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O Anel de Giges

Anonimato, responsabilidade e justiça.

Conta Platão, no capítulo II de seu livro “A República”, que em época remota, na Lídia,
um pastor de nome Giges encontrou um anel de ouro no dedo de um esqueleto humano
gigante, após um terremoto, dentro de uma fenda que se abrira no solo, próximo ao local
onde ele apascentava ovelhas.

O anel, ele logo descobriu, possuía o poder de tornar invisível quem o utilizasse (já
vimos isso em outro lugar), e de acordo com a fábula, Giges, que era um homem
comum até então, começou a fazer mal uso de seu novo poder, e perpetrou atos infames,
até assassinar o rei da Lídia e ocupar seu lugar no trono.

Vemos, com esse mito platônico, que é bem antiga a atração pelo anonimato, por poder
fazer o que se quer sem que ninguém saiba. É bem anterior às máscaras e à internet.

E o que se busca com o anonimato?

É bem evidente que quem busca o anonimato, em geral, salvo as exceções, o faz para
não ter de se responsabilizar pelo que faz. Tem intenção de fazer algo que a sociedade
e/ou ele próprio consideram ilegal ou moralmente reprovável, e por isso se esconde
detrás de uma máscara, seja ela de plástico ou virtual. Trata-se, pois, de evitar a
responsabilidade.

E refletindo sobre a responsabilidade, qualquer um de nós é capaz de perceber o valor


desta virtude. Pois para qualquer coisa que precisemos de uma pessoa, gostaríamos de
contar com alguém responsável, ou seja, alguém capaz de responder por seus atos, por
seu trabalho, pelo que fala e pelo que faz.

Nenhum de nós aprecia o comportamento, seja de um funcionário, amigo ou parente,


que, ante as dificuldades apresentadas por seus deveres ou falhas que tenha cometido,
foge às suas responsabilidades; ou, o que é pior, que, premeditadamente, se utiliza da
máscara a fim de que ninguém saiba que foi ele.

É assim no particular e é assim também no coletivo.

O caminho percorrido pela humanidade tem sido longo e árduo, e aprendemos a duras
penas que o valor humano reside em nossa capacidade de agir em prol do bem comum,
e não como no reino animal, em que o valor reside na capacidade de sobrevivência
individual, segundo a lei do mais forte, tão bem expressa pela teoria evolutiva de
Darwin.

Mas nós não somos animais, somos humanos. E acreditemos ou não em Deus e em um
desígnio para nossas vidas, todos nós somos capazes de perceber que a vida só vale a
pena com valores como bondade e justiça; e todos nós gostamos, e muito, de ser
tratados com consideração e respeito por nossa forma de ser. E todos, absolutamente
todos, queremos ser tratados com justiça.

Kant (1724-1804)
Falar de invisibilidade social é falar sobre a fixação de determinados setores da
sociedade na busca de mecanismos para discriminar pessoas até que fiquem invisíveis.
Tais mecanismos implicam na precarização da sobrevivência, o que envolve
preconceitos estéticos, culturais, sociais e econômicos.

Quem nunca cruzou com pessoas simplesmente vagando pelas ruas sem rumo? Ou de
manhã, indo para o trabalho, deparou-se com dezenas de pessoas num pequeno espaço,
recolhendo cobertores e alguns pertences? Ou com homens puxando carroças com
materiais recicláveis e seus cães ao lado? Esses são os invisíveis sociais, que por muitos
não são vistos e para outros apenas atrapalham ou sujam a paisagem.

O sofrimento na invisibilidade social é cruel: o frio intenso das noites geladas nas
calçadas, o calor sufocante nas praças, a fome que bate cedo todos os dias, o corpo que
clama por um banho quente e o olhar que procura apenas um sorriso. Tudo tão simples e
normal para uma grande parcela da sociedade e contraditoriamente sofrível para uma
população de mais de 100 mil pessoas em todo o Brasil, segundo levantamento
divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base em dados de
2015.

O invisível social ocupa um lugar na sociedade que o priva de tudo porque o coloca em
situação de vulnerabilidade, haja vista a fragilidade e a incapacidade de se defender das
adversidades do cotidiano. Quando o faz, é rotulado de “marginal”, “bandido”,
alcoólatra”, “vagabundo” ou “sujo e fedorento”. Portanto, ao se tornar visível, é
transformado em pessoa selvagem e sem condições de conviver em sociedade, a mesma
que o empurra para essa situação.

A vida de um ser social invisível vale quanto? Para muitos, não há valor algum, nem
quando vive, nem quando morre. Matar uma pessoa nessa situação geralmente implica
uma segunda morte, a morte física, visto que sua humanidade já havia sido morta para a
sociedade.

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