formas e com derivações em outros rem os princípios básicos do modelo de
termos como mul cultural, intercultural, democracia liberal, os “novos” atores
transcultural. Para além da polissemia do sociais colocaram em xeque os padrões
termo, o mul culturalismo compreende de racionalidade polí ca e de tomada de
diferentes perspec vas teóricas e usos decisões do Estado moderno diante dos
distintos expressando interpretações dilemas das sociedades democrá cas
variadas na construção de propostas liberais que se caracterizam pela com-
polí cas e pedagógicas com implicações plexidade, pluralidade, fragmentação e
no campo educacional. A literatura sobre desigualdade social. A compa bilização
o assunto é bastante heterogênea tanto da par cipação polí ca de forma ampla
nas ciências sociais quanto na educação e inclusiva na sociedade e no processo
não havendo uma conceituação única e decisório de governo que resulte na pro-
universalmente válida. dução e efe vação de polí cas públicas
O ponto comum entre diferentes no sen do de formar sociedades mais
variações e adje vações do mul cul- justas e menos desiguais passou a ser
turalismo é o fato de que todas elas, intencionada na busca para as respostas
de certa forma, estão relacionadas as dessas questões pelo sistema polí co
questões culturais como diversidade, com bases neoliberais.
iden dades e diferenças. Questões essas Nesse processo histórico, os con-
que passaram a tema zar os debates ceitos de mul culturalidade e de inter-
políticos e acadêmicos no centro do culturalidade foram sendo construídos,
capitalismo mundial ou em sua peri- às vezes usados de formas dis ntas ou
feria em decorrência das pressões dos como sinônimos, conforme o contexto
chamados “novos” movimentos sociais social específico em que emergem.
contemporâneos, sobretudo, os cultu- Na acepção da palavra, o mul cul-
rais, especificamente os de bandeiras tural refere-se à coexistência de várias

110 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspec va de uma educação...
culturas no interior de um território, sob um jogo das diferenças, segundo esta
a égide de uma cultura hegemônica, com autora, por ser um fenômeno em que
implicações na exclusão étnico-racial e as regras são definidas nas lutas sociais
na formação de estereó pos, que po- por atores que, por uma razão ou outra,
dem envolver desde feitos ditos exó cos experimentam o gosto amargo da dis-
de determinada cultura até aspectos criminação e do preconceito no interior
como a subordinação de uma etnia por das sociedades em que vivem. As regras
outra, com implicações na destruição desse jogo só pode ser compreendida de
da formação social dos subordinados. acordo com os contextos sócio-históricos
Dentre as diferentes interpretações do nos quais os sujeitos agem, no sen do de
termo, o multiculturalismo pode ser interferir na polí ca de significados em
explicado como movimento polí co e torno da qual dão inteligibilidade a suas
social legi mo das sociedades ocidentais próprias experiências, construindo-se
no contexto de uma democracia plura- enquanto atores.
lista. Os grupos culturais dominados no Várias tem sido as cri cas ao mul-
interior dessas sociedades reivindicam o culturalismo ou movimento mul cultu-
reconhecimento de suas culturais e a re- ral, entre as quais se destacam aquelas
presenta vidades das mesmas em nível que enfa zam o seu caráter eurocêntrico
nacional. A luta dos negros americanos, e que ele parte da lógica do capitalismo
a par r do início dos anos 1960, pelo mul nacional, além do fato que ao re-
acesso a direitos e contra a segregação e conhecer as várias culturas dentro de
o racismo, é visto como um dos exemplos uma mesma sociedade o faz de forma
do fenômeno do mul culturalismo. subordinada, sem ques onar a ordem
Porém, é importante salientar que hegemônica da cultura ocidental.
o mul culturalismo surgiu nesses con- É no bojo desse processo histórico
textos sociais fora do campo educacio- e movimento teórico que as ideias de in-
nal, pois antes se expressava nas artes, terculturalidade e mul culturalidade ga-
nos movimentos sociais, em polí cas, nham força e relevância polí ca e acadê-
implicando no reconhecimento da dife- mica. Ao contrário do mul culturalismo,
rença, no direito à diferença, colocando ambas tem em comum uma forte relação
em questão o po de tratamento dado às com a educação. Para Fleuri (2003) o
iden dades minoritárias. No campo da termo mul cultural pode ser entendido
educação, se impõe pelo poder e influ- como categoria descri va, analí ca, so-
ência que possuíam devido o fato de há ciológica ou histórica, para indicar uma
muito anos reivindicar o cumprimento realidade de coexistência de diferentes
dos princípios de igualdade e equidade, grupos culturais num mesmo contexto
rela vos às cons tuições de todos os social, além de representar concepções
países democrá cos, como nos mostra pedagógico-políticas divergentes. Se-
Gonçalves e Silva (2003). Trata-se de gundo este autor, alguns defendem este

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 107-119, jan./jun. 2014 111


termo como um modo de aproximar as levar a movimentos separa stas, ao fun-
diferenças etnoculturais, isolando-as damentalismo ou ainda, como postula
reciprocamente; outros propugnam a Wieviorka (1991), a organizações sociais
perspec va de convivência democrá ca micrototalitárias.
entre todos os grupos diferentes. No Brasil, umas das formas pela
Já o termo intercultural, segundo quais o mul culturalismo se apresenta
este autor, pode indicar realidades e pode ser caracterizada como “processo
perspec vas incongruentes entre si. Diz de ascensão social de grupos cultu-
que há quem o reduz ao significado de re- ralmente dominados” (GONÇALVES;
lação entre grupos “folclóricos”; há quem SILVA, 1998), como luta dos membros
amplia o conceito de interculturalidade desse grupo contra todas as formas de
de modo a compreender o “diferente” exclusão, cuja face mais visível é a da
que caracteriza a singularidade e a irre- discriminação racial em um país que, por
pe bilidade de cada sujeito humano; há mais de trezentos e cinquenta anos foi
ainda quem considera interculturalidade escravista e que há mais de um século
como sinônimo de “mes çagem”. negou ser racista. Esperar que um país
O fato é que não há consenso assim cons tuído tenha receitas pron-
sobre o uso deste ou daquele termo. A tas de combate ao racismo, projetos de
diversidade de perspec vas é um dos construção de cidadania, do respeito
traços caracterís cos desse movimento. à diferença ou, ainda, que tome como
Daí advém a sua riqueza e também as tarefa prioritária sua a defesa dos direi-
suas dificuldades. Reduzi-los a um único tos consagrados pela cons tuição e que
código e esquema a ser proposto como são historicamente negados aos Afro-
modelo transferível universalmente é brasileiros é de fato um ingenuidade.
um risco muito grande. O Mul culturalismo que defende-
O Mul culturalismo, como todo e mos toma a si essas tarefas, na busca da
qualquer Movimento Social ou Cultural, construção de uma sociedade igualitária
não é monolí co, e pode estruturar-se e radicalmente democrá ca em todas
pelo menos de duas formas diferentes. as suas dimensões. É nesse sen do que
Na primeira, ele assume uma forma afir- entendemos o mul culturalismo e é nes-
ma va da diversidade cultural, racial ou sa perspec va teórica que trabalhamos
de gênero, afirmando uma subje vidade u lizando-nos de suas contribuições na
que luta contra a discriminação racial análise das múl plas relações que se
enquanto formas de dominação e de ex- estabelecem entre políticas públicas,
clusão. Apresenta projetos alterna vos educação (educação entendida em todos
de organização social e por isso mesmo os seus sen dos) e as relações étnico/
não se isola, não se fecha em si mesmo. raciais brasileiras. Nesta direção, a edu-
Na segunda forma, ele possui uma “face cação como lócus privilegiado de for-
guerreira” que muita das vezes pode mação humana é estratégica enquanto

112 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspec va de uma educação...
campo de luta onde as prá cas polí cas pedagógica eficiente ganha dimensão
e ideológicas devem ser consideradas de desafio polí co-pedagógico. Linhares
na proposição de projetos que visam (1997) postula que isso equivale a redefi-
a transformação desse espaço e de nir o papel que escola e professores vem
toda sociedade. Trata-se de um espaço desempenhando, pois a escola
carregado de tensão e de conflito onde como uma ins tuição social densa
se trava uma luta co diana contra o ra- de relações educa vas onde o ensi-
cismo em todas as suas dimensões e as nar e o aprender pode-se abrir em
desigualdades sócio-raciais. caminhos para dis nguir opressões,
comunicar-se com outras culturas,
2 A formação de professores na ressignificar conhecimentos por
perspectiva de uma educação situá-lo dentro de uma lógica mar-
culturalmente diversificada cada por perspec vas do que cons-
tui problemas para nós, [...] vamos
Formar educadores numa pers- ter que apostar que a fabricação de
pec va inter/mul cultural significa pre- novos lugares para a escola não po-
pará-los numa perspec va diversificada derá dispensar professores e alunos
culturalmente de forma que exercitem [...]. São estes que, [...] irão traduzir
a ação de educar para a convivência os saberes populares em cultura
escolar, acolhendo os desejos dos
respeitosa das diferentes subje vidades
trabalhadores, das mulheres, dos
e valores coexistentes em sociedades
negros, de saberes que os fortale-
mul culturais e para o respeito à di- çam (LINHARES, 1997, p. 146).
versidade. Isso não é tarefa fácil, pois
implica em uma mudança de a tudes e O surgimento de uma educação em
de valores. O reconhecimento do caráter perspec va culturalmente diversificada
mul cultural da nossa sociedade não é o nos Estados Unidos se insere na pers-
bastante, como também não basta que pec va mul cultural como resultado da
a escola reconheça que a sua clientela inicia va de pesquisadores e professores
é diversificada, seja por gênero, por doutores afro-americanos, “influencia-
classe, por raça e que possuem culturas dos, de início, pelos precursores dos Es-
diferentes. É fundamental que esse reco- tudos Negros” e pelo êxito que os Black
nhecimento não deve ser acompanhado Studies alcançaram nas escolas norte-
por polí cas de respeito aos diferentes americanas como o demonstram Gonçal-
e por uma mudança de a tudes frente ves e Silva (1998). Lá, pesquisadores da
a eles. Sem isso, dificilmente essa escola área de Estudos Sociais como Gwedolin C.
será capaz de desempenhar seu papel, Baker, James A. Banks, Geneva Gay e Carl
de forma democrá ca. A. Grant, associando cultura à iden dade,
Neste sen do, os processos de for- Formação de Professores e diversidade
mação de professores para uma prá ca cultural prescrevem reformulações me-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 107-119, jan./jun. 2014 113


todológicas e curriculares no sen do de racial, são desenvolvidas análises das
se criar uma igualdade de oportunidade, características raciais do alunado, de
de rendimento e de progressão escolar suas a tudes e das a tudes dos mem-
para os alunos, quaisquer que sejam sua bros de outros grupos étnicos frente aos
classe social e seu grupo racial. Dentre primeiros, após o que são elaboradas
outros objetivos, essa educação em fórmulas ou estratégias que possibilitem
perspec va mul cultural se propõe se- o desenvolvimento de a tudes e valores
gundo Banks (1995), a instrumentalizar em uma perspec va democrá ca junto
os alunos, possibilitando-lhes construir aos discentes.
“conhecimentos, a tudes e habilidades A formação de docentes em uma
necessárias para um agir efe vo em uma perspectiva multicultural era feita
sociedade plural, bem como no interagir, através de “Workshops” nos quais os
negociar e comunicar-se com pessoas professores já em exercício travavam
de diferentes grupos” com o objetivo contatos com princípios e orientações
principal de possibilitar a construção de de caracterís ca mul cultural. Gollnick
uma sociedade que valorize a diversidade. (1995) afirma que, em um momento pos-
De acordo com esse autor, a refor- terior os próprios estabelecimentos de
mulação curricular, na direção de uma ensino entenderam que uma formação
educação diversificada culturalmente, de professores só poderia ser conside-
deverá passar por quatro momentos rada sa sfatória se incluísse conteúdos
diferentes. No primeiro, dar ênfase as multiculturais na sua agenda. Nesse
contribuições, heróis e heroínas, as sen do, Grant e Tate (1995) assinalam
fes vidades, a alimentação e dados cul- o fato de que há cursos de formação de
turais fundamentais dos diversos grupos docentes que privilegiam o combate aos
étnicos. No segundo momento, deve-se estereó pos racistas, classistas ou de
acrescentar o currículo com conteúdos gênero, buscando eliminá-los.
e assuntos que dizem respeito a um Em relação a formação docente,
grupo étnico específico. Em um terceiro outras propostas dizem respeito à pre-
momento, deve-se modificar a própria paração do professor para o trabalho
estrutura curricular possibilitando aos no contexto de um grupo específico.
alunos a análise de fatos, de temas e Nesse caso, o eixo da formação privilegia
a apreensão de conceitos na perspec- a valorização da história desse grupo,
tiva de grupos sociais diversificados. suas lutas e contribuições. Esses autores
No quarto e úl mo momento, deve-se afirmam ainda que uma parcela significa-
elaborar o currículo obedecendo-se ao va de cursos de formação de docentes
obje vo principal qual seja possibilitar entende ser a educação mul cultural um
a reflexão e a tomada de decisões e de mecanismo com potencial de promover
soluções de problemas sociais por parte a “igualdade na estrutura social e o plura-
do alunado. No combate ao preconceito lismo cultural.” Para tanto, eles analisam

114 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspec va de uma educação...
as formas pelas quais “as diferenças e leis 10.639/2003 e 11645/2008,
as desigualdades se manifestam” nas que alteram a redação da Lei de Diretrizes
relações sociais; analisam estratégias de e Bases da Educação Nacional em vigor,
aprendizagem par culares dos diversos a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
grupos sociais e aprendem a u lizá-las ao tornar obrigatória a inclusão da temá-
com o obje vo fundamental de o mizar ca “História e Cultura Afro-Brasileira e
a educação do alunado. Indígena” no currículo oficial da Rede de
Diferentemente de um mero exer- Ensino. O impacto desta alteração será
cício de retórica, as relações que as diver- sen do na formação dos professores com
sidades de gênero, cultura, raça ou etnia a ins tuição, em 2004, das “Diretrizes
e de classe estabelecem com a educação Curriculares Nacionais para a Educação
e com a formação docente na sua versão das Relações Étnico-Raciais e para o En-
norte-americana, compreende análi- sino de História e Cultura Afro-Brasileira
ses teóricas e uma prá ca que buscam e Africana” que preconiza:
modificar as relações de poder naquela Art. 1º A presente resolução ins tui
sociedade. É uma ação cole va empre- Diretrizes Curriculares Nacionais
endida por sujeitos históricos no sen do para a Educação das Relações
de reconfigurar toda uma sociedade e de Étnico-Raciais e para o Ensino de
ins tuí-la em bases mais justas. História e Cultura Afro-Brasileira
Nesse sen do, o papel exercido e Africana, a serem observadas
pela educação mul cultural escolarizada pelas instituições de ensino, que
reveste-se de importância fundamental atuam nos níveis e modalidades da
e ela vem se alimentando, em grande Educação Brasileira e, em especial,
parte, das análises acadêmicas desen- por Ins tuições que desenvolvam
programas de formação inicial e
volvidas por professores-pesquisadores
con nuada de professores.
afro-americanos que lecionam nas
diferentes universidades daquele país, O primeiro parágrafo desse ar go,
preocupados em transformar a lógica e por sua vez, observa que:
a forma pela qual aquela sociedade se § 1º As Ins tuições de Ensino Supe-
representa a si mesma e aos grupos que rior incluirão nos conteúdos de disci-
a cons tuem, como bem o demonstram plinas e a vidades curriculares dos
Gonçalves e Silva (1998). cursos que ministram, a Educação
No Brasil, esta é uma discussão das Relações Étnico-Raciais, bem
recente e, portanto, ainda em pleno como o tratamento de questões e
temá cas que dizem respeito aos
desenvolvimento. Uma intervenção
afrodescendentes, nos termos expli-
significa va na direção da formação dos citados no Parecer CNE/CP 3/2004.
professores no contexto de uma edu-
cação culturalmente diversificada tem Conforme preconizado nessas
como ponto de par da a Diretrizes, as Instituições de Ensino

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 107-119, jan./jun. 2014 115


Superior (IES) deverão contemplar na for- das universidades o cumprimento dessa
mação acadêmica de seus estudantes, em legislação junto às diferentes instâncias
par cular os dos cursos de licenciatura acadêmicas, buscando adequar os currí-
plena: (1) a diversidade étnico-racial; (2) culos dos cursos de licenciaturas e de ba-
o respeito às diferenças; (3) novas pers- charelado à referida lei e intervindo, de
pec vas na pesquisa acadêmica sobre forma direta, nos processos de formação
relações raciais no Brasil; (3) introdução de professores nos seus aspectos inicial e
da temá ca africana, afro-brasileira e con nuada, bem como nas modalidades
indígena nos currículos para além do presencial e à distância.
eurocentrismo; (4) ampliação da consci-
ência dos educadores de que a questão Considerações finais
étnico-racial não diz respeito apenas ao
negro e sim a toda a sociedade brasileira; Acreditamos que uma educação
e (5) entendimento que o trato pedagógi- numa perspectiva intercultural ou
co e democrá co da questão étnico-racial mul cultural aponta para a necessária
é também um direito. Para tanto, preci- preparação dos educadores diversificada
sam urgentemente repensar os projetos culturalmente, de forma que os mes-
pedagógicos desses cursos com vistas a mos exercitem a ação de educar para
preparar o futuro professor para educar a convivência respeitosa das diferentes
numa sociedade diversificada por gêne- subje vidades e valores coexistentes em
ro, classe social, cultura, raça ou etnia, sociedades mul culturais e para o res-
respeitando as diferenças. peito à diversidade com foco privilegiado
Nesse ambiente ins tucional, os naqueles grupos que foram cultural, eco-
Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e nômica e poli camente marginalizados.
Indígenas (NEABs), tem desempenhado Nessa perspec va, a atuação dos
papel significa vo e fundamental na im- NEABIs nos processos de formação
plementação dessa Lei. Uma formação de professores os ins tui como atores
na perspec va culturalmente diversifi- fundamentais nos processos de “des-
cada se cons tui importante demanda
apenas daqueles os grupos étnico-raciais
dos brasileiros, segundo o site da Associação
e sociais alocados em posição de subal- Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN): Bra-
ternidade e que desejam romper com sília (1), Goiás (2), Mato Grosso (3), Mato Grosso
essa situação. Enquanto atores sócio- do Sul (2), Amapá (1), Pará (2), Tocan ns (1),
históricos, esses Núcleos espalhados por Alagoas (2), Bahia (8), Ceará (2), Maranhão (2),
Paraíba (1), Pernambuco (4), Piauí (2), Rio Grande
várias IES na maioria dos estados brasilei-
do Norte (1), Sergipe (1), Paraná (6), Rio Grande
ros1 demandam fortemente e de dentro do Sul (6), Santa Catarina (5), Espírito Santo
(2), Minas Gerais (10), Rio de Janeiro (11), São
Paulo (7). Ver <h p://www.abpn.org.b/neabs/
1
Os 82 Neabs estão distribuídos pelos esta- pagina_principal>. Acesso em 27 jun. 2012.

116 Ahyas SISS; Otair FERNANDES. Formação de professores na perspec va de uma educação...
construção das desigualdades sociais universidade, por sua vez, exige-se a
e etnicorraciais que contribuem para elaboração de programas de formação
exclusão de grande parcela da população con nuada que possibilitem o desen-
afro-descendente dos bens construídos volvimento e a qualificação profissional
socialmente” e entre eles certamente desses professores, em uma dimensão
está a educação. Esses Núcleos têm con- permanente, possibilitando-lhes perce-
tribuído para formar uma novo perfil de ber e decodificar os estereó pos racistas
intelectualidade negra cujos trabalhos anti-negros e anti-indígenas veicula-
apontam para “uma possível inflexão dos pelos diversos materiais didá cos
para melhor compreender as relações colocados à sua disposição e a poder
raciais no contexto das desigualdades desmis ficar valores par culares que
sociorraciais e maior seriedade desta os currículos escolares muitas das vezes
temá ca nas pesquisas acadêmicas e tentam tornar gerais ou hegemônicos,
oficiais”. Se por um lado, a inserção dos bem como desmascarar a sobrevida do
diferentes grupos étnico-raciais nas uni- mito da democracia racial que ainda se
versidades brasileiras resulta da pressão faz presente hoje e atua com rela va in-
dos movimentos sociais de caráter iden- tensidade na maior parte dos currículos
tário e os seus sujeitos sobre o campo dos Cursos de Graduação das universi-
da produção acadêmica (negros, indíge- dades brasileiras e que se materializa na
nas, mulheres, homossexuais, outros), prá ca docente.
por outro esta inserção tem significado Enfa zamos que a formação inicial
uma mudança do olhar da ciência sobre e con nuada de professores é um ele-
a realidade brasileira (GOMES, 2010). mento fundamental para a desconstru-
Sabemos que a formação con - ção das desigualdades sociais e étnico-
nuada é um direito do professor e que raciais que contribuem para exclusão de
esse processo forma vo coloca algumas grande parcela da população indígena
exigências para esses profissionais, tais e Afro-brasileira dos bens construídos
como disponibilidade para aprendiza- socialmente. Ela é, seguramente, um
gem e vontade de aprender a aprender, dos caminhos possíveis para se realizar
dentre outras. Da instituição escolar, um trabalho educativo que dê conta
por outro lado, requer-se que sejam dessas complexas questões relações
criadas alterna vas, ou condições, que étnico-raciais e que oferece, ainda, im-
propiciem a esses profissionais a con - portantes contribuições no processo de
nuidade de seu processo forma vo. Se (des)construção do racismo em nossa
a formação de professores é dever do sociedade através do ques onamento
Estado e tarefa da Universidade exige-se, do preconceito e da discriminação, ain-
do Estado, a formulação e implementa- da tão presentes em nossa sociedade e
ção de polí cas públicas voltadas para portanto em nossas escolas, apesar dos
a qualificação desses profissionais. Da discursos em contrário.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 107-119, jan./jun. 2014 117


Daí decorrem alguns impera vos, quais veem sendo historicamente rele-
como por exemplos a garan a da inser- gadas a segundo plano de importância,
ção de jovens e adultos negros e indí- ou sendo tratados de forma mida pelas
genas nas universidades; assegurar-se a agências de fomento e apoio à pesquisas
qualidade de ensino e a adoção de pe- acadêmicas o que, sem dúvidas, não
dagogias interétnicas, interraciais e não concorre para a potencialização das
sexistas no sistema educacional além da pesquisas que se situam no campo da
adoção de tratamento preferencial, nas Educação das Relações Étnico-Raciais
polí cas de apoio à pesquisa cien fica (Erer´s) e nas fronteiras étnico-culturais
e tecnológica, aos projetos inseridos no e da exclusão dos direitos da cidadania.
campo das às relações étnico-raciais, os

Referências
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ca, 1998.
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Editora Agir, 1997.
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movimento social. In: J. A. Correia; L. Cortesão; S. Stoer (Org.) Transnacionalização da edu-

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WIEVIORKA, M. L’espace du racisme. Paris: Seuil, 1991.

Recebido em fevereiro de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 107-119, jan./jun. 2014 119


Inter/mulƟculturalidade e formação conƟnuada de
educadores: o protagonismo do movimento social
negro por uma Pedagogia Decolonial
Inter/mulƟculturalism and in-service teacher educa-
Ɵon: the empowerment of the black movement for a
Decolonial Pedagogy
Eugenia Portela de Siqueira Marques*
* Doutora em educação. Professora adjunta da Faculdade
de Educação da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). E-mail: eumar13@terra.com.br

Resumo
Este estudo traz reflexões sobre a formação de educadores na perspec va inter/mul cultural, no contexto
das lutas e pressões protagonizadas pelo Movimento Negro brasileiro que historicamente reivindicou
o direito à educação para a população afro-brasileira. Tem como escopo abordar as conquistas desse
movimento no que tange a implementação de polí cas educacionais voltadas para a superação do ra-
cismo, da desigualdade racial e a desobediência epistêmica da formação docente. O trabalho ancora-se
nos teóricos pós-coloniais e nas mudanças trazidas pelas legislações que possibilitaram ques onar a
lógica hegemônica de uma cultura comum, de base ocidental e eurocêntrica, que silenciou e inviabilizou
outras lógicas e outros saberes. O desafio posto é ressignificar as marcas deixadas pela colonialidade e
a desconstrução dos currículos monoculturais, assim, a formação inicial e con nuada dos professores,
para a decolonização epistêmica, deve ser uma das estratégias que possibilitará a pedagogia decolonial.
Palavras-chave
Inter/mu culturalidade. Formação docente. Movimento negro.

Abstract
The aim of this study is to bring some reflec ons upon teacher educa on from the inter/mul cultural
perspec ve, in the context of struggles and pressures carried out by the Brazilian Black Movement that
has historically claimed for the right to educa on for the African-American popula on. It is scoped to
address the achievements of this movement in what poli cal educa on overcoming racism, inequali es
and in-service teacher educa on is concerned. This study is based on postcolonial theore cal framework
and in the changes brought by legisla ons that enable us to ques on the hegemonic logic of a com-
mon culture, Eurocentric occidental-based that has silenced and made other exper se and knowledge
impossible to emerge. The challenge to be dealt with is to give new meaning to the deep tracks le by
coloniality and the deconstruc on of monocultural curricula so pre and in-service teacher educa on,
for the epistemic decoloniza on, should be one of the strategies which will allow decolonial pedagogy
Key words
Inter/mul culturalism. In-service teacher educa on. Black movement.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 121-139, jan./jun. 2014
Introdução rimental do Negro. E, várias formas
de luta e resistência, das centenas
A proposta do texto é analisar o de comunidades quilombolas e de
protagonismo do Movimento Negro que comunidades religiosas de matriz
desencadeou fecundas discussões no africana, espalharam-se por todo
cenário polí co administra vo do Brasil território nacional. A atuação do
sobre a urgência da adoção de polí cas movimento negro nos anos 70
educacionais de promoção da igualdade foi fundamental para a defini va
destruição moral do mito da de-
racial e de enfrentamento ao preconcei-
mocracia racial. As organizações
to e à discriminação racial presentes no se fortaleceram, ainda na ditadura
currículo, nas prá cas pedagógicas e no militar, sob a influência dos movi-
co diano escolar. mentos pelos direitos civis nos EUA
As manifestações da resistência e das lutas de libertação nacional
negra desde a era republicana emer- dos países no Con nente Africano.
giram organizações de perfis dis ntos: (BRASIL. IPEA, 2008, p. 13).
clubes, grêmios literários, centros
Na década de 1990, Movimentos
cívicos, associações beneficentes, gru-
Sociais Negros assumem uma nova prá-
pos dramáticos, jornais e entidades
ca, no sen do de centralizar as suas
polí cas, as quais desenvolviam a vi-
reivindicações por polí cas específicas
dades de caráter social, educacional e,
voltadas para a população negra, sem
posteriormente, em momento de maior
negarem a necessidade de ar culação
maturidade, o movimento negro se
destas, com as polí cas de cunho uni-
transformou em movimento de massa,
versalistas igualitárias e educação de
por meio da Frente Negra Brasileira,
qualidade para todos. As demandas por
que se cons tuiu como uma das mais
garan a de direitos para a população ne-
importantes organizações de conquistas
gra passaram a ocupar a pauta oficial do
para o negro em todos os setores da vida
governo e abriram canais para a criação
brasileira.
de Conselhos do Negro, órgãos do gover-
Embora sem visibilidade, as or- no com representação dos movimentos
ganizações do movimento negro sociais e, especialmente, a inserção do
veram um papel muito relevante debate sobre a diversidade étnico-racial
nos debates sociais e políticos. no Conselho Nacional de Educação.
Enfrentando toda sorte de incom-
No campo da educação das rela-
preensões, desde os períodos
ções étnico-raciais, a promulgação da Lei
próximos à abolição da escravidão,
fundaram-se importantes organiza- n. 10.639/2003 significou a superação
ções de combate ao racismo, como dos currículos monoculturas por meio
a Frente Negra Brasileira, a União dos componentes curriculares História e
dos Homens de Cor, o Teatro Expe- Cultura Afro-brasileira. A referida Lei foi

122 Eugenia Portela de Siqueira MARQUES. Inter/mul culturalidade e formação con nuada...
proposta pelo então Deputado Federal O estudo sobre as diferenças cul-
pelo (PT/MS), Eurídio Benhur Ferreira, turais de cada povo e de cada etnia para
a vista do Movimento Negro de Campo dar sen do e tornar possível a discussão
Grande (Grupo TEZ Trabalho – Estudos da diferença no co diano escolar é o
Zumbi), e pela Deputada Federal Ester desafio a ser enfrentado na educação
Grossi (PT/RS). brasileira.
A Lei representou um avanço signi- O texto está organizado com a
fica vo no campo do currículo, tendo em introdução, em seguida apresentamos
vista que ins ga outras epistemologias uma breve abordagem sobre os avanços
para a educação e formação de educa- das polí cas públicas para a igualdade
dores, para romper com a visão homogê- racial e educacional, resultante do pro-
nea e padronizada de cultura, por meio cesso de luta histórica do Movimento
de diálogo intercultural que iden fique e Negro. No segundo subitem, problema-
potencialize as concepções das diferen- zamos as contribuições das legislações
ças presentes no co diano escolar. Nesse educacionais e a inter/mul culturali-
sen do, “Não se trata de, para afirmar dade na educação; na terceira parte,
a igualdade, negar a diferença, nem de tecemos algumas considerações sobre
uma visão diferencialista absoluta, que a formação de educadores intercultu-
rela vize a igualdade. A questão está em rais na perspec va da decolonização
como trabalhar a igualdade na diferença da educação.
[...]” (CANDAU, 2008, p. 49).
Sob essa ó ca, a formação inicial e Políticas públicas para a promoção da
con nuada dos professores, para a deco- igualdade racial: avanços e desafios
lonização epistêmica, com a visibilidade
de outras lógicas (MIGNOLO, 2003), deve O Brasil se destaca como uma das
ser uma das estratégias que possibilita- maiores sociedades multirraciais do
rão a pedagogia decolonial1. mundo e abriga um con ngente signi-
fica vo de descendentes de africanos
1
É o repúdio ao colonialismo e à colonialidade dispersos na diáspora. De acordo com o
que resultou no processo de desumanização dos censo 2000, o país conta com um total
subalternizados A pedagogia decolonial cruza as de 170 milhões de habitantes. Desses, 91
vertentes contextuais, do “pensar a par r da” milhões de brasileiros se autoclassifica-
condição ontológico-existencial-racializada dos
colonizados e do “pensar com” outros setores ram como brancos (53,7%); 10 milhões,
populares, são capazes de fazer insurgir, reviver como pretos (6,2%); 65 milhões, como
e reexistir (WALSH, 2009). É uma Pedagogia pardos (38,4%); 761 mil, como amare-
An rracista por contrapor à geopolí ca hegemô- los (0,4%), e 734 mil, como indígenas
nica monocultural e monorracial, que busca dar
(0,4%). O censo de 2010 indica um total
visibilidade à luta dos que foram silenciados pela
colonialidade, com suas origens nas Pedagogias de 190.732.694 habitantes, ou seja, em
dos Movimentos Sociais (ARROYO, 2012). comparação com o Censo 2000, ocorreu

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 121-139, jan./jun. 2014 123


um aumento de 20.933.524 pessoas, denominam pretos. Essa mudança pode
equivalente a (12,3%) de aumento ser atribuída às polí cas afirma vas, de
populacional (IBGE, 2010)2. afirmação iden tária, pela valorização da
Embora a população que se au- raça negra e, consequentemente, ao au-
todeclara branca ainda seja maioria mento da autoes ma dessa população,
no Brasil, o número de pessoas que no entanto “[...] ‘o Brasil ainda é racista e
se classificam como pardas ou pretas discriminatório’. Não é que da noite para
cresceu, enquanto o número de brancos o dia o país tenha deixado de ser racista,
caiu. Verifica-se que desses 190.732.694 mas existem polí cas. As demandas [da
brasileiros, 91 milhões se autoclassificam população negra], a questão da exclusão,
como brancos (47,7%); pretos 15 mi- tudo isso começou a fazer parte da agen-
lhões (7,6%); pardos 82 milhões (43,1%); da polí ca” (MARIANO, 2014).
como amarelos 2 mil (1,1%), e 817 ha- Todavia, as desigualdades entre
bitantes (0,4%) indígenas (IBGE, 2010). brancos e negros4 ainda permanecem
Do ponto de vista étnico-racial, em todos os setores da sociedade e na
50,7% da população brasileira possui educação, apesar das polí cas públicas
ascendência negra e africana, que se de promoção da igualdade racial e ações
expressa na cultura, na corporeidade afirma vas, em curso há mais de uma
e na construção da sua identidade. década. As disparidades encontram-se
Verifica-se que a autodeclaração dos em todos os níveis da educação e au-
afro-brasileiros (a soma de pretos e mentam quando se verificam as desi-
pardos)3 tem aumentado significa va- gualdades por regiões brasileiras.
mente, desde o Censo de 1991. Muitos A taxa de frequência líquida entre
que se autodeclaravam brancos agora se jovens de 15 a 17 anos aumentou na
iden ficam como pardos, e outros que se última década, especialmente para a
autoclassificavam como pardos agora se população negra e no Nordeste. Mas os
números ainda são baixos em compara-
2
ção a outras regiões do País.
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/
home/esta s ca/populacao/censo2010/default.
Reflete, de certo modo, que as de-
shtm>. Acesso em: 20 mar. 2014. sigualdades sempre veram um caráter
3
Em consonância ao que disciplina o ar go 1º, racial e regional5, que pode ser consta-
inciso IV do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. tado na taxa de analfabe smo entre as
12.288, de 20 de julho de 2010), considera-se
população negra: o conjunto de pessoas que se
4
autodeclaram pretas e pardas, conforme o que- Ver indicadores do IBGE 2003-2013. Disponível
sito cor ou raça usado pela Fundação Ins tuto em: <h p://www.ibge.gov.br/home/esta s ca/
Brasileiro de Geografia e Esta s ca (IBGE), ou indicadores>. Acesso em: 12 mar. 2014.
5
que adotam autodefinição análoga. Disponível Sobre as desigualdades educacionais por região
em: <h p://www.planalto.gov.br/civil>. Acesso ver <h p://www.todospelaeducacao.org.br>.
em: 16 mar. 2014. Acesso em: 12 mar. 2014.

124 Eugenia Portela de Siqueira MARQUES. Inter/mul culturalidade e formação con nuada...
categorias de cor e raça. Enquanto para dois anos de atraso escolar, entre os
o total da população a taxa de analfabe- negros esse indicador chega a 14%.
smo é de 9,6%, entre os brancos esse Portanto, podemos argumentar que
índice cai para 5,9%. Já entre pardos e a repetência e a evasão dificultam
mais o processo de escolarização de
pretos a taxa sobe para 13% e 14,4%,
algumas crianças brasileiras do que
respec vamente.
de outras.
A tendência à universalização do
ensino fundamental com a educação Os dados apontam maior proba-
obrigatória e gratuita no Brasil teve avan- bilidade de fracasso escolar em função
ços significa vos e beneficiou negros e da cor/raça. Os dados da Prova Brasil
brancos, todavia os inves mentos na 2011, aplicada nacionalmente e res-
educação, os projetos e programas ainda pondida por 2,3 milhões de alunos do
não foram suficientes para combater a 5º ano, mostram essa realidade. No
repetência escolar e, consequentemen- item de reprovação ou abandono da
te, o atraso escolar entre esses grupos, escola, um terço dos alunos declarou
o qual começa ainda nas primeiras séries que já haviam passado por essa situ-
do ensino fundamental. ação. Desses, 43% se autodeclararam
Percebe-se que a desigualdade pretos, 34% pardos e 27% brancos
socioeconômica que marca o Brasil (LOUZANO, 2013).
também reflete no sistema educacional, Essas dificuldades permanecem
visto que negros têm processos mais em toda a trajetória escolar dos alunos
tortuosos na trajetória escolar desde as negros e comprovada anualmente pelos
séries iniciais. Os estudos sobre fracasso ins tutos de pesquisas oficiais e também
escolar realizado por Louzano (2013, p. pelos pesquisadores da área. Dados do
118) demonstram que: IBGE mostram que a distorção entre a
idade série de estudantes negros e bran-
[...] diferença no acesso à escola cos ainda é grande. Enquanto apenas
entre brancos e negros diminuiu 4,5% dos estudantes brancos de 18 a
drasticamente nos últimos anos. 24 anos ainda tentam terminar o ensino
De fato, atualmente, no início do
fundamental e a grande maioria (65,7%)
processo de escolarização, brancos e
já cursa o ensino superior, 11,8% dos
negros têm igual acesso à Educação.
O processo de exclusão acontece
jovens pretos e pardos frequentam o
dentro da escola. Quando os estu- ensino fundamental. A maioria (45,2%)
dantes chegam ao segundo ciclo do ainda está no ensino médio, e 35,8%
Ensino Fundamental (6º ao 9º ano), chegaram à faculdade. Isso reflete no
apenas metade dos alunos negros ensino superior, pois, considerando a
se encontram na idade adequada ao faixa etária entre 15 e 24 anos, 31,1%
ano em que estão matriculados. En- da população branca frequentavam a
quanto 7% dos brancos têm mais de universidade. Em relação aos pardos e

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 121-139, jan./jun. 2014 125


pretos, os índices são de 13,4% e 12,8%, ao incen vo da permanência de alunos
respec vamente (IBGE, 2010)6. co stas, corre-se o risco de ver inviabi-
Essa realidade tem sido denun- lizada a democra zação desse nível de
ciada pelo Movimento e demonstra ensino e os esforços em prol de maior
que as desigualdades socioeconômicas equidade na educação superior do Brasil.
e educacionais entre brancos e negros Paralelamente à questão edu-
provocaram, grada vamente, distancia- cacional, verifica-se a desigualdade
mento do Brasil dos padrões reconhecí- ao acesso ao mercado de trabalho e à
veis no cenário mundial como razoáveis distribuição de renda. De acordo com
em termos de jus ça distribu va. A taxa o úl mo Censo, pretos e pardos ganha-
de escolarização entre negros e brancos ram, em média, pouco mais da metade
é equivalente até o término do Ensino (57,4%) do rendimento recebido pelos
Fundamental. A par r do Ensino Médio, trabalhadores de cor branca, resultando
ocorre um distanciamento a cada ano, o numa média salarial de R$ 1.374,79 para
qual se acentua no Ensino Superior. os trabalhadores negros, e a média dos
Os avanços na educação superior trabalhadores de cor branca, R$ 2.396,74
são resultantes dos debates sobre as (IBGE, 2010).
polí cas de ações afirma vas e sobre a A inserção de negros no mercado
necessidade de implementação de po- de trabalho tem aumentado, mas isso
lí cas públicas voltadas para a inclusão não significa que as distorções desapare-
social dos negros, bem como para a ade- ceram. As disparidades se acentuam no
são a essas polí cas por parte de mui- prosseguimento da carreira, em função,
tas universidades federais e estaduais, sobretudo do nível de escolaridade e do
contudo a correção da distorção dessa racismo.
trajetória escolar ainda é um desafio a [...] os negros ainda enfrentam
ser enfrentado. obstáculos históricos, tanto no que
Nesse sen do, embora o acesso diz respeito ao acesso às oportu-
de negros e pardos à educação superior nidades do mercado de trabalho,
nacional venha crescendo num ritmo quanto à precariedade das condi-
mais acelerado, as polí cas de reserva ções de trabalho e emprego que
encontram uma vez ocupados. As
de vaga não foram acompanhadas por
formas de inserção ocupacional e
um incremento de ações de permanên- os setores de a vidade nos quais os
cia, a exemplo das bolsas de assistência negros se incorporam ao mercado
estudan l. Sem os mecanismos voltados de trabalho revelam a dimensão
da discriminação por cor presentes
na sociedade brasileira. Os negros
6
Disponível na Síntese dos Indicadores Sociais estão mais presentes em ocupa-
de 2010. Disponível em: <indicadoresibge.gov. ções mais precárias, caracterizadas
br>. Acesso em: 2 mar. 2014. pela ausência de proteção social e

126 Eugenia Portela de Siqueira MARQUES. Inter/mul culturalidade e formação con nuada...
jornadas de trabalho mais exten- a ser o racismo e a discriminação
sas e, por consequência, menores racial, isso não pode ser sinônimo
remunerações. (DIEESE, 2013, p. 3). de se ignorar os efeitos que aquelas
polí cas econômicas, ou o desen-
Em termos gerais, com a melhoria
volvimento da economia, podem
do mercado de trabalho brasileiro, são trazer para o estágio daquelas de-
perceptíveis alguns efeitos positivos sigualdades. Ou seja, os diferentes
sobre as desigualdades de cor ou raça, contextos de evolução do ritmo da
devido a inúmeros fatores ar culados a vidade econômica e as diferentes
por políticas econômicas e políticas polí cas sociais, necessariamente,
focalizadas que visaram à redução da trarão, de um modo ou de outro,
desigualdade racial. Na análise de Paixão efeitos mais ou menos posi vos ou
e Carvano (2008, p. 188), entre esses nega vos sobre as desigualdades
fatores destacaram-se: de cor ou raça. (PAIXÃO; CARVANO,
2008, p. 188-189).
I) contexto especialmente favorável
da economia mundial, que terminou Nessa perspec va, os autores en-
por animar o ritmo de a vidade eco- tendem que a adoção das polí cas de
nômica no espaço domés co; II) a ação afirma va no mercado de trabalho,
polí ca de revalorização do poder de em prol da equidade racial (incluindo a
compra do salário mínimo; III) polí - perspec va de gênero), pode encontrar
cas de transferência de rendimentos um meio circundante mais ou menos
como, por exemplo, os programas
favorável para potencializar aquelas
Bolsa Família e Bolsa Escola, que
aumentaram o poder de compra das
medidas.
camadas mais pobres da população Assim, um modelo de desenvol-
e, por conseguinte, dos pretos & vimento pró-equidade racial (ou
pardos; IV) políticas de expansão um modelo de crescimento pró-
do crédito para as famílias de classe afro-descendente), poderia ser
média e baixa, ampliando seu poder gerado através da combinação de
de compra; V) evolução posi va da medidas específicas de promoção
escolaridade média da PEA ocupada, da equidade e da cons tuição de
que contribuiu para o aumento dos um ambiente global favorável para
níveis médios de remuneração. que tal perspec va se consolide e
se expanda. Assumir esta reflexão
Os autores consideram que o tema
implica reportar o tema das desi-
das assimetrias de cor ou raça pode ser
gualdades de cor ou raça não ape-
deba do à luz da evolução do conjunto nas ao plano das dis ntas opções de
de circunstâncias mencionadas acima, e polí cas sociais, como igualmente à
afirmam que: questão dos diferentes modelos de
Se é verdade que o núcleo essencial desenvolvimento econômico. (PAI-
das iniquidades de cor ou raça vem XÃO; CARVANO, 2008, p. 188-189).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 121-139, jan./jun. 2014 127


Embora esses avanços sejam ex- A ins tuição do Programa Nacional
tremamente significa vos, a avaliação dos Direitos Humanos, por intermédio
e o monitoramento das políticas em do Decreto n. 1.904, de 13 de maio de
prol da equidade entre negros e bran- 1996, é outro marco importante, no qual
cos podem ser a mola propulsora para são propostas inúmeras ações afirma -
recuperar o atraso histórico e estrutural vas em prol da população negra, entre
em relação a esses grupos e podem as quais se destacou a formulação de po-
representar novas possibilidades de lí cas compensatórias para a promoção
desenvolvimento econômico e social social e econômica (BRASIL, 1996, p. 29).
sustentável em nosso país. Outras conquistas alcançadas no
Nesse contexto, o Movimento âmbito do execu vo ocorreram com a
Negro teve um papel fundamental e a criação da Secretaria Especial de Pro-
atuação concre zada entre os inúme- moção de Polí cas de Igualdade Racial
ros eventos que marcaram a luta por (SEPPIR), um órgão federal específico
reconhecimento de direitos. Na década para a promoção da igualdade racial, a
de 1990, Movimentos Sociais Negros criação de conselhos, comissões, pro-
assumem uma nova prá ca, no sen do gramas e a realização de fóruns. O ano
de centralizar as suas reivindicações de 2005 foi declarado como sendo o ano
por polí cas específicas voltadas para a da Igualdade Racial e, no mês de maio,
população negra, sem negarem a neces- foi realizada em Brasília a I Conferência
sidade de ar culação destas, com as polí- Nacional de Promoção da Igualdade
cas de cunho universalistas igualitárias. Racial. O documento7 apresentou seis
A “Marcha Zumbi dos Palmares diretrizes centrais: apoio às comunida-
contra o Racismo Pela Cidadania e a des remanescentes de quilombos, imple-
Vida”, realizada pelas en dades negras mentação de um modelo de gestão das
brasileiras, em 20 de novembro de polí cas de promoção da igualdade ra-
1995, em Brasília, é reconhecidamente cial, ações afirma vas, desenvolvimento
o evento do movimento social mais e inclusão social, relações internacionais
importante pela inserção, na agenda e produção de conhecimento.
oficial do governo, das reivindicações No campo da educação, em 1997
foram elaborados os Parâmetros Curri-
que foram formalmente efe vadas por
culares Nacionais (PCNs), que incluiu a
meio de medidas legais visando à pro-
Pluralidade Cultural como um de seus
moção da igualdade racial. A marcha
temas transversais, ainda que sem
reuniu cerca de trinta mil par cipantes
que entregaram ao então presidente da
República Fernando Henrique Cardoso, 7
Documento na íntegra Disponível em: <h p://
o “Programa para Superação do Racismo
lpp-uerj.net/olped/documentos/ppcor.pdf>.
e da Desigualdade Racial”. Acesso em: 12 mar. 2014.

128 Eugenia Portela de Siqueira MARQUES. Inter/mul culturalidade e formação con nuada...
dar o devido tratamento à questão da Federação onde está instalada a ins -
diversidade étnico-racial; o processo tuição, segundo o úl mo censo do Ins -
de preparação e mobilização para a 3ª tuto Brasileiro de Geografia e Esta s ca
Conferência Mundial contra o Racismo, (IBGE, 2010).
a Discriminação Racial, a Xenofobia e O Estatuto da Igualdade Racial
Formas Correlatas de Intolerância que foi (Lei n. 12.288/2010) representou um
organizada pelas Nações Unidas (ONU) e marco legal da polí ca de promoção da
aconteceu em Durban, na África do Sul igualdade racial e visa garan r à popu-
em 2001. A Conferência de Durban forta- lação negra a efe vação da igualdade
leceu as en dades do Movimento Social de oportunidades, a defesa dos direitos
Negro demonstrando a necessidade de étnicos individuais, cole vos e difusos e
se implantar ações afirma vas no Brasil o combate à discriminação e às demais
e polí cas de combate ao racismo e às formas de intolerância étnica.
desigualdades étnico-raciais. Sobre a educação o Estatuto esta-
Após longos anos de embates, o belece que:
Senado Federal declarou a cons tucio- Ar go 11 - Nos estabelecimentos
nalidade das cotas raciais, com a apro- de ensino fundamental e de en-
vação da Lei das cotas aprovada pela Lei sino médio, públicos e privados,
n. 12.711, de 29 de agosto de 20128 que é obrigatório o estudo da história
dispõe sobre o ingresso nas universida- geral da África e da história da po-
des federais e nas ins tuições federais pulação negra no Brasil, observado
de ensino técnico de nível médio. A Lei o disposto na Lei no 9.394, de 20 de
prevê a reserva de 50% das vagas em dezembro de 1996.
estabelecimentos de ensino superior e § 1º Os conteúdos referentes à his-
médio da rede federal de ensino para tória da população negra no Brasil
estudantes oriundos de escolas públicas, serão ministrados no âmbito de
combinando também critérios étnicos, todo o currículo escolar, resgatan-
raciais e sociais. A reserva de vagas por do sua contribuição decisiva para o
desenvolvimento social, econômi-
cota racial está disciplinada no ar go no
co, polí co e cultural do País.
ar go 3º, e elas serão preenchidas por
curso e turno, por autodeclarados pre- § 2º O órgão competente do Poder
tos, pardos e indígenas, em proporção Execu vo fomentará a formação
inicial e conƟnuada de professores
no mínimo igual à de pretos, pardos e
e a elaboração de material didáƟ-
indígenas na população da unidade da co específico para o cumprimento
do disposto no caput deste ar go.
(Grifos nossos).
8
Texto na íntegra disponível em <h p://pres-
republica.jusbrasil.com.br/legislacao>. Acesso Apesar de iden ficarmos avanços
em: 14 mar. 2014. significa vos para a população negra,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 121-139, jan./jun. 2014 129


especialmente garan da por meio de na perspec va de construção de uma
legislações, iniciados no octênio de FHC sociedade democrática e de respeito
e fortalecidos nos mandatos de Luis às diferenças culturais. Apesar de os
Inácio Lula da Silva, a desigualdade entre estudiosos da área cri carem o docu-
negros e brancos permaneceu, conforme mento pela abordagem conservadora
apresentado na primeira seção desse do mul culturalismo, a medida enfoca
manuscrito, e a ideologia etnocêntrica as diferenças psicológicas na diversidade
e hegemônica impôs a colonialidade na étnica sem considerar os aspectos socio-
educação brasileira por meio de currí- lógicos, na perspec va de homogeneizar
culos monoculturais que ignoraram as as diferenças, silenciando-se sobre as
culturas “outras” e ocultaram a presen- desigualdade e diferenças sociais, cul-
ça do preconceito e da discriminação turais e étnicas, obje vando-se, assim, a
racial no espaço escolar. Nesse sen do, construção de um contexto de consenso.
entendemos que a formação con nuada Embora haja divergência entre
de educadores, na perspectiva inter- alguns autores sobre a implantação
mul cultural poderá contribuir para a das propostas previstas nos Parâmetros
decolonialidade9 da educação. Curriculares Nacionais – e apesar do
alerta para que o documento não se
Inter/multiculturalidade e educação: tornasse um discurso ideológico, lacu-
as contribuições das legislações edu- nar do que efe vamente uma proposta
cacionais para a decolonialidade do curricular – deve-se ressaltar que o fato
currículo de as questões das diferenças étnicas
e raciais constarem em um documento
Consideramos que a inserção do que traçou as diretrizes pedagógicas
tema pluralidade cultural nos Parâme- significou um grande avanço, pois só é
tros Curriculares Nacionais (BRASIL, possível cri car o que está materializado.
1997) inserido em todas as áreas do Portanto a Pluralidade Cultural
conhecimento no Ensino Fundamental tornou-se uma diretriz curricular para
nas escolas públicas brasileiras repre- a educação brasileira, e o Ministério da
sentou marco de valorização da ques- Educação implementou o programa “Pa-
tão mul cultural no currículo nacional, râmetros em Ação”, des nado à formação
con nuada de professores, que obje vou
9
Decolonialidade es un trabajo que procura a “[...] contribuir para o debate e a reflexão
desafiar y derribar las estructuras sociales, po- sobre o papel da escola e do professor na
lí cas y epistêmicas de la colonialidad – estruc- perspec va do desenvolvimento de uma
turas hasta hora permanentes - que man enen prá ca de transformação da ação peda-
patrones de poder enraizados em la racionali-
zación, em el conocimiento eurocêntrico y em gógica. [...]” (BRASIL, 1999, p. 9).
la inferiorización de alguns seres como menos O fato de o MEC ter buscado a as-
humanos (WALSH, 2009, p. 12). sessoria de professores espanhóis, que

130 Eugenia Portela de Siqueira MARQUES. Inter/mul culturalidade e formação con nuada...
introduziram suas propostas sem uma da necessária relação intercultural que
reflexão consistente e abrangente so- favoreça aos sujeitos reconhecerem-se
bre os saberes escolares e as diferenças heterogêneos.
presentes na realidade escolar brasileira, A educação intercultural propõe
também foi questionado pelos estu- o desenvolvimento de “estratégias que
diosos da educação e pelo Movimento promovam a construção de iden dades
Negro. particulares e o reconhecimento das
A ausência de uma discussão mais diferenças, ao mesmo tempo em que
abrangente dificultou o aprofundamento sustentam a inter-relação crí ca e soli-
e as reflexões necessárias para que os dária entre diferentes grupos” (FLEURI,
educadores desenvolvessem ação do- 2001, p. 45).
cente crí ca e reflexiva, a respeito das Nesse contexto, os estudos que
questões denunciadas pelo Movimento fundamentaram as legislações an rracis-
Negro, principalmente no que tange aos tas no Brasil obje varam a superação do
currículos monoculturais, à subalterniza- monoculturalismo e a visão essencialista
ção da diferença, a discriminação racial e de cultura e conhecimentos impostos
o preconceito. As contribuições trazidas pela colonialidade que subjulgaram e
pelos estudiosos do Mul culturalismo subalternizaram as minorias culturais e
e do Interculturalismo possibilitaram possibilitam a compreensão de que
inúmeros debates sobre essa lacuna
[...] para além da oposição redu-
curricular que possibilitou reflexões e cionista entre o monoculturalismo
pesquisas sobre educação e diferenças e multiculturalismo surge à pers-
étnico-raciais na escola e no currículo. pec va intercultural. Esta emerge
Os estudos sobre mul culturalis- no contexto das lutas contra os
mo de Moreira (2002), Canen, Oliveira processos crescentes de exclusão
e Franco (2000) e o mul culturalismo social. Surgem movimentos sociais
crítico ou revolucionário de McLaren que reconhecem o sen do e a iden-
(2000) apontaram para a urgência de dade cultural de cada grupo social.
uma re-significação da escola e do currí- Mas, ao mesmo tempo, valorizam o
culo, como um espaço de reinvenção das potencial educa vo dos conflitos. E
buscam desenvolver a interação e
narra vas que forjaram as iden dades
a reciprocidade entre grupos dife-
homogêneas e a relevância do debate
rentes como fatos de crescimento
sobre a invisibilidade dos sujeitos so- cultural e de enriquecimento mútuo.
ciais com representação minoritária nos Assim, em nível das prá cas educa-
currículos. cionais, a perspec va intercultural
As contribuições dos estudos sobre propõe novas estratégias de relação
o mul culturalismo crí co de McLaren entre sujeitos e entre grupos diferen-
(2000) colocaram à educação o desafio tes. Busca promover a construção de
de formar sujeitos-cidadãos conscientes iden dades sociais e o reconheci-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 121-139, jan./jun. 2014 131


mento das diferenças culturais. Mas, decolonização dos currículos escolares,
ao mesmo tempo, procura sustentar por meio do pensamento de fronteira11.
a relação crítica e solidária entre Destacamos que a implementação
elas. (FLEURI, 2001, p. 48). da Lei n. 10.639/2003 abriu caminhos
O desafio apresentado à educa- para “olharmos” a cultura afro-brasileira
ção intercultural é o de compreender a nos espaços coloniais e pós-coloniais e
formação de iden dades culturais e o compreender que, apesar de subalter-
processo de integração das diferenças nizada, resis u aos saberes da herança
no Brasil, no contexto da luta contra-he- africana, ao contrapor-se à hegemonia
gemônica dos Movimentos Sociais pela epistêmica colonial e, desse modo, possi-
redução das desigualdades, da exclusão bilitou a decolonização curricular, com a
social e da discriminação racial. Ao refle- visibilidade de outras lógicas (MIGNOLO,
r sobre essas vertentes e modo como 2003).
os conhecimentos do colonizador foram Nesse contexto apontamos que
legi mados no Brasil, ques onamos os os documentos elencados, a seguir no
modelos teóricos eurocêntricos e as suas (quadro 1) possibilitarão a formação de
metanarra vas que silenciaram outras educadores na perspec va da intercultu-
experiências políticas e epistêmicas ralidade Funcional e Crí ca, a Educação
dos povos africanos e afro-brasileiros, a Intercultural e a Pedagogia Decolonial
par r dos Estudos Pós-coloniais La no- (WASLH, 2009; CANDAU, 2008).
americanos de Quijano (2005), Mignolo
(2008) e Walsh (2008).
A mobilização dos Movimentos
Negros na luta pela construção de
polí cas públicas para a promoção da
igualdade racial, por meio de polí cas
afirma vas na educação e de combate
ao currículo monocultural, homoge-
neizado e eurocentrado edificaram
um arcabouço jurídico que possibilitou
uma desobediência epistêmica10 para a

10
Mignolo propõe o reordenamento da geopolí-
ca do conhecimento para que ocorra o desenca-
11
deamento epistêmico a fim de desvencilhar dos Expressa a possibilidade da razão subalterna
conceitos modernos eurocentrados, enraizados para colocar-se em primeiro plano, em um diá-
nas categorias de conceitos gregos e la nos e nas logo “trans-epistemológico”, ou seja, a posição
experiências formadas dessas bases teológicas e epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia
seculares (MIGNOLO, 2008). epistêmica (MIGNOLO, 2011).

132 Eugenia Portela de Siqueira MARQUES. Inter/mul culturalidade e formação con nuada...
1- Lei n. 10.639/2003 que inseriu o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
nos currículos escolares;
2- Projeto de Lei n. 2.827/2003 que ins tui a Obrigatoriedade de Incluir o Quesito Cor/
Raça nas Fichas de Matrícula e nos Dados Cadastrais das Ins tuições de Educação
Básica e Superior, Públicas.
3- Resolução CNE/CP n. 01 de 17 de março de 2004 que ins tui as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana;
4- I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial: Brasília, 30 de junho a 2 de
julho de 2005. Relatório Final. Brasília: Secretaria Especial de Polí cas de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR), 2005.
5- Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação
das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana. Brasília, MEC 2009.
6- Documento Final da Conferência Nacional de Educação. Brasília: MEC, 2010.
7- Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010).
Quadro 1 – Arcabouço jurídico para a Educação Intercultural e a Pedagogia Decolonial

Educação intercultural e formação importância da ancestralidade africana


continuada de educadores e a construção da iden dade negra.
A formação de professores e o
Considerando a multiplicidade tratamento das temáticas que dizem
de culturas existentes na sociedade e a respeito aos afro-brasileiros estão dis-
necessidade de compreender as marcas ciplinada nas legislações educacionais,
deixadas pela colonialidade na educação conforme demonstrado anteriormente,
que hierarquizou e subalternizou as todavia precisa vencer alguns obstáculos
diferenças étnico-raciais, é impossível relacionados à obediência epistêmica à
pensar em Educação Intercultural e matriz colonial, à crença no mito da de-
Pedagogia Decolonial sem refle r sobre mocracia racial, o mito da “não violência
a formação con nuada de educadores, brasileira”, que permite afirmar que não
agentes diretos do processo educa vo. há racismo no Brasil. Chauí (2013, p. 4-5)
A adoção de uma postura é ca em apresenta quatro mecanismos neces-
prol da Pedagogia Decolonial por meio sários para examinar a representação
de prá cas pedagógicas interculturais e imaginária que sustenta o mito da não
an rracistas precisa estar presente no violência brasileira
co diano escolar e ocupar o espaço das A mitologia da não violência bra-
prá cas pedagógicas preconceituosas, sileira opera alguns mecanismos
dos discursos hegemônicos e monocul- ideológicos que garantem a sua
turais que historicamente negaram a conservação, mesmo contra todos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 121-139, jan./jun. 2014 133


os dados factuais contra ela. O pri- Nesse contexto, as secretarias es-
meiro mecanismo é o da exclusão. taduais e municipais de educação têm
Afirma-se que a nação brasileira é realizado ações de formação con nua-
não violenta e, se houver violência, da para professores sobre educação e
ela é pra cada por gente que não
relações étnico-raciais, como: cursos,
faz parte da Nação, mesmo que
seminários, organização de coordena-
tenha nascido e viva no Brasil. O
mecanismo da exclusão produz a ções ou equipes pedagógicas específicas
diferença entre um “nós brasileiros para cuidar do processo de execução
não violentos” e “eles não brasilei- da lei, elaboração perante os conselhos
ros” violentos, eles não fazem parte estaduais e municipais de educação
de nós. O segundo é o mecanismo de diretrizes curriculares estaduais e
da dis nção. Dis ngue-se o essen- municipais para pôr em prá ca a Lei n.
cial do acidental, isto é, por essência 10.639/03 (GOMES, 2011).
os brasileiros não são violentos e, Existem experiências e práticas
portanto a violência, quando ela pedagógicas interculturais sendo im-
existe, é acidental, [...] o terceiro
plementadas em escolas públicas brasi-
mecanismo é jurídico, a violência
leiras, desde a implementação da Lei n.
fica circunscrita ao campo da de-
linquência e da criminalidade, e o 10.639/2003, há mais de dez anos. Algu-
crime é definido como ataque à pro- mas ações estão sendo desenvolvidas no
priedade privada, o furto, o roubo, cole vo das escolas, conforme preconiza
latrocínio. Esse mecanismo jurídico a Gestão Democrá ca (LDBEN, 1996),
permite de um lado determinar previstas no Projeto Polí co Pedagógico
quem são os agentes violentos, em ou em projetos interdisciplinares, com
função dos mecanismos anterio- estudos sobre o Con nente Africano, a
res, da exclusão e da dis nção, os comemoração do Dia 20 de novembro,
agentes violentos são os pobres, e Dia Nacional da Consciência Negra.
entre os pobres, evidentemente,
Algumas realizam a ressiginificação do
os negros, e legitimar a ação da
Dia 13 de maio e os seus deslocamentos
polícia contra a população pobre,
e em par cular contra os negros epistêmicos sobre o engodo da abolição;
[...] úl mo mecanismo é o da inver- contudo pesquisas12 apontam para ações
são do real, graças à produção de individuais e pontuais de docentes,
máscaras que permitem dissimular
comportamentos, ideias e valores
12
violentos como se fossem não vio- MONTEIRO, Rosana Ba sta. A educação para
lentos [...] o paternalismo branco é as relações étnico-raciais em um curso de Peda-
gogia: estudo de caso sobre a implantação da
visto como proteção para auxiliar a
Resolução CNE/CP 01/2003. Tese (Doutorado
naturalidade e indolência dos ne-
em Educação) - Centro de Educação e Ciências
gros, os quais, como todos sabem Humanas, Universidade Federal de São Carlos,
são incapazes e incompetentes. São Carlos, 2010.

134 Eugenia Portela de Siqueira MARQUES. Inter/mul culturalidade e formação con nuada...
desenvolvidas com NEABS, Movimento diversidade da diáspora, hoje, nas
Negro e universidades. Américas, Caribe, Europa, Ásia; - aos
A formação continuada de pro- acordos polí cos, econômicos, edu-
fessores para combater o racismo e a cacionais e culturais entre África,
Brasil e outros países da diáspora.
discriminação racial na escola requer a
(BRASIL, 2004, p. 12)
reorientação epistemológica da interpre-
tação da história da África Nesse sen do, cabe ressaltar que
[...] tratada em perspec va posi va, a Lei n. 10.639/03, o Parecer CNE/CP n.
não só de denúncia da miséria e 3/2004 e a Resolução CNE/CP n. 01/2004
discriminações que a ngem o con- possibilitaram a superação de padrões
nente, nos tópicos per nentes se epistemológicos hegemônicos e orien-
fará ar culadamente com a história tam para a formação de educadores na
dos afrodescendentes no Brasil e perspec va uma pedagogia decolonial e
serão abordados temas rela vos: de interculturalidade crí ca.
- ao papel dos anciãos e dos gritos A Lei n. 10.639/2003 expressa que
como guardiãos da memória histó- o ensino de História e Cultura Afro-Bra-
rica; - à história da ancestralidade e
sileira e Africana será ministrado nas dis-
religiosidade africana; - aos núbios e
aos egípcios, como civilizações que
ciplinas de Educação Ar s ca, Literatura
contribuíram decisivamente para e História do Brasil, sem prejuízo às ou-
o desenvolvimento da humanida- tras disciplinas. A educação das relações
de; - às civilizações e organizações étnico-raciais deverá se desenvolver no
políticas pré-coloniais, como os cotidiano das escolas, em atividades
reinos do Mali, do Congo e do Zim- curriculares ou não, trabalhos em salas
babwe; - ao tráfico e à escravidão de aula, nos laboratórios de ciências
do ponto de vista dos escraviza- e de informá ca, na u lização de sala
dos; - ao papel dos europeus, dos de leitura, biblioteca, brinquedoteca,
asiáticos e também de africanos
áreas de recreação, quadra de esportes
no tráfico; - à ocupação colonial
na perspec va dos africanos; - às
e outros ambientes escolares (BRASIL,
lutas pela independência polí ca 2004, p. 12).
dos países africanos; - às ações em
prol da união africana em nossos Considerações finais
dias, bem como o papel da União
Africana para tanto; - às relações [...] para construção de uma so-
entre as culturas e as histórias dos ciedade democrá ca, igualitária e
povos do con nente africano e os sem racismo só pode ser a práxis
da diáspora; - à formação compul- dos movimentos sociais e popula-
sória da diáspora, vida e existência res organizados como sujeito de
cultural e histórica dos africanos e sua ação, isto é, como autên cos
seus descendentes fora da África; - à representantes de suas demandas,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 121-139, jan./jun. 2014 135


reivindicações e direitos. (CHAUÍ, quanto a afirmação de novos espaços de
2013). enunciação epistêmica nos movimentos
O Movimento Negro, efe vamente sociais”.
reivindica, a par r da década de 1970, o Diante das mudanças vividas na
espaço na arena polí ca para as mani- América La na e no Brasil, na úl ma
festações de denúncias contra o racismo década, e das insurgências no campo da
e a discriminação racial na sociedade polí ca e epistemológico, arquitetados
brasileira. Como sujeito polí co, ar cula pelos movimentos sociais, em especial
estratégias para a “desobediência epis- pelo Movimento Negro, o desafio para
têmica” que insere na agenda oficial do a formação con nuada de educadores
País os debates sobre a urgência do reco- apontam para as perspec vas intercultu-
nhecimento das desigualdades raciais e rais crí cas e decoloniais que dialoguem
da subalternização imposta à população com o passado colonizador e enfrentem
negra em todos os setores sociais. a hegemonia epistêmica.
As reivindicações resultaram em As políticas de enfrentamento
inúmeras conquistas e avanços nas ao racismo e de promoção da igualda-
polí cas públicas para a promoção da de racial necessariamente devem ser
igualdade racial. A educação no Brasil ar culadas com outras grandes ações
tornou-se o principal foco nos discursos polí cas: 1. A reforma tributária, que
polí cos de equidade social na década opere sobre a vergonhosa concentra-
de 1990. Buscou a educação corrigir ção da renda e faça o Estado passar da
erros históricos de discriminação e mi- polí ca de transferência de renda para
nimizar as desigualdades. Entendemos distribuição e redistribuição da renda. 2.
que as polí cas educacionais necessitam A reforma polí ca, que dê uma dimen-
de proteção contra a vola lidade dos são republicana às ins tuições públicas
governos. Para tanto, é imprescindível e permita redefinir o sen do público da
que sejam formuladas como polí ca de representação. 3. A reforma social, que
Estado, a fim de que a formação con- consolide o Estado de Bem-Estar social
nuada de educadores e a educação com uma polí ca de Estado e não como
intercultural não dependam da oscilação um programa de Governo. 4. E uma po-
das polí cas de governo e arbitrarieda- lí ca de cidadania cultural que comece
des par dárias. pela educação e alcance o conjunto das
Desse modo, a proposta de uma artes de maneira a desmontar o imaginá-
pedagogia decolonial e de intercultura- rio autoritário, quebrando o monopólio
lidade crí ca, segundo Oliveira e Candau da classe dominante sobre a esfera dos
(2010, p. 36), “requer a superação tanto bens simbólicos e a sua difusão, e que-
de padrões epistemológicos hegemôni- brando a sua conservação por meio da
cos no seio da intelectualidade brasileira classe média (CHAUÍ, 2013).

136 Eugenia Portela de Siqueira MARQUES. Inter/mul culturalidade e formação con nuada...
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138 Eugenia Portela de Siqueira MARQUES. Inter/mul culturalidade e formação con nuada...
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Recebido em novembro de 2013


Aprovado para publicação em abril de 2014

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 121-139, jan./jun. 2014 139


Direitos humanos e educação intercultural: as fron-
teiras da exclusão e as minorias sub-representadas –
os indígenas no ensino superior
Human rights and intercultural educaƟon: the
boundaries of exclusion and underrepresented
minoriƟes – indigenous in the higher educaƟon
Antonio H. Aguilera Urquiza*
* Doutor em Antropologia. Professor da UFMS e da
Pós-Graduação em Antropologia Sociocultural (PPGAnt)
da UFGD. Professor colaborador do PPGEDU da UCDB.
E-mail: hilarioaguilera@gmail.com

Resumo
Pretendemos neste texto traçar algumas reflexões acerca da temá ca da diversidade e sua interface
com a educação intercultural, a par r dos direitos das minorias sub-representadas, neste caso, os
indígenas. Para isso, optamos como referência autores do campo teórico conhecido como Estudos
Culturais, assim como dos Estudos Pós-coloniais: Bhabha, Canclini, Stuart Hall, Grosfoguel e Dussel,
mas também autores brasileiros, como Paulo Freire, Silva e Candau. A par r destes referenciais
tomamos por base empírica a realidade dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, em par cular
a situação dos estudantes indígenas nas Ins tuições de Ensino Superior do estado, as relações de
saberes e os direitos básicos destas sociedades. Basicamente trata-se de estudo teórico, tendo por
base experiências no trabalho com povos indígenas, o acesso e permanência na Universidade como
um direito à diversidade cultural.
Palavras-chave
Interculturalidade. Direitos humanos. Saberes indígenas.

Abstract
This papers wants to present some reflec ons on the theme of diversity and its interface with in-
tercultural educa on, and the rights of underrepresented minority groups, at this case indigenous
people. Thus, we chose the cultural studies field and its authors as reference, as well as Postcolonial
Studies: Bhabha, Canclini, Stuart Hall, Grosfoguel and Dussel, also brazilian authors such as Paulo
Freire, Silva and Candau. From these references and empirically based on indigenous peoples con-
di on in Mato Grosso do Sul, in par cular situa on of indigenous grad students at public university
– the knowledge rela ons and their basic rights. Finally It is a theore cal study which is based on
experiences at work among indigenous peoples in Mato Grosso do Sul.
Key words
Interculturalism. Human rights. Indigenous knowledge.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 141-154, jan./jun. 2014
Primeiras aproximações no âmbito da UCDB, inicia-se um dinâ-
mico processo de catalisação de redes
Nos inícios do século XXI, mais de pessoas e ins tuições interessadas
precisamente em 2002, inicia-se a or- em dar con nuidade a estas discussões
ganização do primeiro Seminário Inter- e parcerias, o que acaba gerando, como
nacional: Fronteiras étnico – culturais conseqüência, deslocamentos epistê-
e fronteiras da exclusão – a etnicidade micos não só na própria universidade,
no contexto de uma sociedade inter- como também no movimento indígena
cultural, a par r da realidade cada vez do estado.
mais insustentável dos povos indígenas Intensifica-se nesta década, por
da região, par cularmente os Kaiowá e um lado, o movimento indígena, através
Ñandeva, do cone sul do estado de Mato da realização mais sistemá ca, no caso
Grosso do Sul. Situação de desrespeito dos Kaiowá e Ñandeva, das grandes
aos seus direitos básicos, aumento da reuniões, chamadas de Aty guasú. Neste
dependência externa, esgotamento de período inicia-se a experiência do Pro-
suas parcas possibilidades de produção grama Rede de Saberes – permanência
de alimentos e acirramento dos conflitos de indígenas no ensino superior, finan-
ao redor da retomada de seus territórios ciado pela Fundação Ford, inicialmente
tradicionais. intermediado pelo LACED (UFRJ/Museu
Nesse contexto, o Seminário se Nacional), assim como as licenciaturas
propõe discutir as relações entre as interculturais (Teko Arandu e Povos do
questões rela vas à jus ça, superação Pantanal). Intensifica-se, também, o mo-
das desigualdades e democra zação das vimento de resistência e de retomada de
relações de poder, a par r do eixo das an gos territórios tradicionais na região
fronteiras étnicas e fronteiras da exclu- sul do estado.
são. O engajamento da universidade na Por outro lado, intensificam-se,
luta pela democra zação das oportuni- também, os ataques ideológicos con-
dades, em especial, o reconhecimento tra os povos indígenas, por parte da
e valorização de diferentes grupos cul- imprensa e o significa vo aumento da
turais da região, foi a grande novidade violência, com sistemá cos assassinatos
deste primeiro evento acadêmico. de suas lideranças. Há vários anos, Mato
Indiretamente, podemos dizer que Grosso do Sul ocupa o primeiro lugar de
este acontecimento, que poderia ter uma triste esta s ca, a de maior nível
ficado restrito ao âmbito da academia, de violência contra os povos indígenas,
acabou por revelar uma extensa rede de sendo o dobro dos índices de outras
pesquisas e pesquisadores, dentre estes, regiões do país, o que demonstra a
inclusive de indígenas, ainda ensaiando deterioração das ins tuições (polí ca,
os primeiros passos na vida acadêmica. jurídica, econômica), as quais deveriam
A par r da realização deste Seminário, proteger seus seguimentos mais frágeis

142 Antonio H. AGUILERA URQUIZA. Direitos humanos e educação intercultural: as fronteiras da...
e sub-representados. No entanto, lidera apresenta como um caminho válido de
também, o ranking de possuir a maior diálogo, além de uma proposta polí ca
quan dade de acadêmicos/as indígenas na qual possam ser criadas condições e
nas Ins tuições de Ensino Superior do espaços para a construção de ar cula-
estado, o que representa um sinal de ções entre estes direitos básicos.
que estas minorias sub-representadas Podemos dizer que até os anos
estão negociando novas possibilidades de 1970 na relação entre igualdade e
de existência e gestão de seus territórios. diferença, a ênfase era dada na primeira
parte, impulsionada pelos movimentos
Diversidade e Direitos Humanos marxistas e libertários deste período. O
lema era defender o direito a sermos
A partir das rápidas pinceladas todos iguais. A par r deste período, no
sobre este contexto, até certo ponto entanto, ganha ênfase demandas e polí-
sombrio, nestes úl mos anos, queremos cas que passam a defender os direitos
traçar as linhas de reflexão acerca do à diferença. Assim, surgem as perguntas:
direito à diversidade como um direito somos iguais ou diferentes? O que que-
humano fundamental nos tempos atu- remos, ser iguais ou diferentes? Como
ais. Coincidentemente quase sempre afirmamos, na atualidade ganha forma,
os seguimentos que mais são ví mas da cada vez mais, o foco nas diferenças.
exclusão econômica e social, são oriun- Somos portadores de pertenças culturais
dos de outras matrizes étnicas e cultu- diferentes: hábitos, gostos, tradições,
rais. Sobre eles pesam os preconceitos origens familiares, línguas, religião, va-
e negação do seu direito à diversidade. lores, entre outros. Mas não é só isso,
Os direitos humanos muitas vezes somos, também, diferentes nos direitos:
seguem sendo entendidos, por influên- mulheres, idosos, crianças e adolescen-
cia do liberalismo, como direitos exclusi- tes, afrodescendentes, índios, minorias
vamente individuais e fundamentalmen- étnicas, homossexuais, etc.
te civis e polí cos. No entanto, afirma-se Esta tensão entre a igualdade e
cada vez mais a importância dos direitos a diferença permanece nos contextos
cole vos, culturais e ambientais e, nes- atuais e segue gerando muitos produtos
se sen do, a luta pelo reconhecimento acadêmicos, em especial na vertente
das diferentes iden dades evidencia a dos Estudos Culturais, como os estudos
consciência de que a injus ça cultural de Bhabha (1998), Canclini (2003) e Hall
é a outra cara da injus ça distribu va (2002). Segundo Nunes (2004, p. 25),
nos marcos de construção democrá ca, A reivindicação da igualdade [...]
em que direitos de igualdade devem ser surge, com frequência, em tensão
ar culados com os direitos da diferença com os direitos que se referem à
(cf. SACAVINO, 2012). Nessa perspec - iden dade e à diferença. Essa ten-
va, a proposta da interculturalidade se são reaparece hoje, sob várias for-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 141-154, jan./jun. 2014. 143


mas, no debate [...] sobre a relação sendo não apenas o reconhecimento da
entre polí cas de reconhecimento e diversidade cultural e o direito de cada
polí cas de redistribuição. um manter sua iden dade (mul cultu-
O Brasil tem desenvolvido, nos ralismo), mas, sobretudo, aquela a tude
úl mos anos, um amplo ordenamento que busca a vamente, construir relações
jurídico que, entre outras conquistas, ga- entre grupos socioculturais. Em outras
rante a inclusão e permanência de crian- palavras, trata-se da tenta va dinâmica
ças, adolescentes e jovens no sistema de de construção de diálogos entre grupos
educação pública, com destaque aqui, socioculturais diferentes.
para o ensino superior. Entretanto, entre Nesse aspecto, ao tratar de diálogo
os povos indígenas, este é um direito em intercultural, Catherine Walsh (2007),
alguns casos, ainda negligenciado. Neste dis ngue entre uma interculturalidade
sen do, quando se fala em diversidade e crí ca e outra não crí ca. Esta úl ma
direitos básicos, trazemos a ambivalên- seria iden ficada com prá cas ou pro-
cia dos direitos humanos, um campo que gramas de governos neoliberais que res-
nunca foi hegemônico, ao contrário, uma peitam as par cularidades culturais ou
arena de intensas disputas e debates. linguís ca e cultural, como sendo “pró-
Quando trazemos o tema de que, prio” destes grupos, ao mesmo tempo
na atualidade, a diversidade cultural em que enfa zam a primazia e a neces-
torna-se um direito básico, não apenas sidade de aceder ao “verdadeiro saber
de pessoas, mas de cole vidades, esta- e cultura universal”, ou seja, a ciência
mos afirmando que a diversidade é um eurocêntrica, também conhecida como
elemento fundamental dos direitos hu- conhecimento ocidental. Essa visão hie-
manos. Sintoma camente, nos úl mos rárquica dos conhecimentos é própria de
anos a ONU e outros organismos inter- um posicionamento etnocêntrico.
nacionais vêm colocando esta temá ca A interculturalidade crí ca coadu-
na pauta de suas discussões, como por na-se, assim, com um dos eixos de refle-
exemplo, a Convenção 169 da OIT/1984 xão crí ca do que denominamos estudos
(Organização Internacional do Trabalho), pós-coloniais, especialmente na obra de
e a Declaração dos Direitos dos Povos Grosfoguel (2010), Dussel (2010), Sousa
Indígenas/2007, ressaltando o direito à Santos (2010, 2013), dentre outros,
diversidade e, em especial, à autonomia quando afirma que esta construção deve
e autodeterminação. dar-se a par r dos grupos e comunida-
Para a consecução desses direitos des com uma história de submissão e
básicos e envolvimento das comunida- subalternização, como o caso dos povos
des tradicionais, a prá ca da intercultu- indígenas de Mato Grosso do Sul. Assim,
ralidade tem sido apresentada como ele- segundo Walsh (2007, p. 7-8), quando
mento chave. Entendemos, no âmbito falamos de interculturalidade crítica,
deste trabalho, interculturalidade como trata-se de

144 Antonio H. AGUILERA URQUIZA. Direitos humanos e educação intercultural: as fronteiras da...
[...] uma proposta de um projeto como ele se dá, tendo como referência,
polí co que também pode implicar relações de poder incrivelmente assimé-
uma aliança com pessoas e grupos tricos, marcadas por uma longa história
que, de igual forma, buscam alter- de dominação e negação do outro, o
nativas à globalização neoliberal
diferente, o indígena.
e à racionalidade ocidental, e que
lutam tanto para a transformação
social como para criar condições Estudantes indígenas e o “diálogo de
do poder, do saber e do ser muito saberes”1
diferentes. Pensada desta forma, a
interculturalidade crí ca não é um
Há alguns desafios presentes
processo ou projeto étnico, nem um nesse avanço dos povos indígenas em
projeto da diferença em si mesma. direção aos espaços acadêmicos. Um
É um projeto de existência, de vida. primeiro diz respeito a sua presença na
Universidade e das dificuldades desta
Voltamos, neste ponto, ao eixo das
em dialogar com esses povos, situados
discussões a que este texto se propõe,
em outra tradição cultural, com saberes
qual seja, a de que a diversidade cultural
e processos sociais e históricos diferen-
e a proposição do diálogo intercultural
ciados. Um segundo desafio seria: como
são elementos imprescindíveis para
transitar em direção a uma educação
a convivência entre as sociedades na
contemporaneidade, em par cular, no mais engajada nos problemas diários
contexto do Ensino Superior e quando vivenciados pelos povos indígenas, nos
se trata da presença de indígenas em quais se destacam problemas relacio-
seu interior. nados aos seus territórios, recursos na-
Sabemos que o modelo atual turais e à reconstrução de condições de
de universidade não foi pensado para sustentabilidade, ou, ainda, problemas
atender a todos/as, mas sim, é herdeira decorrentes de relações profundamente
da matriz eurocêntrica, de um po de assimétricas, marcadas e corroídas pelo
hegemonia não apenas sociocultural e preconceito contra seu modo de vida?
econômica, mas também, epistêmica. É Como transformar, nesse contexto, o
neste ponto que a presença de indígenas espaço escolar, em especial o acadêmico,
nas universidades, começa a ques onar em espaço de diálogo, troca e ar culação
o que chamamos de hegemonia do de saberes e alterna vas para uma po-
“cien ficismo”, ao trazer em sua baga- pulação que se confronta com inúmeros
gem, os saberes secularmente acumu- desafios novos? Um terceiro desafio diz
lados e u lizados por suas comunidades respeito ao pós-academia, ao que fazer
e ancestrais. após concluída a trajetória acadêmica.
O próximo item irá tratar exata-
mente deste tema, o diálogo entre os 1
Este item tem por base Aguilera Urquiza e
saberes no contexto da universidade, de Nascimento, 2013.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 141-154, jan./jun. 2014. 145


Considerando, em Mato Grosso do Sul, única de compreensão e concepção de
a situação de conflito aberto entre ín- mundo. Gera instabilidades de cunho
dios e fazendeiros pela posse da terra, epistemológico e metodológico que
agravada por uma relação histórica de dão consistência aos desafios de pensar
exclusão e negação da cultura indígena, relações tais como: culturas locais, cul-
manifestada pelos preconceitos que turas híbridas e globalização; o território
perpassam a relação com o entorno acadêmico com as diversas formas de
regional, como evitar que a passagem produção de conhecimento; a academia
pelas IES não se traduza em nova frustra- e a produção de conhecimento sobre as
ção, amanhã, quando, concluído o curso, diferenças; a universidade como espaço
não encontram trabalho ou, em outros público requisitado pelos índios como
termos, seguem sem lugar na realidade garan a de sustentabilidade étnica e de
regional, assim como em suas próprias reelaboração de conhecimento a par r
aldeias de origem? de lógicas de compreensão de mundo,
A par r do que estamos tratando como âncoras para a produção de alter-
neste texto, um profissional indígena na vas de sustentabilidade econômica
“qualificado” em uma perspec va inter- (NASCIMENTO, 2006).
cultural poderia possibilitar a “solução” No caso dos povos indígenas,
dos problemas tendo os saberes locais percebemos atualmente, a presença e
(tradicionais) como ponto de par da. demanda de dois pos de intelectuais:
Walsh (2009) caracteriza a necessidade - um primeiro po, no qual poderíamos
“por um pensar e agir pedagógicos fun- incluir os assim denominados sábios
damentados na humanização e descolo- indígenas, os maiores conhecedores dos
nização [...] no re-exis r e re-viver como saberes tradicionais, que podem ou não
processo de re-criação” (WALSH, 2009, ter passado por alguma academia e que
p. 38). Para isso a autora aponta o cruza- desempenham um papel fundamental
mento de pedagogias que permitam um na afirmação e produção desses saberes,
“pensar a par r de” e “pensar com”, ou da cultura e da iden dade indígena; -
seja, “construir caminhos outros”. An- mas há hoje, também, outro tipo de
corada em Fanon, Walsh (2009) propõe intelectual, que transita, perfeitamente,
uma pedagogia para construir uma nova nos espaços não-indígenas e que, ao
humanidade ques onadora. mesmo tempo em que manipula com
Por outro lado, a presença indíge- habilidade os nossos referenciais teó-
na nas IES tem provocado uma tensão ricos, afirma, também, de forma cada
no espaço acadêmico, no sentido de vez mais per nente, seu pertencimento
considerar o conhecimento a par r da étnico e, embora, muitas vezes, fora dos
diferença, de outras lógicas epistemoló- espaços das aldeias, está comprome do
gicas que não a produzida pela cultura e ar culado com as demandas de seus
ocidental e imposta como condição povos, em especial, aquelas que dizem

146 Antonio H. AGUILERA URQUIZA. Direitos humanos e educação intercultural: as fronteiras da...
respeito à luta por autonomia e melho- capitalismo”. E conclui, reconhecendo
res condições de inserção no entorno que, “se formando assim os acadêmicos
regional. não terão mais preocupação no cole vo,
Para Eliel Benites (2009), professor que são suas comunidades”.
e acadêmico kaiowá, da Terra Indígena Essa mesma dificuldade é apon-
Te`yikue, município de Caarapó, refe- tada por Gersem Luciano (2009), índio
rindo-se à presença indígena nas IES, baniwa, do Alto Rio Negro, AM, antropó-
reconhece que “nossa maior dificuldade logo e atualmente professor da UFAM.
foi desestruturar aquilo que (já) estava Afirma ele que “O conhecimento aca-
fixado” (BENITES, 2009, p. 29). A simples dêmico é individualizado e priva zado,
“ampliação do acesso”, além de manter vendido de acordo com interesses pes-
os saberes indígenas à margem, se tradu- soais e não de cole vidades” (LUCIANO,
ziria, também, na formação de intelectu- 2009, p, 38). Aliás, esse é um fundado
ais desconectados de seus povos e suas temor de muitos sábios indígenas, frente
lutas e que, após concluírem seus cursos, à crescente demanda dos jovens de suas
não se sen riam mais em condições de aldeias em busca das IES, considerando,
contribuir com os mesmos povos. especialmente, experiências históricas
Na mesma perspec va acima se- recentes. Por isso, afirma o já citado
gue outro professor e acadêmico, Joa- Prof. Eliel Benites (2009), que “é preciso
quim Adiala2, guarani, da Terra Indígena afirmar a nossa visão, para, dessa forma,
de Porto Lindo, município de Japorã: fortalecer a nossa cultura e nosso povo
[...]. Se não soubermos quem somos, não
Muitas vezes as Universidades não
querem aceitar o po de conheci- poderemos a ngir o desenvolvimento e
mento, organização polí ca, social o fortalecimento de nossa cultura e de
e economia dos nossos povos [...]. nossa língua” (BENITES, 2009, p. 38)
Os professores [das IES] não conhe- São, certamente, raros, na histó-
cem os nossos anseios e por isso ria, os “encontros” entre as demandas
não conseguem trabalhar com os e lutas dos povos indígenas e as IES,
acadêmicos indígenas. espaços historicamente reservados às
E segue afirmando que “os acadê- elites regionais, profundamente an -
micos têm uma perspec va e as universi- indígenas. Por isso, as demandas que
dades trabalham com os obje vos delas, os povos indígenas apresentam às IES
o que muitas vezes dificultam a perma- vêm permeadas e atravessadas por in-
nência dos indígenas. Elas só formam tensa disputa de poder num espaço até
para o individualismo, na perspec va do agora a eles inacessível. A afirmação da
iden dade étnica, com ênfase na luta
pelo reconhecimento dos seus saberes,
2
III Encontro de Acadêmicos Indígenas de MS, nos espaços acadêmicos, não pode ser
Dourados, 17-19 de outubro de 2008. dissociada desse viés de disputa de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 141-154, jan./jun. 2014. 147


poder ou, se quisermos, dos processos Nacionais. Não lidamos, apenas, com
de autonomia em construção. “sujeitos escolares carentes”, mas com
Segundo Silva (2000, p. 76), os “sujeitos étnicos diferentes”, frente aos
processos de afirmação da iden dade e/ quais não se trata da universalização da
ou da diferença - termos “mutuamente escolarização, apenas, ou de inclusão
determinantes” - são “fabricados” e desses outros, excluídos, mas na aber-
“criados” no contexto das “relações tura de espaços de diálogo de saberes.
culturais e sociais”. São resultados de Percebe-se, hoje, ser mais fácil para as
um “processo de produção simbólica IES dialogar com as categorias de exclu-
e discursiva” (2000, p. 81), indicando, são e inclusão social do que lidar com
portanto, disputas mais amplas “por re- os desafios postos pelas diferenças,
cursos simbólicos e materiais”, no caso, exigindo prá cas de interculturalidade.
dentro das ins tuições acadêmicas. A Portanto, a percepção de que os
afirmação da iden dade indígena dentro acadêmicos índios vêm de um “eu cole -
dos espaços acadêmicos demonstra que vo ou verdadeiro”, apoiado em “uma his-
o que está em disputa é muito mais do tória e uma ancestralidade par lhadas”
que apenas o direito ao acesso e perma- (HALL, 1990 apud SILVA, 2000, p. 108),
nência nesses espaços. não deve fazer esquecer essa enorme
Para Silva (2000, p. 82), a “demar- diferenciação de olhares, percepções,
cação de fronteiras”, entre um “nós”, leituras e inserções, que trazem para
acadêmicos índios e um “eles”, não- dentro dos espaços acadêmicos.
índios, é resultado e, ao mesmo tempo, Referindo-se à construção de “no-
afirma e reafirma “relações de poder” vos paradigmas de emancipação social”
em operação. Por isso, os desafios por parte de povos subalternizados pela
maiores dizem respeito à dificuldade “modernidade ocidental”, Sousa Santos
em construir experiências de intercul- (2006, p. 33) entende que se trata de
turalidade ou relações interculturais, ou “trabalho arqueológico de escavação”
chegar a um diálogo de saberes dentro em busca de “elementos ou tradições
das IES, que exige ques onar as relações suprimidas ou marginalizadas”, ou “me-
de poder construídas pela modernidade nos colonizadas”, que nos possam guiar
(SOUSA SANTOS, 2005), além da revisão nessa construção.
de metodologias e currículos, para assim O longo processo histórico de
transitar em direção a uma educação negociação e/ou enfrentamentos com
mais aberta às demandas dos povos os colonizadores de ontem e hoje, ao
indígenas. mesmo tempo em que provocou uma
Uma prá ca intercultural exige, enorme gama de perdas: perda da terra,
acima de tudo, a superação, por parte perda de vidas e povos, comprome -
das IES, do modelo de integração, que mento da autonomia e da qualidade
marcou a trajetória histórica dos Estados de vida, permi u aos povos indígenas

148 Antonio H. AGUILERA URQUIZA. Direitos humanos e educação intercultural: as fronteiras da...
construírem inéditas experiências de sumir o papel de “ar culador, intermedi-
resistência, negociação e de luta co- ário e tradutor” desses conhecimentos.
le va, apoiados na “centralidade” de O mesmo professor reconhece que, na
sua cultura (HALL, 1997). São esses os medida em que assume esse papel vem
saberes, com todas as suas ambivalên- se tornando referência na aldeia, mas
cias e contradições, que os acadêmicos que isso exige “humildade” e disposição
indígenas que aportam às Universidades de sempre querer ouvir o outro, sem
trazem e a par r dos quais dialogam com nunca “desclassificá-lo” em caso de
os assim dos como saberes universais, discordância. E conclui afirmando ser
veiculados pelas mesmas Universidades, “esse o problema que ele percebe no
em busca de melhor capacitação. contexto das Universidades” (BENITES,
Trata-se de ensaiar novas prá cas 2009, p. 38).
curriculares e didá cas, nas universida- Ul mamente, no âmbito do Pro-
des – e por que não dizer, na educação grama Rede de Saberes, foram realizadas
básica – a par r de novas bases episte- oficinas de discussão com acadêmicos
mológicas, as quais redimensionam a indígenas, exatamente sobre a possi-
tendência eurocêntrica em hierarquizar bilidade/necessidade do diálogo entre
os conhecimentos, desconsiderando e os saberes ‘tradicionais’ e os chamados
subalternizando outras formas de sa- saberes acadêmicos, a par r do contexto
beres. É significa vo, na sequência, o das universidades, tendo em vista o pró-
depoimento de um acadêmico indígena. prio futuro destes jovens e suas relações
Benites (2009), após reconhecer com as aldeias de origem.
que, inicialmente, veio para a Univer-
sidade em busca de tecnologia e novos Diálogo intercultural como direito
conhecimentos, afirma que hoje, como humano básico das minorias
acadêmico, tem pela frente dois desafios
que considera mais importante: o princi- Quando consideramos os tempos
pal é o de contribuir com a “sistema za- atuais – o avanço dos interesses merca-
ção dos conhecimentos tradicionais”, o dológicos, mega projetos impulsionados
que lhe exige uma crescente ar culação pelo suposto aumento da demanda
com os que, na aldeia, melhor dominam energé ca, globalização3 das tecnolo-
esses conhecimentos (os rezadores); e,
segundo, traduzir para o contexto da al- 3
Atualmente, o fenômeno da chamada globali-
deia e dos desafios de sua comunidade, zação representa um verdadeiro quebra-cabeças
os assim denominados “conhecimentos para pensadores e cien stas de diferentes áreas
universais”. do conhecimento. Parece-nos que não há como
Por outro lado, o professor Eliel negar que se trata de uma realidade complexa,
que nos afeta a todos e que não pode ser redu-
explica logo que não se trata de traduzir
zida a uma única variável. Ao contrário, acre-
esses conteúdos para o guarani, mas as- ditamos que a globalização envolve diferentes

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 141-154, jan./jun. 2014. 149


gias, dentre outros – constatamos que os destas comunidades com seu entorno e
povos indígenas encontram-se em algu- o Estado Nacional.
mas encruzilhadas. Uma delas é a neces- Como ressaltado por Aguilera
sidade dinâmica de preservar valores e Urquiza e Nascimento (2013), as polí-
iden dades culturais, reafirmar a posse cas de Educação Indígena avançaram
e gestão de seus territórios tradicionais4, significa vamente no Brasil, sobretudo
ao mesmo tempo em que desejam ter após o novo ordenamento jurídico con-
acesso às novas tecnologias e acesso a quistado com a Cons tuição Federal de
alguns bens manufaturados. Por outro 1988 e com a Lei de Diretrizes e Bases
lado, como afirmado anteriormente, os da Educação (LDB, Lei n. 9394/96), mas
povos indígenas no Brasil constatam um a educação superior indígena tem sido
retrocesso na garan a de seus direitos, colocada a margem desse processo. So-
em especial àqueles conquistados com mente nos úl mos anos, no contexto das
a Cons tuição Federal de 1988. lutas por polí cas de ações afirma vas5
Nas entrelinhas e ambivalências é que os povos indígenas passaram a ter
presentes neste contexto, a inserção e reconhecidos seus direitos de acesso e
permanência de indígenas no ensino permanência na educação superior.
superior, etapa posterior ao que cha- Nesse contexto, a Universidade
mamos de “Educação Básica”, adquire Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS),
dimensão estratégica sendo uma delas a em 2003, foi a primeira a apresentar uma
de preparar quadros com “ferramentas” proposta de polí ca de ação afirma va
úteis para o diálogo presente e futuro contemplando os povos indígenas, com
a reserva de 10% de suas vagas para este
dimensões – econômica/social, polí ca, cultural,
seguimento. Mesmo assim, temos cons-
tecnológica, incluindo, neste caso, os avançados tatado que apesar dos recentes avanços
meios de informação e comunicação –, que se com relação às polí cas de ingresso de
entrelaçam e não podem ser analisadas de modo negros e índios, a conhecida Lei de Co-
isolado. Vale lembrar que há autores os quais tas (lei 12.711/2012), poucos indígenas
afirmam que se trata de um processo profunda-
mente padronizador das sociedades, dos imagi-
nários cole vos e das mentalidades. E que outros 5
As polí cas de ações afirma vas são medidas
destacam que, porque gera resistência e uma especiais e temporárias, tomadas ou determi-
renovada consciência das iden dades culturais, nadas pelo estado e/ou pela inicia va privada,
a globalização provoca uma nova emergência espontânea ou compulsoriamente, com o
e a mobilização de movimentos iden tários de obje vo de eliminar desigualdades historica-
caráter local e internacional (CANDAU; KOFF, mente acumuladas, garan ndo a igualdade de
2006, p. 473). oportunidades e tratamento, bem como de
4
Assumimos aqui, que a iden dade não é algo compensar perdas provocadas pela discrimina-
dado, mas é uma construção relacional, afirmada ção e marginalização, decorrentes de mo vos
exatamente nas fronteiras da alteridade, confor- raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros
me Fredrik Barth (2000). (KAUFMMAN, 2007).

150 Antonio H. AGUILERA URQUIZA. Direitos humanos e educação intercultural: as fronteiras da...
conseguem entrar nas Ins tuições de de abrirem-se para o diálogo de saberes
Ensino Superior e menos ainda de per- e reconhecimento das trajetórias destes
manecerem, pois são necessárias outras estudantes. Paulo Freire (1977), com sua
ações, como mais informação nas aldeias proposta de “palavra geradora”, já havia
acerca dos processos sele vos (ENEM, alertado para a necessidade do currículo
por exemplo), foco nos processos de ter como ponto de par da para a experi-
acompanhamento destes estudantes nas ência do conhecimento, os saberes locais
IES. A frase mais ouvida nos úl mos de- dos sujeitos da educação.
bates acerca deste tema tem sido: “não Para Coraggio (2003), a universida-
bastam as cotas e bolsas de estudo”. de precisa criar situações em que todos
A partir destas considerações, os professores e alunos percebam no
centro a atenção em outro elemento co diano os conflitos as contradições e
fundamental para a permanência de as ambiguidades presentes. Para ele, é
indígenas no ensino superior, que é preciso dar voz a voz, mas não somente a
a temá ca do diálogo de saberes, ou voz, como também ao corpo, ao gênero,
mesmo uma reconsideração dos atuais à geração, à raça, às diferentes etnias.
paradigmas dos conhecimentos. Para Dessa forma, a universidade deverá ter
início de conversa, podemos dizer que a as portas abertas para não somente aco-
maior parte dos professores universitá- lher jovens indígenas, mas estar disposta
rios não estão preparados para dialogar ao diálogo intercultural, melhor deno-
com a diversidade em suas salas de aula. minado de diálogo de saberes, onde
O educador ou educadora teriam que um dos eixos é o redimensionamento
buscar conhecer melhor a realidade de curricular, para acolher a diversidade,
seus alunos/as, a dinâmica de aprendiza- os saberes outros, aqueles que vêm
gem, para ajudá-los a encontrar melhor da subalternidade, dos seguimentos
os caminhos do desenvolvimento de sub-representados.
suas potencialidades. Voltamos aqui, uma vez mais, ao
Nesse sen do, torna-se urgente tema dos estudos pós-coloniais, refe-
defendermos a necessidade de rever- rentes a estes saberes subalternos, os
mos alguns conceitos estabelecidos quais ainda não encontram espaços na
nas escolas e universidades, como é o educação superior. Quando a academia
caso do próprio currículo. Este está dis- estrutura seu currículo em um mode-
tante da realidade dos estudantes, em lo hegemônico, fruto das relações de
especial dos/as estudantes indígenas, colonialidade, concomitantemente ela
pois desconsideram seus saberes, não provoca a subordinação dos saberes
favorecem a valorização de cada um/a e indígenas e aniquila as possibilidades de
suas especificidades. De certo modo os reconhecimento destes conhecimentos
currículos concebem modelos padrões como socialmente efe vos e elimina a
de conteúdos e de alunos/as, ao invés possibilidade de produção autônoma de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 141-154, jan./jun. 2014. 151


conhecimento desses povos. Segundo saberes e conhecimentos veiculados na
Quijano (2005) é necessário superar a academia.
perspectiva colonialista de produção Portanto, pensar a educação supe-
de conhecimento e ques onar a colo- rior, a par r dos referenciais dos Diretos
nialidade em todas as suas dimensões Humanos é assumir, assim como Paulo
promovendo a desconstrução do dis- Freire (1977) o aspecto do inacabamento
curso, das prá cas hegemônicas e das do ser humano, na sua busca pelo ser
concepções eurocêntricas. mais, tendo a educação intercultural/crí-
Dessa forma, podemos entender ca como instrumento importante para
que o modelo de universidade e o pro- a superação da opressão, da violação
cesso de formação pautado na colonia- dos direitos humanos, originando o ser
lidade excluem outros saberes que não menos, colonizado e sub-representado.
aqueles baseados no modelo disciplinar Para isso, o compromisso com o diálogo
hegemônico na sociedade moderna. intercultural e com os direitos humanos
Quando a universidade e seus docentes é de suma importância, pois, sem essa
assumem que o currículo não prevê a postura, esse compromisso, haverá di-
diversidade e que o número de indígenas ficuldades de construir uma sociedade
ainda é irrisório, eles estão ra ficando o onde os povos indígenas tenham seus
modelo colonial de ciência, e declaran- direitos garan dos (MAGRI, 2012).
do-o o único conhecimento possível de Sendo assim, a educação intercul-
ser adotado. O desafio que ainda não tural e crí ca devem levar os sujeitos
foi assumido é o de descolonizar o saber envolvidos no processo a uma ação que
disciplinar e possibilitar o convívio e o vise desconstruir as relações de subal-
diálogo intercultural e interdisciplinar, ou ternidade, transformar a realidade que
seja, os múl plos saberes existentes nas os despersonaliza. A educação pode
culturas e nas sociedades. despertar nas pessoas que são porta-
dores de direitos, como é o caso dos
Considerações finais
povos indígenas e aqueles que chegam
Pensar uma educação intercultural, à Educação Superior, poderem construir
a par r dos Direitos Humanos é, ao mesmo alterna vas que ajude na busca por seus
tempo, superar as fronteiras da exclusão direitos. Estamos, com isso, afirmando
das minorias sub-representadas, neste que a educação deve despertar nos
caso em especial, os povos indígenas e sujeitos atitudes e competências em
aqueles que acedem ao ensino superior vista de possuírem os instrumentos e
e por outro lado desconstruir as rela- mecanismos da garantia, proteção e
ções de subalternidade em relação aos promoção dos Direitos Humanos.

152 Antonio H. AGUILERA URQUIZA. Direitos humanos e educação intercultural: as fronteiras da...
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Recebido em fevereiro de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

154 Antonio H. AGUILERA URQUIZA. Direitos humanos e educação intercultural: as fronteiras da...
Estudos curriculares no Brasil: o (não) lugar dos
conceitos de interculturalidade, mulƟculturalismo,
hibridismo, raça, etnia e gênero
Curriculum Studies in Brazil: the (non) place
of the concepts of hybridism, interculturality,
mulƟculturalism, race, ethnicity and gender
José Licínio Backes*
* Prof. Dr. no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Católica Dom Bosco.
E-mail: backes@ucdb.br

Resumo
O ar go analisa o (não) lugar dos conceitos de hibridismo, interculturalidade, mul culturalismo,
raça, etnia e gênero no campo do currículo, cuja centralidade ou não produz um conjunto de efeitos
para esse campo. Para fazer a análise, foram lidos e examinados todos os trabalhos apresentados no
Grupo de Trabalho Currículo (GT 12) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Edu-
cação (ANPEd) no período 2008-2012, totalizando 69 trabalhos. A análise mostrou que os conceitos
são u lizados mais como adje vos para qualificar diferentes realidades do que como substan vos e
que o seu significado é pouco explicitado nos trabalhos apresentados. Também foi observada pouca
presença (não-centralidade) dos conceitos e temá cas de gênero e relações étnico-raciais, bem
como de questões ligadas à interculturalidade e ao mul culturalismo no campo do currículo. Ainda
que essa presença contribua para a ressignificação do campo do currículo, concluímos que ela seria
maior se houvesse uma centralidade desses conceitos e uma preocupação maior em explicitá-los.
Palavras-chave
Estudos curriculares. ANPEd. GT Currículo.

Abstract
This paper analyzes the (non) place of the concepts of hybridism, interculturality, mul culturalism,
race, ethnicity and gender in the curriculum field, showing that either their centrality or the lack of it
produces a range of effects on this field. In order to perform this analysis, all the papers presented in
the Curriculum Work Group (GT12) of the Na onal Associa on of Post-Gradua on and Research in
Educa on (ANPEd) in the 2008-2012 period were read and examined, making up the total of 69 papers.
The analysis has shown that the concepts were more o en used as adjec ves to qualify different reali es
than as nouns, and their meanings were barely explicit in the papers. Concepts and themes related to
gender and ethnic-racial rela ons were scarcely evidenced in the papers (non-centrality), and so were
issues concerning interculturality and mul culturalism in the curriculum field. Although such presence
contributes to the re-significa on of the curriculum field, we have concluded that it would be increa-
sed if such concepts were seen as more central and the concern with their explicita on were greater.
Key words
Curriculum studies. ANPEd. Curriculum Work Group.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 155-164, jan./jun. 2014
Considerações iniciais e como provocam ressignificações no
campo do currículo. Por úl mo, apre-
O ar go é fruto da pesquisa “Os sentaremos algumas observações, mos-
conceitos de hibridismo, intercultura- trando o quanto uma centralidade maior
lidade, multiculturalismo, raça, etnia desses conceitos poderia trazer mais
e gênero em trabalhos apresentados ressignificações no campo do currículo,
na ANPED (2008-2012) e suas implica- contribuindo para a construção de um
ções para o campo do currículo” (apoio currículo outro, marcado por formas
CNPq) e analisa o (não) lugar de alguns outras de pensar, estar, sen r, viver e
conceitos no campo do currículo, cuja conviver.
centralidade ou não produz um conjunto
de efeitos para esse campo. Mais espe- Situando a análise
cificamente, centra-se no (não) lugar
dos conceitos de hibridismo, intercultu- O campo teórico para análise dos
ralidade, mul culturalismo, raça, etnia conceitos é o dos Estudos Culturais.
e gênero. Trata-se de um campo que faz uma
Para fazer a análise, foram lidos contundente crí ca à ciência moderna,
e examinados todos os trabalhos apre- sobretudo por ela possuir um caráter
sentados no Grupo de Trabalho Currí- etnocêntrico, sexista, totalizante e colo-
culo (GT 12) da Associação Nacional de nizador. Os Estudos Culturais mostram o
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação caráter construído e arbitrário de todo
(ANPEd) no período 2008-2012, totali- o conhecimento e os interesses impli-
zando 69 trabalhos. cados. No caso da ciência moderna, os
Com o propósito de mostrar o Estudos Culturais mostram que ela es-
(não) lugar dos conceitos analisados, teve e está a serviço de um projeto de
num primeiro momento, situaremos a colonização dos modos de ser, pensar,
perspec va teórica que pautou a análise, viver e conhecer, procurando impor a
isto é, o campo dos Estudos Culturais, sua epistemologia como única válida.
e como os conceitos analisados são Os conhecimentos em desconformida-
entendidos nesse campo, destacando de com a lógica moderna são vistos por
seu caráter polissêmico e as relações ela como falsos, inferiores, atrasados,
de poder implicadas nas tenta vas de primitivos. Sistematicamente, são os
fixação de um conceito. No segundo conhecimentos dos povos indígenas e
momento, mostraremos mais especi- africanos que, por serem produzidos
ficamente a análise dos conceitos nos com outras referências e lógicas, não
69 trabalhos, apontando seu (não) uso, são reconhecidos pela ciência moderna
se há preocupações em defini-los e em como verdadeiros.
explicar sua polissemia, se são u lizados Os Estudos Culturais rompem
mais como adjetivos ou substantivos com os pressupostos da epistemologia

156 José Licínio BACKES. Estudos curriculares no Brasil: o (não) lugar dos conceitos de interculturalidade...
moderna e, apesar de não terem suas cristã...). Para mostrar como a educação
fronteiras bem definidas, organizam-se tem operado para tentar legi mar uma
em torno de alguns interesses comuns, iden dade por meio do seu currículo e
entre os quais, destacamos: a) mostrar apontar outras possibilidades, alguns
que há várias epistemologias válidas; b) conceitos têm sido acionados, entre os
mostrar que conhecimento e poder são quais, destacamos: hibridismo, intercul-
inseparáveis, isto é, a verdade é uma turalidade, mul culturalismo, raça, etnia
questão de poder, e não de adequação e gênero. O uso desses conceitos tem
entre intelecto e realidade; c) todos contribuído para ques onar o currícu-
os conhecimentos carregam as marcas lo, produzindo outros modos de vê-lo.
(raciais/étnicas, gênero, crença, naciona- O currículo passa a ser visto como um
lidade...) dos sujeitos que os produziram; espaço/tempo privilegiado de fabricação
d) o sujeito epistemológico não possui de iden dades e diferenças.
uma essência e é, em grande parte, um Tanto os conceitos de mul cultu-
efeito dos diferentes discursos que o ralismo quanto os de interculturalidade
produziram. Esses efeitos não são fixos e têm sido u lizados junto com adje vos
essenciais, e reconhecê-los é a condição na tentativa de mostrar que há dife-
de possibilidade para subverter a lógica rentes modos de significá-los. Embora
moderna e produzir conhecimentos ou- eles tenham sidos gestados pelos movi-
tros; e) além de mostrar a arbitrariedade mentos sociais étnico/raciais (CANDAU;
e a não-universalidade dos conhecimen- RUSSO, 2010), isso não significa que não
tos produzidos pela ciência moderna, possam ser u lizados com fins conserva-
convém produzir conhecimentos capa- dores e convergentes com os interesses
zes de infiltrar-se na lógica moderna, hegemônicos. Em relação ao mul cultu-
colocando em xeque seus pressupostos; ralismo, a classificação mais recorrente
f) e, por úl mo, talvez o mais importan- é a feita por McLaren (1997). O autor
te, produzir conhecimentos capazes de apresenta quatro pos de mul cultura-
defender os interesses dos grupos cultu- lismo: a) mul culturalismo conservador
rais posicionados pela ciência moderna ou empresarial; b) multiculturalismo
como anormais, patológicos, desviantes, humanista liberal; c) mul culturalismo
subalternos, incapazes, inferiores. liberal de esquerda; c) mul culturalismo
O campo dos Estudos Culturais, crí co ou de resistência.
nos úl mos anos, tem contribuído para O mul culturalismo conservador
a educação, mostrando que, assim como ou empresarial, por pressupor a existên-
a ciência moderna pretende ser a única cia de um déficit cultural dos grupos não-
verdadeira, a educação historicamente brancos, defende que suas diferenças
também tem procurado impor apenas sejam assimiladas e incorporadas na cul-
uma iden dade como verdadeira e legí- tura branca pela convivência “pacífica”,
ma (branca, masculina, heterossexual, ignorando as assimetrias de poder que

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 155-164, jan./jun. 2014. 157


produziram as diferenças. O mul cultu- interculturais a adoção de algumas me-
ralismo humanista liberal aceita que há didas que, na verdade, estão a serviço
igualdade entre as diferenças culturais, do capitalismo e do mercado global.
mas não ques ona a distribuição desi- Embora propague o diálogo entre os
gual dos bens materiais, nem as relações grupos culturais, este a rigor não ocorre,
de poder que produzem as iden dades/ sobretudo porque não são ques onados
diferenças. O mul culturalismo liberal os processos de exclusão, injustiça e
de esquerda argumenta que a aceitação desigualdade. A interculturalidade fun-
da igualdade racial contribui para ocultar cional tem como “função” controlar os
as diferenças, mas afirma que a realidade movimentos sociais e sua luta histórica
humana é marcada naturalmente pela contra a opressão e a injus ça, preten-
diversidade. O equívoco desse po de dendo produzir o consenso de que o
mul culturalismo é entender a diver- Estado está encontrando soluções para
sidade como natural e essencial, e não os grupos subalternizados. A intercul-
como produto da história, da cultura turalidade relacional argumenta que a
e, fundamentalmente, das relações de interculturalidade sempre exis u, pois
poder. Assim, mesmo que faça crí ca a entende como a relação de contato,
ao ocultamento das diferenças culturais, intercâmbio e encontro. Ela ignora as
não rompe com a lógica que produz as relações assimétricas de poder nas quais
discriminações e os preconceitos. Por se deu/dá essa relação, sobretudo no
fim, o mul culturalismo crí co ou de processo colonial e com o fim deste,
resistência problematiza as relações com a colonialidade. Dessa forma, não
assimétricas de poder e privilegia as contribui para diminuir as injus ças e
possibilidades de resistência. Segundo desigualdades; pelo contrário, tende a
esse po, as diferenças não são naturais, aumentá-las. Por fim, a interculturali-
mas fruto da história, da cultura, e são dade crí ca, protagonizada pelos movi-
centralmente uma questão de poder. mentos sociais, segundo Walsh (2013),
Centra-se na construção de relações sobretudo pelos movimentos indígenas,
não-sexistas e não-racistas, bem como ques ona sistema camente as relações
ques ona e luta contra todas as formas de poder ins tuídas, as injus ças sociais
de discriminação/inferiorização. e as desigualdades. Ela ques ona radi-
Em relação à interculturalidade, calmente o modelo econômico e cultural
trazemos a classificação de Walsh (2013). vigente (neoliberalismo), principalmente
A autora cita três pos: a) intercultura- suas estruturas de poder que mantêm o
lidade funcional; b) interculturalidade status quo. Portanto, sua preocupação
relacional; c) interculturalidade crí ca. não está em como inserir os grupos cul-
A interculturalidade funcional é um turais na sociedade vigente (intercultu-
recurso utilizado por Estados latino- ralidade funcional e relacional), mas em
americanos, denominando de polí cas transformar radicalmente a sociedade e

158 José Licínio BACKES. Estudos curriculares no Brasil: o (não) lugar dos conceitos de interculturalidade...
suas estruturas de poder que perpetuam (negros, indígenas...). Os Estudos Cultu-
as injus ças e as desigualdades. rais não negam a existência de diferenças
Em relação ao conceito de hibridis- biológicas, mas se privilegiam os sen -
mo, este tem sido acionado para mostrar dos atribuídos aos seres humanos por
o caráter arbitrário e construído de todas pertencerem a uma determinada raça/
as realidades, num contexto de relações etnia, pois: “na maioria das vezes, os dis-
entre culturas, um campo de relações de cursos da diferença biológica e cultural
poder. Trata-se de um processo agonís - estão em jogo simultaneamente” (HALL,
co, sempre inconcluso, incompleto, sem 2003, p. 71).
solução final: “o hibridismo permite que Quanto ao conceito de gênero,
outros saberes ‘negados’ se infiltrem no para os Estudos Culturais, da mesma
discurso dominante e tornem estranha a forma que o conceito de raça/etnia, ele
base de sua autoridade – suas regras de é entendido como uma construção social
reconhecimento” (BHABHA, 2001, p. 165). e cultural, e não como uma questão de
O conceito de hibridismo possibili- natureza ou de essência. Há múl plas
ta compreender as ar culações e recon- identidades de gênero – não apenas
textualizações que se dão entre as lógi- a iden dade masculina e feminina –,
cas globais e locais, produzindo efeitos todas elas construídas pelas relações
para o campo do currículo. Neste campo, sociais. Novamente, deve-se destacar
a categoria hibridismo nos faz entender que não é que se nega que existe um
as políticas não simplesmente como corpo biológico, mas o interesse é saber
“[...] seleção, produção, distribuição e o que é feito com esse corpo biológico
reprodução do conhecimento, mas como no território histórico, social e cultural.
polí cas culturais que visam a orientar Como salienta Louro (1997, p. 22), “não
determinados desenvolvimentos sim- há, contudo, a pretensão de negar que
bólicos, obter consenso para uma dada o gênero se constitui com ou sobre
ordem e/ou alcançar uma transformação corpos sexuados, ou seja, não é negada
social almejada” (LOPES, 2005, p. 56). a biologia, mas enfa zada, deliberada-
Já em relação ao conceito raça mente, a construção social e histórica
e etnia, para os Estudos Culturais, são produzida sobre as caracterís cas bioló-
categorias discursivas e polí cas (HALL, gicas”. Portanto, enfa za-se o caráter de
2003). O que importa são os significados construção do gênero, o caráter plural,
que circulam em torno da raça/etnia, as múl plas diferenças de gênero, e não
e não uma suposta marca biológica ou algo dado a priori.
essência, como era afirmado no século Como já apontamos, o uso desses
XIX, quando era vista como um conjun- conceitos tem ressignificado o campo do
to de caracterís cas naturais e sicas, currículo. Como esses conceitos têm sido
atribuindo-se qualidades para alguns u lizados nos trabalhos apresentados na
grupos (brancos) e déficits para outros ANPEd e como seu uso tem transforma-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 155-164, jan./jun. 2014. 159


do o currículo é o que problema zare- os 69 trabalhos apresentados no perí-
mos no próximo item. odo 2008-2012. Salientamos que nessa
análise, além do conceito propriamente
O (não) lugar dos conceitos de inter- dito, também se atentou para todas as
culturalidade, multiculturalidade, derivações desses conceitos (ex: mul-
hibridismo, raça, etnia e gênero nos cultural, racial, híbrido...), que foram
trabalhos de currículo incluídas. A síntese dos usos desses
conceitos e de suas derivações1 consta
Com o intuito de visualizar o (não)
no quadro a seguir:
lugar dos conceitos, foram lidos todos

Ano/n. de 2008 2009 2010 2011 2012


ar gos Total
Conceito 13 ar gos 14 ar gos 14 ar gos 14 ar gos 14 ar gos 69 ar gos
Hibridismo 6 ar gos 5 ar gos 8 ar gos 7 ar gos 3 ar gos 29 ar gos
Gênero Nenhum 7 ar gos 5 ar gos 2 ar gos 2 ar gos 16 ar gos
Raça 2 ar gos 5 ar gos 3 ar gos 2 ar gos 4 ar gos 16 ar gos
Mul culturalismo 1 ar go 3 ar gos 3 ar gos 1 ar go 2 ar gos 10 ar gos
Etnia 1 ar go 2 ar gos 2 ar gos 1 ar go 1 ar go 7 ar gos
Interculturalidade Nenhum 1 ar go 1 ar go 1 ar go 3 ar gos 6 ar gos
Ausência dos conceitos 4 ar gos 4 ar gos 3 ar gos 5 ar gos 7 ar gos 23 ar gos
Quadro 1 - O uso dos conceitos de interculturalidade, multiculturalismo, hibridis-
mo, raça, etnia e gênero nos trabalhos de currículo.
Quadro organizado pelo autor.

Num primeiro momento, pode-se derivações não assumem uma centra-


afirmar que os conceitos são citados na lidade – não no sen do de estarem no
maioria dos ar gos, haja vista que, dos centro, mas como é entendida por Hall
69 trabalhos, em apenas 23 não há men- (1997), ou seja, como sendo uma catego-
ção a pelo menos um dos conceitos que ria sem a qual a compreensão se tornaria
foram objeto de análise. Pode-se afirmar, impossível. Há, efe vamente, poucos
ainda, que o conceito mais recorrente foi trabalhos em que um desses conceitos
o de hibridismo, presente em 29 ar gos, é usado com centralidade. Na maioria
seguido pelos conceitos de gênero e raça, das vezes, u lizando-se a dis nção de
cada um presente em 16 ar gos; mul cul-
1
turalismo, presente em 10 ar gos; etnia, Salientamos que dois ar gos falam de gêneros
textuais (um de 2008 e um de 2012) e, obvia-
encontrado em sete ar gos; e intercul-
mente, não foram contados como trabalhos que
turalidade, mencionado em seis ar gos. u lizam o conceito de gênero, pois o que estava
Entretanto, uma análise mais apu- em questão era o conceito de gênero enquanto
rada indica que esses conceitos e suas iden dade do sujeito.

160 José Licínio BACKES. Estudos curriculares no Brasil: o (não) lugar dos conceitos de interculturalidade...
Hall (2003) feita em relação ao uso do des, mostrando que elas não são puras
conceito de mul culturalismo quando nem lineares, mas misturadas, recon-
afirma que esse conceito pode ser usado textulizadas, tensionadas, rear culadas,
como substan vo ou adje vo, os concei- rearranjadas, ressignificadas, negocia-
tos e suas derivações, nos trabalhos do das, traduzidas. Esse uso é o que se
GT de Currículo analisados, são usados pode depreender dos textos analisados.
como adje vos para caracterizar uma Ainda que esse uso esteja contribuindo
determinada realidade, sem que haja, para mudanças curriculares, o potencial
por parte dos autores, uma preocupação analí co desse conceito poderia ser mais
em explicitar o sen do. explorado.
Nesse tocante, merece destaque Com base em nossa análise, que
o conceito de hibridismo, que, como nos indica parecer tratar-se de um ad-
vimos, é o mais recorrentemente citado jetivo multiuso (COSTA, 2006), assim
entre os conceitos que foram objeto de como os adje vos mul cultural e inter-
análise. Ele serve para adje var dife- cultural, como veremos em seguida, é
rentes realidades, tais como: sistema que optamos por u lizar a expressão
ges onário híbrido, polí cas híbridas, (não) lugar dos conceitos, pois eles estão
currículo híbrido, projeto pedagógico presentes em muitos textos, mas sem
híbrido, professores híbridos culturais, problema zar o significado. O conceito
campo educacional híbrido, campo cur- “vai acumulando tantas funções e defini-
ricular híbrido, textos híbridos, discursos ções que acaba se tornando o sinônimo
híbridos, cultura híbrida, pós-graduação do que deveria explicar” (COSTA, 2006,
como espaço híbrido, tecnologia híbrida, p. 125). Uma palavra que serve para
corpos híbridos, saberes pedagógicos adjetivar tantas realidades acaba se
híbridos, saberes profissionais híbridos, tornando vazia de significado. Num texto
conhecimentos híbridos, pedagogia publicado (BACKES, 2012), procuramos
híbrida, tempo híbrido, significações refutar a crí ca que Costa (2006) faz ao
híbridas, experiência híbrida, lugares uso do conceito de hibridismo quando
híbridos, formulações híbridas, fron- afirma tratar-se de uma reflexão circular.
teiras híbridas, elaborações híbridas, Segundo Costa (2006), os autores que
saberes híbridos, polí cas curriculares u lizam esse conceito têm como ponto
híbridas, conhecimentos disciplinares de par da que tudo é híbrido (mundo,
híbridos, imagens híbridas, processos cultura, pessoas...), fazem um esforço
híbridos, iden dades híbridas, processo intelectual enorme para mostrar os
de vivência híbrida, narra vas híbridas, processos híbridos e chegam à conclusão
demandas híbridas, sen dos disciplina- de que “[...] as culturas, as pessoas, a
res híbridos, seres híbridos. globalização, ele próprio são, Eureka!...
Dessa forma, seu uso tem servido híbridos” (COSTA, 2006, p. 125). No tex-
mais para qualificar diferentes realida- to citado, argumentamos que há algum

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 155-164, jan./jun. 2014. 161


simplismo na crí ca de Costa (2006), que, como afirma Bhabha (2001), outros
pois, de certa forma, o que ele afirma em saberes se infiltrem no saber hegemôni-
relação a esse conceito pode ser dito de co, ques onando seu status. Com isso,
outras reflexões: não estamos dizendo que o conceito de
[...] quanto ao argumento da circu- hibridismo não tem contribuído para
laridade do conceito de hibridismo; produzir ressignificações no campo do
parece-nos que há uma simplifi- currículo, apenas que elas seriam mais
cação na argumentação, que, se intensas caso o conceito fosse u lizado
seguida à risca, se aplica a todos explicitando-se seu potencial analí co,
os conceitos. Assim, poderíamos
dizer que os que pesquisam a lógica
e não apenas como adje vo, como em
da sociedade capitalista, segundo geral tem ocorrido.
a ótica do marxismo, partem do Em relação aos conceitos de mul-
pressuposto de que tudo é deter- ticulturalismo e interculturalidade,
minado pela economia e fazem ocorre algo semelhante: eles são mais
pesquisas extensivas para chegar u lizados como adje vos do que como
à conclusão: Eureka! A economia é
determinante. Os que pesquisam na substan vos, e, com raríssimas exceções,
lógica posi vista partem do pressu- não há preocupação em explicitar-se seu
posto de que os problemas sociais significado, nem os diferentes significa-
são de ordem moral e fazem suas dos que têm no campo da educação,
pesquisas para chegar à conclusão: como, por exemplo, as classificações
Eureka! Os problemas sociais são
de ordem moral (BACKES, 2012, que apresentamos anteriormente, fei-
p. 244). tas por McLaren (1997) e Walsh (2013).
Assim, temos: sociedade mul cultural,
Continuamos pensando que o identidades docentes multiculturais,
conceito de hibridismo é relevante para epistemologia mul cultural, professor
o campo da educação, já que, quando mul cultural, interação mul cultural,
“[...] uma categoria serve para empo- espaço mul cultural, educação mul -
derar grupos historicamente subalter- cultural, conhecimento jurídico mul -
nizados, isso é mo vo suficiente para cultural, mercado mul cultural, estudo
que seja u lizada em nossas análises, mul cultural, tratamento mul cultural,
pois reconhecemos que todas as episte- perspectiva multicultural, currículo
mologias são polí cas” (BACKES, 2012, intercultural, diálogo intercultural, rela-
p. 245). Porém, não podemos deixar de ções interculturais, escola intercultural,
reconhecer que, da forma como está preocupação intercultural, prá ca inter-
sendo u lizado na maioria dos traba- cultural, tradução intercultural, fluxos
lhos apresentados no GT de Currículo, interculturais, processos interculturais.
o conceito de hibridismo não contribui Já os conceitos de raça, etnia e
para entender melhor os processos que gênero, quando citados, também com
procura problema zar, tampouco para poucas exceções, o são sem que seja ex-

162 José Licínio BACKES. Estudos curriculares no Brasil: o (não) lugar dos conceitos de interculturalidade...
plicitado seu significado. Ainda que seja centralidade) dos conceitos e temá cas
possível afirmar, com base nos poucos de gênero e relações étnico-raciais, bem
trabalhos que discutem esses conceitos, como de questões ligadas à intercultura-
pelos campos teóricos u lizados e pelos lidade e ao mul culturalismo no campo
contextos em que estão inscritos, que do currículo. Num primeiro momento,
eles são vistos como relacionais, polí cos poderíamos dizer que é a própria lógica
e construídos histórica e culturalmente, da ANPEd, ao organizar-se em GTs, que
se fossem mais explicitados, provoca- produz isso, o que não deixa de ser uma
riam mais ressignificações no campo do verdade – uma verdade tranquilizadora.
currículo. Sua explicitação, conforme Por sabermos que, assim como todas
análise nossa desses conceitos feita no as lógicas, essa lógica não é produto do
Grupo de Trabalho Gênero, Sexualidade acaso, mas fruto das relações de poder,
e Educação (GT 23) e no Grupo de Traba- levantamos a suspeita de uma verdade
lho Educação e Relações Étnico-Raciais angus ante e agonís ca: não será por-
(GT 21) da Associação Nacional de Pós- que, produtos da lógica colonial e da
Graduação e Pesquisa em Educação colonialidade (QUIJANO, 2002; WALSH,
(ANPEd), contribuiria para: a) cri car e 2013), nós, educadores, con nuamos
desconstruir a ênfase biológica das iden- pensando que relações étnico-raciais
dades étnicas, raciais e de gênero, pois devem ser discu das por grupos subal-
ela é reducionista; b) rejeitar e subverter ternizados e que relações de gênero
as concepções fixas e binárias das iden- devem ser debatidas por mulheres e
dades étnicas, raciais e de gênero, pois sujeitos fora da heteronorma vidade?
produzem o etnocentrismo, o racismo, Longe de querermos nos colocar
a normalização, a heteronorma vidade; na posição de quem diz o que pode/
c) iden ficar processos de subversão e deve ser objeto de discussão do campo
ressignificação das iden dades/diferen- curricular ou quais temá cas são mais
ças coexis ndo com prá cas racistas, relevantes, queremos apenas con nuar
etnocêntricas, normalizadoras, hetero- pensando como nos tornamos o que
normais (BACKES, 2013a, 2013b). somos e como podemos nos tornar
sujeitos outros; como produzimos o
Considerações finais nosso currículo e como este nos produz;
e como podemos produzir currículos
Ao concluirmos a análise do GT de outros para assim nos produzirmos de
Currículo da ANPEd, lembramo-nos da outros modos, outros modos de ser,
análise do GT de Educação e Relações viver, pensar, conviver. Continuamos
Étnico-Raciais e do GT Gênero, Sexua- pensando que seguir os rastros dos
lidade e Educação e não poderíamos estudos étnico-raciais, dos estudos de
terminar o ar go sem registrar nossa gênero, dos estudos interculturais e
angús a com a pouca presença (não- mul culturais é um caminho ins gante,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 155-164, jan./jun. 2014. 163


ainda que agonís co. Da mesma forma, análise, sem desconsiderar o uso qualifi-
con nuamos pensando que explorar o ca vo que tem sido recorrente, contribui
potencial analí co de alguns conceitos, significa vamente para o processo de
como os que foram objeto de nossa ressignificação do currículo.

Referências
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Recebido em novembro de 2013


Aprovado para publicação em abril de 2014

164 José Licínio BACKES. Estudos curriculares no Brasil: o (não) lugar dos conceitos de interculturalidade...
ArƟgos
Papel dos formadores, modelos e estratégias
formaƟvos no desenvolvimento docente
Role of teacher educators, formaƟve models and
strategies in teacher development
Ana Ignez Belém Lima Nunes*
João Ba sta Carvalho Nunes**
* Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de
San ago de Compostela (Espanha). Professora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Estadual do Ceará. E-mail: anaignezbelem@gmail.com.
** Doutor em Filosofia e Ciências da Educação pela
Universidade de San ago de Compostela (Espanha).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação da Universidade Estadual do Ceará. E-mail:
joao.nunes@uece.br.

Resumo
Discutem-se o papel do formador na formação con nuada e os modelos e estratégias forma vos
para o desenvolvimento docente. Parte-se da análise do papel do formador, situando a complexidade
de conceituar esse termo, assim como as fragilidades ainda presentes em sua formação. Defende-
se a ideia de que a coerência entre a formação desejada para os professores e a formação de seus
formadores é um aspecto fundamental para promover o desenvolvimento docente. Em seguida,
denotam-se diversos modelos e estratégias de formação con nuada, com suporte na literatura
cien fica e de estudos realizados pelos autores. Ao final, esboçam-se propostas para a melhoria da
formação con nuada desde a perspec va do desenvolvimento docente, a serem implementadas
pelos órgãos gestores e/ou pelas escolas.
Palavras-chave
Formação de formadores. Modelos e estratégias forma vos. Desenvolvimento docentecitarásoutlined
to be implemented by government agencies and/or by schools.
Key words
Training of teacher educators. Forma ve models and strategies. Teacher development.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 167-185, jan./jun. 2014
Introdução profissionais nos mais diversos contextos,
permeados pelas condições sociais, histó-
Inves gar a formação con nua- ricas e culturais. É um conceito potente,
da e o desenvolvimento docente é um cuja abrangência e sistema cidade nos
exercício bastante frequente nas úl mas permitem analisar a formação con nua-
décadas. Discu r esses temas suscita o da, englobando dimensões profissionais,
interesse de muitos educadores, alcan- pessoais e contextuais (HARGREAVES;
çando uma importância que transcende FULLAN, 1996; NUNES, A. 2004).
âmbitos nacionais e uma crescente re- A formação con nuada na visão do
levância inves gadora (ANDRÉ, 2002; desenvolvimento docente é concebida
CUNHA, 2002; DIAS et al., 2009). dentro de um con nuum com a forma-
Uma das muitas razões para jus- ção inicial. Pressupõe uma ruptura com
ficar este interesse procede da com- as anteriores concepções de formação
preensão do importante papel do continuada (reciclagem, capacitação,
professorado no sistema educacional, aperfeiçoamento) e sua ressignificação
principalmente se considerarmos as no âmbito de um marco que valoriza
constantes reformas e as necessidades e aspectos de caráter contextual, organi-
exigências ante as novas demandas pos- za vo e orientado para a mudança.
tas pela sociedade atual. Como assinala Observando essa temá ca, temos
Freitas (1999, p.17), a impressão de um vasto campo de co-
[...] as reformas educa vas levadas nhecimentos que, apesar de bastante
a efeito em nosso país e nos outros mapeado e explorado desde lentes das
países da América La na [...] com mais díspares, ainda permanece com
o obje vo de adequar o sistema partes obscuras e às vezes confusas,
educacional ao processo de rees- geradoras de muitos ques onamentos.
truturação produ va e aos novos Poderíamos destacar, entre outros, o pa-
rumos do Estado, vêm reafirmando pel do formador na formação con nuada
a centralidade da formação dos e as estratégias forma vas1. Se, por um
profissionais da educação. lado, esses elementos nos situam dian-
Por formação con nuada enten- te de uma tarefa desafiante e cheia de
demos o conjunto de “ações forma vas complexidade, de outra parte, nos ins-
deliberadamente organizadas da qual gam e aguçam o espírito inves gador
par cipam os professores posteriormen- na busca de respostas, reflexões e, por
te à sua formação inicial” (NUNES, J., que não dizer, novas perguntas. Discu r
2001, p. 370). Essa formação é aqui situ- esses dois aspectos é o desafio a que nos
ada na perspec va do desenvolvimento propomos neste trabalho.
docente. Esta refere-se a como atualmen-
te os professores se desenvolvem e se 1
Para uma compreensão mais ampla desses e
desenvolveram em suas vidas pessoais e de outros aspectos, indicamos Nunes, A. (2004).

168 Ana I. B. L. NUNES; João B. C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias forma vos no...
1 Papel dos formadores desenvolvimento docente. Ao conceitu-
ar a formação como um processo no qual
Dentre os diferentes elementos os professores devem ser profissionais
presentes na discussão sobre as mo- inves gadores e reflexivos da própria
dalidades e estratégias de formação prática, é preciso que os formadores
continuada para o desenvolvimento também o sejam. A esse respeito Per-
docente, destaca-se a reflexão sobre o renoud (2002, p. 72) informa que “só
papel dos formadores de professores ou um formador reflexivo pode formar
formadores de formadores, reves ndo- professores reflexivos, não só porque ele
lhes de importante atribuição e respon- representa como um todo o que preco-
sabilidade. Concordamos com Escudero niza, mas porque ele u liza a reflexão de
(1998), quando há muito nos adver a uma forma espontânea em torno de uma
da necessidade urgente de dar atenção pergunta, de um debate, de uma tarefa
aos formadores de professores, pois os ou de um fragmento do saber”.
planos e métodos da formação não se A tarefa do formador não é fácil.
operam por si mesmos. Para Vaillant Ela passa pela capacidade de conheci-
e García (2001, p. 20), “os programas mento, análise e domínio de questões
de formação para docentes não dão referentes ao trabalho docente em sala
os resultados esperados devido, entre de aula e na escola. Essa tarefa necessita
outras causas, a que os formadores res- ser revista ao mesmo tempo em que as
ponsáveis pelos programas carecem de discussões sobre a formação estejam
formação adequada”. avançando. Significa que também os for-
No terreno da formação conti- madores devem estar inseridos em um
nuada, pouca atenção é conferida à processo de desenvolvimento docente.
formação dos formadores. Laranjeira Garrido (2000, p. 9) destaca que a a vi-
et al. (1999) asseveram que a discussão dade formadora é bastante complexa e
sobre a formação, papel e especifici- di cil, haja vista seu caráter ar culador
dade do trabalho do formador ainda e transformador, e porque, nas suas pa-
avançou pouco no panorama brasileiro. lavras, “não há fórmulas prontas a serem
Mais recentemente, Statonato (2010) reproduzidas. É preciso criar soluções
iden ficou como a formação de forma- adequadas a cada realidade”.
dores, mais especificamente professores Como formador de professores,
coordenadores de oficinas pedagógicas, partindo da definição de Huberman
mostra limites para lidar com a realidade (1994), estaremos entendendo todo
da prá ca profissional dos professores. aquele profissional que está dedicado
A coerência entre a formação à formação de professores, desenvol-
que defendemos para os professores e vendo seu papel no cenário de escolas,
a formação de seus formadores é um secretarias de educação, centros ou
aspecto fundamental para promover o institutos de formação docente, uni-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 167-185, jan./jun. 2014. 169


versidades, escolas normais e ins tutos formas gerais e especializadas de for-
superiores de educação. Portanto, o mação para que os sujeitos se tornem
formador também é um profissional formadores. Mais de 20 anos depois,
docente, um professor. a literatura específica na área também
No caso específico do Estado do não indica inves gações que demons-
Ceará, essa função também é desempe- trem grandes mudanças nessa realidade
nhada pelos coordenadores pedagógicos (VALLIANT, 2009).
no âmbito das escolas. No contexto atual Esta vasta denominação e a falta
do Estado, esse profissional aparece de unidade na formação do formador
como um dos importantes elementos na sublinham o caráter amplo e dinâmico
formação con nuada dos professores. dessa ocupação, que envolve a vidades
Consoante Garrido (2000) informa, é e responsabilidades diversas no campo
recente a inserção desses profissionais da formação con nuada, mas também
nas escolas e, principalmente, é nova a da inovação, planejamento, avaliação e
natureza formadora de suas a vidades. outros elementos da dinâmica escolar.
Percebe-se, então, a necessidade de que Envolve também diferentes concepções
esses profissionais também trabalhem sobre a formação con nuada e, por con-
em grupos, par lhem suas ideias, experi- seguinte, acerca da função do formador.
ências, sen mentos etc., com seus pares, Deste modo, podemos falar tam-
a fim de que também possam atuar junto bém de perspectivas diferentes para
ao professorado. entender o papel do formador. Em uma
Embora utilizemos a expressão perspec va que prima mais pela raciona-
formador de formadores, é preciso es- lidade técnica, teríamos um modelo de
clarecer que na formação con nuada formador instrutor; um formador espe-
esses profissionais são identificados cialista, transmissor de conhecimentos
sob diferentes denominações, como: aos professores, que os assume apenas
instrutores, mul plicadores, assessores, como receptores passivos. Na inteligên-
coordenadores, técnicos, moderadores, cia de Huberman (1994), as caracterís-
formadores de adultos etc. Sobre essa cas do trabalho desse formador são:
questão, Lanier e Li le (1986) encon- busca da compensação das carências do
traram uma grande variedade de pos sistema, propondo melhoras desde uma
e origens dos formadores, além da perspec va adapta va; respostas aos
dificuldade em definir sua iden dade e professores em forma de receitas; consi-
responsabilidade como profissionais no deração do contexto de formação como
desempenho dessa tarefa; dificuldade um consenso compar lhado; foco em
que é mais acentuada na formação con - tarefas e temas específicos do ensino;
nuada. Dentro dessa etapa forma va, as apresentação de soluções; reprodução
autoras assinalam que não é requerido de esquemas do ensino tradicional e
um corpo de conhecimentos sólidos ou apoio em modelos que hierarquizam a

170 Ana I. B. L. NUNES; João B. C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias forma vos no...
formação geral sobre as aprendizagens definidas como: a busca de superar a
da própria prá ca. dicotomia entre formação inicial e con-
Nesse modelo, o professor se tor- nuada com opções cria vas; o ponto
na dependente do formador, valorizando de par da para os trabalhos é a prá ca
o saber do especialista em detrimento docente, u lizando dis ntas estratégias
do seu saber. Isto enseja uma circuns- de reflexão, como visitas, estudos de
tância de acomodação, conformismo casos, simulações, análises de materiais
e falta de problema zação da prá ca didá cos, gravações etc.
docente. Entendemos que esse modelo Essas atividades são propostas
de formador se adapta a determinados com suporte em um enfoque inves ga-
pos de estratégias forma vas – confe- dor, proporcionando critérios próprios
rências, palestras, cursos especializados ao professor para que enfrente os
sobre temas específicos etc. – porém dilemas da prá ca docente co diana.
não pode ser predominante no cenário A reflexão teórica é introduzida como
forma vo dos docentes. Aprender exige marco para analisar o que ocorre no
entrega, par cipação, diálogo e contex- processo ensino-aprendizagem, estando
tualização. orientada a desenvolver fundamentação
Em uma perspec va crí ca e refle- cien fica que proporcione maior coe-
xiva, temos o segundo modelo de forma- rência à atuação docente. O enfoque
dor como um colaborador do processo didá co com os professores é o mesmo
forma vo dos professores, contrapondo- que se pretende que seja trabalhado
se ao papel de controlador e dirigente. com os alunos.
Nessa visão, o professor é o protagonista A ideia central caracterizadora do
da sua formação e também atua como perfil desse po de formador é a de um
formador de si próprio e de seus compa- profissional voltado a formar professores
nheiros. A figura do formador evolui de com capacidade para ques onar per-
uma compreensão da mudança centrada manentemente a própria prá ca; com
no desenvolvimento individual, para um interesse em problema zar e comprovar
maior compromisso com a escola como a teoria na prá ca, mediante a inves ga-
organização que aprende (VAILLANT; ção na sala de aula.
GARCÍA, 2001). A figura 1 nos ajudará a resumir
Algumas características presen- melhor a ideia central expressa nos dois
tes nas a vidades desse formador são modelos de formadores.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 167-185, jan./jun. 2014. 171


Figura 1 - Modelos de formador

O formador – isso é possível com- estadual e municipal que passaram a


provar – é um elemento que exerce assumir essas funções. Em alguns casos,
importante influência na natureza e na
[...] a falta de quadros locais bem
qualidade do processo forma vo; quali-
preparados, para exercer, de fato,
dade esta relacionada diretamente à in- a função de formadores de pro-
cidência da formação na prá ca docente. fessores – que tem levado muitas
Na lição de García (1989), a relação entre Secretarias de Educação a buscar
o conhecimento pedagógico e como esse profissionais de fora da região para
conhecimento é transmi do e trabalha- realizar o trabalho – geralmente
do tem muita importância na formação acaba produzindo um po de ação
docente. Deste modo, o currículo da distanciada do contexto real do
formação passa pela ação docente do professor (BRASIL, 2002, p.47).
formador e é relevante na qualidade do Ademais desses problemas, é
processo forma vo. preciso considerar que, sem uma rede
A discussão sobre o papel dos de formadores definidos na formação
formadores também aparece no qua- continuada, as secretarias de educa-
dro da polí ca educacional brasileira, ção perdem o controle sobre as ações
no documento Referenciais para a For- desenvolvidas, inclusive desde o plane-
mação de Professores, elaborado pelo jamento das ações forma vas, tarefa
Ministério da Educação (BRASIL, 2002). que as secretarias devem acompanhar
Constatou-se que não houve na forma- como gestoras das polí cas públicas de
ção dos formadores um processo radical educação.
de atualização inserido em programas Enfim, ao refle r sobre a impor-
de desenvolvimento docente, criando tância dos formadores na formação
soluções palia vas, nas quais a formação con nuada, não devemos nos esquecer
con nuada assumiu caráter compensa- de que esses formadores atuam nas
tório, o qual situou os formadores em instituições seguindo determinados
um sistema de terceirização, sendo, modelos e estratégias forma vos. Com-
portanto, os profissionais de fora da rede preender tais modelos e estratégias

172 Ana I. B. L. NUNES; João B. C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias forma vos no...
nos permite avançar na busca de uma gar precipitadamente um programa de
formação continuada que chegue a formação con nuada, sem antes situá-lo
cons tuir espaço de reflexão, análise, em um contexto educacional específico,
inves gação, intercâmbio de experiên- marcado por questões de ordem social,
cias e ideias, cooperação, colaboração polí ca, econômica, pessoal etc.
e integração teoria e prá ca (HARGRE Na análise de uma estratégia
AVES, 1996; ZEICHNER, 1993); uma forma va, é fundamental atentar para
formação con nuada que possibilite o o papel exercido pelos professores,
desenvolvimento pessoal, profissional pois é necessário desenvolver prá cas
e social do professor. forma vas inscritas em modelos que os
considerem protagonistas. Para isso, é
2 Modelos e estratégias de formação preciso romper com esquemas de for-
continuada para o desenvolvimento mação tradicionais, a fim de possibilitar
docente aos docentes a vivência de processos
forma vos com múl plas e dinâmicas
De início, esclarecemos que, apoia- estratégias, que lhes permitam cons tuir
dos em García (1994) e Ramos (1999), e refle r sobre seu espaço profissional,
estamos compreendendo modelos como sua prá ca e contexto. Propicia-se, dessa
sistemas de referência que permitem forma, a criação de uma cultura de ques-
estruturar e dar uma configuração con- onamento e colaboração (LIEBERMAN;
ceitual às estratégias de formação con - WOOD, 2003).
nuada para o desenvolvimento docente. Para abordar os modelos de for-
As estratégias são por nós definidas mação, tomamos como referência a
como as propostas que concre zam, na classificação proposta por R. Y. Ramos
prá ca, os diversos programas/ações de (1999). A esses modelos, iremos inse-
formação con nuada de professores. rir as estratégias propostas por García
Embora diferentes visões sobre o (1994) e Santaella (1998). Entendemos
desenvolvimento docente possibilitem que as classificações propostas pelos re-
estratégias de formação con nuada di- feridos autores nos serão especialmente
versificadas, deve restar claro o fato de úteis para pensar o desenvolvimento
que, muitas vezes, a mesma estratégia docente como algo mais concreto na
pode estar inscrita em diversos modelos prá ca educacional.
em função das intenções e dos interesses
2.1 Modelo transmissivo
das pessoas que os implementam e que
dela par cipam. Os rótulos sob os quais É um modelo centrado basica-
se denomina uma estratégia forma va mente na transmissão de saberes, espe-
não nos informam necessariamente cialmente de cunho teórico. Há grande
acerca da concepção sobre a qual será ênfase na figura do formador como um
trabalhada. Não se pode avaliar nem jul- especialista que irá transmi r a grupos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 167-185, jan./jun. 2014. 173


de professores, em geral, heterogê- Não obstante o fato de os cursos
neos e numerosos, conhecimentos e estarem centrados basicamente na aqui-
informações de naturezas diversas. As sição de conhecimentos e habilidades,
estratégias forma vas inscritas nesse pode-se trabalhar essa estratégia com
modelo situam os professores em um metodologias que possibilitem reflexão,
papel mais passivo, bem como reforçam crí ca e indagação. Bell e Day (1991, p.
uma dicotomia entre a teoria e a prá ca. 9) discutem as vantagens e desvantagens
dessa estratégia de formação:
2.1.1 Cursos como estratégias de for-
mação Vantagens: pode aumentar o co-
nhecimento, pode melhorar as
Esta é uma das estratégias mais habilidades, os professores podem
fortes e adotadas na formação con nu- fazer escolhas do que é oferecido,
ada em dis ntos países. Quando falamos provê oportunidade para refletir
de cursos, podemos nos referir a uma sobre a prá ca profissional, pode
ampla variedade de a vidades, cuja du- ser em tempo completo, pode levar
ração, período, local e programação po- a mais qualificações, pode melhorar
dem variar sensivelmente. Os cursos, no a perspec va de promoção.
entanto, contêm algumas caracterís cas Desvantagens: pode ser muito teó-
básicas que os definem: presença de um rico, as escolhas são determinadas
pelos provedores, pode não refle r
especialista; plano de conteúdo determi-
as necessidades da escola, pode
nado previamente; dirigido a grupos de
não ter aplicação prá ca em sala
professores, algumas vezes em grande de aula, ignora o conhecimento
número; por ocorrer fora da escola; e especializado do professor, pode ter
baseado, geralmente, na aquisição de um custo alto, pode requerer longo
condutas, competências, habilidades e período de comprome mento.
destreza específicas (GARCÍA, 1994).
Muitas das crí cas que se fizeram Acreditamos que, em combina-
a essa estratégia estão centradas na ên- ção com outras estratégias forma vas,
fase conferida ao saber do especialista, avaliadas devidamente e dentro de
na distância entre as necessidades da condições que propiciem o desenvolvi-
escola e o conteúdo dos cursos, na perda mento do pensamento e autonomia do
de autonomia docente sobre o próprio professorado, os cursos são importantes
processo forma vo, pois são a vidades espaços de aprendizagem. Sem consi-
organizadas externamente, na falta de derar esses aspectos que acabamos de
feedback entre professores e agências mencionar, os cursos cons tuem a vida-
formadoras, na metodologia que privile- des con ngentes e isoladas, que pouco
gia a transmissão verbal e na dificuldade contribuem para o desenvolvimento
dos professores de aplicar na prá ca o docente e, em consequência, para a
que aprenderam por meio dos cursos. melhora da prá ca educa va.

174 Ana I. B. L. NUNES; João B. C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias forma vos no...
2.2 Modelo autônomo grande vantagem é a possibilidade de
aprofundamento e atenção a temas mais
O modelo autônomo se fulcra na relacionados às necessidades pessoais
noção de que o professor tem capaci- do professorado, o que dificilmente se
dade e deve dirigir o próprio processo pode obter em outras estratégias de
formativo, baseando-se no princípio natureza assistemá ca.
de que os adultos aprendem melhor Relativamente à autoformação
quando iniciam e propõem a a vida- no plano coletivo, é válido incluir os
de de desenvolvimento docente. Está seminários permanentes (surgidos na
consoante, portanto, com os princípios Espanha nos anos 1970), que são a vi-
da aprendizagem adulta e da carreira dades com caráter de estudo, análise e
docente. As estratégias forma vas aqui reflexão sobre um tema determinado
são escolhidas pelos professores, que pelos próprios docentes. Esses seminá-
não estão sa sfeitos com as ofertas for- rios aparecem como fórmula eficaz para
ma vas propostas pelo sistema oficial, e “aperfeiçoar a formação do professora-
também pelos que tencionam ampliar a do, potencializar a reflexão em grupo,
própria formação, adequando-a às suas elaborar conjuntamente materiais de
necessidades reais e interesses. aula e inves gar e experimentar novos
Nesse modelo, podem ser incluí- modelos didá cos em um contexto par -
dos os congressos, jornadas, simpósios, cipa vo, dentro da comunidade escolar”.
seminários, encontros e outros eventos (XUNTA DE GALÍCIA, 1999, p. 59).
contingentes dessa natureza. Todas Santaella (1998) refere-se aos se-
essas são estratégias que permitem minários permanentes como essencial-
reunir grandes grupos de professores mente voltados para que os professores
em um período curto, oferecendo-lhe possam não apenas conhecer, mas tam-
uma informação especializada e com o bém par cipar da elaboração de currí-
obje vo de trocar experiências, analisar culos, adquirir competências referentes
temas específicos, obter informações à intervenção educativa, conhecer e
etc. (CHAO, 1992). São estratégias in- u lizar novos recursos e estratégias de
teressantes quanto à atualização de co- ensino e aprendizagem e de avaliação,
nhecimentos, ampliação de informações bem como adquirir informações do mun-
e conhecimentos de contextos dis ntos. do cien fico e cultural que possam ser
Outra estratégia consoante com o relevantes à prá ca pedagógica.
modelo autônomo é a licença ou finan- Algumas caracterís cas importan-
ciamento para estudos e inves gações, tes dessa estratégia são: estar formada
des nada à formação individual docen- por um grupo pequeno de professores
te, que se pode concre zar em especia- que varia nos dis ntos contextos, mas
lizações, mestrados, doutorados ou em não é superior a 13 par cipantes; abor-
outros níveis de educação superior. A da temas relacionados com a prá ca

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 167-185, jan./jun. 2014. 175


profissional dos professores membros cional do conhecimento do professor – o
do grupo; possibilita que todos os com- professor adquira uma maior autocons-
ponentes par cipem a vamente; dispõe ciência pessoal e profissional”.
um tempo específico semanal ou quinze- Para esse autor, as estratégias
nal para as reuniões; tem uma duração forma vas derivadas do modelo impli-
total entre 20 e 60 horas como máximo; ca vo/reflexivo podem ser situadas em
está dotada de recursos financeiros; e dois grupos, aos quais acrescentamos o
privilegia a elaboração de uma mono- terceiro.
grafia final. Não iden ficamos ainda essa
estratégia no cenário brasileiro. 2.3.1 Observação e análise do ensino

2.3 Modelo implicativo No primeiro grupo, estão as es-


tratégias que requerem observação
O princípio central do modelo e análise do ensino. Essas estratégias
implicativo ressalta que o professor proporcionam aos professores a oportu-
deve analisar, questionar e avaliar nidade de descrever sua prá ca, refle r
permanentemente sua prá ca, com o sobre ela e trocar experiências com seus
obje vo de melhorá-la e desenvolver- colegas. Santaella (1998, p. 291-300) as
se na profissão por meio da reflexão classificou da forma a seguir descrita.
pessoal e da interação com os demais. • Estudos narrativos, nos quais se si-
Sob esse ponto de vista, o professor tem tuam:
um compromisso é co e polí co com a ◦ estudos biográficos – propõem o
melhoria da educação. A reflexão sobre desenvolvimento do professor como
a própria experiência profissional passa um processo pessoal e subje vo que
a ser condição imprescindível. Como deve estar bem relacionado à sua
informa McCo er (2001), a reflexão em trajetória de vida. Redação, análise
grupo possibilitada por esse modelo e comentários de biografias pessoais
forma vo cria uma atmosfera dialogal, são estratégias muito u lizadas no
crí ca, de par cipação e colaboração. âmbito do desenvolvimento docen-
Os professores, assim, encontram apoio te. Os professores implicam-se como
para mudanças significa vas em suas aprendizes adultos, adquirem poder
prá cas. porque suas vozes são escutadas
Esse modelo, denominado por e refletem sobre si mesmos com a
García (1994, p. 334) de baseado na ajuda de seus companheiros de tra-
reflexão, enseja estratégias de desen- balho. Nesses estudos, u lizam-se
volvimento docente que “pretendem instrumentos como, por exemplo, os
ser como espelhos que permitam que diários de campo; e
os professores possam se ver refle dos, ◦ estudos de casos – baseados prin-
e que através desse reflexo – que nunca cipalmente em situações concretas
é igual ao complexo mundo representa- vividas pelos professores em suas

176 Ana I. B. L. NUNES; João B. C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias forma vos no...
salas de aula. Esses estudos tam- por meio da análise da linguagem, de
bém derivam de suas observações e elaborações pessoais ou conhecimentos.
das observações dos alunos. Deste
modo, criam-se oportunidades efe - Análise dos construtos pessoais
vas para que os docentes examinem, Essa estratégia exibe-se como
não apenas suas experiências pes- uma técnica para analisar as teorias
soais e profissionais, mas também implícitas dos professores, mediante
as de seus pares. Ao estudar casos formas diferentes: entrevistas, grupos,
concretos, os professores estabele- autoinformes etc. Com efeito, ajuda os
cem maior vínculo entre a teoria e professores a tomarem decisões como
a prática, descobrindo os dilemas aprendizes e docentes estratégicos, am-
morais e é cos do ensino. pliando conhecimentos, entendendo a si
• Conversação entre os professores: é mesmos e cons tuindo sua formação em
destacada como promotora do desen- interação com a realidade. Destacamos
volvimento docente porque permite a seguir alguns passos para a análise dos
a reflexão, a confrontação de ideias, construtos pessoais dos professores,
a inves gação, o redimensionamento par ndo de uma adaptação dos estudos
de significados. A esse respeito, Rust de García (1994).
(1999, p. 371), referindo-se ao Resear- • Descrição – os professores explicitam
ch Network Project, cuja metodologia suas concepções sobre temas con-
básica está nas histórias e conversas cretos de sua prá ca profissional, por
entre os professores, destaca que os exemplo, a avaliação da aprendizagem;
par cipantes estão engajados “nessas • exploração – o momento para conver-
conversações para aprender sobre o sas e leituras teóricas sobre o tema;
que significa tornar-se um professor e • reconhecimento e intercâmbio – os
para suportar o desenvolvimento pro- professores buscam perceber as di-
fissional”. As histórias que permeiam ferenças entre suas descrições sobre
as conversações, por conseguinte, o tema e as teorias estudadas, e as
são peças importantes na descoberta, compar lham entre si;
aprendizagem e formulação de um • etapa de negociação – buscam-se os
discurso sobre o ensino e acerca de si acordos em grupo de professores para
mesmo como professores. chegar a uma definição consensual
sobre o tema; e
2.3.2 Análise da linguagem e do pensa- • revisão – contrasta-se a nova definição
mento com as concepções que os professores
No segundo grupo de estratégias, nham no início da análise.
estão aquelas que pretendem contribuir
para o desenvolvimento dos professores

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 167-185, jan./jun. 2014. 177


Análise do pensamento por meio problemas prá cos, desenvolvendo sua
de metáforas profissionalidade.
Essa estratégia parte da ideia da É preciso ma zar a ideia de que
metáfora como importante forma de existem muitos enfoques com relação
linguagem que u lizamos para definir a à pesquisa-ação, todos com distintas
realidade co diana, e procura conhecer ênfases e significados, porém, de um
o modo como os professores compre- modo geral, prevalece a noção de que
endem, experimentam e expressam os se envolver em um processo de inves -
acontecimentos vividos em sua prá ca gação fortalece a autonomia docente e
profissional. Por meio de metáforas a consciência profissional, além de pro-
expressadas pela linguagem verbal ou duzir mais conhecimentos e a vidades
visual, é possível aproximar-se do co- essenciais à prá ca. Para Ellio (1997, p.
nhecimento dos professores sobre o 180), a expressão pesquisa-ação sugere
ensino, refle r em conjunto a respeito que “o obje vo da reflexão consiste em
desses conhecimentos e impulsionar melhorar a qualidade da ação em uma
o seu desenvolvimento profissional e determinada situação mediante a busca
pessoal. O uso de metáforas, analogias de explicações e causas”.
e narra vas pode ajudar os professores É importante, então, tornar a pes-
a conhecerem a si mesmos, bem como quisa acessível aos professores, a fim
a analisarem melhor a implicação de de que possam inves gar sua situação
suas concepções para o conhecimento docente, por meio das mais diferentes
docente. formas, em interação com seus pares.
Isto permite um clima de aprendizagem
2.3.3 Pesquisa-ação e apoio entre pro-
profissional, diálogo, produção de co-
fessores
nhecimentos, integração teoria e prá-
No terceiro grupo de estratégias ca, compreensão e discernimento da
do modelo implica vo, estão aquelas realidade de sua prá ca na escola e do
voltadas para a reflexão, pesquisa sobre contexto social, econômico e polí co no
a prá ca e apoio dos professores entre si. qual estão situados. Não nos podemos
esquecer também de envolver outras
Formação con nuada por intermé- personagens importantes presentes no
dio da pesquisa cenário escolar: diretores, assessores
Centra-se na perspec va do pro- etc. (NUNES, A., 2000).
fessor como um sujeito capaz de refle r,
iden ficar e diagnos car problemas de Apoio profissional mútuo
sua prá ca docente. Está baseada nos Essa estratégia está baseada na
pressupostos da pesquisa-ação, que res- ideia de que as a vidades forma vas
salta a necessidade do professor como vão seguidas de a vidades de assessoria
inves gador capaz de teorizar sobre os entre companheiros ou de assessores,

178 Ana I. B. L. NUNES; João B. C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias forma vos no...
a fim de que o professor perceba a pró- professores, e se harmonizam melhor ao
pria atuação para melhorar sua prá ca. modelo implica vo. Tais expressões têm
Podemos classificá-la em três pos, de como cerne a par cipação a va dos pro-
acordo com os obje vos pretendidos fessores de forma indagadora e reflexiva,
(SANTAELLA, 1998). pois cons tuem importante veículo para
• Apoio profissional técnico – consiste na ajudar os professores a se darem conta
transferência, por parte dos professo- de valores, a tudes e suposições sobre
res, do que aprenderam em seminários a aprendizagem (I’ANSON; RODRIGUES;
e cursos; WILSON, 2003).
• supervisão clínica – também conhecida
como apoio profissional de compa- 2.4 Modelo de trabalho em equipe
nheiros, que destaca “o elemento de Este é um modelo cuja caracterís-
ajuda entre companheiros para o de- ca central reside na resolução de uma
senvolvimento e integração de novos conjunção de problemas comuns por
professores, incremento do diálogo parte de um grupo de professores na es-
e reflexão através da observação e cola. Supõe a par cipação dos docentes
incluso do ensino de companheiros”. no desenho e planejamento da própria
(GARCÍA, 1994, p. 344). Essa estratégia formação. É um modelo que se adapta
requer que a escola desenvolva verda- prioritariamente à formação centrada
deiramente uma cultura de colabora- na escola, sendo suas estratégias tam-
ção, na qual se possam compar lhar o bém compa veis, principalmente com
estabelecimento de metas e a tomada o modelo implicativo. Nesse sentido,
de decisões (HARGREAVES, 1996); Ramos (1999, p. 217) nos esclarece que
• apoio profissional para a indagação a perspec va colegiada está “centrada
– desenvolve-se por meio de uma nas necessidades da escola, mais que
estratégia de pesquisa-ação colabora- nos indivíduos”.
va, com o propósito de proporcionar Acreditamos ser importante res-
melhorias docentes, mediante uma saltá-lo como um modelo de formação,
análise dos processos de resolução de e não apenas como estratégia presente
problemas do ensino (SANTAELLA, em outros modelos, porque põe relevo
1998). à temá ca da cultura colabora va no
Embora o apoio profissional téc- trabalho docente. Para Avalos (1998),
nico seja muito u lizado para designar embora em diversos países, inclusive da
a vidades no modelo implica vo, con- América La na (Chile, Argen na e Para-
sideramos que está mais relacionado a guai desde os anos 1980), a discussão
um modelo transmissivo. Pensamos que sobre o trabalho colabora vo entre os
a supervisão clínica e o apoio profissional professores não seja recente, esse é um
para a indagação transcendem o limite tema profundamente atual e necessário
posto pela concepção de treino dos nos processos forma vos.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 167-185, jan./jun. 2014. 179


Um dos aspectos centrais desse Esses projetos supõem a forma-
modelo é a concepção do grupo como ção nas próprias ins tuições escolares,
um espaço cuja cria vidade e potencial incluindo a vidades diversificadas, nas
de ação se mostram muito maiores do quais os professores desenvolvem ou
que quando os sujeitos trabalham de adaptam um currículo, desenham um
forma individual. O grupo permite e programa ou se implicam em processos
proporciona uma série de aprendizagens de melhoria da escola. Essa estratégia
calcadas na colaboração, diálogo, con- forma va privilegia alguns aspectos es-
fiança, responsabilidade compar lhada pecíficos que, segundo Santaella (1998),
e ampliação de conhecimentos. Deste devem ser considerados:
modo, promove “condições de muito • objetivos e âmbito de aplicação –
maior vitalidade ao processo de forma- conexão do projeto de inovação com o
ção”. (PONTE, 1994, p. 14). Por meio do projeto pedagógico da escola;
trabalho em equipe, os professores dão • planejamento da elaboração do mate-
suporte uns aos outros, fortalecendo-se rial curricular – caracterís cas técnicas,
como grupo profissional. recursos e temporalização;
Esse modelo de formação con nu- • planejamento da aplicação experimen-
ada es mula os professores para que re- tal do material – forma e critérios de
vejam e elaborem novos conhecimentos. validação, par cipantes etc.;
Ins ga também à transformação do en- • avaliação do processo e do material
sino, refazimento do currículo e desen- elaborado – critérios de avaliação,
volvimento – tudo por parte deles – de formas de levá-los a cabo; e
formas alterna vas para pensar e apren- • detalhamento financeiro do custo do
der sobre seus alunos, experimentando projeto.
e acessando o resultado de suas ações. A conexão do desenvolvimento
docente com a ideia de mudança e ino-
2.4.1 Processos de inovação curricular
vação também pôs em marcha o movi-
e formação em escolas
mento de formação centrada na escola,
O princípio no qual se assenta essa considerada como o cenário onde surge
estratégia forma va ressalta a colabo- e se pode resolver a maior parte dos
ração entre professores, pais, alunos e problemas do ensino. A formação no
toda a equipe da escola, como forma de próprio contexto de trabalho do pro-
refle r e analisar os temas importantes fessor possibilita que ele se implique
para o contexto educacional no qual de modo mais efe vo. Imbernón (1999)
estejam inseridos. A ideia central é de destaca que a formação na escola terá
que os projetos de inovação educacional um papel de agente de mudanças e,
sejam pensados em grupos de trabalho, ao mesmo tempo, o desenvolvimen-
nos quais se encontre envolvida toda a to educacional da ins tuição escolar
comunidade educacional. permite criar condições adequadas e

180 Ana I. B. L. NUNES; João B. C. NUNES. Papel dos formadores, modelos e estratégias forma vos no...
favoráveis para que os professores se desenvolvidas. A formação con nuada
formem. deve acontecer com base na realidade
Como exemplo mais concreto da ins tuição, nas necessidades docen-
desse po de estratégia, no panorama tes e nos projetos pedagógicos, contri-
brasileiro, podemos citar a experiência buindo para que a escola cons tua e
de uma escola para jovens e adultos fortaleça um espaço de crescimento para
da rede municipal de Belo Horizonte. todos os que nela estão envolvidos.
Valadares (2002, p. 194) destaca que a
formação teve os seguintes obje vos: Considerações finais
1) envolver alunos e professores na É necessário enfa zar a noção de
elaboração do currículo; conside-
que todos os modelos e estratégias aqui
rando-os sujeitos do processo; 2)
Compreensão do currículo numa
expressos não se excluem entre si, por-
perspec va mais ampla; 3) Constru- quanto podem se complementar, depen-
ção de um projeto interdisciplinar a dendo do contexto, obje vos e metas
par r da pedagogia de projetos; 4) a serem alcançadas na formação con-
Compreender os novos espaços da nuada; mas também dependendo da
formação de professores. concepção de currículo, ensino, escola e,
Tais obje vos foram estabelecidos evidentemente, da clareza sobre o papel
com base no diagnós co de evasão e re- que o professor deve desempenhar. Do
petência constatado na escola. A forma- mesmo modo, é preciso definir também
ção foi desenvolvida de modo cole vo, o papel e o lugar dos formadores.
com fundamento nos mais diferentes É nosso entendimento a ideia de
processos e projetos, como: a criação que a discussão e a implementação de
de uma oficina de ideias, na qual os estratégias forma vas, por conseguin-
professores trocam experiências, apon- te, sejam elas de qualquer natureza e
tam sugestões e expõem seus medos e pertencentes a qualquer modelo, não
angús as; reuniões semanais para acom- podem ser dissociadas da compreensão
panhar e avaliar o projeto; seminários, sobre as necessidades e demandas de
cursos; participação em movimentos formação e do papel de professores e
culturais dos mais diversos; discussão formadores, encontrando, com suporte
de temas sobre o novo perfil do profis- nelas, o espaço e a voz desses protago-
sional da educação etc. A defesa dessa nistas como par cipes a vos em suas
formação é de que o professor nunca trajetórias de formação. Ademais, qual-
está pronto, sempre está se produzindo quer que seja a estratégia forma va,
e, portanto, seu percurso forma vo de- esta só acontecerá se as condições ade-
verá estar sempre aberto ao novo. quadas e o tempo disponível para a sua
A escola é o lugar primeiro para formação forem garan dos a professores
que práticas como essa possam ser e formadores.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 167-185, jan./jun. 2014. 181


Por fim, sugerimos algumas propos- • mapear o atendimento das escolas
tas para a melhoria da formação con nu- pelos coordenadores pedagógicos,
ada, desde a perspec va do desenvolvi- iden ficando zonas mais problemá -
mento docente, a serem implementadas cas, áreas mais bem atendidas, neces-
pelos órgãos gestores e/ou pelas escolas: sidades singulares etc.;
• fazer levantamento e análise sistemá- • potencializar estratégias forma vas,
ca das necessidades forma vas dos como a reflexão na/sobre a prá ca e
professores, promovendo junto deles a pesquisa-ação. Com isso, além de
uma reflexão sobre o tema; envolver de modo mais contundente
• promover a discussão entre órgãos e dinâmico os professores em sua
gestores e escolas, com vistas a buscar formação, são oferecidas opções para
opções para o problema das condi- sua principal demanda: a formação
ções e do tempo disponível para uma ar culada à prá ca;
formação con nuada de qualidade, • fomentar a ideia dos professores como
que possa efe vamente incidir sobre formadores de seus companheiros,
a prá ca pedagógica do professor; não apenas pela troca de experiência,
• ampliar as estratégias e modalidades mas também por meio de estratégias
formativas, oferecendo aos profes- como a observação, o uso de diários,
sores possibilidades de escolha, de seminários temá cos etc.;
acordo com suas mo vações e neces- • estabelecer critérios para seleção e
sidades, inclusive considerando que formação dos formadores, sejam inter-
estão em diferentes etapas da carreira; nos ou externos, bem como organizar
• desenvolver programa formativo o banco de formadores;
dirigido aos formadores, discu ndo • ampliar e fortalecer as estratégias de
concepção e significado da formação formação a distância, facilitando, além
con nuada e o conhecimento de novas do acesso a vários temas adequados às
estratégias e modalidades forma vas, dis ntas realidades dos professores, o
trazidas pela literatura da área ou por intercâmbio das diferentes regiões do
experiência de outros contextos; Município, do Estado ou do País.

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Recebido em agosto de 2013


Aprovado para publicação em dezembro de 2013

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 167-185, jan./jun. 2014. 185


Necessidades formaƟvas dos professores do ciclo
I do Ensino Fundamental de Presidente Prudente,
SP: uma contribuição para o desenvolvimento
profissional do professor
Teacher’s trainings needs of elementary school
in Presidente Prudente, SP: a contribuƟon to the
professional development of teacher
Carla Regina Calone Yamashiro*
Yoshie Ussami Ferrari Leite**
* Professora da Educação Básica da Secretaria de Educa-
ção do Estado de São Paulo, no município de Presidente
Prudente, SP. E-mail: carlayama@gmail.com
** Professora Adjunta do Departamento de Educação
e do Programa de Pós-graduação em Educação da FCT/
UNESP/Campus de Presidente Prudente, SP. E-mail:
yoshie@fct.unesp.br

Resumo
Este estudo tem como objeto as necessidades forma vas docentes e tem como obje vo inves gar as
necessidades forma vas dos professores estaduais do ciclo I das escolas do município de Presidente
Prudente, SP. A pesquisa teve caráter quan -qualita vo e, como procedimento metodológico, foi
aplicado um ques onário para setenta e dois professores. Os resultados ob dos foram analisados
a par r de autores que discutem o sen do atual da educação escolar, a formação de professores
enquanto desenvolvimento profissional e a colaboração da análise de necessidades de formação
como diagnós co para a o planejamento de ações de formação con nua de professores. A pesquisa
possibilitou a elaboração de indicadores de necessidades forma vas dos professores pesquisados.
Palavras-chave
Necessidades forma vas docentes. Formação e de professores. Função docente.

Abstract
The subject of this research is the teacher’s training needs and its aim is directed to finding out
what are the training needs of the teachers of the so-called “ciclo I” (First Stage) of teaching in state
schools in the city of Presidente Prudente, São Paulo state. The research was developed through
the quan ta ve-qualita ve point of view and the methodological produce used was the applica on
of a ques onnaire to seventy two teachers. We were based in autors who discuss themes like the
meaning of the school educa on nowadays, the professional development of teachers and the
contribu on of the analysis of the teacher’s training needs like a diagnosis to plane ac on to the

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 187-199, jan./jun. 2014
forma on of this professional. The inves ga on has enabled the defini on of indices of the inter-
viewed teacher’s training needs.
Key words
Teacher’s training needs. Teacher’s forma on. Teacher’s social role.

1 Introdução e objetivos Dessa forma, a tendência dos


órgãos responsáveis pela formação
Pesquisas a propósito das necessi- con nua de professores em apresentar
dades forma vas docentes são uma rara modelos prontos - que nem sempre
preocupação dos órgãos e ins tuições atendem à demanda de necessidades
responsáveis pela formação de profes- expressas pelos professores - pouco
sores, no auxílio ao planejamento de contribui para o desenvolvimento da
ações des nadas à formação con nua profissionalidade docente, pois a maioria
de professores. deles não se direciona pelas necessida-
Compreendemos, por um lado, des das comunidades e dos professores,
que aspectos além da formação técnico- mas pelas necessidades do sistema.
pedagógica do professor implicam no seu Nossa pesquisa, portanto, foi mo -
desenvolvimento profissional, dentre os vada pela problemá ca do descompasso
quais a sua condição sócio-econômica, as existente entre as necessidades forma -
suas condições de trabalho, a sua forma- vas docentes e os projetos de formação
ção profissional e as suas expecta vas a con nua de professores e respondeu ao
respeito da função docente e do papel da seguinte ques onamento: quais são as
educação escolar na sociedade. Por outro necessidades forma vas dos professo-
lado, entendemos que a par cipação dos res estaduais de ciclo I do Ensino Fun-
professores nas etapas de planejamento damental, do município de Presidente
e avaliação dos projetos de formação Prudente, SP, sendo considerados os
con nua é de suma importância para seguintes aspectos: as suas condições
que suas necessidades sejam sa sfeitas sócio-econômicas, a sua formação pro-
e seu desenvolvimento profissional seja fissional, as suas condições de trabalho
contemplado. No entanto, sabemos que e as suas expecta vas sobre a função
essa par cipação docente é inexistente, docente e a formação con nua?
quando não, mínima e limitada. Ao pro- Assim, este estudo teve como
fessor, geralmente, resta o papel de exe- obje vo geral contribuir com a área de
cutor de tarefas e de a vidades, que pou- formação contínua de professores, a
co repercutem no seu desenvolvimento par r do estudo das necessidades for-
profissional porque são oferecidas sem ma vas dos professores citados. A par r
vínculo com o contexto escolar, em mó- deste obje vo geral, estabelecemos os
dulos sem con nuidade e em horários ex- três obje vos específicos, quais sejam:
traordinários a sua jornada de trabalho. inves gar as necessidades forma vas

188 Carla R. C. YAMASHIRO; Yoshie U. F. LEITE. Necessidades forma vas dos professores do ciclo I do ...
dos professores citados, a par r da ca- 2.1 O sentido social da educação escolar
racterização das suas condições socio-
econômicas, da sua formação cultural A formação de professores está
e profissional, das suas condições de diretamente relacionada ao sen do atri-
trabalho e das suas expecta vas sobre buído à educação escolar e à definição
a função docente e sobre a formação da função do trabalho docente na socie-
contínua de professores; analisar as dade, pois os papéis do professor e da
necessidades forma vas segundo uma escola não estão separados do projeto
concepção de formação contínua de de sociedade que se vislumbra.
professores que ar cula o processo de Tedesco (2004) e Singer (1996)
formação e profissionalização dos do- concordam a respeito da importância
centes no ambiente de trabalho desses da educação escolar na implementação
profissionais; e, por fim, oferecer indica- das bases da sociedade e entendem que
dores para a planificação de projetos de a educação escolar é influenciada por
formação con nua de professores. diferentes representantes sociais fora da
Dando sequência a este texto área educacional. Há uma crise na edu-
apresentamos os principais referenciais cação escolar cujas causas não residem
teóricos norteadores da nossa pesquisa, isoladamente nessa área, mas sim, no
a descrição da sua metodologia e do conjunto das circunstâncias históricas e
seu desenvolvimento e, por fim, os seus sociais associadas ao âmbito econômico
resultados. e polí co da sociedade.
De acordo com Tedesco (2004), a
2 Referencial teórico crise de iden dade da educação escolar
resulta do conflito entre quan dade e
O estudo bibliográfico nos pro- qualidade de ensino. Depois da neces-
porcionou condições para construirmos sidade de expandir o ensino, o próximo
um aporte teórico sobre o sen do social desafio da educação seria garantir o
da educação escolar, as especificidades mesmo grau de equidade qualita va a
da profissão docente, a perspec va de todos. No entanto, há fatores de ordem
formação con nua de professores como econômica que interferem nas questões
desenvolvimento profissional con nuo educa vas. A educação escolar, nesse
e o estudo de necessidades forma vas sen do, pode tornar-se um instrumen-
no campo da formação de professores, to de sa sfação das necessidades do
assuntos que nos serviram de referencial mercado de trabalho apenas e não um
para a reflexão dos dados coletados pelo instrumento de sa sfação das necessi-
ques onário. dades sociais das comunidades.
Em concordância com Tedesco
(2004), Singer (1996) também ressalta
a interdependência entre as questões

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 187-199, jan./jun. 2014. 189


educacionais, polí cas e econômicas, 2.2 As especificidades da função do-
defendendo a importância da par cipa- cente e o contexto de trabalho do
ção polí ca dos diretamente envolvidos professor: questões a se pensar no
no ensino, ou seja: professores e alunos. delineamento de ações formativas de
Segundo esse autor, o sistema educa - professores
vo passa por uma crise que tem raízes
profundas na alienação dos envolvidos Entendemos que a ar culação da
no ensino escolar a respeito “das novas análise de necessidades forma vas aos
características tanto do mercado de processos de profissionalização e de
trabalho como do panorama polí co e formação docentes, a par r do contexto
social” (SINGER, 1996, p. 12). de atuação profissional do professor, é
A par r desses dois autores, com- uma possibilidade de estratégia de for-
preendemos que a educação escolar tem mação que redimensiona tanto a função
encontrado dificuldade de construir e de quanto a formação de professores, pois,
assumir, por si própria e para si própria, supomos, pode contemplar a complexi-
um novo sen do dentro da sociedade dade das caracterís cas específicas do
atual por causa da restrita preocupação trabalho docente.
em subsidiar a a tude reflexiva do pro- Imbernón (2000) define profissio-
fessor, do aluno e da comunidade dentro nalização como sendo o processo socia-
das escolas. Ao professor, ainda não lizador de aquisição de caracterís cas e
foram proporcionados voz nem espaço capacidades específicas de determinada
suficiente para que pudesse interferir profissão e afirma que os conceitos atri-
nesses projetos em favor de uma ideo- buídos às profissões não são neutros,
logia própria, com a finalidade de, assim, são, de outra forma, produtos ideoló-
dotar de sen do a sua ação pedagógica gicos e contextuais, uma vez que “as
e, consequentemente, construir a sua profissões são legi madas pelo contexto
iden dade profissional frente aos desa- popular” (IMBERNÓN, 2000, p. 27).
fios e contradições da sociedade atual. Acreditamos que, no processo de
É nesse sen do que defendemos que as profissionalização docente, combinam-
ações de formação de professores, tanto se elementos de ordem profissional e
inicial como con nua, contemplem a forma va, pois a construção do conhe-
construção constante do sen do da ação cimento profissional docente é um pro-
desses profissionais para a construção cesso con nuo, construído no contexto
de um projeto social mais favorável aos profissional, durante a formação inicial e
ideais dos alunos e comunidades para os a atuação profissional do professor. Esse
quais trabalham. conhecimento é de natureza complexa,
envolvendo a cognição, a experiência e a
intuição, num processo direcionado por
pressupostos é cos e polí cos.

190 Carla R. C. YAMASHIRO; Yoshie U. F. LEITE. Necessidades forma vas dos professores do ciclo I do ...
A especificidade do trabalho do- porciona a reconstrução do pensamento
cente caracteriza-se, por um lado, por dos indivíduos e dos grupos por meio da
aspectos externos à própria docência, reflexão. A prá ca e o desenvolvimento
pois é uma profissão situada em um con- da reflexão, desse modo, são fundamen-
junto mais amplo da organização social tais para que a escola possa se colocar
do trabalho, sendo a sua função bastante como uma mediadora da transformação
direcionada por necessidades, muitas do pensamento humano em contraste
das vezes, não condizentes àquelas pró- ao pensamento socialmente dominante.
prias do contexto interno da escola. No Sendo assim, para atender a
entanto, por outro lado, é uma profissão função educa va da escola, esse autor
que constrói sua iden dade específica, considera essencial a caracterização do
de modo fortemente marcante, por meio trabalho docente como hermenêu co-
das relações que estabelece no interior reflexivo, uma vez que concebe o ensi-
de seu contexto co diano. no como uma a vidade complexa, que
Pérez Gómez (1995), Tardif e Les- ocorre em cenários singulares, determi-
sard (2007) e Roldão (2006) discutem nados pelo contexto. O autor esclarece
como sendo um dos traços específicos que o trabalho docente atua em um
da profissão docente as tensões provo- ambiente psicossocial vivo e em cons-
cadas a par r de uma dupla finalidade tante transformação, no qual interagem
existente na educação escolar, dis ngui- múltiplos fatores e condições. Nesse
da por Pérez Gómez como as funções ambiente, o docente enfrenta problemas
socializadora e educa va. imprevisíveis de ordem prá ca, que re-
Segundo Pérez Gómez (1995), o querem opções é cas e polí cas e que,
papel mediador da escola é concomi- portanto, a mera interferência técnica ou
tantemente socializador e educativo a aplicação de uma regra procedimental
(uma complementa a outra) e, por isso, a pré-determinada não contempla a com-
escola vivencia a constante tensão dessa plexidade das situações educa vas. Para
duplicidade. A função socializadora da es- essa concepção de prá ca docente, o
cola é responsável por amenizar os efei- conhecimento docente é construído na
tos da desigualdade social, sem, contudo, atuação pedagógica, sendo resultado
suprimi-la, pois possui potencialidades da combinação entre a inves gação das
que garantem aos indivíduos e grupos a situações do ambiente educa vo e a u -
possibilidade de se desenvolver intelec- lização dos instrumentos e ferramentas
tual, afe va e socialmente, promovendo conceituais desenvolvidas pelo professor
sua inserção social. Já a função educa va no decorrer da sua formação intelectual.
amplia e revaloriza a atuação da escola, Portanto, para esse autor, o componente
pois atribui a ela um papel de contraste básico da prá ca docente, aquele que
em relação aos princípios da cultura especifica o trabalho docente, é o de-
hegemônica, na medida em que pro- senvolvimento da reflexão.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 187-199, jan./jun. 2014. 191


Para Pérez Gómez (1995), a na- corre-se o risco de impor ao ser huma-
tureza da profissão docente é ar s ca, no uma natureza não própria da sua
porque lida na prá ca com situações humanidade, mas manipulada para fins
sempre únicas, e é também reflexiva, de dominação, repressão e subjugação.
porque requer a reconstrução constante Especificamente a docência, por
do pensamento docente sobre sua prá- sua vez, é um trabalho intera vo porque
ca e sobre outros aspectos de ordem a interação com o “objeto humano” está
é ca, polí ca e cultural, originários das no centro do trabalho do professor. A
situações reais de interação no ambiente docência, “enquanto trabalho de intera-
escolar. ção, apresenta ela mesma alguns traços
Tardif e Lessard (2007, p. 31), por par culares que estruturam o processo
sua vez, redimensionam a docência, de trabalho cotidiano no interior da
conceituando-a como um trabalho inte- organização escolar” (TARDIF; LESSARD,
ra vo, porque “ensinar é trabalhar com 2007, p. 11). Esses traços distintivos
seres humanos, sobre seres humanos, originam-se da própria interação, no
para seres humanos”. Extrapola, pois, contexto escolar, entre os professores
os limites da definição dos trabalhos e seus alunos e entre os professores e
que lidam com a matéria inerte, pois se demais agentes escolares.
caracteriza pela própria complexidade De modo análogo a Pérez Gó-
do seu objeto de trabalho, ou seja, o ser mez (1995) e a Tardif e Lessard (2007),
humano. As interações inerentemente Roldão (2006), por sua vez, acrescenta
estabelecidas entre o trabalhador e o seu que a definição da função docente é
“objeto trabalhado” são dimensionadas histórico-social e que depende de fatores
por fatores que ultrapassam a dimensão extrínsecos e intrínsecos à profissão, o
meramente técnica. A reflexão e a intera- que redimensiona a atuação docente,
ção, portanto, passam a ser componen- ampliando os limites da mera atuação
tes essencialmente relevantes para as técnica para uma atuação é ca, polí ca
relações de trabalho que envolvem o ser e social frente à natureza da docência.
humano como “objeto de trabalho”, pois É nesse sen do que Roldão (2006, p.
“as pessoas não são um meio ou uma 5) defende “a centralidade do conheci-
finalidade do trabalho, mas a ‘matéria mento profissional como factor decisivo
prima’ do processo do trabalho intera- da dis nção profissional”, ou seja, essa
vo e o desafio primeiro das a vidades autora reconhece a importância da
dos trabalhadores” (TARDIF; LESSARD, autonomia como componente funda-
2007, p. 20). Segundo esses autores, a mental na especificidade do profissio-
presença de um outro sujeito na relação nal docente, na atualidade. Ainda para
com o trabalhador conduz para um novo essa autora, o ato de ensinar é o traço
modelo de relação de trabalho, baseado dis n vo da profissão docente e essa
na interação humana, caso contrário, função específica “já não é hoje definível

192 Carla R. C. YAMASHIRO; Yoshie U. F. LEITE. Necessidades forma vas dos professores do ciclo I do ...
pela simples passagem do saber, não empenha-se em mo var os professores
por razões ideológicas, ou apenas por a serem pesquisadores da sua prá ca e a
opções pedagógicas, mas por razões se envolverem em processos de reflexão
sócio-históricas” (ROLDÃO, 2006, p. 2). e de interação. A escola, desse modo,
Roldão (2006) cita como caracterís cas passa a possuir dupla função também
do conhecimento específico do docente na cons tuição do seu trabalhador, o
a sua natureza compósita; a capacidade professor: a função de profissionalizá-lo
analí ca; a natureza mobilizadora e in- e a função de formá-lo permanentemen-
terroga va; a meta-análise; e por fim, a te. A profissionalização e a formação do
comunicabilidade e a circulação. professor estão ligadas diretamente ao
Ao relacionarmos as especifici- exercício de sua prá ca profissional e,
dades do trabalho docente à formação portanto, podem ar cular-se entre si
de professores, compreendemos quais no ambiente da prá ca da docência, ou
caracterís cas impõem-se como neces- seja, o contexto escolar.
sárias ao cul vo de uma formação que De acordo com essa perspec va
melhor contemple a complexidade da de formação, que integra a pesquisa, a
profissão docente. Nesse sentido, ao formação e a profissionalização, a forma-
conceber o trabalho docente como um ção legi ma-se quando contribui “para
trabalho de natureza reflexiva, ar s ca o desenvolvimento profissional do pro-
(PÉREZ GOMÉZ, 1995), intera va (TAR- fessor no âmbito do trabalho e de me-
DIF; LESSARD, 2007) e compósita (ROL- lhoria das aprendizagens profissionais”
DÃO, 2006), concordamos com Imbernón (IMBERNÓN, 2000, p. 45). Isto equivale a
(2000) ao afirmar que a formação de dizer que a legi midade da formação se
professores deve ser redimensionada dá quando as aprendizagens repercutem
para atender as finalidades de superar a nos sistemas de trabalho e, estes, por
mera atualização técnica, possibilitando sua vez, na formação. É por esse mo vo
mais espaços de par cipação e reflexão que acreditamos que o desenvolvimento
do docente; e de es mular a sua cri cida- profissional do professor impulsiona o
de, proporcionando a compreensão das desenvolvimento ins tucional da escola.
contradições da profissão e das situações A formação, portanto, vinculada à
que perpetuam a alienação profissional. profissionalização e à pesquisa a par r
Baseados, então, nesse aporte do local de trabalho, configura-se numa
teórico exposto até aqui, entendemos possibilidade de desenvolvimento da
que a formação de professores, capaz autonomia profissional docente, na me-
de contemplar a complexa natureza dida em que os professores e os futuros
da profissão docente e de desenvolver professores são mo vados a refle rem
um profissional apto a compreender as sobre sua formação e profissionalização
contradições próprias do seu trabalho, de forma ar culada, por meio da pes-
situa-se no contexto da própria escola e quisa, que é realizada por eles próprios.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 187-199, jan./jun. 2014. 193


A análise de necessidades docen- agentes envolvidos nos contextos for-
tes, nesse sen do, configura-se como ma vos é fundamental para o sucesso
um instrumento capaz de direcionar das ações forma vas para adultos, sejam
ações forma vas e também em um meio esses, professores ou outros trabalha-
de formar professores no seu ambiente dores. O motivo dessa certeza é que
profissional. quanto mais espaço os profissionais
têm para discu r e deliberar sobre a
2.3 A análise de necessidades forma- própria formação, mais se envolvem ao
tivas e o planejamento de projetos de longo do processo de formação. Dessa
formação contínua de professores forma, tanto na etapa de determinação
Segundo Rodrigues e Esteves das necessidades forma vas como nas
(1993), a análise de necessidades foi de formulação e avaliação da ação for-
introduzida na área educa va, no final ma va, a negociação leva o profissional
da década de 1960, para auxiliar no a um envolvimento menos passivo no
planejamento de processos forma vos processo forma vo.
que respondessem mais eficazmente às Essa posição mais par cipa va do
exigências sociais. Ainda conforme essas professor pressupõe situações forma -
autoras, por um lado, a análise de neces- vas nas quais este poderá desenvolver
sidades é entendida como uma técnica faculdades intelectuais e comporta-
e um conjunto de procedimentos e, por mentos profissionais mais próximos de
outro, também é concebida como etapa uma abordagem reflexiva sobre as pro-
do processo pedagógico de formação. blemá cas educacionais. Durante essas
O estudo da análise de necessi- situações de formação, todo o conjunto
dades desenvolveu-se e aprofundou-se de seu saber (pessoal, profissional, prá-
primeiro no campo da formação de co, teórico etc.) é acionado na busca de
adultos e depois no campo da formação soluções e propostas para a sa sfação
con nua de professores. Vários autores1, das suas necessidades forma vas.
citados por Rodrigues e Esteves (1993), Os projetos de formação de pro-
concordam que a negociação entre os fessores, segundo Rodrigues e Esteves
(1993), podem ser direcionados no aten-
1
dimento de necessidades levantadas de
FERRY, G. Problématiques et pratiques de
acordo com as seguintes perspec vas:
l´éduca on des adultes. Quelques points de re-
pères pour la forma on des enseignants. Revue do sistema, do formador ou do forman-
française de Pédagogie, n. 50. do. Para essas autoras, dependendo dos
JOBERT, G. Iden té professionnelle et forma on obje vos de cada pesquisa realizada, o
con nue des enseignants, Éduca on perman- seu estudo pode evidenciar: os interes-
ente, n.80.
ses sociais presentes numa dada situa-
DOMINICÉ, P.; ROUSSON, M. L’éduca on des
adults et ses effets. Probléma que et etude da ção de trabalho, revelando necessidades
cas. Berne: Peter Lang, 1981. originárias de um cole vo; as exigências

194 Carla R. C. YAMASHIRO; Yoshie U. F. LEITE. Necessidades forma vas dos professores do ciclo I do ...
do sistema educa vo ou as expecta vas gico e o polí co, uma vez que ele se
e necessidades individuais. conscien za das próprias necessidades
Nesse sentido, conforme Rodri- forma vas diante de seus contextos de
gues e Esteves (1993), no âmbito da atuação profissional.
formação de professores, duas pers- Nesse sen do, a análise de neces-
pec vas dominam a área de análise de sidades forma vas é um meio capaz de
necessidades: a de ajustamento entre a proporcionar ao professor a constante
“procura” de formação e a “oferta” e a reconstrução da sua iden dade a par-
de ajustamento da “oferta” à “procura” r da reflexão do desempenho da sua
de formação. Segundo as autoras, ambas prática dentro do contexto histórico-
as perspec vas residem no campo peda- social no qual está inserido. O estudo
gógico, pois concebem a par cipação do das necessidades forma vas, regido por
docente no processo de levantamento pressupostos teóricos voltados para a
e análise das necessidades, com a fi- concepção do desenvolvimento profis-
nalidade de contribuir para as relações sional con nuo, pode vir a contribuir
pedagógicas entre formador e forman- para o planejamento de projetos de
do. A primeira no sen do de diminuir formação con nua de professores, nos
as resistências quanto aos objetivos, quais as a tudes reflexiva, crí ca e autô-
conteúdos e às estratégias envolvidos noma possam ser colocadas em prá ca.
nas ações forma vas. A segunda, por sua
vez, tem uma finalidade mais forma va, 3 Metodologia e desenvolvimento da
a de garan r ao professor a posição de pesquisa
sujeito da sua formação, incen vando-
o a desenvolver-se tanto pessoal como Tendo em vista nossos obje vos,
profissionalmente, a par r do processo realizamos uma pesquisa de caráter
de planificação das ações forma vas. quan -qualita vo cujo instrumento de
Tomando por base o que foi ex- levantamento das necessidades forma-
posto, reiteramos que a pesquisa sobre vas dos professores foi um ques onário
as necessidades forma vas configura-se composto por quarenta e cinco ques-
em um importante instrumento para o tões, das quais quatro foram abertas e
planejamento de projetos de formação as demais foram fechadas.
con nua de professores. Tais pesquisas Para apreendermos as necessi-
contribuem para levantar dados para a dades desses professores, partimos
elaboração e avaliação de projetos de do pressuposto de que é importante
formação, além de possibilitarem o en- conhecer as suas condições socioeco-
volvimento do professor numa dimensão nômicas, culturais e profissionais, bem
mais ampla do trabalho docente, pois como as suas expecta vas e percepções
possibilita ao professor a compreensão a respeito da educação escolar. Isso
da fluência dialé ca entre o pedagó- porque as necessidades forma vas têm

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 187-199, jan./jun. 2014. 195


relação com a formação, mas também bulados com o auxílio do so ware SPSS4
com as condições de trabalho e com as e foram organizados em sete itens, por
condições sociais, econômicas e culturais meio dos quais pudemos analisar as ne-
nas quais vivem os docentes. Também cessidades dos professores pesquisados
são relevantes, para a compreensão das a par r: do seu perfil socioeconômico-
necessidades dos professores, as suas re- cultural; da sua formação profissional;
presentações sobre os papéis da escola e das suas condições de trabalho; das suas
do professor na sociedade, porque essas expecta vas sobre o papel da escola, o
representações revelam sobre quais trabalho docente e a formação con nua
perspec vas esses professores planejam de professores; quanto aos conteúdos
e atuam no seu trabalho2. das disciplinas de Matemá ca, Portu-
A aplicação dos ques onários foi guês, Geografia, Ciências e História; a
realizada no mês de dezembro de 2007, par r das suas demandas em relação a
para todos os professores das escolas outros conhecimentos escolares; e, por
estaduais que possuíam o ciclo I, do fim, a par r do seu conhecimento sobre
Ensino Fundamental, do município de documentos e programas educacionais
Presidente Prudente, as quais totaliza- oficiais, explicitadas longamente em
vam onze. Havia, na ocasião, cento e Yamashiro (2008).
onze professores lecionando em classes
regulares de 1ª a 4ª séries3, dentre os 4 Resultados da pesquisa
quais dezesseis docentes (14,41%) se
Pesquisar as necessidades forma-
recusaram a preencher o ques onário
vas do grupo de professores par ci-
ou estavam em licença saúde. Foram dis-
pantes deste estudo possibilitou-nos
tribuídos, então, noventa e cinco ques-
formular alguns indicadores para o
onários, dos quais setenta e dois retor-
planejamento de projetos futuros de
naram, correspondendo a uma amostra
formação con nua, quais sejam:
de, aproximadamente, 76%. Os dados
1. Devido à natureza reflexiva,
coletados pelo ques onário foram ta-
ar s ca, intera va e compósita da do-
2
cência, a formação con nua de profes-
Garcia (1995, p. 65), ao citar estudos realizados sores deve superar os meros modelos
por Showers, Joyce e Benne , declara que dentre
as descobertas feitas por esses autores nas suas de atualização técnica, pelos quais vem
inves gações sobre formação con nua de profes- sendo concebida;
sores está a conclusão de que “o que o professor 2. A presença de professores na
pensa sobre o ensino influencia a sua maneira de elaboração, implementação e avaliação
ensinar, pelo que se torna necessário conhecer de ações forma vas favorece a cons-
as concepções dos professores sobre o ensino”.
3
Não compõem esse número as classes de edu-
4
cação especial, pois são atribuídas a professores O so ware SPSS é um sistema de análise esta-
com especificações forma vas para essa tarefa. s ca e manuseamento de dados.

196 Carla R. C. YAMASHIRO; Yoshie U. F. LEITE. Necessidades forma vas dos professores do ciclo I do ...
trução de projetos educacionais mais a formação con nua desses profissio-
próximos da ideologia dos docentes; nais se realize dentro da sua jornada
3. O ambiente de trabalho do de trabalho. De acordo com os dados
professor constitui-se num espaço levantados, 37,6% dos docentes dão
de formação e de profissionalização, aulas em mais de uma escola, dos quais
configurando-se, portanto, como local 22,66% trabalham mais de quarenta
propício para o desenvolvimento de horas semanais dentro da sala aula.
ações formativas capazes de superar Já 23,8% dos docentes apontam como
modelos de formação, baseados apenas ponto nega vo para as ações forma vas
na racionalidade técnica. Conforme os a sua realização fora da jornada de tra-
dados da pesquisa empírica, 39% dos balho do professor e outros 18,8% dos
professores estão de acordo com esta pesquisados expressam ser desgastantes
afirma va, pois apontam como primeira as ações forma vas que possuem carga
opção a escola como local preferido para horária excessiva ou que sobrecarregam
a formação con nua, e 17,7% indicam, os professores com a vidades extras;
como mo vação favorável para o êxito 6. A formação con nua dos pro-
das ações forma vas, a realização destas fessores pesquisados deve assumir o
no horário de trabalho do professor; papel de conscien zar os professores em
4. A análise de necessidades for- relação aos aspectos associados ao de-
ma vas configura-se, por um lado, em senvolvimento e exercício da sua própria
um instrumento eficaz para o levanta- cidadania, além de conscien zá-los para
mento de dados para o planejamento de a importância da formação da cidadania
polí cas públicas des nadas à formação dos seus alunos, já que a pesquisa nos
con nua de professores. Por outro lado, mostrou que a maioria dos professores
configura-se em um procedimento for- pesquisados não assume um posiciona-
ma vo quando ar culado aos processos mento atuante poli camente na socie-
de profissionalização e formação do dade. Cerca de 71% dos professores não
professor; vão a associações de bairro; 47,1 % não
5. A situação profissional dos frequentam os seus próprios sindicatos
docentes favorece ou impede o seu de- e 80% nunca foram a nenhum encontro
senvolvimento profissional. Portanto, a ou reunião de algum par do polí co;
ar culação entre a situação funcional 7. A maioria dos professores pes-
dos docentes com as suas condições de quisados, 91,5%, demonstra disposição
trabalho e com a sua formação con nua em inves r em prol da con nuidade dos
é fundamental para a compreensão das seus estudos. No entanto, para que as
suas necessidades. Dessa forma, diante aprendizagens veiculadas na formação
da situação funcional e das condições con nua contribuam para o seu desen-
de trabalho dos professores partici- volvimento profissional, é importante ter
pantes desta pesquisa, sugerimos que o cuidado de não incen var polí cas que

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 187-199, jan./jun. 2014. 197


valorizem apenas a cer ficação e a mer- pec vamente. Ressaltamos que discu r
can lização de processos forma vos; e refle r sobre os conteúdos curricu-
8. As ações de formação de profes- lares não significa impor ao professor
sores devem levar em consideração as propostas curriculares prontas, pois a
necessidades próprias de cada fase pro- imposição fere o princípio da autonomia
fissional docente. Sendo assim, 41,3% docente. De outra forma, é necessário
dos professores pesquisados (trinta e que o ajuste entre as necessidades dos
um professores) estão no final da carrei- indivíduos (professores e alunos) e do
ra, o que torna relevante considerar as sistema seja possibilitado pelo diálogo
caracterís cas próprias dessa fase como e negociação entre os professores, co-
definidoras para as ações de formação munidade e representantes de órgãos
con nua desses professores; oficiais educacionais;
9. As ações forma vas des nadas 10. Os processos de formação
aos professores pesquisados devem au- con nua devem auxiliar os professores
xiliá-los a superar o conflito, demonstra- a compreender as suas próprias neces-
do pela pesquisa, entre as necessidades sidades formativas para que possam
impostas pelo sistema educacional e as buscar e reivindicar ações de formação
necessidades profissionais dos docentes con nua que efe vamente contribuam
ques onados. Nesse sen do, a análise para o seu desenvolvimento profissional.
das dimensões polí ca, cultural, social e Como demonstrou o levantamento de
é ca do ensino dos conteúdos escolares dados, 29,5% dos professores expressa-
faz-se necessária, além da discussão a ram ser importante levar em considera-
propósito das próprias metodologias ção suas necessidades no planejamento
de ensino, pois proporciona o desen- de projetos de formação con nua;
volvimento da a tude reflexiva e crí ca 11. Conforme os dados levantados
a respeito dos conteúdos disciplinares pela pesquisa, 86,9% dos professores
a serem selecionados para a composi- manifestaram não possuir conhecimen-
ção dos currículos. O estudo reflexivo tos suficientes sobre o FUNDEB e 81,7%
e crí co dos Parâmetros Curriculares alegaram não conhecer suficientemen-
Nacionais para as quatro primeiras séries te o PNE. Desse modo, os projetos de
do Ensino Fundamental, bem como das formação con nua, des nados a esse
Propostas Curriculares para o ciclo I do grupo de professores, devem incen var
Ensino Fundamental do Estado de São o estudo, a reflexão e a discussão desses
Paulo, publicadas em 1986, pode ser o documentos oficiais a fim de embasar
ponto de par da para analisar os conte- teoricamente e mo var esses profes-
údos das disciplinas, uma vez que cons- sores a exercerem um posicionamento
tatado, por esta pesquisa, que a maioria crí co em relação aos encaminhamentos
dos professores conhece regularmente direcionados para a educação escolar do
esses documentos, 30,6% e 73,6%, res- município de Presidente Prudente.

198 Carla R. C. YAMASHIRO; Yoshie U. F. LEITE. Necessidades forma vas dos professores do ciclo I do ...
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Recebido em agosto de 2013


Aprovado para publicação em dezembro de 2013

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 187-199, jan./jun. 2014. 199


Um estudo sobre a formação do pedagogo e o ensino da
MatemáƟca nos anos iniciais do Ensino Fundamental
A study about pedagogue formaƟon and the teaching
of MathemaƟcs in the first years of Elementary School
Simone Marques Lima*
Ademar de Lima Carvalho**
* Graduada em Pedagogia e mestre em Educação pela
UFMT. Professora da rede pública estadual/MT.
E-mail: sivemar@hotmail.com
** Doutor em Educação/UNESP/Marília. Professor Asso-
ciado do Depto. de EDU e PPGEDU/CUR/UFMT.
E-mail: ademarlc@terra.com.br.

Resumo
O presente ar go é resultado pesquisa desenvolvida no Programa de Mestrado em Educação da
Universidade Federal de Mato Grosso sobre a formação do pedagogo e o ensino da Matemá ca. In-
dagou-se: o professor graduado em Pedagogia, para ensinar a Matemá ca nos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental, enfrenta que desafios? Optou-se pela pesquisa qualita va interpreta va. Analisou-se a
organização dos currículos de cinco cursos de Licenciatura em Pedagogia no Estado de Mato Grosso
e os depoimentos de oito professoras que atuam nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na rede
pública municipal de Rondonópolis, MT. Os resultados evidenciam que os desafios enfrentados para
ensinar a Matemá ca nos primeiros anos de escolarização se inserem em questões centradas, na
formação do professor e na organização da escola, e têm, primordialmente, natureza pedagógica.
Palavras-chave
Formação de Professores. Pedagogia. Ensino da Matemá ca.

Abstract
This ar cle is the result of a research conducted on the Master’s Program in Mato Grosso Federal
University on teacher educa on and the teaching of Mathema cs. It was ques oned: what challenges
does the graduated Pedagogy teacher, in order to teach Mathema cs, in Elementary School, face?
It was chosen interpreta ve qualita ve research. It was analyzed, five pedagogy licensing courses
curriculum organiza on in the state of Mato Grosso and eight teachers’ tes monies who work with
public Elementary School, in the municipal district from Rondonópolis, MT. The results make evident
that the challenges faced, to teach Mathema cs in the Elementary School, are inserted in ques ons
like teachers educa on and school organiza on, and they have, primarily, pedagogical nature.
Key words
Teacher Educa on. Pedagogy. Mathema c teaching.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 201-214, jan./jun. 2014
Introdução A relevância acadêmica e social
para este estudo está ancorada nos re-
Este texto apresenta os resultados sultados das avaliações nacionais e inter-
de pesquisa desenvolvida no Programa nacionais acerca da qualidade do ensino
de Mestrado em Educação da Universi- básico no Brasil que têm dado destaque
dade Federal de Mato Grosso in tulada: aos baixos índices ob dos com muita
A formação do pedagogo e o ensino da frequência em relação à aprendizagem
matemá ca nos Anos Iniciais do Ensi- dessa área do conhecimento. Nesta pro-
no Fundamental. O presente trabalho blemá ca, a formação docente tem sido
insere-se nas reflexões sobre a formação apontada como um dos principais fato-
de professores na dimensão crí ca da res de tais resultados. Atualmente, no
educação e preocupa-se, sobretudo, país a responsabilidade pela formação
com a formação do pedagogo e os de- do professor que ensina nos Anos Iniciais
safios por ele enfrentados para ensinar está centrada nos cursos de Pedagogia.
a Matemá ca na 1ª e 2ª fases do II Ciclo A pesquisa, então, par u do enten-
do Ensino Fundamental. dimento de que a condição primeira para
O obje vo central deste estudo o exercício da docência implica em uma
foi compreender e iden ficar como os formação sólida teórico-metodológica
professores dos anos iniciais mobili- sobre a matemá ca e os fundamentos
zam os conhecimentos matemáticos pedagógicos, que possibilite o enfrenta-
apropriados no curso de Pedagogia. mento dos problemas e desafios que se
Buscou-se, especificamente: dialogar apresentam no co diano escolar.
com um determinado referencial teó-
rico que possibilitasse a compreensão Referenciais teóricos e metodológicos
e interpretação dos dados da pesquisa;
entender que concepção de ensino da A pesquisa foi realizada baseada
Matemá ca embasa a prá ca pedagó- nos fundamentos teóricos-metodológi-
gica do professor; analisar o que pensa cos de Bogdan e Biklen (1994), Lüdke e
o professor dos Anos Iniciais do Ensino André (1986), Triviños (2006). A forma-
Fundamental sobre a sua formação; ção do pedagogo tomou como referen-
procurar identificar os problemas, as cial teórico o pensamento de Bissolli da
dificuldades e desafios que professores Silva (2006), Brzezinski (1996), Libâneo
dos Anos Iniciais enfrentam para ensinar (1998), Pimenta (1996), Franco (2008),
os conteúdos matemá cos aos alunos Sheibe (2007), Ga e Nunes (2008). No
da 1ª e 2ª fases do II Ciclo. Com isso estudo sobre a formação do pedagogo,
indagou-se: O professor graduado em constatou-se que o curso de pedagogia
Pedagogia, para ensinar a MatemáƟca tem sido marcada por idas e vindas que
nos Anos Iniciais do Ensino Fundamen- ocasionaram a fragilidade e crise de
tal, enfrenta que desafios? iden dade, contudo, com a aprovação

202 Simone M. LIMA; Ademar de L. CARVALHO. Um estudo sobre a formação do pedagogo e o ensino da...
das Diretrizes Curriculares Nacionais na proposta de Educação Matemá ca
para o Curso de Graduação em Peda- Crí ca. Nesta perspec va, o ensino da
gogia, licenciatura, em 2006, definiu-se Matemá ca deve ser organizado para
que é a docência a base de formação apoiar ideais democrá cos. Isso exige
dos pedagogos. repensar a relação professor-aluno,
Assumindo esta compreensão bem como examinar a natureza do pro-
do pedagogo como professor por ex- cesso ensino-aprendizagem desta área
celência, as discussões e reflexões do conhecimento. Assim, as aulas de
aqui empreendidas detiveram-se em Matemá ca devem considerar a vincu-
compreender a formação do professor lação desta ciência à realidade social do
na perspec va crí ca e emancipadora estudante, seus contextos, seus anseios
da educação, embasando-se em Freire e interesses, visto que o conhecimento
(1987, 1999), Veiga (2009), Kincheloe matemá co é contextualizado, crí co
(1997), Contreras (2002), McLaren e emancipador, sendo subjacente às
(1997), Giroux (1997), Gado (1995), questões sociopolíticas, econômicas,
Saviani (1991), Carvalho (2005), Nóvoa culturais dos alunos e comunidade como
(1992, 2009), Paro (2008), Pinto (2000). defende (SKOVSMOSE, 2001).
Por outro lado, é importante res- Contudo, é importante realçar que
saltar que as novas exigências postas o modelo de ciência que prevalece num
à escola requerem que a formação do certo momento histórico influencia as
professor seja vista como um processo questões epistemológicas e as teorias
permanente de construção de conhe- de aprendizagem das quais derivam a
cimento que ocorre ao longo da vida. mediação pedagógica e suas prá cas, e
Isso obriga a pensar e compreender a reflete diretamente na ação pedagógica
formação inicial dentro deste processo do professor em sala de aula.
con nuo, em conexão com a formação As concepções de conhecimento
con nuada e as experiências vividas pelo matemá co ora se apresentam mais pró-
professor no decorrer da vida profissio- ximas ao que é chamado de modelo tra-
nal docente. Com esta finalidade buscou- dicional de ensino, ora ao modelo cons-
se em Tardif (2002) e nas teorias de tru vista (PIAGET, 1988, 1990; KAMII,
Shulman (1986; 1987 apud Montalvão; 1987). Com foco principalmente no
Mizukami, 2002), contribuições para contexto histórico brasileiro, Fioren ni
tecer as reflexões sobre a cons tuição (1995) aponta algumas tendências pre-
dos saberes dos professores. sentes na práxis pedagógica do ensino
Como a pesquisa almejava com- da Matemá ca, quais sejam: a formalista
preender aspectos relacionados à clássica; a empírico-a vista; a formalista
formação do pedagogo e os desafios moderna; a tecnicista e suas variações;
para ensinar a Matemá ca, para tanto a constru vista e a socioetnoculturalista
orientou-se nos fundamentos teóricos e assinala mais outras duas conside-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 201-214, jan./jun. 2014. 203


radas emergentes: a histórico-crí ca e questões estruturais e históricas da
a sociointeracionista-semântica. Com Educação, com pouco espaço para os
isso em mente buscou-se compreender conteúdos específicos das disciplinas e
as concepções das interlocutoras desta para os aspectos didá cos do trabalho
inves gação a respeito da matemá ca e docente. O conteúdo da educação básica
seu ensino e aprendizagem. (Alfabe zação, Português, Matemá ca,
Para desvelar o objeto de estudo, História, Geografia, Ciências, Educação
buscaram-se os dados empíricos da Física) é pouco explorado nestes cursos,
pesquisa no currículo de cinco cursos sendo abordado, superficialmente, nas
de Pedagogia de Ins tuições de Ensino disciplinas de metodologia e prá cas de
Superior do Estado de Mato Grosso e ensino. Observou-se, portanto, que os
nos depoimentos de oito professoras cursos de pedagogia inves gados não
da rede pública municipal de ensino de conseguem ar cular teoria e prá ca e
Rondonópolis, MT. não oferecem aos futuros docentes os
Ao considerar estes currículos, não elementos necessários para se dar uma
se desejou reduzir a formação deste edu- boa aula. Estes profissionais saem da fa-
cador à sua formação inicial, até porque, culdade sem saber o quê e como ensinar.
a formação de um professor não se limita Ao contextualizar os aspectos des-
à que se desenvolve na graduação, mas ta formação no estado de Mato Grosso,
estende-se ao seu percurso, processo, per nentes aos propósitos desta inves-
trajetória de vida pessoal e profissional; gação, buscou-se entender que novos
compreendendo-a como sendo “incon- significados os professores, sujeitos
clusa” e por isso permanente. Tratou- deste estudo, têm dado à sua formação
se, tão somente, de considerar que a matemá ca apropriada no curso de Pe-
formação inicial se cons tui instância dagogia frente às exigências impostas
essencial para o exercício do trabalho pela realidade concreta da escola.
docente. Para estabelecer uma possível Recorreu-se, portanto, a três ins-
ar culação entre como são organizados trumentos de coleta de dados: a análise
os cursos de Pedagogia no Brasil e o que de documentos, especificamente a ma-
as ins tuições de Mato Grosso estão pro- triz curricular e as ementas das discipli-
pondo, considerou-se o estudo realizado nas que tratam da formação matemá ca
por Ga e Nunes (2008). do pedagogo a fim de conhecer as dis-
Para estas pesquisadoras, existe ciplinas, a carga horária e os conteúdos
um descompasso entre o que as faculda- des nados à formação matemá ca do
des de Pedagogia oferecem aos futuros pedagogo; o ques onário, no qual se
professores e a realidade encontrada indagou a respeito de dados pessoais
por eles nas escolas. Nas Ins tuições de todos os professores que atuam com
de Ensino Superior (IES) investigadas a Matemá ca nas fases delimitadas por
constatou-se um destaque enorme as este estudo na rede municipal, locus da

204 Simone M. LIMA; Ademar de L. CARVALHO. Um estudo sobre a formação do pedagogo e o ensino da...
inves gação; por fim a entrevista semies- situado no núcleo desta questão, cabe
truturada buscou, nos depoimentos das a ele não apenas a tarefa de transmi r
professoras selecionadas para o estudo, conhecimentos, mas de criar as condi-
elementos que serviram de subsídios à ções pedagógicas a fim de que os alunos
compreensão do que é subentendido possam aprender a pensar e construir
nesta questão de pesquisa. conhecimentos. Trata-se, portanto, de
complexo trabalho que requer um re-
Algumas informações relevantes pensar do processo pedagógico-didá co
sobre o locus da pesquisa do professor.
Emergiu, por ocasião deste estudo,
Resultados apontados
a necessidade de ponderar que a rede
pública municipal de ensino de Rondo- A análise dos dados se deu pelo
nópolis, MT, está organizada em Ciclos diálogo entre três fontes: as falas das
de Formação Humana tendo em vista professoras, os suportes teóricos busca-
que este modelo de organização escolar dos nos autores de referência para esta
busca resolver os problemas da evasão e pesquisa e a realidade – do contexto em
da repetência e traz uma reestruturação que as educadoras atuam, e dos currí-
do Ensino Fundamental que respeita os culos dos cinco cursos de Licenciatura
diferentes ritmos de aprendizagem de Plena em Pedagogia, já referidos neste
cada criança, seu conhecimento prévio, texto. Pretendeu-se com este diálogo
seus modos de aprender, a fim de dar elucidar quais são os desafios que o pro-
respostas sa sfatórias aos problemas fessor graduado em Pedagogia enfrenta
colocados hoje pela sociedade e pelos para ensinar Matemá ca nos Anos Ini-
alunos. ciais do Ensino Fundamental.
Essa mudança de paradigma com Para a análise dos dados, organi-
o abandono da lógica classificatória exi- zou-se da seguinte maneira: A formação
ge a busca de alterna vas efe vas para do pedagogo enfoca que suporte o curso
garan r o avanço do discente no que se de Pedagogia oferece para o trabalho do
refere à progressão com aprendizagem. professor com o ensino da Matemá ca;
Nesta perspec va, considerando os tem- O processo ensino-aprendizagem tem
pos e espaços, a ação educa va deve se
como foco as concepções de ensino
dar na dimensão do trabalho cole vo
desta área do conhecimento; A atuação
que deve envolver toda a equipe escolar
do pedagogo no ensino da MatemáƟca
com vistas ao atendimento das neces-
nos Anos Iniciais do Ensino Fundamen-
sidades individuais de cada aluno. Esta
tal: desafios e problemas enfrentados
empreitada se apresenta para o docente
apresentam-se os desafios que o peda-
como um grande desafio, sobretudo
gogo encontra para ensinar a Matemá-
para o ensino da matemá ca, visto que,
ca. Toda a discussão foi permeada pelo

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 201-214, jan./jun. 2014. 205


diálogo em torno de limites, desafios e semân ca. Há convergência nos discur-
possibilidades, relacionados à formação sos das docentes quanto à concepção de
do pedagogo e ao ensino da Matemá ca, Matemá ca, no tocante à ideia de que a
que emergiram ao longo do estudo e, mesma faz parte do co diano do aluno,
principalmente, dos dados da pesquisa. sendo entendida como ciência ligada à
Na dimensão da formação do pe- vida com a finalidade de resolver pro-
dagogo para o ensino de Matemá ca, blemas do dia a dia. No que diz respeito
nos currículos dos cursos pesquisados, às concepções de ensino e de aprendiza-
sobressai a pequena carga horária des- gem de Matemá ca, o ensino aparece,
nada à tal formação, que a nge em majoritariamente, na perspectiva da
média 4,5% da totalidade em cada curso. construção, da elaboração, que dá maior
A metodologia aparece como aspecto valor ao processo do que ao produto na
fundamental da formação em detrimen- produção do conhecimento matemá co.
to dos conteúdos a serem ensinados pelo No que se refere à atuação do
futuro docente. A fala das professoras, pedagogo no ensino de MatemáƟca na
por seu turno, apontou a ênfase dada à 1ª e 2ª fases do II Ciclo do Ensino Funda-
formação insuficiente para o ensino de mental, a inves gação evidenciou que:
Matemá ca, que, para elas, é devida a os desafios e problemas enfrentados,
dois fatores: o distanciamento entre o inserem-se em questões centradas na
que é ensinado no curso e a realidade formação do professor, na organização
escolar; e a falta de ar culação entre da escola por Ciclos de Formação Hu-
teoria e prá ca. mana, no aluno e na família do aluno.
Disto se depreende que as edu- A problemá ca da formação, no
cadoras entrevistadas demonstram entendimento dessas educadoras, re-
entender que o curso de Pedagogia side mais fortemente na apropriação
cons tui-se num espaço de formação insuficiente dos conteúdos matemá cos
que, mesmo sendo um pré-requisito ne- a serem ensinados. O fato é que as de-
cessário ao exercício docente e tendo a poentes deixam claro em seus discursos
obrigação de muni-los dos fundamentos que se percebem como agentes des tu-
para o ensino, não é capaz de prepará-los ídos do conhecimento do conteúdo que
sa sfatoriamente para atuar no ensino precisam ensinar. Nesta condição, recor-
de Matemá ca. rem, principalmente, ao livro didá co
Nos aspectos relacionados ao para transformar o conteúdo específico
processo ensino-aprendizagem de Mate- em ensinável.
má ca no co diano escolar, constatou-se Contudo, é preciso enfa zar que
que a prá ca das interlocutoras orienta- não basta ao educador saber o conte-
se por pressupostos das tendências de údo matemá co, como foi explicitado
ensino empírico-a vista, constru vista, pelas docentes. Outros elementos são
socioetnocultural e sociointeracionista- relevantes para que este conhecimento

206 Simone M. LIMA; Ademar de L. CARVALHO. Um estudo sobre a formação do pedagogo e o ensino da...
específico em Matemá ca se transforme no trabalho com classes bastante hete-
em conhecimento escolar. Para fazer rogêneas nos níveis de aprendizagem e
a transposição didática, o professor ao problema do deficit de aprendizagem
também necessita da apropriação de co- dos alunos, considerado pelas docentes
nhecimentos que são base da docência, como consequência da organização da
entre eles, os conhecimentos pedagógi- escola em ciclos.
cos, do aluno e do contexto. Mostra-se Em um sistema de ensino que
importante, pois, compreender as pe- permite a formação de turmas conside-
culiaridades que envolvem o trabalho ravelmente heterogêneas na questão
docente ao ensinar Matemá ca em um das aprendizagens, como é o caso desta
sistema de ensino organizado por Ciclos organização escolar, torna-se exigência
de Formação Humana. É preciso, ainda, basilar que o professor consiga ensinar
ponderar as par cularidades que este alunos que se encontram em níveis de
sistema encontra no município onde as aprendizagem bastante diferentes den-
entrevistadas ensinam a disciplina em tro de uma mesma sala de aula. Na visão
pauta. das depoentes, trata-se de um trabalho
Com efeito, ensinar a Matemá ca desafiador e complexo, não sendo,
no contexto da escola organizada por muitas vezes, possível obter resultado
ciclos exige que o desenvolvimento dos sa sfatório com todos os educandos no
programas leve em conta uma visão da tempo e espaço regulares da aula.
Matemá ca que seja flexível, de forma Por isso, consideram que, nesse
a propiciar meios para que o docente contexto, é imprescindível aos alunos
possa trabalhar com mais autonomia, que continuam apresentando deficit
respeitando o processo de maturação do de aprendizagem, mesmo depois das
aluno. É um trabalho desta natureza que intervenções pedagógicas realizadas no
permite uma elaboração e reelaboração período regular, que par cipem simul-
por parte do aprendiz desde o primeiro taneamente das aulas de Apoio Peda-
momento em que ele se apropria das gógico. Ao enfa zarem a seriedade de o
ideias básicas, até a fase do pensamento aluno frequentar essas aulas, apontam a
lógico-dedu vo. ausência de compromisso dos pais com
Os desafios para o pedagogo ensi- esse programa, visto que, por vezes, não
nar a Matemá ca, que nos depoimentos enviam seus filhos para esses encontros
aparecem como sendo ligados ao aluno oferecidos no contraturno.
e à família deste assumem, de fato, uma A discussão não se esgota focan-
natureza pedagógica devendo também do apenas a responsabilidade de pais,
estar associados à temática do mal- alunos e professores no tocante à supe-
estar docente. Os percalços de caráter ração das defasagens que os estudantes
pedagógico vinculam-se à avaliação e à carregam ano após ano. O atendimento
estratégia de ensino a serem adotadas às necessidades de aprendizagem do

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 201-214, jan./jun. 2014. 207


aluno requer, também, compromisso tanto, à gestão escolar construir espaços
do sistema, que pela não garan a das de discussão quanto ao papel dos pais
necessárias condições de trabalho ao junto à escola e, sobretudo, apresentar
professor e ao aluno, pode contribuir esta temática para os momentos de
para entravar o processo de ensino- formação contínua dos educadores.
aprendizagem de Matemá ca. Também concorda-se que é imperioso
Um olhar atento permite iden fi- que o aluno se dedique a aprender. Con-
car que, ao responsabilizar os familiares tudo, é preciso compreender que o nó
do aluno pelas dificuldades vivenciadas do problema do ensino de Matemá ca
no ensino dessa área do conhecimento, não reside fortemente nesses fatores.
o professor, na verdade, está dizendo nas O fato real que precisa ser compre-
entrelinhas, que precisa de ajuda para endido é que, desde a década de 1980,
exercer sua função e, portanto, nomeia as propostas curriculares (Parâmetros
estes sujeitos como aqueles que podem Curriculares Nacionais) e as avaliações
oferecer o suporte necessário. nacionais como, por exemplo a Prova
O fato é que, por detrás destes Brasil, têm exigido que o conhecimento
argumentos, esconde-se a problemá ca matemático se dê na perspectiva da
do mal-estar docente, visto que hoje resolução de problemas. Esta opção
os professores se percebem um tanto metodológica traz implícita a convicção
descontentes em termos profissionais de que o conhecimento matemático
devido à desvalorização por que passa ganha significado quando os alunos se
o magistério. Eles vivem a realidade defrontam com situações desafiadoras
concreta desse desprestígio social e para resolver e trabalham no desenvol-
econômico da profissão, que se eviden- vimento de estratégias de resolução.
cia, entre outros fatores, em salários Porém, o docente enfrenta dificuldade
defasados e extensa jornada de trabalho. por ser portador da visão de uma Mate-
Este mal-estar ocasiona certa dificuldade má ca estanque, pronta e acabada, que
para o professor se apropriar de elemen- é ensinada mecanicamente. O professor
tos que podem melhorar a qualidade da tendo sido formado nesse enfoque da
docência, como, por exemplo, estudar, Matemá ca tradicional formal julga mais
pesquisar, fazer cursos, e isso os leva a tranquilo prosseguir realizando o ensino
fazer incidir muitos dos problemas que nesta perspec va.
enfrentam para ensinar Matemá ca aos Logo, a questão se encontra em
pais e aos alunos. que sua experiência como estudante
É certo que a família precisa dessa disciplina, fortemente presente
envolver-se na educação escolar da na sua formação é a de uma Matemá ca
criança, por isso é necessário que a trabalhada de forma diferente da que
relação família-escola não fique restrita está posta hoje, e o professor, mesmo
à dimensão das reclamações. Cabe, por- depois do curso de formação inicial

208 Simone M. LIMA; Ademar de L. CARVALHO. Um estudo sobre a formação do pedagogo e o ensino da...
continua ensinando esta Matemática porque alguns destes são construídos
formal. Faz-se necessário ao professor, na ação e no contexto em que ocorre
conforme se pode ver, dar um salto da a atividade docente. Outra situação
Matemá ca formal para aquela centra- percebida, é que as pedagogas em foco
lizada, quanto ao ensino-aprendizagem, apresentam defasagens de conteúdos
na resolução de problemas. que deveriam ter sido apropriados ao
longo da educação básica. Isso permite
Considerações finais desmascarar a ideia de que os alunos
não sabem Matemática tão somente
O até aqui exposto demonstra porque quem a ensina nos anos iniciais
que o avanço na qualidade do ensino- é o pedagogo, visto que as depoentes já
aprendizagem da matemá ca nos Anos apresentavam, na sua formação anterior
Iniciais do Ensino Fundamental encon- ao curso de Pedagogia, dificuldades com
tra-se atrelado a assuntos da formação essa área do conhecimento. Também é
do professor, acrescidos do cuidado que importante que se tenha a consciência
se deve ter com as questões rela vas de que ensinar Matemática nos anos
ao contexto em que se desenvolvem iniciais representa um desafio, tanto
as a vidades de ensino e às condições para os pedagogos quanto para os licen-
ins tucionais para isso. ciados em Matemá ca, já que um curso
É evidente que os cursos de for- de graduação não consegue esgotar os
mação inicial devem trazer em seus conhecimentos necessários ao exercício
currículos elementos que permitam da docência, o que requer a con nuidade
construir-se a base de conhecimentos na formação do professor. Com isto, ele
necessários para o professor começar a poderá buscar respostas aos desafios ex-
ensinar Matemá ca – conhecimento dos perimentados no dia a dia da sala de aula.
conteúdos matemá cos a serem ensina- É interessante pontuar que, o ele-
dos, seus conceitos fundamentais e a his- mento nodal do embaraço no processo
tória de tais conceitos; o conhecimento de ensino e aprendizagem da área do
pedagógico geral, que corresponde aos conhecimento em questão consiste,
conhecimentos sobre os processos de em úl ma análise, no fato de que os
ensino e aprendizagem de Matemá ca professores, em seu percurso forma vo,
e aos procedimentos didá cos necessá- conheceram a Matemática orientada
rios à transformação do conteúdo a ser pela perspec va tradicional de ensino,
ensinado em conteúdo a ser aprendido. mas, hoje, como docentes, precisam en-
No entanto, as análises realizadas sinar a Matemá ca cujo foco de ensino
neste estudo mostraram que o curso de assenta-se na resolução de problemas.
Pedagogia não tem conseguido esgotar Acredita-se, todavia, que ainda
todos os conhecimentos necessários possa levar tempo para se efe var este
para o ensino de Matemá ca, também avanço e se implementar o ensino da

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 201-214, jan./jun. 2014. 209


Matemá ca com esse novo enfoque. Im- contexto escolar. Estes percursos de-
plantar o ensino que se fundamente na vem ser permeados pela pesquisa que
reflexão e ques onamento do que his- tenha a prá ca como ponto de par da,
toricamente vem sendo pra cado, com num movimento de ação-reflexão-ação,
vistas a mudanças, afinal, requer traba- visando à melhoria da boa qualidade da
lho árduo por parte dos programas de docência, o que necessariamente passa
formação de professores e do sistema de pelas dimensões polí ca, é ca e técnica
ensino, assim como o engajamento dos (RIOS, 2001), nesta área de ensino.
educadores que atuam no ensino desta Contudo, é de fundamental impor-
área do conhecimento em processos de tância lembrar também que a melhoria
formação con nuada e autoformação da qualidade no ensino de Matemá ca
E assim compreendendo, apon- encontra-se vinculada às condições
tamos como uma possível contribuição de trabalho e à valorização social da
deste estudo, a urgência de se repensar a profissão engendradas pelas polí cas
formação inicial e con nua do professor de Estado, visto que, historicamente, a
a par r das necessidades que se eviden- profissão do professor tem sido marcada
ciam na escola. Concordando com Carva- pela sua desvalorização e pela ausência
lho (2005, p. 187), que a formação deve de condições necessárias à formação
ser centrada na concepção de aprender, de qualidade e de condições dignas de
pois ser professor implica “preparação trabalho.
rigorosa e engajamento decidido no pro- Este quadro corrobora que é ne-
cesso de autoformação permanente”. cessária a implementação de polí cas
Os cursos de formação inicial precisam públicas que, ao invés de cercearem o
fornecer, além dos conhecimentos fun- trabalho do professor e sua autonomia
damentais para o ensino, elementos que por meio do oferecimento de instrumen-
contribuam para a construção da auto- tos que, aparentemente, des nam-se
nomia do professor, despertando o dese- a ajudá-lo a realizar a sua própria aula,
jo nos futuros docentes por transcender proponham-se de fato, a construir um
os desafios que encontrarão na realidade projeto de valorização da formação de
da escola e incen vando-os a buscar seu professores e de seu trabalho, ponde-
desenvolvimento profissional. rando a precarização e desvalorização
O pedagogo que atua no ensino social e econômica que têm reves do a
de Matemá ca nos anos iniciais, cons- profissão-professor e, ao mesmo tempo,
ciente dos limites da sua formação, desvelando a complexidade da natureza
deve, por isso, adentrar pelos caminhos do trabalho docente.
da autoformação e formação con nua Por outro lado, ainda que as condi-
centrada na escola, aqui entendida como ções de trabalho e a desvalorização
formação que procura dar respostas aos socioeconômica impostas à profissão
problemas que emergem no próprio docente possam inibir o educador de

210 Simone M. LIMA; Ademar de L. CARVALHO. Um estudo sobre a formação do pedagogo e o ensino da...
produzir a sua profissão na perspec va ção entre a realidade escolar e as teorias
do desenvolvimento profissional, como estudadas no curso. A proposta consiste
defende Nóvoa (1992), elas não têm o em que este úl mo, sendo permeado
poder de anular a prerroga va do pro- pela pesquisa, ofereça ao discente a
fessor de pensar e construir sua apren- oportunidade de teorizar sobre a sua e
dizagem e, sobretudo, fazer-se professor. outras prá cas, concebendo a inves ga-
Impõe-se, ademais, que os professores ção como processo forma vo inerente
entendam a formação também como à prá ca do professor. Concomitante-
autoformação. mente, essa formação deve procurar
Não se trata de isentar o sistema conscien zar os futuros docentes sobre
da responsabilidade de oferecer-lhes a necessidade de um inves mento pro-
formação con nua de qualidade e trazer fissional permanente, dada a natureza
para o professor toda a responsabilidade de sua a vidade profissional, sempre
por esta formação. Trata-se, isto sim, de considerando os aspectos rela vos ao
mostrar que a construção da autonomia modo como a profissão é representada
do educador passa pela dimensão de as- socialmente e às condições em que atu-
sumir a sua formação con nuada como arão esses educadores.
uma prá ca necessária para a cons tui- Destas reflexões infere-se que o
ção de sua iden dade docente. É notó- curso de Pedagogia deve buscar tecer
rio, portanto, que o professor que ensina um projeto educa vo voltado à forma-
Matemá ca nos Anos Iniciais do Ensino ção de um professor que se cons tua
Fundamental busque, incessantemente, num sujeito histórico, crí co e cria vo,
um crescimento profissional por meio de capaz de pensar sua própria condição
estudo, a par r da sua necessidade de de ser humano; que, sendo agente
formação centrada na escola. da práxis educa va, mostre-se apto a
É oportuno, a esta altura, esclare- perceber-se como educador-educando;
cer que a formação con nuada, tal como que, ainda como sujeito de seu próprio
se defende, não tem como foco principal desenvolvimento, seja encorajado a
suprir lacunas deixadas pelo curso de apropriar-se da base de conhecimentos
graduação, mas representa um instru- necessários ao exercício da docência;
mento que pode ampliar a compreensão finalmente, que, tendo o compromisso
e superação dos desafios vivenciados no polí co, é co e técnico, seja capaz de
processo de ensino-aprendizagem de intervir na transformação da qualidade
Matemá ca no co diano da sala de aula. da educação matemá ca.
Também consideramos significan- Portanto, se quisermos buscar o
te sugerir, no que se refere ao curso de aprimoramento do ensino da Matemá-
Pedagogia e à formação para o ensino de ca nos Anos Iniciais do Ensino Funda-
Matemá ca, que se busquem a ar cula- mental, como tem sido propagado pelo
ção entre teoria e prá ca e a aproxima- poder público, adquire relevância a con-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 201-214, jan./jun. 2014. 211


sideração de todas as facetas do trabalho sido pensado e u lizado o espaço que
do professor, já citadas neste estudo, se dedica à tal formação no ambiente
e, sobretudo, que se problematize a escolar, para que o mesmo seja realmen-
formação con nua centrada na escola, te des nado ao estudo dos problemas
no sen do de compreender como tem surgidos no contexto da escola.

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Recebido em agosto de 2013


Aprovado para publicação em dezembro de 2013

214 Simone M. LIMA; Ademar de L. CARVALHO. Um estudo sobre a formação do pedagogo e o ensino da...
A racionalidade subjacente à práxis do professor no
contexto da educação superior
The subjacent raƟonality to the teacher’s praxis in
the context of higher educaƟon
Isabel Magda Said Pierre Carneiro*
Ludmila de Almeida Freire**
Maria Marina Dias Cavalcante***
* Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Fe-
deral do Ceará (UFC). Pedagoga do Ins tuto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).
E-mail: isabelmsaid@yahoo.com.br
** Mestre e Doutoranda em Educação Brasileira pela
Universidade Federal do Ceará (UFC).
E-mail: ludmilafreire@yahoo.com.br
*** Doutora em Educação Brasileira pela Univer-
sidade Federal do Ceará (UFC). Profa. Adjunta da
Universidade Estadual do Ceará (UECE).
E-mail: marinadiasc@yahoo.com.br

Resumo
Este estudo pretende desenvolver uma análise sobre alguns princípios fundantes da racionalidade
subjacente a práxis do professor bacharel no ensino superior. Inserida numa abordagem qualita va
de educação, a pesquisa se classifica como estudo de caso tendo como lócus o Ins tuto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE), campus Maracanaú, CE. Como estratégia de coleta de dados,
realizou-se entrevista semi-estruturada com três professores. Os dados revelam as dificuldades
enfrentadas pelos entrevistados no início de suas carreiras e apontam a necessidade de formação
pedagógica para uma melhoria de seu trabalho. Destaca-se a importância dos estudos sobre a for-
mação para a docência universitária, pela valorização e ressignificação do saber prá co do professor
constantemente reconstruído em processos intersubje vos, reconhecendo na práxis a diale cidade
da relação teoria e prá ca.
Palavras-chave
Trabalho docente. Saberes profissionais. Racionalidade pedagógica.

Abstract
This study intends to develop an analysis of some founding principles of the subjacent ra onality
of the BA teacher’s praxis in higher educa on. Inserted in an educa onal qualita ve approach, the
research is classified is a case study as having the locus Ins tuto Federal de educação ciência e tec-
nologia (IFCE) in campus Maracanau, CE. As strategy of data collec on it was held semi-structured
interviews conducted with three teachers. The data reveal the difficul es faced by those interviewed

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 215-226, jan./jun. 2014
early in their careers and highlight the need for pedagogical training to improve their work. We em-
phasize the importance of studies on university educa on for teachers; the recovery and redefini on
of the teacher’s prac cal knowledge constantly rebuilt on inter subjec ve processes, recognizing
the prac ce of dialec c rela onship between theory and prac ce.
Key words
Tteaching work. Professional knowledge. Pedagogical ra onality.

Introdução conhecimento de suas áreas disciplina-


res específicas, como, principalmente, a
A par r das úl mas décadas do pedagogia que fundamenta o seu traba-
século XX, e com maior intensidade a lho como docentes. É reconhecido que
par r dos anos de 1990, são notórias aos profissionais de pedagogia cabe a
no cenário dos debates em torno do produção de uma importante parcela de
trabalho docente novas tendências epis- reflexão cien fica rela va aos processos
temológicas à base da formação do edu- de ensino-aprendizagem situados neste
cador, propondo mudanças em direção contexto de pós-modernidade. Contudo,
ao delineamento de um novo paradigma esse empreendimento não pode pres-
pedagógico de formação. Contudo, esse cindir de profissionais de outras áreas
movimento não está ocorrendo de forma de domínio dos saberes que compõem
homogênea. Os múl plos olhares sobre o acervo de compreensão do mundo dos
os contextos da modernidade vêm cons- seres humanos.
tuindo um mosaico mul facetado de Durante décadas vem se discu n-
concepções, disputas e tensões. do a formação de professores no âmbito
O resultado legal dessa busca em dos cursos de Ensino Superior, os saberes
traçar uma nova configuração de ensino necessários à sua prá ca, o papel dos
manifesta-se nos documentos oficiais, mesmos na sociedade, a configuração
como a LDBEN 9.394/96, as DCN’s para dos bacharelados, tecnológicos, licencia-
Formação de Professores da Educação turas, os pólos a serem privilegiados nos
Básica e, mais recentemente, as DCN’s cursos (PIMENTA, 1997; SAVIANI, 1996;
para o Curso de Pedagogia. Ressaltam- SCHÖN, 2000), porém, a preocupação
se ainda as contribuições e reivindica- com a formação para a docência dos
ções trazidas pelas diversas en dades formadores universitários das diversas
representativas do movimento dos categorias de profissionais que atuam na
educadores. sociedade não tem ocupado os debates
Neste cenário, indagações são com a mesma intensidade. Prioriza-se a
formuladas acerca da formação dos edu- formação para a pesquisa e predominam
cadores com formação de ‘bacharelado’ a dissociação entre teoria e prá ca e a
que atuam na docência universitária. fragmentação entre pesquisa e ensino.
Não se ques ona tanto o domínio do A prá ca do professor universitário é

216 Isabel M.S.P.CARNEIRO; Ludmila de A. FREIRE; Ma. Marina D. CAVALCANTE. A racionalidade subjacente...
valorizada em relação ao domínio dos se acrescenta uma concepção técnico-
conteúdos específicos e à produção instrumental da docência, além de que
cien fica. não se revela a compreensão do que seja
A necessidade de formação para a o currículo por competência, proposto
docência tornou-se objeto de consenso pelas diretrizes nacionais de formação.
cada vez mais generalizado no contexto Nesse contexto, as reflexões deste
universitário cons tuído de profissionais ar go, embora almejem consolidar um
que, embora dominem seus dis ntos referencial de análise da racionalidade
campos do saber, não possuem forma- pedagógica que dá suporte ao trabalho
ção específica para o trabalho pedagó- dos docentes com formação de bacha-
gico, esse considerado fundante de uma relado, se cons tuem igualmente em
prá ca que se dis ngue das a vidades elementos de análise da pedagogia
de pesquisa. Mesmo quando essa forma- universitária numa concepção apoiada
ção existe, ela tem se resumido, muitas em determinados pressupostos do que
vezes, a uma disciplina de Didá ca no é o trabalho pedagógico e de princípios
Ensino Superior ou a estágios de curta que o regem. Assim, pretende desenvol-
duração na graduação. ver uma análise sobre alguns princípios
Grande parte dos professores, es- fundantes da racionalidade subjacente
pecialmente em início de carreira, não a práxis situada do profissional de edu-
possui clareza a respeito da racionalida- cação em contexto universitário, assim
de pedagógica que perpassa a docência, como identificar elementos teórico-
calcando muitas vezes essa numa pers- metodológicos que permitem a análise
pec va conteudista, tecnicista. Podemos dessa prá ca e seus processos de cons-
observar isso de uma maneira mais acen- trução. Em síntese, o estudo prossegue
tuada nos profissionais não licenciados, numa abordagem de epistemologia da
ou seja, bacharéis, oriundos das mais prá ca.
diversas áreas da ciência e que optam A pesquisa que subsidia a nossa
pela docência. Esses profissionais, embo- reflexão se insere numa abordagem
ra com ampla experiência em suas áreas qualita va de inves gação, a par r de
específicas, encontram-se muitas vezes um estudo de caso realizado no Ins tuto
despreparados para exercer o magistério Federal de Educação, Ciência e Tecnolo-
(PIMENTA; ANASTASIOU, 2002). A trans- gia (IFCE), Campus Maracanaú, CE. As
formação do conhecimento cien fico informações apresentadas e analisadas
numa linguagem pedagógica de com- aqui foram extraídas a par r de entrevis-
preensão dos significados e sen dos da ta semi-estruturada realizada com três
matéria não acontece com tranquilidade professores que atuam nos cursos de
para o aluno, o que afeta a ar culação Ensino Superior da referida ins tuição,
entre aquele conhecimento e a prá ca sendo um da área da Telemá ca, um
profissional à qual se destina. A isto da Indústria e um da área de Química e

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 215-226, jan./jun. 2014. 217


Meio Ambiente. A entrevista foi cons - zam diferentes pos de conhecimentos,
tuída de questões voltada para as mo - competências, habilidades (ou ap dões).
vações, escolhas profissionais, trabalho As inves gações (CARNEIRO, 2007)
pedagógico, formação inicial e con nua- sobre os saberes mobilizados e pro-
da e o impacto trabalho exercido na vida duzidos no contexto de trabalho do
profissional do professor. professor na Educação Superior têm
Na análise de resultados, as res- revelado que a maior parte deles são
postas fornecidas pelos docentes serão fundados na experiência e integrados a
expostas e interpretadas de maneira a uma cultura pessoal. Acrescido a isso, a
alcançar o obje vo de refle r sobre a docência universitária possui elementos
formação dos profissionais que atuam próprios que emergem do perfil e status
no Ensino Superior. diferenciado que essa regência ocupa
na sociedade. Esses elementos unidos
2 Elementos imbricados na formação às outras vivências desse professor co-
e na práxis docente – os saberes pro- adunam com uma cultura universitária.
fissionais Nesse sen do, afirma-se que a compe-
tência dos profissionais para lidar com
A discussão sobre o trabalho pe- as diferentes situações dos processos
dagógico e, especificamente, o realizado de ensino-aprendizagem se elabora du-
pelo professor universitário, pressupõe rante a prá ca co diana, no processo de
que esse profissional em suas ações se consolidação profissional. Na realidade,
fundamenta em saberes os quais estão o professor, por não ter na carreira a
relacionados aos pensamentos, ideias, exigência de formação profissional es-
juízos, discursos e argumentos que pecífica para a docência,
obedecem a certas exigências da racio- [...] incorpora os ritos de tradição
nalidade (TARDIF, 2002). nos saberes que desenvolve para
Os saberes profissionais são de- ensinar, como a transmissão de
finidos como saberes da ação que ao informações as quais são adquiri-
serem incorporados no trabalho só têm das com a atuação profissional no
sen do nas diferentes situações viven- mercado de trabalho ou lembrança
ciadas pelos trabalhadores. Eles são de como fora a atuação de seus
caracterizados como temporais, plurais, professores, sem o incen vo à co-
heterogêneos, personalizados, situados brança de novos conhecimentos.
e carregam consigo as marcas do seu ob- (RAMOS et al., 2010).
jeto, que é o ser humano (TARDIF, 2002). A menção à experiência não se
Eles emanam de diversas fontes (disci- refere apenas a uma dimensão peda-
plinares, pedagógicos, cultura pessoal e gógica, e sim a um quadro conceitual
escolar), não formando um repertório de produção de saberes que os profes-
de conhecimento unificado, pois mobili- sores produzem no seu co diano, num

218 Isabel M.S.P.CARNEIRO; Ludmila de A. FREIRE; Ma. Marina D. CAVALCANTE. A racionalidade subjacente...
processo permanente de reflexão sobre adquirir “saberes sobre a educação” e
sua prá ca, mediada pela de outrem. “sobre a pedagogia”, mas não estarão
A troca e a par lha de conhecimentos aptos a falar em saberes pedagógicos,
entre colegas de trabalho consolidam pois “a especificidade de uma formação
espaços de formação mútua, nos quais pedagógica, seja ela inicial ou con nua,
cada profissional é chamado a desem- não está em refle r o que se vai fazer,
penhar, simultaneamente, o papel de tampouco sobre o que se deve fazer, mas
formador e formado. antes refle r sobre o que se fez” (HOUS-
Por outro lado, há um reconheci- SAYE, 2004, p. 32). Nessa perspec va, os
mento de que para os diferentes pro- saberes pedagógicos são produzidos na
fissionais realizarem seu trabalho não ação onde os profissionais da Educação
basta somente a experiência, mas se confrontam seus saberes “sobre educa-
fazem necessários os saberes pedagó- ção” e “sobre a pedagogia” nos diferen-
gicos para permi r a ar culação com os tes contextos escolares e não escolares.
conhecimentos específicos de sua área Essa relação dialética entre os
de atuação. saberes produzidos na ação e o apor-
Os saberes pedagógicos dizem te teórico dos diferentes profissionais
respeito às dimensões da Pedagogia aponta para a superação da tradicional
ou da gestão pedagógica propriamente dicotomia entre teoria e prá ca que tem
dita. São os processos de ensino-apren- a visão de que o saber está somente do
dizagem, suas teorias, as determinações lado da teoria, ao passo que a prá ca ou
legais da área da Educação e, par cular- é desprovida de saber ou portadora de
mente, o conjunto de saberes necessá- um falso saber baseado, por exemplo,
rios à gestão dos processos educacionais em crenças, ideologias e idéias precon-
nas funções de organização, assessoria, cebidas. Nessa concepção, o saber é con-
direção do trabalho pedagógico em siderado como algo que é produzido fora
termos de planejamento, coordenação, da prá ca (por exemplo, pela ciência,
acompanhamento e avaliação de pro- pela pesquisa pura etc.) numa relação de
cessos, projetos, programas e sistemas aplicação, como muitas vezes se cri ca
educacionais formais e não formais. a pesquisa acadêmica a que se dedicam
Dessa maneira, são eles que fundamen- os professores universitários.
tam a ação do professor, possibilitando a A própria dinâmica da Universi-
esse profissional interagir com os outros dade, na realidade, não favorece esse
sujeitos no contexto em que atua. desenvolvimento dialé co entre teoria/
Os saberes especificamente pe- prá ca, como se percebe nas atribuições
dagógicos são, por conseguinte, cons- delegadas ao professor universitário,
tuídos a par r do próprio fazer como que preconiza uma prá ca voltada para
elaboração teórica. Nos cursos de for- a ar culação entre ensino, pesquisa e ex-
mação, os futuros professores poderão tensão. O que se observa é a priorização

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 215-226, jan./jun. 2014. 219


da formação do pesquisador e a menor se encontra vinculado às necessidades
ênfase no ensino e na extensão, tanto do homem social. Nessa perspec va,
no que diz respeito à formação, como na o trabalho docente se torna eminente-
maneira fragmentada que é vivenciada mente práxis, entendida como uma de-
esses três polos. As concepções que pre- terminação da existência humana para
dominam no meio acadêmico corrobo- elaboração da realidade e não como uma
ram para percepção de que o importante a vidade técnica dissociada da teoria:
na prá ca do professor universitário é o Pela práxis o homem opera e age.
domínio de seu conteúdo específico e a Ela é o movimento que articula
produção cien fica. dialeticamente a operação e a
A dissociação entre teoria e prá ca reflexão, a teoria e a prá ca. Para
e a fragmentação entre pesquisa e ensi- que a ação humana seja criadora
no manifestam-se numa prá ca marcada e transformadora, precisa ser uma
pela reprodução de velhas posturas as- prá ca intencionalizada pela teoria
similadas pelos docentes ainda em sua e pela significação. A teoria sepa-
vida escolar. O professor sem a prepara- rada da prática seria puramente
ção necessária para exercer a regência contempla va e, como tal, ineficaz
termina por recorrer a modelos de pro- sobre o real; a prá ca desprovida
da significação teórica, seria pura
fessores que marcaram sua formação.
operação mecânica, a vidade cega.
A prá ca é frequentemente concebida
(SEVERINO, 2001, p. 46).
apenas como a transmissão mecânica de
conhecimentos, distanciando-se muito Essa compreensão aponta, de um
da possibilidade de ser um espaço para lado, para a ‘epistemologia da prá ca’,
os alunos de compreensão genuína de na qual os sujeitos não somente aplicam
seu campo de atuação. conhecimentos produzidos por outros
Para além dessa concepção frag- nem são agentes determinados por me-
mentada do saber, considera-se que canismos sociais e polí cos. Eles fazem,
o trabalho do professor é uma práxis produzem e transformam os instru-
social. Esta noção entende que os conhe- mentos de sua prá ca, conhecimentos,
cimentos teóricos e a prá ca estão em modos de ação, técnicas, linguagem,
uma condição de interdependência na valores, sen mentos. Enfim, assumem
medida em que a “prá ca aqui é práxis “sua prá ca a par r dos significados que
humana total – tem primazia sobre a ele(s) mesmo lhe (dão), um sujeito que
teoria, mas esse seu primado, longe de possui conhecimentos e um saber-fazer
implicar numa contraposição absoluta à provenientes de sua própria a vidade e a
teoria, pressupõe uma in ma vinculação par r das quais ele a estrutura e orienta”
a ela” (VASQUEZ, 1977, p. 234). Assim, (TARDIF, 2002, p. 230).
a prá ca, em seu sen do mais amplo, Essa concepção de Mase o (2012)
tem fundamento da teoria, quando este deixa entrever que o trabalho docente é

220 Isabel M.S.P.CARNEIRO; Ludmila de A. FREIRE; Ma. Marina D. CAVALCANTE. A racionalidade subjacente...
uma ação consciente, planejada, organi- disciplina, acerca da maneira como os
zada e intencional, ou seja, que dá uma estudantes aprendem, acerca do modo
direção de sen do, um rumo à prá ca como serão conduzidos os recursos de
dos sujeitos e às suas intervenções in- ensino a fim de que se ajustem melhor
tera vas com outro(s) sujeito(s). Nessa às condições em que será realizado o
acepção, é uma prática voltada para trabalho” (ZABALZA, 2004, p.111).
fins desejáveis na formação, conforme Outra caracterís ca da práxis é ser
a concepção de homem e sociedade do uma forma de ação reflexiva que pode
educador, implicando, portanto, esco- transformar a teoria que determina, bem
lhas, valores e compromissos é cos: como transformar a prá ca que a concre-
O modo de relação que o professor
za. Considera-se, portanto, importante
estabelece com seus alunos, tanto o triplo movimento sugerido por Schön
no que se refere à gestão da maté- (1992): reflexão-na-ação, reflexão sobre a
ria quanto no plano interpessoal, ação e reflexão sobre a reflexão-na-ação.
é decorrente da sua concepção de Ela possibilita a problematização das
educação. Assim, questões morais prá cas e dos contextos em que estão
acerca do po de sujeito que ele inseridos, encontrando soluções para
deseja formar pela sua atuação pro- as situações complexas enfrentadas. A
fissional não podem ser evitadas. reflexão, entretanto, não é um processo
A inclusão do aluno no interior do psicológico individual, u lizada apenas
processo de ensino-aprendizagem como técnica de resolver situações par-
enquanto sujeito ativo depende,
culares da prá ca. Ela é um conheci-
notadamente, da postura do docen-
mento pleno de conflitos e contradições
te frente a essas questões. (THER-
RIEN et al., 2004, p.53).
sociais e polí cas e impregna o próprio
desenvolvimento do trabalho pedagógi-
O ato de ensinar, assim, implica co, seja nas ins tuições de ensino seja em
um trabalho docente, isto é, supõe uma outro lugar (PERÉZ GOMEZ, 1992, p.103).
intenção consciente e organizada para Finalmente é interessante ressaltar
converter os conhecimentos cien ficos que o trabalho do professor, ancorado na
em conteúdo de ensino. Essa conversão ciência da Pedagogia, caracteriza-se pela
cons tui “colocar parâmetros pedagógi- ação cien fica, planejada, intencional e
co-didá cos na docência da disciplina, reflexiva. Portanto, esclarece, transfor-
ou seja, juntar os elementos lógico- ma e orienta a práxis educa va, para
cien ficos da disciplina com os polí co- finalidades sociais, polí cas e cole vas,
ideológicos, é cos, psicopedagógicos e estabelecendo direção de sen do às prá-
os propriamente didá cos” (LIBÂNEO, xis, dentro dos princípios da é ca eman-
2002, p. 35). Ensinar, portanto, é uma cipatória; e organiza ações para concre-
tarefa complexa na medida em que exige zar as propostas cole vas emergentes
um “conhecimento consciente acerca da do exercício cole vo da práxis. Portanto,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 215-226, jan./jun. 2014. 221


tem um papel específico importante, os bons professores que teve em seu
pois visa à formação de consciências e processo forma vo os quais servem de
à humanização da sociedade. referência na sua atuação docente:
[…] se você tem um bom exemplo
3 Elementos empíricos que subsidiam você segue. Eu acho que eu ve
a reflexão sobre o trabalho docente bons exemplos. Então eu tento mais
ou menos imitar esses bons exem-
Em relação à formação inicial dos plos. Bons exemplos que eu falo é
docentes que atuam no IFCE, os três en- na minha ó ca, bons exemplos que
trevistados possuem graduação na área me fizeram aprender, que me fize-
da Engenharia, sendo dois engenheiros ram mo var, que me fizeram esco-
eletricistas, e o outro engenheiro civil. lher a área, então, eu acredito que
Ademais, todos possuem mestrado em a gente é mo vado por exemplos,
suas áreas específicas de conhecimento. eu sempre admirava a postura de
O trabalho pedagógico docente professor, sempre idolatrava aquela
forma de ensinar.
está caracterizado pelas diversas formas
de saberes e experiências adquiridas ao O entrevistado 3 ao reconhecer
longo de sua história de vida e carreira que no início de sua carreia profissional
profissional são o que aponta o entre- não se sen a preparado para ensinar,
vistado 1 quando afirma que a vivência afirmou que sua construção como pro-
em ministrar aulas par culares e o apoio fessor se deu a par r de algumas expe-
que recebe do setor pedagógico da ins - riências na área, bem como por meio de
tuição onde trabalha são suas principais uma prá ca imita va. Com o aperfeiço-
referências para o preparo da docência. amento de suas ações, atualmente, ele
Na realidade, percebe-se que os busca, inicialmente, iden ficar o perfil
professores exercem um saber experien- dos alunos, conforme revela o seguin-
cial, pois eles desenvolvem saberes es- te depoimento: “Hoje, o que eu tento
pecíficos no exercício de suas funções e buscar é que a cada ano, aliás, a cada
na prá ca de sua profissão. Como afirma semestre, eu tento nos primeiros dias
Tardif (2002) os saberes profissionais e entender como é que é mais ou menos
experienciais possuem origem na prá - o perfil da minha turma, saber se é uma
ca co diana. O professor constrói a sua turma fraca ou uma turma intera va, as
iden dade vivenciando e realizando na turmas são muito diferentes aqui”.
sala de aula uma prá ca que o mesmo No que se diz respeito à formação
acha adequada, seja exercendo uma que con nuada, os esforços dos professores
obteve anteriormente ou construindo a são voltados para o aperfeiçoamento do
sua própria metodologia. saber específico da área que atuam e
Associado a essa experiência não para a docência. Isso é percep vel
profissional, o entrevistado 2 destaca quando todos os entrevistados afirmam

222 Isabel M.S.P.CARNEIRO; Ludmila de A. FREIRE; Ma. Marina D. CAVALCANTE. A racionalidade subjacente...
possuir pós-graduação nas áreas em que que a mesma elabore estratégias para
atuam e nenhuma capacitação associa- que estas sejam cumpridas dentro dos
da à prá ca de ser professor, apesar de prazos estabelecidos. Na concepção dos
acharem necessário. Especificamente entrevistados, isso seria uma forma de
sobre o Entrevistado 2, ele afirma: mo vação para os docentes.
“Tenho só o mestrado em Engenharia Ao comentar que o trabalho do-
Elétrica, eu também estou pesquisando cente possui um impacto na vida pro-
coisas para escolher a minha área de fissional, os entrevistados apresentam
doutorado, mas bem no início, eu penso algumas noções sobre formação con-
em um doutorado na área de engenharia nuada. Um deles afirma que o apro-
elétrica”. fundamento teórico é necessário para
Ao comentar sobre o papel da ministrar uma boa aula e que serve tam-
Instituição no processo da formação bém como base para novas pesquisas.
con nuada, um dos entrevistados deixa Outro entrevistado possui a concepção
entrever a carência de professores na de que a formação con nuada significa
área que atua, dificultando a “saída” continuar estudando, pesquisando e
destes para a realização de curso de desenvolvendo planos e metas para a
doutoramento: sua formação, tendo em vista a ar cu-
É complicado a ins tuição liberar lação desses conhecimentos na prá ca.
um colega já que a gente tem pou- A opinião do terceiro sujeito estabelece
cos docentes nas áreas específicas. uma relação dialé ca entre o trabalho
Então, aquele professor já tem uma e a formação, ao afirmar que o próprio
área que está atuando, como a ins - trabalho já faz parte de sua formação,
tuição vai liberar um professor para pois em seu trabalho o mesmo já está
ele fazer um doutorado fora, se não se formando.
tem outro que tome o seu lugar [...]. De acordo com os comentários dos
A dificuldade da liberação do do- docentes, existem profissionais que, ao
cente para a realização de um mestrado terminarem seus cursos de graduação, se
ou doutorado é um desafio na visão mantém alheios aos avanços das pesqui-
deste entrevistado. Um outro professor sas e teorias das suas áreas, mesmo com
destaca que o apoio ins tucional é fun- as mudanças que a sociedade vem pas-
damental e que a ins tuição deve servir sando, acabam se distanciando de novas
de base para a implementação dessas prá cas que poderiam facilitar o seu tra-
formações a fim de que o docente possa balho. Por outro lado, os entrevistados
proporcionar resultados para a aprendi- destacam que a forma mais adequada
zagem dos estudantes. No âmbito dessa para essa “atualização” de novas prá cas
discussão, o entrevistado 3 se refere é a pesquisa, como ação cole va, pois
também a importância do estabeleci- sabe-se que a mesma é de fundamental
mento de metas pela ins tuição desde importância para o crescimento e trans-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 215-226, jan./jun. 2014. 223


formação da comunidade escolar tendo lidade e na melhoria de sua formação,
em vista que cada ins tuição desenvolve seja inicial ou con nuada, deve ter uma
um trabalho relacionado com o seu co - visão ampla da sociedade e das relações
diano, com sua realidade. Eles apontam de poder para ser capaz de situar sua
a pesquisa cole va como uma possibili- profissão no contexto social brasileiro. É
dade de atender às reais necessidades importante que o docente perceba que
do ambiente ins tucional, das questões deve lutar pela transformação em suas
levantadas pela comunidade escolar, e as condições de trabalho, por melhores sa-
resoluções, as análises, serão do interes- lários e avanços na carreira, sem os quais
se do cole vo da ins tuição. de nada adianta o discurso da profissio-
Sobre a profissão de professor, dois nalidade e da pesquisa enquanto forem
entrevistados possuem a mesma visão, man das as atuais condições de trabalho.
ou seja, que é uma profissão gra ficante Sobre os fatores que repercutem
e interessante, tendo em vista que os diretamente em sua atuação profissio-
alunos reconhecem o seu trabalho como nal, os entrevistados afirmam que a falta
relevante para a formação e construção de formação pedagógica, a estrutura ins-
do ser humano. Um deles comenta: tucional e do reconhecimento são fato-
Eu gosto de lecionar. É uma gra - res que ressoam. A infraestrutura é um
ficação muito grande quando você ponto bastante ques onado pelos três
chega no final do semestre e tem entrevistados, como um deles afirma:
aquele reconhecimento dos alunos. “Se a ins tuição possuísse uma estrutura
As duas turmas que eu lecionei no mais acessível aos alunos, repercu ria
final do semestre, eu sinto que eles
a uma melhoria de sua profissão e no
gostaram da disciplina, aprendeu
com a disciplina, reconhece o valor
interesse maior dos alunos”.
dos docentes [...]. Mesmo diante das dificuldades,
em relação ao trabalho do professor e o
Outra visão é destacada pelo en- papel da ins tuição, todos afirmam que
trevistado 2 que considera a profissão não mudariam de profissão, pois admi-
docente muito desvalorizada, já que, ram e gostam de lecionar, como pode se
para ele, o profissional só é reconhecido observar no seguinte depoimento:
quando possui uma tulação como mes-
Mesmo que eu vesse oportunida-
trado ou doutorado e não pela capacida-
de não mudaria [...] se vesse mais
de que tem em ensinar, como ele afirma:
oportunidade, eu me dedicaria mais
“Eu acho uma profissão muito desvalori- aos estudos sempre na profissão
zada, porque nós somos valorizados pelo de professor, eu me dedicaria ao
tulo, nós não somos valorizados pela doutorado, à pesquisa direcionada,
capacidade que nós temos de ensinar”. a um laboratório especifico, a criar
Diante dessa compreensão, o um laboratório da minha área, en-
professor, na busca de sua profissiona- tão, isso daí é o que eu quero fazer.

224 Isabel M.S.P.CARNEIRO; Ludmila de A. FREIRE; Ma. Marina D. CAVALCANTE. A racionalidade subjacente...
O professor reforça que o aper- ria, a gestão escolar, a dialogicidade, a
feiçoamento profissional seria algo que competência, a ergonomia do trabalho
exerceria se tivesse maior disponibi- docente como fatores de apreensão da
lidade. Outro entrevistado já pensou iden dade docente.
em mudar de ins tuição, pois a falta Os dados da pesquisa revelam
de avaliação por mérito e um ambiente os esforços e as dificuldades que os
agradável é necessário para uma melhor entrevistados sentiram no início de
prá ca e atuação docente. A falta de suas prá cas docentes e que, diante da
uma infraestrutura abala a mo vação ausência de um preparo adequado para
dos alunos, desmo vando-os e ocasio- o exercício da docência, se espelhavam
nando um maior aumento na evasão em seus bons professores advindos da
escolar. graduação.
Nesse contexto, os sujeitos apon- Mesmo apontando a necessidade
taram que os docentes necessitam de de aperfeiçoamento didá co-pedagógi-
um maior envolvimento com a ins tui- co para uma melhoria de seu trabalho,
ção, pois vários deles não têm compro- os entrevistados buscam a formação
misso com a mesma tornando-se meros con nuada em suas áreas especificas de
“dadores” de aula. Ou seja, profissionais conhecimento. Eles apontaram também
que não par cipam das a vidades que que, mesmo diante das dificuldades do
ocorrem na ins tuição, estando na ins- exercício da docência, não mudariam de
tuição de ensino apenas para ministrar profissão, pois se sentem gra ficados
aulas, repercute na aprendizagem dos com o reconhecimento dos estudantes.
estudantes e no entrosamento entre os A par r desses resultados, desta-
docentes. camos a importância dos estudos sobre
a formação para a docência na Educação
Considerações finais rumo a uma nova superior valorizarem e ressignificarem
perspectiva o saber prá co do professor constan-
temente reconstruído em situações de
Tendo em vista estabelecer pa- trabalho intersubje vo de dialogicidade,
râmetros centrais para o estudo do reconhecendo na sua práxis a diale ci-
trabalho docente do professor universi- dade da relação teoria e prá ca. A com-
tário com formação básica de bacharel, plexidade do saber ensinar, ou seja, da
e focando questões rela vas à prá ca competência para o ensino universitário,
situada desse profissional no âmbito da requer a formação de um docente cuja
Pedagogia, o estudo foi desenvolvido iden dade revela um sujeito epistêmico
sob o pressuposto da epistemologia da e hermenêu co, produtor de saberes e
prá ca tendo a racionalidade pedagó- de sen dos.
gica, a práxis, o saber da experiência,
a transformação pedagógica da maté-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 215-226, jan./jun. 2014. 225


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ZABALZA, M. A. O ensino universitário: seu cenário e seus protagonistas. Tradução de Ernani
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Recebido em agosto de 2013


Aprovado para publicação em dezembro de 2013

226 Isabel M.S.P.CARNEIRO; Ludmila de A. FREIRE; Ma. Marina D. CAVALCANTE. A racionalidade subjacente...
O profissional de apoio na rede regular de ensino: a
precarização do trabalho com os alunos da Educação
Especial
The professional of support in regular educaƟon
network: the precariousness of work with students
in Special EducaƟon
Silvia Maria Mar ns*
* Professora do Colégio de Aplicação da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) e Mestre em Educação
pela mesma universidade. E-mail: s.mar ns@ufsc.br

Resumo
Este ar go apresenta o resultado da pesquisa de Mestrado desenvolvida durante o ano de 2010 e
2011 sobre o trabalho do profissional de apoio em turmas de Educação Infan l e Ensino Fundamen-
tal que possuem sujeitos da Educação Especial matriculados nos municípios de Florianópolis e São
José. Inves gou-se como a atuação destes profissionais tem sido organizada para o atendimento
aos sujeitos da Educação Especial nas classes comuns. A par r desta pesquisa, foram evidenciadas
as problemá cas existentes neste cargo que agregadas, cons tuem elementos de um processo de
precarização e intensificação do trabalho docente e demonstram, de forma explícita, o modelo de
inclusão escolar que está sendo difundido nas polí cas nacionais para Educação Especial.
Palavras-chave
Profissional de apoio. Trabalho docente. Educação especial.

Abstract
This ar cle presents the results of the master research developed during 2010 and 2011 about the
work of the professional of support in classes of Kindergarten and Elementary School which have
special students registered in Special Educa on in the ci es of Florianópolis and São José. It was
inves gated how the performance of these professionals has been organized to meet to help the
special students of Special Educa on in common classes. Considering this research, the exis ng
problems were evidenced in this work posi on, if aggregated, cons tute elements of a process of
precariousness and intensifica on of teachers' work and demonstrate explicitly the model of school
inclusion which is being broadcast on na onal policies for Special Educa on.
Key words
Professional of support. Teaching work. Special educa on.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014
Introdução tem sido organizada no sentido do
atendimento aos sujeitos da Educação
O presente texto tem como propó- Especial nas classes comuns, com foco
sito apresentar dados da pesquisa desen- nos seguintes obje vos específicos: di-
volvida no Mestrado em Educação cujo mensionar a incidência do profissional
objeto consis a no trabalho desenvolvi- de apoio na classe comum na Regional
do pelo profissional de apoio que atua Grande Florianópolis; iden ficar as de-
com os sujeitos da Educação Especial na nominações atribuídas ao profissional de
rede regular de ensino. A pesquisa tem apoio; analisar as atribuições previstas
como hipótese inicial que a presença do e realizadas para/pelo profissional de
profissional de apoio tem se cons tuído apoio; e caracterizar as condições de
em uma das principais estratégias desen- atuação dos profissionais de apoio em
volvidas nas redes municipais de ensino exercício. Estes obje vos contribuíram
para a realização das polí cas de Educa- para caracterizar os profissionais de
ção Especial, na perspec va inclusiva. Tal apoio na classe comum, iden ficando
hipótese se fundamenta pela percepção nomenclatura, formação, carga horária,
da incidência do profissional de apoio atribuições, remuneração e forma de
nas redes mediante aproximação com contratação. Tal aproximação possibili-
o campo empírico, primeiramente nas tou a análise da estratégia que muitas
redes municipais de ensino da Regional redes municipais vêm desenvolvendo
Grande Florianópolis em que foram co- para o atendimento dos sujeitos da Edu-
letados dados referentes às propostas cação Especial na Educação Infan l e no
polí cas para a organização do cargo em Ensino Fundamental.
suas redes.
No desenvolvimento da pesquisa Contextualização das políticas para
procurou-se investigar a atuação do Educação Especial no Brasil: uma
profissional de apoio em turmas de análise de documentos
Educação Infan l e Ensino Fundamen-
tal com sujeitos da Educação Especial A partir da década de 1990, as
matriculados. polí cas educacionais no Brasil, e em di-
Tomou-se como campo empírico versos países, vêm ganhando contornos
duas redes constituintes da Regional denominados como inclusivos calcados
Grande Florianópolis, Florianópolis e São em orientações advindas de conferên-
José, e buscou-se acessar informações cias internacionais, principalmente na
com os profissionais de apoio que atuam Conferência Mundial de Educação para
em ambas as redes. Todos, realizada em Jomtiem, Tailân-
Pretendeu-se, portanto, inves gar dia (UNESCO, 1990) e na Conferência
durante o ano de 2010, de que forma Mundial sobre Necessidades Educacio-
a atuação dos profissionais de apoio nais Especiais: acesso e qualidade, em

228 Silvia Maria MARTINS. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho...
Salamanca, Espanha (UNESCO, 1994). a demandar aos estados e municípios
Porém, segundo Garcia (2004), outros a organização para o atendimento dos
documentos internacionais publicados sujeitos da Educação Especial em suas
por agências mul laterais como Ban- redes de ensino, indica que uma das
co Mundial (2000), Organização para possibilidades para o desenvolvimento
a Cooperação e o Desenvolvimento do trabalho em classe comum seja a
Econômico (OCDE) (RANSON, 2001) e presença de um profissional para apoiar
Organização das Nações Unidas para a o professor, citando este como “profes-
Educação, a Ciência e a Cultura (UNES- sor de Educação Especial”. Este deveria
CO, 1990) vêm reforçar o ideário de desempenhar seu trabalho em equipe
inclusão, propondo a conquista de uma com os professores da classe comum no
“sociedade inclusiva”. O discurso que atendimento aos sujeitos da Educação
sustenta as polí cas de inclusão “opera Especial em seu processo de ensino-
por meio de uma linguagem de mudança aprendizagem. Já o documento da Po-
social, sugerindo ao leitor que estariam lí ca Nacional de Educação Especial na
acontecendo modificações profundas Perspec va da Educação Inclusiva (BRA-
na realidade social” (GARCIA, 2004, p. SIL, 2008) apresenta o apoio pedagógico
104). No conjunto de tais proposições, como “monitoria ou cuidado”. Assim,
a escola passa a ser concebida como um ocorre uma mudança nas referências ao
importante locus para a disseminação do profissional que deveria apoiar o pro-
ideário inclusivo. fessor de classe no processo de ensino-
No Brasil, em par cular, esse de- aprendizagem do sujeito da Educação
bate ganha muita força no campo da Especial, uma vez que este agora deve
Educação Especial com base na Decla- atender os alunos da Educação Especial
ração de Guatemala (1999) e de Nova em a vidades de higiene, alimentação,
Iorque (Convenção sobre os Direitos das locomoção e demais ações em que ne-
Pessoas com Deficiência, 2006) indican- cessitarem de auxílio no espaço escolar.
do uma mudança no sistema de ensino, Reforçando tal proposta, no ano de 2010,
visando a universalização da educação a SEESP divulgou uma nota técnica des-
básica nos paises em desenvolvimento. nada aos profissionais de apoio para
A proposta de universalização contempla alunos com deficiência e transtornos
os sujeitos da Educação Especial como globais do desenvolvimento matricula-
um dos grupos incorporados pela po- dos nas escolas comuns da rede pública
lí ca educacional, mediante ampliação de ensino em que demanda uma ação de
da cobertura de matrículas (MICHELS et cuidado e de monitoria a atendimento
al., 2010). as questões “no âmbito da acessibili-
O documento das Diretrizes Nacio- dade às comunicações e de atenção
nais para Educação Especial na Educação aos cuidados pessoais de alimentação,
Básica (BRASIL, 2001), um dos primeiros higiene e locomoção” (BRASIL, 2010, p.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014. 229


01). Diante das novas orientações para especializados que segundo o “Caderno
a função de profissional de apoio, pode- pedagógico: Educação Inclusiva” atende
se considerar que de apoio ao professor os alunos sujeitos da Educação Especial
na classe comum para a organização com oferecimento do AEE e orientações
do trabalho pedagógico a ser realizado às escolas da rede municipal de ensino
neste espaço, o profissional de apoio “no que se refere à educação inclusiva,
passou a monitoria e cuidado do sujeito através de assessorias sistemá cas [...]”
da Educação Especial matriculado nas (SÃO JOSÉ, 2009, p. 19). Embora o mu-
classes regulares de ensino. nicípio de São José apresente questões
As norma vas mais recentes1 vol- pedagógicas no desenvolvimento do
tadas à Educação Especial demandam trabalho dos profissionais de apoio nas
uma forte imposição de que o AEE nas classes regulares, ao menos prescrito,
redes de ensino aconteça nas salas de não foi o que se constatou a par r das
recursos mul funcionais (BRASIL, 2008, falas dos profissionais de apoio entrevis-
2009). Tal ênfase enfraquece o trabalho tados na rede. A denúncia de abandono
da Educação Especial na classe regular, por parte do NEESPI às questões que se
o qual perdeu a possibilidade de apoio apresentavam nas escolas referentes aos
pedagógico especializado e passou a as- sujeitos da Educação Especial foram for-
sumir o formato de monitoria e cuidado. temente destacadas. Portanto, o modelo
A Secretaria Municipal de Educação de atual para o atendimento educacional
Florianópolis possui uma forte organiza- especializado encontrado em ambas
ção em termos de sala de recursos, que as redes que serviram de lócus para a
conforme se pode perceber a par r dos pesquisa se destaca por um trabalho re-
dados da pesquisa, é o local privilegiado alizado de forma independente daquele
para o desenvolvimento do atendimento realizado na classe regular.
educacional especializado, haja vista a
forte caracterização em termos de mo- Caracterização dos profissionais de
nitoria e cuidado evidenciado nos relatos apoio da amostra da pesquisa em
dos profissionais de apoio contratados Florianópolis e São José
para atuarem nas classes regulares junto
No município de Florianópolis
aos sujeitos da Educação Especial entre-
foram entrevistados 22 auxiliares de
vistados nessa rede. O município de São
ensino de Educação Especial, abarcando
José possui o NEESPI com profissionais
uma amostra de 26,5% do total da rede
municipal de educação que contabili-
1
Esta pesquisa não incorporou o úl mo decreto za 83 profissionais. Dos 22 auxiliares
7.611/2011, porém este documento também entrevistados apenas dois são do sexo
não enfa za o trabalho na classe comum, ape-
nas reafirma que o AEE aconteça nas salas de
masculino o que demonstra uma forte
recursos mul funcionais. presença feminina nesta função. Na

230 Silvia Maria MARTINS. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho...
rede municipal de educação de São José nais de apoio em foco atuantes na rede,
foram entrevistados 19 auxiliares de os quais somam 86.
ensino para educandos com deficiência, Na tabela 1 apresenta-se o número
todas do sexo feminino, abarcando uma total de auxiliares distribuídos nas duas
amostra de 22% do total dos profissio- redes de ensino pesquisadas.

Tabela 1 - Número de profissionais de apoio atuantes nas redes municipais de


educação de Florianópolis e São José por categoria e etapa educacional

Profissional de Educação Ensino Sub-


Município Total
apoio InfanƟl Fundamental total
Auxiliar de ensino
23 38 61
de Ed. Especial Fixo
Florianópolis Auxiliar de ensino 83
de Ed. Especial 04 18 22
Volante
Sub-total 27 56
Auxiliar de ensino 69
São José para educandos 17 86
com deficiência
Fonte: Dados fornecidos pela Gerência de Educação Inclusiva do município de Florianópolis e Se-
cretaria Municipal de Educação de São José.

O município de Florianópolis são contratados como volantes, porém o


possui duas categorias de auxiliar de que define se acompanhará uma ou mais
ensino de Educação Especial: “volantes” turmas é a demanda de cada unidade e
e “fixos”. Os auxiliares volantes podem as especificidades dos alunos.
atender até três crianças, em turmas A Tabela 1 evidencia que o auxiliar
diferentes no mesmo período e na volante é uma alterna va bastante u li-
mesma ins tuição. Os auxiliares fixos zada na rede municipal de Florianópolis,
desempenham seu papel especificamen- principalmente no Ensino Fundamental
te em uma turma, podendo nesta sala que conta com 18 profissionais de apoio,
frequentar um ou mais sujeitos da Edu- totalizando 21% do total de 83 auxiliares
cação Especial. Não há uma pré-seleção de ensino de Educação Especial naquele
para a função de auxiliar fixo ou volante, município, embora predominem os au-
dependendo exclusivamente da deman- xiliares fixos.
da de alunos da unidade educacional. Os auxiliares de ensino de Edu-
Conforme informação recebida pela cação Especial podem atuar em mais
Gerência de Educação Inclusiva do muni- de uma etapa educacional, mas os
cípio de Florianópolis, todos os auxiliares dados gerais da rede municipal de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014. 231


Florianópolis indicam um predomínio sala para as classes de Educação Infan l.
de atuação no Ensino Fundamental, o Sendo assim, já há a presença de um
que é esperado ao considerar que é no profissional a mais nestas classes, além
Ensino Fundamental que o número de do professor.
alunos é maior, assim como o número O Quadro 1 apresenta o número
de alunos que demandam o trabalho de profissionais de apoio presentes nas
do profissional de apoio. Uma hipótese redes de ensino pesquisadas, além das
para a variação no número de profis- matrículas de alunos das redes munici-
sionais de apoio para Educação Infan l pais e o número de crianças da Educação
com relação ao Ensino Fundamental Especial matriculadas nas escolas regu-
refere-se à presença de um auxiliar de lares em cada município.

Ed. InfanƟl Ens. Fundamental Educação Especial


Matrícula Matrícula (alunos de escolas especiais,
inicial de inicial de classes especiais e incluídos)
alunos alunos
Pré- Anos Anos Pré- Anos Anos
Município Creche Docentes P.A Docentes P.A Creche
escola Iniciais Finais escola Iniciais Finais
Florianópolis 4.630 5.253 394 27 7.516 7.704 660 56 43 55 113 100
São José 1.669 2.879 304 17 6.725 6.499 629 69 14 26 101 48

Quadro1 – Matrícula inicial de alunos das redes municipais de ensino e número


de docentes e profissionais de apoio nos níveis/etapas de Educação Infantil e
Ensino Fundamental nos municípios pesquisados/2010.
Fonte: INEP/ Censo Escolar/ 2009 e IBGE cidades. Docentes/2009.

Os dados apontam que São José é profissionais de apoio para atender 98


o município que possui o maior número sujeitos da Educação Especial matricula-
de profissionais de apoio atuando no dos na Educação Infan l, sendo que São
Ensino Fundamental, já o município de José possui 17 profissionais de apoio
Florianópolis, possui o maior número para atender 40 sujeitos da Educação Es-
destes profissionais na Educação Infan l. pecial, matriculados na mesma etapa/ní-
Verifica-se por estes dados que a rede vel educacional. No Ensino Fundamental,
de São José se u liza mais do trabalho a rede municipal de Florianópolis possui
do profissional de apoio que a rede de 56 profissionais de apoio para atender
Florianópolis, tendo em vista o número 213 sujeitos da Educação Especial matri-
de alunos sujeitos da Educação Especial culados, já São José possui 69 profissio-
atendidas pelos referidos municípios. nais de apoio contratados para atender
O Município de Florianópolis possui 27 149 sujeitos da Educação Especial.

232 Silvia Maria MARTINS. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho...
Uma possível explicação para tal apoio. É possível afirmar, ainda, a par r
fato é que a contratação deste profissio- de tais dados, que o trabalho do profis-
nal no município de São José acontece sional de apoio fica restrito à monitoria
tendo por prioridade os casos diagnos- e ao cuidado, há, também, insuficiência
ticados com deficiência mental e/ou de profissionais para o atendimento aos
deficiência múltipla, o que amplia as sujeitos da Educação Especial, indicando
possibilidades de “enquadramento” das uma grande disparidade principalmente
caracterís cas dos sujeitos. Já no mu- em relação aos dados de Florianópolis
nicípio de Florianópolis, para que uma que apresentam 83 auxiliares para 311
classe receba um auxiliar de ensino de crianças.
Educação Especial, é necessário que es- O número de profissionais de
teja matriculado um sujeito da Educação apoio volantes em relação aos fixos
Especial que apresente dependência na representa 1/3. Porém, ao analisar a
locomoção e/ou na higiene e/ou na ali- quan dade de crianças atendidas por
mentação e/ou ter risco de morte, o que esses profissionais de apoio contratados
acaba por delimitar em grande medida como volantes, percebe-se que para
os casos a serem atendidos no município. exercer a função que cinco volantes
Retomando os dados apresenta- entrevistados realizam seriam necessá-
dos no Quadro 1 foram contabilizados rios ao menos mais 16 auxiliares fixos.
na rede municipal de Florianópolis, no Tal número tomaria proporções muito
ano de 2010, 311 crianças da Educação maiores, caso fossem analisados dados
Especial matriculadas nas diferentes referentes à quantidade de crianças
etapas de ensino, Educação Infan l e atendidas por todos os 22 volantes na
Ensino Fundamental, e 83 profissionais rede de Florianópolis.
de apoio na rede. Já na rede municipal Serão apresentadas, no Quadro
de São José, conforme os dados coleta- 2, a nomenclatura e as atribuições do
dos, são 189 crianças matriculadas nas profissional que presta apoio ao profes-
diferentes etapas de ensino que contam sor regente em classe com sujeitos da
com o trabalho de 86 profissionais de Educação Especial em cada município.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014. 233


Municípios Nomenclatura Atribuições
01 Florianópolis Auxiliar de ensino “I-Par cipar de reuniões pedagógicas, conselhos de
de Educação classe, planejamentos e de grupos de estudos na
Especial unidade educa va; [...] III -Aplicar e u lizar os materiais
e recursos de Comunicação Aumenta va Alterna va e
Tecnologia Assis va fornecidos pelos professores das Salas
Mul meios; [...] V - Auxiliar o(s) aluno(s) com deficiência
em sua alimentação, de acordo com as orientações
do profissional especializado que o (s) acompanha
(m);VI – Auxiliar o(s) aluno(s) em sua higiene conforme
orientações do profissional especializado que acompanha
o(s) mesmo(s), de acordo com as par cularidades de
cada aluno; VII – Auxiliar o(s) aluno(s) em sua locomoção:
conduzir a cadeira de rodas, apoiá-lo quando caminhar,
ainda que tenha dificuldade e/ou colocá-lo e acompanhá-
lo no andador, de acordo com as orientações do
profissional especializado que acompanha o(s) aluno(s)
[...]” (FLORIANÓPOLIS, 2007, p. 4).
02 São José Auxiliar de ensino “Auxiliar o 1º professor no processo de ensino-
para educandos aprendizagem de todos os alunos, especificamente aos
com deficiência2 alunos com diagnós co de deficiência: Ser mediador do
conhecimento, auxiliando e orientando os alunos da turma
em conjunto com o 1º professor; Par cipar da discussão
do planejamento junto com o 1º professor e o supervisor
escolar; O planejamento não deve ser diferenciado para
nenhum aluno. O planejamento e as adaptações das
estratégias devem ser discu dos por ambos, 1º professor
e 2º professor; Devem ser possibilitadas trocas constantes
entre o 1º professor e o 2º professor no trabalho com
os alunos com deficiência; Não é recomendado trabalho
diferenciado e individualizado com o aluno com deficiência
em sala de aula ou em qualquer outro momento; Cabe ao
1º professor e 2º professor a responsabilidade de avaliar
o aluno com diagnós co de deficiência; O 2º professor irá
acompanhar os alunos (turma) em todas as aulas, ou seja,
educação sica, educação ar s ca, língua estrangeira, etc”
(SÃO JOSÉ, 2009, p. 1).
Quadro 2 – Nomenclatura e atribuições do profissional de apoio nos municípios
investigados.2

Conforme evidenciado, existem


variadas atribuições, bem como nomen-
2
A Secretaria de Educação u lizava a nomen- claturas para designar o profissional que
clatura segundo professor para designar o presta apoio ao trabalho dos professores
profissional de apoio que em 2010 passou a ser
denominado Auxiliar de ensino para educandos regentes nas turmas de Ensino Funda-
com deficiência. mental e Educação Infan l. Também nos

234 Silvia Maria MARTINS. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho...
documentos representa vos da Polí ca ensino para educandos com deficiência
Nacional de Educação Especial, na pers- não tenha sido percebida diferenciação
pec va da Educação Inclusiva (BRASIL, em suas atribuições.
2008, 2009), são encontradas diferentes A formação exigida para o exercício
denominações para este sujeito como: destes profissionais também foi foco de
profissionais da educação para a inclu- análise. Florianópolis e São José admi-
são, cuidador, monitor, profissionais da tem, para a função, profissionais com
educação que atuem no apoio e profis- formação em ensino médio (Magistério).
sional de apoio (BRASIL, 2010). Em São José (2009), o edital nº 008/2009,
No que se refere às atribuições de processo sele vo para subs tutos da
previstas para o cargo dos profissionais rede, evidencia a ampla diversificação da
de apoio podemos destacar que em formação exigida ao candidato à vaga de
Florianópolis predomina a caracterís - auxiliar de ensino para educandos com
ca de cuidado já em São José são mais deficiência, o qual pode ter graduação
fortemente destacada características em Pedagogia com habilitação em Edu-
pedagógicas. Embora nas entrevistas re- cação Especial ou simplesmente forma-
alizadas com as profissionais Auxiliar de ção em nível médio/magistério.

Municípios Formação Inicial exigida para contratação


01 Florianópolis Formação no ensino médio em Magistério, ou graduado ou estudante da
5ª fase em diante dos cursos de graduação em licenciaturas na área da
Educação. (FLORIANÓPOLIS. Edital nº 003/2009 – Processo sele vo de
subs tutos)

Diploma ou cer ficado de conclusão do curso de licenciatura Plena na área


de Educação (FLORIANÓPOLIS. Edital nº 001/2009 – Concurso público).
02 São José Licenciatura em Pedagogia ou Normal Superior, com habilitação em
Educação Especial; ou Formação no Ensino Médio, com habilitação
em Magistério (SÃO JOSÉ. Edital nº 008/2009 – Processo sele vo de
subs tutos).

Quadro 3 Formação inicial dos profissionais de apoio nos municípios pesquisados.

As redes de Florianópolis e São cuidado até o trabalho pedagógico junto


José aceitam a formação em nível médio, ao professor de classe comum.
porém não são homogêneas entre si Outro ponto que merece destaque
quanto às atribuições dos profissionais, refere-se à forma de contratação destes
já que variam desde auxiliar os alunos profissionais, cujos dados serão apresen-
nas questões relacionadas à higiene e tados no Quadro 4.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014. 235


Municípios Forma de Contratação
01 Florianópolis Concurso público e processo sele vo simplificado específico para a
função. (Depoimento Gerente de Educação Inclusiva em 10/ 03 /2010).
02 São José Processo sele vo simplificado específico para esta função. (Depoimento
Coordenadora do Núcleo de Educação Especial e Inclusiva em
29/03/2010).
Quadro 4 - Forma de contratação dos profissionais de apoio nos municípios pes-
quisados.

Quanto à forma de contratação para provimento de vagas ao cargo de


ambos municípios realizam processo se- profissional de apoio na rede.
le vo e concurso público específicos para Também se buscou conhecer a
o desempenho da função. Porém cabe remuneração desses profissionais. Em-
destacar que no inicio desta pesquisa o bora dos 22 entrevistados no município
município de São José selecionava da de Florianópolis apenas três trabalhem
listagem dos candidatos de processo se- 20 horas, neste quadro, foram contabi-
le vo para contrato temporário no cargo lizados também como 20 horas aqueles
de professor regente, neste momento a que trabalham em outras redes de en-
entrevistada, responsável pela “educa- sino, ou em outras funções nas 20 horas
ção inclusiva” do município expôs a an- restantes de sua carga horária, já que o
gús a de alguns candidatos ao saberem interesse é analisar a remuneração dos
que não desempenhariam o papel de auxiliares neste cargo.
professor de classe, mas de profissional A remuneração dos profissionais
de apoio, já que este úl mo não recebe de apoio foi considerada pelos entrevis-
gra ficação de incen vo a regência de tados, em ambos os municípios, como
classe3. Atualmente, este município de- mais uma das formas de desvalorização
senvolve processo sele vo simplificado profissional. Os próprios profissionais
consideram a remuneração recebida
3
A gra ficação de incen vo à regência de classe como extremamente baixa, o não recebi-
é uma vantagem de ordem pecuniária concedida mento dos 40% de regência de classe é
ao professor em efe vo exercício em sala de aula, considerado injusto por parte dos auxi-
que atue na educação infan l, ensino fundamen- liares de ensino de Educação Especial
tal (1ª a 4ª série), educação especial, educação
sica e educação de jovens e adultos (nivelamen- no município de Florianópolis, já que
to/alfabe zação), em razão do trabalho realiza- trabalham com a mesma carga horária
do, equivalente a 40% (quarenta por cento) do do professor regente de classe, sendo
vencimento do cargo efe vo, correspondente à que em alguns casos precisam acompa-
carga horária de efe vo exercício em regência de
nhar a criança nos momentos do recreio
classe, podendo variar nas redes municipais de
ensino. Disponível em: <h p://www.sea.sc.gov. para auxílio à locomoção, alimentação e
br> Acesso em: 20 mar. 2010. higiene.

236 Silvia Maria MARTINS. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho...
Remuneração dos auxiliares de
ensino de Educação Especial 20 horas 40 horas Situação funcional
De R$500,00 a R$700,00 05 - Subs tutos
De R$1.000,00 a R$1.500,00 - 13 Subs tutos
Acima de R$2.000,00 - 01 Efe vo
Quadro 5 - Remuneração dos auxiliares de ensino de Educação Especial da rede
municipal de Florianópolis.

No município de São José, não há o diferentemente de Florianópolis que re-


cargo de auxiliar de ensino de educandos aliza concurso público para desempenho
com deficiência com a situação funcional deste cargo.
efe vo, apenas por contrato temporário,

Remuneração dos auxiliares de ensino


para educandos com deficiência 20 horas 40 horas Situação funcional
De R$700,00 a R$850,00 13 - Subs tutos
De R$1.000,00 a R$1.800,00 - 06 Subs tutos
Quadro 6 - Remuneração dos auxiliares de ensino para educandos com deficiên-
cia da rede municipal de São José.

Ao analisar os dois quadros, pode- entrevistados em Florianópolis atua 40


se perceber que não há grande variação horas semanais, uma vez que apenas
nos salários recebidos pelos profissionais 13,64% (três) dos 22 entrevistados atu-
de apoio atuantes nas duas redes de am 20 horas. Contudo, entre os entre-
ensino pesquisadas, considerando que vistados que atuam 40 horas semanais,
a informação foi ob da mediante de- cinco trabalham em outros cargos além
claração dos entrevistados e não houve do de auxiliar de ensino de Educação
acesso aos comprovantes de rendimento Especial, tais como professor de classe
profissional dos mesmos. A diferença de regular de redes públicas, assistente
valores encontrada refere-se à situação técnico pedagógico e professores de
funcional dos profissionais de apoio escolas privadas. Foram contabilizados
apenas nas formas de contratação (de 14 auxiliares com 40 horas semanais na
subs tuto para efe vo). função de profissional de apoio, dentre
Outro tópico a ser analisado refe- estes, um atua como profissional de
re-se à carga horária de trabalho sema- apoio na rede pública estadual.
nal dos profissionais de apoio que atuam Em São José, há grande incidência
nas duas redes. A maioria dos auxiliares de profissionais da Educação Infantil

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014. 237


atuando 50 horas semanais, acumulando auxiliar de ensino para educandos com
os cargos de professor ou auxiliar de sala deficiência em outro.
na Educação Infan l em um período e de

Número de Auxiliares Número de Auxiliar de


Carga horária semanal de ensino de educação ensino para educandos
Especial (Florianópolis) com deficiência (São José)
20 horas 03 01
40 horas com cargos diferentes 05 02
40 horas como auxiliar 14 07
50 horas (20h auxiliar e 30h como
professora ou auxiliar de ensino - 09
na Ed. Infan l).
Quadro 7 – Carga horária semanal dos auxiliares de ensino de Educação Especial
de Florianópolis e auxiliares de ensino para educandos com deficiência de São José.

Das 19 entrevistadas na rede mu- que, principalmente na rede municipal


nicipal de São José, sete atuam 40 horas de Florianópolis, poucos não possuem
na função de auxiliar de ensino para cursos de pós-graduação lato sensu, e
educandos com deficiência, sendo que destes alguns já estão cursando. Já no
uma destas atua como profissional de município de São José o maior número
apoio na rede estadual. Duas atuam 20 de profissionais entrevistados possui
horas na função de profissional de apoio graduação incompleta. Estes dados po-
e demais 20 horas em outras funções. derão ser melhor analisados com base
Quanto à formação dos profis- nos dados do Quadro 8.
sionais de apoio os dados demonstram

Quan dade de auxiliares Quan dade de auxiliares de


de ensino de Educação ensino para educandos com
Formação Especial deficiência
(Florianópolis) (São José)
Ensino Médio - 02
Graduação incompleta 02 07
(cursando)
Graduação 04 02
Pós-graduação incompleta 05 03
(cursando) (lato sensu)
Pós-graduação (lato sensu) 12 05
Quadro 8 – Formação dos Auxiliares de Ensino de Educação Especial e auxiliares de
ensino para educandos com deficiência.

238 Silvia Maria MARTINS. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho...
Neste tópico, o entrevistado res- Das sete que estão cursando gra-
pondia acerca de seu maior nível de duação no município de São José, cinco
escolaridade. Nenhum dos entrevistados cursam Pedagogia, uma profissional de
possuía formação inferior à graduação apoio está cursando História e uma está
no município de Florianópolis, já em São cursando Letras. Dentre aquelas que já
José foram encontradas duas profissio- concluíram a graduação, oito possuem
nais cujo maior nível de formação era o formação em Pedagogia e duas em Biblio-
Ensino Médio. Em Florianópolis, um dos teconomia. As pós-graduações que estão
entrevistados que é indicado no quadro em curso são em nível de especialização
como “graduação incompleta” está cur- lato sensu, destas, duas cursam Educa-
sando concomitante à pós-graduação ção Infan l e Séries iniciais com ênfase
(este foi contabilizado nas duas catego- em Educação Especial, e outra Educação
rias). Dos quatro respondentes contabi- Infan l e Séries Iniciais: Gestão e Ensino
lizados em “graduação completa”, um Médio. Uma das entrevistadas que já pos-
está, no momento, cursando sua segun- sui pós-graduação em Estrutura e Funcio-
da graduação, agora em Pedagogia, já namento dos Estudos de 1º, 2º e 3º grau
que possui graduação em Letras. Este en- está cursando sua segunda especialização
trevistado foi contabilizado uma vez por em Educação Infan l. Esta entrevistada
referir-se ao mesmo nível de escolarida- foi contabilizada uma vez por referir-se ao
de. Ainda neste mesmo município, cinco mesmo nível de escolaridade. Das cinco
entrevistados cursam pós-graduação que já possuem pós-graduação, uma é
em nível de especialização lato sensu, formada em Psicopedagogia, uma em
cujas temáticas estão relacionadas à Prá cas de Ensino e outra em Educação
Educação Especial. Dentre os 12 que já Infan l e Séries Iniciais.
possuem pós-graduação, também lato Quanto à graduação dos auxiliares
sensu, há grande variedade de temá cas no município de Florianópolis, a predo-
dos cursos tais como Educação Infan l e minância é o curso de Pedagogia, com
Séries Iniciais, Educação Infan l e Séries uma significa va margem de diferença
Inicias com ênfase em Educação Especial, dos demais cursos. Dos entrevistados,
Gestão Escolar, Educação de Jovens e quatro são graduados em Educação Fí-
Adultos, Psicopedagogia, Interdiscipli- sica, dois em Letras e um em Geografia.
naridade na Educação Infan l e Séries Vale ressaltar que um dos graduados que
Iniciais, Psicomotricidade, Educação na tabela é indicado com graduação em
Especial e Gestão e Interdisciplinaridade. Letras também está cursando Pedagogia.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014. 239


QuanƟdade de auxiliares de QuanƟdade de auxiliares de
ensino de Educação Especial ensino para educandos com
Graduação em: deficiência
(Florianópolis)
(São José)
Pedagogia 15 08
Educação Física 04 -
Letras 02 -
Biblioteconomia - 02
Geografia 01 -
Quadro 9 - Cursos de graduação dos auxiliares de ensino de Educação Especial
da rede de Florianópolis e auxiliar de ensino para educandos com deficiência do
município de São José.

Os dados apontam que, em am- nacionais voltados para a Educação Es-


bas as redes inves gadas, a formação pecial na perspec va inclusiva, não há
dos profissionais de apoio no desen- realmente nenhum impedimento para
volvimento do trabalho com os sujeitos o profissional de apoio ser formado em
de Educação Especial em classe pode Educação Física, Letras, Geografia ou
variar em diferentes áreas, o que pode Biblioteconomia, já que o desenvolvi-
representar uma indefinição do perfil mento do trabalho com os sujeitos da
profissional. Por outro lado, tal aspecto Educação Especial se resume à monito-
pode ser significado como uma ausência ria, não sendo necessária, deste modo,
dos aspectos pedagógicos presentes nas uma formação específica.
propostas que proclamam a Educação Entretanto, se entendemos que
Especial na perspec va inclusiva. Mi- a escola é o espaço privilegiado para a
chels et al. (2010) discutem a restrição aquisição de conhecimentos historica-
dos processos de aprendizagem como mente acumulados e sistematizados,
consequência de um empobrecimento como não pensar no aspecto pedagógico
dos conteúdos trabalhados na educação na educação destas e demais crianças
básica e da falta dos aspectos pedagó- presentes nesse espaço educacional? As
gicos que vem diluindo-se nos discursos polí cas para a Educação Especial numa
presentes nas propostas da SEESP para a perspec va inclusiva enfa zam, confor-
educação escolar de alunos da Educação me seus documentos representa vos, a
Especial. importância da socialização da criança
Deste modo, ao se considerar o nas classes comuns e deposita no aten-
empobrecimento nas questões peda- dimento educacional especializado, fora
gógicas divulgadas pelos documentos da classe regular, a grande contribuição
orientadores e norma vos das polí cas para que a criança esteja “incluída” na

240 Silvia Maria MARTINS. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho...
escola. A força dessa polí ca consiste experiência” (SHIROMA, 2003, p. 03).
na criação de serviços públicos para o Assim, como exposto pela autora, tem-
atendimento desses sujeitos, o que aca- se observado que tais ideias mantêm-se
ba não rompendo com o an go modelo presentes para com os profissionais de
de atendimento na Educação Especial apoio que vêm atuando nas escolas, sua
marcado pela segregação. formação deve se dar através da expe-
Pode-se relacionar os elementos riência desprovida da teoria no manejo
aqui apresentados como empobre- com os sujeitos da Educação Especial.
cimento nas questões pedagógicas,
ausência de formação específica para Considerações finais
atuar no cargo atrelado a uma indefi-
nição do perfil profissional à categoria A partir da verticalização des-
de desintelectualização do professor, te estudo, foi possível aprofundar as
tal como discu da por Shiroma (2003), questões rela vas à caracterização dos
como processo grada vo que vem se profissionais de apoio que atuam com os
instalando no sistema educacional brasi- sujeitos da Educação Especial matricula-
leiro por meio de redução de exigências dos nas classes regulares de ensino. Tal
de qualificação ou formação aligeirada aprofundamento possibilitou visualizar
que contribui para uma proposta de a desvalorização destes profissionais
educação pouco alicerçada nos aspectos de forma mais ampliada e sistemati-
pedagógicos. A autora discute a função zada. No tópico referente à forma de
polí co-ideológica do conceito de pro- contratação, observou-se que na rede
fissionalização cunhado na polí ca de de Florianópolis o profissional de apoio
formação dos professores para a educa- pode exercer seu cargo em mais de uma
ção básica no Brasil elaborada a par r do turma no atendimento as crianças com
Governo de Fernando Henrique Cardoso as mais diferentes necessidades, o que
(1995-2002) e que se materializou nas caracteriza a complexidade da função. Já
orientações advindas do documento em São José, no que se refere à forma de
“Propostas de diretrizes para a formação contratação, o que chama a atenção é a
inicial da educação básica, em cursos de não contratação por concurso público,
nível superior” lançado em 2001 pelo isto é, o profissional de apoio, a cada
Conselho Nacional de Educação. O referi- ano, precisa passar por processo sele vo
do documento cons tui-se de mais uma para permanecer no cargo, o que eviden-
das inicia vas oficiais na implantação de cia a rota vidade, consequência da não
um projeto polí co educacional para a adaptação e/ou ausência de estratégias
formação docente cujo desenvolvimento para sustentar estes profissionais no
deva se dar sob a forma de “[...] conhe- exercício da função.
cimento experiencial designado como A rede de Florianópolis ainda
conhecimento construído ‘na’ e ‘pela’ possui em seu quadro funcional uma

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014. 241


forma de organização do modo de lis e São José. Variadas foram as formas
função denominado “volante” que que cons tuíam a precária condição de
retira do profissional de apoio qual- trabalho dos profissionais de apoio que
quer possibilidade de que este possa são contratados para atuarem junto
desenvolver seu trabalho voltado aos aos sujeitos da Educação Especial. Al-
aspectos pedagógicos com os sujeitos gumas questões foram iden ficadas nos
da Educação Especial. Tal debate trouxe municípios inves gados e evidenciam
à tona a problemá ca da intensificação a precarização do trabalho no espaço
do trabalho docente que se refere à escolar como: ausência de propostas
sobrecarga de trabalho que nas úl mas governamentais que regularizem o car-
décadas passaram a fazer parte das go em alguns municípios, sobrecarga
jornadas de trabalho dos professores. de trabalho ocasionado pelo número
Oliveira et al. (s/d, p. 7) discutem o tema insuficiente de profissionais contratados
e acrescentam que: para atuarem nas escolas, ausência de
formação específica para atuar no cargo,
Tudo isso vem somar a condições
extremamente extenuantes de baixa remuneração, ausência de espaços
trabalho em que o professor já era adaptados ao atendimento dos sujeitos
submetido, extrapolando muitas da Educação Especial matriculados nas
vezes ao que é prescrito como sua classes regulares.
a vidade. Isto ocorre porque a es- A desintelectualização indicada
cola pública no Brasil cons tui-se por Shiroma (2003) pode referir-se à
em uma polí ca pública “eficiente”, ausência de apoio à qualificação, e ainda
no sen do da sua extensão, ou seja, à valorização do treinamento, da prá ca
ela chega até os pobres e, por isso em detrimento do conhecimento teóri-
mesmo, traz para os professores co, elementos também evidenciados nos
outras tarefas que vão além do relatos dos profissionais de apoio.
que determina sua função: cuidar
Das caracterizações indicadas por
da higiene, da nutrição, da saúde,
entre outras necessidades dos seus
Marin (2010) para iden ficar a precari-
alunos. zação do trabalho docente a que mais
fortemente foi iden ficada nos relatos
O conceito de intensificação, se- dos entrevistados foi a categoria “desva-
gundo Marin (2010), encontra-se nas lorização”. Esta categoria é apresentada
caracterizações da precarização do tra- sob diferentes formas, desde baixa re-
balho docente, juntamente com tantas muneração até a forma de contratação
outras que tem cons tuído a atuação destes profissionais, já que não é exigida
docente nas escolas e que foram iden - formação especializada para atuar no
ficadas a par r dos relatos dos profissio- cargo de profissional de apoio. O Outro
nais de apoio entrevistados nas redes de destaque refere-se a não valorização do
ensino público municipal de Florianópo- trabalho do profissional de apoio pelos

242 Silvia Maria MARTINS. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho...
demais funcionários da ins tuição que senvolvido com os sujeitos da Educação
os tratam como se fossem os únicos Especial em muitas escolas não passa de
responsáveis pelo sujeito da Educação a vidades improvisadas, já que não há
Especial matriculado na instituição. uma organização/planejamento a priori
A responsabilização abrange desde das a vidades a serem desenvolvidas
questões relacionadas à aprendizagem com os alunos da Educação Especial. O
dessas crianças, mas principalmente aos que de certa forma é condizente com as
aspectos relacionados ao atendimento propostas para a Educação Especial na
às necessidades básicas destes alunos, perspec va inclusiva em que atribui às
como ir ao banheiro, alimentação, higie- salas de recursos a responsabilidade de
ne e locomoção. atuação com atendimento educacional
No que se refere à formação con- especializado, restando à sala de aula
nuada, os profissionais de apoio desta- o espaço para a socialização. Além das
caram sobre o direcionamento conferido questões já destacadas, os profissio-
aos cursos que tratam de forma bastante nais de apoio ainda precisam passar
enfá ca dos aspectos diagnós cos. Ou por mais um entrave na realização de
seja, os cursos oferecidos aos profis- suas ações nas escolas, ausência de
sionais de apoio, em ambas as redes, locais adaptados para a vidades que
foram considerados, pelos profissionais requerem locais específicos, como por
de apoio entrevistados, como de pouca exemplo, para a realização de troca de
ou nenhuma ajuda ao trabalho desenvol- fraldas ou vestuário. Da mesma forma,
vido nas classes, já que não há presença percebe-se a carência de condições de
de aspectos pedagógicos nestes cursos, acessibilidade (como rampas para cadei-
o que acaba por seguir na esteira do que ras de rodas) e de materiais adaptados
os documentos orientadores e norma - para o desenvolvimento do trabalho
vos da Educação Especial na perspec va com os alunos. Assim percebe-se que
inclusiva apregoam: monitoria e cuida- mesmo para desempenhar as funções de
do. No item reservado ao planejamento, monitoria e cuidado ainda não lhes são
os profissionais de apoio relatam sobre proporcionadas condições adequadas
a falta de tempo para planejamento o para tal. As precárias condições com que
que resulta no desenvolvimento de a - os profissionais de apoio enfrentam dia-
vidades descontextualizadas daquelas riamente em seu trabalho não somente
realizadas com o restante da classe, já foram relatadas por “desabafos” dos
que não possuem em sua carga horária, entrevistados, mas também vistas, já
tempo para planejamento conjunto com que em muitas escolas os profissionais
os professores regentes. A ausência dos de apoio concediam a entrevista em seus
aspectos pedagógicos é evidenciada nas horários de “intervalo”, horário este di-
falas dos profissionais de apoio entre- ferenciado dos demais profissionais que
vistados haja vista que o trabalho de- atuam na escola, em sala de professores

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014. 243


já vazias, encontravam-se sozinhos os trabalho do profissional de apoio na
profissionais de apoio no tempo des- Educação Básica oferece subsídios para
nado ao seu descanso ou intervalo. a compreensão de que este implica em
Em algumas das escolas visitadas foram um cargo novo nas redes de ensino.
encontrados profissionais de apoio que Cons tui um processo de intensificação
mesmo no tempo des nado ao seu des- do trabalho docente realizado no âmbito
canso permaneciam junto à criança pela de um cargo precarizado/desvalorizado
qual era “responsabilizada” no espaço com relação ao trabalho do professor
escolar. Uma outra questão que merece regente. Explicita, ainda, o modelo de
destaque refere-se ao esforço destes inclusão escolar difundido pelos docu-
profissionais que tentam manter viva a mentos oficiais ao assumir uma caracte-
sua função de ensinar, mesmo quando rís ca de pouca, ou nenhuma ênfase,
não lhes são dadas condições para tal e nas questões pedagógicas. Mantém a
mesmo quando os documentos legais, prá ca orientada por diagnós cos re-
normativos e orientadores indicam forçada pela realização de cursos que
que esta não é sua função. A pesquisa iden ficam o aluno pelas caracterís cas
junto às redes municipais referente ao do diagnós co de deficiência.

Referências
BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o desenvolvimento mundial 2000/2001. Luta contra a
pobreza. Panorama geral. Washington, 2000.
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Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 227-246, jan./jun. 2014. 245


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Recebido em agosto de 2013


Aprovado para publicação em dezembro de 2013

246 Silvia Maria MARTINS. O profissional de apoio na rede regular de ensino: a precarização do trabalho...
Educação e inclusão em escolas de educação básica:
análise preliminar
EducaƟon and inclusion in primary schools:
preliminary analysis
Nerli Nonato Ribeiro Mori*
* Professora Titular do Departamento de Teoria e Prá-
ca da Educação da Universidade Estadual de Maringá.
Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
Humano pela Universidade de São Paulo. É pesquisadora
e bolsista CAPES (Observatório da Educação).
E-mail: nnrmori@uem.br

Resumo
A polí ca nacional de educação especial na perspec va da educação inclusiva foi estabelecida em
2008. Desde então, é cada vez maior a inserção de alunos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação no ensino comum. Como está ocorrendo esse
processo? De que modo estão se concre zando os princípios e determinações dos documentos
norteadores da educação inclusiva? Em busca de respostas para essas questões realizamos uma
pesquisa sobre educação básica e inclusão nas cinco regiões brasileiras. Os dados iniciais foram
colhidos por meio de levantamento junto a 1200 professores e, na segunda etapa, foi realizado
um estudo de campo com observação direta de a vidades e entrevistas com profissionais, com
professores das Salas de Recursos Mul funcionais e com gestores de 15 escolas das cinco regiões
brasileiras. Os resultados indicam que ainda é grande o desafio de avançar para além do direito ao
acesso e efe var prá cas educacionais voltadas para as especificidades dos alunos que não atendem
os padrões de aprendizagem e desenvolvimento estabelecidos.
Palavras-chave
Educação especial. Inclusão. Aprendizagem.

Abstract
Brazilian policy for special educa on within the context of inclusive educa on was established in
2008. Henceforth there has been a wide inclusion of students with deficiencies and with development
disorders or highly gi ed children. How is the process being managed? How are the principles and
determina ons of guideline documents on inclusive educa on being managed? A research on basic
educa on and inclusion has been undertaken in five Brazilian regions. Data were collected by a survey
with 1200 teachers; later a field study with the direct observa on of ac vi es and interviews with
professionals and teachers of Mul func onal Resource Classrooms and administers of 15 schools
in the five Brazilian regions were undertaken. Results show that, besides the right for access, a huge
chasm s ll exists in prac ce to effec vely materialize educa onal prac ces for the specifici es of
children with deficiencies and who do not meet the established standard learning and development.
Key words
Special educa on. Inclusion. Learning.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 247-261, jan./jun. 2014
Introdução do seu modo de operar. Como está se
efe vando a Polí ca Nacional da Educa-
Nas úl mas décadas a educação ção Especial na Perspec va da Educação
brasileira tem passado por um intenso Inclusiva? Como estão se concre zan-
movimento de transformação no que do os princípios e determinações dos
se refere à educação de pessoas com documentos norteadores da educação
necessidades educacionais especiais. inclusiva? Essas são as questões nortea-
Os úl mos censos indicam expressivo doras do projeto de pesquisa “Educação
aumento no número de alunos especiais Básica e Inclusão no Brasil”, apresentado
matriculados no ensino comum. Desde em atendimento ao edital 038/2010/
2008 o total de matrículas do alunado CAPES/INEP.
da Educação Especial em salas comuns Com base em pressupostos da
vem superando o de salas e escolas espe- Teoria Histórico-Cultural, buscamos o
ciais. Os dados do censo escolar indicam movimento de formação da educação
que do total de 820.433 matrículas na especial e a importância da escolarização
Educação Especial em 2012,74% foram para o processo de humanização. Nessa
para classes comuns; em contrapar da, perspec va, a educação formal é condi-
as matrículas em classes e escolas espe- ção para o desenvolvimento humano.
ciais ficaram em torno de 24% (BRASIL, Por meio do ato educa vo produzido
2013b). direta e intencionalmente na escola são
A análise desses números e da transmi dos conhecimentos que con-
legislação vigente evidencia que a ferem a “[...] cada indivíduo singular, a
educação inclusiva está oficializada, ou humanidade que é produzida histórica
seja, a polí ca de inclusão está definida, e cole vamente pelo conjunto dos ho-
formatada e em fase de implantação mens” (SAVIANI, 1991, p. 14).
na maioria das escolas brasileiras. A Pelo processo educa vo, os indiví-
educação especial passou a ser uma duos aprendem a sen r, pensar, avaliar
modalidade da educação comum e, e agir, ou seja, assimilam elementos
desse modo, as crianças com deficiência, que os tornam humanos. Isso mostra
transtornos globais de desenvolvimento que a natureza humana não é dada aos
e altas habilidades/superdotação devem sujeitos por herança biológica como
frequentar classes comuns de ensino algo imutável e à margem das relações
e – se e quando necessário – receber histórico-sociais. Como afirma Vygotski
atendimento educacional especializado (1997), a formação das funções especi-
(AEE) em Salas de Recursos Mul funcio- ficamente humanas depende das rela-
nais (SRM) da própria escola ou de outra ções mediadas. A a vidade principal da
ou, ainda, em Centros de AEE. escola é promover a transformação dos
É fundamental compreender esse conceitos espontâneos em científicos
processo de reestruturação da escola e e, desse modo, possibilitar o acesso ao

248 Nerli Nonato Ribeiro MORI. Educação e inclusão em escolas de educação básica: análise...
conhecimento formal produzido pelos nada àqueles que não apresentavam as
homens. Assim, a escola oportuniza condições estabelecidas para frequentar
ao aluno a atividade psicológica, a o ensino.
consciência, a intenção, a percepção e Ressalte-se que, de longa data, as
atenção dirigida, o planejamento e as escolas especiais e outras ins tuições
ações voluntárias; enfim, o pensamento assumiram o espaço deixado pelas polí-
complexo. cas públicas educacionais e legislações
Nesse sen do, entender como a vigentes. A Cons tuição de 1988, por
sociedade explicou e atendeu às neces- exemplo, previa atendimento educacio-
sidades especiais é fundamental para a nal especializado ao que denominava
construção de uma escola realmente in- portadores de deficiência, “[...] prefe-
clusiva. Assim, destacamos alguns fatos rencialmente na rede regular de ensino”
e documentos marcantes, a par r dos (BRASIL, 1988, ar go 208).
anos de 1980, para a definição da pro- A utilização do termo preferen-
posta brasileira de educação inclusiva, cialmente contribuiu para reforçar a
estabelecendo como fazendo um recor- ambiguidade da relação entre público
te de fatos e documentos marcantes a e privado no que tange à educação
par r dos anos de 1980. Na sequência do alunado especial. Como ques ona
apresentamos uma síntese sobre os Ferreira (2006), quem definia o que era
dados colhidos e analisados na pesquisa preferencial? Além disso, não ficava claro
em pauta. se a matrícula na rede regular de ensino
implicava em sala comum.
A política nacional de educação Estava prevista a organização de
inclusiva vários níveis de atendimento, de modo
a atender as especificidades dos alunos
Os anos de 1980 e 1990 foram e promover a mobilidade de ambientes
marcados por um intenso movimento mais segregados para os menos integra-
em prol da inclusão escolar de alunos dores. No in tulado sistema em cascata,
com deficiência ou transtornos globais os alunos com quadros mais acentu-
do desenvolvimento, especialmente em ados eram matriculados nas escolas
países como Estados Unidos, Canadá especiais da rede conveniada e aqueles
e a maioria dos europeus. O Brasil, no com diagnós cos e manifestações de
entanto, con nuou a se pautar pelos desenvolvimento e aprendizagem mais
princípios da normalização e integração próximos da normalidade, em escolas da
e em explicações voltadas para os aspec- rede comum de ensino, quase sempre
tos clínicos de cada quadro. Desse modo, em salas especiais.
cabia ao aluno adaptar-se às condições Desse modo, por vários fatores,
educacionais oferecidas. Uma estrutura entre eles a ausência de polí cas claras
paralela de atendimento estava des - para a educação do alunado especial

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 247-261, jan./jun. 2014. 249


e a predominância de um olhar clínico mentais sensoriais, emocionais, linguís-
para a educação, no Brasil houve uma cas ou étnicas das crianças. Conforme
expansão con nuada das ins tuições a Declaração, as escolas devem
filantrópicas paralelas à rede pública de [...] acolher crianças com deficiência
ensino e das classes especiais nas escolas e crianças bem dotadas; crianças
regulares. que vivem nas ruas e que tra-
Por outro lado, nesse mesmo balham; crianças de populações
período, varios fatos contribuiram para distantes ou nômades; crianças de
mudanças no panorama da educação minorias lingüís cas, étnicas ou cul-
especial. Um destaque é a retomada turais e crianças de outros grupos
do compromisso com a educação na ou zonas desfavorecidos ou mar-
Declaração Mundial de Educação para ginalizados. (UNESCO, 1994, p. 3).
Todos, de 1990, na qual é reafirmada a O núcleo central Declaração
luta pela democra zação da educação, Mundial de Educação para Todos e da
independentemente das singularidades Declaração de Salamanca era a defesa
dos alunos: “[...] é preciso tomar medi- da inclusão como direito humano e,
das que garantam a igualdade de acesso portanto, a defesa da inclusão de todos
à educação aos portadores de todo os alunos na escola comum. Como
e qualquer po de deficiência, como ressalta Prieto (2008), embora essa
parte integrante do sistema educa vo” úl ma destaque a educação inclusiva
(UNESCO, 1994, p. 3). para as minorias originárias de culturas
A associação do compromisso com nômades e linguís cas, moradoras de
a educação para todos com a cons tu- rua e com deficiência, no Brasil foi esta
ição de um sistema educacional inclusivo úl ma categoria que ficou vinculada à
é reiterada na Conferência Mundial so- ideia de inclusão.
bre Necessidades Educacionais Espe-
ciais: Acesso e Qualidade, realizada pela A Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
Organização das Nações Unidas para a cação Nacional, promulgada no Brasil
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), em 1996, definiu a educação especial
em 1994, em Salamanca, na Espanha. como modalidade de educação escolar
Ao final desse evento foi produzido o transversal a todos os níveis de ensino,
documento mundialmente conhecido a ser oferecida, preferencialmente na
como Declaração de Salamanca. O docu- rede regular de ensino, para educandos
mento prescreve que cada criança possui com deficiência, transtornos globais do
caracterís cas, interesses, capacidades e desenvolvimento e altas habilidades ou
necessidades de aprendizagem que lhes superdotação. Previa que o atendimento
são próprias e recomenda que o ensino seria feito em classes, escolas ou serviço
seja ministrado no sistema comum, in- especializados sempre que em função de
dependentemente das condições sicas, suas caracterís cas específicas não fosse

250 Nerli Nonato Ribeiro MORI. Educação e inclusão em escolas de educação básica: análise...
possível a integração desses alunos nas Apesar de esse documento ter
classes comuns da rede regular de ensino. contribuído para aumentar o número
Apesar de enfa zar a liberdade de de encaminhamentos para a classe co-
acesso ao ensino comum, o termo prefe- mum, o sistema de educação especial
rencialmente e a remissão às condições con nuou a ser o responsável pela es-
específicas contribuíram para manter a colarização do aluno com deficiência; a
ambiguidade quanto à inserção do alu- colocação no sistema comum ou especial
nado especial na escola comum. con nuou a depender das condições do
Em junho de 1999 foi realizada aluno.
na cidade de Guatemala, República de A par r de 2003, foram desenca-
Guatemala, a Convenção Interamericana deadas ações para transformar a educa-
para a Eliminação de Todas as Formas ção especial em modalidade transversal
de Discriminação contra as Pessoas do ensino comum, ou seja, que permeia
Portadoras de Deficiência. O Brasil, por o ensino comum, desde a educação bá-
meio Decreto n. 3.956, de 8 de outubro sica até o ensino superior. O Ministério
de 2001, aprovou o texto originado na de Educação começou a desenvolver, de
Convenção, reafirmando que as pessoas forma sistemá ca, programas e cursos
com deficiência “[...] têm os mesmo os de formação para professores e assim,
mesmos direitos humanos e liberdades em 2006, a abrangência dessa ação era
fundamentais que outras pessoas e que significa va, disseminando a polí ca de
estes direitos, inclusive o direito de não educação inclusiva e formatando o sis-
ser subme do à discriminação com base tema de educação inclusiva para quase
na deficiência, emanam da dignidade e todos os municípios brasileiros.
da igualdade que são inerentes a todo A publicação da Polí ca Nacional
ser humano” (BRASIL, 2001b, p. 2). de Educação Especial na Perspec va da
Sob esse panorama nacional e in- Educação Inclusiva, em 2008, consolidou
ternacional o Brasil começou a formatar o princípio da transversalidade e ins tuiu
a atual polí ca de educação inclusiva. Em o Atendimento Educacional Especializa-
2001 foi emi da a Resolução 02 do Con- do complementar ou suplementar para
selho Nacional de Educação e da Câmara alunos com:
dos Deputados, proclamando que os • Deficiência: apresentam limitações de
sistemas de ensino devem matricular longo prazo relacionadas a aspectos de
todos os alunos e que o atendimento aos natureza sica, intelectual, mental ou
alunos especiais deveria ser realizado em sensorial.
classes comuns. Os encaminhamentos • Transtornos globais do desenvolvimen-
para classes e escolas especiais deveriam to: possuem alterações no desenvolvi-
ocorrer apenas em caráter transitório, mento neuropsicomotor, comprome -
extraordinário, em razão das necessida- mento nas relações sociais, na comu-
des do educando (BRASIL, 2001a). nicação ou estereo pias motoras, tais

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 247-261, jan./jun. 2014. 251


como nos casos de Au smo Clássico, A implementação do Decreto
Síndrome de Asperger, Síndrome de 6.571/2008 foi organizada pelas Diretri-
Rett, Transtorno Desintegrativo da zes Operacionais para o Atendimento
Infância (Psicoses) e Transtornos Inva- Educacional Especializado na Educação
sivos Sem Outra Especificação. Básica, ins tuídas via Resolução 04/2009
• Altas habilidades/superdotação: de- (BRASIL, 2009). Conforme esse docu-
monstram potencial elevado e grande mento, no projeto polí co pedagógico
envolvimento de forma isolada ou da escola precisa constar a implantação
combinada nas seguintes áreas intelec- da SRM, professores para atuar no AEE
tual, de liderança, psicomotora, ar s- e outros profissionais como tradutor e
ca e cria va. intérprete de Língua Brasileira de Sinais,
O documento previa ainda o aten- guia-intérprete e aqueles para atuar em
dimento aos alunos com transtornos a vidades de apoio.
funcionais específicos, ressaltando a O AEE precisa ser realizado priori-
necessidade de ação ar culada entre a tariamente na Sala de Recursos Mul fun-
educação especial e o ensino comum, cionais ou em outra escola do ensino
“[...] orientando para o atendimento às comum, em horário contrário ao que o
necessidades educacionais especiais des- aluno estuda.
ses alunos” (BRASIL, 2008b, p. 1). Nos do- O atendimento pode ainda ser
cumentos subsequentes essa referência realizado em Centros de AEE da rede
foi re rada e o AEE passou a ser previsto pública ou de ins tuições conveniadas
somente para os alunos com deficiência, com a Secretaria de Educação, seguindo
transtornos globais do desenvolvimento normas estabelecidas nas Notas Técni-
ou altas habilidades/superdotação. cas 9/2010 e 11/2010, que delimitam
Sob a perspec va inclusiva, o AEE os obje vos, a forma de implantação, a
deve estar previsto no projeto pedagó- atribuição dos professores, a elaboração
gico da escola e os serviços e recursos a do Plano Polí co Pedagógico, a forma de
serem organizados foram ra ficados por se efe var as matrículas, a organização
meio do Decreto 6.571/2008 (BRASIL, da prá ca pedagógica, a infraestrutura
2008a), o qual determina em seu ar go e as condições de acessibilidade (BRASIL
3º o apoio técnico e financeiro do Minis- 2010b; BRASIL, 2010c).
tério da Educação para a implantação de A política nacional de inclusão
SRM; formação de professores, gestores, tem propiciado o aumento nos índices
educadores e outros profissionais da de inserção de alunos do público alvo
escola para a educação inclusiva; ade- da educação especial na escola comum.
quação arquitetônica e de acessibilidade A proporção de 76% do total de matrí-
dos prédios escolares e a estruturação culas do alunado especial para a escola
de núcleos de acessibilidade nas ins tui- comum e 24% para a escola especial, no
ções federais de ensino superior. ano de 2012, é um indica vo importante

252 Nerli Nonato Ribeiro MORI. Educação e inclusão em escolas de educação básica: análise...
dos avanços quanto ao acesso. Há, no to especializado, em horário contrário
entanto, pontos nevrálgicos, dentre os à escolarização, na Sala de Recursos
quais destacamos o processo ensino e Mul funcional (SRM) ou Centro de AEE.
aprendizagem tanto na escola comum O decreto 7.611/2011 regula-
como na escola especial. menta o apoio técnico e financeiro às
Como se ensina e quais os resul- ins tuições especializadas comunitárias,
tados alcançados no sistema especial? confessionais ou filantrópicas sem fins
Como o Estado acompanha as a vidades lucrativos, conveniadas com o Poder
nele realizadas? Com o distanciamento Execu vo. Para o financiamento, foram
entre o Estado e as ins tuições conve- consideradas “[...] as matrículas na rede
niadas e o número restrito de estudos regular de ensino, em classes comuns
e divulgações sobre o tema, é difícil ou em classes especiais de escolas
responder a essas questões. regulares, e em escolas especiais ou
Algumas ins tuições que agregam especializadas” (BRASIL, 2011, art. 14,
escolas especializadas têm se manifesta- parágrafo 1º).
do contra a polí ca de inclusão, dentre O documento gerou controvérsias,
elas a Federação Nacional das APAES especialmente pelo fato de que com o
(FENAPAES), a Federação Nacional das financiamento duplo também para as
Associações Pestalozzi (FENASP) e a matrículas em ins tuições especializa-
Federação Nacional de Educação e Inte- das, considerou-se que novamente es-
gração dos Surdos (FENEIS). A preocupa- tava posta a possibilidade da ins tuição
ção central é a possibilidade do fim das especializada como local de escolariza-
escolas especiais; além de uma inclusão ção, em subs tuição ao ensino comum.
grada va e processual, as ins tuições Em resposta às manifestações
especializadas defendem que as pessoas e pedidos de esclarecimento, a Dire-
com deficiência e suas famílias possam toria de Políticas de Educação Espe-
escolher onde querem estudar. cial da Secretaria de Educação Con-
As manifestações públicas e as tinuada, Alfabetização, Diversidade
ações junto ao poder polí co resultaram e Inclusão (SECADI) publicou a Nota
no Decreto 7.611/2011, que revogou o Técnica 62/2011 (BRASIL, 2011), na qual
Decreto 6.571/2008, o qual estabelecia reafirmou a polí ca de educação inclu-
o duplo financiamento para as escolas siva desde 2008 e negou que o Decreto
com alunos matriculados na rede pú- 7.611/2011 retomasse o conceito ante-
blica e par cipando do AEE. Ou seja, o rior de educação especial subs tu va
decreto admi a a dupla matrícula, com- à escolarização no ensino regular. Às
putando o aluno na educação regular e crí cas quanto ao apoio financeiro para
no atendimento especializado da rede atendimento pelas ins tuições especia-
pública, mas determinava a matrícula do lizadas a alunos não matriculados no
aluno no ensino comum e o atendimen- ensino regular, a Secretaria respondeu

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 247-261, jan./jun. 2014. 253


que ele estava des nado exclusivamente deficiência e transtornos globais do de-
para aqueles que se encontram fora da senvolvimento, “[...] contribuindo para
faixa etária de escolarização obrigatória. o fortalecimento das ações adotadas
O Decreto 7.611/2011 consolidou no contexto do ensino regular” (BRASIL,
a legislação anterior e o conceito de du- 2013a, p. 7).
pla matrícula. Apesar das nega vas da Após esse panorama da polí ca
secretaria de educação especial, o dispo- nacional de inclusão, apresentamos o
si vo legal habilitou as escolas especiais trabalho realizado e a análise dos dados
a captar recursos públicos. Do ponto de colhidos.
vista polí co, ele pode ser interpretado
como uma vitória das associações filan- A inclusão escolar no Brasil
trópicas, assistenciais e comunitárias so-
bre quem defende a educação inclusiva A pesquisa está voltada para o pro-
de pessoas com deficiência. E também cesso de efe vação da polí ca de edu-
contra as polí cas governamentais dos cação inclusiva em escolas de diferentes
úl mos anos, voltadas para programas regiões do Brasil. Buscamos saber como
de formação e qualificação docente, estão se concre zando os princípios e
adaptações e inves mentos para garan- determinações dos documentos norte-
r o acesso e a permanência dos alunos adores da educação inclusiva.
especiais nas escolas regulares. Os obje vos específicos delinea-
Em 2013, o Ministério da Educa- dos foram os seguintes: traçar um pa-
ção publicou a Nota Técnica 55/2013 norama histórico sobre a educação de
(BRASIL, 2013a), a qual orienta a atuação pessoas com necessidades educacionais
dos Centros de AEE junto aos alunos do especiais; analisar documentos rela vos
público alvo desta modalidade de en- à polí ca nacional de educação inclusiva;
sino, matriculados nas classes comuns verificar o atendimento a alunos com
da educação básica e que não tenham deficiência, Transtornos Globais de De-
o AEE na SRM da própria escola ou de senvolvimento e Altas Habilidades/Su-
outra escola de ensino regular. perdotação nas cinco regiões brasileiras.
O atendimento realizado pelos Os dados iniciais foram colhidos
Centros de AEE deve estar em harmonia por meio de levantamento junto aos
com os fundamentos legais, polí cos professores matriculados num curso de
e pedagógicos definidos na política formação de professores à distância da
nacional de educação inclusiva. Nessa Universidade Estadual de Maringá, em
perspec va, a Nota enfa za que ele não convênio com o Ministério da Educação/
é subs tu vo à educação comum, mas Secretaria de Educação Especial.
uma alterna va para a reorientação das O levantamento foi realizado por
escolas especiais com vistas ao processo meio de questionário – aplicado nos
de educação inclusiva de pessoas com meses de agosto, setembro e outubro

254 Nerli Nonato Ribeiro MORI. Educação e inclusão em escolas de educação básica: análise...
de 2011 – a um grupo de 1200 (um mil Centro-Oeste; Mauá (SP), Petrópolis (RJ)
e duzentos) professores que par cipa- e Uberlândia (MG), no Sudeste; Chapecó
ram de um curso de especialização, na (SC), Capão da Canoa (RS) e Maringá
modalidade a distância, em Atendimento (PR), no Sul.
Educacional Especializado na Universida- O estudo nas escolas foi pensado
de Estadual de Maringá. Após um estudo e organizado com base na nota técnica
piloto para possíveis ajustes nas ques- 09/2010 (Brasil, 2010a), com os seguin-
tões, a aplicação foi realizada de modo tes pontos norteadores: a situação do
presencial por ocasião de uma avaliação AEE no Projeto Polí co Pedagógico da es-
do curso. Um total de 898 responderam cola; a organização do AEE; a adaptação
os ques onários, sendo 107 da região de materiais e currículo; caracterís cas
Norte; 252 da região Nordeste; 163 da do alunado atendido na SRM; a relação
região Sudeste; 103 da região Centro- entre o trabalho desenvolvido na SRM e
Oeste e 273 da região Sul. a sala comum; a formação ofertada para
A segunda etapa da pesquisa con- professores da SRM e da sala comum
sis u num estudo de campo com obser- com vistas ao atendimento de alunos
vação direta de a vidades e entrevistas com deficiências, Transtorno Global do
com profissionais com professores das Desenvolvimento e Altas Habilidades/
SRM e gestores de 15 (quinze) escolas Superdotação. Foram verificados ainda
das regiões cinco regiões brasileiras. pontos relacionados ao espaço sico,
Assim, foram escolhidas três escolas tais como as condições de acessibilidade
por região, sendo uma de cada estado e da escola e os recursos e equipamentos
atendendo ao critério de a escola estar disponíveis e u lizados na SRM.
situada em município com professores A equipe da pesquisa é compos-
cursando a especialização em AEE na ta por professores, alunos e técnicos
UEM e apresentar o maior número de do Programa de Pós-Graduação em
alunos definidos pelas atuais polí cas Educação e de cursos de graduação, da
educacionais como o alunado da edu- Universidade Estadual de Maringá. O
cação especializada, ou seja, pessoas levantamento foi realizado pelo grupo
com deficiências, Transtorno Global do e a coleta de dados nas regiões ficou
Desenvolvimento e Altas Habilidades/ sob a responsabilidade dos alunos da
Superdotação. Pós-Graduação, visto que o estudo de
Desse modo, o campo de abran- cada uma delas resulta numa dissertação
gência dessa etapa da pesquisa foi o ou tese. Ao final, o conjunto de dados
seguinte: Manaus (AM), Belém (PA), e será retomado, com vistas a compor um
Porto Velho (RO), na região Norte; Ga- quadro da inclusão escolar na educação
ranhuns (PE), Fortaleza (CE), Salvador básica.
(BA), no Nordeste; Campo Grande (MS),
Cuiabá (MT) e Aparecida de Goiânia, no

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 247-261, jan./jun. 2014. 255


Resultados e discussão de currículo, a vidades, estrutura sica
e de pessoal acessível e com profissio-
O levantamento possibilitou traçar nais preparados para trabalhar com as
um perfil dos profissionais que atuam necessidades de cada grupo. Em quase
no AEE, bem como o público alvo nele todas as escolas inves gadas, um dos
atendido. Os dados indicaram que a problemas é a acessibilidade; as condi-
maioria dos profissionais são mulheres ções de acesso sico são complicadas
(96%), com graduação em Pedagogia e precárias. Também há dificuldades
(70%), Letras (9%), outros cursos (16%); em termos de adaptação de materiais
uma pequena parcela não especificou a e a vidades na sala comum. Nas SRM
formação (5%). Muitos cursistas já eram foi observado o esforço dos professores
especialistas (72%), a maior parte deles especializados em adaptar materiais
em Psicopedagogia (36%), seguida de para os alunos; todavia, há escassez de
Educação Especial (19%). As respostas recursos financeiros para a aquisição e
sobre as caracterís cas do alunado aten- manutenção dos materiais. Das três es-
dido por professores do AEE indicam a colas observadas por Fellini (2013), duas
prevalência das deficiências (64%). Na recebem recursos apenas por meio de
sequência são indicados os alunos com programas e uma conta exclusivamente
Transtornos Globais do Desenvolvimento com o suporte do município.
(32%) e, por úl mo, aqueles com Altas Conforme os dados de quatro
Habilidades/Superdotação (4%). Quanto regiões estudadas – Norte, Nordeste,
à segunda etapa da pesquisa, até o mo- Centro-Oeste e Sudeste – somente nessa
mento foram colhidos os dados das cinco úl ma o AEE estava previsto no Projeto
regiões brasileiras. Foram analisados Polí co Pedagógico da escola. Contudo,
os dados das regiões Norte, Nordeste em todas as escolas havia uma preocu-
e Centro-Oeste e iniciada a análise das pação em atender à polí ca nacional
regiões Sul e Sudeste. Após a finalização de educação inclusiva. Dambrós (2013)
da etapa de análise por região, os dados observa que na região Norte, a educação
serão retomados de forma global, de inclusiva está sendo implantada, mas
modo a compor um panorama sobre a essa concre zação acompanha o tem-
efe vação da polí ca nacional de inclu- po, a capacitação docente e o recurso
são no Brasil. financeiro de cada estado. Os Estados do
A educação inclusiva tem muito a Amazonas, Pará e Rondônia já iniciaram
contribuir para a aprendizagem e desen- suas propostas de inclusão escolar, no
volvimento de pessoas com deficiências, entanto, essa efe vação está se concre-
Transtornos Globais do Desenvolvimento zando aos moldes financeiros de cada
e Altas Habilidades/Superdotação. Toda- Estado e Município; de modo geral, a
via, como afirma Fellini (2013), para que municipalização diminuiu os recursos
o processo se realize, há necessidade financeiros. No Amazonas, além da

256 Nerli Nonato Ribeiro MORI. Educação e inclusão em escolas de educação básica: análise...
contenção financeira, outro obstáculo mento especializado a alunos com Altas
para a implantação é extensão territo- Habilidades/Superdotação. Das escolas
rial; a distância dificulta a formação dos inves gadas, apenas no Município de
professores e o acompanhamento da Campo Grande, na região Centro-Oeste,
implantação da nova polí ca. houve referência a esse atendimento.
Um problema grave é o acesso às De acordo com a Polí ca Nacional de
SRM. Ao estudar a região Centro-oeste, Educação Especial na Perspectiva da
Sierra (2013) comparou as matrículas Educação Inclusiva (BRASIL, 2008b), as
da educação especial e o número de pessoas com Altas Habilidades/Superdo-
matrículas na SRM; concluiu que em tação apresentam necessidades educa-
2011, 58% dos alunos matriculados cionais especiais e – da Educação Infan l
na educação especial no município de ao Ensino Superior, em escolas públicas
Campo Grande nham acesso a SRM ou privadas – elas devem receber AEE
e em Cuiabá a relação era de 68%. Em em SRM ou em outros espaços, como,
Aparecida de Goiânia o percentual caia por exemplo, em Núcleos de A vidades
para 30%. de Altas Habilidades/Superdotação, os
À escassez de SRM acrescente-se a quais oferecem atendimento a esse alu-
dificuldade de deslocamento dos alunos. nado e orientações aos seus pais, bem
A despeito da garan a de transporte como formação para os professores.
aos alunos da rede municipal e estadual Esses núcleos existem unicamente nas
ter sido incluído na LDB 9394/2006 em capitais e em grandes centros, o que
2003, em todas as escolas foi constata- dificulta o acesso a eles.
do o expressivo o número de falta dos Outro fator preponderante para a
alunos ao atendimento especializado. ausência de referências ao alunado com
No tocante às práticas pedagó- Altas Habilidades/Superdotação é a di-
gicas, a parceria entre os professores ficuldade de iden ficá-los. Perez (2013)
especializados e os professores da sala atribui essa dificuldade está ligada à falta
comum é problemá ca. Nesse contex- de informação e de formação dos pro-
to, é necessária uma formação inicial fessores das salas comuns e das SRM e
e continuada que supere a oposição às representações culturais equivocadas
entre educação comum e especial. Para rela vas ao conceito.
Rodriguero (2013), o professor da sala Se, por um lado, a pesquisa de-
comum precisa de capacitação para en- monstrou a falta de AEE aos alunos com
sinar alunos do público alvo do AEE e o Altas Habilidades/Superdotação não,
professor do atendimento especializado por outro evidenciou que alunos com
necessita ter uma visão mais ampla so- diagnós cos de hipera vidade e distúr-
bre aprendizagem e desenvolvimento. bios de aprendizagem – transtornos não
Outro destaque diz respeito ao previstos na polí ca – são atendidos na
número pouco expressivo de atendi- SRM. Isso ocorre tanto em municípios

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 247-261, jan./jun. 2014. 257


onde a polí ca nacional não foi implan- Desenvolvimento e Altas Habilidades/
tada, como naqueles que aderiram, mas Superdotação na rede regular de ensino.
con nuam a desenvolver uma polí ca Para o governo paranaense, isso ocorre-
própria. rá com 80% dos alunos com deficiência,
A análise preliminar dos dados da pois 20% deles apresentam deficiências
região Sul aponta uma situação bem pe- acentuadas que impedem a sua inclusão
culiar no Estado do Paraná, visto que as no ensino comum. Pelo pioneirismo e
escolas estaduais e municipais seguem organização da Educação Especial no
diretrizes diferentes, com destaque para Estado do Paraná, o acompanhamento
dois pontos: o atendimento aos alunos do seu processo inclusivo certamente
com Transtornos Funcionais Específicos contribuirá para avanços na área.
(TFE) e a transformação das escolas es- A síntese dos resultados da pesqui-
peciais Escolas de Educação Básica na sa aponta divergências e convergências
Modalidade Especial na área de Defici- no processo de implantação da polí ca
ência Intelectual e Múl pla. nacional de educação inclusiva nas dife-
No que se refere ao TFE, dos rentes regiões do Brasil. Em todas elas,
22.276 alunos da rede pública estadual constatamos a ampliação do acesso à
paranaense que participam do AEE, escola comum, mas o caminho para a
12.181 (54%) estão classificados como inclusão é longo e processual, exigindo
alunos com TFE, dos quais 8661 (71%) mudanças na própria forma de pensar a
apresentam queixa de problemas re- educação em termos polí cos e organiza-
lacionados à leitura, escrita e cálculo cionais e de concepção, quanto ao modo
e 3520 (29%) alunos têm indicativos como determina o desenvolvimento.
de Transtorno de Déficit de Atenção e
Hipera vidade. Considerações finais
Quanto à criação das Escolas de
Educação Básica na Modalidade Especial No presente texto destacamos ini-
na área de Deficiência Intelectual e Múl- cia vas e encaminhamentos a par r da
pla, amparadas por um parecer exarado década de 1980 que foram determinan-
pelo Conselho Estadual (PARANÁ, 2010), tes para a polí ca nacional de educação
elas poderão ofertar educação escolar inclusiva. Ao buscar como essa polí ca
para Educação Infan l, anos Iniciais do está se efe vando em escolas localizadas
Ensino Fundamental e Educação Profis- em 15 estados das cinco regiões brasilei-
sional, Qualificação para o Trabalho e ras, constatamos avanços na educação
Educação de Jovens e Adultos. inclusiva, especialmente em termos de
O Projeto de Lei do Plano Nacional norma vas e de par cipação dos órgãos
de Educação (BRASIL, 2011) prevê para gestores na implantação da polí ca nas
até 2016 a matrícula de todos os alunos escolas. Todavia, as prá cas pedagógi-
com deficiência, Transtornos Globais do cas ainda evidenciam dificuldade para

258 Nerli Nonato Ribeiro MORI. Educação e inclusão em escolas de educação básica: análise...
promover o acesso ao conhecimento sis- de. Esse processo exige o diálogo aberto
tema zado a todos os alunos, especial- com a sociedade para a construção de
mente para alunos que não atendem os um projeto de educação para todos e o
padrões de normalidade estabelecidos. enfrentamento do desafio de escolas mal
Ainda é grande o desafio de avançar para projetadas e equipadas, do problema da
além da legislação que propicia o acesso formação insuficiente para a realização
e efe var prá cas educacionais que con- de prá cas pedagógicas promotoras do
siderem as especificidades dos alunos desenvolvimento humano.
com deficiência, transtornos globais do Como e quanto uma pessoa com
desenvolvimento e altas habilidades/ deficiência pode aprender? Numa pers-
superdotação. pec va humanizadora, as caracterís cas
O expressivo aumento das ma- humanas, as possibilidades de par cipa-
trículas dos alunos especiais no ensino ção no mundo se formam na interface
comum é um indica vo do estabeleci- do psicológico com o social. As leis do
mento da educação como um direito e desenvolvimento são iguais para todas
da escola como o espaço privilegiado as crianças, mas as singularidades da
para sua concre zação. Ir além do cam- organização sociopsicológica dos alunos
po norma vo implica, no entanto, em com deficiência implicam em recursos e
enfrentar questões como a par cipação métodos especiais de ensino.
das ins tuições especializadas e mudan- A efe vação do processo inclusivo
ças quanto à expecta va de aprendiza- implica no delineamento de um caminho
gem da pessoa com deficiência. em que par cipem todos os envolvidos
A trajetória das ins tuições espe- com o processo educa vo, sob o princípio
cializadas no atendimento às pessoas de que o desenvolvimento é produto da
com deficiência e o conhecimento por educação e não o resultado do amadu-
elas acumulado as coloca como parte recimento de estruturas psicológicas do
integrante do processo de mudanças. No sujeito. Um diagnós co de deficiência,
movimento de transformação, também Transtorno Global do Desenvolvimento
elas se modificam e podem assumir no- ou Altas Habilidades/Superdotação é
vas configurações. importante para saber como uma pessoa
A escola regular também precisa aprende, mas não determina até onde
romper com um modo de pensar e pla- ela pode chegar. A aprendizagem não
nejar a educação que provoca o fracasso elimina limites ou deficiências, mas ins-
escolar de alunos que não atendem pa- trumentaliza para um desenvolvimento
drões de normalidade e homogeneida- maior e mais qualita vo.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 247-261, jan./jun. 2014. 259


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Recebido em março de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 247-261, jan./jun. 2014. 261


Avaliação e educação no Brasil: avanços e retrocessos
EvaluaƟon and educaƟon in Brazil: advances and
setbacks
Roberta Muriel Cardoso*
José Dias Sobrinho**
* Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Edu-
cação (PPGE) da Universidade de Sorocaba (UNISO).
E-mail: robertamuriel@cartaconsulta.com.br
** Doutor em Educação pela Universidade Estadual de
Campinas. Professor tular do PPGE da UNISO.
E-mail: jose.sobrinho@prof.uniso.br

Resumo
A importância da avaliação para garan r a qualidade em educação é consenso no setor educacional,
tarefa prevista na legislação e necessária para o direito de atuação da livre inicia va na educação
superior. No Brasil, a avaliação deveria ser conduzida pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Superior (SINAES), ins tuído pela Lei 10.861/04. No entanto, é fundamental acompanhar a implanta-
ção deste Sistema, observando os atuais processos de regulação das Ins tuições de Ensino Superior
e seus cursos, buscando discu r se o SINAES é um sistema implantado conforme sua concepção ou
se estaria ameaçado por operações de fiscalização e controle por parte do Estado regulador.
Palavras-chave
Avaliação. Educação Superior. Regulação.

Abstract
The importance of evalua on to ensure quality in educa on is consensus in the educa onal sector,
task required under the legisla on to the right of opera on of free ini a ve in higher educa on. In
Brazil, a Na onal Evalua on System of Higher Educa on (SINAES), established by Law 10.861/04,
should conduct the evalua on. However, it is essen al to monitor the implementa on of this system,
by observing the current processes for the regula on of higher educa on ins tu ons and their cour-
ses, trying to discuss if the SINAES is an implanted system as its concep on or if it was threatened
by supervision and control opera ons by the regulatory state.
Key words
Evalua on. Higher Educa on. Regula on.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 263-273, jan./jun. 2014
Introdução tecnologias de informação e comunica-
ção e aqueles que estão fora desse pro-
O mundo passou por três grandes cesso, os quais se tornam cada vez mais
transformações na economia, de acordo excluídos, por não poderem acompanhar
com Crawford (1994, p. 15-45): a primei- as inúmeras e rápidas transformações
ra quando passou de tribal de caça para que estão ocorrendo.
agrícola; a segunda, de agrícola para Diante da rapidez dessas mu-
industrial; e a terceira, de industrial para danças, é de fundamental importância
um modelo baseado em conhecimentos. desenvolver uma postura inves ga va
Na sociedade industrial, quem diante da provisoriedade das certezas
dominava a informação dominava a cien ficas. Tal comportamento requer
economia. Isso ocorreu durante muito uma busca por condições de acesso não
tempo. Hoje, não é mais possível. A ten- somente à informação, mas também à
dência é no sen do do desenvolvimento informação de qualidade.
de uma economia transnacional, em que A educação é o mais adequado
a troca de conhecimentos é do interesse meio para que essa busca possa ocor-
de todos. rer. Porém, diante da importância do
Embora se fale na existência de ser humano neste contexto, discute-se
uma “Sociedade do Conhecimento”, em a educação a partir da sociedade do
uma economia em que a busca é pela conhecimento e da condição humana
educação con nuada e pela atualização nesta sociedade. “A educação do futuro
do conhecimento, ques ona-se a ade- deverá ser o ensino primeiro e universal,
quação deste termo para a sociedade centrado na condição humana.” (MORIN,
existente no mundo contemporâneo, 2004, p. 47)
no qual existem ainda bilhões de pes- Quando se fala em formação in-
soas sem acesso às novas tecnologias tegral do ser humano, pode-se buscar
de informação e comunicação (TIC), na Cons tuição da República o po de
tornando-os excluídos nesse processo de formação que se espera:
atualização e busca pelo conhecimento. Art. 205. A educação, direito de to-
No Brasil, segundo pesquisa rea- dos e dever do Estado e da família,
lizada em 2006 pelo Comitê Gestor de será promovida e incen vada com a
Internet no Brasil, apenas 14,5% dos colaboração da sociedade, visando
domicílios dispõem de internet e 66,7% ao pleno desenvolvimento da pes-
da população nunca usou este recurso. soa, seu preparo para o exercício da
A mesma pesquisa revelou que 54,3% cidadania e sua qualificação para
dos brasileiros nunca tocaram em um o trabalho. (BRASIL, 1988; grifo
nosso).
computador.
A exclusão digital cria um abismo Percebe-se que o trabalho é parte
entre aqueles que têm acesso às novas dessa formação, mas não pode repre-

264 Roberta Muriel CARDOSO. Avaliação e educação no Brasil: avanços e retrocessos


sentar o todo. A formação profissional nos processos avalia vos realizados nas
é um fator importante para o desenvol- Ins tuições de Ensino Superior no Brasil.
vimento das pessoas e da sociedade. No
entanto, é uma formação que não preen- Desenvolvimento da Avaliação das
che os anseios dos seres humanos e não Instituições de Ensino Superior no
garante a sua formação para a cidadania, Brasil
se for considerada isoladamente.
Ressalta-se a importância das No Brasil, especificamente nas dé-
Ins tuições de Ensino Superior como cadas de 1980 e 1990, buscou-se desen-
local de formação desse cidadão e desse volver diferentes propostas de avaliação
profissional. para as Ins tuições de Ensino Superior,
Para o desenvolvimento do cida- pois a experiência neste sen do era ir-
dão e da sociedade, torna-se fundamen- relevante, contando o País apenas com
tal garan r o acesso a essas ins tuições, a avaliação da pós-graduação, desenvol-
a permanência dessas pessoas que ve- vida, desde 1976, pela Coordenação de
ram acesso e a oferta de uma educação Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
de qualidade. A qualidade deve ser vista Superior (CAPES).
como um princípio. A primeira proposta de avaliação
A educação é um fenômeno social da Educação Superior no Brasil voltada
em que muitas dimensões não são facil- para a graduação foi o Programa de
mente mensuráveis. Assim, medir a qua- Avaliação da Reforma Universitária
lidade em educação é tarefa complexa, (PARU), em 1983, o qual u lizou dados
que exige grande esforço para que possa de ques onários respondidos pelo cor-
ser considerada válida. po técnico-administra vo, pelo corpo
Averiguar essa qualidade é um dos docente e pelos estudantes das ins tui-
obje vos do Sistema Nacional de Ava- ções avaliadas. Seu obje vo foi avaliar a
liação da Educação Superior (SINAES), gestão, a produção e a disseminação de
proposto pelo Ministério da Educação conhecimentos nestas IES.
(MEC) que busca integrar em um único Em 1985, o Grupo Execu vo para a
sistema a avaliação de cursos, a avaliação Reforma da Educação Superior (GERES),
da IES e a avaliação dos alunos, o que do Ministério da Educação, apresentou
ocorre por meio do Exame Nacional de uma proposta de avaliação da educação
Desempenho do Estudante (ENADE). superior, com caracterís cas diferentes
Percebe-se, todavia, um distan- do PARU. Pretendia analisar a autonomia
ciamento entre a proposta do SINAES e das IES, com foco nas dimensões indi-
o que ocorre atualmente nos processos viduais, embora com atenção também
de regulação. É desse distanciamento voltada às dimensões institucionais.
que este ar go se propõe a tratar, com o Tinha por obje vo, além de promover
intuito de discu r o que acontece de fato o controle de qualidade, determinar a

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 263-273, jan./jun. 2014. 265


distribuição dos recursos públicos des- vinda do órgão regulador - no caso, o
nados às Ins tuições. MEC -, sendo as IES submetidas aos
Em 1993, propõe-se o Programa processos de “avaliação” sem nenhuma
de Avaliação Ins tucional das Universi- par cipação como sujeitos destes.
dades Brasileiras (PAIUB), que, embora Todas essas tentativas, embora
tenha do uma breve duração, trouxe com pouco resultado, foram determinan-
resultados ins tucionais capazes de, pela tes para que uma discussão em torno da
primeira vez, despertar nas IES a cultura necessidade de avaliação na educação
de avaliação, por envolver a comunidade superior no Brasil fosse estabelecida.
acadêmica em um diálogo em prol do Cada ação, a seu modo, trouxe para a
desenvolvimento das ins tuições. pauta a importância de se estabelecer um
O PAIUB nha adesão voluntária. sistema de avaliação capaz de criar a cul-
Mesmo assim, contou com ampla par - tura de avaliação nas IES, por considerá-la
cipação das universidades. No entanto, um instrumento de gestão fundamental
perdeu forças quando deixou de contar para o aprimoramento acadêmico, além
com o apoio do MEC, em decorrência da da necessidade premente de prestar
mudança de governo. contas à sociedade sobre o que se desen-
No final da década de 1990 e nos volvia internamente nessas Ins tuições.
primeiros anos do novo século, outros Todas as discussões realizadas em
mecanismos isolados de avaliação foram torno do tema evidenciaram a necessi-
implementados, como: Exame Nacional dade de criar um sistema que pudesse
de Cursos (ENC), mais conhecido como ar cular regulação e avaliação educa va,
“Provão”; Análise das Condições de En- resolvendo a questão da regulação e, ao
sino (ACE), que buscava a avaliação da mesmo tempo, garan ndo, por meio do
IES; e Avaliação das Condições de Oferta processo avalia vo, o aperfeiçoamento
(ACO), mais voltada para a avaliação dos acadêmico e a busca pela qualidade nas
cursos e outras ações isoladas de ava- Ins tuições de Ensino Superior.
liação que não apresentavam o sen do
de uma análise global, como ocorreu no Proposta do Sistema Nacional de Ava-
PAIUB, mas, um sen do de demonstrar liação da Educação Superior
produ vidade e eficiência e de prestar
contas, porém com um olhar pontual O Sistema Nacional de Avaliação
que considerava, por exemplo, a avalia- da Educação Superior (SINAES) surge em
ção do aluno por meio do ENC, suficiente meio à polêmica em torno da avaliação
para determinar a qualidade do curso. como uma proposta encabeçada pela
Nesse momento, a avaliação, Comissão Especial de Avaliação (CEA),
em seu sen do amplo, perdeu força e que nha como principal obje vo me-
estabeleceu-se uma prá ca voltada para lhorar a qualidade acadêmica e a gestão
a regulação, a supervisão e o controle, ins tucional.

266 Roberta Muriel CARDOSO. Avaliação e educação no Brasil: avanços e retrocessos


A CEA, a partir de um amplo conhecer a realidade e aquele que busca
es tudo e debate com a sociedade, interpretá-la, buscando sen do.
ouvindo en dades representa vas de Estes três pontos foram bem defi-
diversos setores, estudiosos da área nidos no art. 2º da Lei 10.861/2004, que
de educação e membros de comuni- ins tuiu o SINAES:
dade acadêmica que par ciparam da Art. 2º O SINAES, ao promover a
construção e implementação de ações avaliação de ins tuições, de cursos
de avalia ção utilizadas até então e e de desempenho dos estudantes,
contando com o apoio logís co e polí- deverá assegurar:
co do MEC, apresentou o documento I - avaliação ins tucional, interna
“Diretrizes do SINAES” (SINAES, 2004), e externa, contemplando a analise
que, submetido à votação pelo Con- global e integrada das dimensões,
gresso, tornou-se lei (Lei 10.861/2004), estruturas, relações, compromisso
ultrapassando os limites do MEC e do social, atividades, finalidades e
governo, passando a cons tuir-se em responsabilidades sociais das ins -
uma Polí ca de Estado. tuições de educação superior e de
A proposta do SINAES contempla seus cursos;
duas ideias centrais: a de integração; e II - o caráter público de todos os
a de par cipação. procedimentos, dados e resultados
A ideia de integração relaciona-se dos processos avalia vos;
com a utilização de múltiplos instru- III - o respeito à iden dade e à diver-
mentos e dimensões e a combinação de sidade de ins tuições e de cursos;
diversas metodologias para a formação (BRASIL, 2004; grifo nosso).
de um conceito global.
O reconhecimento da diversidade
A ideia da par cipação ocorreria
das IES no Brasil, cada uma com sua his-
por meio do envolvimento de toda a
tória, e o entendimento da necessidade
comunidade acadêmica com o pro-
de colaboração para que esta diversida-
cesso avalia vo, de modo a assegurar o
de seja respeitada são destacados no
comprome mento com as mudanças e
documento “Diretrizes do SINAES”:
a criar uma cultura de avaliação nas IES.
Três pontos de destaque carac- A diversificação ins tucional, bem
terizam e diferenciam a proposta do como a crise de identidade da
SINAES: a) consideração da diversidade educação superior, por uma parte,
explicam-se pela necessidade de
ins tucional existente no País; b) ne-
criar instituições com diferentes
cessidade do respeito à iden dade das formas e concepções e, por outro
ins tuições; e c) análise global e inte- lado, pela dificuldade de atender
grada da avaliação, construída por dois satisfatoriamente a todas essas
momentos dis ntos, próprios de uma exigências e aos múl plos desafios
avaliação educa va: aquele que busca gestados neste período histórico. A

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 263-273, jan./jun. 2014. 267


regulação da educação e a avaliação a solidariedade interins tucional.
educa va devem ter em conta que (SINAES, 2004, p. 91).
a uma ins tuição em par cular é
pra camente impossível oferecer
Por fim, as Diretrizes do SINAES
respostas qualificadas a todas essas apontam os dois momentos dis ntos de
demandas, mas é importante que uma avaliação considerada educa va:
o conjunto das ins tuições, solida- A avaliação educa va interliga duas
riamente, seja capaz de atender, ao ordens de ação. Uma é a de verifi-
menos, às demandas prioritárias car, conhecer, organizar informa-
para amplos e diferentes setores ções, constatar a realidade. Outra
da sociedade. A avaliação da edu- é a de ques onar, submeter a jul-
cação superior deve ter uma con- gamento, buscar a compreensão de
cepção tal que atenda ao critério conjunto, interpretar causalidades
da diversidade ins tucional; deve e potencialidades, construir social-
contribuir para a construção de uma mente os significados e prá cas da
polí ca e de uma é ca de educação filosofia, polí ca e é ca educa vas,
superior em que sejam respeitados enfim, produzir sen dos. (SINAES,
o pluralismo, a alteridade, as dife- 2004, p. 88).
renças ins tucionais, mas também
o espírito de solidariedade e de Contudo, ques ona-se a aplicação
cooperação. (SINAES, 2004, p. 90). do SINAES tal como propõe sua concep-
No mesmo documento, também ção, especialmente no que diz respeito
se destaca a necessidade de respeitar a a estes três pontos de destaque men-
iden dade de cada ins tuição, reconhe- cionados.
cendo que estas têm que exercitar sua
liberdade para que se desenvolvam. A Distorções na prática de avaliação atual
avaliação é vista como um instrumento A Portaria 40, de 12 de dezembro
para que as IES tenham, cada vez mais, de 2007, que ins tuiu o e-MEC, sistema
consciência de sua iden dade: eletrônico de fluxo de trabalho e de ge-
A iden dade ins tucional não é um renciamento de informações rela vas
já-dado; é uma construção que tem aos processos de regulação, avaliação
a ver com a história, as condições e supervisão da educação superior no
de produção, os valores e obje vos Sistema Federal de Educação, define
da comunidade, as demandas con- o que são Indicadores de Qualidade e
cretas, as relações interpessoais.
Conceitos de Avaliação.
Portanto, a avaliação deve esta-
belecer um elo de ligação entre o
São Indicadores de Qualidade de
específico ins tucional e o sistema curso: o Conceito Preliminar de Curso
de Educação Superior. O respeito à (CPC), que, embora tenha essa designa-
iden dade não significa isolamento ção, é um indicador, conforme define a
ins tucional, e sim condição para legislação, de ins tuição: o Índice Geral

268 Roberta Muriel CARDOSO. Avaliação e educação no Brasil: avanços e retrocessos


de Cursos (IGC); e do desempenho dos sa sfatório (nota 1 ou 2), cabe recurso.
estudantes: o Exame Nacional de De- Exaurido o recurso e permanecendo
sempenho de Estudantes (ENADE). conceito insa sfatório, a IES apresenta
A mesma Portaria definiu como à secretaria competente protocolo de
Conceitos de Avaliação de curso: o Con- compromisso, quando se compromete a
ceito de Curso (CC); e de ins tuição: o solucionar os problemas apontados pela
Conceito de Ins tuição (CI). avaliação. Se ocorrer descumprimento
Conforme Michaelis (s/d), indica- das medidas determinadas no protocolo
dor é o “que indica, ou serve de indica- de compromisso, será instaurado pro-
ção” e conceito significa “o entendimen- cesso administra vo para aplicação das
to, o juízo”. penalidades previstas no art. 10, §2º da
Assim, o indicador, como um indi- Lei 10.861/2004, porém, com o direito de
ca vo, é algo provisório, pois é um indí- ampla defesa e do contraditório, reafir-
cio que não significa um entendimento mados no §3º do mesmo ar go:
defini vo, o que só se daria com com-
Art. 10. Os resultados considerados
provações que levariam à construção de
insa sfatórios ensejarão a celebra-
um conceito, que seria, este sim, o juízo.
ção de protocolo de compromisso,
Ainda, a Portaria 40/2007 estabele- a ser firmado entre a ins tuição de
ce um processo para que a avaliação de educação superior e o Ministério da
cursos e de IES aconteça. No processo in- Educação, que deverá conter:
dicado, percebe-se claramente que o CC e
§2º O descumprimento do protoco-
o CI são os conceitos defini vos. Ou seja,
lo de compromisso, no todo ou em
não se fala em CPC ou IGC como concei-
parte, poderá ensejar a aplicação
tos, mas como “indicadores”, que, como das seguintes penalidades:
dito, deveriam ser entendidos como
provisórios no processo. O caminho da I - suspensão temporária da aber-
avaliação, segundo a regra, seria este: o tura de processo sele vo de cursos
de graduação;
Curso ou a IES recebem um Indicador de
Qualidade (CPC ou IGC). Se este Indica- II - cassação da autorização de
dor for insa sfatório (nota 1 ou 2), passa funcionamento da instituição de
por avaliação in loco; se for sa sfatório educação superior ou do reconheci-
(nota 3, 4 ou 5), pode ser dispensado mento de cursos por ela oferecidos;
da avaliação in loco. Após a visita, nos III - advertência, suspensão ou
casos em que estas são necessárias, são perda de mandato do dirigente res-
definidos os Conceitos de Avaliação (CC ponsável pela ação não executada,
ou CI), conforme o caso. Se o Conceito no caso de ins tuições públicas de
for sa sfatório (3, 4 ou 5), o processo ensino superior.
segue para publicação da Portaria com §3º As penalidades previstas neste
o ato regulatório. Se o Conceito for in- arƟgo serão aplicadas pelo órgão

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 263-273, jan./jun. 2014. 269


do Ministério da Educação respon- próprio documento de Diretrizes que
sável pela regulação e supervisão da apresenta a proposta do SINAES justa-
educação superior, ouvida a Câmara mente por ter sido considerado como
de Educação Superior, do Conselho base para a determinação da qualidade
Nacional de Educação, em processo
dos cursos:
administraƟvo próprio, ficando as-
segurado o direito de ampla defesa Dos instrumentos de avaliação u -
e do contraditório. (BRASIL, 2004; lizados pelo Ministério da Educação
grifo nosso). para avaliar a educação superior,
o Exame Nacional de Cursos é o
Percebe-se que o CC não é um in-
que tem sofrido as mais severas e
dicador de qualidade, e sim um conceito contundentes crí cas. Entre tantas,
de avaliação. Portanto, deveria subs tuir destacam-se:
o Conceito Preliminar de Curso (CPC), a) a sua condição de exame geral
após verificação in loco das condições desarticulado de um conjunto
de oferta do curso. integrado de avaliações com prin-
Da mesma forma, o CI não é um cípios, obje vos, agentes e ações
indicador de qualidade, e sim um con- claramente definidos;
ceito de avaliação, que deveria subs tuir b) o fato de exames gerais seme-
o Índice Geral de Cursos (IGC), após lhantes ao ENC terem sua moti-
verificação in loco das condições apre- vação mais fora do que dentro da
escola, produzindo representações
sentadas pela ins tuição.
pontuais, incompletas e equivoca-
Ocorre que o CPC e o IGC, assim
das do mundo acadêmico;
como a nota do ENADE, têm sido su- c) a sua racionalidade muito mais
ficientes para que o órgão regulador mercadológica e reguladora do que
adote medidas que só estariam previstas acadêmica e pedagógica, atenden-
no final do processo definido na legis- do, portanto, mais à construção da
lação, após avaliação in loco e no caso reputação ins tucional do que à
de descumprimento do protocolo de qualidade ins tucional;
compromisso. d) a desconsideração do perfil aca-
Cabe ressaltar ainda a enorme dêmico do alunado que ingressa em
importância do ENADE na definição do uma IES, tornando inviável a análise
CPC e do IGC, sendo a avaliação realiza- do valor agregado pela ins tuição
aos conhecimentos e habilidades
da pelo aluno, responsável, quase que
dos seus estudantes e tornando
isoladamente, pela composição destes
impossível determinar a capacidade
indicadores. ins tucional de oferecer boa forma-
Ques ona-se se não estaríamos ção aos seus alunos;
voltando ao mesmo modelo adotado e) a ausência de comparabilidade
pelo Exame Nacional de Cursos (ENC), entre as provas ao longo do tempo,
o conhecido “Provão”, criticado pelo o que compromete seriamente a

270 Roberta Muriel CARDOSO. Avaliação e educação no Brasil: avanços e retrocessos


capacidade de avaliar os êxitos, in- de cada área e tem como base a nota do
sucessos e perspec vas dos cursos; ENADE; a avaliação do corpo docente,
f) os boicotes por parte dos estu- verificada pelos dados do cadastro de
dantes e a falta de critério para lidar docentes das ins tuições; a infraestru-
com provas entregues em branco;
tura, verificada pela resposta do aluno
g) a constatação de que os concei-
tos divulgados à população, supos- ao questionário socioeconômico; e a
tamente indica vos de qualidade, verificação da organização didático-
não expressam a real qualidade dos pedagógica do curso, que também é
cursos, gerando desinformação e verificada pela resposta do aluno a uma
desorientação do grande público. questão do questionário socioeconô-
A distribuição dos intervalos das mico. Este cálculo faz com que o aluno
notas que geram os conceitos atri- defina aproximadamente 70% deste
buídos aos cursos evidenciam que indicador.
um conceito A não significa, como
Quando se diz que nos cálculos
é de se esperar, um curso de boa
que definem o CPC há avaliação da or-
qualidade, assim como, um concei-
to D pode não indicar um curso de ganização didá co-pedagógica do curso
má-qualidade. e de sua infraestrutura, percebe-se que
h) a divulgação dos resultados isso não ocorre de fato. O que se tem é
do ENC desvinculados de outros uma visão do aluno em relação a estes
processos avaliaƟvos, atribuindo itens, não se podendo considerá-la, iso-
a ele centralidade no sistema de ladamente como uma avaliação destes
avaliação e autoridade exclusiva aspectos do curso.
ao comunicar ao grande público O IGC é diretamente afetado
a suposta qualidade dos cursos; e
pelo mesmo cálculo, pois é uma média
i) a adoção de polí cas de premia-
ção e punição de ins tuições com ponderada dos CPCs dos cursos de gra-
base em conceitos gerados por um duação e da nota da Capes dos cursos
instrumento e por uma metodolo- pós-graduação da ins tuição (quando
gia deficientes e, portanto, incapa- existem mestrados e doutorados na IES),
zes de expressar com confiabilidade u lizando-se a distribuição dos alunos
a qualidade dos cursos. (SINAES, entre os diferentes níveis de ensino (gra-
2004, p. 62-63; grifo nosso). duação, mestrado e doutorado).
É evidente que, da mesma forma Questiona-se: Como garantir a
que o ENC, o ENADE não pode ser deter- análise global e integrada das dimensões
minante para aferir a qualidade de um tal como preconiza a Lei 10.861/2004
curso, sendo apenas um indício, como considerando-se o CPC, cons tuído ma-
já dito. joritariamente pela avaliação do aluno
O CPC, no entanto, é calculado no como base para as decisões relacionadas
ano seguinte ao da realização do ENADE à avaliação dos cursos?

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 263-273, jan./jun. 2014. 271


Percebe-se que os dois índices, Considerações finais
CPC e IGC, passaram a ser determinantes
para a avaliação, sendo pra camente Vê-se que a concepção proposta
considerados como “a própria avaliação pelo SINAES encontra-se ameaçada por
da educação superior”. operações co dianas de fiscalização e
Outra questão polêmica na avalia- controle u lizadas pelo Estado distantes
ção prende-se à construção e u lização do que se propôs como avaliação e com
dos Instrumentos de Avaliação de Cursos o obje vo primordial de se estabelece-
e de Ins tuição. Atualmente, o MEC tra- rem rankings, configurando uma a tude
balha com um instrumento único, u liza- voltada para a compe vidade, e não
do para a avaliação de todos os cursos de para a solidariedade; uma ação voltada
graduação (bacharelados, licenciaturas para o mercado, e não para a sociedade.
e cursos superiores de tecnologia), nas A proposta do SINAES teve seus
modalidades presencial e a distância, e principais obje vos descaracterizados,
para todos os processos existentes: au- tendo sua ação sido deslocada para a
torização, reconhecimento e renovação simples u lização de dois indicadores
de reconhecimento. – o CPC e o IGC -, ambos definidos, em
O instrumento de avaliação da IES grande parte, pelo ENADE.
também é único, sendo u lizado para A educação não tem somente uma
todos os pos de ins tuição, seja ela função técnica e econômica. Seu papel
pública, privada, universitária ou não está muito mais relacionado com valores
universitária. do que propriamente com a economia.
Como garan r o respeito à iden - A implantação de uma avaliação
dade e à diversidade ins tucionais com educativa nas Instituições de Ensino
a u lização de um único instrumento de Superior com o sen do colabora vo,
avaliação para a avaliação de ins tuições conforme propõe o SINAES, poderia
e cursos tão dis ntos, com especifici- trazer para o setor respostas que impul-
dades relacionadas tanto às propostas sionariam o seu desenvolvimento, de-
pedagógicas definidas quanto à inserção terminante para o crescimento do País.
e ao contexto social e econômico em que Diante desse cenário, reafirma-
cada um deles estão envolvidos? se que a regulação e a avaliação, ne-
Àquilo que de fato existe atual- cessárias à delimitação do direito de
mente em avaliação aplica-se o que atuação da livre inicia va na educação
afirmou Rui Barbosa: “Tratar com de- superior, encontram-se estabelecidas
sigualdade a iguais, ou a desiguais com pela Lei 10.861/04, restando ao MEC
igualdade, seria desigualdade flagrante, apenas regulamentar tais determina-
e não igualdade real”. ções, tornando-as viáveis por meio de
sua estrutura administra va, sem jamais
gerar obrigações às IES.

272 Roberta Muriel CARDOSO. Avaliação e educação no Brasil: avanços e retrocessos


Tais distorções e equívocos apre- transformação pela educação, e o Siste-
sentados são lamentáveis, pois a avalia- ma Nacional de Avaliação da Educação
ção deve ser vista como um patrimônio Superior, o SINAES, foi concebido com
público, na medida em que é um ins- todas as condições para proporcionar
trumento que poderia possibilitar uma essa transformação.

Referências
BRASIL. Presidência da República. Cons tuição da República Federa va do Brasil 1988.
Diário Oficial [da] República Federa va do Brasil, Brasília, DF, 5 de out. 1988. p. 1.
______. Presidência da República. Lei n. 10.861, de 14 de abril de 2004. Ins tui o Sistema
Nacional de Avaliação da Educação Superior -SINAES e dá outras providências. Diário Oficial
[da] República Federa va do Brasil, Brasília, DF, 15 de abr. 2004. Seção I - p. 3.
______. Ministério da Educação. Portaria Norma va 40, de 12 de dezembro de 2007. Ins tui
o e-MEC, sistema eletrônico de fluxo de trabalho e gerenciamento de informações rela vas
aos processos de regulação, avaliação e supervisão da educação superior no sistema federal
de educação, e o Cadastro e-MEC de Ins tuições e Cursos Superiores e consolida disposi-
ções sobre indicadores de qualidade, banco de avaliadores (Basis) e o Exame Nacional de
Desempenho de Estudantes (ENADE) e outras disposições. Republicada no Diário Oficial
[da] República Federa va do Brasil, Brasília, DF, 29 de dez. 2010. Seção I, p. 23.
CRAWFORD, Richard. Na era do capital humano. São Paulo: Atlas, 1994.
DICIONÁRIO MICHAELIS. [s/d]. Disponível em <www.uol.com.br/michaelis>. Acesso em:
19 de set. 2012.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 9. ed. São Paulo: Cortez,
2004.
SINAES – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior: da concepção à regulamen-
tação. 2. ed. ampl. Brasília: Ins tuto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP), 2004. 155 p.

Recebido em março de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 263-273, jan./jun. 2014. 273


A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da
usura na pintura de GioƩo di Bondone
The expulsion of the merchants from the temple: a
study of usury in the painƟng of GioƩo di Bondone
Terezinha Oliveira*
Meire Aparecida Lóde Nunes**
 Doutora em História pela Universidade Estadual Pau-
lista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professora do pro-
grama de Pós-graduação em Educação da Universidade
Estadual de Maringá (UEM). E-mail: teleoliv@gmail.com
** Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual
de Maringá (UEM). Professora no curso de Educação
Física da Universidade do Estado do Paraná (UNESPAR-
FAFIPA). E-mail: meirelode@gmail.com

Resumo
O obje vo deste texto é analisar a pintura de Gio o di Bondone (1267-1337), A expulsão dos ven-
dilhões do templo. A inves gação é desenvolvida pelo olhar da História da Educação e os pressu-
postos teóricos são provenientes da História Social, a qual nos permite dialogar com várias áreas
do conhecimento e u lizar a produção imagé ca como fonte de pesquisa. Nossas reflexões serão
direcionadas pelas inquietações acerca da expansão comercial do século XIII, advento que propiciou
o surgimento de novas necessidades e ques onou valores da tradição cristã. Em consequência, a
Igreja se deparou com o embate em manter a crença em seus dogmas e legi mar a vidades co-
merciais que man nham o êxito da sociedade. Assim, nos dedicamos a estudar a pintura de Gio o
inves gando a hipótese de que a formação do homem do século XIII é direcionada pela necessidade
de equilibrar os valores espirituais e terrestres.
Palavras-chave
Educação. Expansão commercial. Iconografia.

Abstract
The objec ve of this paper is to analyze the pain ng of Gio o di Bondone (1267-1337), The Expul-
sion of the moneychangers from the temple. The research is developed by the perspec ve of the
History of Educa on and the theore cal assump ons are from Social History, which allows us to
engage with various areas of knowledge produc on and use imagery as a source of research. Our
thoughts will be directed by concerns about the commercial expansion of the thirteenth century
that gave rise to new needs and ques oned the values of the Chris an tradi on. Consequently, the
Church was faced with the struggle to maintain a belief in its dogmas and to legi mate business
ac vi es that kept the success of the society. Thus, we studied the pain ng of Gio o inves ga ng

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014
the hypothesis that the forma on of man of the thirteenth century is driven by the need to balance
the spiritual and earthly values.
Key words
Educa on. Commercial expansion. Iconography.

Introdução seu engenho inven vo, a sua interpre-


tação da natureza, da história, da vida”
A proposta deste texto está em (ARGAN, 2003, p. 21). Por concordarmos
consonância com o objetivo geral de com Argan, elegemos a pintura de Gio o
nossas demais pesquisas, que são impul- como a fonte de pesquisa deste texto.
sionadas pelas inquietações oriundas da Entendemos que suas interpretações,
História da Educação. As inves gações principalmente da história, foram re-
sobre Educação são conduzidas pelo gistradas em sua arte e a análise dessas
interesse no ‘agir humano’. Assim, tudo obras podem nos revelar importantes
que par cipa da formação do homem e informações sobre os homens que
interfere, direta ou indiretamente, em viveram no período que antecedeu o
suas ações cons tui-se, a nós, objeto de Renascimento.
estudo. Sob essa perspec va, delimita- O afresco analisado foi pintado na
mos a análise iconográfica como método Capela de Scrovegni, construída no local
de pesquisa por entendermos as ima- de um an go anfiteatro romano; por
gens como registros históricos e objetos isso também é conhecida como Capela
que ins gam a reflexão e contribuem da Arena. A inicia va da construção foi
para o conhecimento de realidades his- de Enrico degli Scrovegni, que nha a
tóricas par culares e o enriquecimento intenção de absolver a alma de seu pai
teórico das ciências humanas de forma - um poderoso comerciante - do pecado
geral. da usura. Todavia, podemos supor que
O desenvolvimento do estudo Enrico poderia ter uma dupla intenção
será por meio da análise da imagem do com a construção da capela: ao invés
pintor italiano Gio o di Bondone, que é de salvar apenas uma alma, ele poderia
considerado um personagem ímpar na almejar a salvação de duas almas! Nossa
História da Arte. Seu reconhecimento hipótese é decorrente do relato que Wolf
não se limita ao domínio ar s co. Ar- apresenta de Enrico como “um hipócrita
gan (2003, p. 21) afirma que Gio o, ao fraudulento”. O autor reforça essa ideia
lado de Dante, cons tuiu um dos “[...] por meio do ponto de vista de Giovanni
grandes pilares de uma nova cultura, Nono, um contemporâneo de Enrico,
consciente das próprias raízes la nas”. que afirma que o financiador da Capela
O autor menciona ainda que “Não se de Scrovegni “[...] se vira impossibilitado
louva apenas sua perícia na arte, mas o de afastar de si próprio toda a suspeita

276 Terezinha OLIVEIRA; Meire A. L. NUNES. A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura...
de usura” (WOLF, 2007, p. 30). Obje van- apenas um santo pode receitar a si
do ou não a sua absolvição, foi graças ao próprio a renuncia incondicional a
proposito de salvar a alma do patriarca todos os seus bens; no caso das pes-
dos Scrovegni que a capela foi construída soas comuns, o amor aparente pela
pobreza apenas denota hipocrisia.
e Gio o contratado para pintá-la.
Como reza o verso 25: << quando
A usura foi uma realidade que as posses escasseiam, parece que
os homens do século XIII veram que o bom senso também escasseia.>>.
enfrentar. Aquele período foi marcado
pela expansão comercial e, consequen- Em face destas informações pode-
temente, o lucro o responsável pelo êxito mos inferir que a Capela de Scrovegni
daquela sociedade. Portanto, grande é uma compensação pela prática da
parte da população era usurária, até usura, pois foi financiada pela fortuna
mesmo Gio o é suspeito dessa prá ca. do comércio dos Scrovegni. Seu cons-
Wolf (2007, p. 30) afirma que: “Gio o trutor, Enrico Scrovegni, era usurário e
também era usurário – não nha es- sua ornamentação teria sido feita, tam-
crúpulos em cobrar a pobres artesãos a bém, por um possível usurário: Gio o
quem alugava equipamentos com juros di Bondone. Diante desses indicadores,
de 120%! Quais seriam os seus pensa- delimitamos como questão reflexiva
mentos e sen mentos quanto o fazia?”. para a análise iconográfica a usura. O
A suspeita de Gio o como usurário é problema que se elabora é: será que
acentuada pela análise de uma canção Gio o, ao pintar uma cena bíblica que
que pode ser de autoria do ar sta, na condena a prá ca do comércio, expõe o
qual explicita seu pensamento sobre novo contexto social do século XIII-XIV
os bens materiais. Sobre a usura, Wolf que necessita validar, parcialmente, a
(2007, p. 30) explica que: prá ca da usura? Todavia, a inves gação
imagética requer uma familiarização
Vários inves gadores acreditam que
com os conteúdos presentes na repre-
Gio o foi autor de uma canzone
sentação. Assim, estruturamos nossa
sobre a pobreza, que apareceu em
1827. Examina a pobreza e a rique- abordagem em três momentos: inicia-
za na sua relação com os ideais de mos pela contextualização da usura no
Cristo e de S. Francisco, que não período de Gio o; em seguida, faremos
nham posses, e também em rela- uma reflexão delimitada acerca da usura;
ção à natureza humana vulgar, que por fim, a análise da imagem.
é tão propensa à posse. O verso 10
expressa, sem qualquer dúvida, um A usura na época de Giotto
profundo cep cismo em relação à
dogmá ca insistência na pobreza: Giotto nasceu, provavelmente,
<< Raramente há extremos sem em 1267, na aldeia Colledi Vespignano,
vicio. >> é do senso comum que perto de Florença- Itália. Seus biógrafos

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014. 277


relatam que o ar sta morreu quando intelectual não são mais pecados, a
pintava o Juízo Final na Capela Bergello, alegria e a beleza do paraíso podem
em Florença, no dia 8 de janeiro de 1337. receber um início de realização na
Portanto, o ar sta viveu entre o final da terra. O homem, que é lembrado
que foi feito à imagem de Deus,
Idade Média Central e início da Baixa
pode criar na terra as condições
Idade Média. Sua formação foi prove-
não somente nega vas, mas posi-
niente dos costumes e valores do século vas da salvação. (LE GOFF, 2007,
XIII, período considerado “[...] em todos p. 214-215).
os sen dos, a fase mais rica da Idade
Média” (FRANCO JUNIOR, 2006, p. 16). Le Goff nos explica essa mudança
Le Goff (2007), validando a afirmação como respostas aos êxitos dos séculos
de Franco Junior, destaca o século XIII anteriores, destacando quatro acon-
como o apogeu do Ocidente medieval e tecimentos que podem ter interferido
não hesita em afirmar que é neste século nesse processo. O primeiro se refere ao
que se afirmaram a personalidade e a crescimento urbano que se contrapõe
nova força da cristandade, cunhada em a ruralidade da Alta Idade Média. Ele
séculos anteriores. Para o autor, esse explica que “[...] A Europa encarnar-se-
século da Idade Média Central significa á essencialmente nas cidades. É aí que
a ‘descida do céu à terra’. Essa expressão acontecerão as principais misturas de
é explicada por Le Goff pelo contraste população, que se afirmarão novas ins-
entre o pensamento da Alta Idade Média tuições, que aparecerão novos centros
e da Idade Média Central. Na Alta Idade econômicos e intelectuais” (LE GOFF,
Média, “O horizonte cultural ideológico 2007 p. 143). É no ambiente citadino
e existencial dos homens era o céu” (LE que acontece o que o autor chama de
GOFF, 2007, p. 214), os valores que sus- segundo êxito: renovação do comércio e
tentavam suas vidas, seu trabalho, eram da promoção dos mercadores. O terceiro
sobrenaturais, provinham de Deus. No acontecimento diz respeito ao saber,
século XIII, a preocupação com a salva- porque ele atinge um número maior
ção é latente, mas agora ela é de pessoas devido à criação de escolas
urbanas para atender as necessidades
[...] obtida por um investimento dessa nova categoria de homens – os
duplo, assim na terra como no céu.
comerciantes. O úl mo acontecimento
Há, ao mesmo tempo, o surgimento
de valores terrestres legítimos e
mencionado por Le Goff é o surgimento
salvadores, como a transformação das ordens mendicantes e, para ele, o
do trabalho de valor nega vo de pilar dos três anteriores por tratar-se
penitencia em valor posi vo de co- “[...] de novos religiosos que residem
laboração na obra criadora de Deus, na cidade e são a vos, sobretudo no
descida de valores do céu à terra. meio urbano, os frades das ordens
A inovação, o progresso técnico e mendicantes, que formam a nova so-

278 Terezinha OLIVEIRA; Meire A. L. NUNES. A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura...
ciedade e remodelam profundamente o Le Goff (2004, p. 67) nos mostra que o
cris anismo que ela professa” (LE GOFF, usurário não é “[...] uma ví ma, mas
2007, p. 143-144). No entanto, em meio um culpado que par lha sua culpa com
a tantas inovações surgem, também, o conjunto da sociedade, que mesmo o
problemas como a usura. Le Goff, em desprezando e perseguindo, servia-se
a Bolsa e a Vida, trata especificamente dele e par lhava sua sede pelo dinheiro”.
dessa questão e afirma que a usura é um Entendemos que o sen mento de ‘ódio
dos grandes problemas do século XIII. O e amor’ pelo usurário é fruto do embate
autor explica que: entre a manutenção de valores prove-
O impulso e a difusão da economia nientes de épocas em que a circulação
monetária ameaçam os velhos monetária era irrisória e a nova prá ca
valores cristãos. Um novo sistema econômica que sustenta a sociedade por
econômico está prestes a se formar, meio da cobrança de juros. Um caminho
o capitalismo, que para se desenvol- encontrado para solucionar esse enfren-
ver necessita senão de novas téc- tamento foi o da ‘justa medida’. A ideia
nicas, ao menos do uso massivo de da “justa medida” pode ser creditada à
prá cas condenadas desde sempre retomada dos pensadores da An gui-
pela Igreja. Uma luta encarniçada, dade pelo Renascimento do século XII.
co diana, assinalada por proibições
Grosso modo, essa teoria se fundamenta
repe das, ar culadas a valores e
mentalidades, tem por obje vo a
na moderação, ou um ponto médio entre
legitimação do lucro lícito que é duas extremidades, também considera-
preciso dis nguir da usura ilícita. do como virtude. Essa ideia,
(LE GOFF, 2004, p. 6). [...] se impõe na teologia, de Hugo
É possível entender a importância de Saint-Victor a Tomás de Aquino,
e nos costumes. Em meados do
que a usura passa a ter pela própria
século XIII, São Luís pra ca e louva
caracterís ca do momento em que os
a justa medida em todas as coisas,
valores tornaram-se mais terrenos. Em no modo de vestir, na mesa, na
consequência, a vida passa a ser entendi- devoção, na guerra. Para ele, o ho-
da como uma forma de contribuição para mem ideal é o prudhomme que se
a criação divina, pois, se assim não fosse, dis ngue do homem valente no fato
“[...] por que teria Deus criado o mundo de aliar sabedoria e moderação. O
e o homem e a mulher?” (LE GOFF, 2004, usurário moderado tem, portanto,
p. 66). Essa nova forma de pensar induz a probabilidade de passar através
os homens a se embrenharem em cami- da rede de malha fina de Satã. (LE
nhos e a vidades que eram condenados GOFF, 2004, p. 70-71).
em outros momentos. Todavia, o usurá- Nessa perspec va, foram adotadas
rio não está sozinho nesta jornada toda algumas medidas para a prá ca de uma
sociedade é cumplice de suas a vidades. ‘usura moderada’ como, por exemplo,

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014. 279


a determinação de taxas, uma “[...] es- A usura é um termo recorrente,
pécie de regulamentação que tomava desde o An go Testamento podem ser
como referência o mercado, mas lhe encontradas definições e condenações a
impunha freios” (LE GOFF, 2004, p. 69). essa prá ca. Todavia, em cada momen-
Assim, algumas formas de crédito foram to ela pode ser interpretada de forma
admi das e as que não obedeciam a distinta devido às características das
regulamentação permaneceram conde- relações que determinam os diferentes
nadas. Le Goff ilustra essa questão nos contextos sociais. Assim, nossa intenção,
apresentando a seguinte determinação neste momento, é refle r acerca do seu
do Concílio de Latrão à usura: uso no contexto da Idade Média Central,
Em 1179, o terceiro concílio de
mais especificamente, no século XIII.
Latrão determina que sejam repri- A usura é um termo que designa
midos somente os usurários "ma- um conjunto de práticas financeiras
nifestos" (manifestz), chamados condenadas, tanto que nos documentos
também "comuns" (comunes) ou medievais, principalmente do século
"públicos" (publicz). Acredito que se XIII, encontramos com frequência sua
tratava de usurários cuja fama, "re- indicação no plural, usurae. Em uma
nome", rumor público, designava sociedade que tem a mentalidade in-
como usurários não amadores mas fluenciada pelo mundo bes ário, a usura
"profissionais" e que, sobretudo, é comparada a um mostro de várias
pra cavam usuras excessivas. (LE cabeças, conhecido na mitologia grega
GOFF, 2004, p. 70).
por hidra. Essa analogia nos possibilita
Mas, mesmo com certa regula- entender a amplitude de condenações
mentação, o autor afirma que não era que se ramificam da usura. Mas, para
nada honroso ser usurário no século entendermos sua extensão é preciso,
XIII. O perigo de condenação por uma primeiramente, tentarmos construir um
mentalidade engendrada nos preceitos conceito a seu respeito. Tomemos como
religiosos que pregava a pobreza afligia ponto de par da a definição de Santo
os homens que aspiravam uma melhor Ambrósio de que “Usura é receber mais
posição social. Com o intuito de nos do que se deu” (LE GOFF, 2004, p. 22).
aproximarmos da construção mental que Assim, podemos supor que é o exceden-
condenava a usura, passamos a tratar o te; é o que se exige além do capital. Le
tema especificamente. Goff nos auxilia a ampliar a compreensão
afirmando que usura é:
Usura [...] a arrecadação de juros por um
emprestador nas operações que
E o Senhor disse no Evangelho: não devem dar lugar ao juro. Não
'Emprestai sem nada esperar' é portanto a cobrança de qualquer
(Lucas, VI, 35). juro. Usura e juro não são sinôni-

280 Terezinha OLIVEIRA; Meire A. L. NUNES. A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura...
mos, nem usura e lucro: a usura [...] aquele que aluga um campo
intervém onde não há produção para receber renda ou uma casa
ou transformação material de bens para ter um aluguel, não se asseme-
concretos. (LE GOFF, 2004, p. 14). lha àquele que empresta dinheiro
a juros? É claro que não. Antes de
As informações apresentadas pelo tudo porque a única função do di-
autor nos possibilitam inferir que usura nheiro é o pagamento de um preço
é uma forma de juros sem a produção de compra; depois, o arrendatário
de bens materiais. No entanto, essa faz frutificar a terra, o locatário
definição nos parece contraditória, pois goza da casa; nestes deis casos, o
o juro não implica necessariamente o proprietário parece dar o uso de
aumento, ou produção, de uma mate- sua coisa para receber dinheiro,
rialidade que nas transações financeiras e de certo modo, trocar lucro por
é a moeda/dinheiro? De acordo com o lucro, enquanto que, do dinheiro
pensamento corrente daquela época a emprestado, não podemos fazer
moeda é infecunda, ela não se reproduz. dele nenhum uso; enfim, o uso
esgota pouco a pouco o campo,
Portanto, gerar dinheiro com o próprio
estraga a casa, enquanto o dinheiro
dinheiro é ilícito. Essa ideia pode ser
emprestado não se sujeita à dimi-
observada na explicação de Tomás de
nuição nem ao envelhecimento. (LE
Aquino sobre a moeda. Le Goff (2004, p.
GOFF, 2004, p. 25-26).
22) explica que para o monge a função
da moeda é a troca “[...] assim, seu uso Entendido que a usura está vin-
próprio e primeiro é o de ser consumido, culada ao recebimento de um valor
gasto nas trocas. Por consequência, é maior de dinheiro pelo seu emprés mo,
injusto em si receber uma recompensa passamos a pensar nos argumentos que
pelo uso do dinheiro emprestado; é nisso tornam essa ação condenável. Primeira-
que consiste a usura". Essa mesma ideia mente é necessário entender que para
do dinheiro ser infecundo não é exclusi- o contexto medieval a usura era mais
va de Tomás de Aquino, ela é consenso que um crime, era um pecado, como é
entre os medievais, como seu contem- apresentado por Le Goff por meio de um
porâneo São Boaventura, que afirma que manuscrito do século XIII:
"O dinheiro em si e por si não fru fica, Os usurários pecam contra a natu-
mas o fruto vem de outra parte" (LE reza querendo fazer dinheiro gerar
GOFF, 2004, p. 23). No Código de Direito dinheiro, como cavalo com cavalo
Canônico do século XII encontra-se um ou mulo com mulo. Além disso, os
texto, provavelmente do século V, que usurários são ladrões (latrones),
nos auxilia sinte zar essa ideia acerca pois vendem o tempo, que não lhes
da diferença da produção de dinheiro pertence, e vender um bem alheio,
como principal condição para a prá ca contra a vontade do possuidor é um
da usura. roubo. Ademais, como nada ven-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014. 281


dem a não ser a espera do dinheiro, aos bois de lavoura que laboram sem
isto é, o tempo, vendem os dias e as cessar?” (LE GOFF, 2004, p. 28). Assim,
noites. (LE GOFF, 2004, p. 38). enquanto as moedas trabalham con-
O autor nos possibilita considerar tinuamente, os usurários se eximem
que a usura se caracteriza como um fur- dessa a vidade que lhe foi des nada
to, pois os usurários não oferecem nada pelo Senhor. Le Goff (2004, p. 40) explica
em troca do excedente, somente o tem- essa questão por meio do pensamento
po de espera pelo pagamento. O tempo de Thomas de Chobham, o qual afirma
não lhes pertence, pertence apenas a claramente que: "O usurário quer adqui-
Deus. Portanto, o objeto negociado pelo rir um lucro sem nenhum trabalho e até
usurário é algo que não lhe é próprio, dormindo, o que vai contra o preceito do
pois a natureza é criada por Deus, isso Senhor que diz: <Comerás teu pão com
faz com que seja designado de ladrão. o suor de teu rosto>” condenação dada
aos homens devido à desobediência de
Essa argumentação também é válida
Adão. Nessa perspec va os usurários são
para indicar que a usura é um pecado
‘filhos desobedientes’, ou nas palavras
contra a natureza, pois os teólogos do
do autor, um “desertor”, que vivem na
século XII, os naturalistas, se reportam
ociosidade, considerada pelos pensado-
à natureza como Deus – Natura, id est
res medievais como a mãe de todos os
Deus. A usura é pecado contra a nature-
vícios e “[...] destrona, na hierarquia dos
za divina porque não cumpre suas leis.
sete pecados capitais, a superbia, o ‘or-
Ela não respeita a lei da produ vidade
gulho’” (LE GOFF, 2004, p. 06). Portanto,
e produz pelo improdu vo: o dinheiro. a usura pode ser considerada um pecado
Não cumpre a lei do trabalho e descanso, capital que se opõe, principalmente, à
uma regra existente desde a criação do jus ça. A virtude da jus ça é atacada
mundo que determina o sé mo dia de pelo usurário por cobrar um valor supe-
trabalho como o do descanso. No entan- rior ao ‘justo preço’ do produto como
to, essa lei é ignorada pelos usurários explica Tomás de Aquino: "Receber uma
que incluem o domingo – dia do Senhor usura pelo dinheiro emprestado é em si
– em suas cobranças de juros. O mesmo injusto: pois se vende o que não existe,
se aplica às a vidades desenvolvidas du- instaurando com isso manifestamente
rante o dia e a noite. O dia é reservado ao uma desigualdade contrária à jus ça"
trabalho e a noite ao restabelecimento (LE GOFF, 2004, p. 24).
corporal. Quando não ocorre dis nção Essas reflexões nortearam a absol-
entre ambos não há respeito “[...] a or- vição e a condenação das prá cas usurá-
dem natural que Ele quis dar ao mundo rias no final da Idade Média Central. Le
e à nossa vida corporal, nem a ordem Goff explica que, entre os séculos XI e
do calendário estabelecida por Ele. As XIII, ocorreu uma mudança de posiciona-
moedas usurárias não se assemelham mento frente à usura, pois algumas a vi-

282 Terezinha OLIVEIRA; Meire A. L. NUNES. A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura...
dades profissionais que aparentemente na nova categoria de intelectuais que
eram condenáveis, ao serem subme das recebiam pagamento – collecta –, dos
à análise, se libertaram das acusações. estudantes das cidades, por seus ensina-
A reavaliação dos o cios é, para o autor, mentos. Le Goff (2004, p. 39) esclarece
consequência da revolução econômica que a condenação aos intelectuais era
e social que ocorreu no Ocidente neste sustentada por compreendê-los como
período, da qual: “[...] mercadores de palavras". E o que
[...] o progresso urbano é o sin- vendem eles? A ciência, a ciência, que,
toma mais estridente, e a divisão como o tempo, pertence apenas a Deus”.
do trabalho o aspecto mais impor- Todavia, esses ‘ladrões’ não receberam
tante. Novos ofícios nascem ou a condenação por usura. A absolvição
se desenvolvem, novas categorias dos intelectuais e dos mercadores foi
profissionais aparecem ou são promulgada graças aos escolás cos que
ex ntas, novos grupos socioprofis- jus ficaram muitas a vidades por meio
sionais, fortes por seu numero, por da casuís ca. Le Goff (2013, p. 123) elu-
seu papel, reclamam e conquistam cida que, para a escolás ca, a casuís ca
uma es ma, ou seja um pres gio é, “[...] nos séculos XII e XIII, o seu grande
associado a sua força. Eles querem
mérito, antes de se tornar o seu grande
ser considerados e nisso são bem
defeito -, ela separa as ocupações ilícitas
sucedidos. O tempo do desprezo
está terminado (LE GOFF, 2013, p. em si pela natureza – ex natura – daque-
122-123). las que são condenáveis de acordo com
o caso, ocasionalmente, ex occasione”.
Dentro do novo ‘quadro’ de o - Neste contexto de construção de argu-
cios que deixaram de ser desprezados mentos em beneficio dos o cios lícitos
encontram-se o comércio e o ensino a intenção dos pra cantes torna-se a
laico. As a vidades do comerciante e do grande questão a ser avaliada. Assim,
usurário podem ser confundidas porque
[...] a má intenção carrega consigo
são muito próximas. Le Goff (2004, p.53)
a condenação somente dos merca-
explica que usurário e mercador são dores que agem por cupidez – ex
termos dis ntos e afirma que, respec - cupiditate -, por amor ao ganho –
vamente, “[...] um termo é vergonhoso e lucri causa. Isto é deixar um amplo
o outro honroso, e que o segundo serve campo livre as ‘boas intenções’,
para esconder a vergonha do primeiro, o quer dizer, a todas as camuflagens.
que prova apesar de tudo uma certa pro- Os processos de intenção são um
ximidade, senão parentesco, entre eles”. primeiro passo na via da tolerância
A dis nção entre ambas as a vidades (LE GOFF, 2013, p. 124).
nunca foi muito clara porque o comércio Além da intenção, outras questões
do século XIII exalava odores da usura. foram consideradas e os escolásticos
Os mesmo odores podem ser sen dos desenvolveram cincos argumentos que

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014. 283


possibilitavam tolerar a usura conforme 126). Na mesma perspec va, o trabalho
as prá cas e valores presentes no novo dos mercadores também se torna reco-
contexto social. Na terceira argumenta- nhecido e es mado. As argumentações
ção, encontra-se o principal pensamento em sua defesa consideram os riscos que
que legi mou o comércio e o magistério essas a vidades estão sujeitas devido
remunerado: o trabalho. ao acaso. Como Le Goff (2013, p. 128)
A terceira, a mais importante, a expõe “[...] as incertezas da a vidade
mais legí ma aos olhos da Igreja, é comercial – ra o incertudinis – jus fi-
quando a usura pode ser considera- cam os ganhos do mercador, ou melhor,
da como um salário, a remuneração o interesse que ele tem pelo dinheiro
do trabalho (s pendium laboris). aplicado em algumas operações, ou seja,
Foi a jus fica va que salvou os mes- em cada vez mais larga medida, a ‘usura’,
tres universitários e os mercadores a usura maldita”. Todavia, os ganhos dos
não usurários. Ensinar a ciência é mercadores também são aceitáveis sob
cansa vo, supõe uma aprendiza- outro prisma, o do bem comum. Com a
gem e métodos que dependem do retomada da filosofia aristotélica, a pers-
trabalho. pec va do bem comum ganha importân-
Caminhar por terra e mar, ir às feiras
cia considerável e possibilita entender
ou mesmo manter uma escrituração
de contas, trocar moedas é também
o comerciante como um bem feitor
um trabalho, e como tal merece social ao transportar mercadorias para
salário. (LE GOFF, 2004, p. 71-72). locais que não às nha. Le Goff expõe o
pensamento de Tomás de Aquino com
Assim, nesse processo de regu- relação a essa caracterís ca da a vidade
larização das profissões, o trabalho comercial contando que para o monge,
deixa de ser mo vo de desprezo para “Quando alguém se entrega ao comercio
tornar-se mérito. O sacri cio do labor em vista da u lidade pública, quando se
justifica o exercício da atividade e a vê que as coisas necessárias à existência
sua recompensa. Essa compreensão foi não faltam num pais, o lucro, em vez de
muito importante para os professores, ser visado como fim, é somente reclama-
pois graças a ela foram lançados outros do como remuneração do trabalho” (LE
olhares aos trabalhadores intelectuais GOFF, 2013, p.128). Dessa forma, os co-
que passaram a ser entendidos não merciantes e os intelectuais jus ficavam
mais como vendedores de ciência ou suas a vidades, mas isso não foi possível
do “[...] dom de Deus que não pode ser à outros o cios, os quais con nuaram
vendido. Mas logo o universitário vê sua recebendo o desprezo social. Isso se
remuneração jus ficada pelo trabalho aplica aos usurários que permaneceram
que ele fornece a serviço dos seus es- marginalizados, compartilhando com
tudantes – salário do seu labor, e não “[...] as pros tutas e os jograis essa sorte
preço do seu saber” (LE GOFF, 2013, p. funesta” (LE GOFF, 2004, p. 47).

284 Terezinha OLIVEIRA; Meire A. L. NUNES. A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura...
Análise da imagem futuro golpe no homem que está sendo
de do por sua mão esquerda. Na frente
Se emprestais àqueles de quem de Jesus, Gio o coloca uma mesa virada
esperais receber, que vantagem e ao seu lado uma jaula da qual saem
tereis? Até os pecadores empres- animais que se espalham no meio da
tam aos pecadores, para receber
mul dão. A mul dão está dividida em
o equivalente. Mas ao contrário,
amai os vossos inimigos, fazei-lhe o dois hemisférios: do lado direito, encon-
bem e emprestai sem nada esperar tram-se cinco homens e duas crianças;
(Lucas, VI, 36-38). do lado esquerdo apenas cinco homens.
O fundo da cena é emoldurado por uma
A pintura de Gio o que elegemos construção que a aparência nos remete
para analisar o contexto ‘expansionis- à imagem de um edi cio religioso.
ta’ do final da Idade Média Central, Essa leitura nos possibilita inferir
que torna a usura um problema social, que o ar sta foi fiel à passagem conheci-
chocando-se com os preceitos religiosos, da como A Purificação do templo, narra-
é o afresco pintado entre 1302 e 1306 da pelos quatro evangelistas e que João
na Capela degli Scrovegni em Pádua, (2:13-16) descreve da seguinte forma:
Jesus expulsa os vendilhões do templo. 13
A jus fica va pela escolha nos parece Estando próxima a Páscoa dos ju-
deus, Jesus subiu a Jerusalém. 14No
apropriado, pois a pintura expressa a
Templo, encontrou os vendedores
mensagem bíblica que sustenta o com-
de bois, de ovelhas e de pombas e
bate à usura. Desta forma, para dialogar os cambistas sentados. 15Tendo fei-
com leitura da fonte imagé ca, podemos to um chicote de cordas, expulsou
nos reportar a principal fonte da litera- todos do Templo, com as ovelhas
tura religiosa, a Bíblia. e com os bois; lançou ao chão o
O primeiro olhar para a pintura dinheiro dos cambistas e derrubou
(figura 1) nos revela uma cena que as mesas 16e disse aos que vendiam
tem no primeiro plano Cristo com uma pombas: "Tirai tudo isto daqui; não
fisionomia irada demonstrando, pelo façais da casa de meu Pai uma casa
posicionamento de sua mão direita, um de comércio".

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014. 285


Figura 1 – A expulsão dos vendilhões do templo. Capela de
Scrovegni – Padova/Itália. Afresco pintado aproximadamente entre
1303 a 1306. Dimensões de 200 cm X 185 cm.
Fonte: h p://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8c/Gio o_-_Scrovegni
_-_-27-_-_Expulsion_of_the_Money-changers_from_the_Temple.jpg

O fato de Gio o ter reproduzido na GOFF, 2004, p. 16). Nesse aspecto, as


integra a passagem está em conformida- imagens eram muito importantes por-
de com a tradição medieval de registrar que os fiéis liam nas ilustrações das pa-
passagens bíblicas nas paredes das igre- redes os ensinamentos bíblicos. Todavia,
jas. Como nos lembra Le Goff, diante de a importância das imagens no processo
algum impasse, os homens medievais forma vo dos homens medievais ultra-
“[...] procuravam-lhe o modelo na Bíblia. passa a mera representação narra va.
A autoridade bíblica fornecia ao mesmo Tomás de Aquino atribui às imagens três
tempo a origem, a explicação e o modo funções essenciais na efetivação dos
de emprego do caso em questão” (LE ensinamentos, são elas:

286 Terezinha OLIVEIRA; Meire A. L. NUNES. A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura...
Há três razões para a instituição da jus fica va para a ‘usura moderada’
de imagens nas igrejas. Primeira, a pode ser engendrada pelo pensamento
instrução dos simples, porque eles de Tomás de Aquino que, revisitando a
são por elas instruídas como se o filosofia aristotélica, retoma o conceito
fossem pelos livros. Segunda, para
da ‘justa medida’. O pensamento da justa
que o mistério da Encarnação e os
medida, por exemplo, pode ser encon-
exemplos dos santos possam ser
mais a vos em nossa memória ao trada na segunda parte da Suma Teoló-
serem representados diariamente gica, na qual Tomás de Aquino aborda os
sob nossos olhos. Terceira, para atos humanos e os classifica em viciosos
es mular sen mentos de devoção, e virtuosos. As virtudes são cons tuídas
já que estes são es mulados de ma- pela temperança, que tem a função de
neira mais efe va pelas coisas vistas repelir as paixões excessivas. A tempe-
que ouvidas (SÃO TOMÁS DE AQUI- rança pode ser caracterizada como uma
NO apud PEREIRA, 2011, p.132) moderação dos atos humanos, o ponto
Percebemos que Tomás de Aqui- médio entre dois pontos.
no se reporta à imagem não de forma Essa ideia do ponto médio pode
independente, mas relacionando-a ao ser pensada pela disposição da cena
texto escrito, o qual para os cristãos, apresentada por Gio o. O pintor coloca
nha um valor superior. Todavia, a efici- Jesus proporcionalmente à frente do
ência da imagem para a compreensão e portão central do Templo de Jerusalém,
efe vação dos ensinamentos é inegável, o que, indubitavelmente, o torna o ponto
como Tomás de Aquino afirma, a visão de referência da cena (figura 2). A posi-
é mais efe va do que a audição quando ção de Jesus possibilita a divisão assimé-
o proposito é a sensibilização. Seguindo trica da cena em lado direito e esquerdo,
esse modelo, a Capela de Scrovegni assim como as demais pessoas que com-
foi pintada como um texto bíblico que põem a pintura. Do seu lado esquerdo
aborda três temas: Joaquim e Ana (pais estão os mercadores e do lado direito
de Maria), Maria e Jesus Cristo. Mesmo seus seguidores. Tradicionalmente, ao
diante da evidência da fidelidade narra- lado esquerdo é atribuído ao coração,
va ao texto, podemos nos aventurar a órgão do corpo humano que alegori-
desenvolver uma leitura que tem como camente representa os sentimentos.
proposito revelar questões especificas Os sen mentos são produzidos pelos
sobre o pensamento do autor e de seu sen dos, o que os remete diretamente
tempo. Assim, como hipótese inves - aos desejos ou as paixões. As paixões
ga va, construímos a premissa de que são entendidas como os sen mentos de
Gio o, um possível usurário, comungava cólera, o medo, a audácia, inveja, alegria,
a perspectiva corrente naquele mo- a amizade, o ódio, desejo, emulação,
mento que condenava apenas a prá ca compaixão e, em geral, os sen mentos
excessiva da usura. O estabelecimento que são acompanhados de prazer ou

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014. 287


dor. Por isso é do lado das paixões que de forma excessiva não submetem suas
os usurários devem ficar. Aqueles que paixões à justa medida da razão e estão
cometem a prá ca da cobrança de juros mais propensos aos prazeres terrenos.

Figura 2 – A expulsão dos vendilhões do templo. Capela de Scrovegni –


Padova/Itália. ( visualização da divisão estrutural do afresco – divisão nossa)
Fonte: h p://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8c/Gio o_-_Scroveg-
ni_-_-27-_-_Expulsion_of_the_Money-changers_from_the_Temple.jpg

Do lado direito estão os seguidores iden ficar a sabedoria. Na Idade Média


de Jesus, aqueles que representam o a auréola foi muito usada pelos pintores
mundo divino. Neste local encontram-se como símbolo das en dades divinas como
homens que abdicaram dos prazeres ter- os anjos, santos, Maria e Jesus com o pro-
renos para ter uma vida mais próxima do pósito de dis nguir aqueles que possuem
Criador. Essa dis nção é evidente, princi- intelecto elevado e estão mais próximos
palmente pelas auréolas, cujo significado de Deus. Este local também pertence aos
remonta o termo la no aureu, ou ouro, inocentes, às crianças que se encontram
sendo usada desde a cultura pagã para protegidas pelos santos (figura 3).

288 Terezinha OLIVEIRA; Meire A. L. NUNES. A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura...
Figura 3 – A expulsão dos vendilhões do templo.
Capela de Scrovegni – Padova/Itália. (detalhe)
Fonte: h p://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8c/Gio o_-_
Scrovegni_-_-27-_-_Expulsion_of_the_Money-changers_from_the_Temple.jpg

A imagem de Cristo é construída vício condenado pelas leis divinas. Como


por Gio o de forma que a ira nos parece Jesus Cristo, a encarnação de Deus, pode
a matriz propulsora de toda representa- deixar-se dominar pelo pecado? Pode-
ção (figura 4). A ira desenha a fisionomia mos entender essa indagação por meio
de Jesus, conduz a posição de sua mão da reflexão de Tomás de Aquino de que:
direita que segura um chicote e se pre- Ora, se atentamos à realidade, dire-
para para o ataque. É a força presente mos que a ira é um movimento do
na mão esquerda que segura aquele que ape te sensi vo e esse movimento
deverá receber o golpe determinando a pode ser regulado pela razão e
posição do corpo de Cristo e possibilita enquanto segue o juízo da razão,
o espectador sen r a força que o próxi- põe-se a serviço dela para sua
mo movimento despenderá. Todavia, a pronta execução. E como a condição
ira é um dos sete pecados capitais, um da natureza humana exige que o

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014. 289


ape te sensi vo seja movido pela que sofreu uma afronta, movido pela
razão, é necessário afirmar, como ira, clama por jus ça, portanto esta ira
os peripaté cos, que algumas iras conduz a um equilíbrio na sociedade e
são boas e virtuosas (TOMAS DE ao estabelecimento de relações equita-
AQUINO, 2004, p. 98). vas” (OLIVEIRA 2012, 140-141). Nessa
O monge dominicano evidencia perspec va, o Jesus irado de Gio o não
que nem toda a ira é um mal, poden- é a representação do pecado, mas da
do ser, inclusive uma virtude. Oliveira virtude da jus ça. Sua rebeldia pode ser
(2012), ao analisar o úl mo ar go da entendida como uma reação da razão
‘Questão 158’ da Suma Teológica, A Ira, para evitar injus ças e a naturalização do
nos mostra que para Tomás de Aquino, vício, o qual já estava enraizado por toda
a ira é, inclusive, necessária. A sua falta a sociedade ocorrendo, inclusive, dentro
poderá ser a causa para outros vícios. do próprio Templo. Essa ideia pode ser
O primeiro aspecto que a ausência validada pelo fato da ira de Jesus recair
de ira pode indicar “[...] é a covardia, sobre aquele que representa a existên-
pois, aquele que não se revolta com cia da injus ça na cena, o comerciante.
um ultraje também não esta usando a A injus ça pode ser compreendida não
razão, pois, aceita que o outro humilhe simplesmente pela ação comercial, mas
sem se rebelar” (OLIVEIRA 2012, p. pelo excesso, pela cobrança superior ao
140). É importante entender que, para justo valor da mercadoria. Essa indicação
o Dominicano, a ira, em si, não é en- é resultante da observação de que Jesus
tendida como pecado, mas a ausência ataca aquele que mais representa a ri-
de discernimento intelec vo é que o queza, o comerciante, que tem as vestes
caracteriza. Portanto, aquele que não na cor purpura. Essa cor representava
se ira assemelha-se aos animais que são na Idade Média riqueza e poder devi-
guiados pelas sensações por não faze- do a dificuldade em obtê-la o que nos
rem uso da razão. O segundo aspecto possibilita iden ficar esse personagem
apresentado por Oliveira é que a “[...] ira como um homem que, provavelmente,
comedida leva à jus ça, ou seja, aquele acumulou bens de forma ilícita.

290 Terezinha OLIVEIRA; Meire A. L. NUNES. A expulsão dos mercadores do templo: um estudo da usura...
Figura 4 – A expulsão dos vendilhões do templo.
Capela de Scrovegni – Padova/Itália. (detalhe)
Fonte: h p://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8c/Gio o_-_Scrovegni
_-_-27-_-_Expulsion_of_the_Money-changers_from_the_Temple.jpg

A aceitação dessa leitura pode ser animal mais barato, o pombo, era comer-
reforçada ao observarmos que Jesus di- cializado por um denário, valor equiva-
reciona sua ira apenas ao comerciante, lente a um dia de trabalho. Gio o pinta
pra camente ignorando suas mercado- os animais como se es vessem fugindo
rias, os animais que se espalham entre da ira de Jesus, dois correm para o lado
a mul dão. Gio o coloca na cena cinco esquerdo e dois para o direito. O outro
animais, podendo ser iden ficados como animal é uma pomba e, assim como dois
uma pomba, um carneiro e três bois. bois, foge para o lado divino buscando
Esses eram os animais tradicionalmente proteção no braço de uma das crianças
sacrificados durante as festas religiosas que compõem a cena do lado direito
e nham de ser adquiridos no próprio de Cristo. Essa disposição dos animais
templo, pois deveriam atender as re- nos induz a pensar acerca do contexto
gras de pureza estabelecidas no livro do do período, o qual estava tomado pelo
Leví co. Isso impossibilitava que o fieis comércio, assim como a porção divina e a
trouxessem os animais criados em suas terrestre estão tomadas, quase, propor-
casas e tornava o comercio de sacri cios cionalmente pelas mercadorias. A des-
uma a vidade muito rentável, pois o proporção é estabelecida pela pomba

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014. 291


que atribui maior ênfase do comercio ao pensamento não afirma a intencionali-
lado dos homens santos. Essa observa- dade do ar sta, mas evidencia a poten-
ção nos direciona a ideia do clero como cialidade da fonte imagé ca em desper-
promotora do comercio, pois os animais tar a reflexão nos observadores. No caso,
vendidos no templo eram criados pelas nos propiciou pensar na estrutura social
famílias sacerdotais ou por produtores que se estabelecia por meio de outro
que man nham bom relacionamento. olhar para a vida terrena e que, para
Mas, por outro lado, também nos pos- não renegar os princípios religiosos, teve
sibilita relacionar a ideia da res tuição que estabelecer um equilíbrio, ou a justa
da usura. O lucro proveniente da usura medida entre as coisas de Deus e dos
torna-se lícito quando revertido ao homens. Como resultado desse embate,
bem. Assim, a mercadoria – objeto que vimos na pintura de Gio o, Jesus Cristo
produz o pecado – pode ser ilustrado - o Deus homem – que, ao estar no cen-
pela pomba – animal que representa a tro da pintura, se cons tui o mediador
sabedoria divina – quando é colocado entre os extremos que representam o
ao lado do bem. céu e a terra. Ele, analogicamente, pode
Face à essas observações, pode- ser relacionado à temperança, que pela
mos pensar que Gio o, ao pintar a cena ira repele as paixões excessivas, como
da expulsão dos mercadores do templo, a dos ricos mercadores que pecam por
descreveu a narra va bíblica, mas orga- não obedecerem as leis divinas. Assim,
nizou a cena de forma que nos possibilita entendemos que a pintura de Gio o nos
relacionar a representação ao contexto ins ga a pensar e construir um conhe-
do final da Idade Média Central e início cimento significa vo acerca do período
da Baixa idade Média, momento em que analisado por meio da apropriação entre
muitas mudanças foram gestadas. Esse a leitura escrita e imagé ca.

Referências
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BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1985.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A idade média: nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense,
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LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. São Paulo: Brasi-
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WOLF, Norbert. Gio o. Lisboa: Taschen, 2007.

Recebido em março de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 275-293, jan./jun. 2014. 293


O velho Jornal: voz dos anseios socioeducaƟvos em
Sorocaba
The old Journal: the voice of the socio-educaƟonal
aspiraƟons in Sorocaba
Vania Regina Bosche *
* Doutora em Geografia Humana pela Universidade de
São Paulo. Profa. Titular do Programa de Pós-Graduação
em Educação e de História da Educação no Curso de
Pedagogia da Universidade de Sorocaba (Uniso).
E-mail: vania.bosche @prof.uniso.br

Resumo
O ar go realiza breve reflexão sobre o uso do jornal como fonte de pesquisa histórica. Tendo por
referência o Jornal “O Operário”, apresenta aspectos importantes das mobilizações operárias no
começo da século XX em Sorocaba, os interesses pela educação e as manifestações de ar culistas
feministas sobre o papel da mulher, o anarquismo e a luta social.
Palavras-chave
Educação. Classe Operária. O Operário.

Abstract
The ar cle presents a brief reflec on on the use of the newspaper as a source for historical rese-
arch. With reference to the newspaper "O Operário", it presents important aspects of the workers'
mobiliza ons at the beginning of the twen eth century in Sorocaba, the interests in educa on and
feminist writers' manifesta ons upon the role of women, anarchism and social struggle.
Key words
Educa on. Working class. "O Operário".

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 295-307, jan./jun. 2014
A imprensa enquanto fonte histórica: da realidade, seja pelos seus aspectos
paradigmas teóricos, seja pela representação social.
Desde o século XIX, destaca Cam-
Não se pode afirmar serem os pos (2012), o país foi sendo tomado por
veículos de comunicação de massa, publicações jornalísticas, não apenas
em geral, instrumentos de registro de como impera vo social de propagação
caráter documental preciso e despre- de posicionamentos polí cos e sociais,
tensioso. Com o intuito de informar, mas, por um viés prá co. Uma par cipa-
registrar fatos de relevâncias diversas, ção importante de intelectuais de várias
formam um grande conjunto de assun- es rpes que, pela a vidade, percebiam
tos que de alguma forma atualizam a valores consideráveis agregados aos
população dos fatos de co diano próxi- rendimentos já existentes.
mo ou remoto. Atualmente os recursos Ao lado dos polígrafos, que eram
são amplos, a diversidade é intensa e pequenos produtores culturais indepen-
com a expansão das redes sociais essa dentes que viviam da publicação de
atualização, aumentada infinitamente, pequenos livros, de proferir palestras e
cumpre de forma acelerada a circulação conferências, baluartes da intelectua-
das informações. Mais das informações lidade brasileira se fizeram presentes
do que conhecimento: a no cia apare- nas páginas dos jornais. Era comum, na
ce ilustrada, deglu da, de certa forma grande imprensa, os nomes de Machado
direcionada da forma como deverá ser de Assis, de Olavo Bilac, de Monteiro
comentada e circulada, o que acontece Lobato, ocuparem o espaço na folha
por curto intervalo de tempo. com argumentos jurídicos, comentários
Em tempos idos, com menos re- literários, propostas para os assuntos de
cursos de obtenção e divulgação, os im- governo, considerações sobre posicio-
pressos em sua maioria eram periódicos, namentos polí cos ou não, e, projetos
nem sempre com circulação constante, governamentais.
vida longa ou par cipação de ar culis- Paralelamente à grande imprensa,
tas consistentes, isso sem considerar o Brasil todo passou a ter exemplos re-
os aspectos financeiros relacionados presenta vos de jornais que, por outros
à aquisição de matéria prima. Talvez enfoque informa vos, se tornaram a voz
por isso mesmo, o espaço dos jornais, de segmentos precisos da população ao
folhetos, almanaques, fossem tão mais manifestarem sentimentos e anseios
valorizado pela população além de, tão de classes sociais e profissionais. Nesse
significa vo enquanto origem de dados aspecto, emprestam-se os conceitos de
e registro de mentalidade de uma época. Thompson (1998), sobre a importância
Logo, enquanto fonte o jornal se apre- de se perceber os meios de comunicação
sentava como recurso interdisciplinar enquanto veículos que podem transfor-
que permi a uma certa compreensão mar as relações humanas, independente

296 Vania Regina BOSCHETTI. O velho Jornal: voz dos anseios socioeduca vos em Sorocaba...
de lugar ou de época, para, quem sabe, Porém para que o acervo da im-
modificá-las. prensa adentrasse ao universo da pes-
Breve retrospecto sobre a impren- quisa e dela pudesse fazer parte cons -
sa brasileira permite verificar o quanto a tu va, demorou mais. O viés posi vista
sua relação com a sociedade caminhou predominante, impedia a u lização de
conjuntamente, a par r de 1808, quan- impressos da produção historiográfica,
do surgiu no conjunto das benfeitorias por considerá-lo subje vo, diretamente
culturais instaladas no Rio de Janeiro por ligado aos objetos da no cia no tempo
ocasião da permanência da Família Real e/ou no espaço o que lhe conferia fragi-
e das Cortes Portuguesas na cidade do lidade aos créditos u lizados.
Rio de Janeiro. O quadro somente veio se modi-
No caso brasileiro, como atestam ficar quando, a par r de 1930 quando
Luca e Mar ns (2008), nação e imprensa Marc Bloch e Lucien Febvre, na França,
amadureceram juntas e, os primeiros introduziram a Revista dos Annales. Na
periódicos começaram a ser publicados esteira das Ciências Sociais, a revista
a par r de 1808 o que levou-a não só ao inaugurou uma nova concepção para a
registro das mudanças de Colônia para o pesquisa e aos estudos da história e da
Império mas, também, apresentar-se en- historiografia, agora numa perspec va
quanto recurso de construção do passado. social, econômica e mental. Dessa forma
O acervo documental, escrito, pas- à tendência convencional do historiador
sou a ser entendido como mais uma pos- manter-se neutro, de recuperar os even-
sibilidade de construir o passado como tos no concreto da sua existência, de so-
elemento de leitura atenta que descor- mente buscar as fontes escritas oficiais,
na formas, conteúdos, apropriações limitar-se a narra va fidedigna e linear
e representações de uma determinada
da descrição dos fatos como acontece-
época (BOSCHETTI; FERREIRA, 2010, p.
ram, se colocava uma nova forma de es-
6). Escrevia Machado de Assis (1859), já
tudar e compreender a história e a vida
no século XIX que “a primeira qualidade
do homem em sua historicidade.
do jornal é a reprodução amiudada, é o
derramamento fácil em todos os mem- A novidade parece-nos estar ligada
bros do corpo social”. a três processos: novos problemas
O advento da imprensa em terras colocam em causa a própria histó-
brasileiras abriu novos caminhos à vida ria; novas abordagens modificam,
urbana, pois pela divulgação, tornou-se enriquecem, subvertem os setores
instrumento de reivindicações, popu- tradicionais da história; novos ob-
larizou ideias e, ao longo da história jetos, enfim, aparecem no campo
tornou-a aliada do desvelamento da re- epistemológico da história. (LE
alidade, da desestabilização de governos GOFF, NORA, 1978, apud, DE LUCA,
e mandatos polí cos. 2010, p. 113).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 295-307, jan./jun. 2014. 297


As pesquisas foram ampliadas e Foi notória, por exemplo a par ci-
os objetos de inves gação mul plicados pação de alguns segmentos da imprensa
também, permitindo-se considerar o mineira e paranaense, na publicação de
historiador, seus olhares e escolhas; pro- ar gos feministas e na projeção de mu-
movendo uma aproximação da ciência lheres ar culistas que pelos jornais davam
histórica com a Linguís ca, a Psicologia voz e nova dimensão à figura da mulher.
e a Antropologia; incorporando um mo- Como exemplos ilustra vos pode-se elen-
delo interdisciplinar, sobretudo como car nas questões sindicais jornais como A
metodologia, afirma Calonga (2012). Pátria (RJ), A Vida (RJ), A Luta (RS), O Liber-
tário (SP), A Classe Operária, O Homem
Jornal O Operário: voz de uma época Livre, A Manhã, A Plebe, A Platéia... No
caso das publicações femininas, O Jornal
A u lização dos impressos resultou
das Senhoras, O Sexo Feminino.
justamente dessa nova maneira de se
O uso do jornal como fonte docu-
pensar e de se fazer estudos e pesquisas
mental de pesquisa, se liga à:
históricas e historiográficas. A concepção
de um texto jornalís co, de uma no cia, História Cultural introduzida pela
permite ampliação das possibilidades de Escola dos Annales e a mudança de
foco proporcionada por ela ao dire-
análise pois,
cionar suas análises para o estudo
Os textos não são tratados apenas das iden dades de grupos sociais
em seus conteúdos anunciados, invisíveis até então na perspec va
mas também mediante métodos de uma história tradicional. A aná-
linguísticos de análise do discur- lise da “história vista de baixo”, ter-
sos, da enunciação, com apoio em mo u lizado por Edward Thompson,
alguma teoria das classes e das permitiu a aparição de diversos
ideologias sociais. Em outras pa- sujeitos, entre eles, as mulheres.
lavras, procura-se determinar em (SOUZA, 2012, p. 1)
que condições sócio-históricas a A intenção de tomar o jornal como
produção do texto pôde ocorrer”.
objeto de estudo e pesquisa, decorre se-
(CARDOSO , 1986, p. 54).
gundo Barreira (2002) do interesse pelas
Algumas localidades brasileiras inves gações prá cas no interior dos
foram particularmente avançadas na movimento sociais urbanos. Como bem
produção e circulação de periódicos com afirma Capelato, a imprensa “é manan-
tendências marcadamente ideológicas, cial dos mais férteis para o conhecimento
de vanguarda e propagação de ideias do passado, pois possibilita ao historia-
revolucionárias seja quanto à constru- dor acompanhar o percurso dos homens
ção de novas mentalidades sociais, seja através dos tempos” (1998, p. 13).
como reivindicação de anseios trabalhis- No caso específico da cidade de
tas, legais e de melhoria de vida. Sorocaba, SP, já no final da primeira

298 Vania Regina BOSCHETTI. O velho Jornal: voz dos anseios socioeduca vos em Sorocaba...
década do século XX, o jornal caracte- ser detalhada em particularidades,
rizava de modo exemplar a diversidade pelos fatos nem sempre relevantes do
econômica e social presente. Econômica co diano e da ro na social. De um lado
porque a cidade contava com dois veto- a imprensa tradicional na feitura de
res importantes no contexto econômico jornais como o Diário de Sorocaba. Essa
do estado e do país: as oficinas da Estra- imprensa no Brasil estava diretamen-
da de Ferro Sorocabana e, a expansão te ligada aos par dos polí cos e seus
industrial têx l com fiação e tecelagem correligionários e, predominantemente
de algodão que, atendia demandas de era a voz dos par dos polí cos. Como
exportação. exemplo, O 15 de Novembro (Par do
A estrada de ferro surgiu a par r Republicano Paulista) e O Comércio de
de interesses econômicos de grupos Sorocaba (Par do Republicano Dissiden-
locais, que desenvolveram esforços te). Quando deixaram de circular, o gru-
para a construção de uma ferrovia que po fundou O Cruzeiro do Sul que passou
atendesse aos anseios de viabilizar uma a ser o representante do PRP (par do
política de exportação de algodão. A Republicano Paulista).
ferrovia além dos lucros de sua explo- Compondo o perfil de sua popu-
ração, servia de es mulo à produção de lação operária, a cidade viu crescer a
algodão pelos agricultores locais, que circulação de vários jornais, par cular-
assim nham sua produção escoada fa- mente os classistas como O Apito, Nossa
cilmente. Socialmente e, em decorrência Estrada, O Syndicato e O Operário. Além
do econômico, a presença de expressivo dos jornais, a imprensa operária se valia
con ngente proletário de origem euro- de outros recursos impressos de comu-
peia, par cularmente italianos e espa- nicação. Eram comuns os panfletos, as
nhóis, aportados ao país pela imigração, revistas, os folhetos, folhe ns, circulares.
quadro que se repe a em outras regiões A expansão da dessa modalidade de
de São Paulo e do país. imprensa, escrita e periódica, segundo
Considerada em seu conjunto, Barreira (2002) foi significa va em São
deve-se destacar que a indústria bra- Paulo, se considerado obje vamente,
sileira teve sua expansão em função o momento histórico do início do sé-
de fatores específicos como: polí cas culo passado e a conjuntura do país:
protecionistas e a par cular ação dos analfabe smo, polí cos conservadores,
imigrantes que num misto de ambição, base primária da economia nacional,
recursos pessoais e certo conhecimento patronato impermeável à problemá ca
técnico imprimiram com determinação social do trabalho. Apresenta o autor
e força, as matrizes do trabalho operário os seguintes números: dos 308 jornais
no Brasil. existentes no país (entre 1888 e 1925),
De acordo com Bosche e Ferreira o estado paulista publicava 135 e o Rio
(2005), a Sorocaba desse período, pode de Janeiro 91.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 295-307, jan./jun. 2014. 299


A velocidade na circulação dos jor- dos direitos dos operários; inicial-
nais man nha acesa a chama do debate mente a publicação teve orientação
sobre assuntos diversos. Des navam-se socialista e, na fase final a tendência
a todos, indis ntamente, pois circulavam anarquista tornou-se mais evidente.
papeis e ideias por todos os lugares. A (BOSCHETTI; FERREIRA, 2009, p. 5).
propagação oral das no cias, os comen- O Operário discorria sobre graves
tários, observações e posicionamentos questões da cidade, do estado paulista
de faziam presentes mesmo no co dia- e do país: economia industrial, necessi-
no da população analfabeta que apesar dades urbanas, tendências ideológicas,
disso, não deixava de ouvir e comentar, preconceitos e injus ças trabalhistas e
principalmente quando a pauta era de sociais. A periodicidade de sua circulação
interesse localizado: foi um fator importante, pois, segundo
No que diz respeito às possibilida- Sodré (1999), isso facilitava a compreen-
des da educação, a imprensa perió- são das ideias e o desenvolvimento do
dica, no seu veio mais propriamente processo em andamento.
cultural do que noticioso, assu- Desde o seu início o Jornal O Ope-
miu explicitamente as funções de rário manifestou-se como um periódico
agente da cultura, mobilizadora de à serviço da classe trabalhadora e, como
opiniões e de propagação de ideias. aponta Ferreira (1988, p. 13), “ como do-
(PALLARES-BURKE, 1998, p. 146).
cumento vivo desse período incontestá-
O Operário, publicado em Sorocaba vel porque é, acima de tudo, informa vo
entre 1909 e 1913 como periódico, pon- e foi resultado de uma par cipação efe -
tuava suas páginas com diversificado va do individual e do cole vo no processo
leque de informações e no cias: religião, histórico”. Mantendo-se predominante-
anúncios, ideias em geral. A consulta de mente à custa da venda de assinaturas
seu acervo e o teor de suas exposições e, uma pequena parte dos recursos da
não deixam dúvidas sobre seus interes- venda de anúncios de propaganda, o
ses jornalís cas e as responsabilidades jornal nunca poupou argumentos contra
que assume junto aos leitores, suas pro- abusos, injus ças e, à favor do bem estar
blemá cas e mazelas da população em social e da escolarização pública.
geral, par cularmente a classe operária Com discurso contundente, o jor-
enquanto base produ va. nal atraia o público, conquistava adeptos
Com declarado comprome men- para suas ideias, divulgava e ra ficava
to com as causa sociais que envolviam tendências ideológicas e, pode-se dizer
a cidade. cons tuiu-se inclusive em força polí ca
Os editores o definiam como pois, teve papel de destaque na orga-
“Orgam da defesa da classe operá- nização da Liga Operária de Sorocaba
ria, no ciosos, literário e de comba- (1911), do qual par cipavam pessoas da
te”. Tinha como bandeira a defesa direção e redação do jornal.

300 Vania Regina BOSCHETTI. O velho Jornal: voz dos anseios socioeduca vos em Sorocaba...
A Liga, por sua vez, foi funda- quan a de 41$930 (quarenta e um
mental na criação de uma escola mil, novecentos e trinta réis). Isso
noturna para crianças operárias, são valores apenas somados para o
inspirada na escola moderna ra- feijão, arroz, farinha, frangos, carne
cional, tendo como professor Jo- de porco e toucinho o que tornava
seph Revier, imigrante anarquista, imprescindível o trabalho da mulher
também colaborador do jornal. e das crianças. (CARMO, 2006, p.5)
(BOSCHETTI; FERREIRA, 2009, p. 8).
A análise das publicações revela
A pauta do O Operário, poderia que, paralelamente, o jornal trazia orien-
ser iden ficada por eixos bem definidos. tações relacionadas à saúde e à higiene.
O principal deles abordava questões Era comum encontrar em suas páginas
relacionadas à educação e à instrução, abordagens sobre o alcoolismo, o areja-
O jornal man nha constantes suas preo- mento das casas, o u lização adequada
cupações com temá cas e preocupações da água. Havia um caráter de denúncia
sociopolí cas tais como a poli zação explícita quanto às condições de traba-
da classe operária, a importância das lho, com ênfase no trabalho da mulher e
associações de classe, a legislação per- das crianças. Com Carmo (2006), registra:
nente ao trabalho e aos trabalhadores,
A jornada de trabalho em que fa-
questões essas consideradas em corre-
ziam parte os menores era outro
lação com os assuntos do trabalho, das aspecto denunciado pelo jornal. Ha-
organizações operárias, da higiene e da via longas jornadas de trabalho que
saúde pública, da religião e família. se estendiam entre 12 a 15 horas
A primeira implicação a ser obser- diárias num regime intenso, haven-
vada é a questão salarial, dentro do paradas de meia hora em média
da moderna indústria, onde ocorre para o almoço. Nessa longa jornada
a venda da força de trabalho em de trabalho há três fatores presen-
forma de pagamento caracterís ca tes degradantes quando olhado
principal e fundamental para modo pela ó ca humanís ca. Primeiro o
de produção capitalista. Segundo o aumento do processo de exploração
jornal O Operário a média salarial advindo pelo aumento da jornada
na indústria têx l era de 40$000 de trabalho em que tudo era feito
réis para homens adultos e 17$000 em nome do progresso. Segundo,
réis para os menores em 1911. 17 essa condição esgotava a saúde das
Segundo Silva, (2000) os dados de crianças, que cresciam macilentas
projeção dos gastos para a manu- por causa da insalubridade local de
tenção familiar composta de quatro trabalho e da má alimentação [...].
pessoas (homem mulher e dois ou ainda,
filhos) já a ngia o salário mensal
ganho. Só com a necessidade da no geral as mulheres trabalhavam
alimentação o gasto é de uma e produziam em quantidade de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 295-307, jan./jun. 2014. 301


tempo, igualmente, aos homens. A longo de séculos de civilização, em todas
discriminação do trabalho feminino as partes do mundo.
passa pelo valor da remuneração, Num contexto como o do traba-
por receberem, pelo mesmo tra- lho e da militância política, algumas
balho que realizavam os homens o
colocações mereciam destaque tanto
valor inferior quando comparado
pela virulência do ataque, quanto pelas
a remuneração masculina. Um
outro aspecto denunciado pelo O reações que provocavam nos meios mais
Operário eram os abusos que as tradicionais:
mulheres sofriam no ambiente de A verdadeira mãe, a mãe ideal,
trabalho vindos dos seus adminis- diferente destes pos, prepara os
tradores, mestres e contramestres seus filhos ao trabalho, ensina-lhe
e até mesmo pelos companheiros o sacrifício. Esta é a verdadeira
de trabalho. (CARMO, 2006, p.7,8) mãe anarchista [...] que [...] não
Com o tempo começaram a se escolherá para sua filha um ma-
rido usurpador e perverso... não
apresentar as ar culistas femininas.
ambiciona para seus filhos e seu
Muitas delas escrevendo anoni- companheiro, cargas de cruzes,
mamente, outras usando pseudônimos diplomas e galões que dão o direito
(até masculinos) as mulheres ar culis- de explorar o trabalho dos a outros
tas faziam parte de reduzido grupo de [...] este po de mãe anarchica é o
militância anarquista. Era comum ao sonho de todos os corações bons, a
movimento feminista do período, mes- luz da humanidade nova, fundada
mo quando propagava a igualdade de sobre as bases do trabalho e do
direitos, manter a questão das diferenças amor. Na mulher anarchica está pois
no âmbito da visão biológica da qual a salvação do mundo. (O Operário,
12/03/1913, p. 1).
derivava então, uma fragilidade sica e
intelectual. Essa concepção permi a a Importante ressaltar que , para
aceitação de uma série de estereo pias, essas ar culistas , a questão social se co-
reforçadas por todo um contexto social locava de maneira mais ampla, associan-
de representações das quais a mulher do à emancipação, a necessidade de se
emergia como modelar força de recato, atender outras prioridades importantes
dedicação, altruísmo, maternidade na- como aumento de salário, redução da
tural e submissão. jornada de trabalho e instrução.
Fugindo, ora das influências con- O eixo da educação e da instru-
vencionais da cultura de uma socieda- ção, man nha-se na dinâmica con nua
de conservadora, ora das imposições do jornal, diversificando em vertentes
religiosas, as ar culistas eram par cu- do conceito principal. Nesse tópico
larmente incisivas nos seus argumentos discu a-se não apenas o modelo ideal
e contrárias às injus ças construídas ao de escola, mas também idealizadores,

302 Vania Regina BOSCHETTI. O velho Jornal: voz dos anseios socioeduca vos em Sorocaba...
possibilidades de implantação, alfabe- Aspectos voltados para o bem estar da
zação, formação profissional, cons - criança estavam elencados em seus
tuição da família operária, educação da pressupostos, como: material didá co
infância, escola noturna. adequado, iluminação das salas, ven -
Para os responsáveis pelo jornal, lação dos ambientes de estudo. Alertava
assim como para seus colaboradores e ainda para prá cas de intercâmbio entre
ar culistas, trazer essa linha de discus- os alunos e escolas, visitas à museus e
são para as suas páginas era disseminar fábricas, idas ao teatro, par cipação em
entre os leitores uma bandeira que de- conferências, debates entre alunos e
nunciava a discriminação, o preconceito, professores sobre as a vidades desen-
as redes de poder inerentes à estrutura volvidas.
da cidade e do país e a injus ça presente Seus pensamentos estavam cons-
nas diferentes funções e posições de- tantemente impressos e divulgados pelo
sempenhadas pelo cidadão. jornal e, suas propostas passaram a ser
Os argumentos em prol da educa- conhecidas pelos leitores, divulgadas
ção estavam direcionados à instrução de pelos comentários e entendidas como
toda a classe trabalhadora: das crianças, parte de um universo mais abrangente
dos jovens e sua preparação para o traba- e significa vo. Ferrer apresentava suas
lho e dos adultos alijados do processo e concepções educa vas ultrapassando
que se cons tuíam em grande con ngen- as paredes da escola e se realizando
te de analfabetos. Tais argumentos não também por meio da organização de
deixavam de contextualizar a adaptação bibliotecas, produção de textos para
de horários e per nência dos estudos jornais operários e panfletos, cursos
para o desenvolvimento pessoal e social. variados à serviço das necessidades e
Referência constante no O Operá- aprimoramentos humanos e sociais.
rio era Ferrer, educador catalão do sé- A proposta educacional de Ferrer,
culo XIX, que defendeu com a vida seus fiel aos princípios racionais, nha por
pressupostos teóricos sobre educação base as ciências naturais, o afastamento
e sociedade. Fundador de La Escuela do ensino religioso, a liberdade, a igual-
Moderna de Barcelona, Espanha, e dade, a educação integral (ar culando a
afinado com os ideais do racionalismo aprendizagem tradicionalmente realiza-
pedagógico, inovou as reflexões sobre da mais a vidades manuais), a educação
as teorias educacionais pra cadas, de- universal. Era uma forma de educar a
dicando especial preocupação para o criança por meio de novo paradigma
atendimento metodológico que deveria social e cole vo que permi ria ao aluno,
possuir a escola visando a criança. Abriu desde pequeno conseguir o desenvolvi-
um movimento social pela educação mento de suas potencialidades.
apontando necessidades até então des- Em Sorocaba, sobremaneira, esses
cartadas pelos modelos convencionais. obje vos faziam eco. A cidade a par r

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 295-307, jan./jun. 2014. 303


de suas frentes de trabalho industrial, Nesse aspecto era lembrado que a
apresentava uma pequena multidão própria frequência às aulas da Escola No-
de crianças que compunham as frentes turna, principalmente para os trabalha-
de trabalho nas fábricas. Analfabetas, dores analfabetos, também estava ar -
trabalhavam por remuneração irrisória, culada à redução do período de trabalho:
mais de dez horas por dia, em ambiente de nada adiantava a oferta se, a extensão
insalubre. O direito da criança ao estudo dos horários das fábricas, impossibilita-
privilegiava as reivindicações, mesmo va aos interessados chegar à escola em
considerando a necessidade de seu horário apropriado aos cumprimento
trabalho no contexto das necessidades das atividades de aprendizagem. “Os
domés cas.” A verdadeira mãe , a mãe operários vivem amordaçados... existem
ideal, diferente destes pos (referência em Sorocaba fábricas que trabalham
à mãe burguesa) prepara os seus filhos 15 horas por dia... o operário precisa
para o trabalho, ensina-lhe o sacri cio”... de descanso para se instruir, cuidar da
(O OPERÁRIO, 12/03/1913, p. 1) . Por educação de seus filhos... para que eles
isso mesmo, os pedidos pela redução vejam a luz da verdade e da razão...” (O
da jornada de trabalho se vinculavam à Operário, 03/05/1911, p. 1).
educação: uma menor carga horária nos Concluindo, oportuno observar
turnos de trabalho, liberaria as crianças que as reflexões apresentadas neste
para a frequência às aulas. ar go, não veram a intenção de esta-
Em ar go não assinado, O Operá- belecer considerações defini vas sobre
rio de 24 de setembro de 1910, em sua a questão do uso de periódicos para a
página 2, alguém denunciava: pesquisa, nem de construir uma gran-
de estudo sobre o jornal O Operário e
Ah! Mais por isso devemos traba- suas interferências na vida da cidade de
lhar, pela victoria de nossa causa, Sorocaba. Na verdade, tem o intuito de
devemos luctar pelas 8 horas de tra- mostrar, juntamente com tantos outros
balho, pois, com a diminuição nos de abordagem similar, como é impor-
seus trabalhos, eles terão tempo
tante ao pesquisador estar atento às
pra se instruir, para aprender a dis-
nguir o bem do mal. [...] mandar
possibilidades de inves gação quando o
instruir uma creança é a obra mais assunto é a educação em seu contexto
santa que podemos pra car na nos- histórico.
sa vida. O operariado precisa de ins- A pesquisa, hoje, oferece, em suas
trucção para não ser explorado. Por muitas interfaces, bastante significa vas
que nos exploram os burgueses? e válidas para o pesquisador e a quem se
Não é pela nossa falta de preparo interessa pela sua pesquisa, um conjunto
para protestarmos? [...] Queremos de frentes de entendimento e de com-
a liberdade e a instrucção de nossos preensão. São, sem dúvida, as próprias
filhos. (In: BARREIRA, 2005, p. 199). fontes, muitas vezes os próprios objetos

304 Vania Regina BOSCHETTI. O velho Jornal: voz dos anseios socioeduca vos em Sorocaba...
de indagação e de questionamento, o uso de jornais, revistas, folhe ns e
dadas as formas como se abrem às pos- edições ilustradas (CALONGA, 2012).
sibilidades das indagações e às hipóteses O uso da imprensa na pesquisa foi
de estudo. assim de capital importância pois per-
Oficialmente, a existência dos mo- mi u desvelar elementos que à época,
vimentos anarquistas, adeptos e simpa - não seriam revelados de outra forma.
zantes não foi contemplada pela história Por exemplo, como conhecer Ferrer, fora
oficial. Quando no ciado pela imprensa dos seus redutos se não pelas páginas
convencional, par dária (referindo-se do jornal? Como se fazer a divulgação
aqui aos periódicos fundados sob o extensiva das ideias feministas e an cle-
costume das grandes cidades onde os ricais numa cidade conservadora, se não
par dos polí cos publicavam suas ideias pelas páginas de um jornal de público fiel
em periódicos próprios), de expressiva e segmentado socialmente? Onde se-
ragem e, via de regra, defensores da riam apresentadas as denúncias de maus
formação moral e cívica na manuten- tratos no trabalho e exploração, a não
ção das estruturas conservadoras da ser pela no cia “corriqueira” e torná-la
sociedade. Por isso mesmo evitavam do conhecimento dos que atuavam em
detalhar os acontecimentos que fugiam outras esferas trabalhistas?
ao padrão do desejável. Contestação, Jornais como O Operário têm
greves, manifestações, mereciam pouca permi do uma concretude à pesquisa
cobertura e, não ocupavam o espaços ao par r de uma realidade obje va e
desses jornais. Quando por ventura eram de uma ação obje va, que não se limita
noticiadas, faltava-lhes objetividade, aos parâmetros exigidos na exclusiva
clareza e isenção ao tratar do assunto e validade dos documentos, soberanos
da problemá ca em sua origem e causa, por longo tempo como referenciais e
ficando muitas vezes no âmbito do fato fonte. Permite contemporizar os fatos,
isolado apresentado como fenômeno entender as causa e, acompanhar o de-
rude. senrolar dos acontecimentos por meio
A utilização do O Operário no da con nuidade dos fatos. Permite tam-
desenrolar do ar go, bem ilustra tais bém considerá-la como fator existencial
considerações. Num primeiro momento numa rede de existências humanas nas
ressalta a u lização do periódico como quais posicionamentos, relações, hie-
fonte de pesquisa aproveitando a verten- rarquias e comandos se estabelecem,
te cultural que considera de validade a entram e conflitos e, quando possível e
inserção dos impressos na produção da necessário, estabelecem acordos.
historiografia brasileira, especialmente

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 295-307, jan./jun. 2014. 305


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Fonte Primária
O Operário. Edições de 1909 a 1913. Gabinete de Leitura Sorocabano. Sorocaba, São Paulo.

Recebido em março de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 295-307, jan./jun. 2014. 307


Tecnologias sociais e a educação para a práxis
sociocomunitária
Social technologies and educaƟon for the
communitarian praxis
Renato Kraide Soffner*
* Doutor em Educação pela UNICAMP. Pesquisador
permanente do PPGE do UNISAL (Centro Universitário
Salesiano de São Paulo). E-mail: rksoffner@uol.com.br

Resumo
O presente trabalho trata de revisão e atualização do tema tecnologias sociais do ponto de vista
educa vo, sendo uma abordagem teórica que propõe futuras a vidades prá cas de implementação
das ideias aqui discu das, do ponto de vista de educação para a práxis sociocomunitária, suportada
pela tecnologia. Pretendemos que este trabalho gere informação significa va para agentes educa-
vos e pesquisadores que queiram dar sequência à inves gação do tema, e mesmo sua aplicação.
Apresentamos aqui referências avalia vas para ações educacionais que possam ser desenvolvidas
por agentes e centros comunitários, ONG’s (organizações não governamentais), sindicatos, par dos
polí cos, igrejas e educadores sociais, ações estas entendidas como práxis, onde a teoria afeta a
prá ca, num processo de crescimento da pessoa e da comunidade.
Palavras-chave
Tecnologias sociais. Educação. Práxis.

Abstract
The present work deals with the revision and update of the theme social technologies from the
point of view of educa on, being a theore cal approach that proposes future prac cal ac vi es for
the implementa on of the ideas discussed here, from the point of view of the educa onal commu-
nitarian praxis, supported by technology. We want this work to generate meaningful informa on
for educa onal agents and researchers who want to give sequence to research on this subject, and
even its applica on. We present here references to the evalua on of educa onal ac ons that may
be conducted by community centers, NGOs (nongovernmental organiza ons), trade unions, poli cal
par es, churches and social educators, these ac ons understood as praxis, where the theory affects
the prac ce, in a process of growth of the person and the community.
Key words
Social technologies. Educa on. Praxis.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 309-319, jan./jun. 2014
Introdução É natural, portanto, que pensemos
na contribuição que os processos não
Never doubt that a small group of formais de educação possam dar a tão
though ul, commi ed ci zens can preocupante situação.
change the world; indeed, it’s the
Queremos, aqui, defender a visão
only thing that ever has.
sociocomunitária da educação, e mais,
-- Margaret Mead1
do papel de suporte que as modernas
tecnologias de informação e comuni-
A educação oficial brasileira pas-
cação possam oferecer aos processos
sa por um momento de desconforto
não formais de educação de cunho
quando ques onada em reação a reais
comunitário.
resultados advindos de todas as polí cas
Educação sociocomunitária, nes-
públicas de educação e inves mentos
te trabalho, trata da comunidade, da
realizados pelos governos recentes. A
sociedade brasileira se preocupa com o transformação social, da emancipação
des no dado aos recursos de educação, e da autonomia. Inves ga a ar culação
não apenas quantitativamente, mas comunitária de caráter emancipatório ou
qualita vamente. instrumentalizado, que se expressa por
Do ponto de vista do professor, meio de intervenções educa vas para a
Ga e Barreto (2009) mostram que as consecução de transformações sociais.
diversas tenta vas de valorização dos Não busca resolver todos os pro-
professores brasileiros, empreendidas blemas sociais e educa vos, mas pro-
nos úl mos anos pelo governo federal, blema zar as possibilidades de eman-
estados e municípios, contando inclusive cipação de comunidades e pessoas
com o apoio financeiro da CAPES para a (transformação social intencional).
formação específica de profissionais do O conteúdo e as ideias aqui apre-
magistério da Educação Básica, infeliz- sentados são fruto do trabalho inves ga-
mente não tem gerado os resultados que vo que o Programa de Pós-Graduação
seriam de se esperar. As avaliações con- em Educação do Centro Universitário
nuas revelam um baixo desempenho Salesiano de São Paulo (UNISAL), que
educacional e um grande problema a ser tem por área de concentração a Educa-
enfrentado, se o país quiser se juntar às ção Sociocomunitária, já apresenta em
nações que inves ram pesadamente em seu projeto de pesquisa em Tecnologias
educação, mas com retorno visível em Sociais Educa vas, subordinado à Linha
termos de resultados tangíveis. de Pesquisa “A Intervenção Educa va
Sociocomunitária: Linguagem, Intersub-
1
“Nunca duvide que um pequeno grupo de je vidade e Práxis”.
cidadãos preocupados e comprome dos pode
mudar o mundo; na verdade, é a única coisa que
já se tem” (tradução do autor).

310 Renato Kraide SOFFNER. Tecnologias sociais e a educação para a práxis sociocomunitária
Tecnologias sociais e práxis por Lênin em sua proposta de teoria
pedagógica, e fazem do aprendente
Este trabalho trata do tema tecno- alguém que par cipa da prá ca e gera
logias sociais do ponto de vista educa- os resultados desejados a par r do pro-
vo, propondo possibilidades de ações cesso educa vo (GADOTTI, 1998).
futuras embasadas num levantamento Além da escola, podemos citar
de conceitos e definições, e dentro dos como loci alterna vos de práxis o sindi-
limites do que Gado (1998) chamou de cato, o par do polí co, as associações
pedagogia da práxis, da ação transforma- comunitárias, as igrejas, e os movimen-
dora. Práxis, em grego, quer dizer ação, tos sociais e populares. Assim,
mas não queremos reduzir sua proposta
Os sistemas educacionais ainda não
àquela apresentada pela pedagogia
conseguiram avaliar o poder da
pragmá ca, representada no Brasil pela
comunicação audiovisual e da infor-
Escola Nova de Anísio Teixeira, por sua má ca, seja para informar, seja para
vez baseada no pragma smo de John bitolar as mentes. Trabalhamos
Dewey. Práxis não quer dizer apenas uma ainda com recursos tradicionais
ação u litária, que reduz o verdadeiro ao que não têm apelo para as crianças
ú l. Propõe, na verdade, uma pedagogia e jovens [...] É preciso mudar pro-
da educação transformadora, acima até fundamente os métodos de ensino
da tradição marxista. para reservar ao cérebro humano
Toda pedagogia se pretende prá - o que lhe é peculiar – a capacidade
ca, pois é ciência da educação (Gado , de pensar – em vez de desenvolver
1998, p. 3). Mas é prá ca teórica, pois a memória. A função da escola
descobre e elabora instrumentos de consiste em ensinar a pensar cri ca-
mente. Para isso é preciso dominar
ação social, aqui chamados de tecnolo-
a linguagem, inclusive a linguagem
gias sociais. É a unidade entre a teoria
eletrônica. (GADOTTI, 1998, p. 304).
e a prá ca.
Em pedagogia a prá ca é o hori- Gadotti acredita que a difusão
zonte, a finalidade da teoria. O educador de conhecimento por meios de massa,
vive a dialé ca entre o seu co diano da como proposto por McLuhan, não ocor-
escola vivida, e a escola projetada. O reu da forma imaginada; no entanto,
homem educado é o ponto de chegada, acredita que as novas tecnologias pos-
a promessa. A educação que copia e re- sam ser u lizadas para se a ngir este ob-
produz modelos não deixa de ser práxis, je vo. A educação formal aliada a novas
mas se limita a uma práxis reitera va, tecnologias, formando sujeitos crí cos.
imita va, burocra zada. Aquela trans- Para o autor, o professor moderno deve
formadora é criadora, ousada, crí ca e ser consciente de seu tempo e dos recur-
reflexiva, parte da auto-organização e do sos à sua disposição, com visão eman-
trabalho cole vo, tradições defendidas cipadora, em busca de mudança, de

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 309-319, jan./jun. 2014. 311


práxis, de cidadania, de sustentabilidade. mediador do conhecimento. Gestor é
Deve estar apto a u lizar as ferramentas organizador, mediador, coordenador, e
que reforçam o poder multiplicador não “gerente”. Por que aprender, para
das tecnologias sociais. Deve, também, quê, contra quê, contra quem – eis as
conhecer as possibilidades da educação questões a serem respondidas. A educa-
fora da escola e da sala de aula, como ção nunca é neutra. Deve-se, portanto,
potenciais complementos e aliados da aprender a pensar, não a reproduzir.
educação formal. Deve entender que Transformar. Qual é o sen do do que
as tecnologias sociais vêm da base da ensino, ou do que aprendo? O novo
sociedade, como inversão polí ca em professor aprende em rede (ciberespaço
relação ao domínio vindo de fora. da formação), sem hierarquias, coopera-
Gado também nos lembra que vamente, colabora vamente, de forma
Paulo Freire desenvolveu como tecno- auto-organizada. É aprendiz permanen-
logia social a questão do protagonismo te, organizador do trabalho discente.
da comunidade, respeitando-se o saber Assim, as novas tecnologias cria-
do beneficiado e o beneficiado se apro- ram novos espaços do conhecimento.
priando da tecnologia. Consumidor que Agora, além da escola, também a em-
se torna produtor de tecnologia. Aquele presa, o espaço domiciliar e o espaço
que não é apenas reprodutor e receptor, social tornaram-se educativos. Cada
mas produtor em termos de publicação. dia mais pessoas estudam em casa pois
Outra inicia va da educação po- podem, de lá, acessar o ciberespaço da
pular é a educação comunitária. Trata-se formação e da aprendizagem a distância,
de educação dos movimentos sociais e buscar “fora” – a informação disponível
populares, na luta pelos direitos civis nas redes de computadores interligados
e contra toda sorte de discriminação [...] a sociedade civil (ONGs, associações,
(GADOTTI, 1998, p. 307). Levando em sindicatos, igrejas...) [...] como espaço
consideração a aprendizagem em estado de difusão e de reconstrução de conhe-
de produção, das comunidades excluídas cimentos (GADOTTI, 2003).
do modo de produção dominante; aqui Os movimentos sociais e populares
a importância das tecnologias sociais, na têm lutado por novos modelos de vida
educação formal, não formal, e até em sustentáveis, produ vos e justos (GA-
microempresas de cunho comunitário, DOTTI, 2009, p. 57). Novos métodos, na
sem grandes vínculos oficiais. forma de tecnologias sociais, que seriam
Já do ponto de vista docente, Ga- produtos e técnicas com metodologias
do (2003, p. 53) indica que o professor reaplicáveis, desenvolvidas em interação
deixa de ser um lecionador para ser um com a comunidade e que representam
gestor do conhecimento social, aquele propostas efetivas de transformação
que seleciona a informação e dá/cons- social – a par cipação da comunidade
trói sen do para o conhecimento, um desde sua organização e implementação

312 Renato Kraide SOFFNER. Tecnologias sociais e a educação para a práxis sociocomunitária
até sua avaliação final. O autor defende a no foco de transformação social, e não
educação emancipadora, de Adorno e da apenas de provimento de tecnologia
Escola de Frankfurt, e a corresponden- (defendemos, portanto, que se evite a
te educação transformadora de Paulo confusão entre meios e fins). Por isso
Freire, que não usou o termo anterior, u lizamos o termo tecnologias sociais,
mas o u lizou como base. Também a e não apenas tecnologias educa vas.
solidariedade tem que ser alimentada Diferenciamos, portanto, a ques-
por uma técnica, ou tecnologia social. tão do simples acesso às tecnologias,
As tecnologias sociais buscam o foco dado nos úl mos anos pelos defen-
desenvolvimento autônomo das comuni- sores do conceito de ‘segregação digital’,
dades em suas diferentes demandas - ali- da necessária contextualização do tema
mentação, habitação, renda, educação, em relação à inclusão social. Inclusão
energia, saúde, meio ambiente - fazendo social, para este trabalho, traz a tônica
dialogar o saber técnico-cien fico como do acesso, adaptação e criação de novos
saber popular. Como todo conceito, está conhecimentos, por meio das novas tec-
em evolução, modificando-se e sendo nologias de informação e comunicação,
reinventado nas prá cas concretas. Po- dando assim seu caráter complementar
dem se valer do conceito de inteligência de inclusão digital.
cole va, que é a capacidade de comu- Para Bijker et al. (1989), o termo
nidades humanas evoluir na direção tecnologia tem sido sobrecarregado em
de uma harmonia e complexidade de termos de “mudança tecnológica” e “de-
ordem superior, através de mecanismos senvolvimento tecnológico”; os autores
de inovação (LÉVY, 1999). Quando as tec- apresentam um enfoque socioconstru -
nologias sociais de cunho educa vo são vista para o estudo da tecnologia, num
u lizadas em redes, suportam e encora- confronto entre as Ciências Sociais e as
jam a aprendizagem presencial e online, Tecnologias Sociais. Os autores compa-
ao mesmo tempo em que respeitam o ram o termo tecnologia com técnica da
controle individual sobre o tempo, es- mesma forma que empregamos episte-
paço, presença, a vidade e iden dade, mologia e conhecimento, ou seja, o logos
sendo, portanto, ferramentas de práxis como discurso.
tecnológica. Para Law (1986), a tecnologia é
A hipótese de trabalho que aqui cons tuída de elementos heterogêneos:
defendemos é a de que não devemos pessoas, competências, artefatos, fenô-
sobrepor o conceito de segregação ou menos naturais. Seu emprego educa vo
divisão digital (digital divide) com o real deve considerar, portanto, todas estas
suporte a ser dado pela tecnologia (e dimensões.
em especial as tecnologias sociais) ao Mackenzie e Wajcman (1985) en-
processo de inclusão social – que, para xergam a tecnologia em três camadas,
nós, é práxis educa va e comunitária – quais sejam: a) objetos e artefatos sicos;

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 309-319, jan./jun. 2014. 313


b) a vidades ou processos; e c) o que as de polí cas públicas, que o acesso devia
pessoas sabem e fazem (“know-how”). ser amplo e de custo aceitável, embora
Para Warschauer (2004) , as a vi- pouco se compreendesse em relação
dades humanas são mediadas pela tec- ao papel de mudança, da Internet, nas
nologia, no papel de ferramentas, e são questões econômicas e sociais. Aqui
alteradas por ela. Não apenas melhoram pudemos atestar a inviabilidade das
as a tudes, mas afetam o fluxo e a es- empresas ‘dot-com’ (ponto-com), em
trutura das funções mentais (VYGOTSKY, grande parte ilusões irresponsáveis – que
1991 apud WARSCHAUER, 2004). Assim, acabaram gerando o assustador ‘estou-
comunidades de prá ca seriam redes de ro da bolha’, como chamado na época,
pessoas engajadas em aprendizagem – quando a maioria de tal nicho de orga-
não formal em geral – pois muita coisa se nizações simplesmente foi à bancarrota.
aprende fora da formalidade de um curso. Do ponto de vista societário, o conceito
Heidegger (1977) definiu tecnolo- de ciberespaço, aclamado como uma
gia com uma ordenação do mundo com dimensão de vida diferente da habitual,
obje vos de reserva para soluções de deixou muito a desejar, a não ser pelo
problemas, e, assim, como meios para prefixo cyber u lizado na caracterização
fins. de qualquer coisa que se relacionasse às
E Warschauer (2004), ao tratar da tecnologias digitais, o que foi certamente
relação entre as tecnologias de informa- um grande desvio de real significado.2 A
ção e comunicação e a inclusão social, visão o mista do tema pode ser encon-
defende a visão de que não existe mais trada em Barlow (1996)3.
uma ‘divisão digital’ (digital divide), ou Warschauer não acredita que o
seja, uma distância entre quem tem e tema ‘inclusão digital’ seja binário, ou
quem não tem acesso a computadores e seja, “ter ou não-ter” como única possi-
à Internet, que geraria exclusão social do bilidade de explicação da questão social;
ponto de vista de oportunidades de aces-
so; o que existe, na verdade, é uma in-
2
compreensão em relação ao fato de que O termo e o conceito de cyberspace foram
cunhados por William Gibson, na obra Neu-
apenas fornecer hardware e so ware, e
romancer. Aqui se cria a perspec va de uma
não trabalhar sistemas humanos e sociais realidade paralela, que mo vou os defensores
(que precisam mudar), não gera efeitos da larga utilização das novas tecnologias de
expressivos na aplicação de tecnologia às informação e comunicação de rede, surgidas na
comunidades, como já discu do acima. década de 1990, a ampliar de forma excessiva o
conceito e sua aplicabilidade.
O conceito de ‘digital divide’ surgiu em
3
meados da década de 1990, nos Estados Barlow é o autor da famosa Declaração de
Independência do Ciberespaço, onde conclama
Unidos, fruto do momento de plena os governos do mundo industrial a abrir mão da
expansão da Internet; defendia-se de hegemonia clássica que de veram até o advento
forma ampla, inclusive por intermédio da Internet.

314 Renato Kraide SOFFNER. Tecnologias sociais e a educação para a práxis sociocomunitária
existem hoje amplas possibilidades de fundamental seu suporte aos processos
acesso a computadores e à Internet, educa vos (e-learning ou aprendizagem
mesmo por camadas da população que por meios eletrônicos, e outros), que
não possuem condições de propriedade aqui trataremos do ponto de vista de
de tais meios; citem-se, como exemplo, práxis educativa, fator primordial de
os cybercafés, as LAN Houses, os Centros inclusão social.
de Inclusão Digital comunitários, os As bases desta visão dual das
sindicatos, os Correios, e tantos outros novas tecnologias de informação e co-
pontos de acesso à informação e aos municação, ainda de acordo com Wars-
recursos computacionais. Cita exemplos chauer (2004), são: a) o surgimento de
de inicia vas de amplo acesso na Índia, uma economia baseada em informação e
Irlanda e Egito, onde a simples dispo- conectada em rede; b) o papel das novas
nibilidade dos meios não foi suficiente tecnologias da informação e comunica-
para trazer reais mudanças práxicas nas ção neste novo cenário mundial; e c) a
comunidades onde foram implantados. visão de que o acesso a estas tecnologias
E propõe a seguinte questão: exis- pode determinar a diferença entre a
ria uma relação de causa e efeito, do marginalização e a inclusão nesta nova
po: “a falta de acesso causa danos às era socioeconômica (WARSCHAUER,
oportunidades de vida”; ou, o contrário: 2004, p. 12).
“quem tem poucos recursos tem pouco O informacionalismo (por alguns
acesso aos computadores e à Internet”? chamado de pós-industrialismo) foi
O assunto parece polêmico e passível de definido por Castells (2000) como o
amplas e discordantes opiniões. surgimento de um novo estágio do
Não queremos, no entanto, des- capitalismo global, após a invenção do
prezar a importância das novas tecno- transistor, do computador pessoal e das
logias em seu papel gerador de oportu- telecomunicações. Algo maior, portanto,
nidades numa sociedade informacional: que a simples ocorrência da Internet,
que fiquem bem claros, desde já, nosso que seria parte de um processo maior,
entendimento e diferenciação entre o e não seu habilitador4.
papel de simples acesso às tecnologias,
que criticamos, com aquele do uso
práxico, que aqui denominaremos de 4
Castells enxerga quatro características no
práxis tecnológica. Reconhecemos que Informacionalismo: a) o papel da ciência e da
a tecnologia digital moderna mudou, tecnologia para o crescimento econômico; b)
em certos aspectos, o mundo; e além desvio do foco da produção material para o
da influência econômica e polí ca que processamento de informação; c) a emergência
e expansão de novas formas de organizações in-
a Internet e os computadores digitais dustriais conectadas em rede; e d) o surgimento
permitiram (comércio eletrônico, go- da globalização socioeconômica (CASTELLS, 1993
verno eletrônico), reconhecemos como apud WARSCHAUER, 2004, p. 13).

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 309-319, jan./jun. 2014. 315


Falar de inclusão social do ponto dizagem compartilhada e interativa/
de vista do enfoque digital envolve re- colabora va.
cursos sociais, humanos, sicos e digi- Os autores propõem,
tais, num contexto econômico, social e 1) Uso cria vo e desenvolvimento
tecnológico - modelo de acesso, e, em
de novas tecnologias para a aprendiza-
especial para os fins deste trabalho, as
gem e pesquisa;
estruturas sociais e ins tucionais edu-
2) Entendimento crí co do papel
ca vas (WARSCHAUER, 2004). Inclusão
das novas mídias na vida, aprendizagem
social é, portanto, a proporção na qual
e sociedade/comunidades;
indivíduos, famílias e comunidades es-
3) Avanços pedagógicos dos obje-
tão aptos a par cipar plenamente da
vos de aprendizagem par cipatórios.
sociedade e controlar seus destinos:
finanças, emprego, saúde, educação, Os autores defendem a visão de
abrigo, recreação, cultura, cidadania ‘digital divide’, citando seu autor, Bharat
(WARSCHAUER, 2004). E pode, certa- Mehra: “digital divide is the troubling gap
mente, ter o apoio da inclusão digital. between those who use the computers
Como previsto por Maslow, as ne- and the Internet and those who do not”5
cessidades humanas categorizadas são: (MEHRA et al, 2004). As novas tecnolo-
gias de Informação e comunicação te-
- fisiológicas: comida, abrigo (so-
riam, portanto, par cipação em comuni-
brevivência);
dades virtuais, para compar lhar ideias,
- Segurança: distância do perigo
comentar projetos, planejar, projetar,
sico;
implementar, discu r prá cas, metas e
- Pertencimento: amigos e afeição;
ideias. Os ambientes de aprendizagem
- Es ma: autorrespeito e a es ma
estariam à disposição de pares, famílias,
de outros;
ins tuições sociais (escolas, centros co-
- Autorrealização: ser tudo o que
munitários, bibliotecas, museus).
se pode ser, em termos de talentos e
Podemos, desta forma, pensar
potencialidades.
a interface entre as novas tecnologias
Podemos pensar estas propostas da informação e da comunicação e o
do ponto de vista de uma comunidade. desenvolvimento de uma comunidade,
Para Davidson e Goldberg (2009), exatamente o que pretendemos quando
a era da informação em que vivemos falamos de práxis comunitária com o
pode ser pensada dos níveis concei- suporte da tecnologia (práxis tecnoló-
tual e metodológico; a aprendizagem gica e sociocomunitária). A práxis aqui
num momento epistêmico em que ela
em si mesma é o meio mais dramá co 5
“A divisão digital é o espaço entre aqueles que
daquela mudança. Tecnologia não é re- usam computadores e a Internet, e aquele que
volução, mas o potencial para a apren- não os u lizam” (tradução do autor).

316 Renato Kraide SOFFNER. Tecnologias sociais e a educação para a práxis sociocomunitária
trabalhada é, portanto, aquela associada as da comunidade. Pelos princípios da
à melhoria da vida das pessoas por meio Pedagogia Crí ca, os aprendentes em
do emprego de tecnologias de informa- rede definiriam seus problemas base-
ção e comunicação. Baseia-se nas defini- ados em necessidades sociais (família,
ções de capital humano (conhecimentos, comunidade), o que deveria gerar ação,
habilidades e a tudes), de capital sico dentro da visão de Paulo Freire. Os mo-
(financeiro) e de capital social, que se- vimentos populares e a educação comu-
riam as relações sociais e a confiança nitária são as saídas para a melhoria das
advinda destas (ou seja, a capacidade condições de vida das pessoas menos
de indivíduos gerarem bene cios a par r favorecidas em sociedades capitalistas,
de relacionamentos pessoais e da par - e sua conquista por direitos, ficando
cipação em redes e estruturas sociais, visível o papel das tecnologias sociais
buscando apoio, suporte, oportunidades educa vas neste processo.
[WARSCHAUER, 2004]). Para Caliman (2012)6 , tecnologias
Uma comunidade gera capital educacionais são aquelas que geral re-
social cole vo, dado o potencial associa- sultado em termos de projetos na área
vo que toda rede de pessoas fornece. É da pedagogia social, sendo esta definida
nossa missão, aqui, pensar tal potencial como uma ciência que produz tecnolo-
gerado em rede do ponto de vista de gia educacional, por meio de métodos,
conexões tecnológicas, ou seja, as redes técnicas, soluções para problemas
sociais de fundo eletrônico e digital, e encontrados pelas pessoas, sobretudo
sua relação com as caracterís cas prá- crianças e jovens; e que se dirige em
xicas de uma comunidade. direção à melhoria da qualidade de vida
Para uma rede social, ou de ele- dos indivíduos e grupos, e do desenvol-
mentos sociais, quanto maior o grau de vimento educa vo integral das pessoas
conexão, maior seu poder. Os envolvidas na transformação social do
Telecentros (Centros de Inclusão Digital), ambiente ao qual se aplica.
ou Centros de Tecnologia Comunitários,
deveriam ser u lizados, então, para o Considerações finais
desenvolvimento da comunidade, e não
apenas para acesso (como visto ante- As tecnologias sociais educa vas
riormente): conteúdo online, cidades e podem se cons tuir em meio privilegia-
serviços públicos digitais, oportunidades do de construção da autonomia social
de trabalho, par cipação social e econô- entendida como o processo em que se
mica das pessoas, educação não formal relacionam os âmbitos econômico, social
e formal (EJA – Educação de Jovens e e cultural, e por meio das quais sujeitos
Adultos), a vismo virtual, empodera-
mento de pessoas de baixa renda; mas, 6
CALIMAN, Geraldo. Comunicação pessoal em
sobretudo, a conexão massiva de pesso- novembro de 2011.

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 309-319, jan./jun. 2014. 317


históricos se associam e vão produzin- racionalidade burocrá ca e os direitos
do sua identidade como agentes das conquistados pela cidadania.
prá cas que lhes dizem respeito na vida Este trabalho se jus ficou quan-
cotidiana, tendo como característica do inves gou as condições da práxis
principal a capacidade de administrar educativa apoiadas por tecnologias
suas vidas com independência e cri ci- sociais que podem intensificar esses
dade. Entendido o comunitário como o processos de autonomia e cidadania.
predomínio das relações de interesses É, portanto, a par r da concepção de
comuns, com caracterís cas de intersub- práxis e derivando dela o conceito de
je vidade propiciadoras de modalidades autonomia social e da educação como
organizacionais que podem construir apropriação-construção de conheci-
a autonomia, e entendido o societário mentos socialmente significa vos que
contemporâneo como a expressão da se busca a formulação das questões e
convivência caracterizada pelo conflito do modo de respondê-las no âmbito de
entre a norma zação instaurada pela futuros trabalhos no tema.

Referências
BARLOW, J. P. Declara on of independence of cyberspace. 1996. Disponível em <h ps://
projects.eff.org/~barlow/Declara on-Final.html>
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DAVIDSON , C. N.; GOLDBERG, D. T. The future of learning ins tu ons in a digital age.
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GADOTTI, Moacir. Boniteza de um sonho: ensinar-e-aprender com sen do. Novo Hamburgo,
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______. Economia solidária como práxis pedagógica. São Paulo: Ins tuto Paulo Freire, 2009.
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GATTI, Bernadete Angelina; BARRETO, Elba Siqueira de Sá (Coord.). Professores do Brasil:
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LAW, J. Power, ac on and belief: a new sociology of knowledge? Sociological Review Mono-
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318 Renato Kraide SOFFNER. Tecnologias sociais e a educação para a práxis sociocomunitária
LÉVY, Pierre. A inteligência cole va. São Paulo: Loyola, 1999.
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WARSCHAUER, M. Technology and social inclusion: rethinking the digital divide. Cambridge:
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Recebido em agosto de 2013


Aprovado para publicação em dezembro de 2013

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 309-319, jan./jun. 2014. 319


Resenha
Pesquisar, bricolar, reinventar e subverter
Research, bricolage, redo and transform
Genivaldo Frois Scaramuzza
Professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR),
Departamento de Educação Intercultural. Doutorando
em Educação pela UCDB. Bolsista PROSUP/CAPES.
E-mail: scaramuzza1@gmail.com

MEYER, Dogmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (Org.). Metodologias de pes-


quisas pós-crí cas em educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012.

A obra Metodologias de pesquisas Parafraseando Gastaldo, a obra


pós-crí cas em educação, organizada refere-se à possibilidade que temos em
por Marlucy Alves Paraíso, professora da mãos de observar de perto a forma como
Faculdade de Educação da Universidade pesquisadoras e pesquisadores, vincu-
Federal de Minas Gerais (UFMG), e Dag- lados principalmente aos Programas de
mar Estermann Meyer, docente do Pro- Pós-Graduação em Educação da UFMG
grama de Pós-Graduação em Educação e UFRGS, compar lham conosco seus
da Universidade Federal do Rio Grande mapas conceituais, suas rotas de “nave-
do Sul (UFRGS), traz juntamente com gação” pelas quais nos permitem “vele-
as reflexões das organizadoras, outros jar” nos mares inquietos da pesquisa. De
treze autores que ins ga-nos a observar modo geral, os capítulos que compõe a
a forma como reinventam técnicas, re- obra, estruturam-se de forma harmôni-
organizam teorias, subvertem modelos e ca, e, apesar de versarem elementos e
problema zam as possibilidades de pes- estratégias de pesquisas dis ntas, não
quisas em uma perspec va pós-crí ca perdem a coerência com a perspec va
em educação. Já no prefácio, produzido pós-crí ca que apresentam. Produzem
por Denise Gastaldo, é possível compre- a flexibilização dos instrumentos, das
endermos que o livro refere-se à possi- ferramentas de pesquisas, contestan-
bilidade de “envolver-se na ambivalente do o “caráter norma vo dos métodos
tarefa de explorar modos alterna vos de de pesquisas” canônicos con dos nos
pensar, falar e potencialmente fazer de- manuais. É com este ímpeto que as or-
terminadas prá cas sociais e, concomi- ganizadoras da obra, Dagmar Estermam
tantemente, remodelar as metodologias Meyer e Marlucy Alves Paraiso, expõem
de pesquisas” (p. 10). no texto de apresentação – Metodolo-

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 37, p. 323-327, jan./jun. 2014
gias de pesquisas pós-crí ca ou sobre fundamental para “aqueles/as que se
como fazemos nossas inves gações, os aventuram a inves gar sem ter um ca-
caminhos, as formas, os jeitos de como minho seguro a percorrer durante esse
a pesquisa se tornam um ato pedagógico processo de pesquisa” (p. 18).
não linear. Pedagógico no sen do de que Trata-se de textos produzidos em
permite pensar as metodologias como função das pesquisas de Pós-Graduação
possibilidade de condução da pesquisa dos/as autores/as e, referem-se às
para além das regras estabelecidas por experiências de pesquisas a par r das
premissas fixas e caminhos certos, mas, teorias pós-crí cas em educação. Com
como uma forma de produzir pesquisas a seriedade e rigorosidade que requer a
mais abertas, sem, contudo, perder a pesquisa acadêmica, a obra esta distribu-
rigorosidade de uma ciência séria. ída em treze capítulos que se distribuem
Alicerçado na ideia de que as em 308 páginas des nadas a desafinar
metodologias referem-se às formas de nossas “certezas” metodológicas; pro-
perguntar, as “estratégias de construir” vocar os conceitos que u lizamos para
elementos que provocam, principalmen- pesquisar, a nos produzir uma profunda
te, à instabilidade do/a pesquisador/a, irritação teórica e metodológica. Dos
as autoras mostram que os dados não textos apresentados na obra, sem per-
estão ai, disponíveis e a espera de serem der de vista a importância do conjunto,
achados, pelo contrário, devem antes de escolhemos para compor esta resenha,
tudo serem produzidos na ar culação respec vamente os capítulos três, seis,
densa com a teoria. É com esta com- nove e treze, por entender que estes
preensão que afirmam que as pesquisas materiais podem interessar ao leitor,
pós-crí cas em educação são constru- pesquisadores ou não em educação que
ídas no “gingado” do/a pesquisador/a, estão dispostos a novos desafios.
capaz de se movimentar “para lá e para
cá, de um lado para o outro, dos lados Uso da etnografia pós-moderna para
para o centro, fazendo contornos, cur- a investigação de políticas de inclusão
vas, afastando-nos, aproximando-nos” social
(p. 16).
Colocar na “zona de risco” as ver- O texto arquitetado por Karin
dades; problema zá-las, revê-las, rede- Klein e José Damico, refere-se às experi-
fini-las, contestá-las, construir novas ro- ências de doutorado destes/a autores/a
tas, explorar novos lugares, redesenhar em pesquisas a respeito das polí cas pú-
mapas, projetar direções, seguir “novos blicas de inclusão, ambas realizadas no
ventos”, mas, contudo, “focar o objeto”, Estado do Rio Grande do Sul. O trabalho
saber fazer pausas e repensar estratégias de Klein, busca inferir uma compreensão
de pesquisas é, para os/a autores/a que ampla a respeito da atuação das polí -
compõem esta obra, a característica cas de Estado voltadas para a promo-

324 Genivaldo Frois SCARAMUZZA. Pesquisar, bricolar, reinventar e subverter


ção de uma primeira infância melhor, tudo, deixar de exporem o “objeto” que
discu ndo o processo governamental capturam – as formas como as polí cas
destas polí cas nas formas de “enunciar, públicas estão implicadas em relações
educar e regular, fundamentalmente as de poder, ins tuídas em um conjunto
mulheres” (p.64), problema zando as de tessituras que servem as prá cas de
formas de governo sobre as maneiras governamento.
específicas de “exercer a maternidade”. C o m o “ fe c h a m e n t o ”, o s / a
Já o trabalho de Damico, busca com- autores/a “trazem para dentro da nar-
preender “as formas de governamento ra va do texto etnográfico, a polifonia”,
da juventude em polí cas de segurança as múltiplas vozes que compõem a
pública” (p.64), abordando as prá cas “ópera” social, suas entoações, desento-
de governamentalidade ins tuídas nas ações, graves e agudos que “marcam as
periferias da urbanidade. relações de poder”, possibilitando, deste
Ambas as pesquisas, são produzi- modo, compreender as polí cas públicas
das tendo como fundamento a u lização e os sujeitos não enquanto “en dade
do método etnográfico pós-moderno, prévia do discurso”, mas como “o próprio
que segundo os/a autores/a, e, nos efeito da discursividade” (p. 67).
casos específicos de suas pesquisas,
possibilitaram compreender como “[...] Entrevistas on-line ou algumas pistas
as polí cas de inclusão atuam também de como utilizar bate-papos virtuais
na conformação de subje vidades, ao em pesquisas na educação e na saúde
exigir o cumprimento de um conjunto
de prá cas a serem incorporadas em U lizando como lócus, lugar de
contrapar da ao usufruto de algum po produção de conhecimento as redes
de bene cio [...]” (p. 65), por parte dos sociais, principalmente o Orkut e RNA-
grupos estudados. JVHA – Rede Nacional de Adolescentes
É importante mostrar o cará- e Jovens Vivendo com HIV/AIDS, Jeane
ter polissêmico da metodologia que Félix, ins ga-nos a olhar a internet como
utilizam estes/a pesquisadores/a ao campo de produção de dados empíricos.
incorporarem no conjunto de dados Fazendo uso de ferramentas instantâ-
produzidos, a análise de documentos, neas de comunicação, a autora mostra
panfletos, narra vas, músicas, filmes, os desafios e a seriedade da pesquisa
anotações de grupos de discussões, on-line.
entrevistas, entre outros artefatos que No período de Novembro de 2010
compreendem serem importantes as a Maio de 2011, Jeane “circulou” pela
pesquisas que desenvolvem. Klein e Da- internet, conversando com jovens soro-
mico mostram a abertura metodológica, posi vos, o qual denominou em sua pes-
o caráter híbrido com que constroem os quisa de jovens+. Em função de sua tese
caminhos de suas pesquisas, sem, con- de doutorado em educação, produzida

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 323-327, jan./jun. 2014. 325


na Universidade Federal do Rio Grande de famílias atendidas pelo Programa de
do Sul (UFRGS), Jeane reinventa a forma Educação e Ação Social (Educas), dentro
clássica de fazer entrevista. Sem perder deste, um grupo de 10 mulheres-mães
de vista o peso da narra va, a autora de crianças atendidas pelo programa e
produz uma nova mistura, disponibili- que, compunha o Grupo Sala de Espera
zando uma nova rota aos “navegantes” vinculados a Universidade do Vale do Rio
das pesquisas pós-crí cas, ao juntar a dos Sinos (UNISINOS).
entrevista narra va aos textos escritos U lizando os subterfúgios da en-
nos diálogos instantâneos das redes so- trevista e, especificamente as possibili-
ciais. Mostrou que em suas entrevistas, dades do Grupo Focal, a pesquisadora
o “estar perto e estar longe podem ter mostra a necessidade constante que
significados similares e diferentes, de- temos em exercitar a suspeita. Inspirada
pendendo da situação e às vezes de um em Foucault, apresenta que “a verdade
clique no mouse” (p. 135). Cuidadosa- é produzida neste mundo e nele produz
mente, selecionou quinze comunidades efeitos” (p. 198) e, com essa máxima,
do Orkut, expôs suas intenções, “pro- a autora nos interpela: “assuma suas
vocou” os/as jovens+ a falarem de si, a intenções”; “abandone a pretensão de
narrarem “suas vivências soroposi vas e totalidade”; “adote uma postura é ca”.
os sen dos que atribuem a ela” (p. 133). Amparada nas teorias pós-cri cas, nos
Criou laços com estes/as jovens que não estudos Foucaul anos ar culado a uma
se soltaram mesmo depois de terminado visão antropológica, a pesquisadora
sua pesquisa. apresenta as formas e os desafios do
Trata-se de um texto destinado Grupo Focal, mostra o passo a passo
àqueles/e que queiram se aprofundar do uso desta metodologia em sua pes-
em pesquisas on-line, a compreender quisa, desde a composição do grupo
os trejeitos, os meandros que a pesquisa aos desdobramentos que a levaram a
em rede e na rede pode provocar, ou concluir na necessidade de “suspeitar do
seja, “a especificidade da u lização da in- próprio problema de pesquisa” (p. 213),
ternet como ferramenta de produção de convocando aqueles/as interessados/as
material empírico de pesquisa” (p. 149). a criarem “uma agenda de pesquisa que
mantenham viva a vontade de fazer a
Grupo focal na pesquisa em educação: crí ca e de transformar” (p. 213).
passo a passo teórico-metodológico
Mapas, danças, desenhos: a carto-
Devemos começar ques onando grafia como método de pesquisa em
nossas certezas, nos instiga a pensar educação
Maria Cláudia Dal`igna. A autora pro-
duz um estudo sobre a relação família- “Pesquisar é experimentar, ar-
escola, especificamente com um grupo riscar-se, deixar se perder” (p. 279),

326 Genivaldo Frois SCARAMUZZA. Pesquisar, bricolar, reinventar e subverter


evidenciou Thiago Ranniery Moreira travagância e da exploração” (p. 282). O
de Oliveira, ao expor com densidade e autor mostra a necessidade de se u lizar
leveza, as formas pelo qual se tornou a (des)territorialização nas pesquisas
um “cartógrafo em educação”. O autor em educação, observando o ritmo dos
apresenta o método, se é que podemos fluxos, dos fragmentos, sem contudo,
captar com esta palavra o jeito como tornar qualquer pesquisa em educação
cartografou “os escritos do poeta, dra- uma totalidade.
maturgo e ensaísta Antonin Artaud” (p. Aponta que os/a pesquisadores/a
284). Com seu texto, nos provoca e pro- em uma postura pós-crí ca devem pos-
duz inquietações a respeito da produção suir “olhares ciganos” pelos quais podem
de um currículo versado em imagens desconfiar da fixidez, dispor-se a desa-
do teatro, da literatura, da filosofia e da fios, aos devires. Trata-se de um texto,
geografia. destinado a provocar no/a leitor/a o
Amparado teoricamente e, princi- exercício do olhar cartográfico, provocar
palmente em Deleuze e Gua ari, Oliveira aqueles/a que compreendem que a vida
chama a atenção para o fato de que o que pulsa “não para de movimentar-se
“método” cartográfico que utiliza “é nos territórios educacionais” (p. 282),
uma figura sinuosa, que se adapta aos um texto que defini vamente não deixa
acidentes do terreno, uma figura do de mostrar que “a cartografia não dis-
desvio, do rodeio, da divagação, da ex- pensa a viagem” (p. 283).

Recebido em fevereiro de 2014


Aprovado para publicação em abril de 2014

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 37, p. 323-327, jan./jun. 2014. 327


Normas para publicação na Revista Série-Estudos –
Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação
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329
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fundamentos da área específica da Série-Estudos e que, por essa razão,
contribuam para oferecer sustentação e densidade à reflexão acadêmica.
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relevância nacional e internacional, na área específica da Educação, com o
propósito de manter o caráter de atualidade da Revista.
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tulo principal e os sub tulos das seções.

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3. Para ênfase ou destaque, no interior do texto, u lizar apenas itálico; assinalar
os parágrafos com um único toque de tabulação e dar Enter apenas no final do
parágrafo.
4. Separar tulos de seções do texto com um duplo Enter.
5. Para as citações longas, usar a fonte Times New Roman, tamanho 11, separadas
do texto principal com duplo Enter e recuo de 4 cm da margem esquerda.
6. Os ar gos que não obedecerem rigorosamente às normas de publicação serão
recusados pela forma e devolvidos com jus fica va.

Orientações para a aplicação das Normas da ABNT nas referências

Exemplos:
Livros com um autor
BONETI, L. W. Polí cas públicas por dentro. 3. ed. Rev. Ijuí: Inijuí, 2011.
Livros com dois autores
MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Metodologia do trabalho cien fico:
procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e
trabalhos cien ficos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
Livros com mais de três autores
VIGOTSKY, L. S. et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Tradução de
Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Mar ns Fontes, 1989.
ArƟgos
ZAGO, N. Do acesso à permanência no ensino superior: percursos de estudantes
universitários de camadas populares. Revista Brasileira de Educação, Rio de
Janeiro, v. 11, n. 32, p. 226-237, maio/ago. 2006.
Coletâneas
FONSECA, M. O Banco Mundial e a educação: reflexões sobre o caso brasileiro. In:
GENTILI, P. (Org.). Pedagogia da exclusão: crí ca ao neoliberalismo em educação.
Petrópolis: Vozes, 1996.
Teses
BARREIRA, L. História e historiografia: as escritas recentes da história da
educação brasileira (1971-1988). 1995. 220f. Tese (Doutorado em História da
Educação) - UNICAMP, Campinas, 1995.
Trabalhos apresentados em congressos
MALDONADO FILHO, E. A transformação de valores em preço de produção
e o fenômeno da absorção e liberação de capital produ vo. In: ENCONTRO

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NACIONAL DE ECONOMIA, 15., 1975, Salvador. Anais... Salvador: ANPEC, dez.
1975. p. 157-75.
Trabalhos em meio eletrônico
SAVIANI, D. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema
no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 14, n.
40, jan./abr. 2009. Disponível em <h p://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
ar ext&pid=S1413--24782009000100012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 01 mar.
2011.

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