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Prado Guilhermino Belo Horizonte Cidade Ilustradapdf
Prado Guilhermino Belo Horizonte Cidade Ilustradapdf
Patrocínio: Apoio:
cidades ilustradas
MIGUELANXO PRADO
BELO HORIZONTE
Prefácio de John – Pato Fu
Casa 21 Ltda
Todos os direitos reservados para:
Casa 21 Ltda
Reprodução Proibida
Copyright 2003
ISBN 85-88627-02-7
Coordenação Geral:
Roberto Ribeiro / Giuseppe Landi / Erica Buzelin
Texto:
Miguelanxo Prado
Tradução:
Juliene Vieira
Revisão:
Beatriz Morais
Arte Final:
Sílvio Romero
Impressão:
Artes Gráficas Formato Ltda
Já vou avisando: não sou mineiro de mineiridades. Nem de belorizontismos.
No entanto, cá estou, olhando pra estas imagens. Conheço todos estes lugares.
É esta a luz, esta a sombra. É esta a cor, estes os cinzas. O que é preciso pra
empacotar tão bem assim o espírito de uma cidade? Olha! É este o guardinha e
este o asfalto! Tudo confere ponto a ponto com as imagens arquivadas em
minha memória. Agora pronto, me deu vontade de voltar a todos estes lugares,
pra ver se é isso mesmo. Danado, esse galego. Tem certeza de que não nasceu
ali na Maternidade Santa Fé?
John – Pato Fu
Três razões que me levaram a Belo Horizonte
Numa mesa ao lado da minha, uma mulher bebe um café com pouco
entusiasmo e petisca um dos três pequenos bolinhos que estão num prato.
Eu ainda não sei, mas o que come, chamado de pão de queijo, é um poderoso
elemento da identidade mineira. A moça é encarregada das relações públicas
do hotel. Puxa conversa. Chama-se Rebeca. É belo-horizontina.
O ´escaravelho´
Era evidente que precisava de um carro. Pelo preço que me custaria alugar
um, resolvi comprar um Volkswagen usado. Aqui o chamam de fusca. Existem
milhares. Também há muitas daquelas peruas, da mesma marca que, na Europa
e creio que também nos Estados Unidos, associamos aos anos 60 e ao
movimento hippie.
Primeiro encontro
Ele pediu suco de maracujá; eu, uma cerveja. Aquilo não era álcool
bastante para esquecer a minha prudência, mas reconheço que sentia medo e
não tinha nem idéia do que podia estar passando pela cabeça do Otacílio. A
possibilidade de que se sentisse incomodado e pensasse em desfazer-se de
mim de uma maneira violenta era mais que provável.
Demorei uma semana para ter coragem de ligar de novo para o Otacílio. Fiz
isso ontem. Ele me convidou para assistir a uma partida de futebol no estádio
do Mineirão, entre Atlético e Cruzeiro. Otacílio é atleticano.
- Cada vez fico mais nervoso, tenso com jogos de futebol. Não vale
a pena tanto sofrimento.
Mas o certo é que estavam tocando num canto do lugar, uns músicos
que não o faziam nada mal.
- Não abra até chegar a sua casa. Cuide bem disso e não tenha medo,
não é droga.
- Bom, parece que você é seguro do que diz. Só uma coisa: não volte
a dizer belíssimo...
Uma mulher
Uma vez por semana vejo o Otacílio. Trago um novo pacotinho de pedras
para casa e as estudo. Não estou mal.
Bebi uma cerveja num desses bares diminutos - que aqui chamam de
copo-sujo - sempre com alguém dentro, falando, o tempo detido.
Érica me chamou, como tinha prometido. Buscou-me às três, pouco depois Começamos uma conversa esquiva, falando de bonecos, de teatro,
de almoçar, e me levou em direção ao norte. Entramos no Bairro Floresta, de aparências, de fabulações. Um pouco antes das cinco, ela disse que
e paramos o carro diante de um edifício com aspecto industrial. tinha de ir. Tentei acompanhá-la.
- Entra aí. É o Museu Giramundo. Eu tenho trabalho e não posso - Não me siga, por favor.
ficar, mas o museu fecha às cinco. Você terá algum tempo. Nessa hora
passarei para buscar você. - Gostaria de vê-la novamente.
Ao entrar, fiquei surpreendido: um museu de marionetes. Uma - Para continuar falando de bonecos?
pessoa atendia à entrada. No interior, não vi ninguém.
Não consegui pensar em uma resposta engenhosa. Fiquei em
Já havia um tempinho que estava no museu quando uma mulher silêncio, olhando como ela seguia caminhando.
apareceu de supetão, como se fosse um daqueles bonecos dotados
repentinamente de vida. Durante uns segundos olhei sobre a sua cabeça - Na próxima quarta-feira estarei na Pampulha a partir das cinco
com medo de encontrar os fios secretos que a movessem. Duvidei, pois a da tarde. Talvez nos encontremos.
iluminação no bar onde falei com o Otacílio não era boa, mas estava seguro
de que era ela. A loira elegante. Não consegui comportar-me com A Pampulha é uma lagoa, nos limites da cidade. Nunca estive lá.
naturalidade quando lhe disse que estava certo de que já tínhamos nos visto Quarta-feira será o dia de conhecê-la.
antes. Respondeu que não acreditava. Disse-lhe o nome do bar e me
arrependi no mesmo instante de fazê-lo.
Primeira perseguição
Tinha curiosidade de ver, à luz do dia, a mansão onde vivia Laura. Repassei
o mapa da cidade. O restaurante onde jantamos estava na avenida Augusto
de Lima. Dali, pegamos a Afonso Pena e fomos na direção norte até chegar
na avenida do Contorno. Fomos primeiro para esquerda e, aos poucos, para
a direita.
- Vai ser difícil, meu amigo. O Bar do Ponto está fechado há... pelo
menos, sessenta anos.
Passeio na Selva
Estação
Num dos galhos horizontais que atravessam a rua, vi, estou certo, um
jaguar.
Hoje o Walter me ligou. A mineradora Belgobrasileira, aquela da qual ele - É uma associação de catadores de lixo. Gente que vive na rua.
me falou insistentemente no mês passado, vai ser absorvida por uma empresa Estão organizados. Recolhem lixo, selecionam materiais, reciclam. Há algum
francesa. O negócio foi, ao que parece, uma pechincha. tempo, inclusive, confeccionam roupas, elementos de decoração,
esculturas... Aquela é uma das fundadoras.
Com todo esse assunto da Laura, dos encargos do Otacílio, me
descuidei do meu trabalho. Agora não tem remédio. Foi cumprimentá-la. Falou um pouco com ela, apresentou-me como
um amigo, fez com que me contasse como tinham organizado tudo aquilo.
A Laura, não voltei a ver.
Quando saímos, perguntei ao Otacílio por que quis me levar ali.
Passei de novo pela Praça Sete e atentei para o cinema em que
havia entrado outro dia. É o cine Brasil. Grades fecham as portas e a sua - Queria que conhecesse a dignidade da miséria. As favelas são
deterioração evidencia anos de desuso. Um homem disse não saber ao urbanizações de luxo para essa gente.
certo quando deixou de funcionar, talvez em 1997 ou 98. Aproveitei e
perguntei por aquele Delfim Moreira, governador do estado. Não se O Arrudas caminhava sujo, apenas uns fios de água morta.
lembrava de ninguém com esse nome nos últimos trinta anos.
Belo Horizonte deveria estar atravessada por um grande rio,
cheio de pontes. Se no futuro houver outra época de grandes obras e
ASMARE projetos, algum novo visionário deverá propor a conversão da avenida
Afonso Pena em leito desse grande rio.
- Há algo que eu quero que conheça, me disse o Otacílio.
Despedi-me do Walter. Comida mineira, não podia ser de outra forma. Abraçamo-nos. Dei-lhe um pacote que lhe havia levado e pus-me
Falei-lhe da possibilidade de ficar aqui. No momento ele não sabia de a caminhar.
nenhum posto que eu poderia assumir, mas me assegurou que assim que
tivesse notícias de algum trabalho para as minhas qualificações, me avisaria. Deve tê-lo aberto. Escutei sua voz funda berrar meu nome e, logo,
Quando nos despedimos, senti remorsos por não ter lhe dado uma recomendar-me que me cuidasse.
explicação verídica do acontecido nesses meses, da minha relação com
Otacílio e Laura. Mas não estou certo de que ele entenderia. Levantei o braço e acenei com a mão sem me virar. Não queria que
notasse minhas lágrimas.
Poderia jurar que os olhos de Otacílio estavam mais úmidos do que o normal
quando anunciei a minha partida.
Despedida de Érica
Segue caminhando sem olhar para trás, sem saber o que agora fará a
outra, Laura, a fantasma, a loura verdadeira. Abre a porta de um carro, coloca
debaixo do assento do motorista a bolsa com a peruca, senta-se, fecha a
porta e arranca.
Dirige um táxi.
Agosto 2003.
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