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NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

JOHAN HUIZINGA

NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

Um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo

tradução e notas de

Sérgio Marinho

Goiânia, 2017
Copyright © 2017: Editora & Livraria Caminhos

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução ou distribuição deste


arquivo sem autorização prévia da editora.

Título original:

In de schaduwen van morgen: een diagnose van het geestelijk lijden van
onzen tijd

Tradução e notas: Sérgio Marinho

Revisão: Anna Raíssa Guedes

Projeto gráfico: Mário Zeidler Filho

Imagem da capa: Francisco de Goya,

Tristes presentimientos de lo que ha de acontecer, Los desastres de la


guerra nº 1, 1863.

Fotografia: Nederlands Letterkundig Museum

COLEÇÃO HORIZONTE

Conselho editorial:

Cláudio Ribeiro, Sérgio Marinho e Mário Zeidler Filho

H8766/HUI Huizinga, Johan. Nas sombras do amanhã: um diagnóstico da


enfermidade espiritual de nosso tempo. Tradução e notas de Sérgio
Marinho. Goiânia: Caminhos, 2017.

Publicação digital

1. Civilização - Filosofia. 2. Cultura. I. Título.

CDU: 130.2"19"

Editora & Livraria Caminhos Ltda.


Rua 1, 43, Setor Central, CEP: 74013-010 Goiânia - Goiás

www.editoracaminhos.com.br
Table of Contents
Nota dos editores
Prefácio à primeira e à segunda edições
Prefácio à terceira edição

NAS SOMBRAS DO AMANHÃ


I. ATMOSFERA DE DECADÊNCIA
II. TEMORES DE AGORA E DE OUTRORA
III. A ATUAL CRISE DE CULTURA COMPARADA ÀS
ANTERIORES
IV. CONDIÇÕES BÁSICAS DA CULTURA
V. A PROBLEMÁTICA DO PROGRESSO
VI. A CIÊNCIA NOS LIMITES DO PENSAMENTO
VII. O ENFRAQUECIMENTO DA CAPACIDADE DE JULGAR
VIII. O DECLÍNIO DOS PARÂMETROS CRÍTICOS
IX. O ABUSO DA CIÊNCIA
X. O DESCRÉDITO DO CONHECIMENTO
XI. O CULTO DA VIDA
XII. VIDA E LUTA
XIII. O DECLÍNIO DAS NORMAS MORAIS
XIV. O ESTADO LOBO DO ESTADO?
XV. HEROÍSMO
XVI. PUERILISMO
XVII. SUPERSTIÇÃO
XVIII. AS ARTES EM SEU AFASTAMENTO DA RAZÃO E DA
NATUREZA
XIX. DESAPARECIMENTO DO ESTILO E IRRACIONALISMO
XX. PERSPECTIVA
XXI. CATARSE

Notas
Nota dos editores
Pouco poderíamos dizer, nesta nota, no sentido de apresentar o historiador
holandês johan huizinga ao leitor brasileiro. basta lembrar a monumental e
relativamente recente edição de O outono da idade média (cosac naify,
2013), ou do clássico e conhecidíssimo Homo Ludens (perspectiva). De
fato, Huizinga é um nosso velho conhecido. O historiador e
acadêmico José Honório Rodrigues, autor de Teoria da história do brasil,
dizia já em 1952:

A significação da obra de Johan Huizinga é tão grande que ele


domina uma época da historiografia como uma de suas figuras
centrais. Se não é o maior, o mais perfeito, o mais completo, é,
certamente, o mais original nos métodos, no pensamento, nos
caminhos escolhidos. (...) É o encontro de sua obra, o forte
sentimento histórico, o gosto literário, aquela capacidade de pôr-nos
em contato com as próprias coisas, dando-lhes vida, que o tornaram
um dos maiores historiadores deste meio século. Quem não saboreou
Huizinga fará melhor em não dizê-lo muito alto.

Realmente, como sói acontecer entre nossos intelectuais, são poucos os


que admitiriam desconhecer a obra de Huizinga. Entretanto, o conjunto de
sua obra ainda é, em grande parte, pouquíssimo conhecido dos brasileiros,
principalmente no caso dos escritos eminentemente políticos. É preciso
notar, todavia, que este livro, de 1935, não é simplesmente um panfleto
anti-totalitário – ao examinar (ou diagnosticar) seu próprio tempo,
Huizinga elabora também uma filosofia da História e uma teoria da cultura
cujos desdobramentos (principalmente nos conceitos de “heroísmo” e
“puerilismo”) foram as bases do já citado clássico Homo Ludens (1938).
Além disso, o leitor perceberá que as crises observadas por Huizinga em
meados dos anos 1930 não se demonstraram fenômenos passageiros; pelo
contrário, estão cada vez mais presentes e mais pungentes nesse início do
século XXI.

Mas este livro também não é de todo desconhecido do público brasileiro.


Foi publicado em 1946 pela Saraiva, na coleção Studium, reproduzindo a
tradução portuguesa do professor Manuel Vieira (Arménio Amado,
Coimbra, 1944). No mesmo período, Otto Maria Carpeaux publicou um
longo artigo intitulado O testamento de Huizinga, lamentando a morte do
autor, em que lemos ao final:

Continua certo o título do testamento de Huizinga: Nas sombras do


amanhã. Parece, hoje, lugar-comum muito do que parecia tremendo
há dez anos; mas só porque o mundo se habituou ao inferno. Habet
mundus iste noctes suas et non paucas. O Erasmo dos nossos dias
morreu numa daquelas noites do outono da Idade Moderna. Morreu
desesperado? “Só posso responder: sou otimista”. Um liberal
legítimo como Huizinga, acreditando na natureza humana, não podia
responder de outra maneira. Liberal legítimo, mas não vulgar. À fé
na natureza humana uniu a fé no “Centro”, nos valores que
garantem a “Continuidade” da civilização. Por isso, podia dedicar o
seu testamento noturno “aos seus filhos”, a nós outros.

Nas palavras de Huizinga, “se queremos preservar a cultura, devemos


continuar a criar cultura”. Por acreditarmos nisso, ou, acompanhando
Carpeaux, por reconhecer a importância desses “valores que garantem a
‘continuidade’ da civilização”, decidimos trazer à luz esta nova tradução
de Nas sombras do amanhã, reapresentando ao público de língua
portuguesa esta obra de inegável atualidade e altíssimo alcance intelectual,
que não por acaso inaugura esta nossa coleção horizonte.

Sobre a edição
Ao planejarmos a coleção horizonte, e consequentemente a publicação
deste livro, nosso primeiro impulso foi o de republicar a mencionada
tradução de Manuel Vieira. Entretanto, pela dificuldade em rastrear os
direitos da tradução (além da questão da linguagem, algo ultrapassada),
decidimos por realizar uma tradução inteiramente nova, de que se
incumbiu o editor Sérgio Marinho. Esta decisão mostrou-se providencial:
no cotejamento entre edições, percebeu-se que, além de trechos
suprimidos, a tradução de Manuel Vieira apresentava diversas expressões
em comum com a tradução inglesa de Jakob Herman Huizinga (In the
shadow of tomorrow, 1936), mas inexistentes no original holandês.
Concluímos, portanto, que as edições anteriores deste livro traziam não só
uma tradução indireta, mas incompleta. Sendo assim, o leitor lusófono tem
em mãos pela primeira vez uma edição integral e em tradução direta de
Nas sombras do amanhã.
Visando uma leitura mais proveitosa e com menos interrupções, foram
mantidas no corpo do texto apenas as notas do autor e do tradutor
(sinalizadas como N.T.). As notas editoriais encontram-se ao final do
volume, enumeradas por página.

Não poderíamos deixar de agradecer aos diversos amigos e leitores que


participaram e participam, direta ou indiretamente, da produção deste livro
e desta coleção. Agradecemos especialmente ao professor Fabrício
Tavares de Moraes e ao tradutor Daniel Dago, pela atenciosa leitura de
primeira hora e pelo generoso apoio nas dificuldades de tradução.

Por fim, se é verdade que este mundo tem suas noites, desejamos que
este livro traga ao leitor pelo menos umas poucas horas de verdadeira
iluminação.

Os Editores.
Prefácio à primeira e à segunda
edições

Este livro foi desenvolvido a partir de uma apresentação proferida por mim
a 8 de março de 1935, em Bruxelas.

É possível que muitos, por conta do que estas páginas encerram, venham a
chamar-me de pessimista. Lamento informá-los de que, na verdade, sou
um otimista.

Leida, 30 de julho de 1935.


Prefácio à terceira edição

O interesse que ensejou, apenas um mês após o seu lançamento, a terceira


edição deste trabalho vem causando ao autor, ademais da satisfação por
haver tratado questões que a muitos importam, um elevado sentimento de
responsabilidade pelas opiniões expostas de maneira antes assertiva que
minuciosa.

Quanto às opiniões em si, não vejo motivo para voltar atrás. Quanto à
forma em que foram expressas, quisera muito poder corrigi-la. Estou
ciente de ter pecado muitas vezes por excesso de concisão. Porém
dificilmente um ensaio poderia expandir-se num volume de grandes
dimensões sem se arruinar e, ademais... o tempo urge. Limitei-me,
portanto, a corrigir algumas irregularidades, obscuridades e escorregões
revelados durante a supervisão das traduções do livro. E só agora, com
todas as mudanças introduzidas, diria que o texto tem a forma que posso
considerar definitiva.

Não me pareceu nem necessário nem possível fazer menção explícita, ao


longo destas páginas, aos acontecimentos que desde o verão vêm causando
grande inquietude em todo o mundo. É crítico o estado da nossa
civilização, agora mais do que nunca. Minha esperança, apesar disso, é
ainda mais forte.

Surpreenderam-me alguns resenhistas que, conquanto reconhecessem


méritos neste trabalho, não conceberam do autor senão a imagem de um
“professor liberal”, também conhecido como “humanista”, munido dos
óculos escuros do agnosticismo. Gostaria de ter me expressado de modo
mais claro.

Leida, 7 de novembro de 1935.


NAS SOMBRAS DO AMANHÃ

Habet mundus iste noctes suas et non paucas

[“Tem este mundo as suas noites, e não poucas”]

S. Bernardo de Claraval
I. ATMOSFERA DE DECADÊNCIA

Vivemos em um mundo possesso. E estamos cientes disso. Não seria


surpresa para ninguém se o louco tivesse de repente um ataque de fúria,
após o qual ficaria esta pobre humanidade europeia atônita e embrutecida,
os motores ainda girando, as bandeiras tremulando ao vento, mas o espírito
ausente.

Por toda parte pairam dúvidas quanto à solidez da estrutura social em que
vivemos, um vago receio do futuro próximo, sentimentos de declínio e
esgotamento da civilização. Não se trata meramente de ansiedades das que
nos assaltam na calada da noite, quando a chama da vida queima mais
baixo. São antes expectativas nascidas da reflexão, fundadas na
observação e no juízo. Os fatos são estarrecedores. Diante dos nossos
olhos, quase tudo o que fora um dia sagrado e inabalável começa a tremer:
verdade e humanidade, razão e justiça. Vemos formas de governo que já
não funcionam, sistemas produtivos à beira do colapso. Vemos forças
sociais atuando de modo frenético. A ruidosa máquina destes tempos
espantosos dá sinais de que vai enguiçar.

Mas, de repente, eis que o contrário disso é sugerido. Jamais houve um


tempo em que os homens fossem tão conscientes do imperativo de
colaborar entre si, a fim de manter e aperfeiçoar o bem-estar e a
civilização. Jamais o trabalho foi tão venerado. Jamais esteve o homem tão
disposto a esforçar-se e a dedicar continuamente as suas energias e todo o
seu ser ao bem comum. Não se perdeu a esperança.

Para esta civilização ser salva, para não submergir em séculos de barbárie,
mas sim poder, mantendo os valores supremos que lhe foram legados,
passar a um novo e mais sólido estágio, para tanto, é necessário que os
homens presentes compreendam claramente a gravidade do processo de
decomposição em curso.

Foi só recentemente que o sentimento de um colapso iminente e de uma


deterioração progressiva da civilização vieram a generalizar-se. Para a
maioria foi a crise econômica, sentida na pele (a maioria tem a pele mais
sensível que o espírito), o que lhes abriu os olhos para a realidade.
Escusado dizer, por outro lado, que aqueles que costumam refletir de
modo sistemático e crítico sobre a sociedade e a civilização — sociólogos,
filósofos — já há muito sabiam que, na tão louvada civilização moderna,
nem tudo andava bem. Para estes está claro que os transtornos econômicos
constituem apenas um aspecto de um processo cultural de alcance muito
maior.

Na primeira década do século, os temores pelo futuro da civilização eram


ainda pouco difundidos. Atritos e ameaças, abalos e sobressaltos também
então existiam, como em qualquer tempo. Porém não apareciam como um
horizonte apocalíptico, exceto talvez pelo perigo da revolução que o
marxismo prometia ao mundo (e mesmo a revolução, em todo caso, era
tida por seus opositores como um perigo possível de ser evitado, ao passo
que seus apoiadores a viam, naturalmente, não como um precipício, mas
como uma tábua de salvação). O decadentismo dos anos 90 do século
passado, por sua vez, foi apenas um modismo literário, enquanto o
anarquismo, depois do assassinato de MacKinley, parecia ter se exaurido,
e o movimento socialista dava sinais de se encaminhar na direção do
reformismo. A Primeira Conferência da Paz, malgrado a guerra dos
bôeres e a guerra russo-japonesa, podia ainda ser vista como o prenúncio
de uma era de harmonia internacional. A nota dominante na cultura seguia
sendo a de uma inabalável confiança de que o mundo, dominado pela raça
branca, marchando por largas, direitas vias rumo à concórdia e à
prosperidade, estava assegurado, em toda a sua liberdade e humanidade,
por uma ciência e uma técnica quase no auge de seu desenvolvimento.
Concórdia e prosperidade — contanto que a política se portasse bem. Mas
já isto ela não quis fazer.

Mesmo a eclosão da guerra mundial não acarretou mudanças. O olhar de


todos, durante o período, via apenas o problema imediato: superaremos
isso, com todas as forças, e depois, quando isso for parte do passado,
corrigiremos as falhas, e tudo ficará bem para sempre! — Os primeiros
anos depois da guerra também foram marcados pelo otimismo e a crença
em um internacionalismo capaz de garantir a paz no mundo. Pouco depois,
foi o aparente reflorescimento da indústria e do comércio, antes de
desmoronarem em 1929, o que relegou ao segundo plano, por mais alguns
anos, um pessimismo geral a respeito da civilização.

Hoje em dia a noção de que nos encontramos em meio a uma grave crise
civilizacional, potencialmente destruidora, penetra em amplas camadas da
sociedade. O livro A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, soou o
alarme para muita gente em diversos países. O que não quer dizer que
todos os leitores do célebre volume se converteram às ideias ali
transmitidas. Mas pelo menos familiarizaram-se com a possibilidade de
um declínio da civilização moderna, ao passo que antes ainda acalentavam
uma crença irrefletida no progresso. O otimismo inabalável por enquanto é
privilégio ou daqueles incapazes de enxergar o que há de errado com a
cultura, tendo sido eles mesmos afetados pelo mal, ou daqueles que, com
sua doutrinação salvacionista, julgam possuir a receita da civilização
futura, prontos para despejá-la sobre as cabeças da humanidade sofredora.

Entre o pessimismo empedernido de um lado e, do outro, a certeza de uma


iminente redenção terrestre, encontram-se todos aqueles que reconhecem a
gravidade dos males presentes e que, embora não saibam exatamente como
saná-los ou revertê-los, trabalham e confiam, esforçam-se por
compreender e estão dispostos a resistir às provações.

Seria muito esclarecedor se pudéssemos representar num gráfico a


velocidade com que a expressão “o Progresso” vem desaparecendo do uso
linguístico corrente.
II. TEMORES DE AGORA E DE
OUTRORA

Pode-se questionar se a gravidade da crise cultural não seria sobrestimada


em consequência do fato mesmo de a percebermos mais claramente.
Outrora, períodos igualmente problemáticos nada souberam de economia,
sociologia, psicologia. Faltava-lhes também a publicidade ampla e
imediata de tudo quanto sucede pelo mundo. Nós, por outro lado, podemos
ver cada falha no esmalte, ouvir cada rangido nas articulações. Nosso
conhecimento preciso e multifacetado não nos deixa perder de vista a alta
“periculosidade” da situação em que nos encontramos, o caráter
extremamente instável da sociedade. Não só o “horizonte de expectativas”,
na acertada definição de Karl Mannheim[1], foi ampliado
consideravelmente, como também passamos a ver as silhuetas em seu
extremo, através das lentes das ciências, com perturbadora nitidez.

Seria, pois, aconselhável dar à nossa consciência da crise uma orientação


histórica através da comparação com as grandes perturbações de épocas
anteriores. De imediato salta aos olhos uma diferença essencial entre antes
e agora. Também em outros períodos houve uma aguda consciência de que
o mundo estava em risco, de que estava ameaçado pelo declínio ou pela
decadência final. Tal consciência geralmente vinha acompanhada de
apreensões quanto à iminência do fim do mundo. Isto significava,
naturalmente, que a questão “como evitaremos o desastre?” não era
tratada. Não surpreende, portanto, que a antiga percepção da crise não
fosse jamais formulada cientificamente. Compunha-se, essencialmente, de
considerações de ordem religiosa. Na medida em que, no ideário sobre o
fim do mundo e o Juízo Final, sobrasse algum espaço para ânsias
mundanas, o sentimento da corrupção em volta ficava suspenso como um
vago temor, que era em parte canalizado para o ódio aos poderes tidos por
culpados da miséria humana, i.e., os homens que eram vistos como os
maus de um modo geral, os hereges, as bruxas e feiticeiros, os ricos, os
conselheiros reais, os aristocratas, os jesuítas, os maçons, de acordo com
as preferências de cada época. A disseminação de parâmetros críticos
estreitos e vulgares tem atualmente contribuído para reavivar em muitos,
de maneira impressionante, os fantasmas dessas forças diabólicas. Mesmo
gente instruída vem cedendo com frequência a um irracionalismo que só
entre as camadas mais baixas do populacho poderia ser perdoado.

Nas épocas pregressas, nem toda expectativa de futuro e reprovação do


presente estiveram marcadas por ideias de fim do mundo e de justiça
divina. Não raro os espíritos alimentavam-se da crença secular num futuro
redentor, que livraria a terra dos males presentes. Porém ainda nesse caso
era uma espécie de expectativa desconhecida da mentalidade hodierna. O
futuro redentor afigurava-se sempre próximo e poderia irromper a
qualquer instante; bastava que fôssemos capazes de, por assim dizer,
estender a mão para apanhá-lo, ao tomar consciência de nossos erros,
superar as ideias falaciosas, converter-nos à virtude. A mudança era vista
como uma guinada repentina.

Esse era o espírito de toda pregação religiosa que, além da salvação eterna,
discorria também sobre a paz na terra. Esse foi o espírito de Erasmo de
Roterdã: com o saber da antiguidade recuperado, teríamos a chave que
dava acesso às fontes puras da fé; nada mais obstava à conquista da
ventura terrestre; em breve a nova mentalidade colheria os frutos da
concórdia, do humanismo e da civilização. Também para o Iluminismo do
século XVIII e para Rousseau, que a ele se vinculava, o bem-estar do
mundo dependia ainda de uma simples visão, de uma mudança de
perspectiva. Para os pensadores iluministas, tudo se resumia ao abandono
da superstição e ao triunfo do conhecimento; para Rousseau, a um retorno
à natureza e à prática da virtude. No seio dessa vetusta e sempre renovada
ideia, a de uma simples reviravolta ou giro na sociedade, foi que se
originou a ideia de revolução. O termo revolução se refere ao movimento
de uma roda, e por trás dessa imagem por muito tempo esteve a roda da
Fortuna, de onde se viam, com suas coroas, os reis caírem por terra.
Revolução refere-se também ao giro dos corpos celestes. Em sentido
político, a palavra é usada inicialmente para uma brusca mudança causada
por acontecimentos singulares, como os sucedidos em 1688 na Inglaterra.
Somente após o grande abalo de 1789, o termo revolução foi adquirindo,
ao longo do século XIX, a conotação com que o socialismo viria a
entendê-lo. Ainda hoje a ideia mantém a essência da concepção inicial: a
de uma melhora súbita e irreversível.

Mas àquela expectativa longeva, a de uma súbita e voluntária inflexão da


sociedade, opõe-se agora o conhecimento moderno e cientificamente
fundado, segundo o qual todos os fenômenos naturais e humanos são
produto de inúmeras forças interdependentes e atuantes a longo prazo.
Sem que isso signifique necessariamente uma adesão ao determinismo,
nosso espírito considera a intervenção do arbítrio humano como um fator
de alcance limitado na dinâmica das interações sociais. Na melhor das
hipóteses, o homem pode, ao associar-se a outros de maneira inteligente, e
fazendo o melhor uso de suas próprias energias, servir-se das forças
naturais e sociais que dominam o jogo da sociedade. Assim seria capaz de
influenciar algumas tendências do processo, porém não de mudar a sua
direção. É a essa nova convicção, de uma irreversibilidade dos processos
sociais, que emprestamos o termo evolução. Trata-se de um conceito que
inclui a sua própria contradição, mas que, apesar disso, tornou-se para nós
indispensável como ferramenta intelectual rudimentar. Evolução significa
necessidade limitada, e opõe-se diretamente a reviravolta, mudança total.
Em contraste com as ingênuas expectativas de outrora, que viam a
proximidade ou do fim dos tempos, ou de uma idade de ouro, baseamo-nos
na firme convicção de que a crise presente, como quer que seja, constitui
uma fase de um processo irreversível. A despeito de nossas divergências,
estamos todos de acordo quanto a um ponto: não há como voltar atrás,
apenas seguir adiante. Eis aí o que há de inédito em nossa consciência da
crise.

A terceira oposição entre as formas anteriores de perceber a crise e as


atuais está implícita na segunda. Todos os arautos de tempos melhores —
reformadores e profetas, adeptos e teóricos das renascenças, restaurações,
despertares — sempre aludiram às glórias passadas, exortaram ao retorno,
à reabilitação de uma antiga pureza. Humanistas, reformistas, moralistas
da Roma imperial, Rousseau, Maomé e mesmo os profetas de tribos
centro-africanas: todos tinham os olhos voltados para um passado
supostamente superior ao presente e apregoavam o retorno àquele tempo.

Não negamos nem desprezamos as glórias passadas. Sabemos que muitas


coisas em outros tempos, mesmo os recentes, eram melhores do que hoje
em dia. E é plausível que uma civilização posterior, recuperando certas
características cuja perda ora lamentamos, se reaproxime de épocas
anteriores. Mas de uma coisa estamos certos: um completo retorno é
impossível. Adiante é o único caminho, por mais que nos aturdam
profundezas e distâncias novas, que nos defronte o futuro próximo como
um despenhadeiro envolto em bruma.
1. Karl Mannheim, Mensch und Gesellschaft im Zeitalter des Umbaus
(“Homem e Sociedade na Era da Reconstrução”), 1935, p. 132. voltar
III. A ATUAL CRISE DE CULTURA
COMPARADA ÀS ANTERIORES

Embora não haja como voltar atrás, o passado ainda guarda lições,
serve-nos de guia. Há precedentes históricos em que a civilização de um
povo, um reino, um continente, tenha passado por provações semelhantes
às nossas? Crise civilizacional é um conceito histórico. Ao examinarmos a
história, ao compararmos este tempo com os que o precederam, podemos
formular esse conceito objetivamente. As crises anteriores, afinal, nos
informam não apenas sobre seu início e agravamento, como também sobre
seu desfecho. O nosso conhecimento a seu respeito tem uma dimensão a
mais. Nalguns casos, toda uma civilização foi destruída; noutros pôde se
recuperar e dar origem a novas formas de existência. Tais processos
históricos podem ser julgados como casos encerrados. E ainda que a
autópsia historiográfica não prometa terapias para o presente, talvez nem
sequer um prognóstico, qualquer meio que ajude a entender a natureza do
mal deve ser tentado.

Uma severa restrição, porém, já se impõe de imediato: o número de


casos comparáveis é, com efeito, menor do que se imaginava. Não temos,
a respeito das numerosas civilizações — por mais eloquentes que sejam os
vestígios que, da areia dos desertos, das ruínas solitárias, da vegetação
tropical, nos são trazidos quase anualmente —, um conhecimento histórico
amplo o bastante para chegarmos a compreender as causas de sua
deterioração e desaparecimento em termos outros que não os de desastre,
catástrofe ou alguma outra força maior. Mesmo o Egito e a Grécia antiga
quase não oferecem material para uma comparação detalhada. Somente os
vinte séculos a partir do reinado de Augusto e a vida de Cristo estão
suficientemente perto de nós para permitir um fértil estudo comparativo.

Pode-se perguntar: será que a civilização, nesses vinte séculos, não


esteve sempre de certo modo em crise? Não será a história humana inteira
algo extremamente precário? — Sem dúvida alguma, ainda que aqui se
trate antes de sabedoria proverbial, o que não resolve o problema. O fato é
que a investigação histórica discerne períodos específicos com os
caracteres próprios de uma crise, durante os quais o curso da história só
pode ser concebido como uma brusca inflexão civilizacional. Dentre tais
períodos, contam-se em particular: a transição da Antiguidade para a Idade
Média; a transição da Idade Média para a Idade Moderna; e, por fim, a do
século XVIII para o XIX.

Voltemo-nos primeiro para cerca de 1500. Mudanças drásticas


ocorrem: as grandes navegações; o conhecimento do cosmo; a cisão da
Igreja; a reprodução da palavra, graças à prensa, em quantidade sempre
maior; o aprimoramento dos meios bélicos, o aumento exponencial do
crédito e da circulação da moeda; a retomada do estudo do grego antigo; a
superação da velha arquitetura; o ímpeto titânico da nova arte. Voltemo-
nos em seguida para o período entre 1789 e 1815. Novamente os
acontecimentos repercutem com o estrondo de um raio. O reino mais
importante da Europa sucumbe às ilusões dos filósofos e à sanha do povo,
para logo reerguer-se, graças à ação e à boa estrela de um gênio militar. A
liberdade é proclamada; o ensinamento da Igreja, posto de lado. A Europa
parte-se em pedaços e é depois recosturada. Fumega o maquinário a vapor,
vibram os novos teares. A ciência ganha um campo após o outro; a
filosofia alemã enriquece o espírito, e a sua música enobrece a existência.
Os Estados Unidos da América amadurecem política e economicamente,
embora culturalmente sejam ainda um menino graúdo.

Em ambos os períodos temos a impressão de que o sismógrafo da


história se movia com a mesma intensidade de hoje. À primeira vista
aqueles abalos, avalanches, maremotos, parecem nada dever, em termos de
impacto, aos do nosso próprio tempo. Porém, após uma sondagem mais
profunda, percebe-se que tanto no período da Renascença e da Reforma,
quanto no da Revolução e das guerras napoleônicas, os alicerces da
sociedade não sofreram tantos danos como desta vez. E o mais importante:
nos dois períodos críticos anteriores, a esperança e os ideais, à diferença do
que ocorre atualmente, predominaram no ambiente cultural. Conquanto
houvesse então quem enxergasse, no desaparecimento de tudo o que lhe
era caro, o próprio naufrágio do mundo, o sentimento de um risco iminente
de toda a civilização vir a baixo não era nem tão difuso nem tão bem
fundamentado quanto o que nos amedronta desta vez. Ademais, nosso
julgamento histórico ratifica o aspecto positivo das transformações
culturais outrora em curso: é impossível hoje compreendê-las senão como
o impulso de um movimento ascendente, de uma renovação.

Os alicerces da sociedade, dizíamos, por volta de 1500 e 1800, foram


abalados de modo menos decisivo do que nos dias de hoje. Por mais
intensos que hajam sido, desde a Reforma, o ódio e as lutas entre católicos
e protestantes, a base comum das crenças e das igrejas manteve os dois
grupos relativamente próximos e limitou o rompimento com o passado, em
comparação com o abismo atual entre, de um lado, a renegação completa
do cristianismo ou da espiritualidade em geral, e, do outro, qualquer novo
projeto apoiado nos velhos fundamentos cristãos. Não se ouve falar, no
século XVI (salvo alguns excessos extravagantes), de um ataque
deliberado aos fundamentos do sistema moral cristão, e por volta de 1800
ainda muito raramente. As mudanças políticas do período de 1789 a 1815
(sem falar do século XVI) tiveram, com todas as vicissitudes da Revolução
Francesa, um alcance muito menor do que estas pelas quais vimos
passando desde 1914. Nem o século XVI nem o princípio do século XIX
conheceram doutrina que minasse sistematicamente a ordem e a unidade
sociais como a da divisão e luta de classes. A economia, em ambos os
períodos, passou por algo como uma crise, mas não por violentas
convulsões. As grandes mudanças econômicas do século XVI — o
capitalismo virulento, as falências monumentais, a inflação generalizada
— não acarretaram em momento algum a súbita paralisia do comércio
internacional, tampouco a delirante febre cambial que lavra atualmente.
O problema dos assignados após 1793 não chega aos pés da nossa
prolongada instabilidade monetária. Tampouco a chamada — o termo é
discutível — revolução industrial teve o caráter de uma grave perturbação,
antes o de um crescimento desproporcional.

Caso necessitemos de mais outro termômetro para auferir o estado


febril da cultura hodierna, vejamos como andam as artes. Todas as
transições por que passaram, do Quattrocento ao Rococó, foram graduais,
conservadoras. A observância estrita do aprendizado e da destreza artística
nunca perdeu força ao longo desses séculos e manteve-se como condição
fundamental e inconteste. Só com o Impressionismo é que começa esse
abandono dos princípios, que com o tempo abriria caminho para a burlesca
variedade de modismos extravagantes incitados pelo ardor promocional,
como os que vimos desfilar nas primeiras décadas do século.

Tudo somado, a comparação tanto com 1500 quanto com 1800 deixa-
nos com a impressão de que o mundo agora passa por um processo
traumático mais intenso e radical do que o daqueles dois períodos.

Resta ainda a questão sobre até que ponto o processo de mudança por
que estamos passando seria comparável ao ocorrido no seio do Império
Romano, quando da passagem da Antiguidade para a Idade Média. Aqui
sim teríamos o equivalente da situação que, no entender de muitos, é a que
nos aguarda logo adiante: uma grande civilização que aos poucos vai
dando lugar a outra, de início indubitavelmente inferior e precariamente
organizada. Porém a comparação esbarra em uma diferença crucial: aquela
cultura rebaixada de cerca de 500 a.C. herdou, da antecessora, uma forma
superior de religião, com que a própria cultura antiga em certo sentido não
soubera lidar. Animava esse mundo bárbaro um intenso elemento
metafísico. O cristianismo tornou-se, malgrado suas tendências ao rechaço
do mundo, a força que impeliu a sociedade através de séculos de barbárie
até aquela harmônica e inteira alta cultura dos séculos XII e XIII, que é
ainda o fundamento sobre o qual repousa a civilização moderna.

Hoje, teria aquela força, inspirada pela transcendência, ainda algum


poder de influir em nosso futuro? Como quer que seja, prossigamos com a
comparação. As transformações culturais no Império Romano, à parte o
triunfo do cristianismo, se nos apresentam como paralisia e deterioração. O
vultoso cabedal de organização da sociedade, de entendimento e expressão
intelectual, se enrijece, seca, encolhe e se dissipa. A administração pública
piorava continuamente, tanto em termos de qualidade quanto de eficácia.
Cessava o avanço da técnica, caía a produtividade, esmorecia o espírito
investigativo e criador, limitando-se em geral à conservação e imitação das
velhas formas. Sob esses aspectos, a cultura da Antiguidade tardia parece
ter pouco em comum com a nossa. A maioria das funções acima referidas
vêm se tornando cada dia mais intensivas, diversas e sofisticadas. Além
disso, as condições gerais diferem completamente. Havia então várias
nações, dispersas e limitadas, porém de fato abrangidas por um único
estado, um estado “universal”. Já nós vivemos em um sistema
estreitamente articulado de diferentes Estados rivais. Em nosso mundo,
além disso, a eficiência tecnológica exerce um domínio inquestionável, a
produtividade segue aumentando, o conhecimento triunfa diariamente com
novas descobertas. Também o ritmo das mudanças é totalmente outro: o
que antes era medido por séculos passou a sê-lo por anos. Em poucas
palavras: a comparação com o período entre os séculos III e VI da nossa
era não oferece pontos de contato suficientes para nos ajudar a entender a
crise civilizacional presente.

E, contudo, um ponto relevante se impõe, apesar de todas as


diferenças. A civilização romana caminhava rumo à barbárie. Será esse
também o destino da cultura atual?

Qualquer que seja a orientação histórica adotada no estudo da crise em


que vivemos, permanece incerta a questão quanto ao desfecho. Impossível
saber, a partir de paralelos históricos, se tocaremos ou não o fundo do
poço. Continuaremos a lançar-nos no desconhecido.

E aqui topamos outra diferença importante com relação a períodos


anteriores de grande instabilidade cultural. Outrora, em tais circunstâncias,
os homens sempre julgaram discernir, de maneira clara e inquestionável, a
meta a que deviam se dirigir e os meios de alcançá-la. A meta para eles
era, como já dissemos, quase sempre uma restauração. O retorno à
perfeição ou pureza antigas: um ideal retrospectivo. Não só o ideal, como
também o método para o realizar. Este consistiria em conhecer e praticar a
sabedoria e a virtude antigas. A antiga sabedoria, a antiga beleza, a antiga
virtude eram a sabedoria, a beleza, a virtude, de que o homem necessitava
para criar, neste mundo, o quanto fosse possível de ordem e bem-estar.
Conforme, pois, emergisse a consciência do declínio, da escuridão que se
aproxima, os espíritos mais nobres, como um Boécio perto do fim da
Antiguidade, tratavam de conservar a sabedoria dos antepassados, a fim de
transmiti-la às gerações vindouras como um farol e um instrumento
(inestimável contribuição para os sucessores: que teria sido da alta Idade
Média, por exemplo, sem Boécio?). Já quando o ambiente era de ascensão
e renovamento, então punham-se a escavar com zelo redobrado em busca
dos saberes perdidos, não por amor à ciência desinteressada, mas para
reintroduzi-los na ordem do dia: assim foi com o direito romano, assim
com Aristóteles. Com tal objetivo o Humanismo dos séculos XV e XVI
reapresentou ao mundo os tesouros de uma Antiguidade depurada, à guisa
de modelos eternamente válidos de conhecimento e civilização, não como
objetos de culto, mas instrumentos para construir. Quase toda ação cultural
consciente e deliberada de outrora esteve, de um modo ou de outro,
animada pelo princípio do exemplo e da imitação.

Tal veneração pelo antigo já se nos tornou algo estranho. Na medida


em que hoje ainda se buscam a beleza, sabedoria e grandeza antigas para
conservá-las, guardá-las e compreendê-las, já não se trata, ao menos em
primeiro plano, de um retorno em sua direção. As aspirações culturais já
não têm como motivação o restabelecimento de um passado ideal, nem
sequer entre os que julgam o passado — por sua fé, sua arte, pela coesão e
saúde do seu tecido social — superior ao presente. Não podemos nem
queremos senão mirar adiante e seguir rumo ao desconhecido. O olhar da
humanidade pensante, por tanto tempo voltado continuamente para a
perfeição do passado, mudou de direção após Bacon e Descartes. Há três
séculos a humanidade sabe que é necessário encontrar o seu caminho. Esse
impulso de avançar sempre mais pode conduzir a extremos, até o ponto em
que degenera numa vã e sôfrega caçada pelo absolutamente novo, num
desprezo por tudo o que seja antigo. Mas essa é uma atitude própria de
mentes imaturas ou exaustas. O espírito de uma cultura sã não receia
carregar-se dos valores do passado, antes de seguir viagem.

De algo podemos ter certeza: é preciso continuar criando cultura para


poder conservá-la.
IV. CONDIÇÕES BÁSICAS DA
CULTURA

Cultuur (cultura), eis uma palavra que não nos cansamos de ouvir. Mas
está claro o que queremos dizer com isso? E por que esse termo
estrangeiro vem suplantando beschaving (civilização), em holandês
castiço? — Esta última pergunta é fácil de responder: “cultura”, termo
cosmopolita e conceito universal, tem mais peso que o
gentil “civilização”[2], em que predomina amiúde a ideia de erudição
(eruditio), palavra latina da qual, aliás, beschaving é um decalque. Foi a
partir do idioma alemão que se deu a disseminação pelo mundo de uma
acepção particular de cultura (Kultur), em linhas gerais, como algo mais
intrínseco, individual e espiritual[3]. O holandês, os idiomas escandinavos
e eslavos adotaram-na desde logo; também no espanhol, no italiano e no
inglês americano é termo corrente. Apenas no francês e no inglês europeu
é que, malgrado o seu uso em certas expressões consagradas, o termo
depara com alguma resistência. Ao menos não se pode empregá-lo
livremente no lugar de civilisation[4]. E não é por acaso. O francês e o
inglês tiveram, em virtude de sua vetusta e rica evolução como línguas de
pensamento, muito menos necessidade do recurso ao alemão para
formarem seu vocabulário científico-filosófico moderno, sobretudo se
comparados à maioria das línguas europeias que progressivamente, ao
longo do século xix, aproveitaram a fértil riqueza expressiva alemã.

Oswald Spengler contrapôs Kultur e Zivilisation em sua incisiva e um


tanto ou quanto esquemática teoria da decadência. O mundo deu ouvidos à
advertência que ecoava daquelas páginas, sem que por isso acatasse
integralmente nem a sua terminologia, nem o seu veredito.

O uso comum da palavra cultura em si traz pouco risco de mal-


entendidos. Sabe-se mais ou menos o que se quer dizer com ela. Mas
tente-se precisar o seu sentido e já então surgem dificuldades. Que é, em
que consiste a cultura? Uma definição exaustiva do conteúdo dessa ideia
seria quase impossível. Fácil seria, por outro lado, elencar algumas
condições e características essenciais para que se configure o fenômeno da
cultura.
Cultura requer, antes de tudo, certo equilíbrio entre valores espirituais
e materiais. Tal equilíbrio permite o florescimento de uma configuração
social que seja tida pelos homens como algo superior à mera satisfação de
necessidades básicas ou da pura e simples vontade de poder. O termo
valores espirituais inclui aqui as áreas da religião, do intelecto, da moral e
da estética. Também entre tais áreas é preciso haver certo equilíbrio ou
harmonia internos para que o conceito de cultura seja aplicável. Ao
tratarmos de equilíbrio, em vez de excelência, temos o cuidado de
considerar mesmo os estágios iniciais, inferiores ou precários de uma
civilização também como cultura, sem incorrer numa preferência seja
pelas civilizações mais adiantadas, seja por um fator cultural à parte —
religião, arte, direito, poderio político etc. O estado de equilíbrio consiste
sobretudo no fato de que os diferentes elementos culturais tenham cada
um, em relação ao todo, uma função sumamente vital. Uma vez presente
tal harmonia de funções, a cultura se manifesta, em dada sociedade, como
ordem, articulação coesa, estilo, ritmo de vida.

Escusado dizer que, tanto na avaliação histórica da cultura quanto na


de nossas próprias circunstâncias, não se podem dispensar as normas que o
sujeito estabelece ao julgar. Sempre se hão de considerar certas qualidades
como desejáveis, outras como indesejáveis. Cabe aqui pôr em relevo que a
distinção entre alta e baixa cultura deve ser auferida fundamentalmente
não pelo termômetro intelectual, nem pelo estético, senão pelo ético e
espiritual. Poder-se-ia eventualmente falar em alta cultura inclusive na
ausência de uma tecnologia ou arte escultórica avançadas, porém jamais na
ausência de misericórdia.

E a segunda característica básica da cultura é esta: toda cultura encerra


uma aspiração. Cultura é um rumo, e este aponta sempre para um ideal, e
para um ideal, de fato, maior do que o de qualquer indivíduo, para um
ideal de comunidade. Esse ideal pode ser de várias espécies. Pode ser
puramente espiritual: a beatitude, a proximidade de Deus, o
desprendimento. Pode ser o conhecimento, de ordem lógica ou mística: o
conhecimento do mundo natural, o conhecimento do eu e da mente, o
conhecimento da divindade. O ideal pode ser também social: honra,
prestígio, poder, grandeza, referindo-se à comunidade. Pode ainda ser de
ordem econômica — riqueza, bem-estar — ou de ordem corporal — a
saúde. O ideal, para os membros de uma cultura, significa sempre o bem
maior: o bem da comunidade, o bem a ser alcançado aqui ou alhures, no
tempo presente ou no futuro.

Quer o fim desejado esteja além deste mundo ou no futuro próximo,


quer na sabedoria ou na prosperidade, a condição para que se possa buscá-
lo ou atingi-lo é invariavelmente a existência de segurança e ordem. Para
se constituir enquanto esforço transcendente, toda cultura deve antes de
tudo cumprir esses dois requisitos. Da exigência de ordem deriva toda
forma de autoridade; da necessidade de segurança, toda forma de direito.
Aos vários sistemas político-legais possíveis subjazem sempre os
agrupamentos humanos, cuja busca pelo bem maior aflora como cultura.

Mais concreta e positiva que as duas características básicas


mencionadas — equilíbrio e esforço —, há uma terceira, que, em verdade,
é a primeira e original, que marca toda cultura: domínio sobre a natureza.
A cultura está presente a partir do momento em que um homem percebe
que a sua mão, munida de um pedaço de sílex, é capaz de coisas que antes
eram impossíveis. Dessa forma, ele confere utilidade a uma parcela da
natureza, domina essa força a um tempo hostil e generosa. Criando seus
instrumentos, torna-se homo faber. São os meios que usa para satisfazer
necessidades vitais, para fabricar utensílios, para preservar a si e aos seus,
para destruir presas, predadores e inimigos. Daí por diante transforma-se
todo o curso da natureza, com todas as consequências trazidas pelo uso da
técnica.

Mas fosse esse fator, o domínio sobre a natureza, condição suficiente


para a existência da cultura, não haveria razão para negar a formigas,
abelhas, aves e castores a posse de uma. Tais espécies, com efeito,
aproveitam objetos da natureza ao transformá-los em algo de novo.
Deixemos a etologia determinar até que ponto se pode atribuir a esse tipo
de ação uma intencionalidade, um desejo de aprimoramento. Porém, ainda
neste caso, restaria inadmissível a ideia de cultura aplicada à vida animal,
por ser repugnante à lógica. Uma abelha, um castor com cultura seria uma
concepção absurda. O espírito não se deixa tão facilmente anular, como
querem alguns.

Com efeito, ao falarmos em domínio da natureza no sentido de


construir, abater, assar, dissemos só a metade. A palavra natureza, rica de
significados, inclui a natureza humana, que também há de ser dominada.
Ainda nos estágios mais simples de sua organização social, existe no
homem uma consciência do dever. No animal que, por exemplo, cuida dos
seus filhotes, não podemos ainda distinguir tal consciência, por mais que
apreciemos o seu gesto. Somente na consciência humana a função do
cuidado se converte num dever. E este é apenas em escassa medida
decorrente dos vínculos naturais, como no caso da maternidade e a
proteção da família. As obrigações expandem-se desde logo, na forma de
tabus, convenções, normas de comportamento, concepções culturais. O uso
irrefletido da palavra “tabu”, aliás, vem fomentando uma mentalidade
materialista que subestima o elemento ético nas chamadas culturas
primitivas. Para não falarmos da orientação sociológica que, com uma
nova ingenuidade genuinamente moderna, aperfeiçoa o erro a fim de poder
aplicá-lo também aos estágios culturais mais avançados, de modo que tudo
o que encontra pela frente — moral, direito, fé — sem pestanejar vai
encerrando na mesma gaveta do “tabu”.

Um aspecto ético está presente no sentimento do dever tão logo —


havendo uma obrigação perante um homem, ou uma instituição, ou um
poder espiritual — essa obrigação seja tal que possa também ser rejeitada.
A opinião segundo a qual, na civilização primitiva, a obediência à norma
social decorreria de modo mecânico e necessário, tornou-se, após o
trabalho de etnólogos como Malinowski, insustentável. Assim, a
observância das regras vigentes em dada comunidade deriva de um
verdadeiro impulso ético, e com ela, portanto, a condição do domínio
sobre a natureza se cumpre na forma de um controle da própria natureza
humana.

Quanto mais, em uma cultura, os sentimentos específicos do dever


estiverem ordenados e reunidos sob o princípio de uma dependência
humana frente a um poder superior, tanto mais clara e fértil será a
percepção de uma ideia indispensável a toda verdadeira cultura: o serviço.
Desde o servir a Deus até o servir àquela pessoa que, por uma simples
contingência social, ocupa uma posição acima da nossa. O
desarraigamento da ideia de serviço no espírito popular foi o mais
devastador efeito do racionalismo superficial do século XVIII.

Tendo em vista o que se propôs aqui como condições e caracteres


básicos da cultura, uma definição mais precisa — porém, como já dito,
sem a pretensão de ser exata — poderia soar da seguinte maneira: cultura é
uma certa disposição presente em uma comunidade quando, pelo domínio
sobre a natureza nos âmbitos material, moral e espiritual, mantém-se um
estado mais alto e melhor do que o proporcionado pelas condições
naturais, estado este marcado pelo equilíbrio harmônico entre valores
materiais e espirituais, bem como por determinado ideal essencialmente
homogêneo, para ao qual convergem as diversas ações da comunidade.

Sendo a descrição anterior — na qual o juízo valorativo “mais alto”,


“melhor” é indispensável — em certa medida adequada, segue-se então a
pergunta: as condições básicas da cultura, nos dias de hoje, terão sido
preenchidas?

Cultura pressupõe domínio sobre a natureza. Essa condição parece-nos


preenchida a contento e mesmo num grau como nunca antes o fora em
civilização alguma de que se tenha notícia. Forças que um século atrás mal
se podiam imaginar e cujas natureza e possibilidades nos eram totalmente
desconhecidas estão agora à disposição da ação humana, produzindo
efeitos mais amplos e profundos do que se sonhara na geração anterior à
nossa. E o descobrimento de forças naturais desconhecidas, bem como dos
meios para dominá-las, segue avançando quase que diariamente.

Sob todos os aspectos, a natureza material está presa aos grilhões


forjados pelo homem. Mas e quanto ao domínio sobre a natureza humana?
Não se trata dos triunfos da psiquiatria e da assistência social, nem do
combate ao crime. Domínio sobre a natureza humana só pode significar
uma humanidade que, no plano individual, domina a si mesma. Será que o
faz? Ou ao menos, visto que a perfeição não lhe é concedida, será que o
faz proporcionalmente ao seu espantoso domínio sobre a natureza
material? — Mas quem ousaria afirmar tal coisa?! Não parece, ao
contrário, que é amiúde a própria natureza humana que, na liberdade
proporcionada pelo domínio sobre a matéria, se mostra indômita e
desdenha tudo quanto lhe sugira incremento espiritual para além da
natureza? Em nome dos direitos da natureza humana, por toda parte
questiona-se a autoridade vinculante de uma norma ética fundamental
plenamente válida. Dessa forma, a condição “domínio sobre a natureza”
estaria cumprida só pela metade.

Já para o cumprimento da segunda condição, a de que a cultura deve


ser impulsionada por um esforço essencialmente convergente, tudo falta. O
desejo de um bem maior, que impele cada comunidade e cada indivíduo,
assume centenas de formas. Cada grupo se esforça por realizar a própria
aspiração, sem que as aspirações parciais estejam ligadas por um ideal que
abranja a tudo e a todos. Só a expressão desse ideal comum, seja ele
factível ou ilusório, poderia legitimar um conceito de cultura
contemporânea plenamente válido, por mais que possamos, em sentido
amplo, continuar a invocá-lo. Períodos anteriores tiveram por ideal
comum: a glória de Deus, tal como era entendida, a justiça, a virtude, a
sabedoria. Velhos conceitos metafísicos, demasiado imprecisos, dirá o
espírito do nosso tempo. Porém, abandonados tais conceitos, faz-se incerta
a própria unidade da cultura, uma vez que o que surge em seu lugar não
passa de uma soma de apetites contraditórios. Os termos que aproximam
as aspirações da cultura atual encontram-se todos nesta série: prosperidade,
poder, segurança (incluindo a paz e a ordem) — ideais mais aptos a dividir
do que a unir, e todos derivados imediatamente do instinto, sem terem sido
aprimorados pelo espírito. Ideais dessa espécie já alentavam o homem das
cavernas.

Atualmente fala-se muito em culturas nacionais e culturas de classe, ou


seja, o conceito de cultura é subordinado aos ideais de prosperidade,
segurança e poder. Com tal subordinação, de fato, o conceito é deslocado
para um plano meramente mecânico, onde perde todo o sentido. Esquece-
se, desse modo, a conclusão paradoxal — embora, como vimos,
incontornável — de que só é possível falar em cultura quando o ideal que a
norteia opera além e acima dos interesses da própria comunidade que o
adota. Ou a cultura é orientada metafisicamente ou não é cultura.

Existe no mundo de hoje, no Ocidente ou no Oriente, esse equilíbrio


entre valores materiais e espirituais considerado por nós condição para a
existência da cultura? — Uma resposta afirmativa parece pouco provável.
Atividade intensiva em ambas as direções, vá lá, mas equilíbrio? Uma
harmonia, uma equivalência entre capacidade material e espiritual?

Os fenômenos acontecendo à nossa volta desencorajam qualquer ideia


de verdadeiro equilíbrio. Uma capacidade produtiva aperfeiçoada e
eficiente ao extremo forja produtos e gera efeitos, dia após dia, que
ninguém deseja nem é capaz de aproveitar; que, ao contrário, todos
receiam e muitos têm por desprezíveis, absurdos, inferiores. O algodão é
destruído a fim de se manter o preço; há grande demanda por armamentos,
mas ninguém quer que sejam usados. Tal desproporção entre um sistema
produtivo pujante e a possibilidade de nos beneficiarmos dele, entre a
superprodução e a pobreza e o desemprego, não dá muita margem à ideia
de equilíbrio. Existe, além disso, uma superprodução intelectual, um
excedente constante de palavras impressas ou transmitidas por rádio, bem
como um descompasso de ideias quase desesperador. Vemos a produção
artística em geral encerrada num círculo vicioso em que o artista fica preso
à publicidade e, por meio dela, também à moda, ao passo que estas duas se
prendem ao interesse comercial. Desde a vida política até a familiar, o
mesmo desmoronamento da ordem, tal como nunca antes se testemunhou.
Equilíbrio? Não, tudo menos isso.

2. N.T.: Em holandês, beschaving, i.e. civilização, denota também a ideia


de civilidade. voltar

3. N.T.: Em oposição a civilização (Zivilisation), algo extrínseco, social e


material. Na obra de Oswald Spengler, Kultur se referirá aos estágios
produtivos e vitais de uma civilização, enquanto Zivilisation, ao estágios
de enrijecimento e dissolução. Zivilisation, num caso como no outro, tem
uma conotação algo pejorativa. voltar

4. N.T.: Em português a situação é a mesma, “cultura” e “civilização” não


são vistos como intercambiáveis. De modo que, ao longo deste livro, o
leitor deverá sempre atentar para esse aspecto quando encontrar a palavra
“cultura”, tendo em mente que nem sempre a tradução foi capaz de superar
o carácter mais específico do termo em português; a generosidade do leitor
o levará a entender o termo em sentido mais abrangente do que o
habitual. voltar
V. A PROBLEMÁTICA DO
PROGRESSO

Seria recomendável aqui, antes de seguirmos considerando os


diferentes fenômenos da crise cultural, adotar outro tom que não este de
uma visão sombria à beira do desespero.

Nosso juízo a respeito dos assuntos e relações humanas não é imune à


atmosfera espiritual do momento. Sendo esta negativa, há uma
probabilidade objetiva de ela estar toldando o nosso olhar. Se tendemos,
por um lado, a enxergar as épocas passadas — a Hélade em seu auge, o
florescer da Idade Média, o Renascimento — à luz do equilíbrio e da
harmonia e o nosso tempo, por outro, como cheio de perturbações e
inquietude, é também porque o efeito do distanciamento torna aquelas
paisagens mais doces aos nossos olhos. É mister, de imediato, antes
mesmo de observarmos os sintomas, levar em consideração uma margem
de erro, fruto do descompasso entre nossa visão isenta do passado e nosso
olhar ainda confuso sobre os acontecimentos presentes em que estamos
envolvidos. Poderia dar-se que, quando de um veredito final sobre o nosso
tempo — por ora impossível —, fenômenos que hoje nos inquietam
fossem considerados superficiais e passageiros. Um contratempo qualquer
pode nos deixar sem sono, tirar o apetite, impedir o trabalho e arruinar o
humor, ao passo que o organismo goza de perfeita saúde. Não faltam de
todo sinais indicando que, sob tantas perturbações sociais e culturais que
padecemos, o fluxo saudável do sangue corre em nossa sociedade, talvez
com mais vigor do que se supõe.

Ocorre que somos paciente e médico a um só tempo. Há uma


enfermidade, isto é inegável, o organismo não está funcionando bem. Que
os olhos, portanto, se voltem para os sintomas; a esperança, para a
recuperação.

Eis o nosso argumento valendo-se das metáforas da patologia! Mas


sem metáforas não há como manejar conceitos gerais, e aqui os de mal e
distúrbio são os mais indicados. Crise, aliás, é um conceito hipocrático.
Não há imagens mais apropriadas à ilustração de fenômenos socioculturais
que as da medicina. Febre o nosso tempo sem dúvida tem. Febre do
crescimento, quiçá? Visões vagas, atemorizantes, palavras sem sentido
estão presentes. Ou se trata de algo mais que uma excitação cerebral
transitória? Poder-se-ia falar em alucinações causadas por uma lesão mais
grave no sistema nervoso central?

Cada uma dessas metáforas tem seu sentido apropriado quando


aplicada aos fenômenos da cultura de hoje.

Mais sensíveis e evidentes dentre todas são as perturbações da vida


econômica. Cada um de nós sofre, ou ao menos percebe, diariamente seus
efeitos. Um pouco menos imediatas são as da vida política, que alcançam o
expectador médio geralmente através da imprensa. Considerando-se ambos
os processos — perturbações políticas e econômicas — juntamente em seu
avanço gradual, constatamos que há mais de um século a aquisição de
meios atingiu um grau de desenvolvimento tal que as forças sociais, sem
serem reguladas e abrangidas por um princípio que transcenda seus
impulsos particulares (o “Estado” não encarna tal princípio), operam cada
qual por si e com um excesso de eficácia que é nocivo à harmonia do
organismo. Os meios referidos anteriormente são os empregados na
produção fabril e na técnica em geral, no transporte, na publicidade e na
mobilização das massas, por organizações políticas ou de outra espécie,
tendo por base um sistema de ensino público.

Se considerássemos de modo absoluto o desenvolvimento de cada um


desses meios ou forças, sem estabelecer um critério de valor, caberia
aplicar-lhe irrestritamente o conceito de progresso. Todos cresceram de
forma espantosa em termos de potência. Progresso, em si mesmo, indica
tão somente o avanço numa direção, sem informar se esta conduz ao
desterro ou à terra prometida. Costumamos esquecermo-nos de que foi o
otimismo superficial de nossos maiores, nos séculos XVIII e XIX, que
ligou à noção meramente quantitativa de progresso um componente
qualitativo. A expectativa de que cada nova descoberta ou
aperfeiçoamento dos meios existentes encerraria a promessa de coisas
melhores ou de mais felicidade revela um modo de pensar demasiado
ingênuo, herança daquele século encantador, de otimismo intelectual,
moral e sentimental, apelidado “das luzes”. Não é de maneira alguma um
paradoxo afirmar que uma civilização em estágio de progresso
avançadíssimo e inquestionável possa cair por terra. Progresso é algo
arriscado e conceito dos mais ambíguos. É bem possível que, um pouco
mais adiante no caminho, haja uma ponte desabada ou uma fenda aberta
no chão.
VI. A CIÊNCIA NOS LIMITES DO
PENSAMENTO

O terreno mais apropriado para começarmos a descrever as


manifestações da crise da cultura é o científico. Nele, com efeito, achamos
unidos um inconfundível e contínuo progresso, apesar da crise real, e, ao
mesmo tempo, uma convicção inabalável de que mais além no caminho
encontraremos necessariamente um bem maior.

O desenvolvimento do pensamento científico e filosófico desde o


século XVII vem atestando um progresso positivo e duradouro
praticamente ininterrupto. Quase todos os ramos da ciência, inclusive a
filosofia, avançam diariamente, se expandem e se aperfeiçoam. Novos e
inacreditáveis progressos — pensemos em descobertas como a radiação
cósmica e os elétrons positivos — seguem na ordem do dia. Isso é mais
visível nas ciências naturais, sobretudo graças à aplicação técnica quase
imediata de cada novo conhecimento adquirido. Mas o mesmo pode ser
dito das ciências humanas, bem como destas duas ciências à margem dos
grupos principais: a matemática e a filosofia. Todas, enfim, a penetrar cada
vez mais fundo na esfera conhecível da realidade, com meios sempre mais
agudos de percepção e expressão.

Tudo isso é ainda mais impressionante se levarmos em conta o fato de


que a geração de aproximadamente 1890 viveu imersa na convicção de
que a ciência estava prestes a cruzar a linha de chegada, após o que já não
restaria nada a ser descoberto, nenhum conhecimento de que os homens
não tivessem provado. Havia, naturalmente, ainda algo que polir, aplainar,
e com o tempo surgiriam novos materiais; porém grandes mudanças na
constituição e na formulação do conhecimento já não eram esperadas para
o futuro. Mas o futuro decepcionou a todos ao ir além de todas as
expectativas. Um Epimênides cientista que, tendo adormecido em 1879,
despertasse agora, 56 anos depois, já não seria sequer capaz de
compreender o jargão das múltiplas ciências. Os termos da física, da
química, da filosofia, da psicologia, da linguística — para mencionar
somente alguns campos do saber — haveriam de lhe soar completamente
desconhecidos. Quem quer que examine a terminologia de sua
especialidade percebe-o facilmente: as palavras e noções com que lida
diariamente ainda não existiam 40 anos atrás. Se algumas ciências, em
particular a história, parecem exceções, é porque não podem se furtar a
empregar os termos da vida cotidiana.

Se fizermos agora um exercício comparativo entre o presente estado de


todas as ciências e aquele em que se encontravam meio século atrás, não
restará sombra de dúvida quanto ao fato de que o seu caminhar se traduziu
em progresso, melhoras, ascensão. A ciência ganhou tanto em amplitude
quanto em profundidade. Qualquer juízo de valor que se faça a respeito
dela não pode ser senão favorável. E aqui vem à tona uma consequência
surpreendente: um progresso real, efetivo, não permite ao espírito voltar
atrás, nem sequer cogitá-lo. A ideia de que um cientista pense em dar as
costas aos avanços que abriram caminho em seu campo do saber é em si
absurda. Ao passo que não seria de todo impensável nas artes — que não
são progressivas nem marcham em linha reta e ininterrupta — haver quem
quisesse passar ao largo dos avanços de um período inteiro, o que aliás
mais de uma vez já aconteceu.

O exemplo da ciência, dessa forma, permite-nos considerar um campo


da cultura – sumamente importante – em que existe uma progressão, ao
menos até agora, indefectível e, sob todos os aspectos, reta e ininterrupta.
Um campo onde se prescreve ao espírito um caminho regular e inexorável.
Aonde tal caminho nos há de conduzir, ignoramo-lo, tampouco sabemos
que espécie de benefício nele se pode encontrar.

O que é certo é que esse progresso positivo e inegável, no sentido de


aprofundamento, refinamento, purificação — numa palavra: melhora —,
também precipitou o pensamento científico numa crise cujo horizonte está
ainda coberto de névoas. Essa ciência sempre renovada ainda não pôde
sedimentar-se em cultura, nem poderá.

Esse fantástico incremento do saber não foi assimilado por uma nova e
harmônica concepção de mundo, que brilhe acima de nós e ilumine como a
luz do sol a estrada por onde andamos. A soma das ciências ainda não foi
por nós assimilada como cultura.

O que se observa, ao contrário, é que os suportes da nossa vida mental


vão se tornando mais e mais fracos e instáveis com a inspeção mais
profunda e a classificação mais precisa da realidade pela ciência.
Velhas certezas têm de ser abandonadas. Termos genéricos que nos
pareciam as chaves do entendimento e que empregávamos habitualmente
já não entram na fechadura. Evolução? — Vá lá; cautela, porém, que é
termo um tanto ou quanto enferrujado. Elementos?... — A sua
imutabilidade já foi descartada. Causalidade?... — Bem, o fato é que, por
pouco que se queira apreender com esse conceito, ele já se esfacela em
nossas mãos. Uma lei natural, sem dúvida, mas não falemos em validade
absoluta. Objetividade?... — Esta permanece, como ideal e como dever,
mas não de todo possível, ao menos em se tratando de ciências humanas.
Ai, como suspira fundo o nosso amigo Epimênides! Vejam como se
assusta ao inteirar-se de que, nalgumas ciências — é o que se diz ao menos
da matemática —, a pesquisa se particularizou de tal modo que mesmo
especialistas em áreas contíguas já não podem acompanhar o trabalho uns
dos outros. Porém que júbilo não sentirá, por outro lado, quando lhe
contarem que a unidade da matéria está prestes a ser comprovada, de modo
que a química deverá reunir-se à física, de onde havia sido derivada.

Mas, por outro lado, há que lidar com um problema: o próprio


instrumento do conhecimento ficou a dever! No campo da microfísica, os
fenômenos necessariamente escapam à percepção, uma vez que os
processos pesquisados são de natureza mais sutil que os meios de que
dispomos para os perceber, presos aos limites da velocidade da luz. Ao
observarem-se as menores grandezas existentes, a perturbação causada
pelo processo perceptivo mesmo é demasiado importante para que se possa
ainda falar em objetividade da observação. Aqui a vigência da causalidade
depara com o seu limite, além do qual vê-se o horizonte de um devir
indeterminado.

Os fenômenos descritos pela física em fórmulas exatas situam-se tão


fora do plano em que vivemos, a abrangência das relações descobertas pela
matemática ultrapassa de tal modo a escala do nosso pensamento que
ambas as ciências há muito tiveram de admitir a insuficiência de nosso
velho e aparentemente garantido aparato lógico. Foi preciso que nos
familiarizássemos com a ideia de que, para um conhecimento efetivo da
natureza, é preciso valer-se de uma geometria não- euclidiana e mais de
três dimensões. A razão, em sua antiga forma, apegada à lógica
aristotélica, já não é capaz de acompanhar a ciência. A investigação
obriga-nos a pensar muito além do limite de nossa capacidade imaginativa.
Se a fórmula permite a expressão das novas descobertas, nossa capacidade
imaginativa está aquém do necessário para que a realidade por trás delas
seja apreendida de maneira pessoal e consciente. O tão seguro “é assim”
reduz-se a um vacilante “apresenta-se como se fosse assim”. Dado
processo apresenta-se ora como se fosse causado por partículas, ora como
se o fosse por ondas, segundo a perspectiva de onde é visto. Qualquer
generalização que não recorra a fórmulas somente pode ser expressa em
linguagem figurada. É comum, entre os leigos, o desejo de que o físico
lhes explique se essas figuras com que tentam descrever o mundo dos
átomos devem ser vistas como símbolos ou como uma representação fiel
da realidade.

A ciência parece ter se aproximado dos limites de nossa capacidade de


pensamento. É consabido, aliás, que mais de um físico, atuando sempre
nessa atmosfera mental em que a escala humana já não conta, sente como
que uma forte opressão, que pode chegar ao desespero. Porém não lhe
compete, nem ele deseja, voltar atrás. Ao leigo é permitido entregar-se à
nostalgia daquela aconchegante e tangível realidade de outrora, abrir a sua
empoeirada enciclopédia para disfrutar do panorama de um mundo singelo
e sereno, em meio ao cheiro de feno e o canto das aves ao entardecer. Esse
tipo de ciência, contudo, hoje é matéria de poesia e história; o espírito do
investigador moderno volta-se para outra direção.

Certa vez perguntei a De Sitter se, em meio a suas considerações sobre


expansão, vácuo ou a forma esférica do universo, alguma vez não foi
tentado pelo saudosismo. O modo peremptório como o negou revelou-me
claramente a impertinência da pergunta.

Acaso tal vertigem do pensamento ante a infinitude da ciência não


seria a mesma pela qual o espírito teve de passar até que ousasse
abandonar o sistema ptolomaico pelo copérnico?

Parece que as categorias de que o pensamento tem se servido até o


presente estão em vias de desaparecer. As fronteiras são apagadas, as
contradições mostram-se compatíveis. Todas as classes de fenômenos se
entrelaçam qual numa ciranda. Interdependência é a palavra de ordem para
qualquer concepção moderna dos acontecimentos humanos e sociais. Quer
se trate de sociologia ou de economia, quer de psicologia ou de história,
em todos os campos o simplismo das explicações ortodoxamente causais
vem dando lugar ao reconhecimento das relações compostas e
multifatoriais, das dependências recíprocas. O conceito de condição
impõe-se e substitui o de causa.
Pode-se ir ainda mais longe. Nas humanidades, o pensamento vai se
tornando cada dia mais antinômico e ambivalente. Com antinômico quero
dizer que o raciocínio se acha, digamos, suspenso entre dois contrários que
outrora se excluiriam mutuamente; com ambivalente, que o juízo de valor,
em sua consideração da preferência relativa entre duas decisões opostas,
fica paralisado, como o asno de Buridan, diante de necessidade de
escolher.

Sem dúvida há razões bastantes para se falar numa crise do


pensamento e da ciência atuais, uma crise de tal modo profunda e
poderosa, com tamanha atribulação do espírito, que dificilmente, em
período algum dos que nos precederam, poderíamos assinalar algo de
semelhante.

Essa faceta intelectual da grande crise que experimentamos na cultura


presente é o melhor ponto de partida também porque pode ser constatada e
descrita com mais objetividade do que as desordens da vida social, e
porque pode ser julgada sem preconceitos. Situa-se, ao menos em grande
medida, fora da esfera da hostilidade, do conflito e da aversão. Trata-se de
uma crise, mas em senso estrito, sem as conotações de distúrbio nem
desarticulação. É óbvio que por crise intelectual não se devem entender as
disputas de ideias a serviço da política, senão o avanço do conhecimento
de fato, tal qual se mostra nas áreas em que o espírito ainda goza daquela
liberdade de que necessita para ser considerado espírito. À parte certas
comidas estrangeiras, por exemplo, uma ciência marxista ou nórdica (que
alguns teimam ainda em nos servir), a liberdade prevalece, sobretudo na
física, tendo a matemática por guia. A física é ainda um saber
internacional. Preconceitos não estorvam o avanço das pesquisas. As
amarras dos nacionalismos trazem ainda pouco dano ao escambo de ideias
na física e à colaboração entre os pesquisadores. O sujeito que a “pensa” é
ainda o ser humano, sem mais especificações. Já o estudo das
humanidades e das ciências sociais desde há muito se encontra ligado, e
bem mais estreitamente que as ciências da natureza, ao povo e ao país. É
da própria essência do seu objeto causar aos estudiosos mais dificuldade
para se alçarem ao nível de liberdade espiritual que a condição de
cientistas lhes confere. A ameaça de uma coerção de caráter político lhes
atinge em cheio o coração. Contudo, o horizonte das humanidades está
límpido, desanuviado, ao menos por enquanto. O que há de realmente
novo nesse campo são as grandes mudanças de método e visão, o contínuo
enriquecimento e processamento do material incorporado, as novas
sínteses — nada disso tem a ver com os ruidosos entusiastas de um sistema
político qualquer.

É assim que, se o pensamento científico como um todo se encontra


num estado de crise, trata-se de uma crise de dentro para fora, não de uma
trazida pelo contato com os percalços de uma sociedade convulsionada. É
o próprio avanço do espírito que conduz a ciência por trilhas íngremes,
quase inacessíveis, até as alturas de onde mal se divisa um caminho por
onde seguir. A crise do pensamento puro não teve nada a ver com a
estupidez dos homens ou a sua decadência espiritual. Na raiz dela estão o
aprimoramento dos instrumentos cognitivos, bem como a intensificação da
própria vontade de conhecer.

Destarte, não somente a crise é inevitável, como é também boa e


desejada. Nesse ponto, ao menos ficou claro qual seja a aspiração da nossa
cultura. Esta aspira a seguir adiante, usando meios aprimorados, através
das incertezas e impasses do presente. O pensamento discerne o caminho
adiante e por ele deve passar, sendo-lhe impossível deter-se ou voltar atrás.

A constatação dessa simples evidência — a de que ao menos num


terreno, e um de extrema importância, o curso já está determinado —
anima e consola os mais propensos a desesperar do futuro da nossa
civilização. Sim, a crise do pensamento pode causar espanto; mas
desespero, somente naqueles sem a coragem de aceitar o mundo e a vida
em que nos coube existir.
VII. O ENFRAQUECIMENTO DA
CAPACIDADE DE JULGAR

Quando nos voltamos da produção do saber e das ideias para o modo


como o saber se dissemina e as ideias são aceitas e empregadas, o
panorama muda. O estado da dita “opinião pública” não é apenas de crise,
mas de uma crise perigosa e destrutiva.

Que ledo engano aquele do século passado, quando se pensava que o


progresso científico e a expansão do ensino público levariam
necessariamente ao aperfeiçoamento contínuo da sociedade! E quem em sã
consciência ainda admite que, com a conversão dos triunfos da ciência nos
ainda mais admiráveis triunfos da técnica, a civilização estará a salvo? Ou
que a erradicação do analfabetismo levará ao fim da barbárie? A sociedade
atual, amplamente educada e mecanizada, mostra-se muito diversa daquela
dos sonhos de Progresso.

Nossa sociedade manifesta sintomas preocupantes, que poderiam ser


mais bem entendidos sob a rubrica “enfraquecimento da capacidade de
julgar”. A situação é desalentadora. Vivemos num mundo que, a respeito
de si mesmo, a respeito de sua natureza e possibilidades, sob todos os
aspectos, dispõe de infinitamente mais informação do que jamais esteve ao
seu alcance em qualquer outro período da história. Hoje sabemos melhor
do que antes, de modo objetivo e concreto, o que é e como se porta a
máquina do mundo, como funciona um organismo vivo, como as coisas do
espírito se relacionam e como o presente deriva do passado. O ser humano,
enquanto sujeito, conhece a si mesmo e o seu mundo melhor do que nunca.
Não há dúvida de que cresceu a sua capacidade de julgar, tanto
intensivamente — na medida em que o intelecto penetra mais fundo nas
conexões e na disposição das coisas —, quanto extensivamente — na
medida em que o conhecimento se estende regularmente sobre muito mais
áreas e, sobretudo, na medida em que muito mais gente do que antes
adquire algum grau desse conhecimento. A sociedade, enquanto sujeito
abstrato, conhece a si mesma. Ora, o “conhece-te a ti mesmo” tem sido
visto como a ideia mesma da sabedoria. Donde a conclusão inevitável: o
mundo tornou-se mais sábio. Risum teneatis...
Sim, isso sabe a ingenuidade. A verdade é que a tolice, sob todos os
aspectos — o fútil e o ridículo, o mau e o pernicioso —, jamais se
esbaldou em tais orgias como as que se veem atualmente. Tamanha tolice
já não se presta sequer à argúcia e à galhofa de um nobre humanista,
sincero e preocupado, do porte de Erasmo de Roterdã. É preciso observar
minuciosamente a infinita tolice do nosso tempo, tal como uma
enfermidade social, expondo-lhe os sintomas de modo sóbrio e objetivo, a
fim de determinarmos a natureza do mal e então pensarmos num remédio.

O silogismo precedente — “autoconhecimento é sabedoria; ora, o


mundo conhece-se melhor do que antes; logo, o mundo tornou-se mais
sábio”, é uma falácia que dá a termos idênticos sentidos diferentes. Por um
lado, “o mundo” não conhece nem age como sujeito abstrato, mas só se
manifesta nos pensamentos e condutas individuais; por outro, o verbo
“conhecer” não determina de antemão se o seu sentido se refere a
“sabedoria” ou “ciência”.

Numa sociedade com um sistema nacional de ensino público, com uma


divulgação ampla e imediata dos acontecimentos diários e com a divisão
do trabalho em estágio muito avançado, o homem médio passa a depender
cada vez menos de pensamentos e formulações próprias. O fenômeno raia
o paradoxo. Afinal, era de se supor que um meio cultural com reduzida
atividade intelectual e disseminação do conhecimento, bem mais que um
meio desenvolvido, é que viesse a inibir o pensamento individual, limitado
e submetido ao círculo estreito do próprio ambiente. Atribuem-se ao
pensamento primitivo aí formado a natureza do típico, do necessariamente
igual. Mas eis que, por outro lado, esse mesmo pensamento, consagrado
inteiramente à própria esfera vital, munido de instrumentos mais modestos
e cercado de horizonte menos amplo, atinge um grau de autonomia ausente
em estágios de maior organização e complexidade. O agricultor, o
marinheiro, o artesão de épocas passadas achava na inteireza de sua arte o
esquema intelectivo através do qual enxergava a existência e o mundo.
Sabia-se incapaz de julgar quanto estivesse além do seu campo de visão (a
menos que fosse um blefador, desses que nunca deixarão de existir).
Aceitava a autoridade, lá onde sabia ser falho o seu julgamento. Era, pois,
justamente pela consciência de seus limites que alcançava ser sábio. Da
mesma maneira, era graças à limitação dos seus meios expressivos que,
apoiando-se nos pilares do livro sagrado e do saber proverbial,
frequentemente granjeava estilo e eloquência[5].
A maneira como o conhecimento moderno é disseminado acarreta
lamentavelmente a perda dos efeitos benfazejos de tais limitações
intelectuais. O cidadão médio nos países ocidentais de hoje é ensinado
sobre tudo e mais um pouco. Já durante o desjejum, lá está o jornal em
cima da mesa, o botão do rádio ao alcance da mão. Ao anoitecer, o cinema,
uma partida de cartas ou uma assembleia, depois de mais um dia passado
num trabalho ou negócio que tampouco tinham algo de substancial a
ensinar-lhe. Com ligeiras variantes, esse exemplo serve de mínimo
denominador comum válido para todos, desde o operário até o gerente. Só
o desejo de adquirir uma cultura própria, não importando em que domínio
nem por quais métodos e instrumentos seja buscada, poderia erguê-lo
acima desse nível. Fique claro que aqui se trata de cultura em senso estrito,
i.e., certo cabedal de beleza e sabedoria para a vida do indivíduo. Não se
exclui a possibilidade desse sujeito de pequena cultura enfim mostrar-se
capaz de conferir um valor mais alto à sua existência diária por meio de
atividades outras que as estritamente culturais, como no domínio da
religião, da assistência social, da política ou do esporte.

Mas, mesmo quando o animar um desejo sincero de conhecimento e


beleza, terá ele dificuldade, por conta da influência intrusiva do aparelho
cultural, em escapar ao perigo de suas ideias e opiniões serem induzidas e
manipuladas. Um conhecimento a um tempo variado e superficial, assim
como um horizonte intelectual amplo demais para ser abarcado sem
equipamento crítico, são fatores que fatalmente levam ao enfraquecimento
da capacidade de julgar.

A intrusão do ambiente, bem como a aceitação incauta de


conhecimentos e opiniões, não se limita ao terreno estritamente intelectual.
Também os juízos estéticos e a sensibilidade do homem médio atual
sofrem uma grande pressão da produção barata voltada às massas. A oferta
excessiva de imagens triviais sugere-lhe um paradigma amesquinhado e
espúrio para o seu gosto e seus afetos.

Disso resulta outro fato preocupante e inescapável. Em formações


sociais mais antigas e coesas, são as pessoas quem criam e administram
seu próprio entretenimento, seja canto, dança, jogos ou desportos: canta-
se, dança-se, joga-se em grupo. Ora, na cultura moderna tudo isso deu
lugar a mais ou menos esta única coisa: haver quem cante, dance e jogue
por nós. Óbvio que a divisão entre participantes e espectadores existiu
desde sempre, mesmo na mais primeva das culturas. Porém o elemento
passivo vem aumentando sem parar, às custas do ativo. Mesmo no esporte
— esse importante elemento da cultura moderna —, cada vez mais o que
se tem é a massa assistindo ao jogo alheio. E a conversão do participante
ativo em espectador passivo dá ainda outro passo adiante: com a
substituição do teatro pelo cinema, passou-se da observação de uma peça à
observação da sombra de uma peça. Palavra e gesto já não como ações
vivas, mas como mera reprodução. A voz transmitida à distância é apenas
um entre mil ecos. E mesmo o assistir a uma competição esportiva dá lugar
aos sucedâneos da transmissão via rádio e ao caderno esportivo das
gazetas. Há em tudo isso como que um desalento e um embotamento
cultural. E o mesmo vale para a arte cinematográfica, em particular, ainda
quanto a outro aspecto muito importante: nela, o próprio elemento
dramático é quase todo traduzido em imagens, restando à palavra falada
uma função meramente acessória. Assim a arte de assistir ao drama dá
lugar à capacidade de perceber e compreender rapidamente uma sequência
ininterrupta de imagens. A mocidade desenvolveu um olhar
cinematográfico tal que chega a ser espantoso para os mais velhos. Essa
nova atitude significa a obsolescência de toda uma série de funções
intelectuais. Ponderemos a diferença entre o nível de atividade mental
necessário para se acompanhar uma comédia de Molière e aquele presente
quando se vê um filme. Não que o entendimento intelectual seja em si
superior ao visual; mas convenhamos que o cinema, ao deixar de lado um
grupo de meios perceptivos estéticos e intelectuais, concorre em certa
medida para o enfraquecimento da faculdade do juízo.

O mecanismo moderno de distração em massa é, além disso, um


empecilho para a concentração. O elemento de absorção e de entrega decai
com a reprodução mecânica da imagem e do som. Faltam exame de
consciência e dedicação. O exame de consciência que se recolhe e sonda a
mais profunda intimidade e a dedicação que consagra ao momento a nossa
presença incondicional são posturas essenciais para a existência de cultura.

É pela pronta suscetibilidade visual que a publicidade apanha o homem


moderno e o atinge no ponto fraco, que é o seu reduzido discernimento.
Vale isso tanto para a publicidade comercial quanto para a propaganda
política. O anúncio, com uma imagem cativante, conclama a mente à
satisfação de algum desejo, carregando tal imagem com o máximo
possível de emoção e enquadrando nela um estado de espírito tal que
predispõe a uma decisão impulsiva. Mas se nos perguntarmos como
exatamente a publicidade age sobre o indivíduo e como o alicia, a resposta
já não é tão simples. O sujeito decide-se a comprar a mercadoria de fato
por causa do anúncio que viu ou leu? Ou talvez o anúncio apenas evoca no
cérebro de muitos uma lembrança, à qual reagem mecanicamente? Ou
trata-se de algo como uma intoxicação do intelecto? Ainda mais difícil de
descrever é o efeito da propaganda política. Alguma vez um eleitor a
caminho das urnas foi persuadido pela visão das diversas espadas,
machados, martelos, rodas dentadas, punhos em riste, sóis nascentes, mãos
ensanguentadas e semblantes severos que os partidos lhe atiram diante dos
olhos? Não o sabemos até o presente momento, e deixamos no ar a
questão. Porém certo é que a publicidade, sob todas as suas formas, conta
com uma capacidade de julgar enfraquecida e, ao mesmo tempo, através
de sua onipresença e sua veemência, concorre ela própria para tal
enfraquecimento.

E é assim que a nossa época se vê diante do fato preocupante de que


dois grandes ativos culturais muito incensados, o ensino público e a
publicidade moderna, ao invés de elevarem o nível da cultura, conspiram
para a sua degeneração e empobrecimento. Conhecimentos de todos os
tipos, de uma quantidade e complexidade inéditas, são levados até as
massas, mas não digeridos de modo a aplicarem-se à vida. O
conhecimento não processado paralisa o discernimento e é um estorvo para
a verdadeira sabedoria. E, em lugar de ensinamento, temos mero
“encenamento”. O trocadilho é infame, mas infelizmente faz muito
sentido.

Continuará a sociedade fatalmente entregue a esse processo de


achatamento espiritual? Prosseguirá este indefinidamente? Ou chega-se a
um ponto em que o mal, tendo exercido todo o seu efeito, esgota e anula a
si mesmo? São questões que convém reservar para a conclusão deste
trabalho e que, mesmo então, talvez não sejam respondidas a contento. Por
ora, há outros fenômenos de degeneração no terreno intelectual a
solicitarem a nossa consideração.

5. Na África do Sul, os holandeses, durante a Guerra dos Bôeres,


surpreenderam-se com a maneira como cada comandante bôer no campo
de batalha sabia fazer uso da palavra. voltar
VIII. O DECLÍNIO DOS PARÂMETROS
CRÍTICOS

Para além de um amplo enfraquecimento da capacidade de julgar — tal


como vimos, em suas linhas gerais, no capítulo anterior — há razões para
falarmos de algo semelhante que afeta os critérios da razão: um
obscurecimento da capacidade crítica, um declínio da noção de verdade,
desta feita já não entre a massa de consumidores de conhecimento, senão
como falha dentro do restrito círculo dos produtores. A esses fenômenos
de degradação, some-se outro, qual seja, a usurpação da ciência para
funções que lhe são estranhas, ou o abuso da ciência enquanto
instrumento. É de tais fenômenos, pois, que vamos tratar, na ordem e
contexto adequados, ao longo deste capítulo.

Se por um lado a ciência tende a um domínio ilimitado da natureza, e,


portanto, à expansão do poderio humano; se, além disso, atingiu uma
profundidade inédita na visão da estrutura do mundo; por outro lado, serve
cada vez menos como arrimo e pedra de toque para o conhecimento puro,
ou como diretriz para a vida. A relação entre as diversas funções da ciência
se transformou.

Essas funções têm há muito tempo sido três: aquisição e aumento do


conhecimento; educação da comunidade para um nível de civilização
superior; e criação da capacidade de empregar e dominar as forças da
natureza. Seriam, portanto, respectivamente as funções cognitiva, ética e
técnica da ciência. Nos dois séculos durante os quais surgiu a ciência
moderna, o XVII e o XVIII, houve algum equilíbrio entre as duas
primeiras funções, ao passo que a terceira as seguia muito atrás. Havia
entusiasmo pelo esclarecimento progressivo do espírito e a superação da
ignorância. Ninguém então duvidou por um instante sequer do valor
edificante e pedagógico das ciências. Foi-se erguendo sobre ela um
edifício mais pesado do que os seus alicerces seriam capazes de suportar.
A cada nova descoberta podia-se compreender melhor o mundo e o modo
como ele funcionava. Havia certo aprimoramento ético implícito na ideia
de esclarecimento da consciência. Por outra parte, a terceira função a que
nos referimos, a conversão do conhecimento em técnica, ainda não havia
desabrochado. A eletricidade não passava de uma curiosidade para o
público cultivado. A tração e a transferência de força, até o século XIX,
mantiveram mais ou menos a mesma capacidade adquirida ainda na Idade
Média. De modo que, para o século XVIII, as três funções da ciência —
educação, aumento do conhecimento e desenvolvimento da técnica —
estariam respectivamente na proporção, digamos, de 8 : 4 : 1.

Já se quiséssemos fazer a mesma comparação no século presente, a


proporção seria aproximadamente de 2 : 16 : 16. A relação entre as três
funções transformou-se por completo. Talvez alguns se indignarão com a
ínfima parte de valor pedagógico aqui atribuído à ciência em relação ao
cognitivo e ao prático. E, contudo, quem há de defender que as magníficas
descobertas da ciência moderna, desde já compreensíveis somente para um
grupo seleto, seriam ainda capazes contribuir para o nível geral da cultura
de modo significativo? Nem o mais perfeito sistema de ensino
universitário ou escolar mudaria este fato: que enquanto o teor de
conhecimento e o valor prático da ciência seguem aumentando dia a dia, o
valor pedagógico permanece quase o mesmo de um século atrás, e é
inferior ao que fora no século XVIII, quando, em termos de instrução
pública, tudo estava ainda por fazer, ao passo que hoje se inicia a vida
escolar já com um grau de conhecimento consideravelmente mais alto.

O homem hodierno não baseia, salvo muito excepcionalmente, o seu


modo de ver a vida na ciência. A culpa não é da ciência em si. Há uma
forte tendência para desviar-se dela, ou então distorcê-la. Já não cremos
em sua capacidade para nos guiar. O que em parte é compreensível, tendo-
se em conta o tempo em que ela se arrogava o governo do mundo. Porém
há nisso algo mais que uma reação inevitável. Algo como uma atrofia da
consciência intelectual está em jogo. A exigência de pensar as coisas
inteligíveis o mais exata e objetivamente possível – e de submeter esse
mesmo pensamento à crítica – vem perdendo força. Um nevoeiro parece
ter encoberto a mente de muitos. Os limites entre as funções lógica,
estética e afetiva são solenemente ignorados. O sentimento, alheio às
objeções da razão, antes declaradamente contra ela, imiscui-se no
julgamento, a despeito da natureza do objeto considerado. Atribui-se ao
conhecimento por intuição o que na verdade não passa de escolha
deliberada, baseada num afeto. Confunde-se a mera expressão de um
interesse ou desejo com a convicção nascida do conhecimento. E para
justificar tudo isso, invoca-se uma suposta necessidade de resistir à
onipotência da razão, a fim de acobertar uma postura que implica, com
efeito, o abandono mesmo do primado da lógica.

Daquele racionalismo conduzido com mão tirânica todos, sem exceção,


há muito tempo nos emancipamos. Sabemos que nem tudo pode ser
medido pela régua da razão. O próprio avanço da inteligência nos ensinou
que a razão por si não é o bastante. Uma visão mais rica e profunda do que
a puramente racional deu às coisas mais sentido e inteligibilidade do que
tinham anteriormente. Mas enquanto o sábio extrai um sentido mais
profundo da maior liberdade e amplitude de julgamento, o tolo vê ali
apenas uma carta branca para a insensatez. É um desfecho deveras trágico:
o espírito desses tempos, enquanto tomava consciência dos limites da
antiga racionalidade, foi se tornando suscetível a certos absurdos, aos quais
por muito tempo permanecera imune.

A indiferença aos limites impostos pela capacidade crítica é ilustrada


mais claramente com um breve comentário sobre a hodierna teoria racial.
A antropologia é um ramo importante do que se usava chamar de história
natural. Trata-se de uma ciência biológica com um forte componente
histórico, o que a aproxima da geologia e da paleontologia. Por meio da
pesquisa metódica e exata, fundamentada na hereditariedade, construiu-se
um sistema de distinções raciais que, em termos de utilidade, está atrás das
demais teorias biológicas somente por causa da margem de dúvida quanto
à validade de suas conclusões, baseadas na craniometria, bem como pela
grande discrepância produzida pelas diversas tentativas de sistematização.
De um modo geral, aos caracteres físicos com base nos quais se afirmam,
com maior ou menor assertividade, distinções entre raças, parece
corresponder alguma tipologia intelectual, pelo menos em caráter
hipotético. Que um chinês difere de um inglês não só física, mas também
mentalmente, é algo que ninguém há de negar. Contudo, para se chegar ao
ponto de fazer tal constatação, é preciso basear-se na correlação entre raça
e cultura, como numa premissa, de modo que chineses e ingleses sejam
pré-definidos como produtos desses dois fatores. Noutras palavras: uma
grandeza absolutamente impossível de ser medida pela antropologia, i.e., a
cultura, imiscui-se no objeto de análise antes mesmo que se possa falar em
características intelectuais ligadas à raça. Que um fator qualitativo, o
espiritual, derive diretamente de um fator quantitativo, o antropológico, é
um pressuposto que jamais poderia ser considerado aceitável [6]. Pois é
incontestável o fato que sempre uma parte das particularidades intelectuais
de qualquer raça se desenvolveu somente dentro e por causa do meio em
que vive. Ciência alguma poderia separar esta parte daquela outra,
supostamente inata. Tampouco poderia demonstrar qualquer correlação
entre uma característica física, por exemplo a dobra mongólica, e uma
característica mental (se é que se pode provar a presença integral de tal
característica como própria de toda uma raça). Enquanto o estudo das raças
sofrer dessas limitações, a convicção de que o caráter de um povo resulta
da raça seguirá sendo uma afirmação injustificada e, mesmo com as
devidas ressalvas, não mais que um tipo incerto e impreciso de
conhecimento. Por outro lado, em se aceitando a condição de que só um
conceito de raça+cultura é admissível, neste caso a pretensão a um
princípio racial cientificamente comprovado é de imediato descartada, e
seria melhor não tirar daí mais conclusões.

Um exemplo: considerando-se os dons inatos como dependentes da


raça, segue-se que, a dons inatos semelhantes, correspondem também
semelhanças raciais. Ora, os judeus e os alemães são extraordinariamente
dotados para a música e a filosofia, dois importantíssimos elementos de
uma cultura. Logo, isso deveria ser visto como prova de um estreito
parentesco entre a raça semita e a germânica — e assim por diante.
Naturalmente, o exemplo é ridículo, porém não menos ridículas são as
conclusões atualmente em voga entre muitíssima gente com formação
intelectual acima da média.

A moda atual das teorias raciais aplicadas à crítica cultural e à política


não deve ser imputada a um, digamos, sensacionalismo da antropologia.
Estamos aqui diante do caso atípico de um saber popular que por muito
tempo e até recentemente permanecera excluído da cultura reconhecida e
sancionada. Embora desde o início rechaçado pela ciência séria como
insustentável, sobreviveu, entretanto, durante mais de meio século numa
esfera de romantismo malsão até que, de súbito, por obra das
circunstâncias políticas, viu-se alçado a um pedestal de onde agora se
atreve a ditar verdades científicas. A afirmação da superioridade de um
grupo a partir de sua pretensa pureza racial tem sido uma grande tentação
desde sempre, por não requerer muito labor intelectual e por lisonjear a
mentalidade romântica, pouco afeita ao rigor crítico e possuída por um
desejo de autoexaltação. Era romantismo tardio mal digerido o que
perturbava o bom funcionamento de
espíritos como H.S.Chamberlain, Schemann e Woltmann. Já o sucesso de
opiniões como as dos senhores Madison Grant e Lothrop Stoddard, que
tachavam os operários de raça inferior, politicamente foi algo pouco
auspicioso.
A teoria racial esgrimida nos debates culturais é invariavelmente
elogio em boca própria. Houve jamais algum teórico que, com espanto e
vergonha, tivesse chegado à conclusão de que a sua própria raça deveria
ser considerada inferior? Não, mas sempre a exaltação de si e dos seus,
acima e às custas dos demais. A tese da raça é sempre hostil, é sempre
anti-. Para um pensamento que se pretende científico, isso é um mau sinal.
A sua posição é antiasiática, antiafricana, antiproletária, antissemita.

Não é o caso de querermos negar a existência de graves problemas e


conflitos sociais, econômicos ou políticos advindos do contato entre duas
raças num mesmo país ou região. Tampouco se quer negar que a aversão
de uma raça a outra poderia ser algo instintivo. Em ambos os casos,
contudo, o impulso discriminatório é de ordem irracional, e não cabe à
ciência promover tal impulso à categoria de princípio crítico. Essas
contradições traem o inegável caráter pseudocientífico das teorias raciais
aplicadas.

Se uma aversão instintiva a outras raças é algo biologicamente


determinado (tal como parece ser para os muitos que dizem não poder
tolerar o cheiro dos negros), a única conclusão possível seria a de que o
homem civilizado tem a obrigação de reconhecer o que há de animalesco
nesse tipo de reação, a fim de tentar controlá-la com todas as forças, o que
é exatamente o oposto de alimentar tal sentimento ou ver nele um motivo
para glorificar a si mesmo. Uma política baseada em “fundamentos
zoológicos”, tal como bem a definiu o Osservatore Romano em certa
ocasião, jamais seria aceitável dentro de uma sociedade de fundamentos
cristãos. Numa cultura que não só permite a hostilidade racial, mas chega
mesmo a encorajá-la, a condição “cultura é domínio sobre a natureza”
deixou de ser cumprida.

Há duas ressalvas a serem feitas quanto à condenação das teorias


raciais aplicadas à política. Em primeiro lugar, não devemos confundi-las
com a eugenia prática resultante de uma reflexão mais madura, nem cabe
aqui tratar de suas possíveis contribuições para a sociedade humana. Em
segundo lugar, a autoexaltação de um povo às custas de outro não repousa
necessariamente sobre a diferença de raça. O sentimento de superioridade
dos povos latinos baseou-se sempre antes na qualidade da cultura do que
na raça. La race, em francês, nunca teve uma acepção puramente
antropológica. Em todo caso, ainda que o entusiasmo e o orgulho pela
excelência da própria cultura venham a ser mais racionais, e mesmo mais
legítimos, que o orgulho racial, nem por isso deixam de ser algo
intelectualmente inócuo.

Por mais que a reviremos, a teoria racial aplicada segue sendo uma
prova contundente do declínio dos parâmetros que a opinião pública exige
do julgamento crítico. Os freios da crítica estão falhando.

E falham também de muitas outras maneiras. Não há como negar que,


com a necessidade renovada de síntese nas humanidades desde princípios
do século, após um período de excessiva análise (um movimento em si
mesmo benéfico e fértil), o “achado” passou a desfrutar de certa
aceitabilidade na produção científica. Abundam ousadas sínteses culturais,
amiúde construídas com grande erudição, nas quais a “originalidade” do
autor celebra triunfos maiores do que um estudo escrupuloso lhe poderia
outorgar. O filósofo da cultura e da sociedade assume às vezes o lugar do
bel-esprit de épocas anteriores. Não está totalmente claro até que ponto ele
se leva a sério, mas certo é que pretende ser levado a sério pelos seus
leitores. Trata-se de um meio termo entre filosofia da cultura e fantasia
cultural, onde às vezes nem as pessoas instruídas são capazes de distinguir
o joio do trigo. Uma forte inclinação para o efeito estético no estilo
contribui por vezes para agravar a confusão causada por esse tipo de
produção intelectual.

As ciências naturais não sofrem dessas mazelas. Na própria fórmula


matemática tem-se o instrumento que determina a validade (ainda que não
a veracidade) do que se propõe. Não há lugar para o bel-esprit neste
terreno, e o charlatão é facilmente posto para correr. É por um lado o
privilégio, e por outro o risco das humanidades, o fato de seu pensamento
e sua linguagem encontrarem-se em esferas parcialmente sobrepostas às da
estética e dos sentidos.

Toda a formação de juízo nesse campo, que nunca foi perfeitamente


exata, se tornou ainda mais nebulosa, enquanto as ciências naturais vinham
requerendo uma exatidão cada vez maior. Como nunca antes, nas
humanidades a razão pura vem sendo preterida por outros instrumentos, e
as conclusões passando ao largo dos códigos e da tradição. Quão
frequentes e quão indispensáveis à explicação do ato de conhecer não se
tornaram palavras como “visão” e “concepção”, para não falarmos em
“introspecção” ou “Wesensschau”[7] Com tudo isso, os juízos adquiriram
uma flexibilidade considerável. Também essa flexibilidade pode ser
benéfica. Todavia, não raro acarreta certa oscilação do espírito entre a
firme convicção e o mero jogo do pensamento. Levando-se em conta o já
aludido caráter antinômico do pensamento em geral, hoje, para um
intelecto que se põe rigorosamente à prova, afirmar “isso é o que
realmente penso” torna-se mais difícil do que na idade da escolástica ou do
racionalismo. Na mesma medida, aliás, em que se torna mais fácil para o
intelecto raso ou parcial.

Para esse rebaixamento dos parâmetros críticos contribuem não pouco,


segundo me parece, as tendências do pensamento que remontam a
Sigmund Freud. Como isso se deu? A psiquiatria chegou a alguns dados
importantes, cuja interpretação a levou do terreno da psicologia para o da
sociologia e da cultura. É quando deparamos com este fenômeno comum:
uma mente preparada para a análise e a percepção precisas, ao lidar com as
humanidades — cuja interpretação é, por natureza, imprecisa —, acha-se
desprovida de quaisquer critérios probativos razoáveis e, em território
estranho, chega, de achado em achado, às conclusões mais abrangentes,
que não resistem à verificação de um método histórico-filosófico. Que
dizer, então, quando um sistema assim formado chega a amplas camadas
da população com um prestígio de verdade consagrada e sua terminologia
passa a ser empregada como um molde do pensamento por toda a gente?
Poucos serão capazes de resistir a essa ocasião imperdível para o
diletantismo em ciência. Quem nunca se espantou com a miséria
intelectual de escritos populares feitos por autores que, de uma perspectiva
psicanalítica, se metem a explicar o mundo e a humanidade, satisfeitos
com seus “símbolos”, “complexos” e “fases da psique infantil”, até chegar
ao grand finale das conclusões e teorias triunfantes?

6. N.T.: o autor refere-se sobretudo à antropologia positivista, biológica,


baseada na genética, na craniometria etc. voltar

7. N.T.: Intuição das essências ou estruturas essenciais, conceito


fenomenológico (em alemão no original). voltar
IX. O ABUSO DA CIÊNCIA

No caso da teoria racial, lidávamos com uma pseudociência a usurpar o


lugar da verdadeira e a serviço de uma vontade de poder. Esta última,
todavia, acha um instrumento muito mais poderoso na ciência verdadeira,
usada para a elaboração e justificação dos meios necessários.
“Conhecimento é poder”, outrora lema do período burguês e liberal,
adquire, dessa forma, tonalidade mais sombria.

A ciência, na ausência de um princípio superior que a oriente, entrega


sem resistência alguma todos os seus segredos nas mãos de uma técnica
hipertrofiada e voltada para o comércio. Já a técnica, ainda mais alheia a
qualquer espécie de princípio superior atuante na salvaguarda da
civilização, usa desses meios científicos para criar as ferramentas que o
organismo do poder lhe demanda. A técnica provê tudo o que a sociedade
precisa para o aperfeiçoamento das comunicações e a satisfação de
necessidades. As possibilidades estão longe de se esgotarem. Cada
descobrimento científico abre novas perspectivas, mas a sociedade em sua
estrutura atual ainda não é capaz de assimilar tudo o que a técnica poderia
lhe oferecer em termos de moradia, alimentação, transporte e transmissão
de ideias.

Além disso, a sociedade pede à técnica científica também instrumentos


de destruição. Nem tudo o que atenta contra a vida significa a violência da
guerra ou crime. O combate às pragas, com que organismos da vida animal
e vegetal ameaçam a vida humana, é aceito por toda e qualquer sociedade
como algo benfazejo e permitido, e mesmo obrigatório (a menos que se
tenha a postura de extrema passividade venerada por algumas religiões da
Índia). A manutenção da lei e da ordem pode requerer eventualmente o uso
da força, até o extremo de uma ação contra a vida humana.

Um passo além e deparamos com o uso da ciência visando sufocar a


vida em sua origem. Os meios contraceptivos artificiais podem significar
mais bem-estar social e felicidade. A expressão “domínio sobre a
natureza”, considerado por nós essencial à cultura, aqui já não é aplicável.
Não se trata de domínio, mas de frustração da natureza e de seu possível
aniquilamento. O limite além do qual o uso da ciência para tais fins se
torna abuso depende do julgamento moral da contracepção, que é, como se
sabe, essencialmente dominado pelo ponto de vista religioso.

Ademais, e totalmente à margem do critério moral na distinção entre


uso e abuso, desponta a questão sobre as consequências sociais de uma
prática contraceptiva continuada. Não faltam vozes a profetizar um
acelerado declínio da população e, na esteira desse fenômeno, o fim da
civilização correspondente. Segundo cálculos baseados na genética e na
demografia, em continuando a redução do número de crianças, com as
taxas de natalidade verificadas ao menos na maioria dos países da Europa
ocidental, a extinção da população nativa seria coisa de
poucas gerações[8]. Se isso for verdade, o problema da crise civilizacional
perderá muito de sua relevância, uma vez que, nesse caso, o desfecho será
de um modo ou de outro inexorável. Afinal, de que serviria resguardar
uma cultura se não houver herdeiros para a receber?

Como quer que seja, dessa ciência que aperfeiçoou e eliminou da


técnica contraceptiva os riscos à saúde, não se pode, senão com ressalvas,
dizer que tenha cumprido sua função de contribuir para o bem da
humanidade e da civilização.

Mais difícil ainda é o juízo sobre o uso ou abuso da ciência quando se


trata da elaboração de meios diretos de destruição em grande escala da
vida humana e dos seus bens. Não, o autor destas páginas não é defensor
do pacifismo radical, nem adepto da completa passividade: ao condenar
qualquer ação contra a vida humana, não somente excetua a legítima
defesa do indivíduo e a manutenção da ordem legal, como também
reconhece no cidadão o dever de servir à pátria, e por ela matar ou morrer,
no cumprimento de suas obrigações militares. Ele pensa, contudo, ser
possível conceber situações em que a extinção voluntária de todo o gênero
humano seria preferível à sobrevivência de alguns pela culpa de todos.

A guerra mundial pela qual acabamos de passar estendeu ao extremo a


nossa noção do que é admissível em política. Entendemos e toleramos que,
uma vez desencadeada a guerra, a perfeição da técnica científica
dificilmente permitiria que os novos meios de destruição, por via aérea ou
marítima, balísticos ou químicos, não viessem a ser empregados.
Assistimos, com um sentimento de revolta impotente, ao avanço em escala
global da técnica científica voltada à preparação e aperfeiçoamento de tais
meios. Porém existe um ponto em que a nossa disposição a passar por tudo
isso já não tem cabimento: trata-se da guerra biológica, o uso bélico de
agentes infecciosos. Não há dúvidas de que um tipo de ataque em que se
espalhem bactérias, algo abertamente advogado por alguns, tem sido por
mais de um país estudado e incentivado [9]. Aqui poderá alguém contestar:
que diferença faz o uso de explosivos, gás ou germes? Não houve um
tempo em que envenenavam as fontes? Sem dúvida, a diferença é apenas
subjetiva. Mas se chegarmos a ver o dia em que os homens, com a ajuda
da ciência, usarão para lutar uns contra os outros aquilo mesmo que em
todas as culturas precedentes, da mais alta à mais primitiva, fora temido e
reverenciado como obra de Deus, do Fado, do Demônio ou da Natureza,
então, diante de um escárnio de tal modo satânico contra o Princípio deste
mundo, seria melhor que a humanidade, sob o peso de sua culpa, fosse
afogada duma vez por todas na própria vileza.

Se acaso esta civilização em que vivemos vier um dia a recobrar a


ordem e a moralidade, ainda assim o mero fato de uma guerra biológica ter
sido cogitada, por si só deixará uma nódoa indelével na imagem desta
nossa geração perdida.

8. De acordo com E. Charles, em The Invention of Sterility, no volume


The Frustration of Science. Londres, 1935. voltar

9. De acordo com P. A. Gorer, em Bacterial Warfare, no volume The


Frustration of Science, op. cit., loc. cit. voltar
X. O DESCRÉDITO DO
CONHECIMENTO

Rebaixamento dos parâmetros críticos, perturbação da capacidade de


julgar, perversão da função da ciência, tudo isso é sinal de um grave
transtorno na civilização. Mas quem imaginar que a simples menção aos
sintomas conduz à sua erradicação engana-se redondamente. Pois como
que podemos ouvir desde já a voz solene dos que se têm por arautos da
civilização futura: “Não importa! Não precisamos dum conhecimento certo
e posto num pedestal para só então poder decidir o que vamos fazer. A
meta não é pensar e saber, mas viver e agir!”

Eis aí o problema central da crise civilizatória: o conflito entre


conhecimento e existência. Até aqui, nada de novo. A insuficiência
essencial do nosso conhecimento foi constatada desde o início da filosofia.
A realidade em que vivemos continua fundamentalmente inconhecível,
impossível de ser explorada por meios intelectuais, totalmente separada do
pensamento. Na primeira metade do século XIX essa velha verdade,
conhecida já de um Nicolau de Cusa, foi retomada por Kierkegaard e
posta, na forma de oposição entre existência e pensamento, no centro de
sua filosofia, o que o levou a estabelecer um alicerce ainda mais sólido
para a sua fé. Foram os seus sucessores que, tendo percorrido por conta
própria um caminho semelhante, privaram a ideia original de sua
orientação para Deus, fazendo com que naufragasse quer no niilismo e no
desespero, quer no culto da existência terrena. Nietzsche tentou resgatar o
ser humano de seu trágico exílio do reino da verdade ao supor, detrás da
vontade de conhecer as coisas, o fundamento mais profundo do desejo
vital, concebido como vontade de poder. O pragmatismo privou o conceito
de verdade da pretensão à validade absoluta, enquadrando-o nas tendências
particulares de cada época. Verdade seria aquilo que tem um valor
essencial para os que a professam. Algo é verdadeiro quando e na medida
em que for válido para determinada época. Qualquer espírito menos
cultivado poderia facilmente inferir: tal coisa tem validade, logo é
verdadeira. Bergson pavimentara o caminho para o anti-intelectualismo
que fatalmente desembocaria numa espécie de igualitarismo intelectual e
moral, na abolição de toda a distinção de hierarquia e valor entre as ideias.
Sociólogos, entre os quais Max Weber, Max Scheler, Oswald Spengler e
Karl Mannheim, viram na Seinsverbundenheit des Denkens (“vinculação
do pensamento à situação em que existimos”) uma premissa que os pôs na
vizinhança imediata do materialismo histórico, a filosofia antinoética[10]
por excelência. E assim, aos poucos confluíam as forças antinoéticas do
século numa poderosa torrente, que em breve romperia os diques da
cultura tidos por inquebrantáveis. Foi Georges Sorel quem, nas suas
Réflections sur la violence (“Reflexões sobre a violência”), deduziu as
consequências práticas de tudo isso, tornando-se assim o pai espiritual das
ditaduras contemporâneas.

Mas não são, de modo algum, só as ditaduras e seus entusiastas que


defendem a subordinação do impulso cognitivo à vontade de viver.
Estamos aqui diante da causa mesma de toda a crise civilizacional. Essa
virada do espírito é o processo que domina de fato a situação em que nos
encontramos.

Acaso foi a filosofia quem deu o tom e a sociedade apenas a seguiu?


Ou deveríamos inverter a relação, dizendo: a filosofia pôs-se a dançar
conforme a música da existência. A própria doutrina que subordina o
conhecimento à vida parece corroborar esta última hipótese.

Houve jamais alguma cultura que renegasse de tal modo o ideal de


conhecimento e mesmo o primado da inteligência? Não me ocorre de
imediato nenhum paralelo histórico. Um anti-intelectualismo, tanto
sistemático e filosófico quanto pragmático, como o que testemunhamos
atualmente é, com efeito, algo inédito na história da civilização humana.
Sem dúvida ocorreram por diversas vezes na história do pensamento
guinadas em que o abuso do primado dos conceitos foi sucedido pela
afirmação da vontade. Uma guinada desse tipo ocorreu, por exemplo,
quando, por volta do século XIII, o pensamento de João Duns
Escoto sucedeu ao de São Tomás de Aquino. Tais mudanças não afetavam,
contudo, a vida prática nem a condição terrena, mas sim a fé, o desejo de
um alicerce mais sólido para a existência. E isso sem que deixassem de
admitir a irracionalidade de tais convicções. A opinião atual confunde
levianamente intelectualismo com racionalismo. Ora, mesmo as filosofias
que, preterindo a reflexão e a compreensão lógicas, quiseram, através da
intuição e da contemplação, atingir o que era inacessível ao conceito, não o
fizeram senão precisamente em nome do conhecimento e da verdade. A
palavra grega gnosis ou a indiana jnana mostram claramente que mesmo a
mais etérea mística não deixa de ser uma forma de conhecimento. Trata-se
ainda do espírito movendo-se dentro da esfera do inteligível. Aperceber-se
da verdade sempre foi o ideal. Civilizações que descartassem o
conhecimento em seu sentido mais amplo ou que renegassem a verdade
são um fenômeno inédito.

Se é verdade que algumas filosofias em tempos passados não quiseram


render preito ao instrumento lógico, a razão, ainda assim foi em favor do
suprarracional. Já a cultura hoje dominante não só renega a razão como
também a inteligência mesma, e isso em favor do sub-racional, das pulsões
e dos instintos. Optam, desse modo, pela vontade, mas não aquela voltada
para a fé, no sentido de Duns Escoto, senão pela vontade de poder, a
“existência”, o “sangue e pátria”, em lugar do “conhecimento” e do
“espírito”[11].

Por ora permanece em aberto a questão sobre até que ponto o


inevitável reconhecimento da Seinsverbundenheit, da
Situationsverbundenheit (“dependência da situação concreta”) do
pensamento terá lançado luz sobre a consciência cultural, e até que ponto
poderá, entendido de maneira simplória, minar o edifício da cultura.

10. Emprego este termo, pois anti-intelectual já adquiriu uma conotação


demasiado específica, e aqui se trata de um conceito geral: “aquilo que se
opõe ao primado do conhecimento”. voltar

11. Para um julgamento da questão sobre como deve ser entendida a


asserção de Hegel, de que a filosofia é “ihre Zeit in Gedanken erfasst” (“a
sua época apreendida em pensamentos”), remeto a Theodor Litt,
Philosophie und Zeitgeist (“Filosofia e espírito do tempo”), que mostra
como os adeptos da “Lebensphilosophie” (“filosofia da vida”) invocam
Hegel indevidamente. voltar
XI. O CULTO DA VIDA

A próxima palavra da moda nos meios bem-pensantes será sem dúvida


“existencial”. Vejo-a brotando já em toda parte. O passo seguinte será cair
nas graças do grande público. Quando um autor, na ânsia de mostrar aos
seus leitores a sua compreensão superior de todas as coisas, estiver
cansado da palavra “dinâmico”, é a “existencial” que irá recorrer. O termo
dará uns ares solenes à simples negação do espírito, a essa profissão de
indiferença por todo saber e verdade.

E assim somos brindados com o espetáculo de assistir ao uso, no


debate científico atual, de expressões que até ontem seriam consideradas
tolas demais até para servir de piada. Num congresso de filologia em
Tréveris, realizado em outubro de 1934, um dos palestrantes, segundo o
relato de um jornal, argumentou que já não era a verdade o que devíamos
buscar nas ciências, mas sim “espadas afiadas”. Já um outro, havendo
mostrado pouco apreço por certas tentativas de interpretação nacionalista
da história, foi repreendido pelo presidente da mesa por sua “falta de
subjetividade”. E estamos falando de um congresso científico.

Eis o ponto a que chegamos no mundo civilizado. Mas não pensem que
a capacidade crítica veio a degradar-se só nos países onde triunfou o
nacionalismo extremo. Basta olhar à nossa volta para perceber sem muita
dificuldade o quanto se tem disseminado entre pessoas com algum grau de
instrução, sobretudo jovens, certa indiferença pela veracidade das ideias
que povoam — ou assombram — as suas mentes. As categorias ficção e
história, no sentido simples e corrente destes termos, já não se distinguem
claramente. É indiferente se um argumento pode ou não ser testado quanto
à sua veracidade. A voga em torno da ideia de “mito” é o exemplo mais
significativo dessa confusão. Adota-se uma representação do mundo
deliberadamente permeada de desejos e fantasias e que, apesar disso, é
proclamada “o verdadeiro passado” e elevada a norma de vida, com a
consequência inevitável de se tornarem indiscerníveis a esfera do
conhecimento e a da vontade.

No instante mesmo em que a filosofia da vida (seinsverbundene) se


expressa verbalmente, metáforas fantasiosas, sem empecilho algum da
crítica, esgueiram-se para dentro da argumentação lógica. E uma vez que a
vida não pode ser expressa em termos lógicos (no que todos
concordamos), a palavra, a fim de dizer o que a lógica não alcança, deve
passar ao poeta. É o que tem acontecido desde que houve algo como a
poesia neste mundo. Mas, à medida que a cultura se desenvolveu, veio à
tona uma distinção cada vez mais clara entre o poeta e o pensador, e
atribuiu-se a cada um a sua parte. A linguagem dessa nova filosofia,
tentando regressar ao estágio primitivo, logo se extravia numa
estupefaciente confusão entre meios de expressão lógicos e poéticos. Entre
esses, ocupa um lugar sobressalente a metáfora do sangue. De geração em
geração, poetas e sábios de todos os povos vêm recorrendo à figura do
sangue para apreender de modo preciso e numa palavra o princípio ativo
da vida. Embora a princípio outros fluidos corporais pudessem com igual
eficácia sugerir a ideia de hereditariedade e parentesco, foi no sangue que
se viu, sentiu e ouviu pulsar a corrente da vida; no sangue derramado, a
mesma vida fugir; o sangue significava coragem e luta. Essa figura, além
disso, adquiriu há muito um sentido sagrado, tornou-se com efeito a
expressão do mais profundo mistério divino. Ao mesmo tempo, o termo
guarda toda a sua riqueza expressiva no uso cotidiano. Mas será que não
estamos diante de um abuso confinante com a mitologia, quando
testemunhamos agora esse mesmo termo ser adotado pelo credo jurídico
de um grande Estado moderno, e ouvimos um ministro, ao advogar um
novo direito penal, recorrer à imagem do sangue, e com tal plasticidade
que nem o homem feudal seria capaz de igualar?

A hierarquia entre sangue e espírito é invertida pelos partidários da


filosofia da vida. De R. Müller-Freienfels retiramos a seguinte citação: “A
essência do nosso espírito situa-se não no conhecimento puramente
intelectual, mas em sua função biológica enquanto meio para a
conservação da vida”[12]. Que ninguém cometa a indiscrição de lhe
perguntar qual seria a essência do sangue!

A obsessão pela vida deve, para ficarmos na terminologia dos seus


profetas, ser considerada sintoma de uma pletora de sangue. A sociedade
moderna, através do aperfeiçoamento técnico de todas as comodidades da
vida, através da segurança maior em todos os aspectos, através da elevada
acessibilidade a toda sorte de prazer, através do aumento contínuo do bem-
estar, ainda em curso, atingiu um estado tal que a velha medicina teria
chamado de pletórico. Temos vivido em meio ao excesso espiritual e
material. Se temos a vida em tão alta conta, é porque ela se tornou muito
fácil para nós. O conhecimento cada vez mais preciso, a facilidade do
intercâmbio intelectual, acrescentaram, robusteceram a vida. A gente, até a
segunda metade do século XIX, neste mesmo próspero Ocidente, estava
em contato muito mais direto e prolongado com as misérias da existência
do que nós estamos habitualmente ou julgamos poder vir a estar um dia.
Nossos avós tinham poucos recursos à mão para abrandar a dor, para curar
ferimentos ou fraturas, para proteger-se do frio, iluminar-se de noite,
comunicar-se com outrem quer pessoalmente, quer à distância, para fazer a
higiene apropriada do corpo, evitar a sujeira e o mau cheiro. Para onde
quer que olhasse, o homem percebia os limites necessários da satisfação
material. A eficiência dos recursos técnicos, higiênicos e sanitários na
melhoria de suas circunstâncias acabou por mal acostumar o ser humano.
Estamos perdendo aquela generosa resignação diante das adversidades
cotidianas e das limitações do prazer, a grande lição das gerações
pretéritas. Mas, com isso, corremos o risco de perder também aquela
aceitação espontânea da alegria de viver, quando esta nos acena. A vida
ficou fácil demais. As pernas humanas não parecem fortes o bastante para
suportar o peso de tanta opulência.

Nas civilizações de épocas anteriores, fossem cristãs ou maometanas,


budistas ou ainda outras, sempre o homem teve que lidar com a seguinte
contradição: a princípio, a felicidade terrena é algo decepcionante se
comparada à beatitude celestial ou à fusão com o todo. Por outro lado,
mesmo o valor apenas relativo que essas religiões atribuem a este mundo
já basta para impedir a negação da vida em si, enquanto dádiva do próprio
Deus, sem com isso pecar por ingratidão. Foi justamente a consciência da
precariedade inerente ao bem-estar terreno o que permitiu a apreciação do
seu justo valor. Num homem animado por intensa vida espiritual pode,
sem dúvida, haver desprezo pelo secular, mas não o mal do século.

Também hoje existem contradições nessa área, mas essencialmente


diversas daquelas de outrora. Eis a primeira delas: o aumento da
segurança, do conforto e dos meios de satisfazer as necessidades, em
poucas palavras, a vida mais próspera e segura, abriu caminho para mil
formas de renegação da própria vida: a negação filosófica de seu valor, o
spleen puramente sentimental ou a franca aversão à existência; e apesar
disso, ao mesmo tempo, ela incutiu nas pessoas a ideia de haver como que
um direito à felicidade terrena: o homem posta-se diante da vida como um
credor ou como quem reivindicasse uma compensação. A esta contradição
está ligada uma segunda, qual seja: as posturas ambivalentes, oscilando
entre o gozo e a ojeriza à vida, limitam-se ao âmbito individual, ao passo
que, em comunidade, ao contrário, aceita-se, sem hesitações e de plena
convicção, a vida terrena como objeto único de todas as aspirações e atos.
Há em toda parte um verdadeiro culto dedicado à vida.

Resta agora uma questão importante: se seria possível mantermos uma


alta cultura sem um elemento que lide de algum modo com a morte. Todas
as grandes civilizações que nos precederam conheceram algo dessa
espécie. Há indícios de que o pensamento filosófico já está a enveredar
pelo mesmo caminho. E aqui ao menos haverá convergência com as
correntes que animam a filosofia da vida, porquanto é lógico que uma
doutrina que valoriza o “existir” mais que o “conhecer” tenha também o
fim da existência por objeto de interesse.

Tempos estranhos! A razão, que outrora combateu a fé e acreditava tê-


la destronado, recorre agora, para escapar à sua própria decomposição, a
nada mais, nada menos que à fé. Pois somente sobre a base sólida e
inabalável de uma consciência, uma ideia metafísica viva, é que o conceito
de verdade absoluta — e, por via deste, as normas plenamente válidas da
moral e da justiça — pode resistir à torrente avassaladora dos instintivos
vitais.

Grande ilusão. Fazer uma tempestade contra o conhecimento e o


entendimento, mas invariavelmente por meio do conhecimento parcial e do
mal-entendido. A fim de provar a invalidez de uma forma de
conhecimento, nada pode ser feito senão invocar outra forma de
conhecimento que não aquela que se quer descartar. A realidade e a
própria vida ficam opacas, inescrutáveis. Todo verbo implica
conhecimento. Mesmo a poesia mais ardente em sua busca de um contato
imediato com a vida (penso em Whitman e em alguns poemas de Rilke)
não deixa de ser uma forma intelectual, um conhecimento. Quem quisesse
levar a sério o princípio antinoético teria que renunciar à fala.

Uma filosofia que começa por condicionar sua veracidade à forma de


vida que ela mesma prescreve será necessariamente, para os seus
partidários, redundante, e, para o restante do mundo, absurda. Serve
unicamente para confirmar algo em que se acreditou de antemão. Por que
então o Estado insiste, já que não se trata aí de conhecimento, em atrelar
fogosos pensadores adiante, ou atrás, de seu carro triunfal, a fim de
comprovar o seu valor? Antes desse a cada um deles uma boa enxada e um
terreno para capinar.

12. Em Criton, Historie en Mythe (“Críton, história e mito”), revista De


Gemeenschap (“A Comunidade”), fev. 1935, p. 139. (A esse trabalho devo
também os exemplos do final do capítulo anterior). voltar
XII. VIDA E LUTA

Viver é lutar. É uma velha verdade. O Cristianismo soube-o desde


sempre. A validade desse princípio para a cultura já estava implícita em
nossa premissa de que toda cultura consiste em esforço e aspiração. Ora,
esforço é sempre luta, i.e., a convergência de uma grande determinação e
das forças disponíveis, a fim de vencer os obstáculos que nos separam dos
objetos de nossas aspirações. Toda a terminologia da vida anímica deriva
do domínio da luta. Um dos traços fundamentais do organismo é o estar
em certa medida equipado para o combate. Subjacente ao ideário da
biologia é a afirmação de que “viver é lutar”. É natural, portanto, que, para
a doutrina que tudo submete às exigências da vida, este lema seja a maior
de todas as verdades. Mas em que sentido será que o interpretam?

A doutrina cristã, por sua própria essência e finalidade, havia eleito o


mal como o objeto a ser combatido. O mal era a negação da vontade, da
sabedoria, do amor e da bondade de Deus, de toda a revelação que O
apresenta de forma consciente à alma humana. E é aqui, justamente, o
lugar onde a batalha decisiva pode e deve ser travada: pelo homem, contra
o mal, dentro de si mesmo. Contudo, na medida em que o conhecimento a
respeito do bem e do mal, da verdade e da mentira, se organizava em
igreja, comunidade ou poder secular, a luta contra o mal entendia-se
também ao âmbito exterior. A luta contra a maldade tornou-se dever
cristão. O trágico da existência terrestre, “a confusão e a mistura” da
civitas Dei com a civitas terrena [13] enquanto durar este mundo, fizeram
da história da cristandade, i.e., dos povos que professam Cristo, algo
diverso de um triunfo do cristianismo. A autoridade que emitia a palavra
de ordem para distinguir quem eram os maus emanava, alternadamente, de
partidos teológicos firmes em sua coerência doutrinária, de reinos
bárbaros, de uma Igreja em luta para sobreviver, de povos tão devotos
quanto concupiscentes, bem como de governos implicados em conflitos
com a Igreja. Olhando, porém, para os antigos concílios, ou para as
cruzadas, ou para a disputa entre imperador e papa, ou para as guerras de
religião, o pressuposto de que a hostilidade se fundava na oposição entre a
verdade e a mentira, entre o bem e o mal, não foi jamais questionado. E
nesta convicção repousava também a delimitação dos meios de combate
permitidos. Dentro do cristianismo, o ponteiro da consciência era capaz de
apontar, ao longo de uma escala indo desde a completa passividade até o
emprego da guerra, sempre na direção do dever.

Se compararmos as convicções correntes acerca do bem e do mal com


o princípio cristão, ou mesmo com o ponto de vista platônico, veremos
que, na teoria, os fundamentos do cristianismo foram renegados de modo
muito mais amplo do que sugere o seu abandono oficial ou semioficial.
Por ora, deixemos de lado a questão sobre se, no nível da consciência
individual, as coisas terão se passado do mesmo modo. O que é certo é que
nas discussões acerca dos deveres públicos há pouco espaço para a noção
de bem e mal absolutos. O conceito de “luta da vida”, no entender de
muitos, passou do domínio da consciência pessoal ao da vida política da
comunidade e, com isso, o teor ético dessa ideia de luta praticamente
evaporou-se. Para esses, a luta da vida, aceita como um destino e um
dever, significa quase exclusivamente a luta de certa comunidade visando
certo bem público, portanto, como uma tarefa para a cultura como um
todo. Trata-se de uma luta contra certos males públicos. Na condenação de
tais males, pode-se ouvir a voz de uma convicção ética sincera, por
exemplo, em se tratando do crime, da pobreza, da prostituição. Porém,
quanto maior é o bem-estar da comunidade enquanto tal — o que está em
questão, por exemplo, nas tribulações econômicas ou nas complicações
políticas —, mais o conceito de mal se reduz ao de uma fraqueza interna a
ser superada ou ao de um obstáculo externo a ser combatido.

E uma vez que os homens, mesmo havendo abjurado de todas as


normas éticas, não renunciam à indignação e à condenação dos demais,
resta sempre, mesclado ao conceito de fraqueza ou obstáculo indesejados,
um quê de ojeriza ao “mal” e, desse modo, insinua-se imperceptivelmente
a confusão que faz com que todo obstáculo seja, enquanto tal, visto como
algo maligno.

Os obstáculos que uma comunidade tem por prejudiciais são, na


maioria dos casos, exercidos por outros agrupamentos humanos. A luta da
vida, como dever público, torna-se a luta de uns contra os outros. Esses
outros, os que devem ser combatidos, teoricamente já não representam os
maus. Na luta por poder e prosperidade há apenas os rivais ou os
dominadores, quer na política ou na economia. Dessa forma, os outros
seriam — a partir da perspectiva do sujeito coletivo — concorrentes,
possuidores dos meios de produção, portadores de qualidades biológicas
indesejadas ou simplesmente vizinhos com ou sem laços de parentesco,
todos eles estorvos no caminho da expansão do poder. Em todos esses
casos, o desejo de combater, submeter, expulsar, desapropriar ou extinguir
não supõe condenação ética alguma. A natureza humana, contudo, não
deixa de ser fraca, por mais que, em nome de um neopaganismo heroico,
se negue a admitir sua fraqueza. Por isso, no desenrolar da disputa, os
rivais acabam tornando-se objetos de um ódio tal que somente a sua
identificação com os maus poderia explicar.

As diversas reações psicológicas às quais a massa está sujeita ofuscam


as mentes dentro da comunidade que busca ou que receia a luta. Sobretudo
o medo ante a aproximação do desconhecido, vindo de longe, fatalmente a
afeta. Quanto mais forte o equipamento tecnológico, quanto mais intenso o
contato entre os envolvidos, tanto maior o perigo de que um conflito
político, malgrado o desejo de coibir excessos, seja desencadeado, por
puro medo, naquela modalidade precipitada e a longo prazo ineficaz, à
qual damos o nome de guerra.

Glória ao soldado no campo de batalha! Em meio às privações e


misérias da guerra, ele reencontra todos os valores da mais elevada ascese.
O ódio desaparece. Em constante e disciplinada prontidão para o sacrifício,
em obediência absoluta a um objetivo decretado à sua revelia, o soldado
cumpre uma tarefa que o conduz ao máximo desenvolvimento das suas
funções éticas [14].

Poderia então essa impecabilidade do soldado ser extrapolada para a


impecabilidade do conflito internacional e, desse modo, levar ao
reconhecimento do justo direito dos Estados à guerra em interesse próprio?
É o que afirma uma teoria de Estado atualmente defendida quase sem
exceção na Alemanha, tanto por pensadores quanto por homens de ação. A
consequência é a desconsideração simplória, nas relações entre Estados, de
todo e qualquer elemento de maldade humana.

Para tanto, basta adotar a premissa de que o Estado se equipara, como


objeto equivalente e autônomo, aos valores fundamentais da verdade e do
bem. Sob um belo vestido de eloquência e agudeza, foi isso o que fez Carl
Schmitt, autoridade em direito constitucional, em sua brochura Der Begriff
des Politischen ("O conceito do político")[15]. O ensaio principia com
estas palavras:

A verdadeira distinção política é entre amigo e inimigo. É ela que


confere às ações e motivos humanos seu sentido político; e é a ela
enfim que todas as ações e motivos políticos remontam (...) Na
medida em que não pode ser deduzida a partir de outras
características, corresponde, no âmbito político, às características
relativamente autônomas destoutras oposições: bem e mal na
moralidade, belo e feio na estética, útil e danoso na economia. Em
todo caso é autônoma (...)

Esta afirmação da política enquanto categoria autônoma apoia-se, a


meu ver, de maneira expressa — mas também implicitamente —, numa
petição de princípio. E de um princípio que ninguém, cuja visão de mundo
tivesse recebido algum influxo, por menor que fosse, de Platão, do
cristianismo ou de Kant, poderia acatar sem ressalvas.

Em se acatando a oposição entre amigo e inimigo como equivalente


das demais ali mencionadas, logo temos que, na política, onde é tida por
essencial, a oposição entre amigo e inimigo se sobrepõe a todas as outras.
Ao fim do primeiro parágrafo, lê-se: “A autonomia da política mostra-se já
no fato de ser possível separar uma oposição de tal modo específica, como
a do par amigo e inimigo, das outras distinções, bem como compreendê-la
como algo autônomo”. Não há aí uma crença exagerada na força do
argumento lógico por si que faz recordar a infância da escolástica? Não
estaria o pensamento desse arguto jurista encerrado desde o princípio em
um círculo literalmente vicioso?

Com um expediente simples, o autor removeu do conceito de inimigo


toda a conotação moral ao entendê-lo no sentido de polémios, hostis —
adversário, sempre externo e impessoal — em lugar de echthrós, inimicus
— o inimigo, pessoal e membro da mesma comunidade[16]. Muito a
propósito o autor refere que, em Mateus, 5:44, e em Lucas, 6:27, o que se
lê não é: “Diligite hostes vestros”, mas “inimicos vestros”, ou seja, que
amemos nossos inimigos pessoais, aqueles que nos ofenderam
pessoalmente. Assim como é verdade que a prática cristã desde o princípio
sempre conheceu e reconheceu muito bem o conceito de hostes — os
oponentes da comunidade —, o que corrobora que o termo bíblico
mencionado acima não se refere à esfera política. Que com isso se
justifique equiparar a relação de inimizade política (bem se vê que nela o
“amigo” não tem conteúdo positivo algum) com as relações de verdadeiro
e falso, bem e mal, é algo que todos nós, independentemente de aceitarmos
ou não o cristianismo, deveríamos rechaçar.

Seria, é claro, mais lógico, em lugar da relação de “amigo” e


“inimigo”, propor a de “fraco” e “forte”. Já vimos que o termo “amigo”,
nessa formulação, tem o seu sentido esvaziado, enquanto o termo inimigo
equivale aí a oponente, aquele a quem se confronta. Ora, em nenhuma
relação de confronto o equilíbrio de forças pode ser mantido por tempo
indeterminado. Estamos, pois, diante de uma tese que defende sem
pudores o princípio da lei do mais forte.

Ponhamo-nos, não obstante, na mesma perspectiva do autor. Adotá-la


implica rechaçarmos a submissão de um conflito político ao veredito de
terceiros como algo desarrazoado, tolo e inútil [17]. Caberia única e
exclusivamente ao Estado, e em princípio a todo e qualquer Estado, decidir
sobre quando e como enfrentar o inimigo[18]. Bem como, ao que parece,
decidir sobre quem é esse inimigo. Ao Estado caberia ainda decidir se o
sujeito “político” em questão seria ele próprio um Estado e, portanto, teria
o direito de ter inimigos. Deparamos aqui com uma encruzilhada, cujas
consequências o autor talvez nem sequer percebeu e, em todo caso, não
mencionou. Acaso um grupo qualquer, desejoso de se tornar politicamente
autônomo, estaria desde já capacitado para agir politicamente? Como
responder aos membros de uma federação, aos de um partido ou classe,
que exigirem para si a direção do Estado? Difícil evitar a conclusão de
que, em tais casos, a determinação do que é a natureza do Estado ficaria a
cargo de todo e qualquer grupo disposto a assenhorar-se do poder. Eis que
logo atrás da autonomia da política vem a legitimação da anarquia.

É previsível também que, cabendo aos próprios Estados deliberar sobre


a expansão de seu poder, e sendo-lhes fácil interpretá-la como condição
necessária à própria existência, pouco ou nada falta para a conquista de um
Estado menor por um maior tornar-se mera questão de desejo e
oportunidade.

De braços dados com os que defendem a autonomia da política


caminham os entusiastas da guerra.

A conquista em si seria uma condição para a existência do Estado,


segundo o conhecido sociólogo Hans Freyer[19]: “O Estado requer, para
poder existir efetivamente entre outros Estados, (..) uma zona de conquista
à sua volta (...) Para poder existir, deve conquistar”. É difícil de imaginar
uma negação mais franca do direito à existência dos pequenos Estados.
Freyer é um desses adoradores da guerra como atividade primordial do
Estado, cujo espírito se resume naquela máxima que todos infelizmente já
ouviram: “A política é a continuação da guerra por outros meios.” O
Estado deve, “durante a trégua a que damos o nome de paz”, ter sempre
em mente o regresso à normalidade das coisas, ou seja, à guerra [20].

Mil e quinhentos anos antes disso, Santo Agostinho dedicou alguns


capítulos de sua grandiosa obra, A cidade de Deus, a um argumento
relativamente simples: o de que toda luta, mesmo a das bestas selvagens
ou a do mítico bandoleiro Caco, teria por meta o restabelecimento de um
estado de equilíbrio e harmonia, que ele chamava de paz. Dar as costas a
essa simples verdade — a de que os homens desejam de algum modo o
regresso à harmonia do cosmo, não a perpetuação da desarmonia — e
saudar a guerra como estado de normalidade é um privilégio da sabedoria
do século XX.

“A história da humanidade na época das grandes civilizações é a


história do poder político. A forma dessa história é a guerra.
Também a paz está presente nela, mas como a continuação da guerra
por outros meios (...)”[21]

“O homem é um predador (...) Ao chamar o homem de animal


predador, a quem ofendo, o homem ou o animal? Ora, os grandes
predadores são criaturas das mais nobres, sem a hipocrisia da moral
humana, baseada na fraqueza”.[22]

Estas últimas palavras, proferidas por Spengler e mais amplamente


difundidas que as de Schmitt ou Freyer, não têm um quê de século XIX?
Como que um desencanto romântico sombrio e embolorado? E seria
mesmo correto chamar de predatória essa belicosidade primordial? Existe
algum predador que lute só por lutar? Ou antes não é sempre, como
apontou Santo Agostinho, por almejar aquela pax, aquele repouso da
existência que, segundo ele, se estendia como princípio da vida cósmica
desde as coisas inanimadas até os céus?

Doutrinas especiosas, das que passam por realismo porque hábeis em


se livrar de princípios morais embaraçosos, podem-nos seduzir durante a
puberdade. Isso seria normal. Mas, hoje em dia, cada vez mais gente
parece disposta a carregar consigo, vida afora, as ideias da sua
adolescência, e assim fica impossível desfazer o emaranhado que confunde
afeto e entendimento na existência moderna. Essa confusão é base da
filosofia da vida.

A exaltação da existência acima do conhecimento traz ainda outra


consequência digna de nota: excluído o primado do conhecimento,
também as normas do juízo — e, com essas, as da boa conduta — devem
ser postas de lado, uma vez que todo juízo moral é, em fim de contas,
também um ato de conhecimento. Os escritores anteriormente
mencionados estão plenamente de acordo com essa consequência. “Não
fazemos juízo algum a respeito da cultura”, dizem eles, “apenas
constatamos”. Todavia, quando o que está em jogo são relações e
comportamentos humanos, constatar não é o bastante — avaliar é preciso e
mesmo inevitável. Carl Schmitt, no volume citado, dedica algumas páginas
memoráveis ao conceito do mal. Tende a admitir algo como um pecado
original, quando escreve que “em todas as verdadeiras teorias políticas há
o pressuposto de que o homem é ‘mau’”[23]. E o que entende por isso?
Vejamos: “‘mau’, i.e., um ser sob nenhum aspecto fácil de lidar, mas
sempre ‘perigoso’ e ‘dinâmico’”[24]. O qual, deduz-se, teria como que o
direito de exercer sua maldade, em vez de a reprimir. É uma definição do
mal totalmente laica e, portanto, totalmente vazia, a que vemos rodopiar a
esmo no círculo vicioso da tese do autor.

Mas com que propósito afinal os adeptos da filosofia da vida querem


carregá-la de termos cristãos? Se estes significassem algo para eles, já há
muito tempo teriam percebido que a doutrina de uma vida política
autônoma baseada na oposição entre amigo e inimigo é um pecado contra
o espírito, e indo muito além da esfera da animalidade ingênua, abraça um
satanismo que eleva o mal a diretriz e farol da humanidade.

13. N. T.: Da Cidade de Deus, livro I, cap. XXXV. voltar

14. Embora não seja o meu objetivo polemizar nesta revisão, não posso
deixar de dizer que não compreendo como o Dr. M. ter Braak, em sua
resenha do Vaderland de 27 de outubro de 1935, pôde chamar esta
passagem de “carregada de retórica”. voltar

15. C. Schmitt. Der Begriff des Politischen ("O conceito do político"), 3ª


edição, Hanseatische Verlagsanstalt, Hamburgo, 1933. A primeira edição é
de 1927. voltar

16. Op. Cit., Págs. 10, 11. voltar

17. Pág. 8, op. cit. voltar


18. Pág. 28. – A expressão da fórmula de Schmitt poderia parecer, no que
concerne à missão da ciência em geral, estar de acordo com os
pressupostos da “filosofia da vida”. Um certo W. Behne exige que “a
ciência avalie os seus resultados politicamente, i.e. de acordo com a
relação amigo-inimigo, e tendo em vista a existência autêntica do nosso
povo.” Vergangenheit und Gegenwart (“Passado e Presente”), 24, 1934,
págs. 66-70. voltar

19.Hans Freyer, Der Staat (“Do Estado”). Leipzig, Rechfelden, 1925, pág.
146. voltar

20. ibid. pág. 142. voltar

21. Spengler, Oswald. Jahre der Entscheidung (“Anos decisivos”), pág.


24. voltar

22. Ibid. pág. 14. Ver também Der Mensch und die Technik (“O homem e
a Técnica”), cap. 14 e seguintes. voltar

23. Referindo-se a Maquiavel e a Hobbes. voltar

24. Loc. cit., págs. 43, 45, 46. voltar


XIII. O DECLÍNIO DAS NORMAS
MORAIS

Ao pensarmos nas consequências de uma doutrina que subordina o


ideal do conhecimento às necessidades de uma existência que, em última
instância, não pode ser conhecida, topamos com a questão dos
fundamentos morais da sociedade. Após a debilitação dos parâmetros
críticos e da faculdade crítica, há razões para falarmos em decadência
moral? Em caso positivo, como se manifesta esse fenômeno?

É preciso, antes de tudo, distinguirmos entre moral e moralidade, teoria


e prática ao longo do tempo e em dada sociedade. Os moralistas desde
sempre lamentaram o grave declínio moral da própria geração, e assim
procederam sem dados estatísticos comparativos, dos quais nunca ouviram
falar. Simplesmente notavam que a maior parte dos homens coevos eram
maus, o que os dispunha a alimentarem ilusão de que o passado tinha sido
melhor. Talvez sim, talvez não. Nosso tempo, por outro lado, já dispõe de
alguns dados comparativos elementares, mas estes não remontam ao
passado mais remoto. Seu alcance é limitado, seu significado é duvidoso,
seu valor probativo é escasso. Quanto aos fatos mais visíveis de ordem
pública, não parece haver razões para considerarmos o nosso tempo
moralmente pior que quaisquer anteriores. O que não quer dizer que a
moralidade do indivíduo se tenha aprimorado, mas tão somente que a
ordem pública sabe limitar com mais eficiência do que antes certas
manifestações de comportamento imoral por parte do povo, sobretudo
condutas arraigadas em ambientes e circunstâncias sociais insatisfatórias, a
exemplo do alcoolismo, da prostituição e do abandono de crianças.

Inacessível, porém, às estatísticas é a questão sobre o ser humano


médio de hoje ser mais “nobre” do que antes, ou o oposto. Isso nada tem a
ver com o número de condenações por roubo, perjúrio, fraude ou
estelionato, mas com as inúmeras nuanças de sinceridade e lealdade que
escapam ao juiz, ao inspetor do fisco e mesmo ao censor dos costumes.

O mesmo vale, e ainda em maior medida, para os fenômenos relativos


à ética sexual. A mera reprovação, seja de caráter religioso ou social, do
número crescente de divórcios, do uso de contracepção artificial, do
excesso de liberdade no contato entre jovens de ambos os sexos, não nos
conduzirá ao nervo da questão. A ética sexual despegou-se do vínculo com
as normas religiosas muito mais radicalmente do que em outras esferas,
como as da verdade e da honradez. Mas nem por isso deixou de exigir, tal
como o dever para com a verdade, o reconhecimento de um critério
arraigado na consciência individual. Sem a consciência pessoal, em cada
ser humano, de que é preciso resistir a um vício radical chamado “luxúria”,
a sociedade inelutavelmente precipita-se na degradação sexual, cuja
consequência última é a própria aniquilação.

Ao fim e ao cabo, não há razões bastantes para se falar em um nível


moral inferior ao de períodos anteriores na sociedade ocidental. O que foi,
entretanto, consideravelmente afetado foram as normas da moralidade em
geral, a própria teoria moral. Tudo aqui leva à conclusão de que existe uma
crise ainda mais perigosa que a crise intelectual. Se de um lado, ao que
parece, o homem médio se comporta nem melhor nem pior que os seus
antepassados, percebe-se, no entanto, que, para todos os que não se sentem
ligados a uma norma moral pública, prescrita pela religião, a base da
convicção e dos princípios de suas obrigações morais está minada. A plena
validade do sistema de normas morais cristão para muitos já prescreveu.
Mas foi-se embora, junto com a perda do fundamento teórico, toda e
qualquer noção de obrigatoriedade? Não, aparentemente. Quer por inércia
ou por algum arraigamento mais profundo na alma, a moral cristã, na
forma algo diluída em que a sociedade sempre a acolheu, segue
dominando os parâmetros públicos e privados da moralidade prática. A lei,
o trato social, os negócios partem ainda do pressuposto de que uma
maioria, tida como normal, levará em consideração as normas morais, e o
indivíduo por elas sente-se obrigado, sem que lhe ocorra perguntar-se se
essa obrigação repousa sobre a fé, a filosofia, o interesse social ou outro
fundamento qualquer. O que procura fazer é comportar-se com “decência”
perante os outros e perante si mesmo. Os motivos por que o faz não
ocupam seus pensamentos.

A menos que a isso o induza sua formação intelectual. Nesse caso, ao


querer investigar o fundamento das normas morais, corre grande risco de
topar com a recomendação para que abandone sua moral, ao que parece,
irrefletidamente aceita, de uma vez por todas. De três lados o sistema
moral vem sofrendo duríssimos golpes: do imoralismo filosófico, de
determinadas teorias de caráter científico e de doutrinas estético-
sentimentais.
O imoralismo filosófico naturalmente tem influência direta apenas em
círculos restritos, mas, por isso mesmo, uma ampla influência por via
indireta. Sugestionáveis como são os homens, ao inteirarem-se de que há
por aí filósofos que negam um fundamento à moral, não poucos deles ato
contínuo concluirão: sendo assim, então a moral não serve para nada.

Mais radical que o imoralismo filosófico é o efeito do relativismo


moral implícito tanto no paradigma do materialismo histórico como no
arcabouço conceitual da psicanálise, estabelecidos respectivamente por
Karl Marx e Sigmund Freud.

Na doutrina marxista, o único lugar que resta para todo o domínio da


convicção e do dever morais é dentro de uma superestrutura espiritual
erguida acima e a partir da estrutura econômica de um dado período e que,
sendo motivada por esta última, com ela está destinada a mudar ou
desaparecer. O ideal moral fica assim em segundo plano, atrás do ideal
social, e torna-se um valor relativo no sentido mais literal da palavra.
Mesmo os princípios superiores que o marxismo adota, como o sentimento
de camaradagem e de lealdade à causa do proletariado, são afinal
motivados por um interesse: o interesse de classe. A impressão que se tem
ao ler uma cartilha de moral dirigida à juventude soviética é que enaltece o
valor da lealdade, no âmbito do interesse classista, nos mesmos termos em
que defenderia a conveniência de ter as unhas bem cuidadas. Um juízo
moral, tal como o entenderiam cristãos, maometanos, budistas, platonistas,
spinozistas ou kantianos, está fora de questão. Por fim, é evidente que o
efeito prático de tal doutrina sobre a massa se dará por meio de uma
variante grosseira e mal digerida.

Sedutor graças ao seu aparato mitológico, e à sensação lisonjeira de ver


tudo explicado, o freudismo vem causando, entre as gerações que
cresceram desde o início do século, o desaparecimento de quantidades
inauditas de consciência moral, absorvidas por um conceito fácil de
entender: o de sublimação. Apesar de ceder algum espaço à autonomia do
espírito, o freudismo é com efeito ainda mais anticristão do que a ética
marxista, uma vez que, ao considerar as pulsões infantis como a base de
toda a vida anímica e intelectual, coloca a virtude, para falarmos em
termos cristãos, abaixo do pecado, e faz com que as funções superiores do
conhecimento derivem em última instância da carnalidade. Mas que
importa afinal a filosofia cristã com seus termos obsoletos, se agora temos
uma libido, bem como outros tantos conceitos flexíveis para usarmos ad
libitum?

Reitero que não pretendo aqui julgar os méritos da psicanálise


enquanto hipótese de trabalho ou princípio terapêutico. Mas o fato é que o
freudismo, cujo efeito dissolvente sobre a inteligência crítica já
assinalamos, contribuiu, ademais, para o desarraigamento de uma ética
outrora fundada na consciência e em convicções claras e compreensíveis.

Atendo-nos estritamente à ordem temporal dos fatores que minoraram


o sistema moral cristão, o fator propriamente estético, cujos efeitos datam
já do século XVIII, deve preceder o filosófico e o científico. Ao mesmo
tempo em que o afrouxamento da fé vinha afetando a base das convicções
morais, principiava um processo de dissolução desencadeado por reagentes
estético-sentimentais. A literatura descobria a escassa verossimilhança da
representação usual da virtude e do heroísmo. Ao mesmo tempo, com a
nova veneração da virtude, agora posta sobre fundamentos naturais e
burgueses, surgiu a necessidade de instrumentos de análise mais precisos.
A ideia de que as relações sociais seriam culpadas pela criminalidade e o
vício já começava a grassar. É o período em que a literatura passa a
absolver a donzela seduzida e a infanticida. E, conforme o instinto
romântico vai ganhando terreno, vem à tona, ao lado da veneração
romântica da virtude, um desprezo romântico da mesma virtude. Virtude e
decoro, por tanto tempo apreciados, estavam obsoletos; eram coisa de se
envergonhar. O romance picaresco, embora livre de qualquer programa ou
engajamento, já havia preparado o terreno nesse aspecto, de modo que,
com a lógica inerente ao desenvolvimento de um gênero literário, o
interesse se foi deslocando da virtude não premiada para o vício impune.
Assim, ao longo de todo o séc. XIX, sob a crescente influência de outros
elementos contrários à moral, a literatura renuncia ao ponto de vista ético.
A abolição da censura permite-lhe agora permitir-se tudo. Um gênero
literário necessita, para atrair a atenção do público, superar-se cada vez
mais, até o ponto em que se esgota. O realismo assim identifica a sua
tarefa progressivamente com a revelação de detalhes, primeiro da natureza
humana, mais tarde da perversão dessa natureza. Não que com isso tenha
assumido a função da literatura obscena, que desde sempre circulara em
notório segredo: foi, ao contrário, à luz do dia e com voz de autoridade que
incutiu num público amplo e desprevenido o hábito de tolerar expressões
impactantes de licenciosidade e imoralismo, uma vez que tinham
aprendido a subentender que se tratava de arte.
Pode-se questionar até que ponto a emancipação literária de toda moral
traz danos diretos aos costumes. Muitos que já alguma vez se espantaram
com o que a juventude atual de ambos os sexos anda lendo deverão,
todavia, ter constatado também que o esvaziamento premeditado de todo
princípio moral e o flerte com o crime, com que a literatura por vezes
brinda as novas gerações, não as tem levado a seguir sem mais o modelo
literário. Mesmo certa afetação de imoralismo, algo mais compreensível
em termos de influência direta, anda hoje em dia um pouco fora de moda.

Caberia aqui entrarmos em considerações sobre o cinema. Atribuem-


se-lhe diversos males: o estímulo de instintos malsãos, a incitação ao
delito, a degeneração do gosto, o fomento irresponsável da busca do
prazer. A isto poder-se-ia responder que o cinema, muito mais que a
literatura, é uma forma de arte em que estão ainda presentes as boas velhas
normas da moral popular. O cinema é um fator de preservação da moral.
Demanda, se nem sempre a virtude triunfante, pelo menos o lamento da
virtude ultrajada. O patife não é aceito senão de maneira atenuada pelo
cômico ou pelo sentimentalismo do sacrifício em nome do amor. Os heróis
são objetos de simpatia comovida e abençoados com um final feliz,
coroamento indispensável a todo verdadeiro romantismo. Em poucas
palavras, o cinema cultiva uma sólida moral popular, imune à dúvida
filosófica ou de outra espécie.

Talvez alguém aqui diga: o cinema assim procede porque estão em


jogo os seus interesses comerciais. Mas esses interesses comerciais são
determinados pela demanda do público, muito mais que pelos riscos de
censura. Pode-se assim concluir que o código ético do cinema ainda
responde às expectativas da consciência moral popular. Isto é importante,
pois mostra que todo o combate às ideias morais ainda não foi capaz de
mudar radicalmente o sentimento moral do público. Veremos em breve até
que ponto isso se mantém.

Assim, a nova vontade de glorificar a existência e a vida, acima do


conhecimento e da crítica, ocorre na esteira de uma completa derrocada do
espírito. Tal vontade, desdenhosa de qualquer diretriz intelectual, não
poderá senão desdenhar uma ética que se sabe dependente da razão e do
conhecimento. É de máxima importância observarmos atentamente o que
motiva essa vontade e em que direção ela segue. Mas que haveria aí para
lhe dar uma direção, se já não lhe restam nem uma crença transcendental
voltada à salvação supraterrena e além desta vida, nem um pensamento em
busca de verdade, nem tampouco uma moral comum humana dentro de um
sistema que inclua valores como a justiça e a misericórdia? A resposta é,
como sempre: a vida em si, a vida cega e opaca, seria a um tempo o seu
objetivo e a sua diretriz. O abandono de todos os fundamentos espirituais,
acarretado pela nova perspectiva, vai além do que os seus partidários
haviam imaginado.

A debilitação geral do princípio moral talvez mostre o seu efeito direto


sobre a comunidade antes nos discursos, na cumplicidade, na justificativa e
no elogio do que em uma mudança concreta das normas da conduta
individual. O acirramento da violência, da mentira e da crueldade, mais
frequentes no mundo de agora e refletido em ações individuais, advém
sobretudo do embrutecimento e da exasperação decorrentes da Grande
Guerra e a sua esteira de ódios e privações. Daí que o entorpecimento do
juízo moral possa ser visto mais nitidamente em países que foram
poupados das mais graves convulsões. Ele é particularmente notável na
valoração das ações políticas, e em particular no modo como difere da
valoração das ações econômicas. A respeito das falhas morais de ordem
econômica, com prejuízo da boa fé nos negócios, da propriedade etc., a
opinião pública é a mesma dantes: uma reprovação sincera com cá e lá um
sorriso tolerante. A tolerância aumenta, chegando mesmo a transformar-se
em admiração, proporcionalmente à escala do delito. O escroque
internacional é objeto de mais simpatia que um simples contador
desonesto. Mistura-se ao julgamento sobre os grandes escândalos
financeiros certa deferência diante do talento capaz de burlar um sistema
tão intrincado e majestoso. De um modo geral, contudo, pode-se dizer que
o julgamento ético dos malfeitos na economia tem se mantido constante.

Bem diferente é o que ocorre quando o sujeito em questão faz parte ou


age em nome do poder público, quer investido de uma autoridade suprema
ou no exercício de uma competência derivada. Em se tratando de ações
feitas pelo Estado ou em seu nome, o julgamento moral por parte do
grande público é cada vez mais deficiente. Exceto, naturalmente, no caso
em que se trata de um Estado estrangeiro ou um partido dentro do próprio
Estado considerados de antemão como inimigos. Contudo a tendência a
aprovar e admirar as grandes ações políticas não se limita ao próprio
Estado: a veneração do sucesso, que já na esfera econômica tende a
mitigar a condenação de condutas abusivas, na esfera política pode fazer
desaparecer praticamente toda a capacidade de indignação. E de tal modo
que não poucos se dispõem a apoiar um movimento político nascido de
doutrinas tidas por abjetas, contanto que se mostre um meio eficaz de
alcançarem determinados objetivos. Sem condições de julgar
adequadamente a natureza dos objetivos, dos esforços e meios
empregados, nem o grau de efetiva realização do ideal, o espectador
contenta-se com os sinais externos de êxito, como os que se oferecem ao
turista e ao leitor de jornais. É dessa forma que, a respeito de um mesmo
sistema político, o cidadão pode passar do desprezo ao temor, do temor ao
respeito, do respeito à aceitação e mesmo à admiração incondicional.
Injustiça, crueldade, violação da consciência, opressão, mentira,
deslealdade, fraude, desmandos? Mas agora as ruas estão limpas e os trens
chegam no horário!

Não é por acaso que parte da opinião pública pretende encontrar uma
pronta justificação para a injustiça e a violência, sobretudo no aumento da
ordem e da disciplina externas. Ordem e disciplina são, afinal, os sinais
mais visíveis de um organismo político em bom funcionamento. Aqui,
mais uma vez, o que está em jogo é aquela tendência enganosa a inverter
um juízo válido. O organismo político saudável caracteriza-se pela ordem
e a disciplina. Inversão: a ordem e a disciplina comprovam a saúde de um
organismo político. Como se o sono tranquilo por si só pudesse comprovar
a paz de consciência.
XIV. O ESTADO LOBO DO ESTADO?

“Porém o Estado não pode ser equiparado a um criminoso”, contesta


com veemência uma opinião em voga, proh dolor!, não apenas entre os
entusiastas do despotismo moderno. “Não se pode”, prosseguem,
“submeter o Estado às normas morais da sociedade humana. Qualquer
tentativa de submetê-lo ao veredito de um juízo moral esbarra na
autonomia, no caráter absoluto do Estado, que está além de toda moral”.
Também acima de toda moral?, caberia perguntar. Talvez o partidário da
teoria do Estado amoral se abstenha de o dizer às claras, recorrendo a uma
formulação como a que vimos mais acima: a ideia de uma ordem política
totalmente autônoma, dominada apenas pela oposição amigo-inimigo, ou
seja, por uma relação limitada à ideia de perigo e dano, bem como do
esforço para os eliminar, uma vez que, como já mostrámos, o significado
de amigo, nessa oposição, se reduz ao de não-perigoso. O Estado, dessa
maneira, só poderia ser julgado de acordo com o seu desempenho como
detentor do poder.

Os termos aí usados são recentes, mas a doutrina do Estado amoral tem


atrás de si uma longa história que remonta, com maior ou menor
pertinência, a pensadores como Maquiavel, Hobbes, Fichte e Hegel.
Parece, ademais, ser corroborada pela história mesma, pois nesta as
relações e disputas de entes políticos expressam quase sempre
expansionismo, cobiça, interesse e medo. A teoria do absolutismo deu a
isto o nome de razão de Estado.

Outrora o hiato entre prática política e pensamento cristão podia ser


ainda facilmente transposto através da ilusão de que as ações do Estado,
por mais gananciosas e violentas que parecessem, visariam, em última
instância, a salvaguarda da fé, a glória da Igreja, o direito divino dos reis
ou a justiça cristã. A retórica do velho pensamento político aceitava
ingenuamente e de bom grado tais ideias. Acima do idealismo sincero, na
forma de lealdade aos príncipes e patriotismo, do senso do dever e da
hipocrisia diplomática, pairava a convicção de que a pátria encarnava a
virtude e o direito. E mesmo quem não partilhasse de tamanho otimismo
ainda podia achar uma saída compatível com a moralidade do Estado
enquanto tal: considerar a tragédia milenar da violência e da injustiça
como obra pecaminosa de um Estado infiel à sua sagrada missão. Foi
também esta concepção que manteve o ideal de que impérios e governos
estavam obrigados a seguir as normas da religião e da justiça. O Estado
não podia divorciar-se da moral.

À medida que a reflexão sobre o Estado se deslocava dos princípios


gerais para a percepção da realidade, adquirindo resistência contra as
ilusões mais fortes, desenvolvia-se no direito internacional, sobre as bases
da antiga teoria do Estado, da ética cristã, das regras de cavalaria e do
direito, um novo sistema que, à margem de qualquer credo, via os Estados
como uma comunidade com obrigações recíprocas que implicavam as
mesmas regras de respeito e conduta necessárias à convivência
humana. Foi Hugo Grócio quem deu a esse sistema a sua forma clássica
que, como fundamento de uma ordem internacional mais sã, inspirou
recentemente um Van Vollenhoven, até a interrupção precoce de seu
trabalho.

Mas tanto o fundamento cristão quanto o do direito internacional


visando uma lei moral e uma deontologia do Estado são expressamente
rejeitados pelos partidários do amoralismo político. E isso não só entre os
apoiadores de movimentos fascistas. A mesma opinião é encontradiça
também entre os historiadores. Aqui caberia estender-me, mais do que fiz
em ocasião anterior [25], sobre algumas afirmações de Gerhard Ritter que,
vindas de um eminente e equilibrado historiador, não deixam espaço para
dúvidas. A Alemanha, quando da Reforma, diz o autor, estava “ainda
muito longe de contar com um conceito claro acerca da indispensável
autonomia da vida política perante a Igreja e a moral religiosa tradicional”.
Ao Estado principesco alemão faltava ainda “a consciência de uma
autonomia moral de seus propósitos, puramente seculares”. E, no final do
artigo:

Que toda aspiração ao poder tenha de se justificar ante o governo


divino do mundo, que ela encontre o seu limite intransponível na
ideia da justiça absoluta, da eternidade, do direito estabelecido por
Deus, e que o conjunto dos povos europeus deva, para lá de toda
contradição entre os interesses nacionais desses povos, formar uma
comunidade de civilização cristã — todas estas são, enfim,
concepções autenticamente cristãs e medievais. Se essas vetustas
tradições não estão ainda de todo extintas na política inglesa de hoje,
se nesta sobrevivem numa forma secularizada, ao passo que as
grandes nações continentais soem aceitar, sem muitas inibições
morais, o caráter puramente biológico de toda busca mundana pelo
poder, com sua árdua disputa de interesses, isto ainda é
consequência das disputas religiosas, que tão profundamente
marcaram a alma dos povos europeus e tão profundamente os
distinguiram uns dos outros. [26]

Com igual franqueza vemos essa opinião exposta pelo sociólogo de


esquerda Karl Mannheim. Ele discorre, referindo-se ao livro Die Idee der
Staatsraison (“A Ideia da Razão de Estado”), de Friedrich Meinecke, sobre
a “tensão moral”, que surgiu entre muitos pensadores, “ao descobrirem
que, para as relações exteriores dos Estados, a moral cívica e cristã não
tinha validade”. Segundo Mannheim, esse processo de descobrimento deu-
se da seguinte maneira: “os estamentos dominantes aos poucos tiveram de
reconhecer que, na luta quer pela obtenção ou pela conservação do
domínio, todos os meios, inclusive os considerados imorais,
eram permitidos”[27]. Com o passar do tempo e a democratização
progressiva da sociedade, todas as camadas da população, conforme
anteriormente já dissemos[28], acabam por familiarizar-se com essa
“moral política”:

Enquanto, até recentemente, a moral do roubo só vinha sendo


considerada válida em situações-limite e envolvendo grupos
dominantes, a partir da democratização da sociedade (contrariando
as promessas que encerrava), esse elemento de violência não só não
diminuiu, como também se converteu em como que uma sabedoria
coletiva.

Mannheim vê o enorme perigo de uma “absorção de todos os


estamentos na política”. “Em se demonstrando às grandes massas que o
roubo constitui a base de toda a formação dos Estados, bem como das
relações exteriores entre Estados, e que, além disso, no plano interior, há
grupos inteiros que, por meio do roubo e da pilhagem, podem ser privados
do êxito em seu trabalho e de sua função social...”, então será o fim de
toda a ética do trabalho e de sua ação protetora sobre a sociedade[29].

Mannheim expõe aqui uma consequência preocupante da teoria da


imoralidade do Estado, a saber, que esta não permanece para sempre um
monopólio do Estado, senão que grupos restritos, entre públicos e
clandestinos, cedo ou tarde dela se apropriam e a usam em seu proveito.
Ora, se da ciência, que é imparcial, nos chega um parecer tão
desolador, não há que se admirar quando a prática política se pronuncia em
termos ainda mais impactantes. Na inauguração solene de uma cátedra de
direito alemão, o ministro da justiça, segundo os jornais, teria dito que “é
um equívoco crer que se possa fazer política recorrendo a uma noção de
justiça idealizada. É preciso pôr fim à fantasia risível de que a justiça seria
algo diverso da dura necessidade de assegurar o poder do Estado. O
mundo pertence aos heroicos, não aos decadentes”.

O sentido é claro: Fora, cambada de decadentes, que desde Platão vêm


espalhando pelo mundo vosso palavrório oco!

De acordo com essa maneira de pensar, o Estado está autorizado a


tudo. Pode, conforme entenda o que interessa ao seu poder e por decisão
própria, ser desonesto. Não há mentira, não há fraude ou meio cruel, contra
estrangeiros ou a sua própria gente, que considere errado, contanto que lhe
seja proveitoso. Pode combater o inimigo por todos os meios que sirvam
ao objetivo, inclusive a demoníaca guerra bacteriológica. A propósito: na
minha juventude, podia-se ler nos livros de geografia que apenas os povos
mais atrasados faziam uso de flechas envenenadas, coisa que normalmente
desaparece em civilizações mais avançadas. Não saberia dizer se os
manuais escolares ainda trazem essa informação. Em caso positivo, seria
bom emendarmos... ou os livros ou a nós mesmos.

Para o Estado, portanto, não existe a possibilidade de haver abuso ou


crime político quando a ação parte de si. Igual indulgência, pelo mesmo
critério, deve ser concedida ao inimigo. Também o Estado inimigo é
impermeável a julgamento ou condenação de ordem moral. Daqui,
precisamente, vem a vingança pela miséria dessas ideias acerca do Estado,
repletas como estão dos miasmas da cegueira e do egoísmo humanos. Pois
ocorre que, na prática, essa bela teoria do Estado que está fora da moral
serve unicamente ao próprio Estado. Com o agravamento das hostilidades,
aquele tom altivo de argumentação contundente logo desanda numa
gritaria histérica que, visando a injúria e a difamação deliberada do
inimigo, vasculha com mãos sôfregas o bom e velho arsenal da virtude e
do vício: o inimigo é mentiroso, é desonesto, é cruel, tem ardis diabólicos!
Mas não é o inimigo ele também um Estado?

Não haveria, dessa forma, nenhuma obrigação política para com os


estrangeiros. Tampouco haveria honradez política, uma vez que honra
significa fidelidade ao ideal adotado. Pois bem, onde não há obrigação
nem honra, não pode haver confiança. “O Estado é o lobo do Estado”, já é
possível dizer, parafraseando o antigo adágio, mas sem aquele tom de
lamento pessimista, senão como dogma e ideal político! Contudo, para o
desgosto dessa teoria, toda sociedade, mesmo de animais, se baseia na
confiança mútua entre seres a princípio capazes de aniquilar uns aos
outros. Uma sociedade, seja de homens ou de Estados, não é possível sem
haver confiança. Um Estado que traz o “não confiem em mim” escrito no
seu brasão, que é o que a teoria do Estado amoral com efeito defende, no
longo prazo, se o mundo seguir por esse caminho, será obrigado a tornar-
se absolutamente mais poderoso que todos os demais Estados juntos, caso
queira subsistir. Assim, a conclusão da autonomia nacional absoluta leva-
nos de volta à quimera do universalismo político!

Essa ideia da autonomia moral — ou deveria dizer imoral — do Estado


parece-me, dentre quantos perigos podem levar à ruína da civilização
ocidental, sem dúvida alguma o maior de todos, porque envolve o ente
máximo de poder, aquele capaz de fazer e desfazer mundos. Sua
consequência lógica e inevitável seria a destruição mútua ou o
esgotamento e o desatino generalizados das unidades mesmas sobre as
quais a civilização repousa: os Estados-Nações. Poderia também acarretar
a dissolução dessas unidades a partir de dentro, por causa da
inevitabilidade, já esboçada mais acima, de um grupo qualquer,
imaginando-se forte o bastante para triunfar pela violência, arrogar-se a
condição de Estado, na qual está implícita a dispensa de qualquer
obrigação para com outrem. Por conseguinte, no horizonte da prepotência
amoral do Estado, despontam as formas da anarquia e da revolução. A
pretensão de que o Estado obriga os habitantes à lealdade e à obediência
incondicionais limita-se não só pela consciência, mas também pelo
egoísmo da natureza humana.

Quem decidirá em última instância qual o interesse do Estado e de que


maneira deverá ser posto em prática será sempre um dos chamados líderes.
A lealdade que as pessoas lhes jurarem jamais ultrapassará a medida da
confiança que depositam na sua sabedoria. Em predominando a
divergência de opinião dentro da própria liderança, chegando a um grau de
desunião tal que dois grupos julguem necessário sair em defesa dos
respectivos pontos de vista, fatalmente o grupo mais forte e resoluto
dominará ou destruirá o segundo. Mais uma vez, portanto, vemos que os
golpes de Estado e as conspirações palacianas são a consequência lógica
do Estado absoluto.

Na medida em que a doutrina do Estado amoral exige a exclusão da


verdade, da lealdade e da justiça do conjunto dos princípios comuns à
humanidade, seria necessário aos seus adeptos renegar expressamente o
cristianismo. Não é, contudo, o que fazem, ao menos não de modo
unânime e definitivo. Dizem com Tartufo: “Il est avec le Ciel des
accommodements”[30], acordos este que às vezes querem impor ao Céu
por meios mais incisivos que a mera persuasão.

Trata-se de uma forma peculiar daquela já mencionada ambivalência


do pensamento moderno, ou, em termos mais chãos, de uma ambiciosa
tentativa de agradar a gregos e troianos. Anuncia-se uma concepção
política incompatível com o cristianismo ou com qualquer ética filosófica
apoiada em imperativos categóricos. Ao mesmo tempo quer-se manter a
Igreja e a doutrina, ainda que comprimidos no espartilho desse Estado
novo.

É um procedimento que difere com efeito do adotado em séculos


anteriores. Do século XVI ao XIX, o padrão moral das relações entre os
Estados nacionais, por via de regra, não foi superior ao do presente.
Mantinham, no entanto, em alta conta o seu caráter cristão, chegando a
invocá-lo como princípio basilar das suas ações. Tudo isso compreendia
sem dúvida uma parte considerável de hipocrisia, uma hipocrisia que, pelo
simples fato de não ser praticada no interior da consciência pessoal, mas
sim pelo discurso de um ente político, não deixava de ser vergonhosa. Em
todo caso, toda a prática política ligava-se a um ideal, e quando deste se
afastava de maneira inequívoca, a opinião pública não se abstinha de
condenar a injustiça nas ações do próprio Estado.

Ora, bem outra é a posição que o Estado amoral deseja para si, com
perfeita autonomia e independência ante toda e qualquer moralidade. E
porquanto admita a existência da Igreja e da fé como uma comunidade
com leis morais explícitas e obrigatórias, esta não deve estar em pé de
igualdade, mas subordinada à doutrina proclamada pelo Estado.

É inegável que somente os completamente irreligiosos e os pagãos de


camarim do Anel do Nibelungo seriam capazes de se adaptar a esse tipo de
ética manca.

Porém, pergunta o pensador realista, como imagina você o


estabelecimento de uma norma moral válida para toda a vida política do
Estado, de modo a ter alguma chance de ser praticada? Imagina mesmo
que, ao entrarem em cena complicações internacionais, os Estados virão a
comportar-se como bons moços? Na verdade, não: a história, a sociologia
e o conhecimento da natureza humana não autorizam pensar assim. Os
Estados continuarão a comportar-se em primeiro lugar e acima de tudo de
acordo com os seus interesses, ou o que julgarem sê-lo, e a comportar-se
de acordo com a moral internacional apenas um milímetro além do que o
interesse, no caso o receio de uma intervenção externa, prescrever. Mas
esse um milímetro é justamente aquela faixa de honradez e confiança
possíveis, e quanto a isso supera milhas e milhas de vontade de poder e
violência.

Os partidários do Estado amoral desconsideram, segundo me parece (e


eis aqui a resposta para a pergunta feita mais acima), essa característica do
pensamento moderno que nos permite ver as coisas em sua natureza
antinômica, todo juízo definitivo sendo temperado por um “todavia”. O
Estado é um ente que, dada a imperfeição das coisas humanas,
necessariamente se comportará de acordo com normas que não são as de
uma moralidade pública baseada na confiança, muito menos as da fé cristã.
Porém não poderá jamais perder completamente de vista a moralidade,
cristã ou social, sob pena de ser engolido por sua própria apostasia.

Como cantou a profetiza das Edda:

“Tempo de ventos, tempo de lobos.

Antes do mundo inteiro afundar,

nenhum dos homens o seu vizinho,

seu semelhante irá poupar.”

E nós querendo ser salvos!

25. Nederland’s Geestesmerk (“O Espírito Holandês”), segunda edição,


pág. 25. voltar

26. Die Ausprägung deutscher und westeuropäischer Geistesart im


Konfessionellen Zeitalter (“As mentalidades alemã e europeia no período
da confessionalização”), Historische Zeitschrift (“Revista Histórica”), 149,
1934, p. 240 (apresentação feita durante o Congresso Internacional de
História, em Varsóvia, agosto de 1933). voltar

27. Grifos meus. Atente-se para como aqui a norma moral é de antemão
descartada. voltar

28. No capítulo "Vida e luta". voltar

29. Mensch und Gesellschaft im Zeitalter des Umbaus (“Homem e


Sociedade na Era da Reconstrução”), 1935, págs. 50-52. voltar

30. N.T.: “Podem-se fazer acordos com o Céu”, verso de uma peça de
Molière. voltar
XV. HEROÍSMO

A mensagem de Nelson antes da batalha de Trafalgar não dizia:


“England expects that every man will be a hero”. Dizia: “England expects
that every man will do his duty”[31]. Em 1805 era o bastante. Deveria sê-
lo ainda hoje. Foi o bastante também para os que tombaram nas
Termópilas, cujo epitáfio, o mais belo jamais composto, não contém nada
além do imortal: “Ó estrangeiro, dize aos lacedemônios que nós aqui
jazemos, à sua ordem obedientes”.

Os partidos políticos hoje em atividade valem-se de todas as poderosas


ideias e nobres disposições de que Trafalgar e as Termópilas dão
testemunho: disciplina, dever, lealdade, obediência, sacrifício. Mas a
palavra obrigação não lhes é suficiente para tal apelo, e por isso hasteiam a
bandeira do heroísmo. “O princípio do fascismo é o heroísmo, o da
burguesia, o egoísmo”. Era o que se podia ler, na primavera de 1934, nos
cartazes eleitorais que na Itália recobriam os muros. Simples e eloquente
como uma equação algébrica. Um fato consumado e um dogma.

Os homens têm sempre necessitado certa visão de uma humanidade


superior, dotada de coragem e de força em grau mais elevado, como uma
espécie de arrimo e um solaz na dura batalha da vida e como inspiração
para ações grandiosas. Os mitos situaram a realização dessa grandeza na
esfera sobre-humana. Os heróis eram semideuses, como Hércules e Teseu.
Ainda durante o período mais glorioso da Grécia, o termo passou a referir-
se a homens comuns: os que tombaram pela pátria, os assassinos de
tiranos. O seu uso, todavia, restringia-se aos que já haviam deixado este
mundo. A essência da ideia de heroísmo era o culto dos mortos. O
conceito de herói aproximava-se do de beatificado. Só bem tarde, e em
sentido meramente retórico, é que passa a referir-se também aos vivos.

No pensamento cristão, a ideia de heroísmo teve que dar lugar à de


santidade. A concepção de vida da nobreza feudal fez com que o conceito
de ética cavalheiresca abrangesse todas as funções do heroico: os nobres a
serviço do dever cristão.

Com a Renascença ganhou força no pensamento europeu uma nova


ideia de homem superior. A ênfase agora é mais sobre qualidades
intelectuais e o comportamento mundano. Trata-se do virtuoso, ou uomo
singolare, para quem a coragem é uma virtude entre outras, o sacrifício
pessoal recua para o segundo plano e o mais importante passa a ser o
sucesso. O espanhol Baltasar Gracián, no século XVII, associa ao termo
héroe certa noção de energia pessoal que ainda espelha a Renascença e, ao
mesmo tempo, prenuncia Stendhal. Mas nesse mesmo século, o francês
héros já adquiria uma outra conotação. O teatro francês fixa os traços do
heroísmo na figura do herói trágico. Ao mesmo tempo, a política de Luís
XIV promove uma veneração do herói, de caráter nacionalista e militar, o
que inclui toda uma poesia à base de bronze e de tambores, e um gosto
marcado pela decoração pomposa e as inscrições grandiloquentes.

No século XVIII, porém, a figura do grande homem sofre um


deslocamento. Os heróis de Racine dão lugar aos de Voltaire,
esquemáticos, reduzidos, praticamente, a um artifício cênico. O
pensamento democrático ascendente enxerga os exemplares de seu ideal
nas velhas formas da virtude civil romana. O espírito da ilustração, da
ciência e do humanismo expressa-se no ideal do gênio, que confere ao
heroísmo novas notas, diferentes das que definiam o virtuoso na
Renascença. Atrevidas façanhas e proezas não coadunam com o conceito
de gênio. Mas o romantismo em ascensão descobre ainda uma outra
imagem de herói, que em breve ocuparia nos espíritos um posto mais alto
que o paradigma grego: era o herói celta e o germânico. O arcaico, o vago
e deserto, o sombrio dessas concepções tinha para o espírito, afeiçoado a
tudo quanto fosse primevo, um encanto sugestivo sem igual. É digno de
nota que o tom da fantasia heroica moderna tenha sido dado por essa obra
forjada, e apesar disso tão importante, que foram os poemas
do bardo Ossian.

O ideal heroico, desse modo, aos poucos foi-se dividindo nas espécies
teatral, histórico-política, filosófico-literária e poético-fantástica.

Ao longo do século XIX a figura do herói serviu só em muito escassa


medida como objeto de imitatio, ideal a ser emulado. O lema “sejam como
eles”, que o ideal cavalheiresco proclamara em alto e bom som, foi
deixando de fazer sentido à medida que a figura do herói passou a ser
determinada por historiadores recém-chegados de visitas ao passado
remoto. A imagem do herói germânico veio das mãos de professores que
tornavam acessíveis a história e a poesia antigas, mas sem que por isso
tomassem Siegfried ou Hagen como modelos a serem seguidos. O espírito
do século XIX, tal como o vimos manifestar-se no utilitarismo, nas
liberdades civil e econômica, na democracia e no liberalismo, era
pouquíssimo dado à aceitação de normas sobre-humanas. A despeito disso,
a ideia do heroísmo continuou a desenvolver-se, e dessa vez por influência
anglo-saxã.

Passada a tempestade do byronismo, coube a Emerson a palavra. O seu


paganismo significa, só muito parcialmente, uma reação à mentalidade da
época. Era civilizado, otimista e elegante aquele seu ideal, que tão bem se
harmonizava com os conceitos de progresso e humanitarismo. Mais ares
de rebeldia tinha Carlyle, embora a ênfase na ética e nos valores culturais
podasse de seu heroísmo as pontas da violência e da aspiração sem limites.
Sua hero-worship, no fundo, estava muito aquém da pregação fervorosa ou
da fundação de um novo culto. Na arte de viver dos anglo-saxões havia, na
trilha de Ruskin e Rossetti, lugar de sobra para o ideal heroico, mas a certa
distância das exigências da vida prática, sob a redoma da alta cultura.

Jacob Burckhardt, que viu e denunciou como ninguém as deficiências


do seu século, significativamente não fez uso dos termos “heroico” ou
“heroísmo” em sua concepção do homem do Renascimento. Trazendo uma
nova visão da grandeza humana, agregava traços mais passionais ao
conceito romântico de gênio. A admiração de Burckhardt pela
impetuosidade e a determinação autossuficiente dos rumos da própria vida
vai na direção contrária de todos os ideais da democracia e do liberalismo.
Ele, porém, nunca a recomendou a quem quer que fosse em termos de
moral ou programa político. Sua postura era o desdém altaneiro do
individualista solitário ante a sociedade de seu tempo. Burckhardt era, com
toda a sua veneração pelo enérgico, um pensador demasiado esteticista
para traçar um ideal moderno do heroísmo prático. Era também demasiado
crítico para endossar o elemento de mito e de culto, inseparavelmente
ligado ao conceito de heroísmo. Em suas Considerações sobre a história
universal, ao tratar da “grandeza histórica”, vale-se constantemente da
expressão “o grande indivíduo”, mas não da terminologia do heroísmo.

Em um ponto, não obstante, contribuiu para a acepção moderna


daquele conceito, ao conceder ao grande indivíduo, conforme a imagem da
Renascença por ele esboçada, um verdadeira “dispensa da lei moral”, sem
qualquer justificativa de ordem filosófica.

Nietzsche, que fora aluno de Burckhardt, desenvolveu seu pensamento


sobre a excelência humana a partir de linhas intelectuais muito diferentes
de qualquer coisa que a calma contemplação intelectual de seu mestre
jamais tivesse conhecido. Através da descrença completa no valor da
existência, chega Nietzsche à proclamação de seu ideal de heroísmo. E tal
que só pode ser achado num ponto em que o espírito já deixou tudo quanto
fosse ordem política e vida em sociedade para trás. Uma ideia de
visionário fantástico, algo para poetas e sábios, não para estadistas e
ministros.

Há um quê de trágico na maneira como a degeneração do ideal de


heroísmo adveio da filosofia nietzschiana, que se tornou uma moda por
volta de 1890. A ideia do poeta-filósofo, nascida do desespero, extraviou-
se pelas ruas antes de haver passado pelos salões do pensamento puro. O
tolo médio do fim de século falava no “Übermensch” (super-homem)
como se fosse o seu irmão mais velho. Essa intempestiva vulgarização do
pensamento de Nietzsche foi sem dúvida o início da corrente de opinião
que agora tem o heroísmo por lema e programa de ação.

Foi assim que o conceito de herói conheceu uma espantosa reviravolta,


que o privou do seu sentido profundo. O título honorífico de herói,
conquanto às vezes fosse atribuído retoricamente aos vivos, continuou, tal
como o de santo, essencialmente um apanágio dos mortos, como um
prêmio com que os vivos demonstravam sua gratidão. Em geral, o vivente
não saía de casa pensando em se tornar um herói, mas só em cumprir seu
dever.

Após a emergência das diversas formas de despotismo popular,


“heroico” virou palavra de ordem. Heroísmo é ponto programático e
pretende mesmo tornar-se uma nova moral, agora que tantos creem não
poder mais usar a antiga ou dela não precisar. Seria tolice descartar, sem
nenhum exame, o valor desse sentimento. É preciso averiguar sua
autenticidade e seu conteúdo.

O entusiasmo pelo heroísmo é o mais eloquente sinal de uma grande


virada rumo ao viver e sentir imediatos, em detrimento do conhecer e
compreender, com o que entramos no cerne mesmo da crise cultural.
Glorificação do agir pelo agir, embotamento do discernimento crítico pela
irritação contínua da vontade, ofuscamento da ideia por qualquer leda
ilusão: tudo isto está em jogo no novo culto do heroísmo. Embora sejam
objeções que, para o adepto sincero de um modo de viver antinoético,
correspondem a outras tantas justificativas do heroísmo.

O valor positivo desta postura heroica, cultivada sistematicamente pela


autoridade no interesse do Estado, não pode ser negado. Na medida em
que heroísmo significa uma elevada consciência pessoal — a de ter sido
convocado para, dedicando-se com todas as forças, resvalando o sacrifício,
colaborar com a realização de uma tarefa comum —, temos aí uma postura
que sempre foi e há de ser frutuosa. Neste sentido, o conteúdo poético
próprio do conceito de heroísmo é sem dúvida de grande valor, pois
comunica ao agente individual aquela firmeza e ardor necessários à
realização dos grandes feitos.

Fora de questão está que a técnica moderna, ao mesmo tempo em que


tornou a vida e os deslocamentos muito mais seguros, aumentou
agudamente o nível da ousadia em geral e na vida cotidiana. Imaginem
como Horácio, que cantou a navegação como uma temeridade, não reagiria
diante do avião e do submarino. Cresceu, com tantas facilidades, também a
prontidão para se lançar de peito aberto a não desprezíveis perigos. Há
decerto uma ligação entre o surgimento da aviação e a voga do ideal
heroico. Lá onde dele tão pouco se fala, este ideal é plenamente realizado:
na lida cotidiana de aviadores e marujos.

O heroísmo vai além do limite. De tempos em tempos as coisas neste


mundo passam do limite. Topamos aqui novamente aquele extremo do
pensamento, onde o juízo depara com a antinomia. Ninguém desejaria que
as coisas em todos os aspectos seguissem se arrastando sempre no mesmo
ponto em que já as leis imperfeitas, já os costumes ainda mais imperfeitos
as deixaram. Sem uma intervenção heroica nem o Concílio de Niceia, nem
a derrocada dos Merovíngios, nem a conquista e a fundação da Inglaterra,
nem a Reforma, nem os Países Baixos, nem a América independente
teriam visto a luz. O que importa de fato é quem intervém, como e em
nome de quê. Falando em termos medicinais, é bem possível que o nosso
tempo esteja precisando de remédios heroicos, contanto que aplicados pelo
médico competente e na dose certa.

Essas metáforas chamam também a atenção para outro aspecto do


heroísmo. Se o nosso tempo precisa desse tônico, é porque debilitado está.
A prédica toda em torno do heroísmo é em si mesma um sintoma de crise.
Significa que os conceitos de missão e cumprimento do dever já não têm a
força necessária para ativar as energias da comunidade. Estas têm de ser
ampliadas, como por um alto-falante. Têm de ser insufladas, quiçá
transbordadas.

Por quem, para quê e como? O valor do heroísmo político é


determinado pela pureza do fim e a prática dos seus comportamentos. Se
as Termópilas e os Nibelungos valem como exemplos, então a direção
certa é aquela oposta a tudo quanto venha a ser: agitação histérica,
grandiloquência, exaltação bárbara, adestramento, desfiles e vaidade. É
preciso não nos esquecermos de que a mais pura formulação do heroísmo,
o ideal da cavalaria na Idade Média, tinha sua força justamente na restrição
dos meios permitidos e no rígido código de honra formal.

Na era da publicidade, não há restrição de meios. A publicidade


sobrecarrega a imaginação de todos com o máximo de sugestão que esta é
capaz de suportar. Impõe os seus lemas ao público como verdades
dogmáticas, carregadas quanto possível de sentimentos de aversão ou
desejo. Ora, quem lida com um lema, ou mesmo um termo político —
racismo, bolchevismo ou o que for —, não precisa de longas
argumentações. No jornalismo político atual, a função de cada texto é
saciar leitores ávidos de pretextos, é assegurar que não falte pano a quem
quer pôr as mangas de fora.

Hoje em dia, esse heroísmo de uniforme e braço erguido muitas vezes


significa na prática pouco mais que um reforço do sentimento de “nós”.
Certo sujeito, o “nós e os nossos”, que atende também pelo nome de
partido, confiscou o heroísmo e o está usando para revestir de prestígio o
que bem entender. Esse fortalecimento do sentimento de “nós” é, do ponto
de vista sociológico, algo de grande interesse. Encontramo-lo em todos os
tempos e entre todos os povos, na forma de ritos, danças, gritos, cantos,
códigos etc. Se a nossa época tiver desistido de compreender e explicar
racionalmente suas próprias atitudes, então seria perfeitamente natural que
nos voltássemos a métodos primitivos para fomentar o sentimento de
pertencer ao grupo.

Há, no entanto, ainda um risco permanente ligado às consequências do


ideário antinoético. O primado da vida acima do entendimento faz
necessário que, com as normas do intelecto, também as da moral sejam
descartadas. Se a autoridade prega a violência, então a palavra passa a ser
dos violentos. Negamos a nós mesmos o direito de os inibir. E eles achar-
se-ão justificados, por esse mesmo princípio, até nos extremos da crueza e
da desumanidade. Para executar a tarefa heroica acorrerão de bom grado
justamente os elementos que encontram na violência a satisfação de seus
instintos animais ou patológicos. Uma autoridade estritamente militar
talvez consiga detê-los por um tempo. Mas, no fanatismo de um
movimento popular, serão antes os escudeiros da carnificina.

31. N.T.: Respectivamente: “A Inglaterra espera que cada homem seja um


herói” e “a Inglaterra espera que cada homem cumpra o seu dever.” voltar
XVI. PUERILISMO

De Platão era a frase, cuja profundidade ultrapassa o nosso sistema de


ideias: “Os homens são o brinquedo dos deuses”. Hoje em dia, poder-se-ia
dizer que os homens é que fazem do mundo o seu brinquedo. Não é lá tão
profunda esta última sentença, porém é mais que um lamento superficial.

Com puerilismo queremos dizer certa postura em uma dada


comunidade que age de modo demasiado imaturo com relação ao que o
estado de sua capacidade de discernimento lhe permitiria; que, em vez de
conduzir os moços até a madureza, prefere adaptar os seus
comportamentos aos da puberdade. Esse termo nada tem a ver com o
infantilismo psicanalítico e baseia-se em evidências de ordem histórica,
sociológica e cultural. Não aventuramos aqui uma explicação psicológica.

Exemplos de práticas contemporâneas às quais se impõe a qualificação


de puerilismo não são difíceis de achar. Aí vem o Normandie, de volta de
sua primeira viagem, ao encontro de uma recepção triunfal, ornado com
uma fitinha azul. Nobre rivalidade das nações, espantosa façanha da
técnica! Os construtores de navios, as companhias de navegação e os
especialistas em transporte todos concordam que, do ponto de vista
prático, os navios gigantes são um fracasso. No inverno o Normandie
ficará no estaleiro, não valeria a pena lançar-se ao largo. Retroagimos
assim à navegação da baixa Idade Média, quando só na metade mais
quente do ano se navegava. Essa desmesurada grandeza, por mais divertida
que seja, é motivo de vergonha para todo verdadeiro homem do mar, e em
tempos mais piedosos teria sido considerada uma petulância, uma afronta
aos céus. Lá ficam os passageiros pacientemente a tremer durante quatro
dias. O que há de impressionante, mesmo de sublime, na façanha aqui
referida, nenhum observador da cultura moderna poderia negar. As
dimensões extraordinárias têm, como as pirâmides, algo de belo em si
mesmas. Beleza também há no refinamento de um mecanismo interno, na
sua eficiência. Mas o intelecto que tudo isso ordenou não estava muito
preocupado com o eterno ou com a majestade. Tudo o que aqui o homem
obteve buscando dominar a natureza está a serviço tão somente de um jogo
vão, que nada tem a ver com cultura ou sabedoria e que perde mesmo os
altos valores do jogo, já que não se apresenta como jogo e nada mais.
Se não vejamos esse outro jogo, que é preciso chamar de sério,
consistente em repetidas quedas de ministérios por causa de um conflito
artificial, nascido de intrigas partidárias, com o qual alguns grandes países
impossibilitam uma verdadeira limpeza e fortalecimento da política,
emaranhados nas regras de um parlamentarismo cuja verdadeira natureza
jamais puderam compreender. Ou pensemos no gesto de rebatizar grandes
e antigas cidades com o nome de sumidades da última hora, uns mortos,
mas outros ainda andando entre nós, como Gorki ou Stálin.

Vamos por ora deter-nos no espírito de desfile militar e acompanhar


esse passo que tomou conta do mundo. Mobilizam-se centenas de
milhares; não há praça larga o bastante, a nação inteira enfileirada como
soldadinhos de chumbo, na mesma posição. Nem o observador estranho
pode escapar ao poder sugestivo disso que parece grandeza, que parece
poder — mas que é apenas criancice. Uma forma vã criando a ilusão de
um objetivo superior. Mas quem pensar duas vezes verá que em tudo isso
não há superioridade alguma. Sob todos os aspectos. Isso apenas revela
quão estreitamente o heroísmo popularesco, de uniforme e braço erguido, e
o puerilismo geral estão aparentados.

O país onde é possível fazer o estudo mais completo de um puerilismo


nacional em todas as suas variantes, do inofensivo ao cativante ao
criminoso, são os Estados Unidos da América. Dito isso, deixemos de lado
toda arrogância e sentimento de superioridade. Pois a América é mais
jovem e mais juvenil que a Europa, e muito do que aqui pareceria infantil,
lá é antes ingênuo, e o deveras ingênuo escapa à toda acusação de
puerilismo. Mas o norte-americano em todo caso não é cego para os
excessos da sua jovialidade. Contam-se entre eles intelectuais do porte
de um Babbitt.

O puerilismo manifesta-se de duas maneiras: em atividades tidas por


sérias e importantes, mas de todo em todo atravessadas pelo ludismo,
como as até aqui apontadas, e também em tantas outras que, apesar de
consideradas jogos, ao fim, pelo modo como se realizam, perdem o
verdadeiro ludismo. Dentre estas últimas incluem-se os passatempos, os
jogos de sociedade ou de raciocínio, que adquirem foros de questão
internacional, com congressos, artigos de jornal, especialistas
profissionais, manuais e teorias. Naturalmente, não devem ser igualadas
àquele sintoma, tão evidente quanto superficial, de puerilismo
disseminado: as ditas “febres”, com o seu quase imediato espraiamento
mundial, a exemplo do que ocorreu com as palavras-cruzadas alguns anos
atrás.

É óbvio também que entre os passatempos e jogos de sociedade


referidos mais acima não devemos incluir o esporte moderno. O exercício
corporal, a caça e a competição são, sem dúvida, na sociedade humana,
funções por excelência dos moços, mas aqui se trata da mocidade sadia e
benfazeja. Sem competição não há cultura. Que agora nos esportes e nas
competições esportivas aquela antiga necessidade agonística tenha
encontrado uma forma de satisfação nova, internacional, isto é talvez um
dos elementos que mais tem colaborado para a manutenção da cultura. O
esporte moderno é, em grande medida, um presente da Inglaterra ao
mundo. Presente que o mundo tem aproveitado bem mais que aquele
outro, também dado pelos ingleses, que é o governo parlamentar e o
tribunal do júri. O culto recente da força física, da destreza e da disposição,
inclusive a das mulheres, é em si mesmo visto como um fator cultural sem
dúvida positivo, de altíssimo valor. Esporte significa vitalidade em termos
de força e de ânimo, significa ordem e harmonia, tudo o de mais precioso
para uma dada cultura.

O que não quer dizer que, de muitas maneiras, o puerilismo


contemporâneo não se imiscua no âmbito esportivo. Ele está presente, tão
logo a competitividade, como em algumas universidades estadunidenses,
adquire formas que deixam o interesse espiritual totalmente em segundo
plano. Ele é ensejado pela excessiva organização do próprio esporte ou
pela excessiva importância que tem a imprensa esportiva para muitos,
tornada em alimento básico do espírito. Ele manifesta-se de uma maneira
particularmente expressiva quando o princípio do “jogo limpo” esbarra em
paixões nacionalistas ou de outra espécie. Em geral, tem o esporte a
virtude de suspender mesmo as mais fortes antipatias nacionais. Porém é
consabido que muitas vezes, nessa superação da busca de glória pessoal,
nem tudo sai como previsto — por exemplo, nos casos em que o árbitro,
temendo a reação hostil do público, não mais decide imparcialmente. Com
a exasperação do sentimento nacionalista, crescem as chances de
ocorrerem tais degenerações. Muito acertadamente o não saber perder tem
sido desde sempre considerado uma infantilidade. Se é uma nação inteira
que não sabe perder, então não há termo mais justo para a definir.

Cabendo, pois, atribuirmos à cultura atual um grau elevado de


puerilismo, surge a questão se nisto ela difere de civilizações anteriores e
se sobressai negativamente. Não seria difícil demonstrar que também a
sociedade pregressa, fosse contínua ou esporadicamente, em muitos
aspectos não se portava como um ente capaz, na posse plena de suas
faculdades. Existe, porém, uma distinção entre a mera tolice daqueles
tempos e a infantilidade de hoje em dia.

Em fases mais recuadas da cultura, grande parte da vida comunitária


dá-se na forma de jogos, isto é, a prescrição de uma limitação temporária
dos comportamentos humanos, submetidos a normas voluntariamente
aceitas e em uma forma a um tempo determinada e determinante [32].
Uma atuação estilizada toma o lugar da busca direta de ganho ou
satisfação. Sendo o jogo de caráter sagrado, a atividade transforma-se em
culto ou em rito. Mesmo quando se trata de ritos de sangue ou combates,
as ações não deixam de ser um jogo. Estas ocorrem em um intervalo lúdico
demarcado tanto no tempo como no espaço: santuário, arena de batalha,
terreiro de festa. Ali a vida de todos os dias é temporariamente cancelada.
A realidade para fora do intervalo lúdico é dada ao esquecimento,
refestela-se a gente numa ilusão coletiva, o livre pensar é posto de lado.
Ainda hoje cada uma destas características estão, em todo verdadeiro jogo
— os folguedos infantis, as disputas esportivas, o teatro —, inteiramente
conservadas.

O traço mais essencial de todo verdadeiro jogo, seja culto, espetáculo,


festa ou competição, é que em dado momento ele acaba. A assistência
toma o caminho de casa, os atores retiram suas máscaras, as cortinas
baixam sobre o palco. E aqui percebemos o mal do nosso tempo: em
muitos casos, a brincadeira não tem fim; portanto não é brincadeira.
Estamos em um estágio avançado de contaminação entre ludismo e
seriedade. As duas esferas se misturam. Nos comportamentos que
deveriam ser sérios, lá está oculta e escusa a parte de jogo. Já o que é
reconhecido como jogo, por outro lado, por conta do excesso de
organização técnica e por ser levado demasiado a sério, já não consegue
conservar o seu caráter autenticamente lúdico, perdidas as qualidades
imprescindíveis da isenção, do natural e da alegria.

Esse tipo de contaminação esteve, em maior ou menor grau, sempre


presente na cultura. A essência da contradição entre jogo e seriedade vai se
perder no fundo insondável da psicologia animal. Mas é um questionável
privilégio da civilização ocidental hodierna o ter levado essa confusão das
esferas da vida ao mais alto grau. Para muita gente, seja rude ou cultivada,
a postura adequada diante da vida continua sendo a de um meninote. Já
falamos de passagem sobre a disseminação de um estado de espírito que se
poderia chamar de adolescência permanente. Caracteriza-se pela ausência
das noções do adequado e do inadequado, a falta de dignidade pessoal, de
respeito pelos demais ou por suas opiniões, bem como uma absorção
excessiva pela própria personalidade. A base disto foram o rebaixamento
dos parâmetros críticos e a atrofia da faculdade judicante. A massa acha-se
muito à vontade em um estado de entorpecimento semivoluntário. Trata-se
de um estado que, acompanhado como é pelo afrouxamento das rédeas da
convicção moral, pode tornar-se extremamente perigoso de um momento
para o outro.

Mas o que é impressionante e preocupante é que a instalação desse


estado de espírito não se deve tão somente à miséria do padrão crítico na
consciência individual, ao achatamento causado pela organização
coletivista, com o seu prêt-à-porter de opiniões e mentalidades, tampouco
ao gênero das distrações superficiais sempre disponíveis; mas deve-se,
também, ao fato de o extraordinário progresso técnico vir ensejando e
nutrindo em excesso tal estado de espírito. O homem encontra-se no
mundo literalmente como uma criança, quiçá como uma criança em um
conto de fadas. Muito está ao seu alcance: viajar de avião, falar com
alguém no outro hemisfério, retirar guloseimas de uma máquina, trazer,
via rádio, qualquer parte remota do planeta para dentro de casa. Basta-lhe
apertar um botão, que a vida aparece, obediente. Poderia esse tipo de vida
tornar alguém adulto? Antes o contrário. Se o mundo é o seu brinquedo,
não espanta que ele o maneje como criança.

Esta menção do contágio entre jogo e seriedade na vida contemporânea


leva-nos a aspectos mais essenciais que aqui não caberia analisar em
profundidade. O fenômeno se manifesta, de um lado, como uma ideia não
totalmente séria a respeito do trabalho, do dever, do destino e da
existência; do outro lado, como um levar a sério ocupações que, analisadas
objetivamente, se mostram fúteis, infantis; finalmente, manifesta-se como
um empregar nas coisas deveras importantes os instintos e gestos do jogo.
Os discursos das principais figuras políticas muitas vezes não são outra
coisa senão reinações de moleques.

Valeria a pena avaliar de que modo, nos diversos idiomas, as palavras


referentes aos jogos estão sempre penetrando na esfera da seriedade.
Sobretudo os Estados Unidos da América apresentam material abundante
para esse tipo de pesquisa. O jornalista refere-se à sua profissão como “the
newspaper game”. O político que, embora honesto da boca para fora, se vê
no mesmo barco dos corruptos, defende-se dizendo que “had to play the
game”. Para obter de um funcionário de alfândega que ele finja não ter
visto uma violação da Prohibition Law, o infrator lhe suplica: “be a good
sport”[33]. Claro está que aqui se trata de algo mais que meros giros
linguísticos. Há nisso um acentuado desvio de ordem psíquica e moral. H.
G. Wells descreveu em um dos seus romances como entre os irlandeses,
mesmo em sangrenta luta pela independência, tudo tinha um quê de
brincadeira.

Termo característico da postura intelectual e prática meio a sério é a


palavra slogan. Não faz muito tempo (ainda não consta no Murray’s
Dictionary) que os norte-americanos atribuíram a esse vocábulo, que no
antigo gaélico escocês designava um grito de guerra dos clãs, o significado
de uma máxima ou lema político, no contexto de uma disputa eleitoral. O
slogan é, por assim dizer, uma frase partidária, que o próprio locutor sabe
ser só em parte verdadeira, porque visa antes de tudo fazer o seu partido
ganhar votos. E eis que usamos outra vez uma expressão de jogo.

É dos povos anglo-saxões, graças à sua disposição lúdica altamente


desenvolvida, o privilégio de conseguirem notar o elemento fun e game
nas próprias ações. Nem todos os povos são capazes disso. Tanto latinos
como eslavos, quanto os povos germânicos continentais, parecem carecer
às vezes dessa faculdade. Que é, por exemplo, o “Blut und
Boden”[34] afinal, senão um slogan? Um modo de falar que, com uma
imagem sugestiva, disfarça as deficiências do seu fundamento lógico ou os
perigos de suas consequências práticas. É, pois, o slogan que não se
reconhece como tal, que é adotado no linguajar oficial e científico, sem
dúvida o que apresenta um risco redobrado.

O slogan é algo inerente à atividade publicitária, seja comercial ou


política. Toda propaganda política se insere mais ou menos nesse ramo,
sobretudo quando proveniente do Estado. Toda a indústria da publicidade
atual, esse monstrengo dos tempos modernos, está baseada naquela postura
meio a sério, característica das culturas avançadas. Por esse aspecto
poderia ser considerada um sinal de envelhecimento. Puerilismo, em todo
caso, é o termo apropriado.

Espalhada por toda a sociedade, a postura meio a sério revela-nos de


imediato o liame estreito entre heroísmo e puerilismo. A partir do
momento em que o lema anuncia: sejamos heróis, a brincadeira começou.
Poderia ser uma nobre diversão, contanto que limitada à esfera de
acampamentos de escoteiros e Olimpíadas. Quando o jogo, porém, se
transforma em ação política, em desfile e adestramento do povo, em
oratória bombástica e editoriais ditados nos gabinetes dos poderosos, ao
mesmo tempo em que, apesar de tudo isso, mantém a pretensão de ser
levado a sério, então não passa de puerilismo.

Para uma filosofia vital ou política que subordina a faculdade do juízo


à existência e ao interesse, a esfera do puerilismo moderno, com slogans,
desfiles e competição sem sentido, constitui o ambiente perfeito para que
ela prospere e alimente o crescimento vigoroso dos poderes aos quais
serve. Para ela, não é nada mal que o instinto das massas, com os quais
conta, esteja privado de discernimento independente. Não lhe interessa o
juízo independente, que devia ser a função mesma do intelecto. Nem a
prejudica o fato de que a rejeição à faculdade do juízo reduza a
consciência de responsabilidade a um sentimento confuso de estar
vinculado a algo que os conclama.

A confusão entre jogo e seriedade, na base do que neste capítulo


entendemos por puerilismo, é, dentre todas as características da
enfermidade contemporânea, sem dúvida uma das mais importantes. Resta
a questão quanto até que ponto o puerilismo está unido àquele outro traço
da existência moderna: o culto da juventude. É preciso ter o cuidado de
não os confundir em hipótese alguma. O puerilismo não conhece idade,
afeta a velhos e moços igualmente. O culto da juventude, à primeira vista
um indício de força revigorada, pode ser também considerado um sintoma
de envelhecimento, uma abdicação em favor de um herdeiro ainda por
atingir a maioridade. As mais esplêndidas culturas, é certo, amaram e
veneraram a juventude, mas sem mimos nem bajulação, e sempre dela
exigindo obediência e respeito aos mais velhos. Tipicamente decadentes e
pueris eram esses movimentos, já pertencentes ao passado, que a si
mesmos chamaram futurismo. Mas não foram os mais jovens os
culpados disso [35].

32. Em um trabalho à parte sobre O elemento lúdico da cultura, espero em


breve ampliar o tratamento dado aqui a este tema, de que tratei também no
discurso Sobre os limites entre jogo e seriedade na cultura, de 1933. voltar

33. Os exemplos são de uma carta pessoal de 1933. voltar


34. N.T.: “Sangue e solo", lema nacionalista alemão bastante utilizado
pelos nazistas. voltar

35. Recomenda-se, como ilustração deste capítulo sobre o puerilismo, a


leitura de dois manifestos, há pouco publicados, de autoria do conhecido
fundador do futurismo, F. T. Marinetti. Podem-se encontrar traduzidos no
World, Londres, out. e nov. 1935, págs. 310, 400, e também no
Hamburger Monatshefte für Auswartige Politik (“Mensário Hamburguês
de Política Internacional”), novembro de 1935. voltar
XVII. SUPERSTIÇÃO

Um ressurgimento da superstição encaixa-se perfeitamente em tempos


assim, inclinados a preterir as normas do conhecimento e do juízo em
favor do impulso vital. Ora, é característico da superstição, sem nunca ter
deixado de subsistir ao longo da história, intensificar-se em épocas de
confusão e agitação espiritual, tornar-se uma espécie de moda. Por algum
tempo goza de certo prestígio, tendo o condão de alimentar a fantasia e nos
consolar das limitações do nosso saber e entendimento.

Não caberia tratar aqui de todas as modalidades de superstição


moderna. Apenas de duas delas falaremos. A primeira pertence às
concepções supersticiosas de que somente poucas pessoas escapam, qual
seja, o escrúpulo de provocar o fado. Este escrúpulo está inserido no mais
profundo do ser humano, talvez como uma forma disfarçada de fé.
Quantos não “batem na madeira”, mesmo convictos de não darem
importância àquilo. Eis a razão por que cada novo perigo traz sua própria
forma de superstição. Quando o automóvel ainda era considerado
inseguro, suspendia-se um mascote no retrovisor. Agora eles já quase não
se usam. Por outro lado, pede-se, ou pedia-se até há pouco tempo, numa
das maiores companhias de aviação, que os pilotos — além de exames,
avaliação e testes — apresentassem também seu horóscopo. É mais do que
natural que a aviação, com seu risco inerente mais elevado, tenha
necessidades de segurança psicológica próprias. Mas não deixa de ser
intrigante o fato de um grande organismo oficial cultivar dessa forma a
ressurreição da astrologia. Uma superstição que pretende ser científica
causa muito mais grave confusão ao entendimento do que aquela que se
limita à simples prática popular. Julga-se, com o horóscopo, estar em posse
de informações exatas, ao passo que ele, se algum significado tem, não
pode ser nem mais nem menos exato que uma descrição no passaporte.

Porém a mais difundida e fatídica forma de superstição moderna não


está na aceitação precipitada de relações misteriosas[36], nem na profissão
de pseudociências, senão numa esfera de pensamento puramente racional e
familiarizada com a ciência e técnica reais. Trata-se da superstição que
acredita na eficácia da guerra e das suas soluções.
Sem dúvida, por muito tempo atribuiu-se à guerra uma grande dose de
eficácia. Um reino oriental da antiguidade, destruindo os seus inimigos,
não tinha por que preocupar-se com o fato de que tal sistema, no longo
prazo, transformaria o Oriente próximo em um deserto ressequido.
Também na história europeia houve um grande número de empresas
bélicas defensivas e mesmo algumas ofensivas perfeitamente justificáveis.
A grande maioria delas, porém, muito dificilmente poderia ser considerada
eficaz. Pensemos na Guerra dos Cem Anos, nas guerras de Luís XIV, nas
guerras napoleônicas, cuja eficácia deu de cara com Leipzig e Waterloo.
Em quase todos os casos a eficácia limita-se ao resultado imediato. Os fins
de paz e segurança desejados, com efeito, resultam sempre não da
atividade bélica em si, mas do esgotamento que produz.

À medida que os meios bélicos se tornam mais potentes, e os países


que estão em condições de guerrear mais dependentes de relações pacíficas
e do comércio, a conveniência da guerra decresce consideravelmente. A
passagem do emprego de mercenários para o recrutamento e o serviço
militar obrigatório significa uma diminuição das chances de um esforço
bélico oportuno, pois com isso o sacrifício das forças do país e de seu povo
atinge dimensões insustentáveis. Com relação às armas de fogo, temos um
caso diferente. Por mais que se possa dizer que aumentaram a eficiência da
guerra desde que foram inventadas até o fim do século XIX, a partir de
então esse efeito vem sendo rapidamente anulado pelo desenvolvimento e
uso crescente de explosivos. Então não só o saldo de destruição é tão alto
que, entre vencedores e vencidos, todos saem perdendo, como também,
mesmo durante a campanha opondo forças antagônicas mais ou menos
equilibradas, o pretenso resultado imediato desaparece sob o desperdício
de recursos e de vidas. Todo aparato bélico terá certa eficácia enquanto o
inimigo não o possuir; depois disso não mais. O que vale para os
explosivos vale também para todas essas maravilhas que os blindados, os
submarinos, a aviação e o rádio introduziram nos conflitos. Qualquer êxito
obtido graças a eles é um êxito especioso de interesse tão somente
imediato, não raro de interesse nenhum. Que foram os imensos cruzadores
na Grande Guerra, senão um amuleto no pescoço da Grã-Bretanha? Para
que serviu tanto heroísmo, tanta vida em flor, mas também tanta injustiça e
tanta crueldade, como se viu na guerra submarina, senão para prolongar
debalde a luta?

O mundo não pode mais com a guerra moderna. Tudo o que esta
consegue é mutilá-lo. Trazer a paz, sabemos que não trará. O espírito das
gentes é de tal modo um de mobilização geral e está de tal modo
envenenado, que qualquer guerra deixará atrás de si uma quantidade de
ódio muito maior do que encontrou. O resultado final da guerra mundial
podia ser ditado pelos vencedores. Havia um consenso político. E quais
foram as medidas tomadas? Cruas amputações, novas complicações, mais
insolúveis do que antes, um combinado de miséria e devastação para o
futuro! É fácil fazer pouco da estultícia que foi Versalhes. Como se uma
vitória do outro lado pudesse ter resultado em homens mais sábios e
decisões mais prudentes!

Tudo isso é semear mais dentes de dragão. Recorrem a todos os meios


científicos e técnicos disponíveis a fim de construir um poder terrestre,
marinho e aéreo que esperam (pelo menos a maioria o faz) nunca ter de
usar. Isso equivale rigorosamente, em termos de utilidade, a fabricar ferro-
velho.

A continuar essa confiança na eficácia da guerra, estaremos


literalmente diante de uma superstição, um resíduo de períodos superados
da civilização. Como é possível um homem como Oswald Spengler, em
seu Jahre der Entscheidung (“Anos Decisivos”), seguir fantasiando com
essa superstição? Que infundada ilusão romântica, a dos seus Césares com
heroicas coortes de soldados profissionais! Como se o mundo moderno
pudesse, em caso de necessidade, ser impedido de usar todas as forças e
meios ao seu alcance!

Penso aqui na entrada de um vilarejo chinês, com faixas vermelhas


sobre os muros das casas, onde se leem provérbios que, supõe-se, afastam
toda espécie de mal. Os habitantes tiram daí sem dúvida um sentimento de
segurança. E que é a segurança senão um sentimento? Tão mais prático e
mais barato! Compare-se a eficácia disso com os nossos orçamentos
militares, que nem sentimento de segurança chegam a proporcionar. Com
base em que, portanto, chamamos a uma prática superstição e à outra
estratégia política?

Não se tome o que precede por uma defesa do desarmamento


unilateral. Estamos todos no mesmo barco. O argumento aqui é que a
crença em soluções, cuja falsidade é mais clara que o sol, não merece
outro nome que o de superstição. Só um mundo muito idiotizado para
alimentar esse tipo de ilusão. A imagem do barco vem aqui a propósito:
um barco em que estão todos os povos, seja para chegarem ao porto seguro
ou para naufragarem juntos.
36. Abstenho-me, expressamente, de qualquer juízo acerca da investigação
séria de fenômenos psíquicos ainda desconhecidos. voltar
XVIII. AS ARTES EM SEU
AFASTAMENTO DA RAZÃO E DA
NATUREZA

No início da longa série de sintomas da crise pusemos o pensamento


científico, que, deixando atrás de si a razão e a capacidade imaginativa,
somente na fórmula matemática podia encontrar meios de se expressar.
Chegado é o momento de nos voltarmos para a arte. Esta também vem, nos
últimos 50 anos, afastando-se progressivamente da razão. Trata-se do
mesmo percurso realizado pela ciência?

Em todos os tempos a poesia, mesmo quando expressão do êxtase,


esteve ligada a um elemento de racionalidade. Conquanto a sua essência
seja o belo na imaginação, ela expressa-o pela palavra, isto é, como
pensamento, pois mesmo a imagem, por uma simples palavra sugerida, é
um pensamento. O instrumento do poeta são os meios lógicos da língua.
Por mais alto que voe a imaginação, o arcabouço do poema permanece um
pensamento expresso logicamente. Os hinos védicos, Píndaro, Dante, a
mais profunda poesia mística e a mais íntima cantiga de amor, não
dispensam nada do esquema lógico e gramaticalmente analisável. Mesmo
a imprecisão da poesia chinesa não rompe, se bem a entendi, esse tipo de
nexo.

Há períodos em que o teor de racionalidade da poesia é especialmente


alto. Um exemplo é o século XVII na França. Racine pode, nesse sentido,
ser considerado o ponto mais alto da curva. Tomando-se o classicismo
francês como ponto de partida, vemos ao longo de uma linha a relação
entre poesia e razão ser mantida, com pouca mudança, pelo século XVIII
adentro, até o surgimento do romantismo. Então, animadas de um novo e
ardoroso espírito, ocorrem grandes alterações. A parcela do irracional e
antirracional faz-se maior. Não obstante, durante o século XIX, a
expressão poética continua ainda ligada essencialmente à razão, é feita de
tal modo que mesmo um leitor não especializado é capaz de, com o seu
conhecimento da língua e do sistema conceitual, compreender quando
menos a construção formal de um poema. Apenas no crepúsculo desse
século é que se testemunha o distanciamento consciente da poesia com
relação a todo vínculo racional. Grandes poetas isentam a sua poesia do
critério da inteligibilidade lógica. Não se trata de saber se esse
distanciamento progressivo da razão se traduziu em elevação e
enobrecimento da poesia ou não. É mesmo provável que a poesia então foi
capaz de realizar sua função essencial: a penetração do espírito no
fundamento das coisas, mais efetivamente do que antes. Limito-me aqui a
constatar o fato de que ela se desviou da razão. Rilke ou Valéry são, para o
leitor não especializado, muito menos acessíveis do que o foram Goethe ou
Byron para seus respectivos contemporâneos.

A esse descarte da razão pela poesia corresponde, nas artes plásticas, a


rejeição das formas visíveis da realidade. O ars imitatur naturam vinha
sendo, desde Aristóteles, uma doutrina incontestável através dos séculos.
A estilização, o tratamento ornamental ou monumental das figuras jamais,
por mais que às vezes o aparentasse, aboliu de todo tal princípio. Além do
que o preceito não implicava em absoluto a cópia da percepção natural.
Bem mais amplo era o seu alcance: a arte age como a natureza — noutras
palavras, cria formas[37]. Mas a representação perfeita da realidade
visível, todavia, seguiu sendo um ideal respeitado e a ser perseguido. A
sujeição à natureza significava, para a expressão plástica, em certo sentido
uma sujeição à razão, uma vez que esta é o órgão com que o ser humano
interpreta o seu ambiente e o torna compreensível. Não por acaso, aquele
mesmo século que representou a máxima vinculação entre poesia e
racionalidade foi particularmente longe na associação entre arte e natureza,
esta última sobretudo a cargo dos holandeses.

No século XVIII, o realismo plástico prosseguiu alinhado com o a


racionalidade poética. O que o romantismo opera é só em aparência uma
grande mudança, de vez que o mero deslocamento do objeto da realidade
cotidiana para o fantástico não caracteriza de modo algum o descarte da
realidade visível enquanto inventário de formas. Delacroix e os pré-
rafaelitas seguem expressando suas visões por meio da linguagem
figurativa do realismo plástico, isto é, por meio da ilustração de coisas
perceptíveis na realidade visível. Tampouco o impressionismo abandonou
a conformidade ao que o olho vê e o espírito conhece discursivamente.
Trata-se aí antes de um novo método para atingir tal efeito, embora já
esteja implícita uma adesão menor ao inventário da realidade. E o
princípio tradicional manteve-se ainda diante da nova tendência à
estilização e à monumentalidade.
Somente no instante em que o artista empreendeu criar formas à
revelia da realidade visível e das vivências dos homens foi que a cisão se
operou. Pode se dar também que as figuras em si tenham sido derivadas da
natureza, porém arranjadas de sorte que o todo não corresponda a uma
experiência da realidade através do filtro da lógica. Como iniciador dessa
fase nas artes, parece-me, caberia papel de destaque a Odilon Redon. E
já Goya apresentava alguns traços pronunciados nessa direção. Poderíamos
dar aos elementos formais expressos dessa maneira a denominação
provisória de valores oníricos. O gênio de Goya facultava-lhe expressar o
que houvesse de mais invisível, porém ainda na linguagem das formas
naturais. Os que vieram depois já não o queriam — ou podiam — fazer.

A linha que vai de Goya a Odilon Redon prossegue através de


artistas como Kandinsky e Mondrian. Estes deixam de lado totalmente o
objeto natural, a coisa-com-forma durante a composição, donde a sua arte
distancia-se de toda ligação com os meios habituais da inteligência
humana. O conceito de imagem, dessa forma, perde todo o sentido.

Devo, por deficiência de conhecimentos técnicos, deixar de lado a


questão sobre se a linha que vai de Wagner até o atonalismo não
representaria, juntamente com os dois fenômenos já vistos, uma terceira
transição cultural nesse mesmo sentido.

Certo parentesco entre o caso da arte e o do pensamento científico,


tratado anteriormente, não deve ser descartado. Vimos já o pensamento
científico nos limites do conhecível. Poesia e artes plásticas, ambas
também funções do espírito, também maneiras de compreender a
existência, têm demonstrado essa mesma inclinação a pairar acima ou
além dos limites do intelecto. A inevitabilidade do rumo tomado pelo
desenvolvimento no campo científico à primeira vista parece valer também
para a expressão estética. Os dois fenômenos juntos abrangeriam, por
assim dizer, o panorama inteiro da mudança intelectual.

Porém, se olharmos mais de perto, abre-se uma profunda diferença


entre os dois fenômenos. A direção daquele ímpeto além dos limites
está, para a ciência e para arte, em polos diferentes.

Nas ciências o espírito, por um imperativo absoluto, acha-se


perfeitamente submisso ao ditado da percepção e da inteligência e, com a
exigência de uma exatidão extremada, é transportado, para um lado ou
para o outro, na direção daquilo que o intriga. Seus avanços são um
inexorável dever. O caminho está traçado. Seguir por ele é grato serviço
prestado a uma soberana chamada Verdade.

A arte, por outro lado, não sofre coação externa alguma. A exatidão
não é seu dever. Seus próprios passos a conduziram, melhor dizendo,
conduziram a muitos de seus cultores, a um completo rechaço das normas
da percepção e do pensamento. Buscam entregar-se às sensações e
emoções concretas que constituem a matéria a ser apreendida
esteticamente. A compreensão estética (pois que se trata ainda de uma
compreensão), afastando-se sempre da lógica, torna-se cada vez mais vaga.
O poeta, a fim comunicar sua mensagem, lança no espaço unidades de
sentido que, em contato umas com as outras, tornam-se absurdas.

Para a arte não existe o dever. Nenhuma disciplina espiritual a


constrange. Seu impulso criativo é um desejo. E nisso manifesta-se o fato
crucial de que a arte está, bem mais do que a ciência, próxima da filosofia
vital contemporânea, que abandona o saber em prol da existência. Ela
almeja a representação direta da vida, a mais real e sincera, à margem do
conhecimento (como se essa apreensão e a sua comunicação não fossem
atos cognitivos).

A arte é uma busca e a nossa época, por demais autoconsciente, exige


um nome para essa busca. Movimentos artísticos recentes batizaram-se
“expressionismo”, “surrealismo” — sem falar em “dadaísmo” e outros
termos sem sentido. Ambos os termos sugerem que a simples
representação da realidade visível (ou visível na imaginação) já não basta
ao artista. Ora, uma expressão, uma exteriorização, eis o que a arte tem
sido desde sempre. Por que então esse termo aparentemente redundante,
“expressionismo”? A menos que se compreenda como mero protesto
contra o impressionismo, o termo significaria um artista decidido a
representar o objeto de sua criação (uma representação e um objeto são
inevitáveis) em sua essência mais profunda, livre de tudo que não faça
parte dela ou que prejudique a sua percepção. O expressionista, diante de
um tema qualquer — por exemplo, uma costureira, uma mesa, uma
paisagem —, desdenha a representação através de uma imagem natural,
que a princípio seria a maneira mais recomendável de transmitir a
concepção em si mesma. Mas ele pretende mais do que isso, tenta captar
algo além da realidade visível, algo que seria a essência mesma da coisa e
que ele define como a sua ideia ou a sua vida. Natural que o modo como se
dá esse tipo de representação não corresponda às categorias das nossas
representações comuns. O postulado, afinal, é expressar algo inacessível
ao pensamento.

Com isso, a postura do artista assemelha-se, em mais de um aspecto, à


da filosofia vital contemporânea. Ambas almejam “a vida mesma”. O que
segue foi tirado de uma resenha sobre o trabalho do pintor Chagall:

Bem sei que para muitos a arte de Chagall é um problema. Mas ela
em si mesma nada tem de problemático, é uma arte que brota
imediatamente do espanto e de uma entrega ao mito da vida, sem
reflexão, sem participação do intelecto. Tem por base um sentimento
religioso. Ali está a sua fonte, no coração, se quiserem, ou no sangue,
ou no mistério mesmo da vida. Problemática ela é somente para os
que não conseguem sair do problema estético, ou para os que querem
pensar algo a respeito daquilo que veem, ao passo que esta arte põe
de lado o pensamento. Pode-se perguntar por que tal coisa foi feita
de tal ou tal maneira. A resposta é o silêncio, pois não há o que
responder. Finalmente, há tanto um mistério quanto uma mística da
arte, e existe também uma arte com poder mágico, que não fala ao
entendimento, mas a todas as coisas, para as quais dispomos apenas
de míseros conceitos. Contra a entrega confiante à vida não cabem
argumentos. Há somente duas possibilidades: entregar-se também ou
ficar onde se está.

Uma vez aceita a premissa, e descontadas as deficiências do raciocínio,


pode-se dizer que se trata de uma declaração de princípios perfeitamente
coerente. O crítico de arte acha-se aqui de pleno acordo com a chamada
filosofia vital.

Essa harmonia com uma visão da vida hoje disseminada seria algo que
de fato fortalece a arte? Não parece ser o caso. Pois é justamente essa
disposição da vontade, essa pretensão à absoluta liberdade, esse abandono
de todo vínculo com a razão e a natureza o que vem levando a arte a tantos
excessos e degenerações. E, com isso, o insaciável desejo de originalidade,
que é um dos males dos tempos modernos, expõe a arte, muito mais que a
ciência, a influências corruptoras vindas da sociedade. Faltam à arte não só
o rigor, como também o imprescindível isolamento. Também a
produtividade do intelecto, esse outro mal da existência moderna, exerce
um papel ainda mais decisivo nas artes do que nas ciências. A necessidade
que, numa sociedade concorrencial, constrange os produtores a
constantemente superarem uns aos outros no emprego de seus meios
técnicos, seja para se promoverem ou por mera vaidade, leva a arte a
melancólicos extremos de nonsense, quais os que na década passada se
anunciavam como expressão de uma ideia: poemas compostos só de
onomatopeias ou de sinais matemáticos e outros que tais. Desnecessário
acentuar quão fácil é às artes descambar para o puerilismo (perigo, aliás,
ao qual as ciências não estão de forma alguma imunes). Infelizmente,
épater le bourgeois é um slogan que não se restringiu aos círculos de
jovens boêmios, mas substituiu-se ao ars imitatur naturam como divisa
comum. A arte, muito mais que as ciências, encontra-se inerme diante da
mecanização e da moda. Em todo o mundo os pintores cismaram de
inclinar as mesinhas das suas naturezas-mortas num ângulo de 30 graus e
de forçar os seus trabalhadores, todos padecendo de elefantíase, a vestirem
umas calças estranhamente parecidas com cartolas.

O caráter mais voluntarista das artes, em comparação com as ciências,


expressa-se na diferença subjacente, nessas duas grandes funções culturais,
ao uso da terminação –ismo. No pensamento científico, o uso de –ismos
está limitado sobretudo ao âmbito filosófico. Monismo, vitalismo,
idealismo são termos que traduzem um ponto de vista, certa visão de
mundo, em relação ao qual se situa a obra. É escassa sua influência sobre o
método de pesquisa e os resultados obtidos. A produção científica segue
adiante, sem que ora um, ora outro –ismo venha a dominar. Somente
quando o conhecimento é referido a um princípio filosófico ou a uma visão
de mundo é que os –ismos vêm a ser considerados.

Um pouco diferente é o caso da arte. Nesta e nas letras houve, tal como
na ciência, sempre movimentos mais ou menos voluntários e conscientes,
que a posteridade agrupou sob nomes como maneirismo, marinismo,
gongorismo etc. Em períodos mais antigos, o artista em atividade não se
preocupava em dar à sua orientação uma alcunha ou coisa do gênero. Os
diferentes estilos, no tempo em que floresceram, não conheceram –ismo
nenhum. Trata-se de um fenômeno moderno por excelência quando a arte
primeiro proclama uma orientação, pendurando-lhe um –ismo, para só
então tentar produzir as obras de arte correspondentes. Esses
penduricalhos, naturalmente, não equivalem ao monismo, por exemplo, em
filosofia ou ciência, de vez que na arte a filiação a um determinado –ismo
exerce uma influência direta considerável sobre a própria realização.
Noutras palavras: na arte existe, em contraste com as ciências, até certo
ponto um elemento discricionário determinante: o “nós queremos que seja
assim ou assado”.
De outra perspectiva, no entanto, pode-se perceber, entre a produção
estética e a lógico-crítica, uma inegável semelhança que, devido à
confusão dos –ismos, acaba muitas vezes não sendo notada. Também nas
artes, por baixo da agitação superficial de movimentos e modas, flui uma
poderosa, porém sossegada, corrente de trabalho sério, proveniente da
inspiração legítima, sem tomar tortuosos atalhos nem afluir em leitos
rasos.

37. Além do que arte, tekhnê, ars, obviamente significa todas as formas
artificiais, inclusive o artesanato. voltar
XIX. DESAPARECIMENTO DO
ESTILO E IRRACIONALISMO

Para a nossa geração, de grande sensibilidade estética, será mais fácil


detectar no curso da arte e da literatura o surgimento e o avanço dos
fenômenos que levaram a nossa cultura a uma crise. A imagem do
processo como um todo revela-se mais nitidamente nas transformações
estéticas. Aqui, a unidade do processo é mais facilmente apreensível: o
quão profundamente a crise atual deitou raízes, o quanto o seu surgimento
abarca dois séculos de história da cultura europeia.

A partir desse ponto de vista estético, o processo se nos apresenta


como um desaparecimento do estilo. A altiva história deste rico Ocidente
desenha-se como uma sequência de estilos, que chamamos por nomes de
escolas: românico, gótico, renascentista, barroco — denominações o mais
das vezes referentes às artes visuais. Mas a certa altura introduziu-se um
abuso vocabular: passamos a pretender que esses adjetivos definissem
também as mentalidades e mesmo a estrutura inteira das respectivas
épocas. De sorte que cada século ou período passou a ter para nós o seu
característico estético, o seu nome sugestivo. O século XVIII foi o
derradeiro a oferecer-nos, em todos os campos, a imagem da realização
homogênea e harmônica de um estilo próprio e acabado, com toda a
riqueza e a variedade dos campos abrangidas por uma concepção comum
da vida.

Com o século XIX isso teve um fim. Não digamos que é porque esse
tempo ainda está a uma distância demasiado curta em relação a nós.
Sabemo-lo bem até demais: o século XIX não teve estilo próprio; quando
muito, foi um medíocre epígono. O seu característico é a falta de estilo, a
confusão de estilos, a imitação de estilos anteriores. O princípio do
processo que levou ao desaparecimento do estilo remonta ao século XVIII;
suas incursões pelo exótico e o histórico prenunciam o gosto pela imitação,
pela qual até a estética do Empire perdeu os foros de um estilo de verdade.

Ora, neste desaparecimento do estilo de época está o ponto de inflexão


da questão cultural como um todo. Porquanto o que ocorre nas artes e na
literatura é apenas a parte mais visível de uma reviravolta da civilização
inteira.

Não creio que esse desaparecimento do estilo possa ser visto


simplesmente como corrupção e decadência, de ponta a ponta. Em um
mesmo processo, a cultura moderna sobe ao cume e avista o horizonte de
sua possível decadência.

A meados do século XVIII principia a grande virada dos espíritos, que


se afastam do sóbrio racionalismo, aprofundando-se nos obscuros
fundamentos da existência. O olhar volta-se para tudo que é imediato,
pessoal, originário, peculiar, genuíno, espontâneo, para o inconsciente,
instintivo, selvagem. Sentimento e fantasia, arrebatamento e sonho,
retomam o seu lugar na vida e na expressão. Devemos essa profunda
compreensão da existência, à qual se pode chamar, se se quiser, de
romantismo, a gente como Goethe e Beethoven, devemo-la ao intenso
florescimento de todas as ciências humanas: história, linguística,
demografia, entre outras.

Mas já com essa virada em direção à vida surgia no horizonte uma


corrente de pensamento que acabaria desembocando no rechaço do próprio
conhecimento, em favor da existência, e cujos excessos tivemos já ocasião
de analisar.

Até chegar nisto, o caminho foi longo. A outra faceta do espírito — a


matemática, a exata, a analítica, a observadora e experimental — não se
havia ainda extraviado; pelo contrário, enriquecera-se ao defrontar-se com
o seu oposto. O rigoroso ideal crítico, tal como o proclamara o século
XVIII, com base numa ideia universal de humanidade, manteve-se intacto
ao longo do século XIX.

Observando-se, portanto, a vida intelectual europeia em seu conjunto,


nota-se que, desde meados do século XVIII, a percepção estética e sensível
foi pouco a pouco adentrando o domínio do pensamento, na medida em
que este lhe era acessível, e contaminou até mesmo o entendimento lógico.
Nas obras propriamente de beleza e sentimento, o elemento racional,
ligado a suas formas de expressão, viu-se mais e mais diminuído. Esse
amplo processo espiritual alcança seu auge e ponto final no momento em
que se nega o primado do conhecimento enquanto meio para a
compreensão do mundo.

O risco maior do irracionalismo na cultura está no fato de que ele é


acompanhado e determinado pelo máximo desenvolvimento da capacidade
técnica de domínio sobre a natureza, bem como por uma exasperação do
desejo de conforto e bens terrenais. Por ora não faz diferença se essa
cobiça se expressa em formas individualistas e mercantis, coletivistas e
sociais ou político-nacionais. Afinal, o culto da vida, nascido do mais
completo irracionalismo, necessariamente, e a despeito dos princípios
sociais que o embasem, reforçará as tendências desumanas e egoístas da
paixão pelo domínio e pela posse. É pura inconsequência pensar que o
coletivismo exclui o egoísmo.

O contrapeso a essa dinâmica de fatores destrutiva só pode consistir


nos mais altos valores éticos e metafísicos. O retorno à razão por si só não
bastaria para nos tirar do sorvedouro em que nos debatemos.

Uma vez que nos demos conta dessa precondição, fica difícil afirmar
que estamos no caminho certo. Parece que enfrentamos os maiores riscos
que jamais pairaram sobre a nossa cultura, e que nos encontramos num
estado de baixa resistência contra a infecção e a intoxicação, comparável à
embriaguez. A inteligência é desperdiçada. O meio de intercâmbio do
pensamento, a palavra, conforme avança a civilização, como que num
processo inflacionário perde valor. Dispersa-se com cada vez mais
abundância, cada vez mais facilidade. E com a desvalorização da palavra
impressa ou falada aumenta, em proporção direta, o indiferentismo pela
verdade. Conforme a mentalidade irracionalista ganha terreno, alarga-se,
em todos os domínios, consideravelmente a margem de equívoco. A
publicidade instantânea, nascida do impulso comercial e sensacionalista,
deforma uma simples diferença de ponto de vista até que se torne uma
alucinação nacional. As ideias do dia exigem efeito imediato, à diferença
das grandes ideias que sempre penetraram gradualmente no mundo. Como
o cheiro de asfalto, fuligem e gasolina sobre as cidades, assim paira sobre
o mundo uma nuvem de palavras vazias.

A noção de responsabilidade, em aparência fortalecida pelos gritos de


guerra do heroísmo, é arrancada de sua base na consciência individual e
mobilizada em favor de toda coletividade ansiosa por fazer de suas
estreitas opiniões o cânone da salvação comum e impor ao conjunto social
a sua vontade. Em toda associação coletiva, juntamente com uma parte do
julgamento pessoal, também uma parte da responsabilidade pessoal é
absorvida pela retórica de grupo. Conquanto sem dúvida no mundo de hoje
haja crescido o sentimento de sermos todos responsáveis por tudo, ao
mesmo tempo agravou-se muito o risco de se desencadearem ações em
massa completamente desvinculadas de qualquer noção de
responsabilidade.
XX. PERSPECTIVA

Ousamos dar o nome de diagnóstico ao nosso panorama de sintomas


críticos. Mas o termo “prognóstico”, para as sequelas que ainda estão por
vir, seria arrojado demais. A vista não alcança três palmos adiante. A
perspectiva está envolta em névoas. O que se pode fazer é descartar
algumas chances, condicionar algumas possibilidades.

Há lugar para uma conclusão esperançosa após a menção de tantas e


tão graves manifestações de desarticulação e enfraquecimento? Sim, ainda
há lugar para isso, a esperança e a fé não estão proibidas. Mas não é um
lugar muito fácil de ocupar.

Sem dúvida, os que professam a doutrina da “existência” acima do


“entendimento” podem afirmar que o seu país não vive declínio algum,
mas que se acha a caminho de um formidável desenvolvimento de suas
forças. Para esses, em todos os fenômenos que nos causam inquietação, aí
mesmo triunfa o espírito que seguem. Mas para nós impõe-se uma questão:
supondo-se que o bem-estar, a ordem, a saúde e mesmo a concórdia
retornem ao mundo, caso esse mesmo espírito continue a dominar, estaria
a civilização a salvo?

Sabemo-lo bem: o mundo hodierno não pode voltar atrás. É algo que
enxergamos claramente, por pouco que consideremos o estado das
ciências, da filosofia e das artes. O pensamento, a faculdade da
imaginação, devem seguir adiante, sem desanimar, pelo caminho que o
espírito indicar. Mas não é diferente com a técnica e seu maquinário
gigantesco, nem com todo o sistema econômico, social e político. É
impensável uma intervenção voluntária do homem que seja capaz de
limitar o mecanismo onipresente da propagação do conhecimento, i.e., o
ensino público, a publicidade, a indústria editorial, ou que seja capaz de
impedir novas possibilidades de comércio, de tecnologia e de exploração
da natureza.

E, contudo, esse horizonte de uma civilização entregue à sua própria


dinâmica, de uma crescente dominação da natureza, de uma sempre mais
onipresente e imediata publicidade de todo acontecimento, tudo isso se nos
afigura antes um pesadelo do que uma promessa de purificação,
restabelecimento e elevação da cultura. Tudo o que nos traz à mente são
ideias de uma insuportável sobrecarga e de uma servidão do espírito. Não
é de hoje que essa expectativa de uma metamorfose incessante da
civilização nos faz, receosos, perguntar: “mas será que este processo pelo
qual estamos passando não conduz rumo à barbárie?”

Por barbarização entenda-se o processo cultural pelo qual, tendo-se


atingido um estado mais alto, este é aos poucos suplantado e substituído
por elementos de valor menor. Pouco importa se os portadores do
elemento superior e do inferior estão contrapostos necessariamente como
elite contra massa. Em todo caso, quiséssemos estabelecer essa polaridade,
mister seria separar os termos elite e massa de sua base sociológica, a fim
de os compreender como categorias exclusivamente espirituais. Não foi
outro o sentido que lhes atribuiu Ortega y Gasset no seu Rebelión de las
masas.

O passado oferece-nos, com efeito, um único exemplo de uma


profunda e geral barbarização bem conhecida: a decadência da civilização
antiga sob o império romano. A comparação, não obstante, é dificultada,
como já dissemos no início, pela grande diferença das circunstâncias. Em
primeiro lugar, o processo cultural precedente estendeu-se por quase cinco
séculos. Além disso, complicou-se por causa de fenômenos que nas
circunstâncias atuais não se verificaram. A barbarização intrínseca do
mundo antigo foi condicionada por estes três fatores: primeiro, uma
paralisia do organismo estatal, tendo por consequência a derrubada das
fronteiras imperiais e, finalmente, a conquista por invasores estrangeiros.
Segundo, o recuo da atividade econômica a um nível crítico. Terceiro, a
introdução de uma religiosidade mais elevada, que tomou distância da
cultura antiga e que, graças à sua organização coesa, conseguiu tornar-se a
força preponderante na vida espiritual. Ora, tanto o declínio técnico quanto
a ascensão religiosa praticamente não se notam no processo cultural
contemporâneo.

O baluarte do aperfeiçoamento técnico e da eficiência econômica e


política não resguarda nossa cultura da barbarização. Tais recursos podem
servir também à barbárie, que, com eles apetrechada, não faria senão
tornar-se ainda mais poderosa e tirânica.

Exemplo de um recurso técnico extraordinariamente sofisticado, em si


mesmo tão útil e benéfico quanto possível, mas que acidentalmente pode
colaborar para a deterioração da cultura, é o rádio. Ninguém duvida do
grande valor desse novo instrumento para o comércio intelectual. O sinal
de alerta, a música e as notícias chegando aos lugarejos mais isolados, eis
as bênçãos que o rádio nos trouxe. Mas enquanto instrumento de
comunicação, o rádio, em sua ação diária, significa também o regresso a
uma forma empobrecida de transmitir ideias. Não se trata somente dos
vícios mais conhecidos do ouvinte comum: a desatenção, a futilidade, a
inconstância com o que toda a informação se dissolve num amontoado de
sons. O rádio, mesmo ao evitarem-se essas faltas, é uma forma morosa e
limitada de absorver conhecimento. Para o ritmo dos nossos tempos, a
palavra falada é demasiado ineficiente. A leitura mostra-se mais rentável
do ponto de vista cultural. O espírito do leitor assimila com muito mais
rapidez, escolhe constantemente, tonifica-se, desconsidera, detém-se e
medita; perfaz em um minuto mil movimentos cognitivos que ao ouvinte
são negados.

Um entusiasta do uso do rádio e do cinema no ensino prognosticou, em


obra intitulada The decline of the written word [38], um futuro próximo em
que a criança será educada pela imagem e a fala. Tal mudança seria um
passo decisivo rumo à barbárie. Não haveria modo mais eficaz de
desestimular na juventude o pensamento, mantê-la em um estado pueril e
condená-la, ademais, a um profundo enfastiamento.

A barbárie pode vir tanto acompanhada de um acentuado progresso


tecnológico quanto da instrução pública geral. Correlacionar a queda do
analfabetismo a uma alta do nível cultural é ingenuidade que o nosso
tempo já não autorizaria. Certo grau de escolaridade não garante de forma
alguma a posse da cultura. Se analisarmos bem a condição intelectual
predominante hoje em dia, será difícil imputar a um pessimismo exagerado
as considerações e os termos que usarei a seguir.

Delírio e confusão grassam em toda a parte. Mais do que nunca, os


homens mostram-se escravos de uma palavra, de um lema sob cuja
sugestão podem chegar ao extremo de matarem uns aos outros — e assim,
literalmente, dar cabo do assunto. O mundo está repleto de ódio e
desentendimento. Não há escala com que medir a porcentagem de
idiotizados e saber se esta é maior do que outrora, mas hoje a estupidez
tem mais poder de fazer mal e ocupa posições de maior destaque. Com
esses perversos semicivilizados já não estão surtindo efeito os freios
benfazejos da tradição, das formalidades e do culto. Mas o pior de tudo é
essa “indifférence à la vérité” [39] visível em todo lugar e que parece, na
defesa aberta da fraude política, ter chegado ao apogeu.

A barbárie principia quando, numa antiga cultura que lograra ao longo


dos séculos elevar-se à clareza e à pureza do pensamento e do conceito, os
vapores do mágico e do fantástico, brotando ao calor das paixões,
obnubilam o entendimento. Quando, em suma, o mythos expulsa o logos!

Cada vez está mais claro que a nova doutrina da vontade de poder e do
heroísmo, com sua glorificação da existência às custas do conhecimento,
representa justamente aquelas tendências que para o partidário do espírito
significariam a rendição à barbárie. Pois bem, o que essa filosofia vital
exalta é de fato o mythos em detrimento do logos. Para ela, barbárie não
pode ser algo pejorativo. O próprio termo perde o seu sentido. É tudo o
que os novos senhores desejam.

Os grandes deuses deste tempo — mecanização e organização —


trouxeram a vida e a morte. Se fizeram o mundo inteiro interligado, se
puseram todos os lugares em contato, criaram em toda parte a
possibilidade de colaboração, de concentração de esforços, de mútuo
entendimento, por outro lado acarretaram aprisionamento, paralisia e
inflexibilidade do espírito através dos instrumentos a ele proporcionados.
Conduziram o ser humano do individualismo na direção do coletivismo, o
qual a gente aceitou de bom grado, mas, sem ser orientada, apenas para
consumar o mal que todo coletivismo implica — a negação da
personalidade, a escravidão do espírito —, sem sequer ter entrevisto ou
compreendido o seu possível bem. O futuro trará a crescente mecanização
da sociedade baseada exclusivamente nos critérios de utilidade e poder?

Foi assim que o viu Oswald Spengler, ao estabelecer, como estágio


final de uma Kultur esgotada, o período da Zivilisation, em que todos os
valores anteriores, vivos e orgânicos, são substituídos pelo controle exato
dos meios de poder e pelo frio cálculo dos efeitos desejados. O fato de a
possível aplicação de tais meios conduzir à decadência da sociedade não o
preocupa em seu pessimismo inabalável. Decadência para ele é o destino
inexorável de qualquer cultura.

Examinando mais de perto o esquema da sombria visão de Spengler,


vemos que não lhe faltam inconsistências que parecem comprometer a sua
validade até mesmo aos olhos do autor. Em primeiro lugar, os parâmetros
com que Spengler mede as ações humanas estão ainda estreitamente
ligados a certa sensibilidade romântica. Seus conceitos de “grandeza”, de
“vontade do mais forte”, de “instintos sadios”, “alegria saudável e
guerreira”, “heroísmo nórdico” e “cesarismo do mundo fáustico” estão
arraigados na ingenuidade romântica. Parece-me, ademais, inegável que o
curso da civilização ocidental nestes 17 anos, desde a publicação de A
Decadência do Ocidente, não correspondeu de forma alguma ao
predomínio crescente da Zivilisation, tal como projetado naquele livro. É
certo que a sociedade avançou nessa direção, i.e., rumo à potencialização
técnica e ao cálculo frio na obtenção dos efeitos desejados, porém ao
mesmo tempo passou a abrigar um tipo humano mais indisciplinado, mais
pueril, mais impulsivo, guiado pelo sentimento. Os homens que nos
governam em nada se parecem com as tais águias de aço imaginadas por
Spengler. Poderíamos talvez conciliar as discrepâncias desta maneira: em
linhas gerais, o mundo reproduz o quadro de uma Zivilisation, porém
acrescido de algumas doses de sandice, mentira e crueldade, sem nunca
faltar o sentimentalismo, elementos estes que Spengler não havia pintado.
Mesmo aquele seu nobre “predador”, como tipo humano, não traz
nenhuma dessas características.

Em momento algum ficou claro para mim o porquê de Spengler ter


nomeado o homem superior moderno com base no personagem teatral
(aliás, pouco feliz enquanto criação dramática) escolhido por Goethe para
ser protagonista de sua famosa dilogia. “Cultura fáustica”, “técnica
fáustica”, “nações fáusticas”? Ora, de Fausto pode-se dizer tudo, menos
que era um predador. Em todo caso, não foi assim que Goethe o concebeu.
A aplicação da figura de Fausto ao mundo atual só faria sentido de um
ponto de vista romântico.

Ao fim e ao cabo, sob o nome de uma “Zivilisation” marcada pela


selvageria e a crueldade, o que Spengler nos descreve é com efeito a boa e
velha barbárie. Devemos por isso partilhar de seu fatalismo? Não há
nenhuma saída, nenhuma salvação?

Quem sabe o passado não nos reserva algum consolo. Olhando para os
dois milênios que nos precederam e neles distinguindo as unidades
históricas a que chamamos civilizações, percebemos que os períodos de
florescimento foram sempre muito breves. O processo inteiro de formação,
ascensão e declínio cumpre-se dentro de alguns séculos. Uma primavera
de dois séculos seria, na medida em que nossos critérios forem confiáveis,
o caso mais comum. No caso da Grécia antiga, foram os séculos quarto e
quinto antes da nossa era. No caso de Roma, o primeiro século antes e o
primeiro depois de Cristo (apesar de algumas opiniões divergentes). No
caso da Idade Média, os séculos XII e XIII. No caso da Renascença e do
Barroco (períodos que podem, antes devem, ser considerados em
conjunto), os séculos XVI e XVII foram os de maior esplendor. Por mais
imprecisas e mesmo arbitrárias que sejam essas periodizações, o fato é que
o auge nunca dura muito tempo. Podemos considerar os séculos XVIII e
XIX como o período da cultura moderna? Nesse caso, estaríamos nos
avizinhando do fim da cultura que conhecemos e talvez também do limiar
de uma nova, por nós desconhecida. Provavelmente uma cultura que ainda
levará muito tempo até ganhar feição própria. Em se tratando de
civilizações, não cabe dizer “le roi est mort, vive le roi” [40].

A impressão de um fim iminente tornou-se-nos sentimento corriqueiro.


Já o dissemos antes: o prolongamento por tempo indeterminado da
civilização que conhecemos não é apenas impossível de imaginar, mas
nem sequer algo muito promissor.

Mas eis que, debruçados sobre a história, entramos em especulações


ociosas, sem meios de chegar a uma conclusão. A despeito de todos os
riscos de um naufrágio, a humanidade atual, à exceção de uns poucos
fatalistas, declara a plenos pulmões: nós não naufragaremos! Este mundo,
com todas as suas misérias, é belo demais para que o deixemos afundar na
noite da degeneração humana e da cegueira mental. Já não faz parte de
nosso horizonte de expectativas a consumação iminente dos séculos. Esse
patrimônio de mil gerações, chamado a cultural ocidental, foi-nos confiado
para que o nosso gesto provisório o transmitisse às gerações vindouras,
conservado, inteiro, idealmente melhorado e acrescido, ou um pouco mais
enxuto, se for necessário, porém sempre tão puro quanto permitirem
nossos mais sérios esforços. A confiança no trabalho, a crença na
possibilidade de salvação, o ânimo para lutar por ela, isto ninguém pode
nos tirar. Não perguntamos pelos que hão de colher o fruto do nosso
trabalho. Conta-nos Heródoto que o rei Neco, do Egito, queria abrir uma
passagem pelo istmo entre o Nilo e o Mar Vermelho. Contaram-lhe que já
mais de 120.000 homens haviam morrido nessa faina, e que de nada
adiantara. O rei então consultou um oráculo, que lhe respondeu: “Estás
trabalhando para o estrangeiro (ó Cambyses, ó Lesseps!)”, de modo que o
rei em seguida desistiu do projeto. Nós, ao contrário, ainda que advertidos
por cem oráculos, sem hesitar retrucaremos: “Que seja, a obra continua”.
Onde achar motivos de esperança? De onde poderia vir a salvação?
Como alcançá-la?

Os motivos de esperança são dos mais genéricos, previsíveis, banais se


quiserem. Em qualquer organismo são os sintomas de distúrbio,
anormalidade e deterioramento os que mais chamam a atenção, seja do
paciente, que os sofre na pele, seja do médico, que os examina. Os
sintomas mórbidos da nossa cultura são gritantes e dolorosos. Ou talvez
um fluxo vital, mais saudável do que se supõe, esteja percorrendo o grande
corpo da humanidade. A febre pode afinal arrefecer.

Nos grandes processos da natureza e da sociedade, os estertores finais


e as dores do parto vêm juntos. Sempre o novo cresceu a partir do velho.
Porém o contemporâneo dos fatos, por mais que se esforce, é incapaz de
discernir o que é verdadeiramente novo, o que está destinado a prevalecer.

A toda ação decisiva segue-se uma reação. Quando a reação parece


demorar, devemos ser pacientes com a história. Tendemos a pensar que,
em nossa sociedade de todo em todo orgânica e estruturada, com a sua
articulação e a interdependência, ação e reação se alternariam mais
depressa do que no passado. Mas pode dar-se o contrário. Justamente
porque aumentaram exponencialmente os meios de manter um dado nível
de complexidade, a reação tardaria mais a vir. É possível que no futuro
vejam o período inteiro em que vivemos, cerca de meio século, como a
ressaca da Grande Guerra.

A história é incapaz de prever qualquer coisa, exceto uma: que as


grandes mudanças nunca se dão como previsto. Sabemos que as coisas
tomam um rumo diferente daquele projetado. O fecho de ouro de uma era
é sempre algo que será identificado com o novo, o inesperado, o
anteriormente inimaginável. Isto que não se chega a conceber com clareza
pode muito bem ser o fator que trará a ruína. Todavia, enquanto houver
incerteza entre ruína e salvação, é possível, e, portanto, necessário,
mantermos a esperança.

Há mesmo certos indícios de que esse fator desconhecido se revelará


favorável. Diversas tendências seguem intactas e, a despeito das forças
destrutivas, apontam para uma sólida e renovada civilização. Quem não
reconhece que, nos domínios ainda não afetados pelos males hodiernos, ou
mesmo sob a pressão destes, existem agentes que, de diversas maneiras,
com meios cada vez mais eficazes, com dedicação incondicional,
colaboram para o bem da humanidade? São os que constroem e fabricam,
pensam e criam, guiam e servem, zelam e preservam. Ou aqueles que
simplesmente vivem, como os pequenos e humildes, sem tomar
conhecimento da luta travada pela civilização. São os muitos homens de
boa vontade que, passando ao largo da estupidez e da violência, seguem o
seu caminho em paz, formando parte considerável da nossa vida, sem fazer
alarde e colaborando com o futuro do modo que lhes é possível.
Refugiaram-se em uma zona espiritual a que a maldade do tempo não tem
acesso e onde as suas mentiras não têm valia. Não cedem à prostração e ao
desespero, por mais que a noite se aproxime, no caminho de Emaús.

Há uma comunidade espalhada pelo mundo inteiro, pronta a aceitar o


que houver de bom no novo, mas não a desfazer-se do que passou pela
prova do tempo. Sem estarem ligados por símbolos e palavras de ordem,
formam uma comunidade de espírito.

Um forte indício da existência deste impulso em busca de salvação está


no seguinte. A nações vêm, mais do que nunca, encastelando-se na própria
soberania. Alguns defendem abertamente que não reconhecem nem
querem reconhecer nada além disso, e o internacionalismo em mais de um
país foi oficialmente banido. Por outro lado, percebe-se que, em virtude
desse mesmo profundo isolamento dos estados, as suas relações se dão
cada vez mais na forma de uma política internacional. Uma política
internacional com os meios mais inadequados, fazendo as acrobacias mais
arriscadas, sempre na iminência de um desastre, mas ainda assim uma
política internacional que ao menos é posta em prática, à qual já ninguém
pode se furtar, como se a necessidade de concórdia superasse todas as
divisões e reprimisse toda arbitrariedade. Como se Deus misericordioso
nos sorrisse e dissesse: Aguentem firme, um dia vocês vão aprender.

Ter esperança, portanto, é legítimo. Mas de onde virá a salvação? Do


“progresso” em si sabemos que não se pode esperá-la. Já estamos bastante
“progredidos” na capacidade de degenerar o mundo e a sociedade.
Avanços na técnica e nas ciências, por mais indispensáveis e edificantes,
não salvarão a cultura. Tecnologia e ciência não bastam como alicerce da
vida cultural. A enfermidade espiritual está numa camada demasiado
profunda para que o pensamento crítico e a razão instrumental possam por
conta própria trazer de volta a saúde.

Aqui a questão nos conduz a um terreno que havíamos até agora


evitado: o da interdependência entre crise espiritual e relações
socioeconômicas. Caso não tratemos esse ponto, ficará a impressão de que
tal interdependência nos passou despercebida. É necessário, pois, um
comentário sobre essa importante ligação.

Para muitos pensadores contemporâneos, a solução para o problema


cultural está nas questões socioeconômicas. E não são somente os devotos
do marxismo que pensam assim. A influência do pensamento econômico
em nosso tempo é tamanha que muitos, conquanto não comunguem do
credo marxista, não têm dúvida alguma de que o problema espiritual
deriva de deficiências socioeconômicas. Tal convicção baseia-se sobretudo
na ideia de que as intensas mudanças e perturbações no terreno
socioeconômico, já parte de nosso cotidiano, demonstram que vivemos em
um período de transformação fundamental da estrutura da sociedade, uma
“Zeitalter des Umbaus” (“era da reconstrução”), como sem pestanejar a
definiu Karl Mannheim. Os sinais que atestariam tal transformação são de
fato impressionantes. Após séculos de uma situação relativamente estável,
vemos agora estremecer tudo o que, nos domínios da produção, do
comércio, das finanças, do trabalho e da autoridade estatal, nos parecera
sólido e permanente. Os princípios da propriedade privada e da livre
empresa são questionados. A conclusão seria que estamos nos
aproximando de uma forma diferente de sociedade, construída sobre bases
novas.

Essa ideia de uma transformação estrutural, naturalmente, funda-se em


grande medida no conhecimento de paralelos históricos. Já por duas vezes
o Ocidente passou por transformações dessa magnitude: na passagem do
mundo antigo para o feudal e deste para o capitalismo. Mas ocorre que,
vistos mais de perto, nenhum nem outro exemplo, para fins de comparação
com os eventos atuais, é assim tão proveitoso quanto parece em forma
simplificada e resumida — procedimento, aliás, inevitável nesses casos.
Em primeiro lugar, o processo de feudalização estendeu-se por oito ou
nove séculos; já estava em curso durante a vigência do Império Romano e
não se completou antes do século XI. Já a passagem da sociedade feudal
para a burguesa e capitalista abarcou todo o período entre cerca de 1100
até 1900 e envolveu uma transformação menos radical do que comumente
se afirma.

Para uma mudança tão repentina como a que estaríamos vivendo, a


história não oferece paralelo algum. As duas transformações estruturais
anteriores, além disso, não foram tão profundas quanto a que se espera em
nosso caso. Ambas ocorreram sobre uma base permanente, os princípios
da propriedade privada e do direito sucessório familiar. E ao analisarmos
bem, todas as grandes culturas de que temos notícia (sendo o comunismo
do Estado Inca algo duvidoso) se estabeleceram sobre esses mesmos
alicerces. Portanto, o que a lição da história nos diz é que a ideia de uma
súbita e profunda transformação estrutural em nossa sociedade pertence à
categoria das hipóteses ousadas.

Pode-se argumentar que essa transformação estrutural, no caso de estar


mesmo em curso, se realizaria por si mesma, e assim daria à luz a sua
própria forma de cultura. Assim seria de acordo com o velho materialismo
histórico. A maioria dos economistas e dos sociólogos, não obstante,
acredita que os tempos atuais, enquanto marcados pela aguda percepção
dos próprios problemas, o desejo consciente de os resolver e a posse dos
meios necessários, não podem ser comparados a épocas anteriores, de
evolução cultural mais espontânea. O paciente mesmo trata de si. É
possível uma sociedade, fazendo bom uso de suas forças, regenerar e
aperfeiçoar a si mesma, definir o caminho a ser seguido, desenvolver e
aplicar os instrumentos necessários? Muitos creem que sim. Acredita-se no
planejamento e na ordem. Vê-se como algo factível a automatização dos
processos de produção, intercâmbio e consumo, de modo a anular a ação
desestabilizadora dos impulsos humanos. Há gente que sonha com uma
sociedade onde a rivalidade, a aventura e o gosto pelo risco seriam
abolidos, onde o egoísmo individual se converteria em um vago e
inofensivo egoísmo coletivo, sempre a chocar-se, para onde quer que se
volte, com uma resistência equivalente. Ora bem, tal estado de coisas, caso
seja mesmo implementado, merecerá o nome de civilização?

Aos olhos dos cientistas políticos, os atrativos da ordem e do


planejamento não se limitam à recuperação da economia, mas incluem
também a possibilidade de permitir aos intelectuais criar, de acordo com as
próprias ideias, uma nova sociedade. Sempre que o discurso político fala
em “renovação”, recorre a uma metáfora velha, a do Estado como
organismo, a esperança de que refloresça. Essa ideia do Estado como
organismo, compreendida de modo correto, encerraria aquelas mesmas
qualidades positivas que mencionamos ao definir o conceito de cultura:
equilíbrio, harmonia, aspirações comuns, serviço, honra, lealdade. Há sem
dúvida um profundo sentido cultural na nostalgia moderna de um
ordenamento político da sociedade em estamentos, i.e., em unidades vivas,
em segmentos naturalmente articulados. O Estado que encarnasse tal
organismo, animado pelo desejo de servir e estruturado em obrigações
mútuas, de sorte que os indivíduos pertencentes aos diversos “estamentos”
se sentissem como em casa dentro da sociedade e se sentissem “eles
mesmos”, teria, só com essa ordenação, construído pelo menos a base da
cultura.

Porém seria necessário que o desejo de servir representasse algo maior


que a obediência servil a um poder que busca apenas manter e fortalecer a
si mesmo e que tem como única função garantir a segurança da
comunidade. Para chegar à verdadeira cultura, tal serviço não basta. Seria
preciso “servir em novidade de espírito”.

Sendo tanto a transformação estrutural quanto a ordem e o


planejamento incapazes de trazer um novo espírito, seria o caso de nos
voltarmos para as igrejas? É provável que, das perseguições que vêm
sofrendo atualmente, saiam fortalecidas e purificadas. É concebível que,
no futuro, as religiosidades latina, germânica, anglo-saxã e eslava se
encontrem e se unam sobre a rocha do cristianismo, em um mundo que
compreenda a justeza do islã e a profundidade do Oriente. Mas as igrejas,
enquanto organizações, só poderão triunfar na medida em que purificarem
o coração dos fiéis. Preceitos e imposições por si sós não poderão debelar
o mal.

38. N.T.: “O declínio da palavra escrita”. Infelizmente, não foi possível


identificar o autor, data ou local da publicação. voltar

39. N.T.: “indiferença para com a verdade”. voltar

40. N.T.: “O rei está morto. Longa vida ao rei!” voltar


XXI. CATARSE

A salvação não há de vir de uma simples retomada da ordem. As bases


da cultura são de natureza diversa daquilo que pode ser estabelecido ou
mantido pelos órgãos da sociedade enquanto tais, sejam povos, Estados,
igrejas, escolas, partidos ou associações. O que é preciso é uma purificação
interior dos indivíduos. Deve haver uma mudança da própria condição das
pessoas, das suas disposições imediatas e permanentes, noutras palavras,
do seu habitus espiritual.

O mundo hodierno está bem adiantado no rechaço dos valores


absolutos. Perdura nele não mais que um resquício da distinção nítida entre
bem e mal. A seus olhos, toda a crise em que a civilização agora se
encontra reduz-se a um simples conflito entre correntes contrárias, a uma
disputa pelo poder. E, contudo, a única possibilidade de esperança está em
saber discernir, nessa mesma disputa, ações intrinsecamente boas e
intrinsecamente más. A consequência disto é que a salvação não se
identifica com a vitória de um Estado, um povo, uma raça, uma classe. A
subordinação dos critérios de certo e errado a um objetivo ou interesse
próprio mataria nos homens o senso de responsabilidade.

É cada dia mais urgente o dilema que a nossa época nos propõe.
Reparem no estado de confusão política que prevalece no mundo. Em toda
parte, complicações implorando por alguma solução. Ao mesmo tempo,
um observador imparcial admite que uma solução que não prejudique os
interesses de ninguém, que não frustre as demandas razoáveis de ninguém,
nesta altura é algo praticamente impensável. As minorias nacionais, a
imposição de fronteiras artificiais e impraticáveis, a proibição de
unificações naturais e necessárias, a tensão insustentável nas relações
econômicas — tais situações não se prolongam sem o acirramento que
converte cada uma delas em um barril de pólvora pronto para explodir. E
tanto mais porque o confronto aí se dá entre direito e direito. Só há duas
saídas possíveis. Uma é a violência armada. A outra é um acordo baseado
em um amplo esforço de boa-vontade internacional, em uma renúncia
recíproca às próprias exigências, ainda que razoáveis, e no respeito ao
direito e interesse alheios. Um acordo, em poucas palavras, baseado em
uma combinação de generosidade e justiça.
O mundo hoje parece estar mais afastado destas virtudes do que em
muitos séculos jamais esteve ou acreditou estar. Muitos não admitem a
justiça e a paz internacionais sequer como princípios superiores. A
doutrina do poder estatal ilimitado inocenta de antemão todo e qualquer
agressor. Sem reação, o mundo vê que continua a ser ameaçado pela
loucura e a devastação da guerra, que traz em seu bojo novos e mais
graves descalabros.

Forças públicas operam para evitar o desastre, para alcançar a


concórdia e o diálogo. Qualquer progresso feito pela Liga das Nações, por
mais insignificante que pareça, por mais que Marte dele se ria, tem hoje
mais valor do que toda a galeria da glória na terra e no mar. Porém, a
longo prazo, a atuação desse sensato internacionalismo não basta se o
espírito não mudar. Tal como a volta da prosperidade e da ordem por si só
não traria uma purificação da cultura, do mesmo modo esta não brotará
espontaneamente da manutenção da paz pela política internacional. Uma
nova cultura só poderá frutificar no seio de uma humanidade purificada.

Catarse: assim os gregos chamavam ao estado de espírito resultante da


contemplação do espetáculo trágico, o silêncio do coração em que a
piedade e o medo se confundem, a purificação da alma que brota da
consciência de um fundamento mais profundo das coisas. Após isso,
estamos novamente prontos para o cumprimento rigoroso do dever e a
aceitação do destino. Após isso, rompe-se o feitiço da hybris, tal como se
vê nas tragédias. Então a alma, a salvo das paixões violentas da vida, é
conduzida ao apaziguamento.

A limpeza espiritual de que o nosso tempo precisa implica uma nova


ascese. Os portadores de uma cultura purificada deverão ser como os que
acabam de despertar ao romper da aurora. Deverão sacudir de sua mente
os sonhos maus da noite que passou. Sonhos de almas emersas da lama e
que querem aí tornar a mergulhar. Sonhos de cérebros com nervos de aço e
de corações de vidro. Sonhos das garras em que se haviam transformado
suas mãos e dos caninos despontando entre os lábios. Deverão sempre
lembrar-se de que o homem tem a escolha de não se tornar uma fera.

A nova ascese não significará tornar-se um ermitão com os olhos


postos sempre no céu, mas adquirir o autodomínio necessário para
considerar à distância o jogo de poder e prazer. Há de atenuar-se um pouco
essa exaltação da existência. Deveremos recordar-nos como, já em Platão,
a vida do sábio era vista como uma preparação para a morte. Uma
orientação firme da vida para a morte enaltece o uso das forças vitais.

A nova ascese deverá consistir em uma entrega. Entrega àquilo de mais


elevado que se possa conceber. Isso exclui o Estado, a classe, a nação,
como também a própria existência individual. Felizes aqueles para quem
tal princípio só se concebe sob o nome de alguém que um dia falou: “Eu
sou o caminho, a verdade e a vida”.

A postura espiritual necessária à recuperação da cultura não falta de


todo no ativismo político atual, porém está contaminada, emaranhada em
um puerilismo extremo, abafada pelos urros do animal oculto, maculada
pela falsidade e a manipulação. À nossa juventude que, de um modo ou de
outro, terá de levar adiante o próximo estágio da cultura, não falta a
disposição de entregar-se, de servir, de suportar privações, de obrar
façanhas e mesmo de oferecer-se em sacrifício. Mas o enfraquecimento da
capacidade de julgar e o desarraigamento da moral impedem-lhe de
compreender o verdadeiro significado do princípio pelo qual deveriam
lutar.

Não é fácil determinar em que consistiria essa indispensável


purificação dos espíritos. Devemos passar através de camadas sempre mais
profundas até nos tornarmos dóceis finalmente? Ou estaria já em curso a
unificação dos homens de boa vontade deste mundo, abafada sob a ruidosa
confusão dos dias atuais? Mais uma vez, não se trata apenas do fomentar o
internacionalismo. Porém é de suma importância que continue este
paciente trabalho de preparação espiritual para tempos melhores, tal como
é promovido em muitos lugares do mundo, a cargo de pequenos grupos de
homens que partilham o mesmo ideal ou de organizações internacionais de
caráter religioso, político ou cultural em amplo sentido. Onde quer que
brote uma planta, por frágil que seja, do verdadeiro internacionalismo,
amparai-a, regai-a. Regai-a com a água viva da própria consciência
nacional, contanto que seja água limpa. Assim ela há de crescer. O
internacionalismo — palavra que, aliás, pressupõe a manutenção das
nacionalidades, contanto que tolerantes e sem fazer de toda diferença uma
desavença — pode ser o ponto de partida de uma nova ética em que a
oposição entre coletivismo e individualismo será abolida. Trata-se de uma
quimera, imaginar que um dia o mundo possa vir a ser tão justo? Em todo
caso, deveríamos manter o ideal mais alto possível.
Todavia aqui, com esses desejos e expectativas de uma purificação dos
espíritos, de uma catarse à guisa de conversão, contrição, renascimento,
não estaríamos nós contradizendo o que no início deste volume havíamos
estabelecido? Em épocas anteriores à nossa, ali dizíamos, esperava-se, na
ânsia por uma sociedade melhor, que a salvação viesse de uma inflexão, de
um entendimento, de uma retomada da consciência, como uma súbita e
consciente guinada para o bem. A nossa época, por outro lado, sabe que as
grandes mudanças espirituais e sociais se realizam somente através de um
desenvolvimento gradual, às vezes precipitado por algum evento
extraordinário. Pois bem, e agora estamos aqui a pedir e a esperar uma
inflexão e mesmo, em certo sentido, um retorno?

Encontramo-nos de novo diante da antinomia, que determina a


capacidade de julgar com um limite que é também um impasse. Assim,
somos obrigados a reconhecer um quinhão de verdade naquela esperança
antiga. Sim, deve haver a possibilidade de uma conversão e de uma
reviravolta na marcha da civilização, sobretudo quando se trata do
reconhecimento ou redescoberta de valores permanentes, à margem do
fluir incessante do desenvolvimento e da mudança. É com tais valores que
estamos lidando agora.

Um tempo de grande pressão intelectual, como o em que vivemos, é


mais fácil de suportar aos velhos do que aos moços. O velho sabe que lhe
basta carregar o fardo da época por mais um trecho. Nota com resignação
como as coisas eram antes, ou pareciam ser, lá quando começou a carregá-
lo, e como agora estão se transformando. O seu ontem e o seu amanhã, por
assim dizer, confluem. Temores e preocupações fazem-se mais leves com
a proximidade da morte. A esperança e a confiança, a vontade e o ânimo
de agir, tudo isso ele deposita nas mãos dos que têm por diante a tarefa de
seguir vivendo. Para estes ficam as mais sérias obrigações: de julgar, de
escolher, de trabalhar, de agir. Sobre eles recai a grave responsabilidade. A
eles será revelado o mistério do porvir.

O autor destas páginas conta-se entre os muitos que têm o privilégio


de, seja no trabalho ou na vida privada, estar em permanente contato com a
juventude. A sua convicção é a de que a geração atual não fica atrás das
anteriores em termos de aptidão para a difícil tarefa de viver. Toda a
dissolução de vínculos, confusão de ideias, dispersão de pensamento e
esbanjamento de energias com que ela vem convivendo desde o berço, não
foram capazes de tirar-lhe a força, de conduzi-la à inércia nem à
indiferença. Pelo contrário, é uma mocidade franca, generosa, espontânea,
pronta para o desfrute tanto quanto para a privação, resoluta, briosa e
muito perspicaz. Caminha mais leve do que a gente de antes.

A esta nova geração toca a tarefa de tomar as rédeas do mundo, de não


permitir que naufrague em sua arrogância e loucura, de ainda uma vez
insuflar-lhe um espírito novo.

FIM
Notas

i. Decadentismo, corrente estética de matiz pessimista, geralmente


associada à boêmia europeia e ao simbolismo e contraposta ao
parnasianismo. Na literatura, teve expressão principalmente nas obras de
Paul Verlaine, Oscar Wilde, Pierre Louÿs e Joris-Karl Huysmans. voltar

ii. William MacKinley, presidente dos Estados Unidos, assassinado em


1901 pelo militante anarquista Leon Czolgosz. Foi sucedido por Theodore
Roosevelt. voltar

iii. Conferência da Paz, primeira de duas conferências que tiveram lugar


em Haia (em 1899 e 1907), donde também chamadas Convenções ou
Conferências de Haia. voltar

iv. Guerra dos Bôeres, conflito entre o exército britânico e colonos


holandeses e franceses (os "bôeres") pelo território do Transvaal (ou
"República Sul-Africana"). Na primeira fase do conflito (1880-1881), a
vitória dos bôeres garantiu a independência da chamada República do
Transvaal. Entretanto, o território foi definitivamente anexado pelo
império britânico na segunda fase do conflito (1899-1902), transformando-
se na Província do Transvaal, com capital em Pretória. voltar

v. Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), disputa armada entre as duas


potências imperiais por territórios chineses na Manchúria. A derrota
fragorosa sofrida pelos russos acabou por impor o Japão como potência
militar e por fragilizar ainda mais o regime do Czar Nicolau II, dando
ensejo à chamada Revolução Russa de 1905.voltar

vi. Oswald Spengler (1880-1936), historiador e filósofo alemão


notabilizado pela publicação de Der Untergang des Abendlandes (“A
decadência do Ocidente”), publicado no Brasil em edição condensada. voltar

vii. Karl Mannheim (1893-1947), sociólogo húngaro de expressão alemã,


autor, entre outros, de Sociologia e Utopia. Em 1943, já exilado na
Inglaterra, publicou um livro semelhante ao que o leitor tem em mãos,
intitulado Diagnóstico de nosso tempo. voltar

viii. Assignados, a princípio um título – lastreado por bens confiscados –


emitido pelo governo revolucionário francês, posteriormente passou a
valer na prática como moeda. A emissão em excesso desses papéis
provocou sua drástica desvalorização. voltar

ix. Bronislaw Kasper Malinowski (1884-1942), antropólogo polonês


fundador da escola funcionalista, autor de Uma teoria científica da
cultura. voltar

x. Epimênides, filósofo e vidente grego do séc. VI a.C. que, segundo a


lenda, teria dormido por quase meio século dentro de uma caverna. voltar

xi. Willem de Sitter (1872-1934), astrônomo e físico holandês do séc. XX,


colega de Einstein, com quem escreveu artigos em coautoria.voltar

xii. Jean Buridan, ou Joannes Buridanus (1300-1358), sacerdote, filósofo


e físico francês formulador da teoria do ímpeto, que prefigura os conceitos
de inércia, momento linear e aceleração. O dilema do asno, incapaz de
decidir entre dois montes de feno idênticos e postos à mesma distância,
refere-se a discussões suscitadas por sua teoria moral.voltar

xiii. Houston Stweart Chamberlain (1855-1927), teórico inglês


naturalizado alemão defensor da raça ariana, muito apreciado por Adolf
Hitler.voltar

xiv. Ludwig Schemann (1852-1938), tradutor e divulgador alemão das


obras de Joseph Arthur Gobineau.voltar

xv. Ludwig Woltmann (1801-1907), antropólogo alemão adepto do


arianismo e teórico do marxismo.voltar

xvi. Madison Grant (1865-1937), ecologista e advogado estadunidense


adepto da eugenia.voltar

xvii. Theodore Lothrop Stoddard (1883-1950), historiador e cientista


político eugenista estadunidense que exerceu grande influência sobre a
intelligentsia nazista. voltar

xviii. Nicolau de Cusa, ou Nikolaus von Kues (1401-1464), cardeal,


teólogo e filósofo neoplatônico alemão, autor de Da douta ignorância.voltar

xix. Max Ferdinand Scheler (1874-1928), filósofo alemão ligado à


fenomenologia, autor de Visão filosófica do mundo e Da reviravolta dos
valores. voltar

xx. Georges Sorel (1847-1922), teórico francês da ação política radical,


autor de Reflexões sobre a violência. Deixou legado polêmico,
influenciando autores ligados ao fascismo e ao comunismo. voltar

xxi. João Duns Escoto, ou Scotus (1266-1308), frade franciscano, teólogo


e filósofo escolástico escocês, apodado Doctor Subtilis, foi mentor de
Guilherme de Occam. voltar

xxii. Richard Müller-Freienfels (1882-1949), psicólogo e pedagogo


alemão, autor de obras de vulgarização científica. voltar

xxiii. Hugo Grócio, ou Grotius (1583-1645), jurista holandês, um dos


criadores do moderno direito internacional, autor de Do direito da guerra e
da paz. voltar

xxiv. Cornelis van Vollenhoven (1874-1933), jurista e professor holandês


especializado em direito colonial. voltar

xxv. Gerhard Ritter (1888-1967), historiador nacionalista alemão, biógrafo


de Lutero, considerado o último representante da chamada "escola
idealista alemã". voltar

xxvi. Friedrich Meinecke (1862-1954), historiador alemão referência na


primeira metade do séc. XX, pioneiro do campo da moderna história das
ideias. Autor de A ideia de Razão de Estado na história moderna. voltar

xxvii. O Anel do Nibelungo, tetralogia operística composta por Richard


Wagner, baseada em sagas da mitologia nórdica.voltar

xxviii. Edda, antiga compilação de histórias da mitologia nórdica. O


fragmento citado foi extraído do primeiro canto, chamado Völuspá, que
mescla cosmogonia e profecia. voltar

xxix. Ossian, pseudônimo adotado pelo poeta pré-romântico escocês James


Macperson (1736-1796) quando publicou um épico pretensamente
compilado da tradição oral gaélica e traduzido para o inglês.voltar

xxx. John Ruskin (1819-1900), crítico de arte, educador e polemista inglês,


exerceu grande influência nos meios artísticos e literários, além de inspirar
diversos movimentos utópicos, notadamente os alinhados ao chamado
"socialismo cristão". Autor, entre outros, de Economia política da arte e A
lâmpada da memória. voltar

xxxi. Dante Gabirel Rossetti (1828-1882), poeta, tradutor e artista plástico


inglês, fundou com William Morris a "Irmandade Pré-Rafaelita", que
exerceu grande influência sobre movimentos esteticistas europeus como o
Arts & Crafts. voltar

xxxii. Normandie, paquete francês, foi o maior navio para transporte de


passageiros do mundo no seu tempo. Recebeu o Prêmio da Flâmula Azul
em 1935, por ter feito a travessia do Atlântico mais rápida até então. voltar

xxxiii. Irving Babbitt (1865-1933), escritor e crítico literário estadunidense


ligado ao liberalismo e ao pensamento conservador. É autor de Rousseau e
o Romantismo e Democracia e liderança. voltar

xxxiv. H. G. Wells (1866-1946), escritor inglês notável por seus livros de


ficção científica. Embora em sua obra os comentários à personalidade dos
irlandeses sejam frequentes, o romance ao qual alude o autor é,
provavelmente, The shape of things to come ("A forma das coisas que
virão"), misto de utopia e distopia futurista, publicado em 1933. voltar

xxxv. Filippo Tomasi Marinetti (1876-1944), poeta, editor e confe-rencista


italiano fundador do Futurismo e autor de seus incontáveis manifestos. O
manifesto ao qual o autor se refere é, provavelmente, "Estetica futurista
della guerra", de 1935. Os principais manifestos futuristas podem ser
encontrados em português no livro Vanguarda europeia e modernismo
brasileiro, de Gilberto Mendonça Teles. voltar

xxxvi. Hinos védicos, ou Rigveda, textos canônicos do hinduísmo escritos


em sânscrito védico, tratando tanto da cosmogonia hindu quanto de
preceitos ritualísticos. voltar

xxxvii. Píndaro, poeta grego do século V a.c., autor das Odes


triunfais. voltar
xxxviii. Odilon Redon (1840-1916), pintor e gravurista francês ligado ao
simbolismo, fundou com Paul Gauguin o Salon des indépendants. voltar

xxxix. Francisco de Goya (1746-1828), pintor e gravurista espanhol de


estética barroca e pré-romântica, autor das séries El sueño de la Razón e
Los desastres de la guerra, cuja primeira gravura (Tristes presentimientos
de lo que ha de acontecer) ilustra a sobrecapa deste livro. voltar

xl. Wassily Kandinsky (1866-1944), pintor e professor russo, e Piet


Mondrian (1872-1944), pintor holandês, adeptos do abstracionismo. voltar

xli. Marc Chagall (1887-1985), pintor franco-russo, precursor do cubismo


e do surrealismo. voltar

xlii. José Ortega y Gasset (1883-1955), filósofo e jornalista espanhol autor


dos clássicos Meditações do Quixote e A rebelião das massas. voltar

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