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(EVARISTO, 

Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. 3. ed. Rio de Janeiro:


Malê, 2017, p. 24-25).
 
Belo-horizontina, mulher preta, nascida em 29 de novembro de 1946, viveu seus primeiros
anos de vida na favela do Pindura Saia, na zona sul de Belo Horizonte, com seus nove irmãos.
Não é difícil imaginar como foi a vida de Maria da Conceição Evaristo de Brito que só
conseguiu concluir o ensino básico aos 25 anos, conciliando estudo com o trabalho de
doméstica. Mudando-se para o Rio de Janeiro, complementa os seus estudos, torna-se
professora, fixa-se como docente universitária e só vai ampliando os horizontes acadêmicos,
inclusive fora do Brasil. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal
Fluminense, Conceição Evaristo iniciou sua produção literária com o Grupo Quilombhoje na
década de 1980. Além de participações em antologias e revistas literárias, a autora possui
produções em prosa e poesia, entre as quais Poemas da recordação e outros movimentos,
publicado em 2008, em que está o poema “Vozes-mulheres”.
Como o próprio título do livro sugere, os poemas que o compõem trazem “recordações” da vida
da escritora. Conceição faz parte de uma geração assinalada por estigmas que vêm desde a
escravidão até o racismo contemporâneo. A sua escrita é, por ela mesma, chamada de
“escrevivência”, ou seja, uma escrita de vivências; não só com sua própria experiência de vida,
mas também com a de seu povo, da qual é “porta-voz”.
E esse poema “Vozes-mulheres” ilustra bem esse intento. São vozes de mulheres que
padecem o jugo do patriarcalismo, as quais, aqui, representam todo um coletivo feminino.
Vozes que ecoam para serem ouvidas, a partir da intimidade do eu poético explícito no
possessivo “minha”. As repetições (anáforas) intensificam a gradação das vozes que vão
passando de geração em geração.
A primeira estrofe, uma quintilha, recua a memória até a terceira geração: “a voz de minha
bisavó”, a qual ecoou desde criança uma vida de lamentos, uma infância perdida, prenunciada
nos “porões do navio”. A bisavó, quando nos é dada a graça de conhecê-la, é sempre uma
imagem da velhice. E o poema traz a antítese, infância, sugerindo que entre esses extremos da
vida, essa senhora vivera escrava. A bisavó reúne em si a diáspora dos pretos africanos que
vieram para o Brasil em tumbeiros (navios negreiros), como mercadorias para servir aos
colonizadores.
A segunda estrofe é sintética, apenas três versos, como se não houvesse muito a acrescentar,
como se dissesse que a história da avó é uma continuação quase idêntica à da bisavó. O eu
lírico introduz a estância com o mesmo paralelismo: “a voz de minha avó”, fruto de um ventre
escravizado. O eco da obediência assinala uma vida nada diferente da mãe (bisavó), servindo
aos “brancos-donos de tudo”. Aqui, o adjetivo “branco” ganha a sua nominação, designando o
homem de pretensa superioridade, o que se refletirá num racismo difícil de ser extirpado da
sociedade brasileira. Tal como a bisavó, a avó traz o estigma do cativeiro e da servidão.
A terceira estrofe, composta por sete versos, ecoa a voz de revolta da mãe. Eis aí um salto
muito importante na consciência coletiva de resistência. Mesmo tendo a marca da submissão
por estar no “fundo das cozinhas alheias/ debaixo das trouxas/ roupagens sujas dos brancos”,
a mãe não se deixa permanecer ali, enfrenta “o caminho empoeirado/ rumo à favela”. Não é
ainda uma vida de dignidade plena, pois deixa um espaço onde era individualmente
marginalizada – casa de seus patrões – para adentrar em um ambiente coletivamente marginal,
a favela. Historicamente, este lugar foi o reduto de ex-escravos e foi se formando,
essencialmente, por negros e negras pobres.
Na quarta estrofe, a voz do eu lírico feminino continua o eco de seus antepassados, agora em
seus versos perplexos. A metalinguagem transforma as vozes em escrita, ou seja, os gritos que
foram, ao longo da história, reverberados pelos negros, estão doravante permanentes na
poesia. Mais que isso, um testemunho de vivência, já que as rimas são de sangue e fome.
Importante frisar que o quarto verso dessa estrofe é composto apenas da conjunção aditiva “e”
a qual adiciona o estado mais característico da pobreza: a “fome”. Condição que se arrasta
pelas vozes que a antecederam, mãe, avó e bisavó.  
“A voz de minha filha” abre as duas últimas estrofes, de cinco e sete versos respectivamente. A
filha que, nessa linha de gerações, é a última apresentada, não mais ecoa as vozes, mas, sim,
“recolhe todas as nossas vozes”, ou seja, converge para si o peso de toda uma herança
estigmatizada. A filha, que se situa em um tempo-espaço mais democrático, deve assumir a
responsabilidade de incorporar as vozes de tantas mulheres negras que foram caladas e que
tiveram seus gritos engasgados nas gargantas. A filha não resgatará apenas a fala, a luta
verbal, mas será o ato, a ação, a luta real e verdadeira contra o racismo e contra todos os
preconceitos pelos quais padecem os afrodescendentes. Foram necessárias muitas vozes ao
longo da história para que o seu peso fosse ouvido de forma pungente.
 
O poema profetiza “na voz de minha filha/ se fará ouvir a ressonância/ o eco da vida-liberdade”,
tão ansiada no ontem e no hoje, mas é no agora que ela se concretiza. As “vozes-mulheres”
ganham materialidade na ponta mais nova dessa geração, na filha, a qual precisa recolher em
si as vozes do passado para lembrar de sua ascendência. A luta que, outrora fora marcada com
sangue, é agora combativa com representatividade, com persistência e esperança.
 
Conceição Evaristo, com esse poema, dá visibilidade textual a existência de “ecos” de uma
sociedade escravocrata que ainda ressoam no presente. As personagens que aqui aparecem
são metonímias ou sinédoques, partes de um todo significativamente numeroso, o qual
contribuiu para a formação humana e social do Brasil. Conhecer a sua ancestralidade e se
reconhecer como parte dessa herança é a forma mais genuína de construir sua identidade.

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