Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Letícia Cesarino
Introdução
Este capítulo avançará uma proposta de explicação cibernética (Bateson 1972) para
uma constelação emergente onde as mídias digitais podem ser pensadas como co-produzindo
o que se tem chamado de novos populismos (em especial, conservadores), neoliberalismo e
pós-verdade. Partindo dessa perspectiva, fenômenos que são normalmente vistos como
separados, e “causando” uns aos outros, passam a ser considerados como sendo diferentes
ângulos analíticos sobre um processo complexo que é, na prática, difícil de ser segmentado.
Para tanto, desenvolverei aqui uma articulação (meta)teórica entre, por um lado, noções da
cibernética e da teorias de sistemas e, por outro, elementos da teoria antropológica e da
teoria política contemporânea que operam numa escala analítica similar à da explicação
cibernética.
Meu pivô empírico seguirá sendo aquilo que venho chamando de populismo digital, a
partir de pesquisa online realizada em redes bolsonaristas antes e depois da eleição de
outubro de 2018 (Cesarino 2019; a sair a,b). Parto, porém, da suposição, implicada no
argumento de alguns autores contemporâneos (Mirowski 2019, Davies 2018, Zuboff 2018), de
que a ascensão dos populismos conservadores pelo mundo é apenas o componente “político”
de uma constelação muito mais ampla, que, a prosseguir como está, trará mudanças
significativas naquilo que entendemos por modernidade, ciência e democracia.
A primeira seção deste capítulo retoma as principais linhas do meu argumento sobre o
populismo digital, destacando as articulações possíveis entre autores e noções dos campos da
cibernética e teorias de sistemas, teoria antropológica clássica e teoria política
contemporânea. Busco com isso demonstrar por que penso que o plano da explicação
cibernética é especialmente produtivo para compreender a constelação empírica em tela. Na
segunda seção, discuto, de modo ainda incipiente, algumas das ressonâncias práticas e
epistêmicas entre o populismo digital, neoliberalismo e a arquitetura contemporânea das
mídias digitais. Concluo destacando como a pós-verdade, entendida enquanto exponencial
aumento da entropia informacional , pode ser pensada como efeito desses processos.
O que entendo aqui por perspectiva cibernética opera num plano explicativo menos
usual nas ciências sociais, porém reconhecível em linhas clássicas como o estruturalismo lévi-
straussiano, a ecologia da mente de Gregory Bateson, ou a teoria de sistemas de Niklas
1
Versões anteriores deste argumento foram apresentadas na VII Reunião de Antropologia da Ciência e da
Tecnologia (VII ReACT), em maio de 2019, e em workshop organizado pelo Internetlab em julho do mesmo ano.
Agradeço aos meus interlocutores em ambos os eventos pelos ricos comentários recebidos, assim como aos
estudantes da disciplina “Neoliberalismo, mídias digitais e o político na contemporaneidade”, ministrada na UFSC
no primeiro semestre de 2019.
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
Luhmann. No presente argumento, identifico essa perspectiva também com autores menos
explicitamente associados a ela, como Mary Douglas, Thomas Kuhn, Ernesto Laclau e Bruno
Latour (em Vida de Laboratório), além de derivações na psicanálise e no pós-estruturalismo. A
perspectiva cibernética não se associa nem ao pólo humanista-hermenêutico da antropologia,
nem a análises causais do tipo “explicação positiva” (Bateson, 1972). Ela também opera em um
“meio-termo” entre explicações qualitativas e quantitativas, e por isso tem, a meu ver, um
potencial especialmente promissor de articulação interdisciplinar – que, no caso dos estudos
contemporâneos sobre as mídias digitais, tem se mostrado cada vez mais necessária.
usuário final enviesado, filtrado através de múltiplas mediações tanto algorítmicas quanto
humanas.
Confiança. Durante as eleições, conteúdo relativo a política chegava aos usuários como
mensagens privadas através de redes de confiança, como parentes e amigos. Naquele
momento, nem o indicativo de “forwarded” existia, tornando difícil diferenciar aquilo que
havia sido digitado ou apenas encaminhado pelo emissor da mensagem. Além disso, por ser
um ambiente criptografado e peer-to-peer, o WhatsApp aparenta ser um ambiente seguro e
privado para os usuários.
Mas que conteúdos circulavam pelo aplicativo, e chegavam de modo tão capilar e
intensivo aos usuários? Durante o período eleitoral, a quantidade de conteúdo circulado no
WhatsApp foi absolutamente massiva, como já foi inclusive quantificado por plataformas de
monitoramento de grupos públicos em operação na época (Vieira et al 2019, Santos 2019). No
meu caso, durante a campanha estive sempre em entre três e quatro grupos pró-Bolsonaro ao
mesmo tempo. A cada dia, no total, centenas, às vezes milhares de mensagens – houve
momentos em que tive de deixar grupos, pois meu aparelho não conseguia acompanhar o alto
volume e frequência de compartilhamentos. Uma proporção ínfima desse volume se referia à
campanha oficial do candidato vencedor – o grosso consistia em conteúdo “informal”, mas, ao
que tudo indica, impulsionado por meios automatizados, cuja origem permanece em grande
parte obscura.
Assim, meu primeiro desafio de pesquisa foi organizar aquela quantidade massiva de
material empírico em algum tipo de tipologia qualitativa. O que parecia ser uma tarefa
intratável se mostrou, na realidade, bastante simples. Naquele momento, paralelamente à
coleta de dados eu li, pela primeira vez, A razão populista, obra seminal de Ernesto Laclau
publicada em 2005. Partindo da escala explicativa metalinguística proposta por este autor (que
coincide com a da explicação cibernética), a organização do material se deu de forma quase
automática. Rapidamente, consegui definir cinco funções metalinguísticas que esgotavam
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
Todos esses enquadres discursivos são performativos: ou seja, visam não denotar uma
realidade externa ao emissor e receptor da mensagem, como num tipo de linguagem
referencial, mas gerar um certo efeito sobre o receptor – no caso, produzir um público onde
ele antes não existia. Dez anos atrás publiquei uma análise desse tipo de linguagem no caso
dos discursos da primeira posse do então presidente Lula – que hoje, depois de ler Laclau, eu
chamaria de populista num sentido preciso (Cesarino 2006). Mas o mesmo tipo de linguagem,
por vias digitais, opera de forma diferente, e aqui acredito que uma análise no plano
cibernético traga elementos novos.
como o seu objetivo era, justamente, reduzir o discurso político a esse nível mais elementar,
potencialmente apreensível por qualquer eleitor, mesmo (ou especialmente) aqueles sem
nenhuma educação política num sentido convencional. Esse efeito aparece, para muitos, como
uma simplificação e moralização indevidas do debate político.
Outra característica chave do mecanismo populista descrito por Laclau (2005) que o
aproxima da explicação cibernética é a sua operação no plano encorporado dos afetos, e não
da racionalidade abstrata. Isso significa que, para funcionar, a mobilização política que o
populismo opera não precisa se apresentar de forma consciente ou reflexiva para o eleitor; por
isso, o debate político num sentido convencional aparece como irrelevante e mesmo obsoleto.
Como mostrei em detalhes (Cesarino a sair,a), o ressentimento e raiva pelo “inimigo” gerados
pelos padrões meméticos circulados digitalmente não precisavam nem ser transmitidos
através de palavras. Muitas vezes – na realidade, com muita frequência – o efeito político
desejado (no caso da campanha, a escolha eleitoral) era produzido por imagens, músicas,
padrões estéticos de beleza e feiura, ou associações muito simples com cores e números. Aqui,
como descrito por Mary Douglas (2002), simbologias de pureza e perigo eram mobilizadas para
produzir fronteiras rígidas entre grupos, que passavam a ser policiadas por afetos de
repugnância e repulsa mútuos. Muitos memes eram explícitos na redução discursiva que
pretendiam operar: “fácil decidir”, “simples assim”, “basta olhar”. Por isso, práticas político-
eleitorais tradicionais como debates públicos, consulta a especialistas e mesmo um plano de
governo detalhado e consistente mostraram-se irrelevantes para o resultado eleitoral.
Mas minha etnografia indicou que o WhatsApp teve ainda um outro tipo de papel
naquilo que Jean e John Comaroff (2004) chamaram de “dialética de produção e redução” da
desordem: “the productive conjuring of a world saturated with violence and moral ambiguity,
the threat of which they alone are able to reduce to habitable order” (824). Isso porque o
aplicativo era ele mesmo um meio de difusão da desordem, em vários sentidos. Em primeiro
lugar, está o fato mais óbvio de que a proliferação das mídias digitais tem levado à
desestruturação do sistema de peritos e da esfera pública moderna tal qual a conhecíamos,
pois consistem em uma infraestrutura de produção e difusão de informação muito mais
fragmentada que a broadcast media (Warner 2002).2
Há, finalmente, outro elemento que tem sido pouco notado, mas que venho
observando nos grupos de WhatsApp que frequento desde a campanha: a circulação de vídeos
e imagens contendo pornografia e violência explícita (torturas, mortes, estupros,
espancamentos), além de diversos esquemas fraudulentos e outras manifestações típicos das
economias ocultas que proliferam na contemporaneidade (Comaroff e Comaroff 2002). É
impossível saber qual a prevalência desse tipo de conteúdo nos celulares dos brasileiros. Mas
não é difícil supor que eles possam estar contribuindo para a produção da atmosfera de crise,
ameaça e pânico moral na qual os populismos conservadores e o punitivismo legal vicejam
(Wacquant 2009, Comaroff e Comaroff 2004).
2
A teoria do público e contrapúblico de Michael Warner mostra convergências notáveis tanto com a teoria do
populismo de Laclau quanto com a perspectiva de sistemas, inclusive em alguns dos paradoxos que ela aponta.
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
Fica claro, portanto, que a estabilidade do mecanismo populista e do “povo” que ele
constrói depende do engajamento constante do opositor na relação cismogênica. Tanto antes
quanto depois da eleição, múltiplos adversários do bolsonarismo têm desempenhado esse
papel. E este papel – de uma oposição que vê Bolsonaro a partir da chave antagonística do
inimigo e não da perspectiva agonística de um adversário legítimo 3 – é, sem dúvida, esperado
por ele. Eu arriscaria mesmo a ir além: a esquerda tem se comportado, e mesmo mudado sua
auto-definição, cada vez mais de acordo com os padrões cismogênicos instituídos pela
gramática bolsonarista. Na medida em que esse padrão cismogênico continua em operação, é
possível defletir ou devolver qualquer acusação, pois o antagonimo subsume completamente
o conteúdo.
Um corolário dessa quarta função metalinguística é uma técnica bastante utilizada por
influenciadores bolsonaristas que poderíamos chamar de espelho invertido. Ela envolve a
produção de uma imagem simétrica e inversa de palavras de ordem, modus operandi e mesmo
padrões estéticos da esquerda, como demonstrei em outra ocasião (Cesarino a sair,a).
Desnecessário dizer, esse padrão envolve o estabelecimento de um universo dicotômico
exclusivo, com o esvaziamento e deslegitimação de posições políticas ambíguas ou terceiras
posições: é o caso, por exemplo, das acusações a Marina Silva e João Amoedo por posições
consideradas “em cima do muro”. A eficácia dessa estratégia cismogênica se apresentou ainda
no primeiro turno eleitoral, que foi marcado por um padrão de polarização binária
normalmente observado apenas no segundo turno.
3
A diferenciação entre agonismo e antagonismo é de Chantal Mouffe (2000).
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
Porém, o fator decisivo para o sucesso dessa estratégia parece ter sido o atentado à
faca sofrido pelo candidato ainda na campanha para o primeiro turno. A partir daquele dia, o
corpo físico da liderança carismática se retirou de cena por algumas semanas, e tomou seu
lugar aquilo que eu chamei, numa alusão a Kantorowicz (1998), do “corpo digital do rei”
(Cesarino 2019): o “exército” crescente de eleitores que passaram a fazer a campanha “de
graça” no seu lugar. Convenientemente, os autointitulados “marqueteiros do Jair” emergiram
no momento em que o jornal Folha de São Paulo noticiou os primeiros indícios de possíveis
ilegalidades no disparo de conteúdo através do WhatsApp – algo que, até o momento da
escrita deste texto, ainda não havia sido devidamente investigado pela justiça eleitoral.
Mas esse fenômeno foi além da produção de um canal midiático exclusivo e separado
da esfera pública mais ampla. Pois as affordances particulares das mídias digitais fizeram com
que o próprio mecanismo populista, tal qual o descrevi com base em Laclau (2005), fosse
fractalizado pela extensa rede digital formada que chamei, em outra ocasião, de bolsoesfera
(Cesarino, 2019, a sair,a). Em outras palavras, a topologia fractal da internet, e a excepcional
capilarização da campanha digital propiciada pelo smartphone e pelo WhatsApp, permitiram
replicar em todas as escalas da rede o mecanismo de mobilização populista originalmente
impulsionado pela candidatura Bolsonaro e seus aliados. Essa replicação, como o mecanismo
populista em si, se dá não no plano da consciência, mas no plano metalinguístico e
subconsciente do que Bateson (1972) chamou de deutero-aprendizado. Nesse sentido, o que
chamei da bolsoesfera não é um mero canal de comunicação entre líder e povo enquanto
entidades preexistentes – líder e povo só existem em e através desse canal midiático; ambos
são a infraestrutura digital que os mantém conectados, e não existiriam sem ela.
Uma das conclusões mais interessantes a que se chega com a análise cibernética do
populismo digital é, portanto, como ela problematiza um divisor que é central às discussões
sobre populismo no senso comum e mesmo na academia: aquele que opõe liberdade a
controle; espontaneidade a manipulação. Essa é uma questão que assombra o estudo de
fenômenos de massa desde ao menos fins do século XIX – e não por acaso, é a Gustave Le Bon
que Laclau dedica o primeiro capítulo de A razão populista. É como se ela tivesse sido colocada
em suspenso durante décadas de prevalência de pressupostos liberais na teoria política, que
contrapõem indivíduos autônomos a corpos coletivos; liberdade e autonomia a coerção e
controle. Ora, a cibernética avança justamente noções de “comando e controle” que operam
transversalmente a essas dicotomias – no que encontra precursores na teoria social como
Gabriel Tarde (2000), que trabalhou noções de imitação e contágio que são hoje centrais às
discussões não apenas sobre populismo, mas também sobre mídias digitais de modo mais
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
amplo. Em sua exposição de princípios da antropologia digital, Miller e Horst (2012) também
notaram a centralidade da contradição aparentemente intratável entre liberdade e controle
nos estudos sobre a internet. É aqui que chegamos a algumas ressonâncias notáveis entre o
fenômeno populista e a arquitetura contemporânea das mídias digitais, assim como com o
modo como alguns autores conceituam neoliberalismo e o fenômeno emergente da pós-
verdade. A próxima seção será dedicada a apontar algumas delas.
Num outro plano está a aliança entre conservadores e neoliberais que, nos EUA, vem
ao menos desde os anos 1970 (Cooper 2015). Também aqui observa-se uma retroalimentação
fundamental, desta feita entre os planos das políticas de redistribuição e do reconhecimento
(Fraser 1997), onde a defesa da integridade da família aparece como funcionalmente
complementar à desestruturação das políticas do Welfare State. Em outras palavras: num
contexto de aprofundamento das reformas neoliberais, é à família – e não ao Estado – que o
indivíduo deverá recorrer quando estiver desempregado, velho ou doente demais para
trabalhar. Vemos exatamente o mesmo processo ocorrendo no Brasil nos últimos anos,
chegando ao seu extremo na adulação incondicional do atual presidente a certos setores do
movimento evangélico – mesmo não sendo, ele próprio, convertido.
Há, ainda, um modo menos evidente, porém possivelmente mais profundo, com que
identidades conservadoras e subjetividades neoliberais têm se articulado na direita emergente
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
brasileira – que inclui o bolsonarismo, mas certamente não se resume a ele. Estou
desenvolvendo em outro lugar um argumento de que a separação “conservador nos costumes,
liberal na economia” é enganadora. A construção da identidade popular operada por
Bolsonaro tem como um de seus eixos principais uma gramática claramente neoliberal,
centrada na desqualificação moral da luta por direitos e proteções pelo Estado, por políticas de
redistribuição que supostamente cobririam a “livre iniciativa”, e pela regulação dos mercados
(inclusive, o das mídias digitais). Em outras palavras, a batalha conservadora de Bolsonaro
contra o “marxismo cultural” e o “socialismo” é, basicamente, a batalha neoliberal contra
regulações estatais. Neste sentido, o populismo de Bolsonaro deve ser visto como
essencialmente neoliberal: ou seja, operando de modo bivalente articulando reconhecimento
e redistribuição.
Para além da estratégia eleitoral por trás da mobilização desse tipo de retórica por
lideranças populistas contemporâneas (Cesarino 2019b), a própria arquitetura das redes
sociais tem contribuído para a proliferação desse tipo de linguagem. Talvez mais evidente seja
o caso do YouTube, cujos algoritmos demonstram uma forte afinidade com o tipo de conteúdo
conspiratório e alarmista que, como mostrei (Cesarino a sair,a), é uma das bases do populismo
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
digital. De modo mais amplo nas redes sociais, abunda uma linguagem do combate e da
“lacração”, bastante diferente do que seria esperado de uma retórica política tradicional
baseada no debate respeitoso e impessoal, com um horizonte de construção de consenso,
evidenciação das complexidades do mundo real, etc (Davies 2018). Um terceiro ponto a ser
destacado é como, nas redes sociais de modo geral mas em especial nos contextos de hiper-
polarização política propositalmente induzidos pela retórica populista, a linguagem humana
vem se aproximando cada vez mais da linguagem maquínica gerada por algoritmos, como os
bots. Muitas vezes, em certos ambientes como o Twitter e o Facebook, é difícil diferenciar
enunciados humanos daqueles automatizados.
Verdade. A episteme neoliberal tal qual descrita por Mirowski (Mirowski e Plehwe
2009, Mirowski 2019) permite uma articulação nodal com os outros ângulos da constelação
em tela. Ao longo dos últimos anos, este autor tem avançado o argumento de que o “coletivo
de pensamento neoliberal”, inaugurado pela Sociedade Mont Pèlerin nos anos quarenta, criou
e refinou mais que uma agenda econômica: uma doutrina epistêmica, em larga medida para se
opor ao ímpeto planejador e intervencionista do socialismo e da social-democracia. Mirowski
chamou atenção para o pioneirismo de Von Hayek em ver o mercado não apenas como um
mecanismo eficaz de alocação de recursos, mas como um mecanismo cognitivo. De acordo
com essa proposta epistemológica, a verdade só pode emergir como um a posteriori, resultado
da livre interação dos agentes individuais no mercado. Esse pressuposto fundamental depende
de outro: nenhum indivíduo ou agência planejadora seria capaz de ter acesso privilegiado à
verdade – nem o Estado, nem as estatísticas, nem mesmo a ciência. Nesse sentido epistêmico,
o neoliberalismo seria não uma extensão ou aprofundamento da modernidade, mas
encamparia um projeto essencialmente anti-moderno e anti-iluminista.
Vale notar, a este respeito, que muito do que se associa à pós-verdade hoje, como o
terraplanismo, apresenta uma estrutura epistêmica-sociológica bastante similar à da mecânica
populista. Aqui também opera uma inversão muito parecida com a que descreve Laclau, onde
quem era o outsider, o ignorante, se torna alguém dotado de conhecimento superior e
exclusivo. Como os ufólogos antes da internet (Antunes 2015), terraplanismo tem envolvido
grupos fechados, baseados no compartilhamento de um segredo desconhecido (ou
acobertado) pela sociedade envolvente. O acesso se dá por meio de conversão às vezes
gradual, às vezes brusca, mas sempre envolvendo algum tipo de Gestalt switch. Relatos
anedóticos como o documentário Behind the Curve indicam que esse tipo de fenômeno tem
atraído sujeitos vulneráveis, em busca do reconhecimento e socialidade que não encontram na
sociedade mais ampla. Assim, como o populismo descrito por Laclau, o terraplanismo pode ser
visto como um significante vazio que articula processos de formação de grupo e uma
identidade coletiva anti-establishment. Significativamente, terraplanismo, olavismo e
4
Suzane Alencar Vieira, em mesa redonda no V Encontro de Antropologia da Política, em 2019.
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
Em sua versão vulgar, a ideologia do livre-mercado trabalha com a ideia de que basta
retirar entraves regulatórios estatais para que as relações fluam “naturalmente” na melhor
direção possível. É como se, na base da prática de livre-mercado, não houvesse distorções,
monopólios ou assimetrias, e como se a falta de regulação não levasse a concentrações e
oligopólios – como tem ocorrido, notadamente, com a indústria de TI. O modo como o modelo
de negócio de grandes empresas como Facebook e Google tem estruturado as mediações
online é, contudo, largamente invisibilizado: dos algoritmos à coleta de dados pessoais; das
múltiplas formas de monetização a todo o aparato que Zuboff (2019) sintetizou sob o rótulo de
surveillance capitalism.
Eles [o coletivo de pensamento neoliberal] não poderiam tê-lo antecipado nos anos
sessenta, mas a mercantilização da internet foi o apogeu da visão de Stigler de uma
ecologia da atenção das massas. Basicamente, o projeto político consiste não em
convencer diretamente da superioridade do mercado sobre a sociedade num sentido
didático, mas sim utilizar o mercado como um amplificador para reciclar as
vulgaridades, tolices, amenidades - em suma, todo o ruído - de volta para aqueles que
o produziram inicialmente, em um loop de retroalimentação cibernético, a ponto de as
pessoas perderem a noção do que se passa no seu próprio mundo.5
5
Tradução livre do original: “They could not have anticipated it back in the 1960s, but the marketization of the
Internet turned out to be the culmination of Stigler’s vision of an ecology of mass attention. Basically, the political
project is not to directly convince anyone of the superiority of the market for society in any didactic sense; it is rather
to use the market as an amplifier to recycle the vulgarity, twaddle, gibberish and overall noise back into the public
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
Cabe notar, finalmente, que inovações tecnológicas têm propiciado a expansão desse
modelo de negócios baseado em inputs oferecidos pelo usuário para a economia off-line,
especialmente através da sharing economy de plataformas como Uber e AirBnb (Zuboff 2019).
Observa-se, nesta junção, a substituição progressiva de formas fordistas de trabalho e
mobilidade social por novas formas de empreendorismo individual (notadamente, digital),
além da financeirização e outras modalidades de “get-rich-quick schemes” típicas do momento
neoliberal (Mirowski, 2019; Comaroff e Comaroff, 2000). Afinal, o que o neoliberalismo tem
oferecido às pessoas em troca da precarização do trabalho e da vida é – nos termos de um dos
muitos parlamentares meteóricos eleitos pela nova direita em 2018 – a promessa de ganhar
muito dinheiro “sem trabalhar muito por isso”.6 Nesse ciclo de recursividades aparentemente
interminável e incontrolável, o neoliberalismo vai criando as condições para a sua própria
reprodução.
Considerações conclusivas
Desde seus primórdios, os estudos sociais da ciência e da tecnologia têm lidado com a
questão da estabilização dos fatos, ou daquilo que no ocidente se conhece como verdade. Boa
parte da literatura etnográfica e histórica neste campo tem se dedicado a mostrar como esse
processo envolve inúmeras mediações e intervenções no mundo “natural” (Kuhn 2006, Latour
e Woolgar 1997, Hacking 2012). Mas essa mesma literatura também mostra o quanto essas
mediações vinham se dando de forma organizada, em larga medida dentro de estruturas
relativamente fechadas como laboratórios (Latour e Woolgar 1997), ou, de modo mais amplo,
o tipo de “comunidade especial” que caracteriza as ciências (Kuhn 2006). O que parece
acontecer hoje – num contexto em que hegemonia neoliberal, mídias digitais e populismos
conservadores convergem em uma espécie de “tempestade perfeita” (Cesarino a sair,b) – é a
abertura aparentemente caótica dos processos de produção de verdade e sua pulverização por
uma paisagem digital cada vez mais ampla e pouco regulada. Porém, como nos atratores
estranhos descobertos por Lorenz – um dos ícones da teoria do caos – parece haver alguma
ordem por trás da aparente desordem; é o que busquei indicar aqui.
Cabe concluir notando que essa paisagem não é nem neutra, nem inevitável, mas tem
sido estruturada sobretudo pelos modelos de negócios das grandes corporações da tech
industry (Marres 2018). O sucesso econômico extraordinário do setor tem se baseado
fundamentalmente em dados e conteúdos gerados pelos usuários, e permanece escorregadio
à regulação por parte das estruturas legais do estado democrático de direito (Zuboff 2019).
Para utilizar a distinção heideggeriana que inspirou Laclau (2005):7 a ontologia da produção da
verdade – como a descreve, por exemplo, as teorias cibernéticas e de sistemas – não mudou; o
that generates it in the first place, in a cybernetic feedback loop, to such an extent that they have no clue what is
actually going on in their own world.”
6
Post de Ana Caroline Capagnolo no Twitter em 2012, “desenterrado” por usuários da plataforma depois que ela foi
eleita deputada estadual pelo PSL de Santa Catarina em 2018.
7
No caso de Laclau e Mouffe, o “político” refere-se à dimensão ontológica (ou seja, algo intrínseco à condição
humana e, poder-se-ia supor, de alguma forma presente em outras culturas), e a “política”, ao seu desdobramento
no plano ôntico de situações históricas particulares. Essa diferenciação ecoa formulações clássicas na antropologia
sobre estrutura e prática, sistema e história.
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
que mudou foi seu desdobramento ôntico numa prática histórica radicalmente alterada com o
fim da Guerra Fria, a ascensão neoliberal e a explosão das mediações digitais por um mundo
cada vez mais desigual.
Almeida, Rafael Antunes (2015) “Objetos intangíveis”: ufologia, ciência e segredo. Brasília:
Tese de doutorado em Antropologia Social, UNB.
Bateson, Gregory (1972) Steps to an ecology of mind. Chicago: Chicago University Press.
Cesarino, Letícia (2019) On digital populism in Brazil. Political and Legal Anthropology Review –
Ethnographic Explainers. 15 de abril de 2019.
Cesarino, Letícia (a sair, a) Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do
populismo digital no Brasil.
Cesarino, Letícia (a sair, b) The neoliberal face of digital populism in contemporary Brazil.
Comaroff, Jean e John Comaroff (2002) Millenial capitalism: first thoughts on a second coming.
Public Culture 12(2): 291-343.
Comaroff, Jean e John Comaroff (2004) Criminal obsessions, after Foucault: postcoloniality,
policing, and the metaphysics of disorder. Critical Inquiry 30(4): 800-824.
Cooper, Melinda (2017) Family values: between neoliberalism and the new social
conservantism. Cambridge, MA: MIT Press.
Davies, Will (2018) Nervous states: how feeling took over the world. Vintage.
Douglas, Mary (2002) Purity and danger: an analysis of concepts of pollution and taboo. New
York: Routledge.
Evans-Pritchard, E. E.(2005) Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar.
Gallego, Esther S., Pablo Ortellado e M. M. Ribeiro (2017) Guerras culturais e populismo
antipetista nas manifestações por apoio à Operação Lava Jato e contra a reforma de
previdência. Em Debate 9( 2): 35-45.
Gibson, James (1979) The theory of affordances, In: The Ecological Approach to Visual
Perception. Boston: Houghton Mifflin.
Hacking, Ian (2012) Representar e intervir: tópicos introdutórios de filosofia da ciência natural.
EdUERJ.
Manuscrito a sair nos anais da VII Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (VII ReACT)
Kantorowicz, Ernst (1998) Os dois corpos do rei: um estudo sobre a teologia política medieval.
São Paulo: Companhia das Letras.
Kuhn, Thomas (2006) A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva.
Latour, Bruno e Steve Woolgar (1997) Vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio
de Janeiro: Relume-Dumará.
Marres, Nootje (2018) Why we can’t have our facts back. Engaging Science, Technology and
Society 4: 423-443.
Mazzarella, William (2018) The anthropology of populism: beyond the liberal settlement?
Annual Review of Anthropology 48: 45-60.
Mirowski, Phillip e Dieter Plehwe (2009). The road from Mont Pèlerin: the making of the
Neoliberal Thought Collective. Harvard University Press.
Mirowski, Phillip (2012) The commercialization of science is a passel of Ponzi schemes. Social
Epistemology 26 (3-4):285-310.
Mirowski, Phillip (2019) Hell is truth seen too late. Boundary 2 46(1): 1-53.
Santos, João Guilherme (2019) Mobile networks and the Brazilian 2018 presidential election:
from technological design to social appropriation. Brazil Studies Program One Pager (University
of Oklahoma) 2, Julho 2019.
Wacquant, Loic (2009) Punishing the poor: the neoliberal government of social insecurity.
Durham: Duke University Press.
Warner, Michael (2002) Publics and counterpublics. Quarterly Journal of Speech 88(4): 413-
425.
Zuboff, Shoshana (2018) The age of surveillance capitalism: the fight for the human future at
the new frontier of power. Public Affairs Books.