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JOHAN HUIZINGA
tradução e notas de
Sérgio Marinho
Goiânia, 2017
Copyright © 2017: Editora & Livraria Caminhos
Título original:
In de schaduwen van morgen: een diagnose van het geestelijk lijden van
onzen tijd
COLEÇÃO HORIZONTE
Conselho editorial:
Publicação digital
CDU: 130.2"19"
www.editoracaminhos.com.br
Table of Contents
Nota dos editores
Prefácio à primeira e à segunda edições
Prefácio à terceira edição
Notas
Nota dos editores
Pouco poderíamos dizer, nesta nota, no sentido de apresentar o historiador
holandês johan huizinga ao leitor brasileiro. basta lembrar a monumental e
relativamente recente edição de O outono da idade média (cosac naify,
2013), ou do clássico e conhecidíssimo Homo Ludens (perspectiva). De
fato, Huizinga é um nosso velho conhecido. O historiador e
acadêmico José Honório Rodrigues, autor de Teoria da história do brasil,
dizia já em 1952:
Sobre a edição
Ao planejarmos a coleção horizonte, e consequentemente a publicação
deste livro, nosso primeiro impulso foi o de republicar a mencionada
tradução de Manuel Vieira. Entretanto, pela dificuldade em rastrear os
direitos da tradução (além da questão da linguagem, algo ultrapassada),
decidimos por realizar uma tradução inteiramente nova, de que se
incumbiu o editor Sérgio Marinho. Esta decisão mostrou-se providencial:
no cotejamento entre edições, percebeu-se que, além de trechos
suprimidos, a tradução de Manuel Vieira apresentava diversas expressões
em comum com a tradução inglesa de Jakob Herman Huizinga (In the
shadow of tomorrow, 1936), mas inexistentes no original holandês.
Concluímos, portanto, que as edições anteriores deste livro traziam não só
uma tradução indireta, mas incompleta. Sendo assim, o leitor lusófono tem
em mãos pela primeira vez uma edição integral e em tradução direta de
Nas sombras do amanhã.
Visando uma leitura mais proveitosa e com menos interrupções, foram
mantidas no corpo do texto apenas as notas do autor e do tradutor
(sinalizadas como N.T.). As notas editoriais encontram-se ao final do
volume, enumeradas por página.
Por fim, se é verdade que este mundo tem suas noites, desejamos que
este livro traga ao leitor pelo menos umas poucas horas de verdadeira
iluminação.
Os Editores.
Prefácio à primeira e à segunda
edições
Este livro foi desenvolvido a partir de uma apresentação proferida por mim
a 8 de março de 1935, em Bruxelas.
É possível que muitos, por conta do que estas páginas encerram, venham a
chamar-me de pessimista. Lamento informá-los de que, na verdade, sou
um otimista.
Quanto às opiniões em si, não vejo motivo para voltar atrás. Quanto à
forma em que foram expressas, quisera muito poder corrigi-la. Estou
ciente de ter pecado muitas vezes por excesso de concisão. Porém
dificilmente um ensaio poderia expandir-se num volume de grandes
dimensões sem se arruinar e, ademais... o tempo urge. Limitei-me,
portanto, a corrigir algumas irregularidades, obscuridades e escorregões
revelados durante a supervisão das traduções do livro. E só agora, com
todas as mudanças introduzidas, diria que o texto tem a forma que posso
considerar definitiva.
S. Bernardo de Claraval
I. ATMOSFERA DE DECADÊNCIA
Por toda parte pairam dúvidas quanto à solidez da estrutura social em que
vivemos, um vago receio do futuro próximo, sentimentos de declínio e
esgotamento da civilização. Não se trata meramente de ansiedades das que
nos assaltam na calada da noite, quando a chama da vida queima mais
baixo. São antes expectativas nascidas da reflexão, fundadas na
observação e no juízo. Os fatos são estarrecedores. Diante dos nossos
olhos, quase tudo o que fora um dia sagrado e inabalável começa a tremer:
verdade e humanidade, razão e justiça. Vemos formas de governo que já
não funcionam, sistemas produtivos à beira do colapso. Vemos forças
sociais atuando de modo frenético. A ruidosa máquina destes tempos
espantosos dá sinais de que vai enguiçar.
Para esta civilização ser salva, para não submergir em séculos de barbárie,
mas sim poder, mantendo os valores supremos que lhe foram legados,
passar a um novo e mais sólido estágio, para tanto, é necessário que os
homens presentes compreendam claramente a gravidade do processo de
decomposição em curso.
Hoje em dia a noção de que nos encontramos em meio a uma grave crise
civilizacional, potencialmente destruidora, penetra em amplas camadas da
sociedade. O livro A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, soou o
alarme para muita gente em diversos países. O que não quer dizer que
todos os leitores do célebre volume se converteram às ideias ali
transmitidas. Mas pelo menos familiarizaram-se com a possibilidade de
um declínio da civilização moderna, ao passo que antes ainda acalentavam
uma crença irrefletida no progresso. O otimismo inabalável por enquanto é
privilégio ou daqueles incapazes de enxergar o que há de errado com a
cultura, tendo sido eles mesmos afetados pelo mal, ou daqueles que, com
sua doutrinação salvacionista, julgam possuir a receita da civilização
futura, prontos para despejá-la sobre as cabeças da humanidade sofredora.
Esse era o espírito de toda pregação religiosa que, além da salvação eterna,
discorria também sobre a paz na terra. Esse foi o espírito de Erasmo de
Roterdã: com o saber da antiguidade recuperado, teríamos a chave que
dava acesso às fontes puras da fé; nada mais obstava à conquista da
ventura terrestre; em breve a nova mentalidade colheria os frutos da
concórdia, do humanismo e da civilização. Também para o Iluminismo do
século XVIII e para Rousseau, que a ele se vinculava, o bem-estar do
mundo dependia ainda de uma simples visão, de uma mudança de
perspectiva. Para os pensadores iluministas, tudo se resumia ao abandono
da superstição e ao triunfo do conhecimento; para Rousseau, a um retorno
à natureza e à prática da virtude. No seio dessa vetusta e sempre renovada
ideia, a de uma simples reviravolta ou giro na sociedade, foi que se
originou a ideia de revolução. O termo revolução se refere ao movimento
de uma roda, e por trás dessa imagem por muito tempo esteve a roda da
Fortuna, de onde se viam, com suas coroas, os reis caírem por terra.
Revolução refere-se também ao giro dos corpos celestes. Em sentido
político, a palavra é usada inicialmente para uma brusca mudança causada
por acontecimentos singulares, como os sucedidos em 1688 na Inglaterra.
Somente após o grande abalo de 1789, o termo revolução foi adquirindo,
ao longo do século XIX, a conotação com que o socialismo viria a
entendê-lo. Ainda hoje a ideia mantém a essência da concepção inicial: a
de uma melhora súbita e irreversível.
Embora não haja como voltar atrás, o passado ainda guarda lições,
serve-nos de guia. Há precedentes históricos em que a civilização de um
povo, um reino, um continente, tenha passado por provações semelhantes
às nossas? Crise civilizacional é um conceito histórico. Ao examinarmos a
história, ao compararmos este tempo com os que o precederam, podemos
formular esse conceito objetivamente. As crises anteriores, afinal, nos
informam não apenas sobre seu início e agravamento, como também sobre
seu desfecho. O nosso conhecimento a seu respeito tem uma dimensão a
mais. Nalguns casos, toda uma civilização foi destruída; noutros pôde se
recuperar e dar origem a novas formas de existência. Tais processos
históricos podem ser julgados como casos encerrados. E ainda que a
autópsia historiográfica não prometa terapias para o presente, talvez nem
sequer um prognóstico, qualquer meio que ajude a entender a natureza do
mal deve ser tentado.
Tudo somado, a comparação tanto com 1500 quanto com 1800 deixa-
nos com a impressão de que o mundo agora passa por um processo
traumático mais intenso e radical do que o daqueles dois períodos.
Resta ainda a questão sobre até que ponto o processo de mudança por
que estamos passando seria comparável ao ocorrido no seio do Império
Romano, quando da passagem da Antiguidade para a Idade Média. Aqui
sim teríamos o equivalente da situação que, no entender de muitos, é a que
nos aguarda logo adiante: uma grande civilização que aos poucos vai
dando lugar a outra, de início indubitavelmente inferior e precariamente
organizada. Porém a comparação esbarra em uma diferença crucial: aquela
cultura rebaixada de cerca de 500 a.C. herdou, da antecessora, uma forma
superior de religião, com que a própria cultura antiga em certo sentido não
soubera lidar. Animava esse mundo bárbaro um intenso elemento
metafísico. O cristianismo tornou-se, malgrado suas tendências ao rechaço
do mundo, a força que impeliu a sociedade através de séculos de barbárie
até aquela harmônica e inteira alta cultura dos séculos XII e XIII, que é
ainda o fundamento sobre o qual repousa a civilização moderna.
Cultuur (cultura), eis uma palavra que não nos cansamos de ouvir. Mas
está claro o que queremos dizer com isso? E por que esse termo
estrangeiro vem suplantando beschaving (civilização), em holandês
castiço? — Esta última pergunta é fácil de responder: “cultura”, termo
cosmopolita e conceito universal, tem mais peso que o
gentil “civilização”[2], em que predomina amiúde a ideia de erudição
(eruditio), palavra latina da qual, aliás, beschaving é um decalque. Foi a
partir do idioma alemão que se deu a disseminação pelo mundo de uma
acepção particular de cultura (Kultur), em linhas gerais, como algo mais
intrínseco, individual e espiritual[3]. O holandês, os idiomas escandinavos
e eslavos adotaram-na desde logo; também no espanhol, no italiano e no
inglês americano é termo corrente. Apenas no francês e no inglês europeu
é que, malgrado o seu uso em certas expressões consagradas, o termo
depara com alguma resistência. Ao menos não se pode empregá-lo
livremente no lugar de civilisation[4]. E não é por acaso. O francês e o
inglês tiveram, em virtude de sua vetusta e rica evolução como línguas de
pensamento, muito menos necessidade do recurso ao alemão para
formarem seu vocabulário científico-filosófico moderno, sobretudo se
comparados à maioria das línguas europeias que progressivamente, ao
longo do século xix, aproveitaram a fértil riqueza expressiva alemã.
Esse fantástico incremento do saber não foi assimilado por uma nova e
harmônica concepção de mundo, que brilhe acima de nós e ilumine como a
luz do sol a estrada por onde andamos. A soma das ciências ainda não foi
por nós assimilada como cultura.
Por mais que a reviremos, a teoria racial aplicada segue sendo uma
prova contundente do declínio dos parâmetros que a opinião pública exige
do julgamento crítico. Os freios da crítica estão falhando.
Eis o ponto a que chegamos no mundo civilizado. Mas não pensem que
a capacidade crítica veio a degradar-se só nos países onde triunfou o
nacionalismo extremo. Basta olhar à nossa volta para perceber sem muita
dificuldade o quanto se tem disseminado entre pessoas com algum grau de
instrução, sobretudo jovens, certa indiferença pela veracidade das ideias
que povoam — ou assombram — as suas mentes. As categorias ficção e
história, no sentido simples e corrente destes termos, já não se distinguem
claramente. É indiferente se um argumento pode ou não ser testado quanto
à sua veracidade. A voga em torno da ideia de “mito” é o exemplo mais
significativo dessa confusão. Adota-se uma representação do mundo
deliberadamente permeada de desejos e fantasias e que, apesar disso, é
proclamada “o verdadeiro passado” e elevada a norma de vida, com a
consequência inevitável de se tornarem indiscerníveis a esfera do
conhecimento e a da vontade.
14. Embora não seja o meu objetivo polemizar nesta revisão, não posso
deixar de dizer que não compreendo como o Dr. M. ter Braak, em sua
resenha do Vaderland de 27 de outubro de 1935, pôde chamar esta
passagem de “carregada de retórica”. voltar
19.Hans Freyer, Der Staat (“Do Estado”). Leipzig, Rechfelden, 1925, pág.
146. voltar
22. Ibid. pág. 14. Ver também Der Mensch und die Technik (“O homem e
a Técnica”), cap. 14 e seguintes. voltar
Não é por acaso que parte da opinião pública pretende encontrar uma
pronta justificação para a injustiça e a violência, sobretudo no aumento da
ordem e da disciplina externas. Ordem e disciplina são, afinal, os sinais
mais visíveis de um organismo político em bom funcionamento. Aqui,
mais uma vez, o que está em jogo é aquela tendência enganosa a inverter
um juízo válido. O organismo político saudável caracteriza-se pela ordem
e a disciplina. Inversão: a ordem e a disciplina comprovam a saúde de um
organismo político. Como se o sono tranquilo por si só pudesse comprovar
a paz de consciência.
XIV. O ESTADO LOBO DO ESTADO?
Ora, bem outra é a posição que o Estado amoral deseja para si, com
perfeita autonomia e independência ante toda e qualquer moralidade. E
porquanto admita a existência da Igreja e da fé como uma comunidade
com leis morais explícitas e obrigatórias, esta não deve estar em pé de
igualdade, mas subordinada à doutrina proclamada pelo Estado.
27. Grifos meus. Atente-se para como aqui a norma moral é de antemão
descartada. voltar
30. N.T.: “Podem-se fazer acordos com o Céu”, verso de uma peça de
Molière. voltar
XV. HEROÍSMO
O ideal heroico, desse modo, aos poucos foi-se dividindo nas espécies
teatral, histórico-política, filosófico-literária e poético-fantástica.
O mundo não pode mais com a guerra moderna. Tudo o que esta
consegue é mutilá-lo. Trazer a paz, sabemos que não trará. O espírito das
gentes é de tal modo um de mobilização geral e está de tal modo
envenenado, que qualquer guerra deixará atrás de si uma quantidade de
ódio muito maior do que encontrou. O resultado final da guerra mundial
podia ser ditado pelos vencedores. Havia um consenso político. E quais
foram as medidas tomadas? Cruas amputações, novas complicações, mais
insolúveis do que antes, um combinado de miséria e devastação para o
futuro! É fácil fazer pouco da estultícia que foi Versalhes. Como se uma
vitória do outro lado pudesse ter resultado em homens mais sábios e
decisões mais prudentes!
A arte, por outro lado, não sofre coação externa alguma. A exatidão
não é seu dever. Seus próprios passos a conduziram, melhor dizendo,
conduziram a muitos de seus cultores, a um completo rechaço das normas
da percepção e do pensamento. Buscam entregar-se às sensações e
emoções concretas que constituem a matéria a ser apreendida
esteticamente. A compreensão estética (pois que se trata ainda de uma
compreensão), afastando-se sempre da lógica, torna-se cada vez mais vaga.
O poeta, a fim comunicar sua mensagem, lança no espaço unidades de
sentido que, em contato umas com as outras, tornam-se absurdas.
Bem sei que para muitos a arte de Chagall é um problema. Mas ela
em si mesma nada tem de problemático, é uma arte que brota
imediatamente do espanto e de uma entrega ao mito da vida, sem
reflexão, sem participação do intelecto. Tem por base um sentimento
religioso. Ali está a sua fonte, no coração, se quiserem, ou no sangue,
ou no mistério mesmo da vida. Problemática ela é somente para os
que não conseguem sair do problema estético, ou para os que querem
pensar algo a respeito daquilo que veem, ao passo que esta arte põe
de lado o pensamento. Pode-se perguntar por que tal coisa foi feita
de tal ou tal maneira. A resposta é o silêncio, pois não há o que
responder. Finalmente, há tanto um mistério quanto uma mística da
arte, e existe também uma arte com poder mágico, que não fala ao
entendimento, mas a todas as coisas, para as quais dispomos apenas
de míseros conceitos. Contra a entrega confiante à vida não cabem
argumentos. Há somente duas possibilidades: entregar-se também ou
ficar onde se está.
Essa harmonia com uma visão da vida hoje disseminada seria algo que
de fato fortalece a arte? Não parece ser o caso. Pois é justamente essa
disposição da vontade, essa pretensão à absoluta liberdade, esse abandono
de todo vínculo com a razão e a natureza o que vem levando a arte a tantos
excessos e degenerações. E, com isso, o insaciável desejo de originalidade,
que é um dos males dos tempos modernos, expõe a arte, muito mais que a
ciência, a influências corruptoras vindas da sociedade. Faltam à arte não só
o rigor, como também o imprescindível isolamento. Também a
produtividade do intelecto, esse outro mal da existência moderna, exerce
um papel ainda mais decisivo nas artes do que nas ciências. A necessidade
que, numa sociedade concorrencial, constrange os produtores a
constantemente superarem uns aos outros no emprego de seus meios
técnicos, seja para se promoverem ou por mera vaidade, leva a arte a
melancólicos extremos de nonsense, quais os que na década passada se
anunciavam como expressão de uma ideia: poemas compostos só de
onomatopeias ou de sinais matemáticos e outros que tais. Desnecessário
acentuar quão fácil é às artes descambar para o puerilismo (perigo, aliás,
ao qual as ciências não estão de forma alguma imunes). Infelizmente,
épater le bourgeois é um slogan que não se restringiu aos círculos de
jovens boêmios, mas substituiu-se ao ars imitatur naturam como divisa
comum. A arte, muito mais que as ciências, encontra-se inerme diante da
mecanização e da moda. Em todo o mundo os pintores cismaram de
inclinar as mesinhas das suas naturezas-mortas num ângulo de 30 graus e
de forçar os seus trabalhadores, todos padecendo de elefantíase, a vestirem
umas calças estranhamente parecidas com cartolas.
Um pouco diferente é o caso da arte. Nesta e nas letras houve, tal como
na ciência, sempre movimentos mais ou menos voluntários e conscientes,
que a posteridade agrupou sob nomes como maneirismo, marinismo,
gongorismo etc. Em períodos mais antigos, o artista em atividade não se
preocupava em dar à sua orientação uma alcunha ou coisa do gênero. Os
diferentes estilos, no tempo em que floresceram, não conheceram –ismo
nenhum. Trata-se de um fenômeno moderno por excelência quando a arte
primeiro proclama uma orientação, pendurando-lhe um –ismo, para só
então tentar produzir as obras de arte correspondentes. Esses
penduricalhos, naturalmente, não equivalem ao monismo, por exemplo, em
filosofia ou ciência, de vez que na arte a filiação a um determinado –ismo
exerce uma influência direta considerável sobre a própria realização.
Noutras palavras: na arte existe, em contraste com as ciências, até certo
ponto um elemento discricionário determinante: o “nós queremos que seja
assim ou assado”.
De outra perspectiva, no entanto, pode-se perceber, entre a produção
estética e a lógico-crítica, uma inegável semelhança que, devido à
confusão dos –ismos, acaba muitas vezes não sendo notada. Também nas
artes, por baixo da agitação superficial de movimentos e modas, flui uma
poderosa, porém sossegada, corrente de trabalho sério, proveniente da
inspiração legítima, sem tomar tortuosos atalhos nem afluir em leitos
rasos.
37. Além do que arte, tekhnê, ars, obviamente significa todas as formas
artificiais, inclusive o artesanato. voltar
XIX. DESAPARECIMENTO DO
ESTILO E IRRACIONALISMO
Com o século XIX isso teve um fim. Não digamos que é porque esse
tempo ainda está a uma distância demasiado curta em relação a nós.
Sabemo-lo bem até demais: o século XIX não teve estilo próprio; quando
muito, foi um medíocre epígono. O seu característico é a falta de estilo, a
confusão de estilos, a imitação de estilos anteriores. O princípio do
processo que levou ao desaparecimento do estilo remonta ao século XVIII;
suas incursões pelo exótico e o histórico prenunciam o gosto pela imitação,
pela qual até a estética do Empire perdeu os foros de um estilo de verdade.
Uma vez que nos demos conta dessa precondição, fica difícil afirmar
que estamos no caminho certo. Parece que enfrentamos os maiores riscos
que jamais pairaram sobre a nossa cultura, e que nos encontramos num
estado de baixa resistência contra a infecção e a intoxicação, comparável à
embriaguez. A inteligência é desperdiçada. O meio de intercâmbio do
pensamento, a palavra, conforme avança a civilização, como que num
processo inflacionário perde valor. Dispersa-se com cada vez mais
abundância, cada vez mais facilidade. E com a desvalorização da palavra
impressa ou falada aumenta, em proporção direta, o indiferentismo pela
verdade. Conforme a mentalidade irracionalista ganha terreno, alarga-se,
em todos os domínios, consideravelmente a margem de equívoco. A
publicidade instantânea, nascida do impulso comercial e sensacionalista,
deforma uma simples diferença de ponto de vista até que se torne uma
alucinação nacional. As ideias do dia exigem efeito imediato, à diferença
das grandes ideias que sempre penetraram gradualmente no mundo. Como
o cheiro de asfalto, fuligem e gasolina sobre as cidades, assim paira sobre
o mundo uma nuvem de palavras vazias.
Sabemo-lo bem: o mundo hodierno não pode voltar atrás. É algo que
enxergamos claramente, por pouco que consideremos o estado das
ciências, da filosofia e das artes. O pensamento, a faculdade da
imaginação, devem seguir adiante, sem desanimar, pelo caminho que o
espírito indicar. Mas não é diferente com a técnica e seu maquinário
gigantesco, nem com todo o sistema econômico, social e político. É
impensável uma intervenção voluntária do homem que seja capaz de
limitar o mecanismo onipresente da propagação do conhecimento, i.e., o
ensino público, a publicidade, a indústria editorial, ou que seja capaz de
impedir novas possibilidades de comércio, de tecnologia e de exploração
da natureza.
Cada vez está mais claro que a nova doutrina da vontade de poder e do
heroísmo, com sua glorificação da existência às custas do conhecimento,
representa justamente aquelas tendências que para o partidário do espírito
significariam a rendição à barbárie. Pois bem, o que essa filosofia vital
exalta é de fato o mythos em detrimento do logos. Para ela, barbárie não
pode ser algo pejorativo. O próprio termo perde o seu sentido. É tudo o
que os novos senhores desejam.
Quem sabe o passado não nos reserva algum consolo. Olhando para os
dois milênios que nos precederam e neles distinguindo as unidades
históricas a que chamamos civilizações, percebemos que os períodos de
florescimento foram sempre muito breves. O processo inteiro de formação,
ascensão e declínio cumpre-se dentro de alguns séculos. Uma primavera
de dois séculos seria, na medida em que nossos critérios forem confiáveis,
o caso mais comum. No caso da Grécia antiga, foram os séculos quarto e
quinto antes da nossa era. No caso de Roma, o primeiro século antes e o
primeiro depois de Cristo (apesar de algumas opiniões divergentes). No
caso da Idade Média, os séculos XII e XIII. No caso da Renascença e do
Barroco (períodos que podem, antes devem, ser considerados em
conjunto), os séculos XVI e XVII foram os de maior esplendor. Por mais
imprecisas e mesmo arbitrárias que sejam essas periodizações, o fato é que
o auge nunca dura muito tempo. Podemos considerar os séculos XVIII e
XIX como o período da cultura moderna? Nesse caso, estaríamos nos
avizinhando do fim da cultura que conhecemos e talvez também do limiar
de uma nova, por nós desconhecida. Provavelmente uma cultura que ainda
levará muito tempo até ganhar feição própria. Em se tratando de
civilizações, não cabe dizer “le roi est mort, vive le roi” [40].
É cada dia mais urgente o dilema que a nossa época nos propõe.
Reparem no estado de confusão política que prevalece no mundo. Em toda
parte, complicações implorando por alguma solução. Ao mesmo tempo,
um observador imparcial admite que uma solução que não prejudique os
interesses de ninguém, que não frustre as demandas razoáveis de ninguém,
nesta altura é algo praticamente impensável. As minorias nacionais, a
imposição de fronteiras artificiais e impraticáveis, a proibição de
unificações naturais e necessárias, a tensão insustentável nas relações
econômicas — tais situações não se prolongam sem o acirramento que
converte cada uma delas em um barril de pólvora pronto para explodir. E
tanto mais porque o confronto aí se dá entre direito e direito. Só há duas
saídas possíveis. Uma é a violência armada. A outra é um acordo baseado
em um amplo esforço de boa-vontade internacional, em uma renúncia
recíproca às próprias exigências, ainda que razoáveis, e no respeito ao
direito e interesse alheios. Um acordo, em poucas palavras, baseado em
uma combinação de generosidade e justiça.
O mundo hoje parece estar mais afastado destas virtudes do que em
muitos séculos jamais esteve ou acreditou estar. Muitos não admitem a
justiça e a paz internacionais sequer como princípios superiores. A
doutrina do poder estatal ilimitado inocenta de antemão todo e qualquer
agressor. Sem reação, o mundo vê que continua a ser ameaçado pela
loucura e a devastação da guerra, que traz em seu bojo novos e mais
graves descalabros.
FIM
Notas