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(INDI)GESTÃO DO CONHECIMENTO:

A Reestruturação Produtiva e o Sofrimento nas Organizações1


Ricardo Dantas Cabral2

Palavras-chave: reestruturação produtiva – especialização flexível – psicodinâmica do trabalho –


sofrimento psíquico – estratégias coletivas de defesa

Muito se tem escrito sobre gestão do conhecimento e da inovação tecnológica. Porém,


o objetivo deste texto é colocar em destaque um aspecto não tão glamouroso, ainda que bastante
presente: o sofrimento humano dentro das organizações, especialmente à raiz da
reestruturação produtiva, caracterizada pela flexibilização de processos (mudanças rápidas nas
linhas de produção para novos produtos), de produtos (de acordo com a demanda dos clientes) e,
ponto crucial para o presente artigo, pela flexibilização de pessoal (baseada em trabalhadores
polivalentes ou multifuncionais). (Deluiz, 1996; Régnier, 1997; Souza et al., 1999; Hirata, 2001).
Diante desse novo modelo da especialização flexível,3 os trabalhadores deparam-se
com uma mudança em relação ao conteúdo do trabalho – antes definido em termos de “posto de
trabalho” e baseado em tarefas prescritas, com uma divisão entre atividade de concepção e de
execução e classificado segundo ocupações –, que exige mudanças para adequar-se às novas
demandas produtivas. Conseqüentemente, não só aumentaram as exigências sobre o trabalho,
como também terceirizaram-se diversas atividades e diminuíram os postos de trabalho. Desta
maneira, aumentaram as ameaças ao emprego formal, com férias remuneradas, jornada de
trabalho limitada, salários fixos, direito à aposentadoria e demais conquistas trabalhistas (Régnier,
1997), desenhando um quadro com um enorme potencial psicopatogênico.
Partindo desse contexto da especialização flexível, o presente artigo visa apresentar
um marco de referência que sirva para uma melhor compreensão do que seja o sofrimento no
trabalho, em particular o sofrimento psíquico. Para tanto, utiliza como referencial teórico o trabalho
do psiquiatra e psicanalista Christophe Dejours, especialista em medicina do trabalho e
pesquisador na área de psicopatologia do trabalho (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1994; Dejours,
1994a, 1994b, 1996, 1998, 1999, 2000). É necessário assinalar que os postulados teóricos do
autor não são apresentados aqui em sua totalidade, tanto por se tratar de uma obra extensa,
quanto por derivar algumas de suas proposições de um modelo ontogenético de homem que está
longe de ser considerado uma unanimidade pelos estudiosos da psicopatologia do trabalho. Sobre
este último aspecto, Lima (1998) faz as seguintes observações:

[Na] Psicopatologia do Trabalho na França, observa-se uma


significativa presença de conceitos psicanalíticos nas suas principais
produções teóricas, revelando a forte influência da psicanálise sobre
a disciplina. ...É fácil concluir que essa busca de recursos na
psicanálise a fim de explicar o sofrimento psíquico do homem no
trabalho tem sido objeto de polêmica. Para alguns autores, a teoria
psicanalítica não tratou do trabalho e ainda menos das possíveis
conseqüências psicopatológicas do sofrimento e da alienação
presentes na relação do homem com sua atividade profissional.
(Lima, 1998, p. 14)

1
Texto originalmente concebido como parte da dissertação de Mestrado “Globalização e modernização
dos portos – Um estudo de caso na Companhia Docas do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: CEFET/RJ,
2001, 135p.
2
Psicólogo, Mestre em Tecnologia (CEFET/RJ).
3
Essa conceituação sobre especialização flexível, dos economistas norte-americanos Michael Piore e
Charles Sabel, data do início dos anos oitenta. Corresponde ao “novo conceito de produção”, dos
sociólogos alemães Horst Kern e Michael Schumann (Hirata, 1994; Souza et al., 1999).
A despeito disso, por entendermos que as pesquisas realizadas por Dejours têm peso
reconhecido pela comunidade acadêmica, com um marco teórico acompanhado de farta pesquisa
de campo em áreas como aviação, eletricidade, distribuição de gás e indústrias tais como
petroquímica e automobilística, entre outras, faremos uso dos postulados teóricos propostos pelo
referido autor.
A discussão de Dejours (1996) acerca da psicopatologia do trabalho concentra-se em
uma questão: o sofrimento no trabalho. E para tal, o autor parte de cada sujeito, articulando
dados de seu sofrimento singular, herdado de sua própria história – denominado por ele de
“dimensão diacrônica” (isto é, do desenvolvimento do sujeito ao longo do tempo) – e o sofrimento
atual, surgido da relação do sujeito com a situação do trabalho – “dimensão sincrônica” (o estágio
atual da história do sujeito). Isso implica que o sofrimento diz respeito a processos construídos
não apenas no espaço da fábrica, da empresa ou da organização, mas fora dela, no espaço
doméstico do trabalhador, sendo, portanto, a articulação entre dimensões espaciais e temporais.
Ao lutar contra o sofrimento, os indivíduos muitas vezes conseguem encontrar
soluções originais e que são favoráveis simultaneamente à produção e à saúde. Para as situações
em que isso ocorre, o sofrimento referente a elas é denominado pelo autor como sofrimento
criativo. Em contrapartida, se as soluções encontradas pelos indivíduos são desfavoráveis à
produção e principalmente a sua saúde, seu padecimento é qualificado como sofrimento
patogênico.
Entende-se, pois, que frente ao sofrimento o sujeito se defende, não fica passivo.
Segundo Dejours (1999),

As pesquisas em psicodinâmica e psicopatologia do trabalho mostram


que existem defesas individuais e coletivas contra o sofrimento no
trabalho. E essas defesas têm em comum funcionar como
atenuadores da consciência desse sofrimento, como uma espécie de
analgésico (Op. cit., p. 60).
Mais do que defesas individuais ou coletivas, o que o sofrimento suscita são
estratégias defensivas, construídas, organizadas e gerenciadas coletivamente (Dejours, 1994a,
1996, 1998; Dejours & Abdoucheli, 1994). Essas estratégias procuram modificar a percepção que
os trabalhadores têm a respeito da realidade que os faz sofrer, fazendo com que minimizem as
pressões que promovem sofrimento dentro da organização.

Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho: um breve histórico


As primeiras pesquisas em psicopatologia do trabalho datam dos anos cinqüenta, na
França. Por este motivo, falar de seus primórdios é tratar de sua história naquele país. Essas
pesquisas tinham como base o modelo teórico da psicofisiologia de Pavlov 4, chegando a
determinar, por meio de entrevistas individuais, síndromes estreitamente associadas à situação de
trabalho, como por exemplo, a "neurose das telefonistas" (operadoras de centrais telefônicas) e a
"neurose dos mecanógrafos" (Le Guillant apud Dejours, 1996).
As pesquisas em psicopatologia do trabalho não avançaram muito naqueles primeiros
anos, devido em parte aos limites encontrados pelo referencial pavloviano para dar conta de
situações mais diversificadas que as encontradas no trabalho repetitivo sob pressão de tempo, e
também à ascensão da psicanálise, ao fim dos anos sessenta, que modificou o panorama teórico
da psicopatologia (Mueller, 1978; Codo, 1986; Dejours, 1996). Elizabeth Lima (1998) faz uma
ressalva a respeito da relação entre a psiquiatria e a psicanálise:

É importante assinalar também a transformação da psiquiatria no


período entre as duas grandes guerras, após o seu encontro com a
psicanálise, dividindo-se entre aqueles que aderiram e os que
criticaram a incorporação da teoria freudiana à prática psiquiátrica.
(Op. cit., p.10)

4
Ivan Pavlov (1849-1936), neurofisiologista russo, inspirador das teorias behavioristas.
Por seguir os modelos da patologia profissional e da medicina vigentes, a
psicopatologia do trabalho procurava descrever doenças mentais causadas pelo (ou surgidas no
e do) trabalho, a exemplo das doenças descritas pelos modelos anteriores, tais como a silicose
dos mineiros (causada pela inalação de dióxido de silício), o saturnismo nos fundidores e
tipógrafos (envenenamento agudo ou crônico proveniente dos vapores de chumbo), assim como
as atuais lesões por esforço repetitivo (LER) dos digitadores.
No entanto, segundo Dejours (1996), haveria uma grande dificuldade para encontrar
tais correspondências dentro das organizações, já que no próprio processo seletivo, as empresas
tratam de eliminar os sujeitos que sofrem de sintomas mentais ou distúrbios do comportamento,
mesmo os mais leves. Conseqüentemente, a maioria dos trabalhadores estaria “no limite da
normalidade” (Op. cit., 152). No mesmo período, intensificaram-se os estudos referentes ao
stress. Este é considerado um campo menos crítico, já que aborda a saúde dos trabalhadores
ainda dentro da normalidade.
A psicopatologia do trabalho toma um novo rumo quando opera uma mudança
epistemológica, ao perguntar-se não mais pela doença no (e do) trabalho, mas sim pela sua
normalidade, haja vista que a maioria dos trabalhadores não sofre de patologias mentais, a
despeito das sabidas pressões por eles suportadas no interior das organizações. Em palavras de
Dejours: “Agora, a normalidade é considerada um enigma. Como os trabalhadores, em sua
maioria, conseguem, apesar dos constrangimentos da situação do trabalho, preservar um
equilíbrio psíquico a manter-se na normalidade?” (Id.).
Para tratar de responder a essa pergunta, o autor encaminha seus estudos na direção
das estratégias elaboradas pelos trabalhadores para lidar com as situações de trabalho que
resultam em sofrimento. Desse modo, a normalidade passa a ser entendida “como um equilíbrio
precário (equilíbrio psíquico) entre constrangimentos do trabalho desestabilizantes, ou
patogênicos, e defesas psíquicas” (id.).
Esse equilíbrio ou normalidade estaria longe de ser um dado natural, à medida que se
trata antes de tudo de indícios de uma luta contra a doença mental. Além do mais, por equilíbrio
não se deve entender ausência de sofrimento, mas sim sua presença em termos de um espaço de
conquista do dito equilíbrio, por conseguir manter a doença mental à distância.

O sofrimento é então definido como o espaço de luta que cobre o


campo situado entre, de um lado, o "bem-estar" (para retomar aqui o
termo consagrado pela definição de saúde fornecido pela OMS), e, de
outro, a doença mental ou a loucura. (Dejours, 1996, p., 153)
A partir do início dos anos oitenta, o empenho dos estudiosos da psicopatologia do
trabalho – particularmente os que tomaram emprestado da psicanálise seu modelo de homem e
de subjetividade – residiu em fundamentar a clínica desse sofrimento em sua relação com o
trabalho. E Dejours sustenta que as pressões do trabalho que afetam equilíbrio psíquico e a saúde
mental derivam da organização do trabalho, caracterizada pela divisão das tarefas e pela
divisão dos homens (hierarquia, comando, submissão). A divisão das tarefas reflete-se na
questão do interesse e do tédio no trabalho, enquanto a divisão dos homens atinge diretamente as
relações que os trabalhadores estabelecem entre si em seu local de trabalho.
A essa distinção soma-se outra, relativa às condições de trabalho. Trata-se não mais
da organização, mas das condições físicas (barulho, temperatura, iluminação), químicas (poeira,
amianto, vapores) e biológicas (vírus, bactérias, fungos) do ambiente de trabalho, que afetam a
saúde somática dos trabalhadores.
É preciso esclarecer que para Dejours o trabalho não é causa de doenças mentais; ele
no máximo as desencadeia. A visão causalista, derivada de concepções médico-psiquiátricas
ainda vigentes, é para ele muito simplista, já que o trabalho nem sempre é patogênico. Ao
contrário, “ele tem ... um poder „estruturante‟ em face tanto da saúde mental como da saúde física”
(Dejours, 1994b, p. 46) Propõe também uma mudança na terminologia, substituindo
“psicopatologia do trabalho” por “psicodinâmica do trabalho”, entendendo que esta abre
perspectivas mais amplas que não dizem respeito apenas ao sofrimento, mas também ao prazer
no trabalho. Seu argumento sustenta-se na mudança epistemológica anteriormente citada, onde o
objeto passa a ser a normalidade, e no reconhecimento de que a relação entre organização do
trabalho e o homem está em contínuo movimento.

O sofrimento e o desemprego: banalização e resignação


O sofrimento é intenso naqueles que perdem o emprego e não conseguem empregar-
se (desempregados primários) ou reempregar-se (desempregados crônicos). E desde o advento
do capitalismo, com o correspondente aumento do valor moral do trabalho, estar desempregado
implica em passar por um progressivo processo de dessocialização “que leva à doença mental ou
física, pois ataca os alicerces da identidade” (Dejours, 2000, p. 19). E o temor de também vir a ser
excluído encontra-se disseminado.
As vítimas do desemprego, da pobreza e da exclusão social são vítimas de uma
injustiça. E o sentimento de injustiça clama por indignação e protesto contra seus responsáveis, e
por solidariedade pelas suas vítimas, assim como também conclama à ação coletiva. Contudo,
esta posição, óbvia para alguns, não é compartilhada por todos. E os que discordam dessas
respostas em relação à injustiça operam, segundo Dejours (2000), uma grave clivagem,
evidenciada nessa ausência de uma reação política. Essas pessoas dissociam de suas
percepções do sofrimento alheio o sentimento de indignação, particularmente quando o primeiro é
causado por uma reconhecida injustiça.
Para o autor,

O sofrimento somente suscita um movimento de solidariedade e de


protesto quando se estabelece uma associação entre a percepção do
sofrimento alheio e a convicção de que esse sofrimento resulta de
uma injustiça. Evidentemente, quando não se percebe o sofrimento
alheio, não se levanta a questão da mobilização numa ação política,
tampouco a questão de justiça e injustiça. (Dejours, 2000, p. 18)
Assim sendo, com freqüência adotam uma postura de resignação, como se o
desemprego, por exemplo, fosse uma fatalidade, algo contra o qual nada se pode fazer. No
entanto, é necessário afirmar que essa postura não é uma resposta individual, fruto de algum
processo meramente psicológico e isenta de qualquer conotação política ou social. Mesmo por
que, segundo o autor, as relações que os sujeitos estabelecem entre sofrimento alheio e injustiça
não concernem propriamente ao campo da psicologia, mas sim ao da ética. Trata-se, portanto, de
algo dado ao sujeito, proveniente do discurso economicista atual, que trata da questão do
desemprego – e por extensão, de suas conseqüências em termos de sofrimento – como algo
estrutural, “naturalizando” a exclusão, a violência e a miséria humana, que são entendidos como
efeitos colaterais da reestruturação produtiva e da globalização, uma realidade irreversível
(Frigotto, 1999; Dejours, 2000).
A adesão ao discurso economicista seria uma manifestação do processo de
banalização do mal, expressão proveniente das idéias de Hannah Arendt, filósofa e cientista
política, tese retomada por Christophe Dejours em “A Banalização da Injustiça Social” (2000).
Essa expressão corresponde a uma falta de mobilização política contra a injustiça, a exclusão e a
adversidade infligidas às pessoas de uma mesma sociedade que deriva
...de uma dissociação estabelecida entre adversidade e injustiça, sob
o efeito da banalização do mal no exercício de atos civis comuns por
parte dos que não são vítimas da exclusão (ou não o são ainda) e
que contribuem para excluir parcelas cada vez maiores da população,
agravando-lhes a adversidade. (Op. cit., p.21)
Mais do que a resignação ou o sentimento de impotência diante de um processo
percebido como inevitável, a adesão ao discurso economicista funciona como uma defesa contra
a própria cumplicidade, a própria colaboração e a própria responsabilidade para com a
adversidade social. Isto é, o que em verdade ocorre é o exercício do mal praticado por uns contra
outros, mas que é traduzido como adversidade.
Na atualidade, todos os cidadãos precisam desenvolver estratégias específicas de
defesa para proteger-se do que o sofrimento dos outros provoca. Isto ocorre não só no âmbito do
trabalho, mas no próprio cotidiano das grandes cidades. Como exemplo, basta descrever as
reações de motoristas ao deparar-se com pedintes nos sinais, ou quando um desempregado entra
em um ônibus solicitando auxílio financeiro dos passageiros. Para continuar a circular pelas
cidades, é preciso que as pessoas desenvolvam uma espécie de “armadura protetora”. Todavia,
se por um lado é possível evitar o sofrimento com tais atitudes, por outro a indiferença é o
resultado dessa maneira defensiva de agir, pois quando se é muito sensível à dor do outro, torna-
se impossível viver. Porém, a elevada eficácia das defesas funciona como um anestésico. E a
excessiva tolerância ao sofrimento conduz à alienação, traduzida como passividade, ausência de
mobilização coletiva e falta de indignação diante da injustiça social, perpetuando assim a
manutenção do próprio sistema que gera tais sofrimentos (Frigotto, 1999; Kurz, 1999; Dejours,
1998, 2000).
Na esfera das organizações, desde a década de noventa, novos modelos produtivos
vêm sendo adotados no Brasil, no contexto da globalização. Esses modelos são caracterizados
pela diminuição dos ciclos de produção, mudanças na divisão do trabalho, implementação de
equipamentos de informática e/ou assistidos pela microeletrônica, entre outros. Junto com eles
vieram a reestruturação do mercado de trabalho, a flexibilização do próprio trabalho, o
crescimento dos empregos precários, o desemprego cíclico e estrutural e a exclusão de
contingentes de trabalhadores do mercado formal (Deluiz, 1994). Inclusive, a participação dos
salários no PIB – sabendo-se que o vínculo formal salarial nunca se firmou como dominante no
Brasil – baixou de 45% do PIB no início dos anos 1990, para 37% no ano 2000 (Dowbor, 2001).
Concomitantemente, verificou-se um recuo das conquistas sociais e do direito do
trabalho, com a regulamentação, inclusive, dos contratos temporários de trabalho. 5 Analogamente,
em referência ao cenário francês, Dejours (2000) argumenta que houve como resultado desse
processo um aumento das demissões e o uso de métodos brutais – expressão do autor – nas
relações trabalhistas, acarretando sofrimento. E à semelhança do caso francês, é pertinente
afirmar que no Brasil a falta de mobilização coletiva em relação às mudanças trabalhistas também
se relaciona com a tolerância em relação à injustiça.
Frigotto (1999) é um dos que se alinham aos que resistem à banalização da injustiça,
quando questiona as teses
...daqueles que já decretam que chegamos à sociedade do
conhecimento, sociedade do entretenimento, do lúdico ou do fim do
trabalho e a sociedade do tempo livre. De imediato esta tese se
choca com a multidão de sobrantes, cujo tempo livre não significa
nem entretenimento, nem tempo lúdico, mas tempo torturado de
precariedade – existência provisória sem prazo. (Frigotto, 1999,
s.n.) (grifo do autor)

O sofrimento no trabalho
Nos parágrafos anteriores, tratou-se da relação entre o sofrimento e o desemprego –
tanto a perda do emprego quanto a falta dele. Porém, é preciso ressaltar que o sofrimento
também se dá no âmbito dos que trabalham, das tarefas que compõem seu trabalho e da teia de
relações em torno dele, no interior das organizações.
Assim sendo, faz-se necessário afirmar que o fim do taylorismo/fordismo e de sua
substituição pela especialização flexível, graças ao desenvolvimento tecnológico, não se
confirmou, ao menos em relação à promessa de eliminar o sofrimento. O trabalho isento de riscos
está longe de terminar e, além disso, as demandas da especialização flexível modificaram os
tempos e espaços da vida das pessoas, que antes eram melhor delimitados em termos de tempos
e espaços dedicados ao trabalho e tempos e espaços dedicados ao lazer e à vida privada. Suas

5
Lei nº 9.601, de 21 de janeiro de 1998 e seu Regulamento 2.490, de 4 de fevereiro de 1998, que permite a
empregadores e empregados celebrarem contrato por prazo determinado, desde que precedido de
negociação coletiva. Essa nova modalidade de contrato, que retira direitos consagrados na CLT, exige
requisitos peculiares para contratação e no que diz respeito a determinadas obrigações e direitos de ambas
as partes.
fronteiras se tornaram indistintas, e o esforço necessário para que o trabalhador se mantenha
como elemento produtivo cresceu significativamente, invadindo esferas da vida até então
impensadas.

Todos os momentos e ambientes destinados à vida pessoal passam a


ser considerados como locais e tempos de "aprender". Até mesmo os
contatos com amigos, as relações com familiares, a leitura do jornal e
de um livro, o cinema, mais do que lazer, tornam-se instâncias de
aquisição de conhecimentos, que devem ser "armazenados" e
"classificados", visando a sua possível utilização futura na vida
produtiva. (Régnier, 1997, s. n.)
A estas características do trabalho na atualidade somam-se algumas formas de
sofrimento no trabalho apresentadas por Dejours, a saber: o medo da incompetência, a pressão
para trabalhar mal e a falta de reconhecimento (Dejours, 2000).

a) O medo da incompetência
Via de regra, existe uma diferença entre o que se denomina “organização prescrita do
trabalho” e “organização real (ou concreta) do trabalho”. A primeira diz respeito às prescrições, as
instruções e os procedimentos existentes na organização, geralmente explicitados em forma de
manuais e regulamentos. Já a segunda vem a ser a maneira cotidiana como os funcionários lidam
com o que é prescrito.
Existe uma defasagem entre o real e o prescrito. E a despeito das qualidades dos
manuais e regulamentos sobre a organização do trabalho, é impossível, nas situações comuns de
trabalho, executar as tarefas seguindo à risca tudo o que está prescrito, seja qual for o grau de
precisão das prescrições e dos métodos de trabalho. “É impossível, numa situação real, prever
tudo antecipadamente”. Além do mais, “se todos os trabalhadores de uma empresa se
esforçassem para cumprir à risca todas as instruções que lhes são dadas por seus superiores,
não haveria produção” (Dejours, 2000, p. 56). Por outro lado, a defasagem entre o prescrito e o
real é atenuada pelo zelo, que é justamente tudo aquilo que os trabalhadores acrescentam à
organização prescrita para atingir suas exigências, até mesmo superando-as. “A gestão concreta
da defasagem entre o prescrito e o real depende na verdade da „mobilização dos impulsos
afetivos e cognitivos da inteligência‟” (ibid., p. 30).
Por mais experientes que sejam, os trabalhadores nem sempre têm como saber a
origem dos incidentes e acidentes no dia-a-dia das organizações. Porém, isso não significa que
fiquem imunes a eles. A questão que se lhes impõe é a de não saber se suas falhas se devem a
sua incompetência ou a anomalias da organização prescrita do trabalho. Por sua vez, essa fonte
de perplexidade provoca medo e sofrimento, particularmente o medo de ser incompetente, “de
não estar à altura ou de se mostrar incapaz de enfrentar convenientemente situações incomuns
ou incertas, as quais, precisamente, exigem responsabilidade” (ibid., p. 31).

b) A pressão para trabalhar mal


Na direção oposta ao item anterior, encontra-se o sofrimento surgindo quando
pressões sociais do trabalho impedem o trabalhador de realizar as tarefas para as quais está
escalado, mesmo tendo competência e habilidade para desempenhá-las. Em ambientes de
trabalho altamente competitivos, onde cada um trabalha por si, há sonegação de informações, os
colegas criam obstáculos, enfim, encontra-se toda sorte de contradições quanto às diretrizes
prescritas, impelindo alguns a trabalhar mal. Segundo Dejours, isso ocorre em diferentes tipos de
organizações, seja na indústria, nos serviços ou na administração. É de senso comum, por
exemplo, que em alguns órgãos públicos brasileiros os funcionários recém-ingressos que se
esmeram em cumprir regulamentos e normas, são pressionados pelos demais a “seguir o ritmo da
casa”, o que com freqüência significa não cumprir tudo à risca. A contradição entre o prescrito e o
real faz-se notar outra vez, acarretando mais sofrimento (Dejours, 1994b, 2000).
c) A falta de reconhecimento
Trabalhar sempre comporta uma dose de sofrimento. Mas quando se consegue
solucionar problemas, atingir metas difíceis, esse sofrimento tem o poder de transformar-se em
satisfação pessoal, passando a ser, como foi dito anteriormente, sofrimento criativo. E o
reconhecimento por parte dos demais é um dos seus ingredientes.
Quando sofre em função do seu trabalho, o trabalhador sempre espera algo em troca.
E o aspecto mais importante desse equivalente não é o salário, mas ter o seu empenho
reconhecido pelos outros, desde colegas até superiores, ou mesmo clientes que receberam seus
serviços. É através do reconhecimento dos outros que o sofrimento adquire um sentido, o saber
que não foi em vão, que serviu para alguma coisa. Porém, quando não há reconhecimento,
quando seu trabalho passa despercebido em meio à indiferença geral, ou pior, quando ele é de
algum modo negado pelos outros, o sofrimento torna-se absurdo, sem razão, o que é bastante
perigoso para a saúde mental.
O reconhecimento tem um peso decisivo no que em psicologia se conhece por
"motivação no trabalho". Para Dejours, não se trata de uma reivindicação secundária dos que
trabalham. Muito pelo contrário, o reconhecimento se mostra decisivo “...na dinâmica da
mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade no trabalho” (Dejours, 2000, p. 34). E
acrescenta:

O reconhecimento esperado por quem mobiliza sua subjetividade no


trabalho assume formas extremamente reguladas ... e implica a
participação de atores, também estes rigorosamente situados em
relação à função e ao trabalho de quem espera o reconhecimento.
(id.)
Aqui entra a relação entre a dimensão sincrônica e a dimensão diacrônica do sujeito, à
medida que o reconhecimento do trabalho, ou mesmo da obra, pode depois rearticular-se com a
sua própria identidade, já que seu desempenho contribui não só para a organização do trabalho,
mas também para que ele se torne um sujeito diferente daquele que era antes do reconhecimento.
Desta maneira, adquirindo um sentido que é confirmado pelo reconhecimento dos demais, o
sofrimento é capaz de transformar-se inclusive em prazer.
Antes de passar ao próximo item, é necessário recorrer mais uma vez a Dejours:

A identidade constitui a armadura da saúde mental. Não há


crise psicopatológica que não esteja centrada numa crise de
identidade ...Não podendo gozar os benefícios do reconhecimento de
seu trabalho nem alcançar assim o sentido de sua relação para com o
trabalho, o sujeito se vê reconduzido ao seu sofrimento e somente a
ele. (Dejours, 2000, p. 34-5)
Tal sofrimento só gera sofrimento, num círculo vicioso capaz de desestabilizar a
identidade e a personalidade e de levar à doença mental.

O processo de construção da tolerância ao sofrimento


Para o presente artigo, é preciso tratar de algumas “estratégias coletivas de defesa”
apresentadas no âmbito da psicologia do trabalho. Elas são assim denominadas por serem
defesas construídas e empregadas pelos trabalhadores coletivamente, vinculadas às pressões
reais do trabalho, que para funcionar necessitam da participação de todos os membros dessa
coletividade. Permitem evitar que o sofrimento resulte em descompensação psicopatológica –
“uma ruptura do equilíbrio psíquico que se manifesta pela eclosão de uma doença mental” (ibid.,
p. 35). É preciso reiterar o fato de que essas defesas também cumprem o papel paradoxal de
tornar aceitável aquilo que não deveria ser.
Para discorrer sobre o tipo de estratégias defensivas utilizadas pelos trabalhadores, é
necessário descrever algumas dimensões sobre o universo dos mesmos; apontar os demais
atores sociais e seus respectivos discursos; e indicar as circunstâncias que promovem o
sofrimento, entre outros, para então apresentar as estratégias coletivas de defesa forjadas no
âmbito das organizações. Tais estratégias referem-se não apenas ao sofrimento psíquico
daqueles que são submetidos a um mal, mas também ao daqueles que impingem um “sofrimento
indevido” (Pharo apud Dejours, 2000, p. 36) a outrem, os que cometem, por causa de seu
trabalho, atos que condenam moralmente.
Recapitula-se aqui a formulação teórica que estabelece, inicialmente, uma relação
entre a história singular do sujeito (seu passado, sua memória, sua personalidade: a dimensão
diacrônica) e o contexto material, social e histórico das relações de trabalho – a dimensão
sincrônica. O sujeito estabelece analogias entre ambas, o que não quer dizer que elas sejam
idênticas ou tenham total equivalência. Para Dejours, a ambigüidade surgida dessa analogia –
denominada por ele de “ressonância simbólica” (Dejours, 1996, p. 157) – serve também para
mobilizar a imaginação e a criatividade do sujeito. E se este encontra ressonância entre as
propaladas dimensões diacrônica e sincrônica, a situação de trabalho serve para conciliar (ou
reconciliar) esse sujeito aos objetivos da produção, beneficiando-a graças à força que tal
ressonância produz.
A seguir, na esfera coletiva, é pertinente fazer algumas observações em relação às
organizações sindicais. Nesse sentido, segundo Dejours (2000), muitos analistas consideram que
a ausência de reações à escalada da adversidade social se deve à fragilidade crescente dos
sindicatos. Porém, o autor formula a hipótese de que a fragilidade sindical e a dessindicalização,
cujo aumento foi tão rápido quanto o da tolerância à injustiça e à adversidade alheia, não são
apenas causas da tolerância, mas conseqüências dela. Sua análise sustenta-se sobre a história
recente do sindicalismo francês – a partir de maio de 1968 –, cabendo realizar aqui uma sucinta
analogia com o contexto brasileiro, estabelecendo as ressalvas necessárias e remetendo a
autores brasileiros que abordam a questão do trabalho e tangenciam a questão do sofrimento, tais
como Ladislau Dowbor (2001), Gaudêncio Frigotto (1995, 2001), Neize Deluiz (1996) e Helena
Hirata (1994, 1998), entre outros.
Isto posto, para Dejours, no contexto sindical francês dos anos setenta, as
organizações sociais teriam negligenciado o tema do sofrimento e das relações entre
subjetividade e trabalho. As pesquisas em psicopatologia do trabalho iniciadas naquela década
sofreram a oposição e mesmo a condenação tanto dos sindicatos como da esquerda francesa em
geral, por serem vistas como reacionárias, à medida que privilegiavam a subjetividade individual, o
que levaria a práticas individualizantes e inibiria a ação coletiva.

A análise do sofrimento psíquico remetia à subjetividade – mero


reflexo fictício e insignificante do subjetivismo e do idealismo. Tidas
como anti-materialistas, tais preocupações com a saúde mental
tolheriam a mobilização coletiva e a consciência de classe,
favorecendo um "egocentrismo pequeno-burguês" de natureza
essencialmente reacionária. (Dejours, 2000, p. 38) (grifos do autor)
Essa atitude das organizações sindicais mostrou-se equivocada, posto que contribuiu
para a desvalorização da noção de sofrimento, o que por sua vez serviu para que se tolerasse
ainda mais o sofrimento subjetivo. Donde se depreende que a política dos sindicatos e da própria
esquerda francesa foi co-responsável por essa tolerância ao sofrimento psíquico.
No entender do autor, o descompasso entre a posição sindical e as vivências dos
trabalhadores nas organizações foi um dos fatores a contribuir para a dessindicalização e a
fragilidade sindical. Assim sendo, tal fragilidade sindical não seria a causa da tolerância à injustiça,
“mas a conseqüência do desconhecimento e da falta de análise do sofrimento subjetivo por parte
das próprias organizações sindicais, desde antes da crise do emprego” (ibid., p. 40).
Outros aspectos não podem ser perdidos de vista, sob pena de reduzir as dificuldades
das organizações sindicais a questões de acentuado cunho psicológico, o que seria um erro.
Esses aspectos extrapolam o contexto francês e dizem respeito à maioria dos países
industrializados, desenvolvidos ou em desenvolvimento. Dentre tais aspectos, encontram-se
alguns processos sobrepostos, que incluem: um prolongado período de lento crescimento
econômico e de emprego; mudanças tecnológicas aceleradas; mudanças demográficas
significativas e crise no sistema de previdência social em muitos países; elevada expansão do
setor de serviços nos países industrializados e crescimento do setor informal nos países em
desenvolvimento – com o Brasil inserido nesse grupo -; explosão de formas não convencionais de
emprego, como o trabalho em tempo parcial, os contratos provisórios e o tele-trabalho (o
telemarketing é uma de suas possibilidades conhecidas); a feminização da mão-de-obra; a
importância crescente dos migrantes; e a ênfase na flexibilidade numérica e funcional nas
organizações (Régnier, 1997; Hirata, 1998; Bauman, 1999; M. Santos, 2001).
É difícil negar o fato de que, pelo menos à curto prazo, esta combinação de fatores
teve e ainda tem um impacto negativo para o movimento sindical, especialmente em relação à
negociação de acordos coletivos e à força sobre as relações industriais.
Retoma-se agora a análise dejouriana das organizações sindicais no contexto histórico
francês pós-movimento de maio de 1968. É preciso acrescentar àquela equivocada posição dos
sindicatos – e a todas as mudanças ocorridas tanto no campo da atividade produtiva quanto no da
gestão empresarial –, a ascensão do discurso neoliberal desde os anos oitenta, cujos “avatares”
foram o reaganismo e o tatcherismo. Essa combinação de fatores fortaleceu uma série de teses
neoliberais, elencadas por Dejours:
- Não existe mais trabalho. Este se tornou artigo raro em nossa
sociedade. As principais razões disso são o progresso tecnológico, a
automatização, a robotização etc.
- O trabalho ... tornou-se inteiramente transparente, inteligível,
reproduzível e formalizável, sendo possível substituir
progressivamente o homem por autômatos...
- Como perdeu seu mistério, o trabalho não se mais se presta à
realização do ego nem confere sentido à vida dos homens e das
mulheres da "sociedade pós-moderna". Convém, pois, procurar
substitutos do trabalho como mediador da subjetividade, da
identidade e do sentido (Dejours, 2000, p. 42)
A contestação dessas teses baseia-se no fato de que o trabalho, longe de ser tornar
artigo raro em meio a um “downsizing” generalizado – entendido aqui não como otimização das
organizações, mas como corte de custos (postos de trabalho) puro e simples –, é cada vez mais
intenso para os que permanecem nas empresas, com sua duração real aumentando a cada dia,
em todos os setores das organizações. Por outro lado, uma parte importante do trabalho é
deslocada para os países do hemisfério sul – sudeste asiático inclusive –, onde os custos com
mão-de-obra assalariada são infimamente menores do que na Europa, no Japão e nos Estados
Unidos. Graças à globalização, não diminui o trabalho; ele apenas se desloca em termos
geográficos. Além do mais, aumentou o trabalho mal (ou não) remunerado (representado pelos
estagiários, horas extras etc.), assim como também o trabalho ilegal (imigrantes clandestinos no
setor de vestuário, seja em Los Angeles ou em São Paulo) e a terceirização em serviços antes
essenciais (firmas de limpeza, serviços de saúde etc.) (Dejours, 2000). 6
Em segundo lugar, o trabalho ainda não se tornou inteiramente inteligível, formalizável
e automatizável. Cada vez mais ocorrem incidentes que comprometem a qualidade do trabalho e
a segurança das pessoas e das instalações. É cada vez mais difícil esconder a degradação das
condições de higiene e os erros na administração de cuidados médicos (id.).
Quanto à questão do trabalho ter deixado de ser mediador de subjetividade, identidade
e sentido, na realidade ainda “...não se vê atualmente nenhum candidato capaz de substituí-lo”
(Rebérioux apud Dejours, 2000, p. 43). Afora isso, mesmo continuando a ser esse mediador, ele
segue gerando sofrimento para os que têm emprego. Isto ocorre pela intensificação da carga de
trabalho e da fadiga, assim como degradação progressiva das relações de trabalho –
representadas pelo aumento da desconfiança, do individualismo, da concorrência desleal intra e
inter organizações etc. – e é arrematada pelas dificuldades que os trabalhadores encontram em
reagir coletivamente.

6
Cf. também Souza et al., 1999.
A título de ilustração, o presidente Fernando Henrique Cardoso, em uma entrevista 7,
chamou a atenção para o fato de que a última greve de proporções federais de que ele tem notícia
ocorreu em 1995, por parte dos funcionários da Petrobrás, não tendo havido nenhum outro
movimento dessa magnitude nos últimos seis anos. Ainda que sua observação sobre o fato não
se referisse à fragilidade sindical associada a dificuldades de mobilização coletiva dos
trabalhadores brasileiros, a hipótese de que isto ocorra no país não em função de indicadores
econômicos e sociais favoráveis, mas sim pela série de postulados teóricos apresentados por
Dejours, mostra-se cabível.
Alguns desses postulados são apresentados a seguir. Eles são representados por
duas dificuldades subjetivas por parte dos trabalhadores, com suas conseqüências para com a
mobilização coletiva:
1 A culpa impingida pelos "outros";
2 A vergonha de protestar, quando há outros que são muito mais desfavorecidos.
Por “outros” entenda-se os atores e setores da sociedade que desaprovam os
movimentos reivindicatórios da classe trabalhadora, fazendo uso de argumentos como, por
exemplo, que se trata de greves abusivas que prejudicam as empresas, a população e o próprio
país.
Quanto à vergonha em relação ao ato de protestar, ela se dá quando os que sofrem as
pressões ligadas ao trabalho se comparam aos desempregados e aos pobres, como se as
relações de dominação e injustiça social só afetassem os dois últimos. Existe uma introjeção, por
parte dos que estão empregados, das críticas dos demais à sua condição de pessoas “com
emprego”. É a vergonha dos que têm trabalho de serem considerados insensíveis em relação aos
que sofrem por causa da falta de trabalho. Ter trabalho passa a ser considerado um privilégio que
não dá margem a nenhum protesto.

Assim, à primeira fase do processo de construção da tolerância ao


sofrimento, representada pela recusa sindical de levar em
consideração a subjetividade, segue-se uma segunda fase: a da
vergonha de tornar público o sofrimento gerado pelos novos métodos
de gestão do pessoal. (Dejours, 2000, p. 45) (Grifos do autor)
Desta maneira, os processos afetivos desencadeados pela percepção do sofrimento
alheio – que dependem da dimensão diacrônica do sujeito – levam a uma reação defensiva do
trabalhador diante de sua emoção, seja em forma de rejeição ou negação. 8 No caso de negação
ou rejeição, o que ocorre é a perda da consciência, por parte do sujeito, quanto à percepção do
sofrimento alheio. Isto é, pela intolerância afetiva em relação às próprias emoções, o sujeito
assume uma atitude de indiferença do sofrimento alheio, e de intolerância para com o que provoca
seu sofrimento. Ou em palavras de Dejours:

Eis por que a análise da tolerância ao sofrimento do desempregado e


à injustiça por ele sofrida passa pela elucidação do sofrimento no
trabalho. Ou, dito de outra maneira, a impossibilidade de exprimir
e elaborar o sofrimento no trabalho constitui importante
obstáculo ao reconhecimento do sofrimento dos que estão sem
emprego. (Dejours, 2000, p. 46) (Grifos do autor)

Submissão, medo e zelo


A flexibilização do trabalho a partir de métodos inspirados no modelo japonês (Just-in-
time, kan ban, CCQ etc), trouxe consigo novas modalidades de sofrimento, segundo dados
coletados por Dejours (2000) em levantamentos realizados na indústria automobilística francesa.

7
Concedida aos jornalistas Carlos Monforte e Franklin Martins. Jornal da Globo, sexta-feira, 20 de julho de
2001.
8
Dejours acrescenta a noção psicanalítica de recalque, que não será utilizada neste trabalho.
Embora as mudanças no trabalho tenham sido significativas9, a agregação de novas
tarefas e funções não garantiu, per se, a requalificação do trabalho e/ou a desrotinização das
atividades. No caso brasileiro, por exemplo, Abramo (apud Souza et al., 1999) destaca que,
exceto por algumas empresas metalmecânicas e eletrônicas, essa agregação não significou
sequer o enriquecimento das atividades – o que corresponderia à noção de polivalência do
trabalhador –, apenas a superposição de tarefas simplificadas sendo exercidas por um mesmo
trabalhador. Agregue-se a este aspecto algumas observações de Watanabe (id.), referindo-se à
utilização do modelo no Japão:

O deslocamento do controle sobre a produção e o seu ritmo, dos


gerentes para os grupos/equipes ou ainda para seus líderes, não
parece ter diminuído o stress e o desgaste físico e mental no trabalho,
muito pelo contrário, até os aumentaram, tendo elevado também a
freqüência de morte instantânea por trabalho estafante (karoshi).
(Apud Souza et al., 1999, pp. 55-6)
A principal preocupação dos trabalhadores, do ponto de vista subjetivo, passa a ser a
sua capacidade de resistir às pressões e ao ritmo de trabalho sem se ferir, sem adoecer e, tão
importante quanto os anteriores, sem reclamar. E para levantar os dados sobre esse novo tipo de
trabalho e o sofrimento derivado dele, Dejours comparou o relato dos trabalhadores e dos
gerentes, fazendo uso de um novo conceito: a “descrição gerencial do trabalho” e a “descrição
subjetiva do trabalho".
Essas duas descrições opõem-se uma à outra. A "descrição gerencial” refere-se ao
relato, feito pelos quadros superiores, sobre sua percepção a respeito das dificuldades quanto ao
cotidiano da organização; já a “descrição subjetiva” refere-se ao relato feito pelos trabalhadores
sobre esse mesmo cotidiano e as dificuldades com que se defrontam no exercício de sua
atividade, assim como sobre a maneira como conseguem superá-las, contorná-las, empurrá-las
para os outros ou até mesmo conviver com elas. Denomina-se descrição “subjetiva”, por ser
construída sobre a vivência dos trabalhadores, omitindo qualquer referência à organização formal.
A comparação entre a "descrição subjetiva" à "descrição gerencial" do trabalho serve
para descrever a organização real do trabalho, na tentativa de melhor defini-la. E segundo
Dejours, há uma discrepância crescente entre essas duas descrições. Principalmente através da
“descrição subjetiva”, verifica-se que o trabalho se mostra absolutamente diferente do que se
pensa em termos teóricos, ou do que pensam os gerentes. Há diversos imprevistos que
demandam constantes improvisações, com situações caóticas que tornam praticamente
impossível a previsão e o controle.
Na empresa mencionada pelo autor, por exemplo, os operários trabalham em regime
de insuficiência de pessoal. Todas as manhãs, o chefe de UET [unidade elementar de trabalho]
tem que negociar com os colegas de outras unidades para conseguir um ou mais funcionários a
fim de minimizar os efeitos da insuficiência de pessoal na seção da linha de montagem pela qual é
responsável.
A inexistência de movimento coletivo de luta contra esse quadro é interpretada por
Dejours como conseqüência do surgimento do medo. Essa explicação foi formulada a partir dos
resultados da pesquisa e da validação e confirmação das interpretações pelos trabalhadores,
pelos chefes de UET e também pelos gerentes (Dejours, 2000).
O medo dos trabalhadores vem da constante ameaça de demissão, de que venham a
ser substituídos por trabalhadores precários e da própria precarização do seu trabalho. Esse
medo gera condutas de obediência e submissão, e os trabalhadores deixam de perceber o
sofrimento uns dos outros. Dá-se, portanto, uma separação subjetiva entre os que trabalham e os
que não trabalham, à medida que os primeiros se desligam não só do seu próprio sofrimento, mas
do daqueles que estão longe desse universo, isto é, os excluídos, os desempregados.

9
Divisão do trabalho em equipes de trabalho, desespecialização de trabalhadores e de máquinas,
liberalização da produção, autonomia e multifuncionalidade dos trabalhadores, achatamento da hierarquia
gerencial, maior integração entre concepção, execução e controle etc. (Souza et al., 1999).
É preciso então recapitular algumas das conseqüências da precarização do trabalho:
a) intensifica-se o trabalho e aumenta o sofrimento subjetivo; b) neutraliza-se a mobilização
coletiva contra o sofrimento, surgindo o medo; c) a estratégia defensiva predominante passa a ser
a combinação entre o silêncio em relação ao próprio sofrimento (resistir às pressões) e a negação
do sofrimento alheio; e d) aumenta o individualismo, o “cada um por si” (Dejours, 2000).
Todos esses pontos foram depreendidos principalmente da análise da “descrição
subjetiva do trabalho”, realizada por Dejours nas organizações anteriormente citadas. Nessa
descrição encontra-se uma divergência substancial entre a vivência que os trabalhadores
expressam e a descrição gerencial. O dado contraditório levantado pelo autor refere-se ao fato de
que os gerentes das organizações pesquisadas confirmaram a existência dos problemas
levantados pelos trabalhadores.

Não somente os validaram, como também acrescentaram que


também eles sofrem com as novas formas de gerenciamento. Assim
ficamos sabendo que, todas as manhãs, eles enfrentam uma reunião
com a direção, durante a qual um gerente se vê na berlinda, tendo
que se submeter, diante de todos os colegas, a longas reprimendas
por sua incapacidade para desincumbir-se bem de suas tarefas e
assumir suas responsabilidades. (ibid., p. 53)
Desta forma, a contradição entre o discurso dos gerentes e o dos trabalhadores –
mesmo sem a discordância dos primeiros em relação às descrições dos últimos – é atribuída ao
medo de tornar visíveis as próprias dificuldades dos gerentes, de que elas se dêem por sua
incompetência, o que os incluiria entre os funcionários demissíveis, sendo que estudos realizados
pelo autor em diferentes setores – construção civil, indústria nuclear, indústria química – reforçam
esses resultados (Dejours et al., 1994). Assim sendo, o medo se dá tanto na área operacional
quanto na gerencial, ainda que apenas a descrição subjetiva – ou seja, a dos trabalhadores – se
encarregue de indicá-la, por meio da explicitação das pressões, das dificuldades e do sofrimento.
Porém, o medo dos gerentes explica apenas o silêncio do seu discurso sobre as
dificuldades dos trabalhadores, mas não o fato dos primeiros mostrarem plena confiança no
sistema organizacional. Aqui incide o aspecto do “zelo”. Dejours esclarece:

Uma fábrica, uma usina ou um serviço só funcionam quando os


trabalhadores, por conta própria, usam de artimanhas, macetes,
quebra-galhos, truques; quando se antecipam, sem que lhes tenham
explicitamente ordenado, a incidentes de toda a sorte; quando, enfim,
se ajudam mutuamente, segundo os princípios de cooperação que
eles inventam e que não lhes foram indicados de antemão. (Dejours,
2000, p. 56)
O zelo diz respeito a iniciativas, individuais e coletivas, que beneficiam a organização
do trabalho, ainda que à custa de cometer infrações em relação aos regulamentos e às ordens.
Essas iniciativas são de caráter cognitivo (saber lidar com o imprevisto, com o inusitado, com o
que não foi transformado em conhecimento explícito) e afetivo (a coragem para desobedecer ou a
ousadia de transgredir, por exemplo), sendo que estudos clássicos sobre motivação sustentam
que elas se dariam pela vontade livre dos trabalhadores (Dejours, 1996). No presente caso,
porém, o zelo não reflete essa livre vontade, nem dos gerentes e nem tampouco dos
trabalhadores. As constatações de Dejours apontam novamente para o medo como motor dessas
iniciativas de caráter afetivo e cognitivo. Tais iniciativas ocorrem tanto para aumentar a produção
quanto para constranger os colegas de trabalho e os subalternos, “de modo a ficar em posição
mais vantajosa do que eles no processo de seleção para dispensas” (Dejours, 2000, p. 58).

A banalização do mal nas organizações


Outro fator que sustenta as contradições entre a descrição subjetiva e a descrição
gerencial do trabalho denomina-se "estratégia da distorção comunicacional”, conceito formulado
por Dejours a partir da “teoria do agir comunicativo”, do filósofo alemão Jürgen Habermas (id.). A
dita estratégia está ligada à negação do sofrimento no trabalho – da qual, como foi visto, a
gerência faz parte importante –, isentando a organização do trabalho das falhas ocorridas, que
são então interpretadas como resultado de incompetência, desleixo, despreparo, má vontade,
incapacidade ou erro dos trabalhadores, uma soma de características conhecida como “fator
humano” (Dejours, 1999). Essa perspectiva se reflete na vivência dos trabalhadores, que além de
deixarem de ter seu trabalho reconhecido, muitas vezes escondem suas dificuldades em relação
às tarefas prescritas.
É a negação do real do trabalho, isto é, daquilo que de fato acontece no cotidiano das
organizações e que nem sempre consta dos manuais e regulamentos. E a crença no sucesso das
novas tecnologias como solução para todos os problemas organizacionais reforça ainda mais
essa distorção.
Por negação entende-se tanto o desconhecimento daquela realidade quanto o sigilo, o
deliberado silêncio e a sonegação de informações que possam representar o risco de demissão.
Paradoxalmente, são os próprios trabalhadores que assumem essas condutas, tornando-se
cúmplices dessa negação do real do trabalho, a despeito de serem os mais prejudicados por essa
negação.
Em sua máxima expressão, a distorção comunicacional faz uso da mentira, que é
construída para esse fim. Ela consiste na propagação de informações sobre a produção “a partir
dos resultados, e não a partir das atividades das quais eles são decorrentes”, e de “construir uma
descrição que só leva em conta os resultados positivos e, logo, mente, por omitir tudo que
represente falha ou fracasso” (Dejours, 2000, p. 64) (grifos do autor). Cabe notar que as
organizações justificam esse tipo de estratégia com argumentos comerciais e gerenciais, à
medida que certas informações seriam prejudiciais à imagem da empresa, e portanto devem ser
“suavizadas”.
A distorção comunicacional faz uso da racionalização da mentira. De fato, tanto a
negação do sofrimento dos outros quanto a participação na construção da mentira são fontes de
sofrimento, de mal-estar psicológico. E para administrar tal sofrimento, é preciso recorrer a essa
racionalização da mentira, entendendo a palavra “racionalização” do ponto de vista psicológico,
isto é, como uma defesa psicológica onde experiências, comportamentos ou pensamentos que o
sujeito considera inverossímeis (mas dos quais ele não pode prescindir) são justificados por meio
de “um raciocínio especioso, mais ou menos obscuro ou sofisticado” (ibid., p. 72). Por meio dela, a
mensagem em questão é interpretada como sendo um mal necessário e inevitável. O sacrifício
retorna a sua etimologia, um “sacro ofício” em forma de contribuição para a superação de uma
fase dolorosa para que se chegue a uma fase de alívio. Invoca-se com freqüência a razão
econômica. Em escala nacional tal estratégia também é utilizada, como no caso de boa parte dos
planos econômicos a que a população brasileira foi submetida nas últimas décadas – dos quais o
confisco do Plano Collor seria uma amostra.
Retornando à esfera da organização, se esse discurso voltado para o seu exterior se
justifica, o que surge como novidade é a sua orientação para dentro da empresa, mirando aos
atores da organização. Aos poucos, estes se vêem tendo que defender e sustentar as mensagens
sobre a excelência da organização, deixando qualquer crítica de lado, para não prejudicar os
negócios nem dar informações que favoreçam a concorrência. Desse modo, a prática da
publicidade abrange todos os setores da empresa, e o que era um discurso voltado para o exterior
– a clientela, o mercado – atinge a todos os atores da organização, que se tornam cúmplices da
mentira instituída.
Porém, sustentar essa mentira instituída exige que se eliminem as provas que a
desmascarem. Assim sendo, desaparecem os fracassos, encobrem-se acidentes de trabalho,
sonega-se informações sobre incidentes críticos, pressiona-se testemunhas para que se calem.
Antigos funcionários são transferidos ou demitidos, sendo substituídos por outros mais novos, que
não tenham participação na história desses incidentes.
Essa conjuntura de tolerância em relação à mentira, assim como também de
cooperação em sua difusão, é o que Dejours define como sendo o mal. É burlar as leis
trabalhistas, manipular deliberadamente a ameaça de demissão, empregar pessoas em regime
escravo, (como nos estabelecimentos semiclandestinos de confecções ou em fazendas no interior
do país). O mal também diz respeito à chantagem, às insinuações que têm como propósito
desestabilizar psicologicamente os trabalhadores, para que cometam erros que servirão de
pretexto para sua demissão por incompetência profissional.
Para que sejam qualificadas como mal, é preciso que elas sejam:
- instituídas como sistema de direção, de comando, de organização
ou de gestão, ou seja, quando elas pressupõem que a todos se
aplicam os títulos de vítimas, de carrascos, ou de vítimas e carrascos
alternativa ou simultaneamente;
- públicas, banalizadas, conscientes, deliberadas, admitidas ou
reivindicadas, em vez de clandestinas, ocasionais ou excepcionais, e
até quando são consideradas corajosas. (Dejours, 2000, p. 77) (Grifos
do autor)
Resta saber quais as motivações dos atores da organização – que não tenham algum
desvio de caráter ou qualquer traço marcadamente psicopatológico – para participar desse
sistema de gestão que tem o mal como princípio organizacional.

Estratégias coletivas de defesa


A participação de atores da organização na estratégia da mentira, de violação de
direitos e de demais práticas que infligem sofrimento a outrem exige mais do que resignação e
consentimento passivo dos atores da organização. É necessário que se acrescente um novo
componente: a coragem. É a ela que se apela para mobilizá-los rumo à banalização do mal.
Porém, um paradoxo se coloca sobre a coragem: o fato desta, mesmo sendo
reconhecida como uma virtude, associar-se com o exercício do mal. Dejours (2000) sustenta que
tal subversão da razão ética só ocorre quando o mal é realizado em nome do trabalho, “...de sua
eficácia e sua qualidade” (p. 81), onde então passa por sacrifício, “por „desprendimento‟ ou
mesmo dedicação ao outro, à nação, ao bem público” (id.) – o que, como foi visto, é reforçado
pela distorção comunicacional. Assim sendo, a violência, a injustiça e o sofrimento infligidos a
outrem são transformados em um bem ao se revestirem de uma imposição do trabalho ou de uma
missão, cumprindo a função de re-significar o mal. Ou seja, trata-se da associação entre duas
dimensões: “a dimensão da obrigatoriedade, de um lado, e a dimensão utilitarista, de outro...”
(ibid., p. 100).
Segundo o autor, o ingrediente que auxilia a associar a coragem e o exercício do mal
é a virilidade. Construída socialmente, ela é medida pela capacidade de se perpetrar a violência
contra outrem, especialmente contra os que são dominados. Sua presença é notada nas
instituições castrenses, em certos esportes coletivos, grupos radicais, reuniões de adolescentes,
em prisões e instituições asilares, mas não se restringe a estes. É encontrada também dentro das
organizações, onde os que se recusam a participar do “trabalho do mal” 10, deixam de ser
reconhecidos como viris. E não ser reconhecido como tal significa “ser um „frouxo‟, isto é, incapaz
e sem coragem, logo, sem „a virtude‟ por excelência” (Dejours, 2000, p. 82).
O apelo à virilidade é bastante poderoso socialmente. A renúncia ao exercício da
força, da agressividade, da violência e da dominação, além de ser vista como não-viril, é
considerada uma fuga, um sinal de covardia para a comunidade dos homens. E desse juízo se
depreende uma equação: a fuga é motivada pelo medo, que por sua vez significa falta de
virilidade; portanto, falta de coragem (fuga-por-medo = falta de coragem). É uma equação tão
arraigada na cultura ocidental, que tanto homens quanto mulheres “estabelecem uma associação
entre identidade sexual masculina, poder de sedução e capacidade de se valer da força, da
agressividade, da violência ou da dominação” (ibid., p. 86). Assim sendo, a virilidade combate o
medo, prometendo prestígio e sedução a quem enfrenta a adversidade, ameaçando aos que
fogem com a perda da identidade sexual masculina.
Para conviver e participar do trabalho do mal nas organizações, homens e mulheres
elaboram estratégias coletivas de defesa, que servem para racionalizar o mal. A estratégia

10
Expressão utilizada por Dejours (2000).
coletiva de defesa consiste em opor ao sofrimento de ter que cometer atos reprováveis uma
negação coletiva, da qual expressões como "É o trabalho, isso é tudo!" e "É um trabalho como
qualquer outro" servem como exemplo.
Porém, a negação não é suficiente para explicar o zelo com que muitos gerentes
administram suas atribuições. Mais do que a negação, Dejours afirma haver uma ostentação
cínica da virilidade, representada por atitudes, assumidas pelos quadros dirigentes, que mostrem
uma capacidade de fazer ainda mais do que o exigido, seja enxugando os quadros em proporções
muito maiores do que o estipulado pela direção, ou destratando os subordinados diante de todos,
algo que impressiona e é considerado um gesto de coragem e determinação, que se soma a sua
“capacidade de enfrentar o ódio daqueles a quem vão fazer mal” (ibid., p. 89). Esta estratégia
coletiva de defesa é chamada pelo autor de “cinismo viril”.
A radicalização da estratégia defensiva do “cinismo viril”, com suas características que
engrandecem aqueles que as utilizam, concorre para a sua transformação em “ideologia defensiva
do realismo econômico” (ibid., p. 90), outro conceito do autor. Esta consiste em fazer com que o
cinismo seja visto como retidão de caráter, determinação e elevado senso de responsabilidade,
enfim, como atitude de defesa dos interesses coletivos – da organização, do país etc.
Um exemplo da utilização de estratégias coletivas de defesa nas organizações em
tempos de globalização e especialização flexível é oferecido por Cabral (2001, p. 98), que em um
estudo sobre os trabalhadores portuários da Cia. Docas do Rio de Janeiro verificou a presença de
uma série de indicadores de sofrimento encontrados no discurso dos mesmos, dentre os quais:
“sentimentos de injustiça e de não reconhecimento; resignação; aumento do individualismo; medo
de boatos; desconfiança em relação aos outros, preocupação quanto a atividades laborais
perigosas e penosas etc.”, para os quais responderam, por um lado, apegando-se às histórias do
passado “nobre” classe portuária (em contraste com seu presente pobre), como forma de resistir
ao processo de desestatização do Porto do Rio de Janeiro, percebido por eles mesmos como
irreversível; e por outro, pelo apelo à virilidade, percebido em seu discurso sobre “„quem era mais
homem‟ para „suportar a pressão‟ das novas condições de trabalho” (ibid. p. 97).
E em se tratando de um cenário de guerra, as vítimas são inevitáveis, sejam eles
portuários ou de qualquer outra categoria. Este é um quadro que se identifica com o atual contexto
da globalização e do neoliberalismo, com todas as suas características já exploradas em outro
trabalho (Cabral, op. cit.).

Considerações Finais
O presente artigo tratou de apresentar, a partir das formulações de Christophe
Dejours, o cenário, os atores e a trama por eles desenvolvida no âmbito do trabalho em tempos de
especialização flexível. Acrescentamos que se verificam, em nosso país, muitas das
conseqüências negativas elencadas em diferentes estudos sobre o trabalho e o sofrimento em
tempos de globalização (cf. Codo et al.,1993; Dejours et al., 1994; Alves, 1999; Dias, 1999;
Dejours, 2000, Dowbor, 2001).
De fato, apesar da globalização ser entendida como interdependência de mercados,
não significa que ela resulte em homogeneização do trabalho, já que suas vantagens econômicas
vêm gerando efeitos corrosivos para o trabalhador, com o “auxílio luxuoso” tanto da reestruturação
produtiva operada nas últimas décadas, quanto das novas exigências presentes no atual “modelo
de competência”, substituto do “modelo de qualificação profissional”.
Tratamos aqui especialmente do trabalhador que não consegue empregar-se (o
desempregado primário) e o que perde o seu emprego e não consegue reempregar-se (o
desempregado crônico), para os quais resta o sofrimento, conseqüência de um progressivo
processo de dessocialização, que leva ao adoecer físico ou mental. Entretanto, o trabalhador
empregado também sofre. Fala-se aqui não de qualquer sofrimento, posto que ele pode ser
criativo, positivo, propulsor de mudanças na própria organização à qual pertence, mas sim de um
sofrimento patogênico, que surge quando na dita organização restam apenas pressões
intermináveis e incontornáveis – e pior, sem sentido –, esgotando os recursos dos sujeitos e
levando-os a descompensações mentais ou físicas.
As estratégias coletivas de defesa, apresentadas nesta revisão da obra de Dejours,
cumprem um importante papel na adaptação ao sofrimento. Além disso, contribuem para a coesão
dos trabalhadores, à medida que compartilham das mesmas experiências a respeito das pressões
do (e no) trabalho, da construção de seu sentido, e da vivência do sofrimento. Porém, tais
estratégias atendem à manutenção da injustiça presente dentro das próprias organizações,
funcionando como um círculo vicioso interminável, do qual todos – operadores, gerentes,
dirigentes e inclusive os próprios desempregados – parecem não conseguir se libertar. Essa
injustiça, verdadeira banalização do mal, deve ser objeto de profunda reflexão, para a construção
de alternativas que neutralizem sua concomitante distorção comunicativa e permitam reorientar as
estratégias coletivas de defesa para o caminho da requalificação de seus elementos – medo,
vergonha, silêncio, coragem, virilidade e outros –, quebrando o círculo vicioso que caracteriza o
seu processo. Estas alternativas já são objeto de estudo tanto por Dejours quanto por estudiosos
de outras áreas (ergonomistas, antropólogos, sociólogos, psicólogos sociais etc.). No entanto, sua
apresentação e análise vão além do âmbito do presente artigo, cujos limites se atêm à esfera do
sofrimento no trabalho, seu contexto e seus indicadores.
Mas e a gestão do conhecimento, qual o seu papel no perverso processo até aqui
descrito? Se for utilizada exclusivamente para atender à obsessão pela eficácia, pela
produtividade e por resultados a curto prazo, seu destino será transformar-se em mais uma
simples técnica de controle, adaptativa e de concepção meramente instrumental, o que a longo
prazo produzirá uma nova (velha) modalidade de sofrimento patogênico, uma verdadeira
“indigestão de conhecimento”. Esperamos que novas estratégias coletivas de defesa surjam,
servindo como indicadores dessa “infecção” que reduz o homem ao universo das coisas,
afastando-o do ápice da gerência do seu próprio saber: a sabedoria.

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