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O burro de Balaão e a mortificação corporal

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A mortificação corporal ou exterior é o tema do vigésimo terceiro capítulo da terceira


parte do clássico de espiritualidade Introdução à Vida Devota pelo Doutor da Caridade,
S. Francisco de Sales. Um livro que vale a pena ler algumas duzentas ou mais vezes antes
de morrer, a Introdução à Vida Devota é particularmente notável pelo seu balanço
próprio em todas as coisas, enquanto guia a alma com um zelo verdadeiro para servir
Deus com todo o coração, mente e fortaleza.

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Ao entrarmos na época da Quaresma - um tempo particularmente dedicado à
mortificação corporal e ao jejum - fazemos bem em considerar a sabedoria e conselhos do
santo Bispo de Genebra que vai mostrar o verdadeiro caminho da devoção para aqueles de
nós que vivem no mundo (e não na clausura de um mosteiro ou convento).

S. Francisco de Sales dá uma indicação importante no que toca à intenção da mortificação


exterior através de um comentário espiritual à história do burro de Balaão, que se
encontra no Antigo Testamento, em Números 22, 21-35.

Mortificação exterior no mundo

Os monges e as freiras, que são sustentadas pela vida comum do mosteiro ou convento e
que são, para além disso, guiados tanto pela regra da sua Ordem como pela sabedoria do
seu superior, devem praticar a mortificação exterior de uma maneira ligeiramente diversa
daquela dada àquelas pessoas cuja vocação é viver fora no mundo.

Seguindo a Regra de S. Bento, os religiosos de clausura podem fazer jejum numa refeição
por dia durante toda a Quaresma, e abster-se de qualquer carne (não durante a
Quaresma, mas durante o ano). Muitas comunidades tradicionais adicionam mais
austeridade (incluindo a disciplina ou o cilício). Todas estas práticas são boas e bem
ajustadas para a vida monástica, mas são dificilmente concretizáveis por aqueles que
vivem no mundo.

Como é que um homem casado, que não só tem os deveres da sua ocupação (que podem
envolver trabalho físico) mas também as tarefas da vida da casa, sustentar-se com uma
dieta de uma refeição por dia sem carne? Poderá uma mãe que educa os filhos em casa
praticar proveitosamente a disciplina a meio do dia de escola?

Seguindo S. Francisco de Sales, eu digo que (para os leigos) o diligente e alegre


cumprimento dos deveres diários de cada um vale mais do que fazer jejum e
mortificações. De facto, o trabalho de uma pessoa pode valer-lhe muito mais do que
qualquer jejum. A tarefa de educar uma criança a ir à casa de banho sozinha é muitas
vezes uma maior mortificação para uma mãe de cinco crianças do que qualquer cilício
poderia ser.

Ainda assim, S. Francisco e eu não defendemos o pôr de parte todas as formas de jejum e
mortificação - não, nada disso! Antes, recomendamos apenas que a prática da
mortificação corporal seja adaptada para servir a vocação do penitente.

Oiçam as palavras do Gentil Doutor, no que toca ao jejum e abstinência:

“Se conseguem aguentar o jejum, farão bem em jejuar em certos dias para além daqueles
prescritos pela Igreja. [...] Mesmo que não façamos jejum muitas vezes, o inimigo tem
grande medo de nós quando vê que conseguimos jejuar. Quartas, Sextas e Sábados são os
dias em que os primeiros Cristãos observavam rigorosamente a abstinência e vós devíeis,

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portanto, escolher alguns deles para jejuar tanto quanto a vossa devoção e o julgamento
do vosso director vos aconselhar.”

Ao longo do ano, podem ter um bom proveito fazendo algum pequeno sacrifício em todas
as Quartas, Sextas e Sábados - para além de se abster da carne em todas as Sextas do ano,
de acordo com um costume antigo. Durante a Quaresma, pode ser bom aumentar a
intensidade desta mortificação corporal ao abster-se da carne em cada um destes três
dias.

Em vez de privar o corpo do sono, S. Francisco de Sales recomenda uma disciplina mais
prudente:

“Devemos usar a noite para dormir, cada um de acordo com a sua disposição, para obter
aquilo que é necessário para passar o dia com utilidade. Muitas passagens da Escritura, o
exemplo dos santos e a razão natural recomendam-nos fortemente a manhã como a
melhor e mais proveitosa parte do dia. [...] Assim, eu penso que é prudente para nós ir
descansar cedo à noite para que possamos acordar cedo pela manhã."

Seria especialmente bom focar-nos em retirarmo-nos um pouco mais cedo durante a


Quaresma (e não seria esta uma grande mortificação para muitos de nós?!), para nos
podermos levantar mais cedo no dia para uma meia hora extra de oração.

Viremo-nos agora para o exemplo que o burro do profeta pagão Balaam nos dá no que
toca à razão da mortificação corporal.

A história do burro que fala de Balaão

Lembrar-se-ão da história do burro de Balaão, que é dada em Números 22. O profeta


pagão Balaão tinha sido chamado pelo rei pagão Balak para amaldiçõar os Israelitas.
Eventualmente Balaão levanta-se e vai cumprir o pedido do rei e, porque o seu coração
era mau, o Anjo do Senhor pôs-se no caminho, com uma espada em punho para o cortar
para a morte. No entanto, Balaão não conseguia ver o Anjo, mas apenas o seu burro que
voltava para trás e de nenhum modo ia para a frente.

Nessa altura, Balaão bateu três vezes no burro (com grande severidade) - e notamos que o
burro fez uma ferida ao pé de Balaão no processo. Ainda assim, o burro não ia para a
frente, pois temia o Anjo mais do que o profeta.

Depois, por um poder milagroso, a boca do burro abriu-se e falou para Balaão e o Anjo do
Senhor revelou-se-lhe. Balaão caiu por terra e percebeu que o pobre burro não tinha feito
nada de mal, mas que ele tinha acabado de ficar em falta - o burro não merecia as
pancadas, mas ele merecia ser cortado pelo Anjo. Pelo seu arrependimento, o Anjo
permitiu a Balaão continuar a sua viagem.

O comentário espiritual de S. Francisco de Sales

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Lemos na Introdução à Vida Devota:

"Vês Filoteia, apesar de Balaão ser a causa do mal, ele bate e derrota uma pobre besta que
não o podia evitar."

É o que se passa connosco muitas vezes. Uma mulher vê o seu marido ou a sua criança
deitados doentes e de repente começa a jejuar, a usar cilício e disciplina, como David fez
numa ocasião parecida. Infelizmente, minha amiga, também tu derrotaste a pobre besta,
castigaste o corpo, mas isso não pôde remediar o mal, nem foi a razão pela qual a espada
de Deus estava apontada a ti. Corrige o teu coração, que tem como ídolo o teu marido e
que tolera as muitas falhas da criança, preparando-a para o orgulho, a vaidade e a
ambição.

Um homem vê novamente que cai frequentemente bem dentro do pecado da pureza.


Remorsos interiores assaltam a sua consciência como uma espada afiada a espetá-lo com
um santo medo e, quando o seu coração ganha controlo sobre si mesmo, ele diz 'Ah, carne
malvada, corpo traidor, traíste-me!' Imediatamente através do jejum sem moderação, do
uso excessivo da disciplina e do cilício difícil de suportar, ele cria grandes golpes no seu
corpo.

Oh pobre alma, se a tua carne pudesses falar como o burro de Balaão, dir-te-ia 'Homem
infeliz, porque me atacas? É contra ti, oh minha alma, que Deus prepara vingança. És tu
que és o criminoso. Porque usas os meus olhos, as minhas mãos e os meus lábios para a
devassidão? Porque me incomodas com pensamentos impuros? Alimenta os bons
pensamentos e eu não farei maus movimentos. Evita as más companhias e eu não serei
estimulado para a luxúria. És tu, ai de mim! que me atiras para as chamas e depois não
queres que me queime. Lanças fumo para os meus olhos mas não queres que se inflamem.

Em tais casos Deus dir-vos-à sem dúvida: Batei, quebrai, rasgai e esmaguei o vosso
coração em pedaços, pois é especialmente contra ele que a minha ira se levante (cf. Joel
2, 13). Para curar a comichão não há tanta necessidade de limpar e lavar como de
purificar o sangue e purificar o fígado. Por isso também, para ser curar dos vícios, é de
facto bom mortificar a carne, mas é ainda mais necessário limpar os nossos afectos e
purgar os nossos corações.

Mas, acima de tudo e em qualquer lugar, não devemos nunca começar austeridades
corporais sem o conselho do nosso director espiritual.
in New Theological Movement

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