Você está na página 1de 5

FACULDADE DE BELAS ARTES

PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTE E EDUCAÇÃO


LEITURA DE IMAGENS

MARINA CALÇAVARA

ASSENTAR-SE: A COSTURA DE PAULINO

SÃO PAULO
2022
Assentar-se: a costura de Paulino

Quando olhamos para a mulher retratada em Assentamento (2013), de


Rosana Paulino, somos recebidos pela secura e, logo, pelo estranhamento
diante da imagem nua que é repetida com variações: de perfil, de frente, de
costas. Estranhamos a secura da forma que se quer científica e catalográfica,
portanto, desumanizadora. Estamos diante de um retrato que nos fere, porque
mostra a face de um Brasil escravocrata que insiste em perdurar em nossas
desigualdades.

Imagem I – Rosana Paulino, Assentamento, 2013

Paulino – utilizando técnica mista de impressão digital em tecido, costura


e bordado – intervém em um registro fotográfico feito, originalmente, a pedido de
Louis Agassiz, zoólogo suíço, que buscava coletar dados para comprovar a tese
de superioridade da etnia branca sobre as demais, durante uma expedição
realizada no Brasil entre 1865 e 1866.1 No entanto, com sua obra, a artista
subverte os propósitos racistas e pseudocientíficos das imagens originais e
promove um resgate da humanidade do corpo exposto: ele já não é mais só
carne; volta, outra vez, à vida e reassume sua dignidade, mesmo que anônima.

É no trabalho da linha, no bordado da paciência, que Rosano reinsere vida


de onde quiseram tão árdua e continuamente retirá-la. A mulher que vemos,

1PAULINO, R. Texto educativo da exposição Assentamento. Museu de Arte Contemporânea de


Americana, 2013.
agora, carrega um filho vindouro, funda raízes, tem um coração que pulsa. A
mulher, antes tão seca, produz novamente afetos. Segundo Paulino, o nome
escolhido para a obra – que faz parte de um projeto expográfico maior – refere-
se ao fato de que, apesar de todas as brutalidades, nossas vidas como
brasileiros se fundam, assentam-se, a partir de mulheres como a da imagem.
Somos um país negro, que carrega as marcas de pessoas que foram trazidas à
força para um território estranho e que nele precisaram se assentar.

Mais uma vez, é pela costura que as marcas do trauma da população


negra se revelam na obra: pois as fotografias impressas no tecido são
recortadas, o corpo da mulher desencaixa-se e, quando recosturado pelas mãos
da artista, já não pode ser o mesmo. As costuras mostram um corpo que precisou
se reinventar e, dessa forma, as raízes que vemos sair dele nascem a partir da
violência da escravidão, que também se perpetua.

Em sua tese de doutorado, Paulino afirma que a discussão da


representatividade do indivíduo negro e, em especial, da mulher negra é uma
temática recorrente e central do seu fazer artístico. Assim como a escolha de
privilegiar o uso da técnica da costura, já que ela costuma ser associada a um
trabalho feminino e artesanal, portanto, marginalizado no universo das belas
artes. Dessa forma, tanto em seus temas, quanto em sua forma, Rosana tece o
resgate do que e de quem foi excluído.

Na obra Bastidores (1997), mais antiga na trajetória da artista, também


observamos um diálogo semelhante entre tema e técnica. Imprimindo fotos de
mulheres de sua família e usando como base bastidores de bordado, Paulino
marca o silenciamento feminino, particularmente, o da mulher negra. Sua linha
risca bocas, gargantas e olhos e faz com que vejamos quais vozes foram
riscadas da nossa sociedade, evidenciando, assim, quem foi riscada para fora
da comunicação. Contudo, no gesto de sua costura, a artista rompe com o que
sua obra denuncia: Rosana, mulher negra, afirma que a motivação do seu fazer
artístico é um desejo quase irreprimível de comunicação2, ou seja, de ter voz e
ser ouvida.

2
PAULINO, R. Imagens de sombra. São Paulo: USP, 2011, p. 22
Imagem 2 – Rosana Paulino, Bastidores, 1997

Conceição Evaristo, importante escritora contemporânea, em sua obra


Poemas da recordação e outros movimentos, faz uso da memória como
ferramenta para reelaborar seu passado e, assim como Rosana, trabalha com a
hereditariedade e aponta a necessidade e o desejo de romper com o
silenciamento da mulher negra no poema Vozes-mulheres:

Vozes-mulheres3

A voz de minha bisavó e


ecoou criança fome.
nos porões do navio.
Ecoou lamentos A voz de minha filha
de uma infância perdida. recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
A voz de minha avó as vozes mudas caladas
ecoou obediência engasgadas na garganta.
aos brancos-donos de tudo. (...)
(...) Na voz de minha filha
A minha voz ainda se fará ouvir a ressonância
ecoa versos perplexos O eco da vida-liberdade.
com rimas de sangue

Por fim, é possível relacionar as obras de Paulino com a análise de Grada


Kilomba a respeito da permanência da máscara de ferro, que era utilizada por
senhores brancos durante o período colonial como forma de tortura de negros
escravizados e que, hoje, permanece na memória como símbolo do
silenciamento das populações negras:

A máscara, portanto, levanta muitas questões: por que deve a boca do


sujeito Negro ser amarrada? Por que ela ou ele tem que ficar
calado(a)? O que poderia o sujeito Negro dizer se ela ou ele não tivesse
sua boca selada? E o que o sujeito branco teria que ouvir? Existe um

3
Conceição Evaristo. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2021. p. 24-5.
medo apreensivo de que, se o(a) colonizado(a) falar, o(a)
colonizador(a) terá que ouvir e seria forçado(a) a entrar em uma
confrontação desconfortável com as verdades do ‘Outro’. Verdades
que têm sido negadas, reprimidas e mantidas guardadas, como
segredos. Eu realmente gosto desta frase “quieto como é mantido”.
Esta é uma expressão oriunda da diáspora africana que anuncia o
momento em que alguém está prestes a revelar o que se presume ser
um segredo. Segredos como a escravidão. Segredos como o
colonialismo. Segredos como o racismo.

Paulino, em seu fazer artístico, portanto, revela segredos: suas obras


denunciam os efeitos do passado escravocrata brasileiro em nossas vidas
atuais. Desse modo, traz para cena imagens do intolerável, e, no dispositivo
criado, dá voz a quem não a teve.

Referências bibliográficas
EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro:
Malê, 2021. p. 24-5.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.
Trad.: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019, p. 34.
PAULINO, R. Imagens de sombra. São Paulo: USP, 2011, p. 22
__________. Texto educativo para a exposição Assentamento. Museu de
Arte Contemporânea de Americana. Disponível em:
https://web.archive.org/web/20170909170339/https://www.rosanapaulino.com.b
r/blog/projetos/ Acesso em: 11/07/2022

Você também pode gostar