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Relato sensível, sobre memória e a cidade.

Me encontro sob signos muito melancólicos. Me pego envolto em tempos


passados do eu, e afogado nos tempos do outro. Toda essa conjuntura emocional
me leva a uma constante reflexão a respeito do lugar memória. Memória é coisa
muito grandiosa. E, talvez, nada de poético exista sem passar pelo seu ventre.
Em crença ou filosofia, as mitologias vivem a abarcá-la das mais diversas
formas. Memória na Grécia é mulher, Mnemosine, Titânide de primeira linhagem.
Dizem que nossa alma sabe de tudo, quando não estamos em vida, temos acesso
ao poema completo. Antes de encarnar bebemos do Rio Lethe, das águas que nos
fazem esquecer. Quando desencarnada a alma, para lembrar-se, bebe das águas
do rio de Mnemosine. Tão mulher e tão atual, foi violada por Zeus. Das suas dores
surge toda a poesia, a única forma de se lembrar em vida, do que importa.
Mas foi de África que a mitologia me trouxe símbolos mais próximos. Nanã, a
mulher mais velha da mitologia, é a grande guardiã da memória ancestral. E isso me
leva de volta aos braços de minha avó, de volta aos contos, de volta as histórias. Foi
minha avó também que me levou a um terreiro pela primeira vez e quem me
contava as histórias dos orixás. Ela era sempre muito cuidadosa ao falar sobre
Nanã, tinha muito respeito e dizia sempre: “é melhor que estejamos de bem com
quem nos guiou pra vida e nos levará na morte”. Minha avó, mulher negra, tem
rugas belíssimas e quando criança, eu dizia que queria ter a pele igual a dela. Ela
sempre me dizia “vai ter quando tiver mais histórias pra contar”. Hoje eu
compreendo o que ela queria dizer. A memória aqui é instância necessária, a poesia
aqui sai da boca, voa pra dentro do corpo e desperta na alma a lembrança.
Faz pouco, a cidade me atravessou com suas ruas e seus prédios, sua
gente. Sobreposição de histórias, a cidade é um corpo em constante mudança, um
corpo que esconde e revela. Ela me conta sobre seu começo em escombros de
demolição, em aterros. Me fala sobre sua gente em forma de engarrafamentos, no
trem lotado, na praça cheia. Ela chora os tiros de bala, o corpo negro no chão. Ela
sabe que a vida aqui não anda fácil, na verdade nunca foi. Ela canta algumas
alegrias, dança algumas violências. A cidade é um grande poema, versos
cimentados, estrofes despejadas. E aqui eu vejo que a memória é viva, ela é o
macro, dos micro corpos que somos, somos versos que disputam seu espaço num
texto inacabável.

"Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber
do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de
"memória", como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me
lembro, e a lembrança é em carne viva."
Clarisse Lispector

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