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DES0126 – TEORIA GERAL DO ESTADO II

Docente: Sebastião Botto de Barros Tojal

Aluno: Lucas Iamani Abe

Trabalho Final

São Paulo - SP

2020
Introdução

a) Sobre o autor

José Eduardo Campos de Oliveira Faria é um jurista, sociólogo e professor titular da


Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ingressou na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo em 1968 e seguiu sua carreira acadêmica na mesma Faculdade, se
tornou mestre em Filosofia Política em 1977, doutor em Teoria Geral do Direito em 1981, livre
docente em Filosofia do Direito em 1982 e professor Titular em 1998.
O professor dedicou toda a sua carreira acadêmica ao estudo da relação entre direito e
economia, questões referentes ao ensino jurídico no Brasil, poder, legitimidade, discurso
político e crise de governabilidade. Essa coleção de diplomas e conhecimentos jurídicos o
qualificou para a posição de professor nas melhores universidades de direito no Brasil ( como
a FD-USP e a Escola de Direito da FGV), além disso, a sua obra O Estado e o Direito Depois
da crise o conquistou o prêmio Jabuti de literatura de 2012 na área de Direito.

b) Contexto em que a obra foi escrita

A obra “O Estado e o Direito Depois da Crise” foi escrita após a Crise Financeira de
2008, a pior crise econômica desde a Grande Depressão. A crise eclodiu nos Estados Unidos e
teve repercussões mundiais, afetando a economia de muitos países, essa situação fomentou
mudanças para o modo de organização do Estado e do Direito.

Faria busca identificar e analisar as mudanças que o Estado teve que passar para lidar
com as consequências dessa crise financeira e para se adaptar à realidade contemporânea. A
obra abrange os prejuízos causados pela crise financeira de 2008 e as mudanças de pensamento
provocadas pela crise, além de discorrer sobre as transformações do Estado diante do contexto
de crescimento de um mundo globalizado, criando um cenário de complexidade e
interdependência.

c) A obra e o Estado contemporâneo.

A obra é relevante para entender como as mudanças pelas quais os Estados passaram
após a crise financeira de 2007-2008, expondo as razões pelas quais o Estado contemporâneo é
como ele é hoje. É uma obra que retrata, o papel do Estado na economia, não apenas em um
determinado território, mas em uma ampla perspectiva de um mundo globalizado. Fazendo isso
por meio da análise de vários eventos sociais, históricos e econômicos que surtiram mudanças
no pensamento de como o Estado e o Direito deveriam ser organizados. Em outras palavras,
como o Estado e o Direito foram organizados no mundo contemporâneo após a crise financeira
de 2008 a fim de evitar possíveis crises e preparar o Estado contemporâneo para lidar com essas
possíveis crises? Esta é, essencialmente, a pergunta que Faria responde na obra.

Desenvolvimento

Faria inicia o texto explicando os pensamentos de Keynes e de Schumpeter acerca de


modelos ideais de Estado e suas relações com a economia dos territórios sobre quais governam.
Faria introduz essas ideias na sua obra de teoria do direito e de sociologia da produção
normativa pois crises econômicas e financeiras desencadeiam discussões e reformas (vale
ressaltar que, quanto maior for a crise, as discussões são mais acirradas e mais radicais são as
reformas). Assim, as crises não só geram desafios práticos para os governos, mas também
geram um desafio de natureza teórica conforme ultrapassam os delineamentos tradicionais de
disciplinas, desse modo, não é lidar com problemas sistemáticos não conhecidos, não previstos
ou subestimados na literatura especializada. Portanto, os períodos de crise não são adequados
para pôr a prova esses modelos de Estado apresentados. A Crise Financeira de 2007-2008
mostrou justamente isso, que os modelos macroeconômicos utilizados amplamente até então
possuíam limitações.

Esses modelos, como Faria explica, enfatizavam a perfeição, a racionalidade e a


eficiência dos mercados, mas por causa dessa ênfase aos modelos matemáticos e excessivo
apego ao formalismo jurídico, a ciência econômica e do direito perderam parte significativa de
sua capacidade crítica e de sua sensibilidade analítica, assim, essas ciências tiveram dificuldade
ao lidar com a crise conceitualmente e analiticamente. Essa ênfase ao rigor lógico formal, gerou,
segundo Faria, em uma: “perda de inteligibilidade das interações sociais econômicas e
políticas” (p.37). A teoria econômica e a jurídica deixaram de entender os mercados e as
regulações normativas como construções histórico-sociais, e sim como fatos naturais. Por causa
disso, a ciência econômica acabou se deparando com uma situação paradoxal, na qual a
crescente especialização levava ao desamparo analítico que a ciência econômica não pôde
prever.

Essa crise gerou uma ampla e intensa discussão sobre o papel do Estado e sobre o
alcance das intervenções estatais e da regulação financeira, o que acabou reinserindo os
pensamentos de Keynes e Schumpeter no debate político e econômico. O mesmo problema que
provocou a reinserção das ideias desses pensadores(isto é, a simplificação analítica, o
enviesamento ideológico e o maniqueísmo políticos) também pode ser encontrado no debate
político-jurídico, que é atualmente marcado por uma disputa entre dois grupos. Um que defende
um maior intervencionismo governamental nos mercados e mais controle direto por parte do
Estado, e outro, que defende que o Estado deve circunscrever sua ação à garantia das condições
de estabilidade macroeconômica e à remoção dos obstáculos à livre concorrência, recorrendo a
instrumentos legais de controle indireto.

Tendo explicados esses conceitos, o autor descreve os precedentes à crise financeira de


2008, destacando o aumento da demanda residencial nos Estados Unidos e uma maior
disponibilidade de crédito imobiliário que provocou um relaxamento nos padrões de concessão
de crédito imobiliário. Antes da crise, havia uma alta demanda por imóveis nos Estados Unidos
e então o preço dos imóveis se elevou, gerando um fomento por maior disponibilidade de
crédito e, conforme o crédito aumentava, maior era a demanda, o que gerava ainda mais
financiamentos. Muitos acreditavam que esse processo poderia ser mantido por muito tempo, o
que levou a rápida difusão no mercado estado-unidense, levando ao crescente relaxamento nos
padrões de crédito imobiliário, era um processo que até então parecia estável e seguro. Havia
ainda outros fatores como: instrumentos de identificação e de avaliação de riscos incapazes de
identificar todos os riscos envolvidos; um cenário de otimismo exagerado com relação ao futuro
da economia americana, resultando em uma sobrevalorização dos ativos imobiliários e na
disseminação da crença que o mercado continuaria a manter um certo grau de liquidez.

Infelizmente, esse processo não durou tanto quanto esses estado-unidenses acreditavam.
À medida que as famílias endividadas deixavam de pagar as prestações e os limites da
capacidade de pagamento dos devedores foram ficando evidentes, a demanda por imóveis
residenciais diminuiu, a oferta aumentou e os ativos imobiliários sobrevalorizados caíram
drasticamente. Com o fim do processo que elevou artificialmente o valor dos imóveis, a riqueza
financeira e a expansão de crédito, as instituições financeiras bancárias e não bancárias que
haviam concedido esses créditos com base em ativos inflados sofreram com grandes perdas, o
que levou a eclosão da crise e criou um cenário de pânico. Além disso, o colapso do mercado
subprime acabou afetando a economia real “por meio dos efeitos de contágio e de reação em
cadeia” (p.52). Além de gerar desconfianças, tensões e até travamentos ou paralisações no
mercado de crédito interbancário. Diante dessa crise, múltiplas instituições financeiras
apresentaram problemas, desde aquelas de pequeno porte até aquelas de grande porte, em
especial, o banco de investimento Lehman Brothers, investidor de uma ampla gama de produtos
financeiros detidos por grandes instituições financeiras no mercados globais, cujo colapso levou
ao travamento dos mercados de crédito, o que fez as autoridades americanas entenderem que
medidas não-convencionais deveriam ser tomadas.

Segundo Faria, a crise financeira de 2007-2008 foi uma crise sistêmica, uma vez que
colocou em xeque o funcionamento do sistema capitalista e estas têm a tendência de ocorrer
quando mudanças estruturais e a lógica operacional desse sistema geram desequilíbrios que não
podem ser equacionados pelos mecanismos corretores de mercados autorregulados. Essa crise
teve terríveis consequências socioeconômicas, entre elas: a perda das casas de 3 milhões de
americanos, um empobrecimento generalizado da população americana, a depreciação cambial
de países emergentes e o aumento do desemprego.

Diante desse caos, instituições estatais precisaram agir a fim de sustentar o


funcionamento dos mercados depois da quebra do Lehman Brothers, fizeram isso por meio de
estratégias inovadoras na provisão de liquidez para as instituições financeiras e revitalização
dos mercados. Por meio de intervenções estatais auxiliadas por comunidades epistêmicas, a
economia estado-unidense viu indícios de melhora. Por meio disso Faria expõe o papel do
Estado na Economia, denotando a importância de atos estatais que sustentem a higidez
econômica e que, ao mesmo tempo, não limitem o crescimento econômico. Após tratar desse
exemplo histórico que foi a crise financeira de 2008, assim como os ensinamentos e reflexões
que podem ser tiradas dessa experiência, o autor explica na sua obra as relações contemporâneas
entre o direito, o poder e a economia.

Segundo Faria, uma das principais características do mundo contemporâneo é a


pluralização dos tempos de poder, isto é, os tempo de exercício de poder pelos governos
contemporâneos é curto e assim, cria-se uma pluralidade dos tempos de poder e, como o tempo
curto do poder governamental não se consona com o tempo médio das mobilizações socias e
nem com o tempo mais longos das transformações sociais, o jurista percebe que as inseguranças
sobre o futuro econômico podem acabar contendo ou freando a retomado do crescimento.
Diante disso, propõe uma série de indagações sobre normas, formas de governo e políticas, cujo
o denominador comum é a ideia de que a integração global dos mercados financeiros
(decorrente das variadas redes de comunicações, conexões e fluxos que integram o mundo por
meio da tecnologia) tornou esses mercados mais poderosos na formação de decisões,
submetendo economias nacionais a consequências de atos e acordos fora de seus respectivos
territórios. Dessa forma, os espaços que uma vez eram reservados para o direito positivo e à
política legislativa já não coincidem com o espaço territorial e os Estados nacionais
contemporâneos enfrentam dificuldades crescentes para neutralizar os efeitos de fatores
externos e para atuar como reguladores do sistema financeiro doméstico e globalizado. Visto
isso, Faria ressalta que essas indagações remetem a problemas importantes que afrontam o
pensamento jurídico, dentre os quais o jurista destaca quatro.

Primeiramente, o professor Faria trata do problema do hiato que existe entre a atuação
global dos mercados e o alcance geograficamente limitado das autoridades monetárias e das
agências reguladoras dos Estados nacionais, o que denota a inexistência de unificação
legislativa mundial capaz de regular a atuação global dos mercados. O segundo problema é a
insuficiência da regulação local ao lidar com as operações financeiras transnacionais (devido à
crescente globalização ocorrida nas últimas décadas do Séc. XX). Em terceiro lugar, Faria trata
do problema da tensão entre a democracia e o capitalismo que decorre da crescente
fragmentação, complexificação e interdependência entre os agentes econômicos e os atores
políticos. Este problema envolve o trilema de Rodrik, isto é, tendo em mente os interesses do
Estado de participar da hiperglobalização, de possuir políticas democráticas e de ter soberania
nacional, os Estados Nacionais somente podem gozar de dois desses interesses pois se houvesse
uma tentativa de cumprir os três objetivos, verificar-se-ia que um deles não seria possível em
função dos outros dois, conceito que Faria cita como “um trilema político fundamental”. Por
último, o autor trata do problema da incapacidade do Estado nacional de dispor novas
estratégias de regulação para lidar com crises sociais, devido a uma falta de condições políticas
favoráveis, instrumentos, ferramentas e recursos orçamentários necessários para atender às
demandas dos estratos sociais mais vulneráveis, agravando a crise e deixando os gestores
municipais a mercê de uma gestão local. Diante das várias indagações e dos problemas
apresentados, Faria propõe cenários hipotéticos de valor heurístico voltados para o futuro do
direito e do Estado que seriam possíveis respostas plausíveis para esses desafios
epistemológicos de Teoria do Estado.

O primeiro cenário que o jurista propõe é um de caráter cosmopolita, no qual se


encontraria a existência de um Estado Mundial e de um Direito Global. Essa hipótese teria como
principais características: a expansão de instituições interconectadas em um escopo mundial; a
valorização dos processos de argumentação pública, deliberação e troca; e a conversão do
direito internacional em um direito coercitivo supranacional. Esse modelo teria como pontos
fundamentais: um direito supranacional que satisfaça variadas culturas jurídicas e que se
sobreponha sobre a legislação positiva nacional de cada Estado; o progressivo estabelecimento
de uma Constituição mundial que assegure as bases normativas do sistema de regulação global;
e na crença de uma identidade coletiva democrática de escala global. Esse cenário resolveria o
problema da inexistência de uma unificação legislativa global e caberia a essa regulação global
lidar com as operações financeiras transnacionais.

Em segundo lugar, Faria propõe um cenário de expansão das legislações nacionais,


assim ampliando o alcance da mão do Estado, notando-se um forte intervencionismo, assim
como um aumento do controle e da regulação por parte do Estado. Nesse sentido, por meio de
atos estatais seriam estabelecidas as bases imprescindíveis para o crescimento econômico. Vale
ressaltar, também, que um Estado forte não é necessariamente um de regime autoritário e não-
democrático; pode ser um Estado de Direito submetido a uma Constituição promulgada, que
rigorosamente assegura o cumprimento das leis, a adoção de barreiras alfandegárias, a
implementação de políticas fiscais, monetárias e tributárias visando os interesses do povo, além
de regular a Economia de modo a assegurar o crescimento. Esse cenário solucionaria,
claramente, o problema da incapacidade da regulação local ao lidar com operações financeiras
transnacionais, devido a uma forte regulação e diversas políticas econômicas.

Faria também propõe um cenário no qual existe um direito mundial produzido não
apenas por uma entidade, e sim por uma rede de várias organizações internacionais,
multinacionais e supranacionais, assim, enfatizando a construção do fenômeno jurídico de
forma multidirecional e multidimensional. Neste cenário, os conflitos são de caráter
intersistêmico e os atores desse modelo de governança mundial trabalham juntos para elaborar
soluções, colaborando para a concretização de escolhas coletivas, em nome de um interesse
comum.

Além disso, o autor levanta a ideia de um cenário no qual o poder não é exercido por
um ator central, e sim, por vários atores governamentais, econômicos, parlamentares e sociais,
ou seja, é um cenário no qual a soberania envolve múltiplos atores, denominado por Faria de
“multissoberania”. Como explicado por Faria, temos, como paradigma, o cenário da União
Europeia que entra em consonância com esse cenário hipotético fornecido pelo jurista,
possuindo as suas vantagens, porém, como demonstrado pelo autor, ainda possui problemas de
ordem econômica e financeira cujos efeitos ainda são evidenciados atualmente.

Por último, o jurista propõe o cenário da expansão dos sistemas privados de governança
da atividade econômica, sem que colidam com o direito positivado pelo Estado,
consequentemente, surgindo uma reestruturação dos cenários políticos e a proliferação dos
regimes normativos compartilhados. Os regimes normativos encontrados neste cenário atuam
em espaços abertos, heterogêneos e organizados diferentemente, operando no âmbito de
diferentes demarcações espaciais e funcionais, de modo que nenhum deles seja dominante ou
incompatível com a ordem jurídica estatal. Esse modelo possui, como maior vantagem, o
protagonismo múltiplo e heterogêneo de indivíduos e de organizações sociais, econômicas e
governamentais, que se estabelece como uma solução para a recuperação da capacidade
normativa local, que se mostra enfraquecida e insustentável em um modelo centralizador.

Todavia, Faria explica que apenas o último cenário é o que parece o mais possível, uma
vez que os quatro anteriores possuem um menor potencial de exequibilidade. O primeiro, por
exemplo, é menos possível de ser realizado pois a globalização não representa a conquista de
um mundo comum, além disso, seria impossível submeter todos os Estados a uma única
entidade reguladora global. O segundo cenário superestima a capacidade dos Estados fortes de
constituir as medidas necessárias para a competitividade internacional e de agir
independentemente dos imperativos dos mercados transnacionais que possuem dificuldades de
acesso a crédito internacional. O terceiro modelo confia excessivamente na capacidade dos
atores econômicos de agirem de maneira responsável. E o quarto cenário, como demonstrado
pelos problemas sofridos pela União Europeia, gera graves dilemas jurídicos e institucionais,
consequentemente criando crises institucionais, tensões secessionistas e projetos de
independência. Assim, restando o último cenário como o mais viável.

Após explicar estes cenários hipotéticos, as soluções que buscam trazer, determinando
o mais exequível desses modelos e as razões pelas quais os demais não poderiam ser
simplesmente concretizados, Faria trata de duas estratégias criadas para lidar com um contexto
de globalização, no qual o Estado-nação começou a se enfraquecer como local de ordem e
governo, garantidor de direitos à sociedade, e no qual a alternativa autárquica passou a significar
um direcionamento à estagnação econômica. Nesse sentido, o Estado perde progressivamente
a capacidade de configuração sobre os processos de inovação técnica e econômica, de modo
que passa a ficar preso a várias situações paradoxais. Almejando evitar tais situações, as duas
estratégias surgiram com o objetivo de desvincular o Estado de suas funções controladoras,
reguladores, diretoras e planejadoras no âmbito da economia, consequentemente, acabando com
a rigidez hierárquica da legislação e instituindo uma diversidade e flexibilidade normativa, além
de instaurar o pluralismo jurídico, consequentemente levando o direito positivo a ultrapassar
demarcações territoriais e a se internacionalizar e a se fragmentar em vários campos jurídicos
funcionalmente diferenciados e especializados em escala global.

A primeira dessas estratégias é a desjuridificação, que consiste num processo de


desformalização, deslegalização e desconstitucionalização de direitos e de criação de
mecanismos alternativos de resolução de litígios, em outras palavras, o Estado abre mão de suas
responsabilidades regulatórias para fomentar a autorresolução de litígios por parte dos
diferentes setores sociais, econômicos e financeiros não regulados. A segunda, é a
procedimentalização do direito, processo no qual os Estados deixam de formular o conteúdo
das leis, apenas estabelecendo marcos ou procedimentos para que os diferentes setores sociais
possam debater acerca das alternativas normativas mais adequadas aos seus respectivos
interesses, ou seja, a procedimentalização é uma técnica que busca induzir os fins substantivos
ao invés de impor regras que comandem a realização compulsória desses fins, de modo que
esses fins permaneçam mas os caminhos para atingi-los mudem. A proliferação dessas
estratégias decorreu da filosofia pragmática de legisladores e de uma decisão calculada por
parte de governantes. Os legisladores perceberam que estabelecendo, com menos rigor, um
controle e uma regulação, apenas assegurando os essenciais para a sociedade e para a economia,
seria menor o risco de acabarem desmoralizados pela ineficácia de seus instrumentos
reguladores e de seus mecanismos de controle. Consequentemente, esse processo de
desjuridificação abriu caminho para novos procedimentos de produção do direito nos planos
nacional, internacional e transnacional; para uma normatividade pactual; para formas de
governo pluralistas; para uma articulação complexa de sistemas e subsistemas regulatórios
infraestatais e supranacionais e; para a coexistência de múltiplos centros decisórios e distintos
padrões normativos.

Aplicadas essas estratégias, o Estado transforma-se no chamado “Estado pós-nacional”,


no qual são promovidas a articulação e a coordenação na organização do Estado. Segundo Faria,
nesse tipo de Estado, o funcionamento da relação entre reguladores e regulados — seja num
nível, local, nacional ou supranacional — tem um caráter de autonomia relativa, uma vez que
são interdependentes. Além disso, Faria explica que, devido à desjuridificação, surge um menor
direito positivo que, consequentemente, produzindo um cenário de menor mediação de
instituições políticas na produção de regras, promovendo uma normatividade emanada de
diferentes formas de contrato, uma densa rede de organizações e regulações e uma tendência
de autorregulação e autocomposição de conflitos dos diferentes setores sociais e econômicos.
Dessa forma, a ordem jurídica estatal perde a sua centralidade e exclusividade, deixando de ser
o eixo de um sistema normativo único para se tornar parte de um sistema de múltiplos níveis,
dimensões e atores, que Faria denomina de “sistema jurídico de múltiplos níveis”. Assim, diante
do hiato entre a atuação global dos mercados financeiros e a atuação doméstica dos bancos
centrais e das agências reguladoras estatais, os Estados nacionais abandonam o seu status de
atores exclusivos e privilegiados, diluindo sua soberania num crescente fluxo de
interdependências e espaços globalizados primariamente regidos por forças econômicas de
mercado, se tornando entidades que dependem de saberes especializados, de recursos
financeiros e de decisões políticas compartilhadas, apenas estabelecendo marcos políticos e
administrativos.

Diante de todas as informações apresentadas anteriormente, Faria descreve


sucintamente o que ele acredita ser o quadro atual mais visível e factível acerca do Direito, do
Estado e da Economia. Segundo as convicções do autor, esse contexto é caracterizado: por
múltiplos microssistemas legais e distintas cadeias normativas que em si possuem múltiplas e
diversas regras e mecanismos processuais; pelo caráter provisório e mutável das engrenagens
normativas, alterando-se as regras conforme o surgimento de problemas e acontecimentos que
exijam tal; por uma tentativa de acolher uma pluralidade de pretensões contraditórias e muitas
vezes excludentes; e por uma geração de conflitos e discussões em matéria de hermenêutica.

Tendo explicados todos esses pensamentos, Faria descreve como o direito e o Estado
passaram a ser após a crise financeira de 2008. A economia, como explica o autor, tem a sua
trajetória guiada por instituições, como os Estados e os mercados, por exemplo. Dessa forma,
é necessária uma harmonia entre os mercados e os Estados, que deve ser estabelecida por meio
de sistemas legais mais flexíveis e de Estados funcionais. Nesse sentido, o Estado adotaria
regulamentações mais dinâmicas e flexíveis, atendendo aos mercados mais complexos, além
disso, apenas precisaria cuidar das competências essenciais do Estado, preservar os bens
coletivos essenciais e garantir os direitos de propriedade material e de propriedade intelectual,
assim como o cumprimento dos contratos e a manutenção da ordem e da segurança pública.

Além disso, sob o enfoque do Direito, Faria explica as duas linhas de intervenção
normativa na economia e na sociedade. A primeira, estaria voltada ao funcionamento da
economia, promovendo a higidez econômica por meio de normas; a segunda, estaria voltada à
produção, implementação e execução de programas sociais economicamente orientados à
obtenção de padrões mínimos de coesão ou de integração social. Essas duas linhas, segundo o
jurista, formam “uma espécie de um piso social e de um teto econômico” e tudo entre elas tende
a ser passível de livre negociação e autocomposição de interesses, criando uma regulação mais
plástica, apenas estabelecendo esses dois limites. Esse espaço mais dinâmico garante uma maior
flexibilidade para a resolução de questões complexas aos atores econômicos, sociais e políticos,
oferecendo uma ampla gama de ações possíveis; flexibilidade que também é conferida aos
órgãos estatais, que podem agir a partir da mesma racionalidade dos agentes privados ou exercer
seus papéis regulatórios recorrendo mais ao direito privado. Desse modo, essa forma de
organização é regida sob o princípio de que tudo seria automaticamente autorizado ou
permitido, contanto que não ultrapassasse os marcos regulatórios, ou seja, o piso social e o teto
econômico. Segundo Faria, esse modelo jurídico-institucional estabelece um espaço retrátil
entre esses marcos regulatórios que pode ajudar ao promover uma articulação estratégia e
descentralizada da economia e em consonância com o ordenamento complexo das
regulamentações e normas.

Retomando o assunto de cenários hipotéticos, Faria descreve o mais exequível dos


apresentados após a crise financeira de 2008 e o seu agravamento entre 2011 e 2013 como um
cenário de continuidade de uma ordem jurídica que não provém apenas da verticalidade de
autoridades estatais, advindo, também do efeito irradiador de diferentes decisões tomadas em
distintos níveis e espaços, em diferentes sistemas e subsistemas com funções diferentes,
caracterizando-o como uma ordem jurídica de pluralismo equilibrado, moldável e dinâmico,
com mudanças constantes e em permanente integração.

Conclui, enfim, que dentro dessa nova concepção de Estado após a crise financeira de
2008, a institucionalidade vigente não deverá sofrer mudanças radicais, apenas fazendo
mudanças necessárias para um funcionamento mais articulado e mais eficiente, o que também
poderá ocorrer com as formas e mecanismos de controle direto e indireto de regulação
econômica e do controle dos mercados de crédito, ou seja, a institucionalidade vigente na
relação do Estado com o sistema financeiro dificilmente mudará. Para o jurista, num panorama
repleto de dúvidas, contingências e infinitas questões abertas, no qual mudanças econômicas
aceleradas levam as teorias a defasar rapidamente e as conjecturas acerca do futuro são
inversamente proporcionais ao seu conhecimento, essa concepção de Estado contemporâneo
mais adaptável e dinâmico seria uma das poucas apostas possíveis de se realizar. Esclarece o
autor, porém, que o intuito da sua obra não foi de defender essa aposta ou justificá-la, nem
mesmo criticá-la, o seu objetivo era de registrar ela, analisando os seus encadeamentos
históricos e ressaltando a necessidade de teorias sociojurídicas novas e mais adequadas à
realidade econômica contemporânea.

Conclusão

Diante do que foi apresentado aqui neste trabalho, podemos concluir que a obra do
Professor Faria é uma excepcional obra para o entendimento do Estado contemporâneo atual,
da arquitetura funcional do Direito e da estruturação jurídica da ordem econômica mundial. A
obra explica com muitos exemplos como o Estado contemporâneo passou a ser organizado da
forma que ele é hoje, esclarecendo as relações dessas mudanças com eventos históricos como
a crise financeira de 2008 e o seu agravamento entre 2011 e 2013, assim como a intensificação
da globalização, que aumentou a complexidade dos mercados e da Economia em geral.

O autor nos dá cinco cenários hipotéticos e conclui que o mais plausível desses não seria
o retorno de Estados mais intervencionistas e com regulações mais rigorosas, e sim, a
continuidade de um modelo de ordem jurídica caracterizado pelo pluralismo jurídico, no qual
múltiplos regimes normativos operam em suas respectivas demarcações territoriais sem que
uma seja dominante sobre a outra e sendo que nenhuma é colidente com a ordem jurídica
estatal. Nota-se aqui, como explicado por Faria, que as noções de hierarquia e governo são
abandonadas, e são substituídas pelas ideias de heterarquia e governança, criando um modelo
de direito no qual as estratégias de desjuridificação e procedimentalização são implementadas
resultando em um direito mais flexível, dinâmico e adaptável. Ademais, esses processos
estratégicos foram os passos que precisaram ser tomados para que o Estado abrisse mão da
exclusividade sobre a produção do direito positivo e sua soberania, deixando de ser o eixo de
um sistema normativo único, passando a fazer parte de um sistema jurídico de múltiplos níveis,
assim, observamos aqui uma ordem jurídica caracterizada por um pluralismo jurídico. Faria
entende que talvez essa forma de organização de Estado e de Direito é uma das poucas
alternativas que existem em frente a uma realidade de tantas incertezas e de mudanças
constantes. Por fim, o autor ressalta que a sua obra não é a favor ou contra esse modelo de
Estado e de Direito apresentado, o seu trabalho está voltado ao registro desse modelo e busca
fomentar novas teorias sociojurídicas mais adequadas para a realidade contemporânea.

Portanto, a obra de Faria apresenta didaticamente como o Estado e o Direito são no


mundo atual, abordando os eventos históricos, sociais e econômicos que provocaram as
mudanças no entendimento de como o Estado e o Direito devem ser organizados mediante a
necessidade de higidez econômica, explicando objetivamente o raciocínio por trás dessas
mudanças que transformaram o Estado e o Direito no que são hoje. Ademais, a obra faz tais
coisas de maneira imparcial, apenas registrando o modelo contemporâneo de Estado e Direito,
compreendendo múltiplos pontos de vista e considerações sobre o tema. Em outras palavras, a
obra permite uma melhor compreensão da realidade do Estado e do Direito no presente, além
de incitar o leitor a refletir sobre o futuro do Estado. Afinal, no período anterior à crise
financeira de 2008, acreditava-se que o modo como o Estado e o Direito se organizavam em
relação à economia era bom, a crise fomentou a mudança do pensamento de como o Estado e o
Direito deveriam se organizar, o Estado precisou passar por transformações após a crise, tanto
para permitir a recuperação do crescimento econômico, quanto para adaptar-se à uma nova
realidade complexa decorrente da crescente globalização, cheia de contingências, dúvidas e
questões abertas. Atualmente, como Faria explicita em sua conclusão, a concepção de Estado
atual é considerada a melhor opção, mas, ao mesmo tempo que confiamos nesse modelo de
Estado contemporâneo, não podemos deixar de lado a possibilidade de que nele existe uma
grande falha que somente ficará clara para nós quando uma nova grande crise ocorrer. Esse foi
o principal erro dos americanos antes da crise financeira de 2008, acreditarem que a forma que
o Estado e o Direito se organizavam, assim como as práticas econômicas, iriam durar por muito
tempo.

Bibliografia

FARIA, José Eduardo. O Estado e o Direito Depois da Crise. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2017

FARIA, José Eduardo. Poucas certezas e muitas dúvidas: o direito depois da crise financeira.
Revista Direito GV, [S.l.], v. 5, n. 2, p. 297-323, jul. 2009. ISSN 2317-6172. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/24276>. Acesso em: 09
Nov. 2020.

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