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O CAMPO JURÍDICO E O CAMPO POLÍTICO: O DIREITO NA OBRA DE PIERRE

BOURDIEU

Álvaro Filipe Oxley Da Rocha *

Doutor em Direito do Estado

SUMÁRIO:  Introdução.  1. Sobre a conceituação sociológica.  2. A noção de "habitus".  3. A noção


de "campo".  4. A lógica do campo jurídico.  5. O campo político.

RESUMO: Este artigo é um esforço no sentido de estabelecer uma base conceitual


sociológica, filosófica e política, para melhor compreensão da interação entre os
agentes dos campos jurídico e político, como parte fundamental da linha de
pesquisa em que desenvolve o autor. Utiliza-se para tanto a referência conceitual
da obra de Pierre Bourdieu.

ABSTRACT: This article is an effort to explain some basic concepts on Sociology,


Philosophyf and Politics, for a better understanding about the interaction ways
between the agents of judicial and political fields, according the research thema
developed by the author. For this purpose, it's necessary to use the conceptual
reference of Pierre Bourdieu's literature.

PALAVRAS-CHAVE / KEYWORDS: Direito - Tribunais - Política - Sociologia-


Bourdieu, Pierre.

INTRODUÇÃO

Objetivando facilitar a abordagem do tema, além de procurar contribuir


para a apropriação desses instrumentos pelos agentes do Direito,
exporamos a seguir alguns aspectos fundamentais para a apreensão
dos conceitos de "sistema simbólico", "campo"  1  social, "habitus"  2 , e as
delimitações específicas dos conceitos de "campo jurídico"  3  e "campo
político", fundamentais para o estudo que propomos, além dos que se
fizerem necessários. Observamos, porém, que para uma compreensão
aprofundada, o conhecimento sintético dessas noções não exime do
estudo detalhado da obra de Pierre Bourdieu  4 , visto não ter sido este
instrumental teórico desenvolvido pelo autor para o caso brasileiro, e sim
especificamente para o caso da França.

 
 

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As características da obra desse autor  5 , filósofo e sociólogo francês de


grande notoriedade, são auto-referidas e bastante complexas, tornando
portanto impossível utilização superficial de seus conceitos. Desse modo
é que buscamos, cuidadosamente, alinhavar alguns instrumentos
conceituais e observações que reputamos úteis para os necessários
estudos sócio-jurídicos ulteriores sobre o tema, a partir de uma
caracterização dos atores sociais em seus campos específicos. Essa
opção se justifica em razão da natureza da abordagem sociológica
desse autor, que não restringe suas observações apenas ao
campo  6  jurídico, mas procura definir seus limites e suas relações com
os demais subcampos do campo do Estado.

1. SOBRE A CONCEITUAÇÃO SOCIOLÓGICA

Buscaremos, inicialmente, apresentar e analisar os conceitos de campo


jurídico e campo político, que se inserem no campo do Estado, para o
exercício e a manutenção do poder simbólico  7  creditado aos agentes.
Essa apresentação é realizada no sentido de possibilitar uma melhor
compreensão do modelo analítico sociológico aplicável à ação dos
agentes, de modo a identificar as estratégias pessoais e coletivas
utilizadas pelos mesmos, em conformidade com seus objetivos na
discussão em torno das ações diretas de inconstitucionalidade.
Entretanto, é necessário observar, preliminarmente, que a plena
realidade do campo estatal é muito mais ampla do que é possível expor
em um único trabalho, o que ensejará posterior desenvolvimento em
novos artigos. Além disso, seria necessária a existência de estudos
sociológicos e metodológicos específicos sobre esse problema, ou seja,
como foi adaptado o modelo ocidental de Estado no caso brasileiro, nos
quais se estabeleceriam referências taxionômicas e dinâmicas mais
precisas. Tais trabalhos encontram-se ainda por realizar. Porém,
malgrado tais dificuldades, e para que se possa avançar nesse
conhecimento, é fundamental o aporte dos conceitos instrumentais da
sociologia.

 
 

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2. A NOÇÃO DE "HABITUS"

A idéia de "habitus" nasce da necessidade, descrita por Pierre Bourdieu,


de romper com o paradigma estruturalista  8  sem recair na velha filosofia
do sujeito ou da consciência, ligada à economia clássica e seu conceito
de homo economicus. O autor retoma a noção de "hexis" aristotélica,
como revista pela antiga escolástica, e então rebatizada de "habitus";
procura desse modo reagir contra a idéia do indivíduo como mero
suporte da estrutura. Desse modo seria possível evidenciar as
características criadoras, ativas e inventivas do "habitus" individual, as
quais não são descritas pelo sentido tradicional da palavra "hábito". A
noção de "habitus" então procura induzir não a idéia de um "espírito
universal", de uma natureza ou razão humanas, mas umconhecimento
adquirido e um bem, um capital havido pelo indivíduo, tornado desse
modo um agente em ação. É desse modo que surge o primado da razão
prática, no sentido estabelecido por Kant  9 . O autor procura resgatar,
desse modo, o "lado ativo" do conhecimento prático, que a tradição
materialista marxista tinha abandonado. A utilização original do conceito
de "habitus" aproxima-se assim da presente, pois contém a intenção
teórica de sair da filosofia da consciência sem anular o agente em sua
realidade de operador prático na construção de objetos. Instrumentaliza-
se com esse termo a dimensão corporal contida numa postura social,
inserida no funcionamento sistemático do agente como corpo
socializado. Nesse sentido, o conceito de "habitus" é assim descrito:
(...) "O habitus, como diz a palavra, é aquilo que se adquiriu, que
se encarnou no corpo de forma durável, sob a forma de
disposições  10  permanentes. (...)...o habitus é um produto dos
condicionamentos que tende a reproduzir a lógica objetiva dos
condicionamentos, mas introduzindo neles uma transformação: é
uma espécie de máquina transformadora que faz com que nós
"reproduzamos" as condições sociais de nossa própria produção,
mas de uma maneira relativamente imprevisível, de uma maneira
tal que não se pode passar simplesmente e mecanicamente do
conhecimento das condições de produção ao conhecimento dos
produtos."  11

A dinâmica do habitus permite a naturalização dos comportamentos e,


desse modo, a aceitação do convencionado como se fosse o único
comportamento e ponto de vista

 
 

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possíveis. No entanto, dentro dessa dinâmica deve existir espaço para


alguma imprevisibilidade nos comportamentos dos agentes, cuja
aceitação posterior possa justificar que esses agentes venham a ocupar
espaços no campo sem produzir modificações que possa comprometer a
manutenção do campo, as posições ocupadas por agentes mais antigos
e o sistema de distribuição das compensações advindas da aceitação no
campo. A construção do campo, entretanto, tem bases sociais
profundas:

(...) Se bem que esta capacidade de engendramento de práticas de


discursos ou de obras não tenha nada de inato, que ela seja
historicamente constituída, ela não é completamente redutível às suas
condições de produção, sobretudo no sentido de que ela funciona de
maneira sistemática. Não se pode falar de habitus lingüístico por
exemplo, a não ser sob a condição de não esquecer que ele é apenas
uma dimensão do habitus como sistema de esquemas geradores de
práticas e de esquemas de percepção das práticas, e de evitar
autonomizar a produção de palavras em relação à produção de escolhas
estéticas, ou de gestos, ou de qualquer prática possível. (1983, p. 105).

O "habitus" é historicamente construído, e não se mantém inativo,


renovando-se pelas práticas dos agentes, e sempre encontrando novas
formas de reforço à suas convicções, referidas ao grupo. O "habitus"
dispõe de uma grande capacidade de adaptação, sem que seus
princípios fundamentais sejam de fato atingidos, como exemplifica o
autor.

(...) Pode-se pensá-lo [o "habitus"] por analogia a um programa de


computador (analogia perigosa, porque mecanicista), mas um programa
autocorrigível. É constituído por um conjunto sistemático de princípios
simples e parcialmente substituíveis, a partir dos quais uma infinidade de
soluções podem ser inventadas, soluções que não se deduzem
diretamente de suas condições de produção. Princípio de uma
autonomia real em relação às determinações imediatas da "situação", o
habitus não é por isto uma espécie de essência a-histórica, cuja
existência seria o seu desenvolvimento, enfim um destino definido uma
vez por todas. Os ajustamentos que são incessantemente impostos
pelas necessidades de adaptação às situações novas e imprevistas,
podem determinar transformações duráveis do habitus, mas dentro de
certos limites: entre outras razões porque o habitus define a percepção
da situação que o determina. A "situação" é, de certa maneira, a
condição que permite a realização do habitus  12 .

Entretanto, o "habitus" produz resistência, conduzindo a forte carga de


ressentimento nos agentes que são impedidos por qualquer razão de
assumi-lo na realidade objetiva, o que pode levá-los a buscar recursos
externos ao seu campo, como os recursos da mídia, de modo a atingir o
campo, ou produzir efeitos que não são possíveis pelos canais oficiais,
como descreve o autor:

"Quando as condições objetivas da realização não são dadas, o


habitus, contrariado, e de forma contínua pela situação, pode ser
o lugar de forças explosivas (ressentimento) que podem esperar
(ou melhor espreitar) a ocasião para se exercerem e

 
 
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que se exprimem no momento em que as condições objetivas


(posição de poder do pequeno chefe) se apresentam. O mundo
social é um imenso reservatório de violência acumulada que se
revela ao encontrar as condições de sua realização".  13

Esta noção é de extrema utilidade para se compreender a mecânica da


resistência dos juristas, especialmente os magistrados, às mudanças no
campo, cuja existência e manutenção a formação do seu "habitus" induz,
quer dizer, o treinamento dos juristas, em especial os juízes, para sua
ação no campo jurídico deve fazê-los acreditar na possibilidade de
existência de um espaço social e mental onde se efetive a
imparcialidade, onde não cheguem as pressões sociais externas. O
conjunto de disposições pessoais criadas já na graduação em Direito,
muitas vezes já preparada por uma trajetória de vida ligada às carreiras
jurídicas de familiares, e completada nos primeiros anos da carreira, leva
os juristas a desenvolver profundamente um "habitus" judicial que
envolve toda uma visão do mundo através de categorias jurídicas,
criando um universo autônomo fechado às pressões externas, e imune a
tais questionamentos que têm como ilegítimos, por virem de fora do
campo jurídico, originando-se nos interesses e lógicas próprios aos
demais campos.

Assumir o "habitus" judicial implica em aceitar, e pois, impor um marcado


distanciamento em relação aos demais campos. Esse mecanismo é,
entretanto, fundamental para a consolidação do campo jurídico. Como
resultado, esse mecanismo faz com que os agentes do campo jurídico,
principalmente os juízes, avaliem as necessidades da lógica política,
derivada em grande parte da lógica eleitoral, como inconsistentes, pouco
sérias, e até mesmo absurdas. Para o jurista, a discussão da lei está
centrada na sua interpretação, freqüentemente nos moldes da
interpretação exegética, bíblica, como se ainda se tratasse de interpretar
as Sagradas escrituras, consideradas a palavra de Deus. Entretanto,
para o agente político, a lei é matéria informe a ser definida  14  e, pois,
objeto de negociação, acordos, alterações e redefinições constantes,
baseadas nos interesses fortemente contraditórios que circulam no
campo político, o que não lhe permite, ainda, sobrepor a essa discussão
os posteriores problemas do Judiciário quanto a coerência e problemas
de interpretação.

3. A NOÇÃO DE "CAMPO"

A noção geral de campo é complementar à de "habitus" na análise das


interações em foco. Preliminarmente, deve-se esclarecer que, ao se
tratar dessa noção, é necessário separála de acepções tradicionais,
como as da física, segundo a qual campo é uma região do espaço onde
se exerce um força determinada, ou da psicologia social, onde campo é
um conjunto de processos psíquicos que constituem um sistema
dinâmico, para chegar à noção de campo em Sociologia. Para esta
última ciência, entretanto, deve-se ter presente que esse termo adquire
um significado muito extenso, e deixa assim de ser preciso; costuma ser
associado aos sentidos de "domínio" e de "sistema"  15 .

 
 

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Para a maioria dos sociólogos, mantém-se uma idéia básica de dinâmica


das forças sociais, relacionadas com um aspecto de disputa entre os
agentes. Touraine  16  apresenta sua noção de campo de historicidade
como um conjunto formado pelo sistema de ação histórica e as relações
de classes pelas quais a historicidade se transforma em orientações da
atividade social, estabelecendo assim seu domínio sobre a produção da
sociedade. Desse modo, o autor assimila, por exemplo, "campo político"
à noção de "sistema político", o que não contribui para maior clareza.

Pierre Bourdieu, entretanto, elabora ao longo de sua obra  17  uma


verdadeira teoria dos campos sociais, que busca expor os mecanismos
que geram tais campos, descrevendo sua estrutura e suas propriedades.
Evitando o tratamento residual e pouco objetivo dado a essa noção pela
maioria de seus antecessores, o autor procura explicitá-la de maneira
mais precisa, como segue:
(...) "Um campo, e também o campo científico, se define entre
outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos
interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de
disputas e aos interesses próprios de outros campos (não se
poderia motivar um filósofo com as questões próprias dos
geógrafos) e que não são percebidos por quem não foi formado
para entrar nesse campo (cada categoria de interesses implica na
indiferença em relação a outros interesses, a outros
investimentos, destinados assim a serem percebidos como
absurdos, insensatos, ou nobres, desinteressados). Para que um
campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas, e
pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de 'habitus' que
impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis
imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc."  18

A estrutura interna de cada campo estabelece os valores e metas a


serem considerados como objeto de disputa entre os agentes, pelos
padrões de pensamento e formação desses agentes, e não há como
reduzir os valores de um campo pelos valores de outro campo, em
função do treinamento recebido pelos agentes para que possam
encontrar orientação dentro do campo, conhecer e reconhecer os
agentes acima e abaixo de si na hierarquia, e dominar os mecanismos
de mobilidade internos ao campo. Bourdieu esclarece que os
investimentos para a inserção no campo com freqüência independem do
agente, sendo definidos muitas vezes desde a origem, pela família.

Entretanto, não se trata apenas de investimentos do ponto de vista do


capital econômico, mas também do ponto de vista de outros capitais  19 ,
como o capital cultural, que

 
 

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depende muito mais de investimentos em tempo de dedicação à sua


aquisição, e de um capital social, que pressupõe os anteriores, e que
permitirá, muitas vezes por cuidadosas manobras, estabelecer
"naturalmente" contatos, ter acesso a pessoas, oportunidades, eventos,
etc., nas quais o agente será percebido como um igual, se for aprovado
nas verificações muitas vezes "informais" dos outros agentes,
igualmente interessados em possíveis contatos e oportunidades trazidos
em potencial pelo novo integrante do campo. Desse somatório resultará
a formação de um "habitus"  20 , ou um sistema interno de referências que
permitirá ao agente inserir-se nas disputas do campo com razoável
probabilidade de sucesso. Dentro dessa noção deve constar a
possibilidade de avaliar a correlação de forças estabelecida no campo,
definindo os procedimentos a adotar, avaliando o retorno de
investimentos nas diversas formas de capital, e projetando desse modo
os lucros a auferir. Nas palavras do autor:

(...) A estrutura do campo é um estado da relação de força entre os


agentes ou as instituições engajadas na luta ou, se preferirmos, da
distribuição do capital específico que, acumulado no curso das lutas
anteriores, orienta estratégias ulteriores. Esta estrutura, que está na
origem das estratégias destinadas a transformá-la, também está sempre
em jogo: as lutas cujo espaço é o campo tem por objeto o monopólio da
violência legítima (autoridade específica) que é característica do campo
considerado, isto é, em definitivo, a conservação ou a subversão da
estrutura da distribuição do capital específico.  21

O autor aponta a situação específica de cada campo abordado,


identificando-a com a orientação dos agentes que ocupam as posições
mais altas na hierarquia do campo, e que surge claramente ao se indicar
as instituições envolvidas. Mas há que se destacar também as
estratégias adotadas por esses agentes para a realização de seus
objetivos, ligados aos objetivos oficiais do campo. A adoção de
estratégias mais ou menos rígidas, mais ou menos flexíveis em relação
às demais instituições e seus agentes, relacionada à identidade entre os
mesmos, em geral forjada em lutas anteriores, possibilita o
estabelecimento ou não de novas estratégias, visando a manutenção do
campo com o equilíbrio dos interesses dos agentes, o que pode
determinar ações e lutas abertas ou silenciosas entre os grupos de
agentes. Desse modo é que a estrutura do campo está sempre em
disputa, pois o êxito das ações empreendidas determina a nova
distribuição do capital específico associado ao campo, e assim
estabelece as possibilidades de ascensão ou decadência de carreiras,
projetos, pretensões, etc., sustentados por agentes ou grupos
específicos. O monopólio da violência legítima associada a cada campo,
e em especial ao campo jurídico dentro do campo estatal, não é
questionado pelos agentes, pois é tido como definitivo. Obter e utilizar
externamente instrumentos de pressão ou mesmo de abalo das
hierarquias internas ao campo, significa ser o agente excluído pelos
demais, interessados em conservar os mecanismo conhecidos e por eles
acessíveis, de distribuição do capital do campo. No caso do campo
jurídico, a intromissão de pressões externas do campo político,
freqüentemente veiculadas via mídia, por exemplo, tendem a ser
ignoradas pelos agentes, pois o acesso ao campo não está disponível
para agentes que não disponham das condições exigidas pela lógica
interna para reconhecimento e interação, o que significa dever o mesmo
submeter-se aos interesses e à avaliação pelos integrantes do campo.
Tal não ocorre desse modo no campo político, no qual as pressões
mediáticas são consideradas legítimas, pois representaria esta uma
"opinião pública", e a manutenção desses agentes em suas posições
depende da legitimação externa, submetida periodicamente à lógica
eleitoral, fortemente influenciada pelo campo jornalístico.  22

 
 

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Entretanto, a posição dos agentes dominantes dentro do campo é


apenas relativamente tranqüila, pois a luta constante por espaço e pelos
lucros advindos da distribuição do capital específico do campo, procura
desestabilizar os elementos de sua conservação, levando-os a reafirmar
suas posições pelo discurso associado à posição específica, e abrindo
espaço à crítica, que se constitui em poderoso instrumento de
transformação que, entretanto, como descreve o autor, não chega (e não
pode chegar) a comprometer a existência do campo:

(...) "Aqueles que, num estado determinado da relação de força,


monopolizam (mais ou menos completamente) o capital
específico, fundamento do poder ou da autoridade específica
característica de um campo, tendem a estratégias de
conservação - aquelas que nos campos da produção de bens
culturais tendem à defesa da ortodoxia - enquanto os que
possuem menos capital (que freqüentemente também são os
recémchegados e portanto, na maioria das vezes, os mais jovens)
tendem às estratégias de subversão - as de heresia. É a heresia,
a heterodoxia, enquanto ruptura crítica, freqüentemente ligada à
crise, juntamente com a doxa  23 , que faz com que os dominantes
saiam de seu silêncio, impondo-lhes a produção do discurso
defensivo da ortodoxia, pensamento "direito" e de direita, visando
a restaurar o equivalente da adesão silenciosa da doxa".  24
O senso comum observa a atitude normalmente conservadora dos
agentes que ocupam os postos mais altos das hierarquias, sem explicar,
entretanto, o que justifica essa tendência. A ocupação desses postos
significa o engajamento na tarefa de manter e valorizar a força do campo
específico. Desse modo, esses agentes não podem ser pessoalmente
acessíveis, e suas manifestações serão raras, ambíguas e lacunosas. A
defesa do capital cultural específico, decorrente da produção de um bem
cultural determinado enseja assim um discurso fortemente ortodoxo,
capaz de atingir o objetivo tanto quanto à conservação dessa forma de
capital, como quanto à manutenção das posições de seus agentes
emissores

 
 

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no campo. As lutas em torno desse capital, e os procedimentos


utilizados em sua distribuição, porém, fazem surgir a necessidade de
abrir algum espaço para o discurso de legitimação de novos agentes.
Para aumentar suas chances de consagração junto aos futuros pares,
esses agentes deverão se mostrar ser dignos de confiança, mas
também, e principalmente, serem capazes de apresentar propostas
novas, reformadoras, originais, que atestem domínio da linguagem
específica e capacidade de superação dos limites culturais relativos à
forma específica de capital em disputa; mas, ainda assim, o novo agente
deve continuar mostrandose previsível e submisso ao controle desses
pares.

É preciso destacar que essa mecânica estabelece condições para a


ascensão de novos agentes, mas o aspecto que mais nos interessa é o
de que ela estabelece também as condições para a transformação do
próprio campo. Nesse sentido, as estratégias de desenvolvimento
pessoal se mostram profundamente ligadas às estratégias de
transformação do campo, em razão de não estarem os novos agentes
ainda diretamente comprometidos com a estabilização institucional e,
pois, com o discurso da ortodoxia conservadora. Produzem-se desse
modo as condições para que o autor chama de "ruptura crítica". Pelo
discurso crítico, podem surgir elementos inquietantes e mesmo capazes
de subverter a ordem de manutenção perseguida pelos agentes já
estabelecidos, mas também surgem elementos úteis às modificações
consideradas pelos mesmos agentes como oportunas, e até mesmo
necessárias. É nesse sentido que as manifestações dos agentes da
ortodoxia produzem, diante do discurso crítico, um discurso de defesa
interessado, visto em especial no campo político como discurso "de
direita", ou do "direito", na acepção jurídica do mais adequado. E não
poderia ser diferente, dado que da posição do agente no campo, em
contraposição às soluções sugeridas por seu "habitus  25 ", só é possível
emitir esse discurso. O jogo dentro do campo inclui o risco de sua
subversão, mas se mantém sob controle, pois a manutenção do jogo
representa o interesse de todos os agentes envolvidos. A animosidade
surgida internamente, e com freqüência exposta externamente, surge
como parte da legitimação dos agentes junto aos profanos  26 , e
freqüentemente é assumida pelos iniciados como um verdadeiro teatro.
Para os profanos a manutenção desse estranho equilíbrio é exibida
como uma necessidade, que só pode ser explicada pelo discurso da
"ética profissional".

As modificações no campo não podem ultrapassar determinados limites,


ou os agentes não poderão manter a sua existência. Assim, mesmo que
de forma inconsciente, todos os agentes trabalham para esse resultado,
como a seguir aponta o autor.

 
 

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(...) Todas as pessoas que estão engajadas num campo têm um certo
número de interesses fundamentais em comum, a saber, tudo aquilo que
está ligado à própria existência do campo: daí a cumplicidade objetiva
subjacente a todos os antagonismos. Esquece-se que a luta pressupõe
um acordo entre os antagonistas sobre o que merece ser disputado, fato
escondido por detrás da aparência do óbvio, deixada em estado de
doxa, ou seja, tudo aquilo que constitui o próprio campo, o jogo, os
objetos de disputas, todos os pressupostos que são tacitamente aceitos,
mesmo sem que se saiba, pelo simples fato de jogar, de entrar no jogo.
Os que participam da luta contribuem para a reprodução do jogo
contribuindo (mais ou menos completamente, dependendo do campo)
para produzir a crença no valor do que está sendo disputado. Os recém-
chegados devem pagar um direito de entrada que consiste no
reconhecimento do valor do jogo (a seleção e a cooptação dão sempre
muita atenção aos índices de adesão ao jogo, de investimento) e no
conhecimento (prática) dos princípios de funcionamento do jogo. Eles
são levados às estratégias de subversão que, no entanto, sob pena de
exclusão, permanecem dentro de certos limites. E de fato, as revoluções
parciais que ocorrem continuamente nos campos não colocam em
questão os próprios fundamentos do jogo, sua axiomática fundamental,
o pedestal das crenças últimas sobre as quais repousa o jogo inteiro". 27

Desse modo, não há jogo se os participantes não concordam com os


seus limites, suas regras e objetivos, o que implica em que deve existir
uma referência cultural comum  28 , elevado à altura de outro capital, o
capital cultural, para fornecer os elementos do jogo e, principalmente,
legitimá-lo, tanto para os próprios agentes como para os profanos. Esse
capital engendra em grande parte a "cumplicidade objetiva" citada pelo
autor, a cuja adesão também estão expostos os agentes, sob pena de
não serem aceitos entre os pares. Essa compreensão, quando
inexistente, faz com que os eventuais atritos entre agentes sejam
levados às últimas conseqüências, o que pode levar a áspera exclusão
do menos capitalizado, ou mesmo inviabilização de carreiras ou projetos
de inclusão nas hierarquias internas. A adesão a esse acordo não verbal
deverá ser medida e controlada pelos agentes estabelecidos, e
permanecerá em nível superficial, opinativo ou "doxa", como define o
autor, de modo a inferir também a capacidade demonstrada pelo agente
avaliar a correlação de forças diante de si, e orientar-se dentro do campo
com segurança e objetividade. Ao mesmo tempo, o agente deve declarar
publicamente o fato de valorizar o jogo, e demonstrar possuir o domínio
do capital cultural  29  necessário para ser incluído. As estratégias para a
final aceitação, entretanto, incluem a apresentação de avanços sobre os
limites do jogo, que levam ao que o autor destaca como "revoluções
parciais", que muito mais chamam a atenção para o seu autor do que
para o conteúdo do seu novo produto. Por esses meios pode o novo
agente demonstrar suas capacidades e merecimento, sem ameaçar o
campo. Não há, entretanto,

 
 

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apenas uma visão egoística na movimentação dos agentes, como


esclarece o autor:

(...) O princípio das estratégias filosóficas (ou literárias, etc.)  30  não é o


cálculo cínico, a procura consciente da maximização do lucro específico,
mas uma relação inconsciente entre um habitus e um campo. As
estratégias de que falo são ações objetivamente orientadas em relação
a fins que podem não ser os fins subjetivamente almejados. E a teoria
do habitus visa a fundar a possibilidade de uma ciência das práticas que
escape à alternativa do finalismo ou do mecanicismo.  31

O autor não credita apenas à ânsia de lucros materiais e/ou simbólicos o


móvel das ações dos agentes, mas também à relação entre o "habitus",
ou sistema mental interno de referências de cada agente, e as condições
encontradas em cada campo específico, na maior parte das vezes
realizada de modo inconsciente. A relação entre o que o agente almeja
objetivamente e o que almeja subjetivamente é muitas vezes bastante
afastada, havendo espaço para idealismo real. Destaca, porém, é que
não há possibilidade de ação ou interesse externo desconectado do
móvel interno de interesse, quer haja ou não consciência ou adequação
mútua nessas estratégias. Sua intenção, declaradamente, é escapar às
estreitas alternativas do finalismo, que aponta para uma pouco provável
coerência e constância absolutas na consciência dos agentes em
relação ao campo, e do mecanicismo, que aponta para a não existência
dessa consciência, dependendo o agente inteiramente de influências
externas.

Passemos agora à descrição dos campos jurídico e político, de modo a


conhecer as suas dinâmicas específicas, e modos de interação.

4. A LÓGICA DO CAMPO JURÍDICO

Para estabelecer os pressupostos de uma abordagem sociológica sobre


a interação dos agentes do campo político, ou do Legislativo e os
agentes do campo jurídico, ou do Judiciário é necessário ter,
inicialmente, uma idéia do terreno onde se movem os agentes do campo
jurídico, os quais denominaremos genericamente de "juristas", e como
se adaptam os mesmos às mudanças decorrentes dessa interação sem
necessariamente alterar suas convicções.
Deste modo, vejamos uma conceituação sintética de campo jurídico, nas
palavras do seu autor:

(...) O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio de dizer


o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, no qual
se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo
social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida
de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus
de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. É com
esta condição que se podem dar as razões quer da autonomia relativa
do direito, quer do efeito propriamente simbólico de desconhecimento,
que resulta da ilusão da sua autonomia absoluta em relação às pressões
externas.  32  (grifo nosso).

 
 

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O efeito de monopólio é essencial para a compreensão do campo


jurídico, e dele decorre a sua força; somente o campo jurídico pode dizer
o direito, e por essa razão não é estranho que magistrados de diferentes
correntes se unam em torno desse monopólio  33 . O confronto interno
entre os agentes do campo jurídico é real, e muitas vezes envolve altos
níveis de agressividade, na disputa pela imposição das interpretações da
lei pelos interessados. Mas na realidade, por trás dessa animosidade
existe, com grau maior ou menor de compreensão e de aceitação por
parte dos envolvidos, um arranjo de sobrevivência, ou de manutenção
de ambas as posições, pelo conhecimento e reconhecimento dos
agentes quanto à referência cultural comum a todos, o conhecimento
jurídico. Este estabelece as visões de mundo impostas pelos dominantes
no grupo social, e que passam a ser "naturalizadas" pelo trabalho
desses agentes, que desse modo podem fixar as fronteiras do campo, e
criar a sua autonomia, baseada essencialmente na crença da
"neutralidade" dos magistrados. A partir dessa crença básica, aliada ao
monopólio do conhecimento e da interpretação das leis, a autonomia do
campo jurídico se torna de tal modo forte, que pode o mesmo, para os
seus integrantes, assumir o papel de todo-poderoso criador e
modificador de todas as realidades  34 , materializando desse modo a
crença no Estado.

Reafirmamos, nesse ponto, o exposto no início do trabalho, a respeito da


não existência de uma "ponte" teórica para a aplicação deste aparato
conceitual ao caso brasileiro, e as dificuldade que esse fato acarreta: o
que se pode distinguir numa primeira aproximação, entretanto, é o modo
pelo qual se estrutura o campo jurídico, quando o autor cita a
concorrência pelo monopólio de dizer o direito. Entre nós, o campo se
estrutura também em torno desta concorrência, que legitima seu objeto
em relação aos concorrentes, na medida em que eles se inter-
reconhecem, estabelecendo relações de competição em torno de qual
interpretação da lei será declarada válida no caso concreto, em razão do
monopólio específico do campo jurídico de dizer o direito. Os agentes,
nesse embate, se desgastam, entram em atrito, mas nenhum deles
coloca em cheque a validade e a existência do campo, visto que da
existência deste depende muitas vezes a própria existência (ou
sobrevivência) do agente. Assim é que a existência do campo pressupõe
oposições internas entre seus agentes, algumas bastante fortes e
consagradas na visão popular, mas que do ponto de vista oficial, não
apresentam nenhum suporte teórico ou mesmo fático consistente.

 
 

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CAMPO JURÍDICO E O CAMPO POLÍTICO: O DIREITO NA OBRA DE PIERRE BOURDIEU

No caso brasileiro  35 , entretanto, as relações assim organizadas,


decorrentes da lógica impessoal própria do modelo de Estado europeu,
estão perpassadas por lógicas sociais imbricadas a questões pessoais
dos agentes do campo, em especial à lógica da sobrevivência e da
reprodução  36  social, dinamizadas por uma lógica da reciprocidade,
inerente à socialização do agente, não superada pelo "habitus" jurídico,
adquirido muito posteriormente. Essa dinâmica surge em conseqüência
da colonização portuguesa e pois, da concepção de Estado própria ao
século XVI, cujas categorias lógicas orientam a atuação dos nossos
agentes estatais.

No contexto do modelo de Estado europeu, a lógica do trabalho do


campo jurídico se insere na lógica da conservação, e dessa forma,
constitui um dos mais importantes elementos fundadores da ordem
simbólica, fundadora da ordem social. A sistematização e a
racionalização às quais estão submetidas as normas jurídicas e a
hierarquia de normas utilizadas para a sua justificativa reforça o efeito
dessa lógica, ao fazer considerar-se universal o ponto de vista dos
agentes dominantes. Por esse efeito, é possível uniformizar as práticas,
marcando o tecido social com características interessadas tornadas
universais.

O discurso do Direito representa, em grande parte, a opção por uma


visão de mundo, a dos grupos dominantes, a qual passa a se inscrever e
a ser absorvida nas lógicas sociais, de tal sorte que não mais é
questionada, tornando-se "natural". As leis, mesmo que inicialmente
sofram resistência, com o tempo acabam por ser reconhecidas como
úteis, e assim, passam a fazer parte do patrimônio cultural da
coletividade. As leis são inicialmente apresentadas pelos agentes do
campo político, mas só se efetivam na realidade como instituições
jurídicas, a partir do que passam a ser exigidas como tal por seus
destinatários (os "profanos"), que as assumem como referência "natural".

Em grandes sociedades diferenciadas, esse mecanismo de


universalização, a cargo do Direito, é um dos meios mais poderosos
pelos quais a dominação simbólica é levada a efeito, criando na
realidade a imposição legítima da ordem social. Surge o efeito de
normalização, que fornece autoridade social que permite aos seus
detentores obter a plena eficácia prática da coerção jurídica. Desse
modo a regularidade, ou aquilo que se faz regularmente, é transformado
em regra (aquilo que se faz de regra). Em conseqüência, as instituições
naturais ao grupo são transformadas em instituições jurídicas,
"naturalizadas".

O jurista, nessa mecânica, fica submisso ao corpo das leis elaboradas


para justificar a dominação estabelecida, e a necessidade de sua
atuação. Surge daí uma concorrência entre os agentes do campo
jurídico que, sob a aparência de antagonismo, na verdade trocam
vantagens entre si. O corpo da lei é, desse ponto de vista, uma espécie
de reservatório central de autoridade, que garante a força dos atos
jurídicos singulares. É desse modo que se compreende que os juristas
se inclinem comumente ao ceticismo, e os magistrados, em especial,
justifiquem-se como intérpretes oficiais, apoiados apenas na lei, como se
fosse possível a neutralidade. Entretanto, para aplicar a lei o juiz precisa
criar, ainda que pouco, mas procura sempre a dissimular esse ato sob
um discurso técnico "neutro", pois segundo a crença desses agentes, a
lógica prevalecente deve pertencer ao Estado, já que somente a
autoridade abstrata deste, ao final, não será contestada.

 
 

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Os magistrados detém, inclusive legalmente, a posição de supremacia


no campo jurídico, e tal fato determina a existência de uma espécie de
sub-campo judicial, cujos contornos em relação ao campo jurídico,
entretanto, são imprecisos, devido à necessidade incontornável de todos
os agentes de compartilhar crenças (ou dogmas) comuns, entre os
quais, em especial, a da existência possível de um lugar de neutralidade
(o Judiciário) na ação do Estado. Os juristas, ainda que extra-
oficialmente declarem o contrário, se dispõem a declarar oficialmente a
crença na neutralidade ou no jargão jurídico, "imparcialidade" do
magistrado. Mesmo vista com ceticismo, a crença na neutralidade é
difundida externamente aos profanos, pois é fundamental para a
manutenção do campo. Se os profanos fossem levados a descrer na
imparcialidade dos julgamentos, a própria existência do campo estaria
comprometida, e, com ela, as vantagens simbólicas e econômicas de
correntes do mesmo, para seus integrantes. Por essa razão, os
magistrados detém um lugar de primazia no campo, e essa definição da
neutralidade é deixada para a doxa, já que sua exploração
epistemológica se revela inútil e perigosa, pois se tal fosse realizado,
somente se poderia inutilizá-la como pressuposto fundamental de
legitimação para todos os atos dos agentes de Estado, a começar pelos
agentes do campo jurídico.

5. O CAMPO POLÍTICO

Inversamente ao que ocorre no campo jurídico, cuja vida e manutenção


se dão em torno de uma noção de relativa "autonomia" quanto aos
demais campos do Estado, decorrente de métodos internos de
recrutamento e seleção de magistrados, advogados, procuradores, etc.,
o campo político depende diretamente, para a vida e manutenção de
seus agentes, de um processo de legitimação externa: ao final de
mandatos, limitados no tempo, todos os parlamentares deverão,
obrigatoriamente, submeter-se novamente ao processo eleitoral, para
tentar continuar inseridos no campo. A constante preocupação dos
agentes com essa legitimação, para obter a recondução à posição no
campo, por reeleição introduz a "lógica eleitoral", o elemento mais
importante para a orientação de suas ações. Nesse sentido é de se
observar que o Judiciário pode, em contrário, ignorar oficialmente as
pressões da mídia em torno de uma "imagem" de seus integrantes em
relação à "opinião pública", pois a nomeação ou consagração de seus
integrantes, e sua manutenção ou eventual exclusão é inteiramente
referida a parâmetros internos do campo jurídico; para os juízes não
há legitimação externa por via eleitoral. Desde a seleção, passando
pelas promoções (e os critérios de antigüidade e merecimento), a
ocupação de cargos estratégicos da hierarquia interna (Presidência,
Corregedoria, etc.) e promoção externa (porta-voz, etc.)

 
 

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até o modo como se dá a aposentadoria, tudo é controlado pelas


instâncias superiores do próprio Judiciário. O recurso a meios externos
de consagração, como a mídia, que podem beneficiar alguns agentes do
campo jurídico, como advogados por exemplo, resulta em efeito inverso
no interior do campo jurídico quantos aos agentes do Judiciário, pois
permite ao agente escapar, ainda que temporariamente, ao rígido
controle interno, desautorizando a hierarquização e pois arriscando sua
estabilidade: esse comportamento mais cedo ou mais tarde levará o
agente a expor-se a sanções internas, produzindo efeitos negativos em
sua carreira.

Tal, porém, não ocorre no campo político, onde a seleção do agente já


se dá por meio externo ao campo, o processo eleitoral. Pouco espaço
existe para as manipulações eleitorais, como a transferência de votos de
um candidato a outro, pois não há como garanti-la, embora no caso
brasileiro essa regra tenha sido muitas vezes burlada. A relação com os
eleitores não pode ser levada oficialmente para o campo, pois a sua
existência como campo também depende da exclusão dos
representados. Sobre esses pontos, se manifesta o autor:

(...) O campo político, entendido ao mesmo tempo como campo de


forças e como campo das lutas que têm em vista transformar a relação
de forças que confere a este campo a sua estrutura em dado momento,
não é um império: os efeitos das necessidades externas fazem-se sentir
nele por intermédio sobretudo da relação que os mandantes, em
conseqüência da sua distância diferencial em relação aos instrumentos
de produção política, mantém com seus mandatários e da relação que
estes últimos, em conseqüência das suas atitudes, mantém com as suas
organizações. O que faz com que a vida política possa ser descrita na
lógica da oferta e da procura é a desigual distribuição dos instrumentos
de produção de uma representação do mundo social explicitamente
formulada: o campo político é o lugar em que se geram, na concorrência
entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos,
problemas, programas, análises, comentários, conceitos,
acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns, reduzidos ao
estatuto de "consumidores", devem escolher, com probabilidades de
mal-entendido tanto maiores quanto mais afastados estão do lugar de
produção  37 .

Os agentes que integram o campo político se encontram, desse modo,


em posição mais delicada em relação aos destinatários de seus serviços
do que os agentes do Judiciário. E ao contrário da crença externa
corrente, o seu acesso e a obtenção de efeitos oferece dificuldades
muito maiores do que as próprias ao campo jurídico. Por exemplo, não
há como o campo político agir em determinado sentido, sem que as
demandas que são encaminhadas até seus agentes sejam
preliminarmente transpostas para seus códigos internos de referência,
não determinados necessariamente por lei mas, antes de tudo, por uma
agenda ideológica, decorrente da proposição, características e
estratégias próprias de cada partido  38 . Em meio a proposições pouco
claras e interesses bem diversificados, o "eleitor-consumidor" deve
escolher, e a probabilidade de fazê-lo mal, isto é, sem nenhum proveito
para si ou para a comunidade, ou mesmo com risco de eleger alguém
incompatível ou mesmo nocivo politicamente, ou ajudar a tornar reais
proposições de administração sem nenhuma perspectiva de realização,
torna-se uma probabilidade muito real.

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Após sintética exposição da mecânica desses dois campos, deve-se


ainda destacar que compreender a atuação da mídia, nesse processo,
torna-se fundamental, especialmente no que concerne às suas relações
diferenciadas e conturbadas com o Legislativo e o Judiciário nacionais.
Os desdobramentos dessa perspectiva, nas relações entre política,
mídia e judiciário, são, entretanto, objeto de pesquisa presente, a ser
divulgada futuramente.

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