Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ramakrishna o Grande Mestre - Swami Saradananda 01
Ramakrishna o Grande Mestre - Swami Saradananda 01
O GRANDE MESTRE
Por
Swami Saradananda
(Um discípulo direto de Sri Ramakrishna)
Original em Bengali
VOLUME I
1999
“Translated from Sri Ramakrishna, The Great Master, as translated into English by Swami
Jagadananda and published by the President, Sri Ramakrishna Math, Madras, Copyright 1952.”
ÍNDICE
PARTE I
PARTE II
Temos muito prazer em apresentar ao público, Sri Ramakrishna, o Grande Mestre - a mais
ampla, autêntica e crítica avaliação da vida, Sadhana e ensinamentos do Bhagavan Sri Ramakrishna.
Sessenta e seis anos fizeram rolar a corrente do tempo desde que Sri Ramakrishna deixou a
envoltura mortal, mas a onda de espiritualidade levantada por sua vida, tocou até mesmo as
praias distantes de ambos os hemisférios e ainda está ressurgindo com toda potência nativa nos
pensamentos dos diferentes países do mundo civilizado de hoje. Na Índia seu nome tornou-se uma
palavra do lar, um símbolo de esperança e um Mantra sagrado para ser invocado. Seus
pronunciamentos inspirados trouxeram luz onde antes prevalecia total escuridão, alívio para
muitas almas sofredoras e paz a muitas mentes abstraídas. A vida que pode ter tido essa influência
maravilhosa dentro de um período tão curto, é desnecessário dizer, foi dotada de um poder sem
precedente, cuja profundidade plena e significado levarão anos para serem revelados à
humanidade.
Descrições dessa vida maravilhosa foram dadas ao mundo por seus diversos discípulos e
admiradores, de tempos em tempos, em diversos idiomas, desde seu desaparecimento da terra.
Mas nenhuma delas representou uma narrativa detalhada dessa personalidade ímpar. Srimat Swami
Saradanandaji Maharaj, discípulo direto de Sri Ramakrishna e Secretário Geral do Ramakrishna
Math and Mission desde seu começo, até seu passamento em 1927, sentindo a necessidade dessa
biografia, trouxe-a a público, em cinco volumes, em bengali, sob o título Sri Ramakrishna Lila-
Prasanga contendo muitos detalhes da vida do Mestre, não publicados e que pode sinceramente
ser considerada um tratamento exaustivo do assunto. O Swami queria escrever uma versão em
inglês de seu trabalho em bengali e, de fato, traduziu alguns capítulos que apareceram em duas
revistas da Missão, Vedanta Kesari e Prabuddha Bharata, mas devido à sua doença e a vários
outros motivos, não pôde completá-la. A ansiedade do público em geral fora de Bengala para
conhecer maiores detalhes da vida maravilhosa do Mestre estava sendo sentida veementemente e
pensamos que estaríamos prestando algum serviço aos nossos leitores ansiosos, se não a toda
humanidade, se pudéssemos presenteá-los com uma tradução fiel e literal da bela biografia em
bengali.
Srimat Swami Jagadanandaji, um veterano e erudito monge de nossa Ordem, aceitou, a
nosso pedido, essa tarefa hercúlea de traduzir os cinco volumes para o inglês, deixando-nos em
profunda dívida de gratidão. Foi lamentável que ele tenha falecido em dezembro passado, antes
que essa obra notável de sua devoção pudesse ser vista à luz do dia. Ele assumiu a tradução
quando beirava os setenta anos, mas acabou a obra num incrível curto prazo, entregando-a aos
editores. Sendo um discípulo da Santa Mãe, conheceu intimamente o reverenciado Swami
Saradanandaji Maharaj e muitos outros discípulos de Sri Ramakrishna. Swami Jagadananda é
conhecido de muitos leitores e estudantes de Vedanta como um instrutor das Escrituras, editor
anônimo de muitos livros religiosos e tradutor de textos vedânticos como o Upadesha-Sahasri de
Sri Sankaracharya. Suas aulas iluminadoras eram uma alegria para todos, jovens e velhos, leitores
leigos e monásticos na Uttarakhand. Nele notava-se sempre, uma feliz mas rara combinação de
Jnana e Bhakti. Incansável no trabalho, sem comprometer-se em sua adesão aos Siddhantas
(conclusões) da Vedanta, foi notável por sua grande devoção ao Mestre e à Santa Mãe.
Swami Nirvedananda, o erudito escritor de "Sri Ramakrishna e o Renascimento Espiritual"
(na "Herança Cultural da Índia", vol. II) e outros livros, escreveu uma curta mas bonita vida de
Srimat Swami Saradanandaji Maharaj. Isso dará ao leitor uma idéia da verdadeira personalidade do
autor do livro e servirá em parte, como introdução. Nós lhe somos devedores por tão valioso
acréscimo a esse trabalho.
O Prof. K. Subramanyam, M.A.,L.T., Vice-Diretor do Vivekananda College, Madras,
gentilmente leu o manuscrito inteiro e editou com competência para nós. Merece nossos cordiais
agradecimentos por tão nobre trabalho.
O Dr. Nandalal Bose, o famoso artista de Santiniketan (Visva-bharati), gentilmente
desenhou a capa (Panchavati em Dakshineswar), como um trabalho de amor. Oferecemos-lhe
nossos sinceros agradecimentos.
Ao trazer à publicação uma obra tão gigantesca, recebemos ajuda substancial de maneiras
diferentes de amigos leigos e monásticos, que preferem manter-se desconhecidos. Oferecemo-lhes
nossos sinceros agradecimentos.
Sinais diacríticos não foram usados no corpo do livro, mas foram explicados e a pronúncia
de importantes palavras hindus foi mostrada com diacríticos no índex.
Uma palavra a respeito do próprio livro: Sri Ramakrishna Lila-Prasanga ocupa um lugar
único na hagiografia. A história da vida de uma personalidade divina, adorada por milhões como
Encarnação de Deus, nunca havia sido escrita dessa forma por qualquer de seus apóstolos.
Contudo o leitor notará como o autor tornou o livro tão confiável e interessante, ao dar-lhe um
toque moderno, utilizando o método científico em todo ele. O livro não é apenas simples
biografia da mais recente Encarnação da época moderna, mas combina uma biografia com um
estudo lúcido dos diversos cultos de religião, misticismo e filosofia conseguidos na Índia e em
outros lugares, desde os tempos pré-históricos até a era moderna. A matéria principal, a vida de
Sri Ramakrishna, não é menos do que uma enciclopédia de religião e filosofia.
Não será fora de propósito fazer menção aos Tantras, a sagrada literatura dos shaktas de
Bengala e outros lugares. Sir John Woodroffe, sob o cognome de Arthur Avalon, e seus
colaboradores indianos tornaram os Tantras disponíveis em parte para o público leitor de língua
inglesa. Como usaram o método científico, seus estudos dos Tantras têm grande apelo à mente
moderna. Sri Ramakrishna praticou todas as disciplinas contidas nos sessenta e quatro Tantras
principais, sob a direção de um bom instrutor. Algumas práticas dos Tantras, conhecidas como
de "esquerda", que não foram completamente descartadas por Sri Ramakrishna, foram, na verdade,
reorientadas por ele. Muitos dos ensinamentos científicos modernos são consonantes com o ideal
fundamental dos Tantras. Coisas ou práticas que parecem repulsivas à mente moderna,
realmente não o são. Leitores, dotados de uma visão exaltada e de espírito moderno de pesquisa
da verdade, serão capazes de compreender que as práticas dos aspirantes tântricos envolvendo
contato com o que é chamado de baixo, ruim, feio e vulgar, ajudaram-nos a sublimar esses
sentimentos até o ponto de fazê-los realizar o poder divino, que é sempre elevado, verdadeiro,
bom e belo. Contamos com a capacidade de pensar dos leitores em seu estudo do capítulo tântrico
da Sadhana de Sri Ramakrishna visto que não sacrificamos a beleza e a substância desse episódio
para satisfazer os reclamos do gosto "moderno".
Uma atitude correta é, também, necessária para penetrar no espírito da Sadhana de Sri
Ramakrishna de acordo com o aspecto de Madhura Bhava da Escola Vaishnava. Esperamos que
nossos leitores jamais deixem de tê-la. "Quando você não souber compreender, aprenda a confiar",
é um adágio que pode ser muito útil aqui. Nada há de excêntrico ou estranho nos vôos do gênio de
um dos maiores instrutores místicos do mundo como foi Sri Ramakrishna.
Que possa a leitura séria deste livro inspirar a humanidade a dar um passo à frente em sua
marcha em direção à Verdade.
Editor
A quinta edição do Sri Ramakrishna, o Grande Mestre está aparecendo em dois volumes.
Tanto o leitor como o comprador acharão essa divisão conveniente. O índex e a Vida do Autor,
Swami Saradananda, foram passados para a segunda parte, para facilitar a divisão do livro em
duas partes iguais. Essa nova edição foi também revista cuidadosamente a fim de torná-la mais
fácil de ser lida.
Editor
Essa é a primeira tradução para o português da primeira versão completa, em inglês, do Sri
Ramakrishna Lila-Prasanga, relato fiel e exposição em bengali, dos diversos aspectos da vida de Sri
Ramakrishna (1836-86), que o erudito francês, Romain Rolland, apresentou ao Ocidente como o "Messias
de Bengala". Certamente a vida de Sri Ramakrishna foi um significante acontecimento espiritual do
último século. Seu discípulo principal, Swami Vivekananda, declarou, "Sua (a de Ramakrishna) vida foi
mil vezes mais importante do que seus ensinamentos, um comentário vivo dos textos dos Upanishads,
não, ele foi o espírito dos Upanishads sob forma humana. Em nenhum outro lugar nesse mundo existe
essa perfeição sem par, essa maravilhosa bondade com todos que não pára para se justificar, essa
imensa simpatia pelo homem em escravidão. Viveu para extinguir qualquer distinção entre homem e
mulher, rico e pobre, erudito e iletrado, Brahmanas e Chandalas. Veio para motivar a síntese das
civilizações oriental e ocidental. Certamente, por muitos séculos a Índia não produziu um tão grande e
tão maravilhoso instrutor de síntese religiosa. A nova revelação da época é a fonte de grande bem para o
mundo inteiro, especialmente para a Índia; e o inspirador dessa renovação, Sri Bhagavan
Ramakrishna, é a manifestação reformada e remodelada de todos os grandes fazedores de época em
religião do passado". Uma vida assim pode ser apresentada e interpretada somente por uma mente
totalmente racional, dotada de elevada ordem de percepção intuitiva e de um conhecimento quase
enciclopédico do campo espiritual.
Sri Ramakrishna Lila-Prasanga, a biografia de Sri Ramakrishna originalmente escrita em
bengali, está baseada na observação de primeira mão, na coleta cuidadosa de materiais de fontes
diferentes, no exame paciente de evidência devido a um esforço sincero de exatidão auxiliado por
uma interpretação lúcida de todos os relevantes e intricados problemas relacionados com teorias e
práticas religiosas, podendo ser facilmente classificada como um dos melhores espécimens da literatura
hagiográfica.
O livro foi publicado, em série, em cinco volumes em bengali. Os primeiros dois volumes
(Partes III & IV) contém uma exposição elucidante da maneira de explicar e ilustrar o aspecto de
Sri Ramakrishna como Guru (guia espiritual). Seus primeiros dias e suas práticas espirituais
vigorosas na juventude estão delineados nos dois volumes seguintes (Partes I & II) respectivamente.
A última parte (Parte IV) descreve a manifestação da Divindade na vida e através da vida de Sri
Ramakrishna.
Infelizmente, o livro estava incompleto. Não cobriu os últimos poucos meses de vida de Sri
Ramakrishna. Romain Rolland, contudo, foi perfeitamente justificado ao afirmar, "Embora a obra
permaneça incompleta, ela é excelente em seu tema."
No que diz respeito ao autor, o erudito francês convincentemente observa que ele "é uma
autoridade, tanto quanto filósofo, como historiador. Seus livros são ricos em ensaios metafísicos,
que colocam o aparecimento espiritual de Sri Ramakrishna exatamente em seu lugar, na rica
procissão do pensamento hindu". Realmente o tratamento magistral do assunto dá um vislumbre da
capacidade maravilhosa do autor. Sua larga experiência, sua vasta erudição, seu espírito de
pesquisa racional e acima de tudo, suas realizações espirituais de longo alcance, podem ser
percebidas até por um leitor casual do livro.
O conhecimento de alguns detalhes da vida do autor pode ser interessante e de ajuda para
os leitores da presente publicação, pois permitirá que eles apreciem seu valor como relato autêntico e
compreensivo de um fenômeno espiritual que marcou época, a sagrada vida de Sri Ramakrishna. Daí
o seguinte resumo:
O autor foi Swami Saradananda. Antes de ingressar na vida monástica seu nome era Sarat
Chandra Chakravarty. Nasceu em dezembro de 1865, de uma abastada família Brahmin que
residia no centro de Calcutá.
No início de sua vida apresentava sinais evidentes de um santo em preparação. Sereno e bem-
educado, por natureza, tinha um físico robusto, um intelecto agudo e um coração altamente
compassivo. Facilmente o melhor aluno de sua classe, Sarat Chandra deixou sua marca também
na sociedade de debates de sua escola, embora não lhe fosse possível ferir os sentimentos de uma
pessoa com uma palavra áspera ou um sarcasmo cáustico. Seu coração amoroso invariavelmente o
levava a servir qualquer pessoa doente, fosse ela da família, amigo ou inferior - mesmo se a doença
fosse infecciosa. Para coroar tudo, um aspecto notável da estrutura mental de Sarat Chandra era sua
inclinação precoce para a religião. Ainda menino demonstrava um desejo instintivo para os ritos
religiosos. Sua brincadeira predileta era a adoração mímica. À medida que crescia, essa brincadeira
transformou-se gradualmente na busca mais séria de sua vida.
Nascido de uma família Brahmin ortodoxa, herdou uma reverência profunda pela religião
hindu tradicional. No final dos dias escolares, sua fé estava razoavelmente firmada em bases
racionais, ao entrar em contato com a forma sofisticada do hinduísmo através do New Dispensation
Movement do Brahmo Samaj. Seu ardor pelo crescimento espiritual recebeu novo estímulo quando,
no St. Xavier's College, tomou conhecimento da Bíblia Sagrada e tornou-se inspirado pela vida e
ensinamentos de Jesus. Por fim foi durante seus dias de colégio que ele se apoiou num guia espiritual
elevado que solucionou todas suas possíveis dúvidas relativas à verdade por trás de todas as
religiões e, devido a seu crescente poder espiritual, o curso da vida de Sarat Chandra transformou-
se completamente.
Seu guia espiritual foi Sri Ramakrishna, então conhecido como o Santo de Dakshineswar,
subúrbio ao norte de Calcutá. A notícia sobre uma personalidade espiritual muito elevada, residindo
no templo de Kali naquele subúrbio, vinha sendo espalhada há alguns anos entre o público de
Calcutá através de vários jornais, particularmente sob os auspícios do Brahmo Samaj. Isso estava
atraindo uma corrente de visitantes piedosos, jovens e velhos de Calcutá, para encontrar o santo.
Sarat Chandra e seu primo Sashi (futuro Ramakrishnananda) foram apanhados na corrente.
Ambos eram então estudantes e estavam na adolescência quando um dia de outubro de 1883, foram
prestar reverência ao santo.
Sri Ramakrishna, parecia estar esperando por essas almas jovens e piedosas. Logo que as
encontrou, saudou-as com alegria e tornou-as íntimas com suas conversas ternas e edificantes.
Atr avés de palavras doces e simples, ele imprimia profundamente em suas mentes a necessidade
imperiosa de renunciar aos prazeres dos sentidos para realizar Deus. Sentiam instintivamente que
em Sri Ramakrishna haviam encontrado um guia de valor no caminho espiritual.
Depois dessa primeira visita, Sarat Chandra fez como ponto de honra ir sozinho visitar o
santo todas as quintas-feiras, dia feriado em sua escola. A fascinação do incomparável puro e
inegoísta amor de Sri Ramakrishna caiu sobre ele e no decorrer dos dias, começou a sentir uma
atração irresistível por aquele santo. Com o repetido contato com ele, as idéias de Sarat Chandra a
respeito de religião prática tornaram-se cada vez mais claras e ele avançou, passo a passo, no
caminho espiritual, segundo a orientação de Sri Ramakrishna.
Mesmo no início de sua juventude, as aspirações de Sarat Chandra estavam colocadas muito
altas. Ele não buscava sentimentos sem vigor, nem mesmo visões. Deus sob qualquer forma
particular, não era sua busca. Queria vê-lo manifestado em todas as criaturas. Embora alertado por
Sri Ramakrishna que esta era a realização espiritual final e não podia ser facilmente alcançada,
Sarat Chandra disse que nada mais podia satisfazê-lo e que estava determinado a obter aquele
estado abençoado, quaisquer que fossem as dificuldades que pudessem surgir no caminho.
Evidentemente Sri Ramakrishna ficou satisfeito em encontrar essa qualidade mental prodigiosa do
jovem aspirante e sugeriu que ele fizesse amizade com Narendranath (mais tarde Swami
Vivekananda), um gigante espiritual em potencial.
Um ano após sua primeira visita ao santo, Sarat Chandra veio unir-se a Narendranath pelo
elo de íntima amizade. Um dia, em outubro de 1884, ouvindo de Narendranath a respeito de suas
experiências místicas maravilhosas com Sri Ramakrishna, a idéia de Sarat Chandra sobre o santo de
Dakshineswar mudou radicalmente. Percebeu que Sri Ramakrishna não era simplesmente um
santo, mas um personagem espiritual ao nível dos Profetas e Encarnações, sobre os quais havia
ouvido falar.
Naturalmente depois do incidente acima, o amor e a estima de Sarat Chandra elevou-se à
adoração espontânea da Divindade sob a roupagem de um santo. Com fé inquebrantável,
submeteu-se ao cuidado amoroso e guia do santo como seu Guru e dedicou-se, de coração e alma, à
prática espiritual, até onde os limites de sua casa e a carreira universitária permitiam. Sri
Ramakrishna, de sua parte, reconhecendo em Sarat uma alma aspirante da mais elevada ordem,
com um brilhante passado, despejou suas graças ilimitadas no jovem discípulo e vitalizou seu
gênio espiritual florescente.
As coisas correram docemente até o meio de 1885, quando Sri Ramakrishna foi tomado
por um sério problema na garganta (câncer) e levado para uma casa alugada na parte norte de
Calcutá, para o necessário tratamento. As notícias alarmantes chegaram até Sarat Chandra
como um raio. O terrível choque que recebeu, contudo, serviu eventualmente como incentivo
para o progresso espiritual. As amarras de sua vida mundana imediatamente pareceram ceder.
Com uma preocupação ansiosa pela saúde de seu amado Guru, precipitou-se para a beira de
seu leito, negligenciando o lar e despedindo-se do Calcutá Medical College ao qual
recentemente havia se filiado. Logo começou a conviver dia e noite com Sri Ramakrishna,
seguindo-o quando ele foi removido mais ou menos quatro meses mais tarde para a chácara de
Kassipur, subúrbio ao norte de Calcutá. Com espetacular zelo para tratar de doentes, Sarat
Chandra manteve-se atendendo o Mestre até seu último momento de vida na terra.
A doença de Sri Ramakrishna, durante mais ou menos um ano, provou ser um sinal, por
assim dizer, para que seus selecionados jovens discípulos cortassem os laços de suas vidas
familiares e juntarem-se numa incipiente fraternidade santa sob seu proeminente líder
Narendranath. Vieram obviamente para cuidar de seu querido Guru, mas permaneceram e
foram sendo instruídos na vida monástica. Foi na chácara de Kassipur que um dia Sarat
Chandra, com a maioria de seus companheiros, recebeu de Sri Ramakrishna a roupa ocre, a
roupa própria de um monge hindu. Foi então que, sob a orientação e encorajamento do Mestre,
aprenderam a mendigar a comida como sannyasins, a fim de praticarem completa resignação à
Providência, bem como purificarem suas mentes das tendências egoístas profundamente
enraizadas. Assim, inspirados por seu Guru com os ideais espirituais mais elevados e introduzidos
simbolicamente no monasticismo, esqueceram-se de todas as outras preocupações, exceto o
serviço de seu amado Mestre e intensa devoção à prática espiritual.
A elevada meta de realizar Deus enraizou-se profundamente em suas mentes. O mundo e seus
pungentes chamados não ofereciam qualquer atração e esse estado mental tornou-se mais intenso
após a morte do Mestre, em agosto de 1886. Logo após, um mosteiro foi instalado, numa casa
alugada em Baranagar, não muito longe da chácara de Kassipur. Ainda que durante certo tempo
tenha Sarat Chandra voltado para casa com relutância, logo que o mosteiro começou a funcionar
passou a visitá-lo de vez em quando, passando longas horas com seus companheiros, absorvidos em
práticas espirituais ou conversas sobre a vida e ensinamentos do Mestre. Suspeitando que o filho
mais velho, Sarat, desejava ser recluso e decidido a mudar sua mente em direção à vida
mundana com argumentos, o pai de Sarat, Girish Chandra, deu o passo extremo de cortar todos
os contatos do filho com seus companheiros discípulos, fechando-o num aposento. Imperturbável,
Sarat Chandra aceitou o confinamento solitário inevitável em sua própria casa e utilizou
integralmente a solidão, dirigindo a mente a seu objetivo espiritual. Contudo, certo dia, quando
um dos seus simpáticos irmãos mais jovens furtivamente destrancou o quarto, Sarat Chandra
silenciosamente saiu da casa e foi diretamente para o mosteiro de Baranagar. Depois disso, ele e
alguns discípulos irmãos reuniram-se na casa de Baburam (mais tarde Swami Premananda) e ali,
inspirados pela exortação de seu líder, Narendranath, durante uma longa noite em volta do fogo
sagrado, tomaram o voto de Sannyasa, ou monasticismo, para vida inteira.
Passo a passo, sem qualquer alarde, Sarat Chandra avançava no caminho marcado para
os monges hindus. Seguiu-se um período de austera vida monástica no mosteiro de Baranagar. Sem
prestar qualquer atenção à magra pensão de alimento e de roupa que os precários recursos do
mosteiro proviam, esses jovens de classe média, educados, concentraram-se na árdua tarefa de
realizar o Divino. Nenhuma outra preocupação podia apresentar-se no caminho de seu esforço,
dirigido totalmente à vida espiritual. Meditação, hinos, orações, estudo das escrituras e discussão de
tópicos religiosos era tudo o que absorvia a maior parte de seu tempo e de sua energia.
Assim os jovens aspirantes espirituais mantinham-se ocupados e não estavam dispostos a
descansar enquanto não atingissem seu objetivo. Num auspicioso dia, no mosteiro de Baranagar,
fizeram o ritual sagrado conhecido como Viraja Homa, e assim, através de uma cerimônia, juntaram-
se à tradicional ordem monástica hindu. Embora sua vida monástica tenha virtualmente começado
com Sri Ramakrishna, em seus últimos dias, na chácara de Kasipur e tenha sido reforçada por
seus votos solenes na casa de Baburam, sob a inspiração de Narendranath, foi a partir desse dia
que iniciou nova vida de acordo com os textos religiosos hindus. Eliminando todas as impressões
anteriores a respeito de suas castas e posições sociais relacionadas com as famílias em que
nasceram, descartaram até seus antigos nomes e títulos. A partir daquele dia, Sarat Chandra passou
a ser conhecido como Swami Saradananda.
Logo, Saradananda, como a maioria dos ocupantes do mosteiro de Baranagar, foi tomado
pela paixão de levar a vida solitária de monge errante (Parivrajaka). Até a companhia de seus
irmãos e também, a vida segura, dentro do mosteiro, mexiam com seus nervos, como um grilhão
insuportável. Sentia uma necessidade incontrolável de andar de um lugar para outro como alma
livre, à procura de seu objetivo espiritual, dependendo somente de Deus para comida e abrigo. As
cidades sagradas, as margens de rios e retiros no Himalaia, ricos de associações espirituais
acumuladas por santos e sábios, durante centenas de séculos, fizeram um apelo irresistível à sua
mente pura.
Sua primeira permanência fora do mosteiro de Baranagar foi em Puri, cidade sagrada de
Jaganath, à beira-mar. Depois de algum tempo voltou, saindo novamente para passar bastante
tempo em vários lugares sagrados ao norte da Índia. De Banaras e Ayodhya prosseguiu até
Hrishikesh onde, absorvido em prática espiritual, permaneceu alguns meses levando a vida
tradicional dos monges hindus. No verão de 1890 subiu os Himalaias para visitar Kedarnath,
Tunganath e Badrinarayan e, em julho, desceu para Almora onde, dentro de um mês, encontrou Swami
Vivekananda, com quem foi novamente a Hrishikesh, através do Estado de Garhwal. Então, depois de
passar algum tempo em Meerut e Delhi com Swami Vivekananda, desceu para Banaras, visitando
pelo caminho, lugares sagrados como Mathura, Vrindavan e Prayag (Allahabad). Depois de um
outro período de intensa pratica espiritual na cidade sagrada de Banaras, teve um ataque de
desinteria com sangue, que o trouxe de volta ao mosteiro de Baranagar, em setembro de 1891.
Ao recuperar-se foi a Jayrambati para apresentar seus respeitos à consorte espiritual de Sri
Ramakrishna conhecida pelos devotos como Santa Mãe.
O itinerário de um monge errante como Swami Saradananda pode ser seguido em
detalhe e o caminho percorrido por sua mente, acelerada pelas experiências espirituais, não
pode ser traçado. Como, quando e por quais estágios seu gênio espiritual desabrochou
completamente, não pode ser dito com precisão. Assim, o conteúdo mais interessante e
substancial de sua vida permaneceu como um livro selado no coração do sábio.
Em 1892, o mosteiro foi transferido de Baranagar para Alambazar, lugar mais perto do
templo de Dakshineswar. Por um período razoavelmente longo, antes e depois dessa mudança, a
irmandade não teve conhecimento do paradeiro de seu líder, Narendranath, até que ficaram
emocionados ao saber que seu irmão errante havia atravessado os mares e explodido na
sociedade americana, na véspera, no Parlamento das Religiões em Chicago, como Swami
Vivekananda, o Monge Ciclônico da Índia. A partir de março de 1894 esse último manteve-se em
contato com os irmãos do mosteiro de Alambazar através de correspondência regular e continuou
inspirando-os a sair da reclusão monástica tradicional para inaugurar uma nova Ordem de
Monges Hindus, que aceitava o ideal de salvação individual com o serviço da humanidade
endeusada. Dois anos depois ele chamou Swami Saradananda para ajudá-lo no seu movimento de
Vedanta no Ocidente. Por isso, no dia 1° de abril de 1896, Swami Saradananda chegou a
Londres onde mais ou menos um mês mais tarde Swami Vivekananda também chegou pela
segunda vez, vindo da América.
Depois de fazer alguns discursos em Londres, Swami Saradananda teve que passar pelos
Estados Unidos e reunir-se à Vedanta Society que acabava de ser inaugurada por Swami
Vivekananda em Nova Iorque. Ali começou um trabalho sólido através de suas interessantes
conferências sobre a Vedanta e idéias e ideais dos hindus, bem como aulas edificantes sobre o
sistema de Yoga. Fez preciosas contribuições à Conferência de Greenacre de Religiões
Comparadas, à Associação Ética de Brooklyn e à elite interessada de Boston e Nova Iorque,
apresentando a visão hindu da vida, ao público da América. Suas palestras, saindo do fundo do
seu coração, tiveram efeito marcante no público. Além disso, seu comportamento calmo,
maneiras dignas e gentis, sua visão católica e seu amor universais, conquistaram-lhe muitos
amigos e admiradores ali. Sob seu cuidado vigilante, a Sociedade de Vedanta em Nova Iorque
estava sendo colocada numa posição perfeita, quando um chamado de seu líder cortou seu
trabalho no Ocidente e o fez partir para a Índia, via Europa, no dia 12 de janeiro de 1898.
Swami Vivekananda, o líder, havia regressado à Índia em janeiro de 1897 e no meio de
um período febril de difusão de sua mensagem, praticamente em toda a Índia, de Colombo a
Almora, havia começado a trabalhar incessantemente para a fundação da Ordem Ramakrishna
de Monges e a Missão Ramakrishna. No dia 1° de maio do mesmo ano, inaugurou a Missão
Ramakrishna e uma Associação de membros leigos e monásticos para a realização de trabalho
espiritual e humanitário. Dentro de um ano após sua chegada, o mosteiro de Alambazar foi
transferido temporariamente para a chácara de Nilambar Mukherjee em Belur, onde, bem
perto, na margem ocidental do Ganga, foi comprado o terreno para a construção do mosteiro
permanente da irmandade. Por essa época foi solicitado o serviço de Swami Saradananda para
dirigir a Missão Ramakrishna, como seu secretário e também para o gerenciamento do mosteiro.
Swami Saradananda chegou ao mosteiro, na casa acima mencionada, logo em fevereiro
de 1898 e assumiu os deveres que lhe haviam sido confiados. No começo do ano seguinte, o
mosteiro foi transferido para um lugar permanente, atualmente conhecido como Belur Math.
Alguns anos mais tarde, Swami Vivekananda colocou a organização monástica numa base legal
estável, executando um Edito de Confiança e incorporando nessa organização as idéias, os ideais
e as atividades para os quais a Associação da Missão Ramakrishna havia sido criada. Nesse
novo cenário, Swami Saradananda também foi escolhido pelo líder, para atuar como
Secretário. Pode-se mencionar que mais tarde, por considerações práticas, o Ramakrishna Math
e a Missão foram separadas em duas organizações paralelas, o Swami continuou a dirigir ambos
como Secretário. Com a dedicação de um seguidor fiel, Swami Saradananda continuou no posto
até o final de sua vida, considerando-o um encargo sagrado, a ele confiado por Swami
Vivekananda.
Contudo, Swami Saradananda, com a experiência recente dos métodos ocidentais de
organização, logo colocou os negócios internos do mosteiro em perfeita ordem. Sob seu cuidado
e guia, uma rotina de vida dividida entre prática espiritual, estudo das escrituras e obrigações
domésticas foi mantida com absoluta regularidade dentro do mosteiro. Além disso, com o
conhecimento das necessidades e temperamentos ocidentais, aplicou-se com dedicação a
treinar pregadores para o Ocidente entre os monges merecedores desse encargo.
Além de tudo, tinha que atender a um grande número de obrigações ocasionais, a
chamado do líder. Depois de alguns meses de sua chegada da América, tomou parte ativa na
conclusão do trabalho da Ramakrishna Mission em Calcutá, de socorro às vítimas das pragas;
muitos meses depois atuou como guia para alguns discípulos ocidentais de Swami Vivekananda
em sua viagem por numerosos lugares históricos da Índia. No ano seguinte, imediatamente
depois que o mosteiro havia sido mudado para seu local permanente, teve que coletar fundos
para Belur Math, durante uma viagem de conferências através dos importantes estados de
Rajasthan e Sourashtra, a noroeste da Índia. Voltando para Belur Math, pouco antes de Swami
Vivekananda partir para sua segunda visita ao Ocidente, dedicou-se, com o zelo habitual, às
obrigações normais dentro do mosteiro. No final daquele ano, visitou algumas cidades
importantes de Bengala Oriental e levantou o fervor espiritual das pessoas interessadas com
conversas e instruções inspiradoras.
Swami Vivekananda voltou de sua segunda viagem ao Ocidente no final de 1900;
colocou em execução o Acordo de Confiabilidade de Belur Math em janeiro de 1901 e faleceu
em julho de 1902, deixando o Ramakrishna Math e Missão aos cuidados de Swami Brahmananda
e Swami Saradananda que ocupavam os postos chaves de Presidente e Secretário,
respectivamente. Apesar do duro choque com a separação de seu amado e querido líder, Swami
Saradananda continuou arcando com a responsabilidade onerosa da administração, dia a dia, do
Math e da Missão, sob a direção inspiradora do Presidente, Swami Brahmananda, filho espiritual
de Sri Ramakrishna.
Logo Swami Saradananda tomou para si a tarefa adicional de administrar e editar a revista
mensal, Udbodhan, que havia começado aproximadamente três meses antes, sob a direção de
Swami Vivekananda e estava sendo habilmente conduzida por um de seus brilhantes companheiros,
Swami Trigunatitananda. Como esse último tinha que deixar a Índia para reunir-se a um dos
centros de pregação da Missão nos Estados Unidos, a revista estava a ponto de fechar por falta
de um organizador capaz, quando Swami Saradananda entrou. Sob seu cuidado eficiente e
perseverante, a Udbodhan continuou ganhando popularidade, como havia sido desejado pelo líder
que havia partido e sua condição financeira levantou-se gradualmente. Depois de diversos anos de
luta intensa e trabalho duro, tornou-se possível para o Swami mudar o escritório da Udbodhan
para uma casa permanente de sua propriedade.
Foi para encontrar uma residência permanente em Calcutá para a Santa Mãe que fez o
Swami sentir a necessidade de construir um prédio o mais rápido possível, mesmo incorrendo num
empréstimo de sua própria responsabilidade. O andar superior foi reservado para residência dela
quando de sua permanência em Calcutá para abençoar os monges e noviços da Ordem de
Ramakrishna, bem como centenas de devotos de todas as partes. Ela agraciou a casa com a
primeira visita em 23 de maio de 1909. Naturalmente o objetivo adicional da casa era instalar o
escritório da Udbodhan que rapidamente se desenvolvia com a tarefa de publicar principalmente
livros bengalis ligados ao que é conhecido como literatura Ramakrishna-Vivekananda. O andar térreo
foi reservado para essa finalidade. Por isso até hoje a casa é conhecida pelos devotos como a casa da
Mãe e para o público em geral como Escritório do Udbodhan.
Contudo foi para pagar o empréstimo que Swami Saradananda teve a idéia de escrever e
publicar uma biografia autêntica de Sri Ramakrishna. Com supremo entusiasmo dedicou-se a terminar
o trabalho, carregando o tempo todo o fardo de dirigir os negócios do Ramakrishna Math e Missão.
Vigorosamente aplicou-se a coletar todos os dados e examiná-los cuidadosamente. Com cuidado
escrupuloso a fim de trazer à luz a descrição correta da vida do Mestre tanto quanto possível,
confiando somente em evidências indubitáveis. Dia a dia, ano após ano, o Swami permanecia
absorvido nesse trabalho, diante de uma pequena escrivaninha num quarto pequeno, embora
distraído de vez em quando pelos visitantes ou pelos trabalhos prementes relacionados com o
Math e a Missão. Essa foi a gênese da brilhante produção bengali, Sri Ramakrishna Lila-
PraSanga, que foi publicada primeiro em série, como artigos, na Udbohan, desde 1909 depois,
em cinco volumes, entre os anos de 1911 e 1918.
Em 1909 a Ramakrishna Mission foi organizada como um corpo separado, para exercer
atividades filantrópicas e educacionais para todas as camadas da população, independente de
casta, credo e cor. Filiais da Ramakrishna Mission, bem como do Ramakrishna Math foram
abertas uma após outra, em diferentes partes de Índia e em alguns países estrangeiros e elas
continuaram multiplicando-se à medida que os anos se passavam. Além disso trabalhos
ocasionais de socorro durante calamidades devidas a enchentes, fome, terremotos ou epidemias
nesse país tinham que ser organizados e dirigidos de tempos em tempos. Naturalmente a
tarefa de conduzir tudo, como Secretário tanto do Math como da Missão, tornou-se cada vez
mais dura à medida que os anos se passavam, mas Swami Saradananda era sempre o mesmo
em todas as ocasiões. Com sua calma habitual, silenciosamente e sem ostentação dirigia os
negócios, encontrando às vezes situações embaraçosas e resolvendo muitos problemas
complicados que surgiam. Foi por seu manejo ousado e sagaz que alguns pretensos políticos
aspirando a vida espiritual, puderam juntar-se à Ordem Ramakrishna e colocar-se em serviço
valioso sem serem molestados pelo Governo. Quando as autoridades políticas olhavam com
desconfiança até para organizações de serviço, foi através de seus esforços, que a Missão
Ramakrishna pode levar avante suas atividades livres de qualquer medida governamental.
Por trás das intensas e variadas atividades do Swami Saradananda, pode-se perceber as
feições supernormais de sua vida interior. É através das respostas ao mundo exterior de um
vidente, que se pode possivelmente ter uma chave para a fonte de sua inspiração e energia. Os
incidentes seguintes da vida de Swami Saradananda obviamente dão essa chave.
No final de 1898, quando viajava numa carroça de Rawalpindi para Srinagar, no
Kashmir, para se encontrar com Swami Vivekananda e sua comitiva, deu prova convincente de sua
maravilhosa equanimidade diante de uma situação perigosa. Aconteceu que de súbito, o cavalo
assustou-se e precipitou-se, desgovernado, com o veículo numa velocidade perigosa. Felizmente sua
corrida maluca foi detida, no lado íngreme da colina, por uma grande árvore, quando Swami
Saradananda calmamente saiu da carruagem. Naquele mesmo momento uma pesada pedra rolou de
cima e poupando sua pessoa por algumas polegadas, caiu sobre o cavalo, matando-o
imediatamente. Absolutamente calmo durante o incidente que muito poderia ter-lhe custado a
vida, o Swami permaneceu uma testemunha desinteressada de toda a cena como um verdadeiro
Sthiprajna, aquele cuja consciência está fixa no Ser Supremo.
A extraordinária serenidade de uma alma liberada diante de uma situação perigosa foi
também demonstrada através de outros incidentes emocionantes de sua vida. Durante sua viagem
a Londres em 1896, quando o navio foi surpreendido por um ciclone, no Mediterrâneo, o Swami
permaneceu imóvel, observando imparcialmente a corrida das pessoas em pânico e gritos
desesperados, à sua volta. Noutra ocasião, mais tarde em sua vida, enquanto atravessava o
Ganga num barco que estava prestes a soçobrar devido à violenta tempestade, o Swami permaneceu
imperturbável, como se nada sério houvesse em sua volta. Sua atitude absolutamente
despreocupada chegou ao ponto de fazer com que seu companheiro em pânico tivesse um gesto
rude. O comportamento do companheiro apavorado provocou um sorriso cordial do Swami.
Outro incidente, de natureza diferente, tem um significado peculiar recordando uma das
visões de Sri Ramakrishna a respeito da vida anterior do Swami Saradananda como companheiro
(apóstolo) de Jesus. Em sua viagem para a Índia, quando visitava a Catedral de São Pedro em Roma,
sua mente de repente foi puxada para um plano superconsciente e ele entrou em profundo transe
místico (Samadhi). O que realmente viu e sentiu naquele momento, permaneceu um segredo de
sua vida, hermeticamente guardado. Pode-se supor, razoavelmente, que a Catedral sagrada associada
à memória santa dos apóstolos de Jesus tenha despertado uma lembrança vívida de sua vida
anterior, como foi visualizada pelo Mestre e afogou durante aquele momento a consciência de
sua imediata circunvizinhança.
A sublimidade espiritual de Swami Saradananda através desses incidentes significativos
em sua vida, foi constatada por alusões feitas por ele em algumas ocasiões raras. Nas páginas de
seu diário pessoal encontramos repetida menção à sua comunhão direta com a Mãe Divina.
Também a admissão explícita seguinte, ao dedicar seu iluminado livro em bengali Bharater
Shakti-Puja (Culto da Mãe Divina na Índia) pode ser citada como um exemplo nesse sentido: "O
livro é dedicado com grande devoção àqueles por cuja graça o autor foi abençoado com a
realização da Mãe Divina em cada mulher na terra." Isso mostra a que alturas da experiência
espiritual sua mente foi elevada. Realmente essa realização é a verdadeira meta do Culto da
Mãe (Tantrika Sadhana). Incidentalmente, pode-se mencionar que o Swami Saradananda sofreu
a influência desse tipo de prática espiritual mais ou menos dois anos após sua volta do
ocidente. Mais tarde em sua vida, em resposta às constantes e sinceras perguntas de um
atendente monástico, relativas à realização espiritual de Swami Saradananda uma significante
frase desapercebida dos lábios fechados do Swami: "Nada além de minha experiência espiritual
foi relatada no livro, Sri Ramakrishna Lila-Prasanga." E esse livro está repleto de realizações
espirituais de vários tipos, inclusive o mais elevado da unidade transcendental no Nirvikalpa
Samadhi. Essa frase representa a essência de sua vida interior como a de uma alma liberada -
um vidente das verdades últimas da vida e da existência.
Contudo, além e acima de todas as atividades de Swami Saradananda ligadas ao Math e à
Missão, bem como à composição e publicação da biografia do Mestre, sua primeira preocupação
parecia ser o conforto, bem-estar e saúde da Santa Mãe. Ele a considerava a Mãe Divina
encarnada e colocou-se completamente a seu serviço. Quer ela estivesse em sua casa de
campo em Jayrambati ou na cidade, o Swami era todo atenção para com ela. A casa de Calcutá
foi construída, como vimos, principalmente para facilitar sua estadia confortável na cidade. E
para concretizar isso o mais rápido possível, ele não se importou de endividar-se; nem se
preocupou em empreender um trabalho extenuante durante nove anos, de uma só tirada, na
produção e na publicação de Sri Ramakrishna Lila-Prasanga a fim de saldar aquele débito.
Realmente sua devoção à Santa Mãe não pode ser sondada. Sentado numa pequena sala no
andar térreo da casa de Calcutá, era encontrado controlando a torrente de visitantes
exatamente como um porteiro. Às vezes de brincadeira, apresentava-se aos estranhos como o
porteiro da Mãe. Pode-se saber desse fato, que era uma glória e privilégio servir a Santa Mãe
mesmo daquela maneira. Em toda sua última permanência na casa de Calcutá durante sua
doença fatal em 1920, com que cuidado ansioso o Swami entrava em detalhes minuciosos
relativos a seu tratamento médico e enfermagem, não poupando cuidados, mesmo que em vão,
para que ela se recuperasse.
Três anos mais tarde, em abril de 1923, o Swami teve a satisfação de perpetuar a
sagrada memória da Santa Mãe, construindo um templo dedicado a ela em sua terra natal,
Jayrambati. Durante a cerimônia de consagração, o estado benigno da Santa Mãe pareceu tomar
conta da mente do Swami que agia da mesma forma que ela, agraciando com iniciação
espiritual todos os tipos de pessoas que dele se aproximavam naquela ocasião. Podia-se sentir o
fervor espiritual que irradiava do Swami nos dias festivos relacionados com a cerimônia.
A consagração do Templo da Santa Mãe foi talvez a última oblação oferecida pelo Swami
Saradananda, a fim de completar sua obra em vida, que foi um longo rito contínuo de sacrifícios.
Depois da saída sucessiva de alguns fundadores da irmandade, a morte da Santa Mãe em
1920, seguida dois anos depois por Swami Brahmananda, o primeiro Abade e guia da Ordem,
chocaram até o impassível Swami. Essas perdas pareciam arrefecer o gosto do Swami para o
trabalho. Foi por essa razão que, depois de ver a construção e consagração do templo da Santa
Mãe, o Swami praticamente desapegou-se do trabalho ativo e continuou a passar longas horas
em meditação. Desistiu de escrever e nunca mais teve ânimo para terminar sua magnum opus,
Sri Ramakrishna Lila-Prasanga.
A única coisa que o preocupava naquele momento era injetar nos membros jovens da
Ordem, a fé inquebrantável nas idéias e ideais deixados pelo seu fundador, Swami Vivekananda
e também, treinar um grupo de jovens monges para dividir o fardo da direção da organização
que ele vinha carregando nos seus próprios ombros. Com esse objetivo, em 1926, convocou uma
Convenção de representantes de todos os Maths e centros de Missão e no discurso inaugural avaliou
diante deles o crescimento do movimento Ramakrishna que caminhava nessa época a toda velocidade,
prevenindo-os contra possíveis ciladas no caminho e exortando-os enfaticamente a se manterem firmes
aos ideais, de maneira que pudessem andar para frente, vencendo os obstáculos do caminho. Na
abertura da Convenção o Swami estabeleceu uma Comissão de Trabalhos para pôr o Secretário do
Math e da Missão a par de praticamente todos os problemas administrativos. Como os velhos
remanescentes estavam a ponto de sair de cena, o contexto das coisas indicava que um vigoroso
grupo de jovens monges deveria ser treinado para substituí-los. Esse projeto da Comissão de
Trabalhos inaugurada por Swami Saradananda servia não somente ao propósito daquele momento,
mas também provou ser um elo administrativo permanente e útil do Math e da Missão.
Assim, entusiasmando os jovens membros da Ordem ao manter bem alto as idéias e ideais
pelos quais deveriam lutar e criando meios e maneiras para colocá-los em prática por gerações
sucessivas, Swami Saradananda complacentemente entregou o cargo a ele confiado há três décadas
por seu amado líder Swami Vivekananda e placidamente entrou em Mahasamadhi no dia 19 de agosto
de 1927.
Uma alma iluminada, completamente livre de todos os tipos de grilhões, não é limitada por
nenhum código prescrito de vida. Até a idéia de dever deixa de ter qualquer significado para quem
viu através do universo e realizou a Unidade que tudo penetra, como sua essência. Contudo, essa
alma liberada, quando comissionada pela Vontade Divina para trabalhar pela elevação da
humanidade, mostra traços de caráter adequados ao papel que vai desempenhar. O papel de Swami
Saradananda foi o de demonstrar, por sua vida, qual o modelo ideal de Karmayogi. Com perfeito
desapego e autocontrole, continuou escrupulosamente cumprindo os deveres que se apresentaram,
dando a mesma atenção tanto aos menores como aos maiores. Nem desagrado, nem favor, nem
quaisquer dificuldades desviaram-no de seu caminho reto e estrito.
Realmente apresentou-se como modelo de trabalhador ideal, como desejado por Swami
Vivekananda. Sua mente racional, seu coração compassivo, sua mente pura e perfeitamente
equilibrada, sua energia indomável e sua rara habilidade para organizar, combinaram-se para
erigir um tal modelo. "Paciência infinita e perseverança infinita", como Swami Vivekananda queria ver,
estavam em seu sangue. Vivekananda comentou, "O sangue de Sarat é frio como o de um peixe,
nada pode inflamá-lo". Seu coração era "profundo como o oceano, amplo como o céu infinito",
como Swami Vivekananda o teria. Swami Saradananda via divindade potencial mesmo no pior
pecador e tentava, até o fim, trabalhá-lo com amor profundo e simpatia. Pessoas más e rebeldes,
abandonadas por seus companheiros, encontravam refúgio sob seu cuidado complacente e
naturalmente reuniam-se à sua volta. Na verdade ele era uma ilustração viva da veracidade da
afirmação de Swami Vivekananda, "O homem de renúncia vê a todos com equanimidade e dedica-se
ao serviço de todos." Sem qualquer ar de superioridade, tratava todos da mesma maneira. Jamais
importou-se com o bem-estar e conforto pessoais. Dificilmente aceitava qualquer serviço, mesmo
de seus próprios discípulos, mas estava sempre pronto a enfrentar qualquer dificuldade, ou até
arriscar a vida para ajudar os outros em perigo. Ao atravessar uma ravina nos Himalaias a caminho
do templo de Badrimarayan, deu sua bengala para um dos peregrinos, uma velha senhora,
desconhecida, sem pensar sequer um momento que risco seria para ele passar o lado íngreme da
colina sem qualquer vara como apoio. Era encontrado à beira do leito de pacientes sofrendo de
doenças contagiosas fatais, com quem parentes não ousavam ter contato. Suas palavras de
consolo deram alívio a muitas pessoas que sofriam de agonias mentais.
A marca distintiva de sua personalidade estava estampada em sua conduta geral. Era o
exemplo objetivo de boas maneiras. Mesmo aqueles meticulosos em etiqueta eram conquistados por
suas maneiras cativantes. A paciência que usualmente demonstrava enquanto ouvia e respondia,
até mesmo a perguntas tolas de jovens, era certamente maravilhosa. Sua voz doce e calma
muitas vezes tirava a força de qualquer palavra rude que poderia ter proferido a fim de
repreender um ofensor. Soava como a reprimenda de mãe para o filho que errou. Contudo sua voz
maternal era contrabalançada por uma seriedade reverente e estas, efetivamente combinadas,
produziam o efeito desejado na consciência do culpado.
Swami Saradananda foi um exemplo de trabalho metódico, lento, firme e regular em
seus movimentos, olhava para uma coisa com muita atenção quando ela merecia. Qualquer
empreendimento, grande ou pequeno era, para sua mente ampla, igualmente sagrado, como
se fosse um ato de adoração. Sempre frio em seu julgamento, raramente era visto precipitando-
se em tomar qualquer decisão se tivesse elementos suficientes ou não confiáveis. Era
perfeitamente racional, atencioso e psicológico em seus métodos, quando se tratava dos homens
e de seus negócios.
Finalmente, o amor pela ordem era uma virtude inata nele. Embora bastante simples em
suas necessidades, verificava escrupulosamente que tudo à sua volta fosse mantido limpo e
arrumado. Possivelmente esse traço foi reforçado pelo exemplo de seu Mestre. Sri Ramakrishna,
que havia sido inigualável em simplicidade com ordem.
Do resumo acima pode-se ter idéia do papel que o autor de Sri Ramakrishna Lila-
Prasanga, Swami Saradananda teve como um dos principais organizadores do Ramakrishna
Math e Missão. Sempre permanecerá como modelo perfeito para ser imitado por todos os que têm
como objetivo de vida a salvação pessoal e o bem-estar do mundo.
Swami Nirvedananda
SRI RAMAKRISHNA O GRANDE MESTRE
PARTE I
BALYABHAVA
OU
Pela graça de Deus, a primeira parte do Sri Ramakrishna, o Grande Mestre, foi agora
publicada. Contém uma exposição detalhada dos primeiros anos da vida de Sri Ramakrishna e o
objetivo de sua vinda. Foi aqui feita uma tentativa para apresentar ao leitor um imagem mental
que formamos ao ouvir de várias pessoas muitos incidentes relatados, da vida do Mestre naquela
época. Embora pessoas como Hridayram Mukhopadhyaya, Ramlal Chattopadhyaya e outros deram
a ajuda que podiam, ao acertar as datas corretas de certos eventos, contudo ainda persistem
dúvidas sobre alguns pontos. Não puderam dar os horóscopos do pai, mãe, irmão mais velho e
outros parentes próximos de Sri Ramakrishna; mas deram, em lugar disso, certas datas
aproximadas de eventos ligados à vida do Mestre, dizendo por exemplo: "Por ocasião do
nascimento de Sri Ramakrishna, seu pai tinha sessenta e um ou sessenta e dois anos.",
"Ramkumar, seu irmão primogênito era mais velho aproximadamente trinta e um ou trinta e dois
anos", e assim por diante.
Contudo o leitor ficará convencido, ao ler o Capítulo V desta parte, "Nasce uma Grande
Alma", que não há dúvida quanto à data de nascimento de Sri Ramakrishna como foi relatada
aqui. Ficamos assegurados a esse respeito e a muitos outros acontecimentos deste livro, pelas
próprias palavras do Mestre, algumas das quais foram ouvidas pelo autor. É ao Mestre, portanto,
que devemos nos ligar a respeito desta informação. Quando no início nos dispusemos a descrever
certos períodos de sua vida, parecia-nos impossível narrar os acontecimentos de sua infância e
juventude de um modo tão detalhado e interligado. Compreendemos, portanto, que é pela
graça de Deus, que "faz o mudo eloqüente e o aleijado capaz de subir uma montanha", que isso
se tornou possível e inclinamo-nos ante Ele repetidamente.
Pode também ser dito, para concluir, que se o leitor, depois de terminar essa parte do livro,
percorrer as outras partes, a saber, "Como Aspirante Espiritual" e "Como Instrutor Espiritual" (I e
II), encontrará a história da vida do Mestre relatada cronologicamente desde a data de seu
nascimento até o ano de 18811. (1 Mais tarde um outro volume, “O Mestre em Estado Divino e NarendraNath” foi
acrescentado para completar sua Vida até 1886.)
I N T R O D U Ç Ã O
ASSUNTOS: 1. A espiritualidade é o centro da vida na Índia. 2. Nascimento de grandes almas é a sua causa. 3.
A religião da Índia está fundamentada na realização. 4. Desenvolvimento da idéia de Encarnação Divina. 5. O
Deus Pessoal durante a era de devoção. 6. A adoração do instrutor espiritual (Guru). 7. A doutrina de Deus
Encarnado está fundamentada nos Vedas e na experiência de Samadhi. 8. A compaixão de Deus e a idéia de
Deus Encarnado. 9. Os Sastras sobre a natureza divina das Encarnações . 10. Memória contínua da Encarnação .
11. As Encarnações dão uma nova feição à religião. 12. Quando as Encarnações vêm? 13. O advento das
Encarnações na era moderna.
1. Ao fazermos o estudo comparativo dos ideais e das tradições espirituais da Índia nos
assuntos espirituais com aqueles dos outros países do mundo, notamos grande diferença entre eles.
Desde os tempos remotos, a Índia aceitou as entidades espirituais além dos sentidos, como Deus,
alma, o próximo mundo, como reais, cuja existência poderia ser realizada e verificada mesmo
aqui em nossa vida terrena e tem como conseqüência, formulado meios de vida para o homem,
tanto individual como coletivo, que conduzem à conquista desse objetivo. A vida do país tem sido,
portanto, caracterizada por intensa espiritualidade através dos tempos.
2. Ao pesquisarmos a causa desse interesse absorvente da mente indiana em assuntos
espirituais, encontramos que foi devido ao nascimento freqüente, neste país, de seres divinos
possuidores do conhecimento direto dessas entidades espirituais. Devido às freqüentes
oportunidades de testemunhar a vida e as experiências desses personagens e fazer um estudo
sistemático, desenvolveu-se na mente indiana profundo interesse e fé nas experiências espirituais
além dos sentidos, das visões e das manifestações de poder espiritual. A vida nacional da Índia foi
assim estabelecida desde tempos imemoriais, no sólido fundamento da espiritualidade. Mantendo
seus olhos firmemente fixos nesses ideais espirituais, este país desenvolveu uma sociedade
baseada no conjunto de costumes e práticas especiais, que permitiram a seus membros atingirem
o objetivo de realização de Deus de maneira muito natural, através da execução de seus deveres
diários, de acordo com seus gostos e qualificações próprias. Como essas regras e esses
regulamentos vêm sendo seguidos, de geração em geração, os ideais espirituais da Índia
permaneceram vivos e vigorosos. Como conseqüência, homens e mulheres, mesmo hoje em dia
têm forte convicção que, com a ajuda de austeridade, autocontrole e intensa aspiração, todos
poderão ter a experiência direta de Deus, a fonte deste mundo mutável e obter a união com Ele.
3. Que a religião da Índia está fundamentada na visão de Deus torna-se claro ao refletirmos
no significado das palavras e expressões como Rishi (vidente), Apta (aquele que atingiu o objetivo
da vida), Adhikarika (aquele que possui autoridade), Prakritilina Purusha (uma pessoa mergulhada
na causa do universo) etc. Esses nomes vêm sendo empregados desde os tempos védicos para
descrever os instrutores que chegaram para restabelecer a religião. Está além de qualquer dúvida
que tais homens foram designados por esses nomes, porque haviam dado prova de seus poderes
únicos, conquistados como resultado do conhecimento direto da realidade além dos sentidos. Esta
afirmação vale no caso de cada um deles, desde os Rishis do período védico até às divinas
Encarnações da Época Purânica (Épica).
4. É evidente que certos Rishis do Período Védico vieram a ser reconhecidos, no Período
Purânico, como Encarnações. No Período Védico compreendeu-se que certas pessoas tinham o
poder de perceber a realidade além dos sentidos, mas o fato que a intensidade desse poder tinha
variações nos indivíduos não era reconhecida. As pessoas contentavam-se em chamá-los "Rishis"
como uma classe. No decorrer do tempo, entretanto, com o crescimento de um pensamento mais
refinado e percepção interior filosófica, compreenderam que nem todos os Rishis eram dotados do
mesmo grau de poder ou capacidade de iluminação espiritual. Assim, alguns deles brilhavam
como o sol, alguns como a lua. Alguns, também, como estrelas brilhantes e outros como vaga-
lumes comuns. Então os filósofos começaram a classificar os Rishis de acordo com a capacidade de
espiritualidade que revelavam. Assim, na Idade Filosófica, alguns Rishis vieram a ser conhecidos
como Adhikarika-Purushas (pessoas de autoridade especial). Até Kapila, o fundador da filosofia
Samkhya, que era cético em relação à existência de Deus, teve de aceitar a existência desses
Rishis, porque não podia duvidar do que realmente via. Em seu sistema de filosofia esses
Adhikarika-Purushas foram incluídos na classe dos seres emancipados, conhecidos como
"mergulhados em Prakriti". Procurando a causa do advento dessas pessoas singularmente
poderosas, os filósofos Samkhya chegaram à conclusão de que, dotadas de boas qualidades, tais
como pureza, autocontrole etc., elas haviam adquirido conhecimento infinito, mas que um desejo
ardente de fazer bem às pessoas as havia impedido, durante certo tempo, de mergulharem na
natureza verdadeira do Ser de glória infinita. Identificadas na toda-poderosa Prakriti, vieram a
considerar-se dotadas desses poderes e tornaram-se os centros de sua manifestação. Possuindo
assim poderes especiais, fizeram bem aos homens de um número infinito de maneiras, durante um
ciclo e por fim tornaram-se completamente identificadas com o Ser.
5. Os instrutores Samkhya haviam também dividido as "pessoas mergulhadas em Prakriti",
de acordo com a diferença de seus poderes, em duas classes: "Kalpaniyamaka Isvara" (ou
regulador de um ciclo) e "Isvarakotis" (ou satélites do primeiro.)
Depois da Idade Filosófica veio o período em que o amor pelo divino foi desenvolvido de
maneira especial. Nesse período, pela influência dominadora da Vedanta veio a se crer em Isvara,
uma Pessoa que tudo penetra, o agregado de todos os seres. Adquiriram, também, intensa fé de que
o Conhecimento e o Yoga poderiam atingir o grau mais elevado pela meditação n'Ele, com
devoção integral. Depois vieram a crer que o Isvara, descrito no sistema Samkhya como regulador
de um ciclo, era uma manifestação, ou parcial ou completa do Isvara Pessoal que tudo penetra, que é
por natureza eternamente puro, eternamente desperto e eternamente livre. Assim a crença na
doutrina de Deus Encarnado surgiu na Idade Purânica e aqueles Rishis da Idade Védica, que
possuíam qualidades únicas e extraordinárias, começaram a ser conhecidos como Encarnações. Foi o
advento de seres dotados de tais qualidades que fizeram as pessoas gradualmente acreditar na
existência das Encarnações. Baseado nas visões e experiências além dos sentidos dessas pessoas, o
edifício inabalável da religião gradualmente elevou-se como os Himalaias cobertos de neve, para
atingir o céu. Porque essas pessoas haviam alcançado o objetivo mais elevado da vida, foram
também, chamados "Aptas" e suas palavras, expressando o conhecimento mais elevado, vieram a ser
conhecidas como Vedas.
6. Outra razão para aceitar certos Rishis como Encarnações, foi a prática de adorar o
instrutor espiritual (Guru). Na Índia, desde a época dos Vedas e dos Upanishads, homens e
mulheres adoravam o instrutor, o doador de conhecimento espiritual, com grande reverência. Essa
adoração, combinada com meditação, convenceu-os, ao longo do tempo, que ninguém poderia ocupar
a posição de instrutor espiritual até que o poder divino, além dos sentidos, se manifestasse nele. A
princípio consideraram e adoraram o Guru como pertencente a uma classe diferente e mais elevada
da humanidade, porque achavam que, em contraste com o egoísmo das pessoas comuns, o
instrutor verdadeiro faz bem às pessoas por pura compaixão e sem qualquer motivo egoísta. Mais
tarde, pela fé, reverência e devoção, perceberam diretamente no Guru a manifestação do poder
divino e isto convenceu-os cada vez mais de seus atributos divinos. Oraram ao misericordioso
Senhor para isso, implorando-Lhe "protegê-los com Sua face compassiva" (Rudra yat te
dakshinam mukham, tena mam pani nityarn)1 (1 Svetavatara Upanishad 4.21) sua oração foi por fim aten-
dida. A compaixão do Senhor revelou-se diante deles na pessoa do Guru.
7. Quando os homens tiverem avançado tanto na adoração do Guru, não leva muito tempo
para que se identifiquem com ele - através de quem a Lila (jogo) especial do poder divino se tem
manifestado - com a doação do Conhecimento e do aspecto benigno do Senhor. Parece assim, que a
adoração contínua do Guru fortaleceu a idéia do Deus encarnado. Como já foi mencionado, a doutrina
da encarnação, na realidade, data da Época Purânica, mas a idéia propriamente originou-se na
Idade Védica. As experiências variadas dos atributos, funções e natureza do Isvara, na época dos
Vedas, dos Upanishads e Darsanas (sistemas filosóficos) parecem ter gradualmente assumido a
forma mais definida e então, deram crescimento à crença na doutrina de Deus Encarnado. Pode ser
também que, na era dos Upanishads, os Rishis, descendo pelo processo oposto, do estado de
Samadhi, que eles haviam atingido pelo caminho de "Isto não", "Isto não", com autocontrole,
austeridades etc., realizaram que o universo inteiro era em verdade, a manifestação de Brahman
não-qualificado (Nirguna). Foi somente então talvez, que eles atingiram devoção ao Brahman que
tudo penetra com atributos (Saguna), chamado Isvara, e começaram a adorá-Lo. Tendo assim
obtido uma idéia clara das qualidades, atos, natureza etc., de Isvara, eles puderam ser
convencidos da possibilidade d'Ele ser manifestado de maneira especial.
8. Foi na Idade Purânica, portanto, que a crença na existência das Encarnações
desenvolveu-se de forma especial. Apesar dos vários defeitos no desenvolvimento da espiritualidade
naquela era, a fé na glória de Deus encarnado tornou-se realmente grande. Essa crença na
existência da Encarnação também possibilitou aos homens a compreenderem o jogo eterno do
Saguna Brahman. Como conseqüência realizaram que Deus, a causa do universo, era seu único
guia no mundo espiritual e estavam convencidos de que a infinita compaixão do Senhor nunca
permitiria que eles fossem condenados, por mais réprobos que pudessem ser, mas que Ele tomaria,
em qualquer época, a forma de uma Encarnação, descobriria novos caminhos adequados à
natureza do homem e tornaria fácil para ele a Auto-Realização.
9. Não está fora de propósito dar aqui um breve resumo das idéias essenciais relatadas nos
Smritis e nos Puranas sobre nascimento, atos etc. da Encarnação Divina que é, por natureza,
eternamente puro, desperto e livre. Ao contrário do Jiva (ser mortal), a Encarnação jamais fica
emaranhada ou presa por ações, pois, estabelecida na felicidade do Atman desde seu nascimento,
nenhuma idéia egoísta de prazer mundano aparece em sua mente, como ocorre com o Jiva. Sua vida
inteira é dedicada ao bem dos outros. Sendo sempre livre das malhas de Maya, retém a
recordação de suas vidas anteriores.
10. Pode-se perguntar: Será que ele tem esta recordação contínua desde a infância? Os
Puranas respondem: Embora latente nele, nem sempre se manifesta em sua infância, mas logo que
o corpo e a mente amadurecem, torna-se consciente dela com pouco ou nenhum esforço. Isto se aplica
a todas as ações. Desde que toma um corpo humano deve comportar-se em todos os aspectos como
ser humano.
11. À medida que o corpo e a mente da Encarnação desenvolvem-se completamente, é-lhe
revelado o objetivo de sua vida. Compreende então, que o único propósito de sua vinda é
restabelecer a religião e quaisquer ajudas para atingir esse propósito vêm-lhe por si mesmas de
forma inexplicável. Anda na luz onde outros tateiam na escuridão. Ela mesma, sem temor, atinge seu
objetivo e acena aos homens para seguirem seus passos. Caminhos não trilhados conduzindo à
realização de Brahman, além de Maya e de Isvara, a causa do universo, são descobertos por Ela, de
época em época, repetidas vezes.
12. Os autores dos Puranas não limitaram o estudo das Encarnações a uma mera análise de
Suas ações e características; chegaram, também, a conclusões definitivas, com respeito à época
de Sua vinda ao mundo. É o veredicto da história, que ao longo do tempo o Sanatana Dharma
(Religião Eterna) tem tendência a periodicamente, decair e declinar. Em tais ocasiões os homens,
iludidos pelo poder inescrutável de Maya, começam a considerar o mundo e seus prazeres como o
que mais importa. Verdades eternas como o Ser, Isvara, liberação etc., são consideradas imaginação
utópica de sonhadores e poetas de uma época passada, mergulhados na ilusão e na obscuridade.
Mas quando afinal, os homens descobrem que nenhuma riqueza ou nenhum prazer mundano
obtidos por meios honestos ou ilícitos podem encher o vazio de seus corações e, quando as ondas
de um mar escuro de desespero, sem praia, caem sobre eles, gritam por liberdade, na angústia
de seus corações. É então que por Sua inata compaixão pela frágil humanidade, Deus encarna-
Se e liberta das incrustações acumuladas durante épocas, a Religião Eterna, restaurando-A a seu
estado de pureza luminosa como a lua libertada da boca de Rahu2 (2 Um demônio na Mitologia hindu que causa
o eclipse engolindo o Sol ou a Lua.) depois de um eclipse. O homem é então trazido de volta ao caminho do
Dharma pelo poder divino. Todo acontecimento nesse mundo tem uma causa e de acordo com essa
lei, o Senhor também toma um corpo em Sua Lua somente quando existe uma necessidade universal.
Só quando essa necessidade torna-se totalmente sentida em cada parcela da sociedade, é que a
misericórdia infinita do Senhor se cristaliza por assim dizer e Ele aparece como instrutor espiritual do
mundo. É esta a conclusão a que os autores dos Puranas chegaram depois de testemunharem os
repetidos aparecimentos das Encarnações.
13. É a necessidade da época, portanto, que invoca uma Encarnação de Deus, o instrutor do
mundo que tudo conhece, aquela que faz jorrar nova luz sobre a religião. A Índia, que sempre
foi o berço da religião e da espiritualidade, tornou-se santa e santificada pelas marcas das
Encarnações, muitas e muitas vezes, através dos tempos. Encarnações, de grandeza
transcendente apareceram na Índia até na época atual, sempre que a necessidade delas surgiu. É
bem conhecido agora, há pouco mais de quatrocentos anos atrás, o brilhante exemplo do Bhagavan
Sri Chaitanya que fez as pessoas se perderem em êxtase ao cantarem nome de Hari. Será que essa
época voltou? Será que na Índia, despida de sua glória e reduzida a um objeto de desespero pelos
estrangeiros, mais uma vez levantasse a misericórdia do Senhor, para que Ele Próprio Se
encarnasse? Que isto tenha acontecido ficará claro na leitura da história da vida da Grande Alma,
dotada da necessidade infinita de fazer o bem, que aqui é relatada. A Índia outra vez, em resposta à
necessidade da época atual, foi abençoada com a vinda d'Aquele que, encarnando-Se como Sri
Rama, como Sri Krishna e como outras Encarnações do passado, renovou muitas e muitas vezes a
Religião Eterna ao longo do tempo.
CAPÍTULO I
A NECESSIDADE DA ÉPOCA
ASSUNTOS: 1. Poder e progresso do homem nos tempos modernos. 2. Sua expansão do Ocidente para o
Oriente. 3. Conseqüentemente os modos de vida ocidentais tornaram-se o modelo de progresso. 4. A causa
e o curso do progresso no Ocidente. 5. Feição não espiritual resulta em falta de satisfação. 6. Egoísmo e
sensualidade: as conseqüências do "progresso" no sentido ocidental. 7. Religião: o fundamento da antiga
vida nacional da Índia. 8. A Índia nunca fez dos prazeres mundanos seu ideal. 9. A ocupação da Índia pelo
Ocidente e seu resultado. 10. Perigos da revitalização na Índia pela imitação do Ocidente. 11. A vida
nacional da Índia: seus méritos e deméritos. 12. O pensamento ocidental é a causa do atual declínio da
religião. 13. Deus encarna-Se novamente para deter o declínio da religião.
1. Mesmo uma pessoa comum pode ver que com a ajuda de conhecimento, riqueza e esforço
pessoal, a humanidade vem progredindo em todos os campos. É como se o homem se recusasse a
pôr um limite em seu avanço em todas as atividades da vida. Não satisfeito em viajar por terra e
por água, inventou uma nova máquina para voar no céu; satisfez sua curiosidade descendo ao
fundo do mar e explorando novos vulcões; escalou montanhas cobertas de neves eternas, cruzou os
mares e observou profundamente os mistérios das várias regiões do mundo; descobriu sinais de
vida semelhantes à sua, pulsando em trepadeiras, plantas e árvores. Ampliou seu conhecimento ao
submeter todos os seres à sua observação e experimentação. Obtendo controle sobre os cinco
elementos - terra, água, fogo, ar e éter - familiarizou-se com inúmeros fatos relacionados com nossa
terra. Ainda insatisfeito, é ávido por descobrir os segredos das estrelas e planetas distantes em
que já foi bem sucedido até um certo limite. Também não há falta de esforço de sua parte para
investigar as leis da vida interior. Pela experiência e pesquisa ele continuamente descobre novas
verdades nesse campo. Chegou à conclusão que uma espécie de seres evolui numa outra e que a
mente consiste simplesmente de matéria sutil e por isso tem começo e fim. Está agora assegurado
que assim como é o exterior, assim é o mundo interior e que cada acontecimento é regulado por
uma lei inviolável; e que atualmente está familiarizado com as leis sutis que governam os impulsos
mentais irracionais como a necessidade de cometer suicídio. Assim também, embora não tenha
nenhuma evidência positiva com respeito à sobrevivência do indivíduo, o estudo da história
convenceu-o de que a vida nacional não somente continua como também evolui. Então,
descobrindo o preenchimento da vida individual na vida da nação, ele declara guerra perpétua à
ignorância com a ajuda da ciência e dos empreendimentos cooperativos para obter sucesso.
Imaginando que através de uma luta infindável ele pode descobrir as regiões mais recônditas dos
mundos exterior e interior e atingir eterno progresso, lançou o barco de sua vida numa corrente de
desejos infindáveis.
2. Essa concepção materialista de vida, baseada na multiplicação de desejos, originou-se
principalmente no Ocidente mas uma boa parte de sua influência é observada na Índia e outros países
orientais, também. Como a ciência diariamente aproxima o Oriente do Ocidente, a feição oriental de
vida gradualmente sofre uma mudança aproximando-se cada vez mais do modelo ocidental. Isso
torna-se claro a partir do estudo da história da Pérsia, China, Japão, Índia e outros países orientais.
Para bem ou mal, o pensamento ocidental está, sem qualquer dúvida, exercendo grande influência
no Oriente. Parece que o mundo inteiro será invadido, ao longo do tempo, pelas idéias ocidentais.
3. Quanto a uma resposta à pergunta se essa concepção de vida trouxe resultados bons ou
maus, devemos ir particularmente ao Ocidente, onde também, descobriremos sua fonte e
natureza. Essa investigação nos mostrará o quanto as primeiras idéias do Ocidente progrediram ou
se deterioraram e se houve perda ou ganho na felicidade do homem. Quando isto for determinado
com respeito ao indivíduo e à nação, no Ocidente, o mesmo processo pode sem dificuldade ser
estendido a outros países, considerando também o tempo em que elas estiveram sob a influência
moderna.
4. A história vem registrando com palavras bem claras que desde tempos imemoriais o frio
intenso predominante nos países ocidentais tornou os homens profundamente conscientes do
corpo. Isto os fez egoístas. Ao mesmo tempo compreenderam que seus interesses egoístas eram
melhor administrados com esforço unido, o que por sua vez tornou-os patrióticos. Este auto-
interesse e patriotismo levaram-nos, no curso do tempo, a declarar guerra às nações vizinhas e a se
apropriar de suas terras e de suas riquezas. Com a melhoria das condições de vida e conseqüente
diminuição da avidez de luta pela sobrevivência, os homens adquiriram a capacidade de olhar
para dentro de si mesmos, procurar conhecimento e cultivar virtudes. Sentiram-se cada vez mais
atraídos por essas buscas mais elevadas acima da simples luta pela existência, mas agora
encontraram obstáculos. As crenças religiosas e a instituição de sacerdotes beatos ficaram no
caminho de um progresso mais avançado na investigação dos segredos da natureza. Os sacerdotes
não somente ameaçaram os homens, condenando-os ao inferno se adquirissem tal conhecimento,
mas foram além e realmente empregaram a fraude, a força e o estratagema para impedi-los de
continuarem seu caminho. Os ocidentais, contudo, acostumados a perseguir seus próprios
interesses, não levaram muito tempo para descobrirem como vencer a oposição dos sacerdotes.
Pressionaram, removendo os sacerdotes de seu caminho. Rejeitando as escrituras e denunciando
tanto a religião como os sacerdotes, começaram a guiar suas vidas ao longo de um novo caminho e
estabeleceram, como princípio, não acreditar ou aceitar nada que não pudesse ser aceito pelos
sentidos.
Afirmando que a verdade só pode ser provada pela evidência direta dos sentidos, espaldada
pelo raciocínio, dedução etc., o Ocidente doravante começou a cultuar a matéria objetiva. Pensando
que o assunto, percebido como "consciência do eu", pertencia à categoria de matéria, continuaram
os cientistas ocidentais a investigar a natureza daquela consciência também pelos métodos de
investigação objetiva adotada no estudo dos fenômenos materiais. Assim, nos últimos quatrocentos
anos, os homens do Ocidente vêm aceitando a realidade somente do que pode ser investigado
através dos cinco sentidos. Dentro desse período, a ciência física superou os erros e limitações de
sua infância e entrou em sua juventude, caracterizada por confiança em seus métodos e orgulho de
seus feitos.
5. Apesar de ser capaz de alcançar grande progresso na ciência física, o procedimento
mencionado não pôde levar os homens ao conhecimento do Atman, porque a única maneira de
atingir tal conhecimento é através do autocontrole, inegoísmo e introspecção e o único
instrumento para alcançá-lo é a mente, com todas as suas funções sob controle. Por
conseguinte, não causa surpresa que, atraído pelos objetos externos, o Ocidente abandonasse o
caminho do Auto-conhecimento e mergulhasse no materialismo baseado na identificação do homem
com o corpo. É por isso que consideram o prazer mundano muito importante e esforçam-se de
maneira especial para obtê-lo. O conhecimento dos fenômenos materiais, adquirido através da
ciência, tem sido aplicado principalmente para aquele fim e os tem tornado cada vez mais egoístas e
ambiciosos, trazendo à existência um sistema social baseado na riqueza. A manufatura das armas de
destruição, o descontentamento profundamente enraizado devido à pobreza, lado a lado com a
prosperidade abundante, a sede insaciável de riqueza e a ocupação e a opressão de outros países -
são algumas conseqüências da filosofia materialista de vida. A busca dos valores sórdidos somente
traz desassossego e insatisfação ao espírito humano. Mesmo a agradável teoria de que, embora o
indivíduo morra, a nação continua a viver e a se beneficiar de seus sacrifícios, não pode trazer
nenhum consolo à geração vivente. Depois de pensar com cuidado, certas pessoas do Ocidente,
chegaram por fim a compreender que o conhecimento obtido por meio dos sentidos não os
capacitará a descobrirem a Realidade além do tempo e do espaço. A ciência lhes dá a indicação
fugaz de sua existência e nada mais, porque a Realidade está além de seu alcance e compreensão.
Um sentimento de total desesperança abateu-se sobre os homens e há um medo crescente em seus
corações pelo colapso da crença de Deus, a fonte de toda força, alegria e prosperidade do homem.
6. Assim o estudo da História mostra que a civilização ocidental está fundamentada no amor
a si própria, no desejo de posses mundanas e na ausência de fé na religião. Outros povos também,
que fundamentam sua vida nesses valores materialistas, colherão os mesmos frutos que os povos
ocidentais. Um exemplo é encontrado no Japão e outros países orientais que modelaram sua vida
nacional inteiramente segundo o Ocidente. Vemos que apesar de suas grandes virtudes, como o
patriotismo, ficaram sujeitos aos males da civilização materialista. Este é o resultado infeliz de ser
inspirado pelos ideais ocidentais, como ficará claro pelo estudo da vida depois de entrar em contato
com o Ocidente.
7. A primeira pergunta é se a Índia alguma vez teve qualquer vida nacional antes de
entrar em contato com o Ocidente. A resposta é que, ainda que ela não estivesse ali em teoria,
sem dúvida existia de fato pois, mesmo naqueles dias o povo da Índia, como um todo, venerava o
Guru, o Ganga, o Gayatri e o Gita; e o "Go" (vaca) evocava os sentimentos mais ternos e reverentes
do povo indiano, em todos os lugares. As idéias do Ramayana, Mahabharata e outros livros
religiosos inspiravam e guiavam a vida de cada homem, mulher e criança; e o sânscrito, a "língua
dos deuses", era o meio comum de expressão dos eruditos. Havia outros fatores similares de unidade
e não há dúvida de que as idéias e a prática religiosas constituíam a rocha daquela unidade.
8. Base da vida nacional na Índia, a religião tornou ímpar sua civilização. A principal
característica dessa civilização é o autocontrole que regula tanto a conduta individual como a da
nação. "Por meio do prazer, além do prazer" é a máxima de cada hindu e a vida aqui neste mundo é
considerada somente preparação para aquela que virá. Lembrado deste ideal elevado em cada estágio
da vida individual ou nacional, o hindu não podia perdê-lo de vista. Era forçado, por assim dizer, a
manter-se sempre orientado na direção desse grande objetivo. Por esta razão seu sistema de
casta ou classe não criou durante muito tempo qualquer conflito de interesses, nem levou
insatisfação à sociedade pois, quando atingido o conhecimento supremo ou liberação através da
prática inegoísta de seus deveres de casta ou classe, sem contar com o nascimento, seja ele em
classe elevada ou não, qual seria possivelmente a causa de descontentamento? Ao contrário do que
sucede na sociedade ocidental, que é baseada no direito de oportunidades iguais para serem
aproveitadas, não havia descontentamento nos grupos sociais da antiga sociedade indiana,
baseada como estava, nos direitos e oportunidades iguais para se alcançar o mais elevado ideal:
o Conhecimento Supremo ou Liberação. As mudanças ocorridas na vida nacional da Índia desde então
e como resultado de seu contato com o Ocidente, são discutidas abaixo.
9. Era natural e inevitável que a ocupação da Índia pelo Ocidente deveria trazer muitas
mudanças na distribuição da riqueza nacional do país, mas a influência do Ocidente foi além.
Produziu uma mudança radical nas convicções profundamente enraizadas que haviam conduzido
homens e mulheres desde tempos imemoriais. Como resultado, cresceu a impressão de que a
doutrina, "desfrutar para renunciar"- indicando que o objetivo do prazer é somente renunciar tudo,
em termos finais - era uma história vazia inventada por sacerdotes buscadores do Eu, que a idéia
de sobrevivência depois da morte era apenas uma quimera de poeta; e que nenhuma lei podia ser
mais injusta e irracional do que aquela em que um homem deveria ser condenado a permanecer toda a
sua vida na camada social em que nasceu. Caindo cada vez mais sob a magia do Ocidente, a
Índia rejeitou o ideal de renúncia e autocontrole e começou a correr atrás dos prazeres mundanos.
Essa atitude trouxe consigo o declínio do antigo sistema de educação e treinamento e então
surgiram o ateísmo, o amor à imitação e a falta de autoconfiança. Assim a nação perdeu sua
espinha dorsal. As pessoas começaram a acreditar que suas crenças e práticas, há tanto tempo
abraçadas, estavam erradas e sentiram que talvez suas tradições eram cruéis e semi-civilizadas, como
declarou o Ocidente, com seu maravilhoso conhecimento científico. Cega pelo desejo de desfrutar, a
Índia esqueceu suas antigas cultura e glória. A perda dessa memória trouxe confusão ao seu
entendimento e à própria existência nacional ficou em risco. Descobrindo que mesmo para o prazer
mundano, ela dependia dos outros, a Índia foi tomada por um sentimento de frustração. Tendo
perdido assim o caminho tanto do prazer, como da liberação, e contudo, sempre inclinada a imitar
os outros, a nação estava agora golpeada pelas ondas do desejo, como um barco sem timoneiro, indo
à deriva.
10. Levantou-se um clamor em todos os lados de que nunca havia existido uma vida
nacional na Índia; que mesmo assim, graças ao Ocidente, havia agora por fim algum sinal dela,
apesar de muitos obstáculos para seu pleno crescimento. Disseram que as crenças religiosas
profundamente enraizadas haviam-na reprimido. A idolatria - a adoração do supremo Ser em
inúmeros aspectos como deuses e deusas - foi também, acusada de tê-la submergido por tanto
tempo. "Fora com a idolatria", gritava o povo, "acabem com ela, somente então os homens e
mulheres do país terão vida nova instilada neles". O cristianismo começou a ser pregado e, à sua
imitação, o monoteísmo ocidental. A Índia, prostrada, teve de ouvir conferências - feitas em
reuniões públicas à moda ocidental - sobre política, sociologia, liberdade das mulheres e casamento
das viúvas. O sentimento de frustração e desespero, contudo, em vez de diminuir, tornou-se mais
forte. A estrada-de-ferro, o telégrafo e outros produtos da civilização ocidental passaram a ser
utilizados; mas estes não corrigiram a situação, porque todas essas inovações não podiam nem
tocar nem estimular os ideais sobre os quais a vida do país dependiam. Uma vez que o remédio
adequado não era aplicado, a doença não podia ser curada. Como podia a Índia, cuja alma era a
religião, voltar à vida, se sua religião não fosse ressuscitada? A influência do Ocidente havia
trazido sua queda. Não seria fútil, então, confiar no Ocidente ateísta para sua ressurreição? Mesmo
imperfeito, como o Ocidente poderia tornar uma outra parte do mundo perfeita?
11. Não se pode dizer que não houvesse defeitos na vida nacional da Índia antes da chegada
dos ocidentais, mas a nação sendo então, cheia de vida e vigor, esforçava-se constantemente para
remover quaisquer defeitos. Agora que à nação e à sociedade faltava este esforço, a expansão das
idéias e ideais ocidentais, em vez de curar a doença estava a ponto de matar o paciente.
12. Está claro que o declínio da religião no Ocidente também afetou a Índia. Fica-se
surpreso ao ver o quanto este declínio da religião espalhou-se por todo o mundo na época atual.
A religião, como um corpo de verdades a serem realizadas em vida, pela graça de Deus, quase
desapareceu totalmente na idade moderna, mergulhados como estão os homens na busca dos
prazeres sensuais. A ciência, também, embora tenha enriquecido a vida ao dar aos homens novos
meios de se divertir, fracassou em dar-lhes paz. Quem estenderá o homem sua mão para ajudá-lo
nesta trágica situação? Não há nenhum poder espiritual por trás do universo que poderia se
comover com esta agonia e desassossego da alma do homem por uma religião adequada à época e
capaz de salvá-lo das garras dos prazeres? Que força reverterá o curso dos valores espirituais
para baixo tanto no Oriente como no Ocidente e mais uma vez ensinará os homens a seguirem o
caminho da paz?
O Senhor prometeu no Gita que, por Sua Maya, Ele assumiria um corpo humano e Se
manifestaria no mundo sempre que a religião declinasse e ajudaria os homens a obter em paz. A
necessidade da época não levantaria Sua compaixão? A falta de ajuda e o desespero do homem não
obrigariam Deus e tomar um corpo?
13. A necessidade das épocas, Ó leitor, fez com que isto realmente acontecesse; porque o
Senhor, na verdade, mais uma vez nasceu como Instrutor espiritual do mundo. Ouçam com fé Sua
misericordiosa mensagem: "Tantas fés, tantos caminhos", e "Realizarão o Senhor por qualquer
prática espiritual feita com um coração sincero". Vamos nos estabelecer na admiração da renúncia
e austeridades jamais conhecidas, praticadas por Ele, a fim de trazer de volta aquela consciência do
Espírito Supremo para a mente do homem. Venham, vamos discutir e meditar naquela vida santa,
livre do mais leve traço de luxúria e assim, purificar-nos!
CAPÍTULO II
ASSUNTOS: 1. Porque uma Encarnação nasce numa família pobre. 2. Kamarpukur, terra natal de Sri
Ramakrishna. 3. Kamarpukur de então e de agora. 4. O culto do Dharma. 5. O reservatório Haldar de
Uchalan. 6. Manikraja de Bhursubo. 7. O forte de Mandaran. 8. O grande reservatório de Uchalan e o campo
de batalha de Mogalmari . 9. Ramananda Roy, o proprietário do vilarejo de Dere. 10. Manikram
Chattopadhyaya de Dere. 11. O filho de Manikram, Kshudiram. 12. Chandradevi, esposa de Kshudiram. 13. O
litígio de Kshudiram com o proprietário. 14. Kshudiram forçado a deixar Dere. 15. Sua migração para
Kamarpukur.
CAPÍTULO III
1. É difícil imaginar os pensamentos que passaram pela mente de Kshudiram e de sua esposa
ao chegarem a Kamarpukur com Ramkumar de dez anos e Katyayani, a filha de quatro, e
instalaram-se na casa que lhes foi doada. O mundo, cheio de inveja e de ódio, deve ter-lhe
parecido um terrível lugar de mortos envoltos em total escuridão. Pensamentos de afeto, amor,
bondade e justiça sem dúvida derramavam ali ocasionalmente, uma luz muito débil, levantando nos
corações sedentos alguma esperança de felicidade que logo seria abatida nos momentos
seguintes, deixando atrás de si profunda depressão. É natural que muitos desses pensamentos
tivessem passado por suas mentes ao compararem sua antiga condição com a atual. Somente
quando a miséria e a calamidade chegam, os homens compreendem a transitoriedade e a inutilidade
deste mundo. Por isso não é de todo surpreendente que Kshudiram se sentisse agora desapegado do
mundo e que sua mente profundamente religiosa estivesse cheia de devoção e confiança em Deus.
Porque ele não podia esquecer quão inesperado e não solicitado era o abrigo a eles dado. Será
então estranho que indiferente aos prospectos mundanos, ele uma vez mais tenha dedicado seu
tempo ao serviço e adoração ao Senhor, entregando-se totalmente a Raghuvir? A partir desse
instante ele vivia no mundo, mas como os Vanaprasthas dos tempos antigos, não era do mundo.
2. O incidente ocorrido nessa época intensificou ainda mais a fé de Kshudiram em Deus. Um
dia foi a um outro vilarejo a negócios. Na volta, cansado, repousou debaixo de uma árvore. O vasto e
solitário campo e uma suave brisa trouxeram paz à sua mente perturbada e a seu corpo
cansado. Sentiu um forte desejo de deitar-se e mal o fez, foi logo tomado pelo sono. Teve então um
sonho no qual viu à sua frente seu Ideal Escolhido, Bhagavan Sri Ramachandra, sob o disfarce de
um Divino Menino, o corpo verde como as tenras folhas da grama Durva. Apontando para um
determinado lugar, o Menino disse, "Estou aqui há muito tempo sem comida e sem ninguém para
tomar conta de mim. Leve-me para sua casa. Desejo ardentemente que você me sirva." Kshudiram
foi tomado de emoção e disse prestando homenagem ao Senhor, repetidamente: "Ó Senhor, sou
sem devoção e muito pobre. O serviço que lhe é adequado não é possível em minha cabana e
perderei toda graça, se ocorrer qualquer falha. Então por que o Senhor me faz um pedido tão
difícil?" A isto, o Menino Ramachandra confortou-o e disse ternamente: "Não tenha medo. Não ficarei
ofendido com qualquer falha. Leve-me com você." Incapaz de conter a emoção diante dessa graça
inesperada do Senhor, Kshudiram caiu em pranto. Foi então que seu sonho terminou. Ao acordar,
Kshudiram começou a cogitar a respeito sonho e pensou, "Ah! Se ao menos esta boa sorte fosse
minha!" Subitamente seus olhos caíram sobre o arrozal próximo e imediatamente reconheceu o
mesmo lugar que havia visto no sonho. Por curiosidade aproximou-se e viu uma linda pedra
Salagrama e uma serpente com o capuz expandido, guardando-a. Ansioso por possuir a pedra
precipitou-se para ela. Ao alcançá-la, viu que a serpente havia desaparecido e que a Salagrama estava
na entrada do buraco da serpente. Vendo que o sonho havia se concretizado seu coração pulou de
alegria e não sentiu medo da serpente, convencido de que a havia recebido com mandato de Deus.
Gritando, "Glória a Raghuvir!" Kshudiram apanhou a pedra. Cuidadosamente examinou suas marcas e
pelo seu conhecimento dos Sastras, viu que se tratava de Raghuvir Sila (Salagrama). Fora de si de
alegria e admiração voltou para casa, fez a cerimônia purificatória da Salagrama de acordo com os
Sastras e tendo instalado a pedra como a divindade familiar, passou a adorá-la diariamente. Mesmo
antes de ter encontrado a Salagrama de maneira tão inusitada, Kshudiram já vinha adorando
diariamente Sri Ramachandra, sua Divindade Escolhida. Também adorava todos os dias a deusa
Sitala, invocando-A num jarro consagrado cheio de água.
3. Suas dificuldades continuaram, mas Kshudiram suportou com alegria todos os tipos de
infortúnios, observando estritamente como sempre as prescrições religiosas. Em certos dias
quando não havia nada na casa para comer, sua dedicada esposa, Chandradevi, ficava ansiosa e lhe
falava sobre o assunto. Entretanto, sem se perturbar, Kshudiram confortava-a, dizendo: "Não se
preocupe. Se Raghuvir escolheu jejuar, por que nós também não o faremos?" Então Chandra
que tinha o coração puro como o de seu marido, entregava-se a Raghuvir e continuava suas
tarefas diárias e de algum modo chegava comida suficiente para o dia.
4. Kshudiram não sofreu por muito tempo essa incerteza sobre comida, porque pela graça de
Raghuvir, a Bigha e os dez Chataks de terra em Lakshmijala que lhe havia dado o amigo Sukhlal
Goswami, começavam agora a produzir tanto arroz que não só havia o suficiente para as
necessidades anuais da pequena família, mas algum ainda sobrava para aumentar hóspedes e
estranhos. Kshudiram contratou homens para arar o campo e quando os pés de arroz estavam
prontos, ele mesmo transplantava alguns, tomando o nome de Raghuvir e deixava que os homens
terminassem o trabalho.
5. Assim decorreram dois ou três anos. Kshudiram confiava inteiramente em Raghuvir e no
que lhe acontecia, mas não faltavam comida simples e vestuário. Portanto os duros golpes desses
dois ou três anos, em vez de desencorajá-lo, encheram seu coração de um sentimento de confiança
em Deus e um fluxo contínuo de paz e contentamento que só alguns podem experimentar. Daí por
diante era natural que ele sempre fosse visto voltado para seu interior e em conseqüência, de
tempos em tempos experimentasse várias visões divinas. Todas as manhãs e tardes, em suas
orações, repetia o Mantra de meditação, descrevendo o Gayatri com uma devoção tão profunda e
tanta concentração mental, que seu peito ficava vermelho e lágrimas de amor escorriam de seus
olhos fechados. Bem cedo pela manhã ia com uma cesta apanhar flores para o culto e a deusa Sitala,
que recebia sua adoração diária, aparecia diante dele sob a forma de uma menina de oito anos,
vestida de vermelho e usando muitos ornamentos. Ela acompanhava-o, sorrindo, ajudando-o a
apanhar flores, abaixando os galhos floridos. Essas visões enchiam seu coração de alegria. Sua fé
inabalável e sua profunda devoção refletiam-se em seu rosto e mantinham-no sempre num
elevado plano espiritual. Vendo seu rosto sereno e pacífico os aldeões, instintivamente, sentiam
sua espiritualidade e começavam a venerá-lo com o amor e a devoção devidos a um Rishi. Sempre
que o viam aproximar-se, paravam de conversar, levantavam-se e saudavam-no com respeito.
Hesitavam entrar no reservatório enquanto ele se banhava e esperavam com reverência que
terminasse. Como confiavam plenamente nele, aproximavam-se para receber suas bênçãos.
6. A natureza pura e amorosa de Chandradevi cativava os vizinhos, fazendo com que a
considerassem sua mãe. De nenhuma outra pessoa recebiam simpatia tão cordial em seus
momentos de alegria ou tristeza. Os pobres sabiam que sempre que fossem a Chandradevi
receberiam não somente comida, mas também boas-vindas e afeto sinceros, que enchiam seus
corações de alegria inexprimível. Para os homens santos que viviam de esmolas, sua porta estava
sempre aberta. Não havia nada que as crianças não pudessem conseguir de Chandradevi. Assim
qualquer um, jovem ou velho, era bem vindo a qualquer momento na cabana de Kshudiram que,
apesar da pobreza e sofrimento, irradiava sempre paz e alegria maravilhosas.
7. Como já foi mencionado, Kshudiram tinha uma irmã chamada Ramsila e dois irmãos mais
jovens, Nidhiram e Kanairam, este último também chamado Ramkanai. Na época em que perdeu a
propriedade na disputa com o senhor de Derepur, sua irmã contava trinta e cinco anos e seus
irmãos, trinta e vinte cinco respectivamente. Nessa época, todos os três haviam se casado e
constituído suas próprias famílias. Ramsila era casada com Bhagavat Bandyopadhyaya que vivia em
Silimpur, um povoado a mais ou menos doze milhas a oeste de Kamarpukur. Tinha um filho,
Ramchand e uma filha, Hemangini. Na época do infortúnio de Kshudiram, Hemangini estava com
dezesseis anos e Ramchand, que então havia começado a praticar como Muktiar (advogado), estava
mais ou menos com vinte e um anos. Nascida na casa dos tios maternos, em Derepur, Hemangini
era mais querida do que seu irmão. Kshudiram criou-a como sua própria filha e quando ela atingiu a
idade adequada, deu-a em casamento a Krishnachandra Mukhopadhya de Sihar, vila a cinco milhas do
noroeste de Kamarpukur. Ao longo do tempo tornou-se mãe de quatro filhos: Raghava, Ramaratan,
Hridayram e Rajaram.
8. Não pudemos saber se Nidhiram teve filhos, mas Kanairam teve dois, Ramtarak (também
conhecido como Haladhari) e Kalidas. Kanairam possuía natureza devocional e contemplativa. Certa
vez foi assistir a um drama (Yatra) que retratava o exílio de Sri Ramachandra para a floresta. A
interpretação pareceu-lhe tão real que tomou o enredo e a execução tão seriamente que esteve a
ponto de quase agredir o ator que fazia o papel principal. Parece que com a perda da
propriedade ancestral, Nidhiram e Kanairam estabeleceram-se nas aldeias de seus sogros.
9. Já dissemos que Ramachandra Bandyopadhyaya, filho de Ramsila, era advogado. Sua
prática na cidade de Medinipur assegurava-lhe boa renda. Considerando extremadas as
circunstâncias da vida de seus tios maternos, enviava quinze rupias por mês para ajudar Kshudiram
e dez rupias para Nidhiram e Kanairam respectivamente. Se Kshudiram não recebesse notícias de
seu sobrinho, por algum tempo, ficava muito inquieto e apressava-se a ir vê-lo em Medinipur. Fomos
informados de um estranho incidente que ocorreu quando Kshudiram certa vez se dirigia a Medinipur.
Vamos relatá-lo seguir como exemplo de sua profunda devoção a Deus.
Medinipur está situada a mais ou menos quarenta milhas a sudoeste de Kamarpukur. Não
recebendo notícias de Ramachandra e de sua família por muito tempo, Kshudiram dispôs-se certo
dia a ir vê-lo. Era provavelmente o mês de Magh ou Phalgun (janeiro-março), quando caem as folhas
das árvores vilwa, o que torna difícil o culto a Siva1,( 1 As folhas de vilwa são necessárias para o culto de Siva. )
até que novas folhas apareçam. Kshudiram vinha tendo essa dificuldade há algum tempo.
Saiu bem cedo e andou sem parar até chegar a uma certa vila mais ou menos às dez
horas da manhã. Vendo que as árvores vilwa ainda estavam com folhas, seu coração bateu de
alegria e qualquer pensamento de prosseguir até Medinipur abandonou sua mente. Comprou
uma cesta nova e uma roupa e lavou-as bem num pequeno lago da redondeza. Depois encheu a
cesta com folhas novas de vilwa, cobriu-se com a roupa úmida e voltou para casa, ali chegando
mais ou menos às três da tarde. Ao chegar, muito feliz, banhou-se e por longo tempo, prestou
com essas folhas frescas, adoração ao grande Deus Siva e à Sitala, a Mãe Divina. Enquanto não
terminou a adoração não sentou-se para comer. Chandradevi pensou que essa era a melhor hora
para lhe perguntar porque não havia ido a Medinipur. Quando ele lhe contou tudo, ela ficou
admirada em saber que ele havia voltado de tão longe somente por causa de sua ansiedade em
adorar Siva com as folhas. Kshudiram partiu novamente para Medinipur na manhã seguinte, bem cedo.
Assim Kshudiram passou seis anos em Kamarpukur. Seu filho Ramkumar estava agora com
dezesseis anos e sua filha Katyayani, onze. Quando sua filha atingiu a idade adequada deu-a em
casamento a Kenaram Bandyopadhyaya, que vivia em Anur, vilarejo a duas milhas de
Kamarpukur, enquanto Ramkumar casou-se com a irmã de Kenaram. Ramkumar por essa época
havia terminado seus estudos de Vyakarana (gramática) e Sahitya (literatura), numa escola de
sânscrito perto da vila e agora estudava Smriti (leis que governam a sociedade e a religião
hindus).
12. Passaram-se mais três ou quatro anos. Pela graça de Sri Raghuvir, Kshudiram estava
mais próspero do que antes e livre de ansiedade, podendo dedicar todo o seu tempo a Deus.
Nessa época Ramkumar terminou os estudos de Smriti dedicando-se com mais esforço a melhorar
a situação econômica da família. Foi quando Sukhlal Goswami, o grande amigo de Kshudiram,
morreu. Essa morte provocou grande pesar em Kshudiram.
13. Depois de terminar os estudos, Ramkumar, agora um rapaz, tomou para si a
responsabilidade de manter a família. Kshudiram ficou livre para se dedicar a outras atividades. Tinha
um grande desejo de ir em peregrinação a Setubandha-Rameswar onde anteriormente,
provavelmente em 1824, fora a pé. Suas visitas aos lugares de peregrinação no sul da Índia levaram
um ano, quando então, voltou para casa. Trouxe consigo de Setubandha um Banalinga (um símbolo
de Siva) que começou a adorar diariamente. Esse Banalinga, chamado Rameswar, pode ser visto
ainda hoje ao lado da pedra Salagrama de Raghuvir e do jarro de água simbolizando a deusa
Sitala. Muito depois do nascimento de seu segundo filho, Chandradevi deu à luz outro filho, em
1826. Em lembrança de sua recente peregrinação, Kshudiram deu ao novo filho o nome de
Rameswar.
14. Os oito anos seguintes apresentaram pouca mudança no curso de vida daquela pobre
família em Kamarpukur. Ramkumar ganhava agora dinheiro aconselhando as pessoas sobre
assuntos religiosos, baseado na autoridade dos Smritis e fazendo várias cerimônias religiosas. Por
isso a família estava numa situação financeira melhor do que antes. Tornou-se um versado
conhecedor daqueles ritos e diz-se que obteve o poder sobrenatural para torná-los efetivos. O
estudo das escrituras lhe havia conferido fé no culto de Sakti, o Poder Divino primordial
personificado, em cujo Mantra ele havia sido iniciado por um instrutor qualificado. Certo dia teve
uma visão maravilhosa enquanto adorava essa Deusa, que se havia tornado sua Divindade
Escolhida. Sentiu como se Ela estivesse marcando as letras de algum Mantra com Seus próprios
dedos, na ponta de sua língua. Essa experiência tornou-o perfeito em astrologia. Daí em diante tudo
o que afirmava tornava-se realidade. Só em olhar um paciente podia saber se ele ficaria curado ou
não.
Alcançou alguma fama naqueles lugares ao predizer acontecimentos futuros. Vendo alguém
sofrendo uma doença severa, começava a fazer ritos propiciatórios por seu restabelecimento,
dizendo enfaticamente: "Assim que os grãos que agora estou espalhando no recinto do culto
começarem a brotar, essa pessoa se recuperará." E o que ele dizia tornava-se verdadeiro. Seu
sobrinho, Sivaram Chattopadhyaya relatou-nos a seguinte história, como ilustração de seu poder:
15. Estando em Calcutá a negócios, Ramkumar banhava-se no Ganga certa manhã,
quando um homem rico e sua família também chegaram para tomar banho. A esposa estava
sentada num palanquim, levado ao rio para que ela pudesse tomar banho lá dentro. Vindo de um
vilarejo, Ramkumar jamais havia visto uma mulher banhar-se daquela maneira, protegida do
público. Olhando com espanto para o palanquim, viu o rosto da mulher por um momento.
Instantaneamente soube por seu poder sobrenatural que ela morreria no dia seguinte e ficou tão
tomado por esse pensamento que não pode deixar de sussurrar tristemente a si mesmo: "Meu
Deus, o corpo que hoje está sendo banhado com tal formalidade será amanhã jogado ao Ganga
como cadáver e exposto aos olhos de todos!" O homem rico tomou conhecimento desse fato e,
para testar a verdade dessas palavras, exigiu que Ramkumar fosse à sua casa. Sua verdadeira
intenção era dar-lhe uma lição, caso sua predição fosse falsa. A jovem estava em perfeita saúde e
não havia nenhuma indicação no momento de tal infortúnio. Logo aconteceu o que Ramkumar havia
predito e o homem deixou-o ir em paz.
16. Certa vez, olhando para o futuro de sua esposa, Ramkumar fez uma triste predição
que mais tarde veio a se confirmar. Dizia-se que ela tinha sinais auspiciosos. Desde o dia em que ele
se casou e a trouxe para casa, a roda da fortuna tornou uma direção favorável. Ela estava, então,
com sete anos de idade e o casamento teve lugar provavelmente no ano de 1820. Foi a partir dessa
época que começou uma melhora na vida de seu pai, pois justamente foi quando a ajuda mensal
de seu sobrinho, Ramachandra de Medinipur, começou a chegar. Naturalmente, qualquer nora que
traz tanta sorte a uma família ao se tornar seu membro, é considerada com amor e respeito. Além
disso, já que a esposa de Ramkumar era então a única nora da família, não é surpreendente que
todos lhe dessem muita importância. Fomos informados que apesar de suas boas qualidades, o
excesso de indulgência e de atenção tornaram-na voluntariosa e obstinada. Mas apesar desses
defeitos, notados por todos, ninguém se aventurava a mencioná-los ou a corrigi-los; porque
ninguém levava em conta seus pequenos defeitos, recordando-se que ela havia trazido
prosperidade à família desde o dia de sua chegada. Quando ela cresceu, Ramkumar certa vez olhou-a
prevendo que ela, embora tivesse sinais auspiciosos, morreria se algum dia concebesse. Quando
ele viu, contudo, que ela não havia concebido por muitos anos, pensou que fosse estéril e sentiu-se
aliviado. Com a idade de trinta e cinco anos, porém, ela ficou grávida e no ano seguinte, 1849,
morreu depois de dar à luz a um menino muito bonito que foi chamado de Akshay. Esse incidente
vem bem mais tarde, mas nós o narramos aqui por conveniência.
17. Uma característica especial de natureza sutil e divina foi compartilhada por cada um dos
membros da santificada família de Kshudiram. Pela predominância dessa característica em
Kshudiram e em sua esposa, ela foi transmitida a seus filhos. Já que mencionamos vários exemplos
relativos a Kshudiram, não ficará fora de lugar se relatarmos aqui um acontecimento semelhante
relativo a Chandramani. Isso mostrará como Chandramani também, como seu marido, tinha visões
divinas de vez em quando. O acontecimento ocorreu pouco antes de Ramkumar se casar. O rapaz
com quinze anos, estudava numa escola de sânscrito e ao mesmo tempo tentava ajudar a família,
fazendo o culto em diversas casas.
18. Uma vez no mês de Asvin, Ramkumar havia ido a uma casa em Bhursubo para fazer o
culto vespertino de Lakshmi. Como seu filho ainda não houvesse voltado para casa, embora já fosse
mais de meia noite, Chandra ficou muito inquieta e saindo da casa esperou por ele ansiosamente.
Enquanto olhava para a direção de onde deveria chegar, viu uma figura solitária aproximando-se
da estrada que liga Bhursubo a Kamarpukur. Pensando tratar-se de seu filho deu alguns passos
naquela direção, com grande alegria por encontrá-lo. Quando a pessoa aproximou-se viu que não era
Ramkumar, mas uma linda moça, enfeitada com muitos adornos. Como Chandra estivesse muito
ansiosa pela segurança de seu filho, a visão de uma moça respeitável andando daquela maneira na
calada da noite não lhe pareceu estranho. Apenas dirigiu-se em sua direção e disse: "De onde você
veio, minha filha?" A moça respondeu: "De Bhursubo". Chandra então perguntou-lhe
ansiosamente: "Você viu meu filho Ramkumar? Ele está vindo?" Não passou por sua mente nem
por um momento, que uma pessoa totalmente estranha como aquela moça, pudesse conhecer seu
filho. A moça respondeu, confortando-a: "Vim da própria casa em que seu filho foi fazer o culto.
Não se preocupe, ele voltará logo." Ouvindo isso Chandra sentiu-se aliviada e ficou mais atenta.
Reparando a acentuada beleza da moça, sua voz melodiosa, seu vestido atraente e seus enfeites
exóticos, ela disse: "Você é tão jovem! Onde vai a essa hora da noite, usando lindos enfeites e
roupa fina? E que estranho adorno é esse em suas orelhas?" Com um sorriso a moça disse: "É
chamado Kundala", e acrescentou, "tenho ainda de andar uma longa distância." Pensando que ela
estivesse em apuros, Chandra disse carinhosamente, "Venha, minha filha, descanse esta noite em
nossa casa. Amanhã você pode ir à vontade". "Não, mãe", respondeu a moça, "Devo ir agora.
Voltarei à sua casa outro dia." Despedindo-se dela, foi em direção aos grandes depósitos de arroz
dos Lahas, bem próximos. Surpresa em vê-la ir na direção da casa dos Lahas, ao invés de seguir o
caminho comum, Chandra pensou que ela estivesse perdida. Foi atrás dela, mas não pode achá-la,
embora a procurasse em todas as direções. Então, lembrando-se do que a moça dissera,
subitamente teve a sensação que havia visto a deusa Lakshmi! Correu para o marido e em
grande agitação, contou-lhe tudo, do começo ao fim, com detalhes. Ao ouvir o relato Kshudiram
assegurou-lhe que não havia qualquer dúvida que a deusa Lakshmi havia graciosamente Se
revelado a ela. Logo depois Ramkumar voltou para casa e ouvindo o que havia acontecido, foi
tomado de admiração.
19. O tempo passou e estamos agora em 1835. Sentindo mais uma vez uma forte
necessidade de sair em peregrinação, Kshudiram decidiu ir a Gaya fazer ritos para a satisfação
dos espíritos de seus antepassados. Estava com sessenta anos. Mesmo assim isto não o impediu de
prosseguir a pé, à sagrada morada de Vishnu. Hriday, filho da sobrinha de Kshudiram, Hemangini,
relatou-nos um estranho acontecimento que o fez empreender essa viagem a Gaya.
20. Certa vez, sabendo que sua filha Katyayani estava seriamente doente, Kshudiram foi a
Anur vê-la. Ela estava então com vinte e cinco anos. Observando seus gestos e maneira de falar
ficou convencido de que ela estava possuída por um espírito. Concentrando a mente em Deus,
dirigiu-se àquele espírito: "Deus ou semi-deus, o que quer que você seja, por que perturba minha
filha? Deixe-a imediatamente e siga seu caminho." Com isso o espírito ficou amedrontado e disse
com voz suplicante por meio de Katyayani: "Deixarei o corpo de sua filha imediatamente se me
prometer fazer culto para mim em Gaya e assim, pôr fim à minha condição miserável. Faço uma
solene promessa de que no momento em que o senhor sair de casa com essa intenção ela será
libertada de todos seus problemas."
Tocado pelo sofrimento do espírito Kshudiram imediatamente disse: "Irei a Gaya, a morada
de Vishnu assim que puder e satisfarei seu desejo, mas ficaria muito feliz se pudesse ter alguma
prova de que realmente conseguiu libertar-se depois da adoração ter sido oferecida." O espírito
respondeu: "Eu lhe asseguro que como prova de minha libertação, quebrarei o galho mais largo da
árvore Neem, que está ali, quando o senhor estiver saindo." Segundo Hriday foi esse incidente que fez
Kshudiram ir a Gaya. Como algum tempo mais tarde o galho da árvore Neem subitamente quebrou-
se não houve mais dúvida de que o espírito havia conseguido a libertação. O pesar também deixou
Katyayani. Não podemos jurar pela veracidade desta história mas não há dúvida que foi por essa
época que Kshudiram foi a Gaya.
21. No inverno de 1835, Kshudiram visitou Varanasi 2 (2 Alguns dizem que Kshudiram visitou Varanasi
muito antes, quando partiu de Derepur em peregrinação para Vrindavan e Ayodhya. Quando pouco tempo depois
nasceu-lhe um filho e em seguida, uma filha, recordou-se dessa peregrinação e deu-lhes os nomes de Gadadhar e
Katyayani. Durante a peregrinação acima mencionada, alguns sustentam que ele visitou somente Gaya.) e Gaya. Foi
no começo do Chaitra (meio de março) que ele chegou a Gaya depois de adoração a Visvanatha (o
Senhor do Universo) em Varanasi. Veio a Gaya nessa época do ano, provavelmente porque sabia
que os espíritos de seus ancestrais teriam a maior satisfação se a adoração fosse feita naquele
lugar sagrado, durante a primavera, no mês Chaitra. Viveu ali mais ou menos um mês, fez todas as
cerimônias segundo as escrituras e por fim, ofereceu adoração aos pés de lótus de Gadadhara
(Vishnu). Por sua grande fé, Kshudiram experimentou uma paz e satisfação inexplicáveis, ao fazer
os ritos obsequiais prescritos em honra de seus antepassados. Tendo cumprido, ao máximo de sua
capacidade, as obrigações para com seus ancestrais ele agora estava livre de toda ansiedade. Ao
pensar que o Senhor havia tornado possível a uma pessoa insignificante como ele realizar tudo isso,
seu coração, agradecido, transbordou com um sentimento de humildade e amor que ele não havia
experimentado antes. Paz e alegria estiveram com ele dia e noite. Mal havia adormecido teve um
sonho. Viu-se no templo sagrado, no ato de oferecer adoração a seus antepassados, aos pés
divinos de Gadadhar. Até viu seus ancestrais em luminosos corpos celestiais, alegremente
aceitando os Findas e abençoando-o. Não pode controlar a emoção ao vê-los depois do que lhe
parecia muito tempo. Com lágrimas nos olhos e o coração transbordante de devoção, inclinou-se
profundamente ante eles e tocou seus pés. No momento seguinte viu que o templo estava todo
tomado por uma luz divina como jamais vira antes. Seus antepassados estavam de pé no templo,
em ambos os lados numa atitude reverente, de mãos postas, adorando um Ser Divino
maravilhoso sentado alegremente num lindo trono. Tinha um corpo luminoso, verde como a grama
Durva. Olhando para Kshudiram com os olhos afetuosos e benignos, Ele fez sinal para que ele se
aproximasse. Pouco consciente do que estava fazendo Kshudiram aproximou-se e cheio de
devoção, prosternou-se a Seus pés, em adoração, cantando hinos em Seu louvor. Satisfeito com
sua adoração, aquele Ser Divino dirigiu-se a ele com um voz doce: "Kshudiram, sua devoção
extraordinária fez-me muito feliz. Abenço-o e nascerei como seu filho e receberei seu carinho."
Ouvindo essas palavras, estranhas mesmo para um sonho, a alegria de Kshudiram não teve
limites. Mas nesse mesmo momento passou-lhe pela cabeça como ele, sendo tão pobre, poderia
alimentar e dar abrigo a um Ser tão elevado. Isso entristeceu-o muito e com voz embargada pelas
lágrimas, disse: "Não, não, Senhor, não sou digno dessa bênção. Não será suficiente que Tu me
tenhas abençoado graciosamente, revelando-Te a mim e desejando nascer como meu filho? Se Tu
quiseres realmente nascer como meu filho, que serviço pode prestar um pobre homem como eu?"
Ouvindo essas palavras cheias de emoção, aquele Ser Celestial parecia ficar ainda mais bondoso
do que antes e disse: "Não temas, Kshudiram. Tudo o que me deres para comer eu aceitarei. Que se
cumpra meu desejo." Kshudiram não teve coragem de dizer "Não". Emoções conflitantes, como
alegria e tristeza assaltaram-no com tanta força que ele mal pode se conter e perdeu a consciência.
Isso interrompeu seu sonho.
22. Durante muito tempo, depois de despertar, Kshudiram não sabia onde estava. A realidade
do sonho o havia dominado. Gradualmente retomou a consciência do mundo exterior, levantou-se da
cama e recordando-se dos detalhes de seu estranho sonho, enfocou-o de diferentes ângulos. Seu
coração confiante estava por fim convencido de que como um sonho divino deve realizar-se, alguma
grande alma brevemente deveria nascer em sua casa. Ele estava destinado mesmo naquela idade
avançada, a ver novamente o rosto de uma criança. Decidiu então não falar desse importante
sonho a ninguém até que realmente se tornasse realidade. Poucos dias mais tarde despediu-se de
Gaya, a morada de Vishnu, e voltou para Kamarpukur. Era então o mês de abril de 1835.
CAPÍTULO IV
ASSUNTOS: 1. Experiências espirituais pré-natais dos pais das Encarnações. 2. A razão por trás dessa afirmação.
3. Valor e relevância das visões. 4. Kshudiram observou mudança na condição mental de Chandradevi. 5. Sua
afeição maternal encontrou um âmbito mais amplo. 6. A ansiedade de Kshudiram por ela. 7. O estranho sonho de
Chandradevi. 8. Sua experiência no templo de Siva. 9. Kshudiram alerta Chandradevi. 10. Visões de Chandradevi
durante a gravidez.
1. As experiências espirituais ímpares e as visões dos pais das grandes almas que
santificam a terra com seu nascimento, estão relatadas nos livros religiosos de todas as raças.
Por exemplo, foi este o caso dos pais de personagens divinos como os gloriosos Sri
Ramachandra, Bhagavan Sri Krishna, Buda, o filho de Mayadevi, Jesus, o filho de Maria,
Bhagavan Sri Sankara, Sri Chaitanya, o grande Senhor, e outros que desde seu nascimento, têm
recebido a adoração e a reverência dos devotos. Será suficiente darmos ao leitor somente alguns
exemplos.
Segundo o Ramayana sabe-se que as mães de Sri Ramachandra e de seus três meio irmãos
conceberam ao comer pudim de leite, deixado na travessa sacrificial. É também aí relatado mais
uma vez que elas vieram a saber antes e após o nascimento dos filhos, que essas crianças, dotadas
de poderes espirituais, eram verdadeiramente partes de Vishnu, o Senhor e Preservador do
Universo. Os pais de Sri Krishna sabiam tanto por ocasião de sua entrada no ventre de sua mãe,
como imediatamente após o nascimento, que Ele era Deus encarnado, dotado dos seis poderes
divinos. Além disso tanto os Puranas como o Bhagavata narram estranhos incidentes em sua vida
diária desde o momento em que Krishna nasceu. Quando Buda veio ao mundo, Mayadevi viu numa
visão um Ser elevado em seu ventre, sob a forma de um brilhante elefante branco e todos os
deuses, inclusive Indra, prestando homenagem a ela por sua boa sorte. Antes de Jesus nascer,
sua mãe Maria sentiu que estava grávida sem conhecer seu marido José. Tomada de esplendor
espiritual nunca antes visto, ela soube que havia concebido. A mãe do Bhagavan Sankara sabia
que havia concebido quando o Deus dos deuses, Mahadeva, apareceu-lhe numa visão e concedeu-lhe
uma graça. Lemos no Sri Chaitanya Charitamrita e outros livros que Sachidevi, a mãe de Bhagavan
Sri Chaitanya também teve experiências espirituais semelhantes.
Todas as religiões - hinduísmo, budismo, cristianismo etc. - têm mostrado que a adoração a
Deus com amor intenso é a maneira mais fácil de se obter Sua graça. Uma vez que todos
asseguram isso, a questão que naturalmente surge na mente de um investigador imparcial, é que
se há qualquer verdade por trás dessa afirmação e, se assim for, o que deve ser aceito ou rejeitado
das experiências acima relatadas.
2. Mesmo a razão sugere que afinal deve haver alguma verdade no que foi dito, pois a
ciência moderna aceita que somente pais possuidores de grandes virtudes pode gerar filhos de
caráter elevado. Assim não pode ser negado que os pais de Krishna, Buda, Jesus e outros como
eles, eram dotados das mais nobres qualidade. É claro, também, que quando essas crianças
extraordinárias nasceram os pais estavam em planos exaltados de consciência além do alcance dos
seres comuns. Foi isso que os tornou aptos a essas visões e experiências impares.
3. Embora os Puranas relatem muitos exemplos dessas experiências, que não são
contrárias à razão, a mente humana não as pode aceitar completamente. Colocando sua fé
somente no conhecimento obtido pelos sentidos o homem moderno não pode crer totalmente na
existência de entidades como o Ser e Deus, estados como Liberação, vida futura e coisas assim
exceto através da realização direta. Apesar disso um investigador imparcial não pode desprezar
nenhuma experiência, somente por ser rara ou incomum. Tem que ser paciente o suficiente para
coletar as evidências pró e contra e parar de julgar até que tenha agido assim.
Seja como for, soubemos através de fontes confiáveis que os pais do grande personagem,
cuja vida estamos escrevendo, tiveram por ocasião de seu nascimento, várias visões e
experiências espirituais. Portanto não temos outra alternativa senão relatar aqueles fatos. No
capítulo anterior contamos ao leitor alguns exemplos de Kshudiram. Agora faremos o mesmo
com respeito a Chandradevi.
4. De volta ao lar, Kshudiram não falou com ninguém sobre o estranho sonho que havia
tido em Gaya mas esperou para ver o que aconteceria. A primeira coisa que observou foi a
mudança maravilhosa que havia ocorrido em Chandradevi. A seus olhos ela não mais era uma
mulher comum, mas uma verdadeira deusa. Um amor que tudo abarca, brotando de alguma
fonte desconhecida, enchia seu coração, elevando-a a um plano superior, acima de todos os
desejos mundanos. Ela agora estava mais preocupada com as necessidades de seus vizinhos do
que com as suas próprias. Entre suas obrigações domésticas ia de vez em quando atender às
necessidades deles. Sem ser vista, tirava as provisões e outros artigos de uso de sua dispensa
para levá-los aos necessitados. Depois de terminar o serviço de Raghuvir, servia comida a seu
marido e a seus filhos; em seguida, embora fosse tarde, ia antes de comer, ver se seus
vizinhos tinham se alimentado. Se acontecesse encontrar alguém que por qualquer razão
tivesse ficado sem comida, insistia em levá-lo para casa e alimentá-lo com sua própria porção
de comida cozida. Só depois ela própria comia o pouco que havia sobrado e passava o dia muito
contente.
5. Kshudiram descobriu que Chandra, que sempre amou as crianças da vizinhança como
suas, agora sentia amor maternal também para com os deuses. Ela realmente considerava
Raghuvir, a divindade familiar, como seu próprio filho e também olhava a deusa Sitala e a
divindade Rameswar, representada pelo emblema Salagrama, como seus próprios filhos.
Anteriormente seu coração costumava estar sempre cheio de temor por ocasião do serviço e da
adoração dessas divindades; mas agora um sentimento poderoso de amor havia substituído
completamente aquela sensação. Qualquer idéia de medo ou de hesitação ao aproximar-se dos
deuses desapareceu e ela nada tinha para esconder deles ou para lhes pedir. Ao invés disso
sentia a segurança de que os deuses estavam mais próximos do que seus próprios filhos e
nasceu nela um intenso desejo de sacrificar tudo para fazê-los felizes e um sentimento extático
de estar ligada a eles numa relação eterna de amor.
6. Kshudiram reparou que como resultado de sua devoção irrestrita aos deuses e a alegria de
seu relacionamento íntimo com eles, a simplória Chandra havia se tomado mais confiante do que
nunca. Não mais podia suspeitar de ninguém nem considerar outra pessoa como estranha. Ele
pensou: "O mundo egoísta nunca apreciará essa pureza. Pelo contrário ela será chamada de tola ou
de maluca ou qualquer coisa assim." Por isso ele esperou uma oportunidade para aconselhá-la.
7. Não demorou muito para que essa oportunidade chegasse. Chandra, tão simples, não podia
ocultar de seu marido um pensamento sequer. Ela muitas vezes confidenciava seus pensamentos até
às suas amigas. Como então poderia mantê-los ocultos daquele a quem Deus havia colocado mais
próximo dela do que qualquer outra pessoa no mundo? Por isso depois que Kshudiram voltou de
Gaya, Chandradevi, durante dias seguidos, aproveitou toda oportunidade para contar-lhe tudo o
que havia visto e experimentado durante sua ausência. Um dia ela lhe disse: "Quando você estava
ausente tive um sonho estranho no qual vi um Ser luminoso deitado na minha cama. A princípio
pensei que fosse você, mas logo compreendi que nenhum ser humano poderia ser assim. Acordei,
mas o pensamento que o Ser luminoso ainda estava na cama continuou. Em seguida, um outro
pensamento me assaltou: 'Será que um deus sempre aparece a uma pessoa dessa maneira?'
Então ocorreu-me que alguma pessoa mal intencionada poderia ter entrado no quarto com um
mal propósito e que talvez o barulho de suas passadas pudessem ter ocasionado meu sonho. Então
tomada de grande medo, levantei-me apressadamente para acender o lampião mas descobri que
ninguém estava no quarto e a porta estava trancada por dentro. Mas o medo manteve-me acordada
o resto da noite. Pensei: 'Será possível que alguém tenha entrado no quarto tirando o cadeado e ao
me ver acordada, tenha fugido depois de recolocá-lo de modo misterioso?' Logo que amanheceu
mandei chamar Dhani e Prasanna e depois de lhes ter contado tudo perguntei: 'Vocês acham que
entrou alguém em meu quarto? Não estou brigada com ninguém no vilarejo. Somente outro dia tive
uma pequena discussão com Madhu Jugi sobre um assunto sem importância. Será que ele com
raiva tenha entrado em meu quarto?' Ambas riram e repreenderam-me, dizendo: 'Que tola! Será
que a idade afetou o seu cérebro? Por que fala dessa maneira sobre seu sonho? Pense no que os
outros dirão quando souberem. Haverá um escândalo e você será ridicularizada se falar disso a
qualquer pessoa novamente'. Ouvindo o que diziam, pensei: 'Ó, então foi realmente um sonho!
Nada falei a ninguém, a não ser a você quando voltou'.
8. "Outra vez, quando estava falando com Dhani defronte ao templo dos Jugis,
subitamente vi um Brilho Divino saindo da imagem sagrada do Grande Deus Siva, enchendo o
templo e precipitando-se em ondas sobre mim. Tomada de surpresa já estava a ponto de contar a
Dhani a esse respeito, quando de repente a Luz me envolveu e rapidamente entrou em meu
corpo. Maravilhada e com medo, cai inconsciente. Mais tarde, quando Dhani ajudou a me recuperar
contei-lhe tudo. A princípio, ela ficou muito surpresa; depois disse: 'Você teve um ataque epilético.'
Mas tive a sensação de que a Luz, desde então está em meu ventre e que estou grávida. Contei
também a Dhani e Prasanna mas elas me repreenderam chamando-me de boba, maluca e não sei
mais o que. Segundo elas, o que experimentei foi motivado por desilusão ou mal-estar no corpo.
Tentando de diversas maneiras fazer-me entender isso, elas aconselharam-me a não falar sobre o
ocorrido. Determinada a não divulgar a ninguém, exceto a você, tenho mantido desde então,
silêncio. Bem, o que você pensa? Foi a graça de Deus que fez isso ou pode ter sido somente
devido a uma possível doença? Até hoje tenho a sensação de que estou grávida."
9. Enquanto ouvia o que Chandra dizia, Kshudiram lembrava-se de seu sonho em Gaya.
Então, tranquilizando-a de várias maneiras, disse: "De agora em diante você não vai falar a
respeito dessas experiências e visões a ninguém exceto a mim. Fique livre de qualquer ansiedade e
tenha como certo que o que quer que Raghuvir mostre, por Sua graça, é para o nosso bem.
Durante minha visita a Gaya, Gadadhara revelou-me, de uma maneira sobrenatural, que um filho
nasceria de nós." Estas palavras de seu marido, que tinha uma natureza semelhante a Deus,
acalmou a mente de Chandradevi; e obedecendo-o ela passou a depender unicamente de Raghuvir.
Passados três ou quatro meses dessa conversa entre Kshudiram e sua esposa, tornou-se claro a
todos que Chandradevi, embora já tivesse passado de quarenta e cinco anos, estava grávida de
novo. Diz-se que as mulheres ganham meiguice e graça quando estão grávidas. Isso também foi
notado em Chandradevi e Dhani e as outras mulheres da vila costumavam observar que ela parecia
mais adorável nessa época do que antes. À medida que a novidade se espalhou, algumas delas
começaram a cochichar entre si: "Imaginem uma mulher conceber nessa idade e parecendo tão
doce. Pode até morrer por ocasião do parto."
10. Dia após dia desde que havia concebido, as visões e experiências espirituais de
Chandradevi tornaram-se mais freqüentes. Dizia-se que então as visões ocorriam-lhe quase
diariamente. Às vezes sentia um perfume purificador saindo dos corpos daqueles seres sagrados,
perfume que se espalhava pela casa toda; ou então ouvia vozes celestiais e ficava tomada de
espanto. Dizia-se também que nessa época seu coração transbordava de amor por todos os deuses
e deusas. Quase todo o dia contava a seu marido essas visões e experiências e perguntava porque
lhe aconteciam. Kshudiram dava-lhe conforto de diversas maneiras e dizia-lhe para não se perturbar.
Vamos relatar a seguir um episódio desse período. Soubemos que Chandra assim descreveu-o a seu
marido, com um sentimento de espanto: 'Ó muito reverenciado senhor, não há fim ao número de
deuses e deusas que se apresentam a mim de vez em quando, desde o dia em que vi a luz em frente
ao templo de Siva. Muitos deles eu jamais vira antes nem mesmo em quadros. Hoje vi um deus
chegando, montado num cisne. A principio fiquei assustada; mas depois, sentindo pena dele
porque seu rosto estava vermelho com o calor do sol, chamei-o e disse-lhe: 'O querido pequeno
deus montado num cisne, seu rosto parece queimado pelo sol. Tenho em casa um pouco de arroz
frio, que preparei ontem. Venha, coma um pouco e refresque-se antes de ir-se embora'. Ele ouviu-me
e sorriu, mas logo desapareceu e não pude vê-lo mais. Vejo muitas formas assim. Não as adoro
nem medito nelas, mas vejo-as a qualquer hora do dia ou da noite. Às vezes, vem sob a forma
humana e depois dissolvem-se no ar. Pode dizer-me por que vejo tudo isso? Será doença? Às vezes
imagino se não estou possuída pelo espírito de Gosain." 1 (1 Depois da morte de Sukhal Goswami, vários fatos
sobrenaturais haviam ocorrido e isto deu aos aldeões a idéia de que ele ou alguma outra pessoa morta na família havia
se tornado um fantasma e vivia na árvore bakul em frente à casa. Sob a influência dessa crença, os aldeões costumavam
dizer que, quando uma pessoa tinha uma experiência sobrenatural, estava possuída pelo espírito de Gosain. Chandradevi
pensava assim.) Kshudiram a fez recordar-se novamente do sonho que tivera em Gaya e mostrou
quão feliz ela era de realmente levar em seu seio o Senhor Supremo cuja influência purificadora
somente dava lugar às suas visões espirituais. Devido à sua fé absoluta nas palavras do marido, a
explicação dele da situação encheram o coração de Chandra com devoção suprema. Fortificada assim
ela tornou-se livre de ansiedade.
O tempo rolava. Entregando-se completamente a Raghuvir, Kshudiram e sua virtuosa
esposa passavam seus dias na expectativa de contemplar, na forma de seu filho, o Ser Divino
cuja presença auspiciosa já havia preenchido suas vidas de profunda devoção.
CAPÍTULO V
1. O outono foi seguido pela 'estação do orvalho' e pelo inverno. A primavera, a 'rainha das
estações' chegou. Havia uma suavidade agradável no ar e toda a criação pulsava com vida nova.
O adorável mês de Phalgun - nem quente nem frio - contava somente seis dias. Havia uma grande
onda de amor na natureza, que se manifestava em sua beleza - como dizem as escrituras - uma
partícula da felicidade de Brahman latente em todas as coisas. De todas as estações a primavera
foi recebida com um pouco mais daquela radiante felicidade divina, pois despejava muita alegria
sobre o mundo.
Aproximava-se o tempo de Chandradevi dar à luz e seu coração ficava cheio de alegria
celestial quando preparava a oferenda diária de comida para Raghuvir. Mas em seu corpo havia
um sentimento de grande lassitude. Então subitamente veio-lhe o pensamento de que algo
poderia acontecer a qualquer momento e que, se ela desse à luz, não haveria ninguém em casa para
preparar as oferendas. O que devia fazer? Alarmada, comunicou seus pensamentos a seu marido.
Kshudiram sossegou-a, dizendo, "Não tema. Certamente Aquele que está agora em seu ventre, na
hora de nascer não será obstáculo à adoração e ao serviço de Raghuvir. Não fique ansiosa; você
será capaz de fazer o serviço de Raghuvir hoje. Já tomei providências para o serviço de amanhã e foi
pedido a Dhani para dormir aqui a partir desta noite." Com isto Chandra sentiu uma nova força em
seu corpo e alegremente continuou suas obrigações domésticas. Aconteceu exatamente como
Kshudiram dissera. As oferendas do meio-dia e da tarde a Raghuvir e outros serviços dedicados a Ele
terminaram sem qualquer problema. Kshudiram e Ramkumar deitaram-se depois da refeição da
noite; Dhani veio e deitou-se no mesmo aposento com Chandradevi. Além do santuário de Raghuvir
havia dois dormitórios com telhado de sapé e uma cozinha. Em outro aposento pequeno estava,
de um lado, a máquina de descascar e no outro, um fogão para ferver o arroz. Por falta de um lugar
melhor esse aposento, também com telhado de sapé, foi reservado para o parto de Chandra.
2. Faltavam doze minutos para a madrugada quando Chandradevi sentiu as primeiras
dores do parto. Dhani ajudou-a a deitar-se no local escolhido e ali, quase imediatamente, ela deu à
luz a um menino. Depois de ajudar a mãe, voltando sua atenção para o bebê, ficou surpresa ao ver
que ele havia desaparecido do lugar onde ela o havia colocado. Alarmada, pegou o lampião para
procurar a criança e descobriu que ela havia escorregado para o chão, coberta de sangue e muco,
junto ao fogão e ali estava deitado com seu pequeno corpo recoberto de cinzas, ainda sem chorar!
Dhani ternamente pegou a criança, lavou-a e olhando-a na luz, ficou maravilhada com sua beleza e
tamanho. Parecia uma criança de seis meses! As amigas de Chandradevi, Prasanna e outras
mulheres da família Lahas foram chamadas. Logo que chegaram Dhani contou-lhes o que havia
acontecido. Na solene hora sagrada antes do sol nascer, o som da concha encheu a humilde
choupana onde Kshudiram levava sua vida piedosa e austera e proclamou ao mundo a chegada
de uma grande alma. Verificando os signos do zodíaco sob os quais a criança havia nascido, bem
versado na astrologia, Kshudiram viu que o menino havia vindo ao mundo num momento
especialmente auspicioso.
3. Segundo o calendário hindu, que calcula o dia do nascer do sol de um dia até o nascer
do sol do outro, era quarta-feira, sexto dia do Phalgun, ano de 1242 da Era bengali ou 1757 do ano
Saka, ou quinta-feira, ou 18 de fevereiro de 1836, de acordo com o calendário gregoriano. A
criança nascera doze minutos antes do sol nascer. O auspicioso segundo dia lunar da quinzena
brilhante e o vigésimo dia das constelações lunares (Purvabhadrapada) haviam se combinado
para ocasionar a feliz conjunção astrológica chamada Siddhiyoga. Sol, Lua e Mercúrio haviam se
juntado no signo do zodíaco sob o qual o menino havia nascido. Saturno havia então alcançado o
ponto mais alto do zodíaco, indicando que o menino teria uma vida especial. Os cálculos feitos de
acordo com o método do grande sábio Parasara mostravam que os 'planetas' Rahu e Ketu
ocupavam o ponto mais alto do zodíaco e estavam no ascendente. Finalmente Júpiter, que estava
começando a subir, também exerceu uma forte e auspiciosa influência no destino da criança.
4. Mais tarde astrólogos bem conhecidos também disseram a hora do nascimento1 (1 A descrição
detalhada do horóscopo de Sri Ramakrishna que aparece nesse capítulo, foi transferida para o Apêndice, ao final do terceiro
volume.) que veio sob um signo muito auspicioso do zodíaco (Lagna ou Rasi), que indicava, sem
qualquer dúvida, que a pessoa em questão "seria virtuosa e respeitada e sempre faria boas ações.
Cercado de muitos discípulos, viveria num templo; fundaria uma nova instituição para ensinar
religião geração após geração; e que seria universalmente reverenciada como uma grande alma,
nascida de um aspecto de Narayana." Ao ouvir isso, a mente de Kshudiram ficou tomada de
admiração e seu coração grato sentiu que o divino sonho em Gaya havia realmente se tornado
verdadeiro. Fez então a cerimônia do nascimento e chamou o menino de Subhuchandra segundo o
signo zodíaco sob o qual ele havia nascido; mas em memória de seu notável sonho, decidiu
chamá-lo Gadadhar por cujo nome foi depois conhecido.
Olhando para o rosto de sua linda criança e certos de seu destino único, Kshudiram e
Chandradevi consideraram-se abençoados. Fizeram a cerimônia de levar a criança fora da casa pela
primeira vez e dando-lhe nome, resolveram educá-la com a maior atenção.
CAPÍTULO VI
ASSUNTOS: 1. Presente de uma vaca dada por Ramachandra. 2. Encantos de Gadadhar. 3. As visões divinas de
Chandradevi. 4. Gadadhar parece bem maior. 5. Sarvamangala, a irmã mais nova de Gadadhar. 6. Preparação de
Gadadhar para a escola. 7. A escola dos Lahas. 8. Temperamento especial de Gadadhar. 9. Um incidente
indicativo. 10. O progresso e o alcance da educação de Gadadhar. 11. Sua coragem. 12. Sua habilidade para
fazer amigos. 13. Seu poder de imaginação. 14. O festival de Durga na casa de Ramachandra. 15. Kshudiram
assiste ao festival. 16. Doença e morte de Kshudiram.
1. Segundo as escrituras, os pais das Encarnações como Rama, Krishna e outras, sabiam
através de visões tidas antes e depois do nascimento que seus filhos estavam sob proteção especial
da Providência. Contudo, a afeição paternal sempre os tornava esquecidos desse fato e enchia suas
mentes de pensamentos ansiosos sobre o bem-estar de seus filhos. Isso também se aplica a
Kshudiram e Chandradevi. Por isso o rosto de lótus de sua adorável criança os fez muitas vezes
esquecer o sonho divino em Gaya e a visão celestial perto do templo de Siva e eles começaram a
imaginar várias maneiras para seu cuidado e sua alimentação. A notícia do nascimento foi levada
a Ramachandra, o próspero sobrinho de Kshudiram em Medinipur. Temendo que não houvesse
leite suficiente na família de seu pobre tio, enviou-lhe uma vaca leiteira, tirando assim a ansiedade
de Kshudiram. Embora todo o necessário para o recém-nascido viesse de maneira inesperada de
diferentes lugares, não havia fim para a ansiedade dos pais. O tempo continuava a passar.
2. À medida que os dias passavam, os encantos do bebê começaram cada vez mais a atrair
as pessoas. Cativava os corações não somente de seus pais e de cada membro da família, mas
também das mulheres do vilarejo. Sempre que elas tinham tempo livre, corriam para Chandra e se ela
lhes perguntava porque haviam vindo, respondiam: "O que vamos fazer? Nossa saudade de ver seu
bebê traz-nos aqui todos os dias." Dali em diante as mulheres das famílias dos vilarejos vizinhos
também começaram a ir à humilde cabana de Kshudiram com mais freqüência do que antes.
Crescendo sem necessidades e cercado de amor e carinho o recém-nascido gradualmente passou seu
quinto mês e o tempo da primeira cerimônia do arroz havia chegado.
A princípio Kshudiram decidiu fazer a cerimônia de maneira simples, de acordo com suas
posses. Sua idéia era limitar as cerimônias ao mínimo de exigências das escrituras, restringir os
convites a poucos parentes próximos e acabar a cerimônia aumentando a criança com o arroz
normalmente oferecido a Raghuvir. Mas, na realidade, as coisas tomaram um curso diferente. Ao
pedido sigiloso do grande amigo de Kshudiram, Dharmadas Laha, proprietário da vila, os antigos
Brahmanas e outros principais homens do vilarejo foram a Kshudiram e para sua grande surpresa,
insistiram que ele deveria alimentar todos, naquele dia auspicioso. Kshudiram estava numa
posição difícil porque, já que todos os aldeões o respeitavam e o amavam muito, ele não podia
decidir quem convidaria ou não. Ao mesmo tempo, convidar todos estava fora de cogitação,
devido a seus escassos recursos. Convencido, no fundo do seu coração, que Raghuvir lhe
mostraria o caminho, buscou o conselho de seu amigo Dharmadas. Logo que veio a saber que
Dharmadas desejava tomar para si a responsabilidade de dirigir a cerimônia, Kshudiram deixou-
lhe todo o encargo e voltou para casa. Dharmadas com muita alegria fez todos os preparativos para
a cerimônia, quase que totalmente às suas expensas e a festividade decorreu tranquilamente.
Soubemos que pessoas de todas as castas do vilarejo vieram à choupana de Kshudiram para a
cerimônia e divertiram-se, comendo a oferenda de Raghuvir. Muitos mendigos também tiveram sua
porção naquele dia e todos despediram-se abençoando o filho de Kshudiram.
3. Com o passar do tempo cada pequena ação de Gadadhar parecia mais doce e enchia o
coração de Chandradevi de alegria. Ela, contudo, não estava totalmente livre de temor. Antes do
nascimento da criança, jamais havia pedido qualquer favor aos deuses, mas agora, movida pelo
amor maternal, seu coração despejava orações por seu filho mil vezes por dia, consciente ou
inconscientemente. Contudo não podia evitar a ansiedade completamente. O pensamento do
cuidado e do bem-estar do filho enchia sua mente por completo, o que obstruía até suas visões
espirituais. Elas entretanto, vinham-lhe de vez em quando e enchiam-na de espanto, às vezes com o
pressentimento de algum mal. Vamos relatar a seguir um exemplo como foi ouvido de uma fonte
confiável.
4. Certa manhã Gadadhar já com sete ou oito meses, dormiu no colo de sua mãe. Chandra
colocou-o dentro do mosquiteiro e saiu para atender seus afazeres domésticos. Pouco tempo
depois ao voltar ao aposento, viu que ao invés da criança, uma estranha pessoa, alta, estava deitada
debaixo do mosquiteiro, ocupando a cama inteira. Muito alarmada Chandra saiu correndo e
chamou seu marido. Logo que ele chegou, contou-lhe o que havia visto, mas ao examinarem ninguém
foi encontrado, a não ser a criança, dormindo como antes. Mesmo assim os temores de Chandra não
diminuíram. Ela continuava repetindo, "Estou certa de que foi um espírito que fez isso. Vi claramente
uma pessoa alta deitada na cama onde nosso filho está. Não foi certamente uma ilusão. Como pode
ser? Chame imediatamente um exorcista experiente para examinar a criança, senão algum mal
pode cair sobre ela." Kshudiram consolou-a dizendo, "Nada há de estranho que você tenha essas
visões sobre nosso filho mesmo agora; porque fomos abençoados com elas antes de seu
nascimento. Então tire a idéia de que isso foi feito por um espírito. Com Raghuvir em casa será
possível que os espíritos venham aqui fazer mal à criança? Portanto fique sossegada e nada fale
com ninguém. Fique certa que Raghuvir sempre o protege". Apesar de tranquilizada pelas
palavras do marido, o temor de que algum mal sobreviesse à criança ainda assaltava a mente de
Chandra como uma sombra. Durante muito tempo, naquele dia, de mãos postas, verteu sobre
Raghuvir toda a angústia de seu coração.
5. Assim passaram-se os anos trazendo para os pais de Gadadhar alegria e tristeza,
exaltação e ansiedade. A alegre atração, que desde o início o menino exercia sobre eles e sobre
os outros, aumentava a cada dia. Gradualmente quatro ou cinco anos se passaram. Durante esse
período, nasceu o último filho de Kshudiram, uma menina chamada Sarvamangala.
6. À medida que Gadadhar crescia, Kshudiram enchia-se de admiração e alegria vendo o
desenvolvimento da extraordinária memória e inteligência do menino. Às vezes tomava em seu colo a
travessa criança e lhe repetia uma longa lista dos nomes de seus ancestrais, pequenos hinos a
deuses e deusas e as diversas maneiras de homenageá-los, ou as maravilhosas histórias do
Ramayana e Mahabharata. Viu que Gadadhar conseguia aprender e recordar-se somente ouvindo uma
vez, a maior parte do que lhe era contado e que quando lhe era pedido para repeti-los, fazia-o sem
cometer falha. Ao mesmo tempo, descobriu que, assim como o menino aprendia e recordava algumas
coisas com muita avidez e também mantinha-se indiferente a outras que não lhe atraíam, apesar
de todos os esforços feitos para despertar seu interesse. Reparou isso quando tentava ensinar-
lhe aritmética, especialmente a tabuada de multiplicação e pensou ser desnecessário forçar o
impaciente jovem, ainda tão novo, a aprender aquelas lições. Descobrindo contudo, que o
menino se tornava cada vez mais inquieto, mandou-o a uma escola depois da cerimônia usual.
Gadadhar tinha então cinco anos. Ficou muito feliz em conhecer meninos de sua idade e seus modos
encantadores tornaram-no querido deles e do professor.
7. A escola ocupava o espaçoso vestíbulo do teatro defronte à casa dos Lahas, senhores da
terra do vilarejo. O professor pago principalmente por ele ensinava seus próprios filhos e as crianças
da vizinhança. De fato foram os Lahas os principais responsáveis pelo estabelecimento da escola.
Não era longe da casa de Kshudiram e ocorria em dois turnos diários, um pela manhã e, outro
pela tarde. As crianças tinham aulas de duas a três horas pela manhã e então, voltavam para
casa para tomar banho e comer. Regressavam novamente às três ou quatro da tarde onde
permaneciam até o pôr do sol. Meninos pequenos como Gadadhar não tinham, naturalmente, que
estudar durante um período tão longo, mas deveriam permanecer na escola. Depois de terminar
suas lições, os pequeninos ficavam em seus lugares ou, às vezes, iam brincar. Os mais velhos
ajudavam os recém-chegados em suas lições e também, acompanhavam-nos a repassá-las. Assim,
embora a escola contasse somente com um professor o trabalho desenvolvia-se suavemente. Um
senhor chamado Jadunath Sarkar era o encarregado quando Gadadhar entrou para a escola, mas
aposentou-se logo depois por diversas razões e um outro professor chamado Rajendranath Sarkar
ficou em seu lugar.
8. Os maravilhosos sonhos e visões que anunciaram o grande destino espiritual de Gadadhar
mesmo antes de seu nascimento, ocasionaram uma impressão duradoura na mente de
Kshudiram. Assim, sempre que encontrava o menino fazendo alguma travessura, como qualquer
criança levada, jamais era severo com ela. Pelo contrário, gentilmente pedia ao menino para não
fazê-lo novamente. De vez em quando notava sinais de teimosia em Gadadhar, mas não estava
certo se isso era devido à excessiva atenção que todo o mundo lhe dava, ou se era a natureza do
menino. Ao invés de ir à escola, o voluntarioso menino ia brincar com seus amigos fora do vilarejo; ou
sem se importar de dizer a alguém, ia uma representação ao ar livre chamada Yatra em algum lugar
na vizinhança. Kshudiram não o repreendia por ser voluntarioso, como outros pais teriam feito;
porque agora, ele estava convencido de que isto era o que finalmente ajudaria o menino a ser
grande. Havia uma boa razão para que ele assim pensasse, já que invariavelmente descobria que
Gadadhar não sossegaria enquanto não terminasse o que havia empreendido; que ele jamais
tentaria esconder qualquer ato dizendo uma mentira e que, acima de tudo, jamais pensaria em
fazer mal a alguém. Mas havia uma coisa que realmente preocupava Kshudiram. Quando pediam
ao menino ou lhe proibiam fazer algo, deliberadamente ele contrariava a instrução até que lhe
fosse mostrada uma razão que falasse a seu coração e entendimento. Kshudiram compreendeu que
realmente isso mostrava o desejo do menino de saber o "porquê" e "para que" de tudo. Compreendeu
também que as pessoas não tolerariam esse tipo de comportamento nem teriam o trabalho de
satisfazer a curiosidade do menino, mostrando-lhe a razão de tudo. Como resultado, pensou que
seria possível que o menino ocasionalmente fosse conduzido a ignorar as regras convencionais de boa
conduta. Foi a ocorrência naquela época, de um pequeno incidente que deu origem a essa
apreensão de Kshudiram, o que também tornou compreendido o trabalho da mente do menino e ele
começou, cuidadosamente, a orientá-lo.
9. Há um grande reservatório conhecido como Haldarpukur, próximo à casa de Kshudiram.
Todos os aldeões utilizavam aquelas águas puras e claras para tomar banho, beber, cozinhar, etc.
Havia dois ghats de banho, um para homens, outro para mulheres. Jovens como Gadadhar
costumavam utilizar o ghat reservado para mulheres. Certo dia, chegando para tomar banho com
alguns meninos de sua idade, Gadadhar começou a pular e nadar na água, tornando-se um
transtorno para as mulheres que estavam se banhando ali. As senhoras de mais idade, ocupadas
com suas orações e devoções diárias, viram que de vez em quando um pouco de água respingava
nelas. Por isso pediram aos meninos para pararem, mas eles não as ouviram. Aborrecida, uma das
mulheres os repreendeu, dizendo: "Por que vocês vêm aqui? Não podem ir ao ghat de homens? Aqui
as mulheres lavam as roupas depois do banho. Vocês devem saber que as mulheres não devem
ser vistas despidas." Gadadhar perguntou: "Por que não?" Ao invés de fazê-lo compreender, ela
começou a repreendê-lo ainda mais. Vendo que as mulheres estavam aborrecidas temendo que
fossem queixar-se a seus pais, os meninos melhoraram seu comportamento. Gadadhar, todavia,
imaginou um plano. Durante dois ou três dias escondeu-se atrás de uma árvore perto do
reservatório e espiava as mulheres enquanto tomavam banho. Quando mais tarde ele encontrou
a senhora idosa que havia brigado com ele, disse-lhe: "Anteontem vi quatro mulheres tomando
banho, ontem seis e hoje, oito. Mas vi que nada me aconteceu!" Ela foi a Chandra e contou-lhe,
rindo, o que o menino havia dito. Num momento oportuno Chandra falou gentilmente com Gadadhar,
mas de uma maneira convincente: "É verdade que nada lhe acontecerá quando você fizer isto; mas
as mulheres se sentirão insultadas. Elas de modo algum são diferentes de mim; se você as insultar
será o mesmo que me insultar. No futuro não faça nada que fira o sentido de honra delas. É
correto ferir seus sentimentos, que é a mesma coisa que me ferir?" O menino entendeu e jamais
veio a se comportar daquela maneira outra vez.
10. Para resumir, o progresso de Gadadhar não era mau. Dentro de pouco tempo já
podia ler e escrever palavras e frases simples. Mas sua aversão à aritmética continuava. Por
outro lado tornava-se cada vez mais hábil na mímica, mostrando sua originalidade de diversas
maneiras. Vendo os ceramistas do vilarejo fazendo imagens de deuses e deusas, passou a visitá-los e
aprendendo sua arte, começou a praticá-la em casa, o que veio a constituir um de seus
passatempos. De maneira semelhante começou a se relacionar com pessoas que pintavam e ele
mesmo começou a pintar. Sempre que sabia que alguém estava lendo ou explicando os Puranas no
vilarejo ou que um drama religioso estava sendo representado, ia para lá e começou assim a
conhecer as histórias das escrituras. Ao mesmo tempo observava minuciosamente a maneira de
apresentação que atraía mais a audiência. Sua memória maravilhosa e sua aguda percepção interior
foram de grande valia nesses assuntos. Desde tenra idade seu notável poder de imitação e seu
inerente senso de graça, ajudaram o esperto menino a imitar os gestos peculiares de homens e
mulheres. Ao mesmo tempo, o exemplo diário de seus pais ajudou a desabrochar sua pureza inata e
seu amor a Deus. Em sua maturidade recordava-se disso e costumava reconhecer com o coração
grato com dívida para com seus pais. As seguintes palavras que nos dirigiu nos últimos dias em
Dakshineswar ajudarão o leitor a entender esse ponto: "Minha mãe era a personificação da
simplicidade. Nada compreendia a respeito de assuntos mundanos e não podia contar dinheiro. Não
compreendendo o perigo de dizer tudo a todas as pessoas, falava a qualquer um o que lhe vinha à
cabeça. Por isso as pessoas chamavam-na 'tola'. Também gostava de alimentar a todos. Meu pai
jamais aceitou presentes de pessoas inferiores. Passava a maior parte do dia em adoração, Japa
e meditação. Durante as orações diárias, enquanto recitava a adoração do Gayatri, dizendo: 'Ó
Brilhante, Ó doador de graças, venha,' etc., seu peito estufava, tornava-se entumescido e ele
ficava banhado em lágrimas. Quando não estava ocupado com a adoração ou outras práticas
religiosas, passava seu tempo fazendo grinaldas de flores com linha e agulha para adornar Raghuvir.
Sua relutância em dar falso testemunho o fez abandonar a propriedade ancestral. Os aldeões
prestavam-lhe o respeito e a reverência devidos a um sábio."
11. A medida que os dias passavam a espetacular coragem do menino também começou a
se manifestar de diversas maneiras. Sem a mínima relutância ia a lugares onde até pessoas mais
velhas não ousavam ir, com medo de fantasmas, duendes e seres semelhantes. A irmã de seu pai,
Ramsila, às vezes era tomada pelo espírito da deusa Sitala. Tornava-se então outra pessoa. Certa
vez por essa época, quando estava hospedada na casa de seu irmão em Kamarpukur, uma dessas
transformações periódicas ocorreu-lhe e todos na casa olhavam-na com medo e devoção.
Gadadhar observou sua tia naquele estado, sem dúvida com respeito, mas sem qualquer medo.
Permaneceu perto dela e observou minuciosamente a mudança que lhe ocorria. Depois de certo
tempo, disse: "Seria esplêndido se o espírito que tomou posse de minha tia me possuísse."
12. O leitor já está familiarizado com Manikraja, o dono das terras do vilarejo de
Bhursubo, conhecido por sua caridade e devoção. Atraído pela natureza piedosa de Kshudiram,
tornou-se seu amigo íntimo. Um dia, Gadadhar, então com seis anos, foi com seu pai à casa de
Manikraja. Ele comportou-se em relação a todos da casa como se fossem seus velhos amigos;
parecia tão natural e doce com eles que, a partir daquele dia, tornou-se querido de todos. O
irmão de Manikraja, Ramjay, ficou tão encantado, que disse a Kshudiram: "Amigo, esse seu filho
não é uma criança comum. Parece-me que possui qualidades divinas num grau elevado. Sempre que
vier aqui traga-o com você. Sinto-me tão feliz quando o vejo." Por diversas razões Kshudiram não
pôde voltar à casa de Manikraja por algum tempo e por isso Manikraja enviou uma das senhoras de
sua família para saber a razão e se possível, trazer Gadadhar para uma pequena visita a Bhursubo.
Quando seu pai perguntou-lhe se queria ir, o menino ficou feliz e saiu com a senhora. Regressou a
Kamarpukur antes do anoitecer com presentes de muitos doces e enfeites. Gadadhar tornou-se tão
querido daquela família Brahmana, que eles costumavam buscá-lo sempre que Kshudiram não podia
ir a Bhursubo por alguns dias.
13. Gradualmente passou-se um ano e Gadadhar tinha agora sete anos. À medida que a
natureza doce da criança se desenvolvia, todos o amavam cada vez mais. Sempre que as
mulheres do vilarejo preparavam qualquer guloseima em suas casas, seu primeiro pensamento era
guardar-lhe um pedaço. Seus companheiros não se sentiam felizes enquanto não repartissem a
comida com ele. Tinha modos tão encantadores, falava e cantava com tanta doçura, que os vizinhos
alegremente aguentavam suas travessuras. Por essa época ocorreu um incidente que tornou os pais
e amigos de Gadadhar muito ansiosos pelo menino. Pela graça do Senhor, Gadadhar havia nascido
com uma constituição forte e robusta e até aquele dia não havia sofrido qualquer doença. Era
maravilhosamente cheio de vida e alegre como uma ave livre. Médicos renomados dizem que a
ausência da consciência do corpo é sinal de saúde. Era dessa espécie de saúde que o menino gozava
desde seu nascimento. Como por natureza fosse dotado de grande poder de concentração, ficava tão
identificado com o objeto no qual punha sua mente, que parecia ter perdido inteiramente a
consciência exterior. A visão encantadora de vastos campos verdes tocados pela suave brisa, o
fluxo incessante do rio, os cantos melodiosos dos pássaros e acima de tudo, a magia das nuvens
sempre cambiantes no profundo céu azul, às vezes revelavam seu mistério e sua glória à visão
interior do menino e o tornavam enfeitiçado. Então ele se perdia completamente e entrava no
desconhecido, distante e solitário domínio do espírito. A experiência que relataremos teve sua origem
na tendência do menino para a contemplação espiritual da beleza. Um dia, quando andava à vontade
nos campos, Gadadhar olhou para o céu e viu uma escura nuvem que acabara de se formar e contra
ela o movimento ordenado de um bando de patos selvagens em pleno vôo, com as asas brancas
abertas. O menino ficou tão absorvido nessa beleza que a consciência de seu corpo e de todo o
ambiente em volta dele desapareceu completamente e ele caiu inconsciente (vide II-2). Seus
amigos, encontrando-o naquele estado, ficaram alarmados e aflitos. Mandaram avisar os pais e o
menino foi levado do campo para casa. Logo que retomou a consciência, voltou novamente a ser
o que era antes. Naturalmente esse incidente causou muita preocupação a Kshudiram e a
Chandradevi, que pensaram em diversas maneiras de impedir que esse fato ocorresse
novamente. Pensaram que pudesse ser um começo de desmaios e procuraram arranjar remédios
como por exemplo, ritos propiciatórios. Gadadhar disse-lhes repetidamente que o que lhe ocorrera
tinha sido o fato de estar mergulhado num sentimento jamais experimentado antes e que, embora
tivesse sido encontrado exteriormente inconsciente, em verdade estava internamente consciente e
havia experimentado uma felicidade ímpar. Contudo, como isso não voltasse a se repetir, a saúde
do menino foi considerada satisfatória. Kshudiram entretanto, sentiu que ele estava sujeito a
ataques e Chandra ficou convencida de que estivera à mercê de maus olhares. Por causa dessas
incertezas, sua freqüência à escola foi suspensa por algum tempo. Assim, livre para ir onde
quisesse no vilarejo, o menino entregou-se a brincadeiras, à alegria, mais do que nunca.
14. Gadadhar tinha mais ou menos sete anos e meio por ocasião do grande festival de
outono de Bengala, em 1843. O leitor já conhece Ramchandra Bandyopadhyaya, o próspero
sobrinho de Kshudkam. Ele costumava passar a maior parte de seu tempo em Medinipur, por
necessidade de sua profissão de advogado, até que sua família veio morar na casa ancestral de
Selampur. Todos os anos Ramchandra celebrava, com grandes gastos, o grande festival de
outono em sua vila natal. Ouvimos de Hriday que durante os oito dias de adoração, a casa de
Selampur costumava vibrar com música e cantos. A família experimentava um fluxo contínuo de
alegria, ao alimentar Brahmanas, oferecendo presentes aos Pundits, aumentando e dando roupas aos
pobres. Nessas ocasiões Ramchandra costumava levar o querido tio à sua casa para passar alguns
dias com ele. Naquele ano, também, Kshudiram e sua família foram cordialmente convidados ao
chegar o tempo daquela festa.
15. Kshudiram estava com quase sessenta e oito anos e havia perdido o antigo vigor devido à
dispepsia e disenteria sofridas diversas vezes nos últimos anos. Por isso, apesar do desejo de ir,
hesitou em aceitar o amável convite de seu querido sobrinho. Começava a sentir uma inexplicável
mas forte vontade de não deixar sua humilde cabana, sua família e especialmente Gadadhar mesmo
por alguns dias. Então pensou: "Se eu não for este ano, quem sabe se com a fraqueza que
aumenta a cada dia, serei capaz de ir novamente?" Primero quis levar Gadadhar, mas lembrou-se
que isso tornaria Chandra muito ansiosa. Como não podia levar Gadadhar decidiu ir com o filho mais
velho Ramkumar, passar alguns dias em adoração com Ramchandra, para voltar em seguida.
Prestou homenagem a Raghuvir, deu adeus a todos, beijou Gadadhar e partiu para Selampur poucos
dias antes do começo do festival. Ramchandra ficou muito feliz com a chegada de seu querido tio e
do primo Ramkumar.
16. Kshudiram teve reincidência de seu antigo mal, a disenteria, logo que chegou a
Selampur e ficou sob tratamento. Isso, entretanto, não interferiu em seu estado de alegria no qual o
sexto, o sétimo e o oitavo dia da quinzena brilhante eram passados. No nono dia, porém, a doença
de Kshudiram tomou um rumo fatal e ocasionou grande ansiedade naquele ambiente de alegria.
Ramchandra chamou médicos eficientes e cuidou de seu tio com a ajuda da irmã, Hemangini e do
primo, Ramkumar. O estado de Kshudiram não melhorou. O nono dia passou mais ou menos, mas
logo chegou o décimo dia (Vijaya), especialmente sagrado para os hindus como tempo de
reconciliação. Naquele dia Kshudiram estava tão fraco que lhe era extremamente difícil falar. Logo
que a cerimônia de imersão da imagem de Durga terminou à tarde, Ramchandra apressou-se a
voltar junto ao leito do tio. Viu que seu último momento se aproximava. Perguntando, soube que
Kshudiram estivera deitado silencioso naquele mesmo estado por muito tempo. Então Ramchandra
disse-lhe com lágrimas: "Tio, o senhor sempre toma o nome de Raghuvir. Por que não o faz agora?"
O som daquele nome imediatamente ergueu Kshudiram que, com voz trêmula, hesitante, disse: "É
você, Ramchandra? Você chegou depois de mergulhar a imagem? Então ajude-me a sentar."
Quando Ramchandra, Hemangini e Ramkumar o ajudaram, com muito cuidado, a se sentar na cama,
Kshudiram em tom solene pronunciou três vezes o nome de Raghuvir e deixou o corpo. A gota
d'água misturou-se assim com o oceano. O Senhor Raghuvir uniu o sopro de vida do devoto com
Sua vida infinita e abençoou-o com a imortalidade e a paz duradoura. Altas horas da noite os cantos
em louvor ao Senhor repercutiram por todo o vilarejo. O corpo de Kshudiram foi levado às margens
do rio e incinerado, sendo consagrado no fogo. As notícias chegaram a Kamarpukur no dia
seguinte e encheram de tristeza o lar até então feliz. Quando o período de luto passou, Ramkumar
fez a cerimônia de Sraddha, como está prescrita nas escrituras e aumentou muitos Brahmanas,
concluindo assim, os últimos ritos em homenagem a seu pai. Diz-se que Ramchandra deu uma
grande soma de dinheiro para as despesas da cerimônia feita em honra do tio falecido.
CAPÍTULO VII
A MENINICE DE GADADHAR
1. Com a morte de Kshudiram a vida da família foi afetada de diversas maneiras. Ele
havia sido o companheiro de Chandra nos momentos bons e maus durante quarenta e quatro
longos anos. Era pois natural que agora ela achasse o mundo vazio sem ele e a cada momento
sentisse sua falta. Durante muito tempo ela havia se acostumado a se refugiar aos pés de lótus
de Raghuvir e agora o mundo não mais a atraía, sua mente estava integralmente dirigida para aquela
direção. Mas o mundo não a liberaria até que o tempo estivesse maduro. Gradualmente jogou-a
novamente nas alegrias e tristezas do quotidiano, por causa das preocupações com seu
Gadadhar de sete anos e sua filha de quatro, Sarvamangala. Assim Chandra, com o coração
partido, dedicava seus dias ao serviço de Raghuvir e à educação dos filhos mais novos. Após a morte
de Kshudiram, toda a responsabilidade de manter a família ficou nos ombros de seu filho mais velho,
Ramkumar. Ora, como ele não podia perder o tempo com a tristeza, sua mente e energia foram
empregadas para que não faltasse nada à sua desolada mãe e a seus irmãozinhos menores.
Esperava-se que seu irmão mais novo Rameswar, agora com dezoito anos, ajudasse a família
ganhando dinheiro assim que terminasse os estudos de Smriti e Jyotisha; até Ramkumar teve que
tentar melhorar a condição da família com sua própria renda. Sua competente esposa, vendo que
Chandradevi não aguentava todo o serviço, tomou para si a maior parte da tarefa de cozinhar e dos
outros serviços domésticos.
2. É de experiência geral que nada torna a vida tão vazia como a perda da mãe na meninice,
a morte do pai na infância e a perda da esposa na juventude. Sendo totalmente dependentes do
carinho e do amor da mãe, a criança não sente a perda do pai mesmo que ele morra, mas ao
crescer e chegado o despertar de sua inteligência, fica consciente da afeição especial do pai. O
coração da criança começa a ser atraído para o pai assim que descobre que somente ele pode
satisfazer certos desejos que sua querida mãe não pode. Seu sentimento de perda é por essa razão
muito forte, se o pai morre nessa época. Gadadhar também sentiu-se assim quando Kshudiram
morreu. Muitas pequenas coisas recordavam-lhe diariamente o pai e uma profunda tristeza
permanecia em seu coração. Mas sendo mais refletido e disciplinado do que os outros de sua idade,
Gadadhar jamais demonstrava abertamente seu pesar, por consideração aos sentimentos da
mãe. Para todos o menino continuava cheio de alegria e de jovialidade. Embora fosse às vezes
visto vagueando sozinho no campo de cremação de Bhutir Ghal, no pomar de Manikraja e em
outros lugares solitários, ninguém imaginava que pudesse haver outra razão para isso a não ser
uma inquietude natural. Mas, na verdade, Gadadhar tornava-se mais introspectivo e amante da
solidão Estudava também os diversos modos das pessoas e a todos observava minuciosamente.
3. Aqueles que sofreram e sentiram a mesma perda, aproximam-se uns dos outros.
Talvez tenha sido essa a razão pela qual Gadadhar sentia-se agora especialmente voltado para
sua mãe. Ficava a seu lado muito mais tempo do que antes e sentia-se feliz em ajudá-la o quanto
podia no serviço dos deuses e nas tarefas domésticas. Não levou muito tempo para que ele
percebesse que quando estava com ela, sua mãe quase se esquecia da perda sofrida. A atitude do
menino em relação à mãe também apresentou uma mudança. Depois da morte de seu pai jamais
pediu-lhe qualquer coisa com a mesma insistência de antes, pois compreendeu que o sentimento de
pesar afloraria no coração dela e que ela ficaria muito infeliz se não pudesse satisfazer qualquer um
de seus desejos. Em resumo, um estranho desejo de proteger a mãe de todas as maneiras
desabrochou no coração de Gadadhar.
4. Gadadhar voltou a frequentar a escola. Embora se esperasse que ele assistisse
regularmente às aulas, seu interesse real agora era recitar os Puranas e fazer imagens de argila
de deuses e deusas. Talvez sentisse que sua absorção nessas ocupações o ajudaria a esquecer a
perda do pai. Nessa época também, encontrou um novo interesse, compatível com seu temperamento.
Para conforto dos peregrinos, os Lahas abriram mão de uma casa situada na esquina sudeste do
vilarejo, na estrada de Puri. Homens religiosos, desapegados das coisas mundanas, abrigavam-se
naquela casa em seu caminho para Puri, a fim de adorar o senhor Jagannath e também em seu
caminho para casa. Enquanto ali hospedados, vinham ao vilarejo pedir esmolas em
diversas casas. Gadadhar sabia através dos Puranas que os monges, depois de conseguirem
desapego, renunciam a esse mundo transitório e dedicam-se inteiramente à realização do
Senhor. O sentimento do menino a respeito da transitoriedade do mundo havia se fortalecido desde a
morte do pai. Ouvira também que a associação com santos conduz à bênção da paz suprema.
Por isso ele agora começou a visitar aquela casa de peregrinação sempre que podia, para se
familiarizar com os monges. Ali viu como de manhã e à tarde eles queimavam o Dhuni (fogo
sagrado) e sentavam-se à sua volta, absorvidos em meditação; como ofereciam o alimento
simples que conseguiam através de esmolas às suas Divindades Escolhidas e dividiam-no entre si
com satisfação; como, com absoluta dependência de Deus, procuravam suportar com paciência até
doenças graves e como evitavam perturbar quem quer que fosse para atender às suas
necessidades urgentes. Descobriu, porém, como em suas fileiras haviam também hipócritas vestidos
de monges, vivendo somente para fins egoístas desrespeitando todos os pontos essenciais de uma
conduta reta. Gradualmente, passou a misturar-se intimamente com os monges autênticos,
ajudando-os em pequenas tarefas, como pegar lenha ou carregar água para beber. Eles, por sua vez,
começaram a gostar daquele menino de boa aparência, maneiras doces e ensinaram-no a orar e a
cantar louvores ao Senhor. Também instruiram-no sobre vários assuntos religiosos e sentiam-se
felizes em dividir com ele a comida obtida com as esmolas. Naturalmente Gadadhar podia
misturar-se assim, somente com aqueles monges que, por uma razão ou outra, passavam
considerável tempo na casa dos peregrinos.
5. Quando o menino estava com oito anos, alguns monges ficaram na casa dos peregrinos
durante muitos dias para descansar, depois de longa e difícil viagem ou por qualquer outra razão
similar. Gadadhar reuniu-se a eles como sempre e logo tornou-se querido por todos. No início,
ninguém mais sabia nada a esse respeito, mas quando o relacionamento do menino com os monges
tornou-se íntimo e ele começou a passar ali muito tempo, as pessoas começaram a notar. Certos dias
comia tanto com os monges que quando chegava em casa não tinha mais fome. Quando
Chandradevi perguntava-lhe a razão, dizia-lhe qualquer coisa. No início, a mãe não se incomodou.
Pelo contrário, o fato de ter conquistado os corações dos monges parecia-lhe uma bênção e ela
começou a enviar-lhes, pelo menino, comida e outros artigos necessários, mas depois aconteceu
que o menino começou a voltar para casa às vezes com o corpo coberto de cinzas sagradas ou
com emblemas na testa e outras vezes usando, como os monges, um 'Kaupina' ou tanga feita
rasgando a própria roupa. Ele então dizia, "Olhe mãe como os homens santos me enfeitaram!"
Tais fatos incomodaram muito Chandra, porque ela temia que um dia os monges pudessem
persuadir o menino a ir embora com eles. Expressou seu temor a Gadadhar e começou a chorar.
Apesar de todos os esforços para dissipar seu temor, o menino não pode acalmá-la. Decidiu então
não mais ficar com os monges e a fez sabedora dessa resolução. Isso finalmente acalmou a
ansiedade de Chandra. Gadadhar foi então até os monges para dar-lhes adeus para sempre.
Quando lhe perguntaram a razão, falou-lhes da apreensão de sua mãe. Ouvindo-os os monges
foram até Chandradevi e asseguraram-lhe que o pensamento de levar Gadadhar com eles jamais
havia passado por suas mentes; porque carregar um menino de pouca idade sem a permissão dos
pais, disseram, seria um roubo, uma ofensa indigna de qualquer religioso. A isso, qualquer
sombra de apreensão abandonou Chandradevi e ela prontamente concordou em deixar o menino
visitá-los como antes.
6. Outro incidente nessa época causou grande ansiedade a Chandra por causa de Gadadhar.
Embora todos tivessem considerado como ocorrência casual, foi na verdade o resultado da
tendência crescente do menino para a contemplação espiritual e pensamento profundo. Certo dia, a
caminho do conhecido templo da deusa Visalakshi em Anur, um vilarejo a duas milhas ao norte de
Kamarpukur, ele subitamente perdeu por completo a consciência exterior. Prasannamayi, a
piedosa irmã de Dharmadas Laha, uma de suas companheiras, compreendeu que havia sido a
consciência espiritual do menino que ocasionara a inconsciência. (Vide II, 2). Mas quando Chandradevi
soube, ficou ansiosa pensando que se tratava de uma doença física. Também nessa ocasião
Gadadhar insistiu que estivera naquele estado porque sua mente havia se unido à deusa, enquanto
ele a contemplava.
7. Passaram-se dois anos e gradualmente, os altos e baixos da vida fizeram o menino
esquecer a perda do pai. Já mencionamos o amigo de Kshudiram, Dharmadas Laha. Nessa época
Gadadhar tornou-se amigo íntimo do filho de Dharmadas, Gayavishnu. Os dois meninos atrairam-se
mutuamente nas aulas e nos passeios. Começaram a se chamar 'pai' (companheiros) e
costumavam diariamente passar muito tempo juntos. Gadadhar sempre levava o amigo quando
convidado e alimentado pelas mulheres do vilarejo. Não comia doces e outras guloseimas
preparadas por sua antiga babá Dhani, enquanto não tivesse dado um pedaço a Gayavishnu. Os
responsáveis dos Dharmadas e de Gadadhar ficaram felizes com a amizade dos dois meninos.
8. Quando Ramkumar viu que Gadadhar em breve completaria nove anos, começou a
fazer os preparativos para sua investidura com o cordão sagrado (Upanayana). Muito tempo antes,
Dhani, que pertencia à casta dos ferreiros, havia dito ao menino que ela se consideraria abençoada
se, por ocasião de sua investidura, ele aceitasse esmolas dela e a chamasse 'mãe'. O menino ficou
tão tocado por aquela afeição sincera, que prometeu atender seu desejo. Confiando na promessa do
menino, a mulher começou a juntar dinheiro e outros requisitos, da melhor maneira possível e
ansiosamente esperou aquele acontecimento. No momento propício Gadadhar mencionou a
promessa a seu irmão mais velho mas Ramkumar objetou porque tal quebra no costume usual
vinha contra a tradição da família. O menino, por sua parte, insistiu em manter sua promessa e
argumentou que se ele cedesse à objeção, seria culpado por quebrar sua promessa e que uma
pessoa não veraz não estava preparada para usar o cordão sagrado. À medida que a época da
investidura se aproximava tudo foi organizado. Mas temia-se que haveria problema com a
execução da cerimônia, pela insistência de Gadadhar. Quando as notícias chegaram a seus
ouvidos, Dharmadas tentou resolver a divergência. Disse a Ramkumar: "Embora até hoje isso não
tenha acontecido em sua família, já foi feita em muitas famílias Brahmanas boas em outros lugares.
Por isso em nenhuma falta incorrem aqueles que o permitem. Você deve, também, considerar a
questão de satisfazer a consciência de Gadadhar e sua paz de espírito". A essas palavras do
amigo de seu pai, o velho sábio Dharmadas, Ramkumar e outros evitaram levantar maiores
objeções. Gadadhar então, com o coração cheio de alegria, colocou o cordão sagrado segundo
as prescrições das escrituras e dedicou sua mente a fazer o Sandhya, a adoração, etc., como é
apropriado a um Brahmana. Dali em diante, Dhani também considerou sua vida abençoada por
causa de seu novo relacionamento com o menino, que a chamou de 'mãe' e aceitou sua Bhiksha.
Pouco tempo depois o menino entrava em seu décimo aniversário.
9. Nessa ocasião, os aldeões ficaram maravilhados com um acontecimento que mostrou o
gênio celestial ímpar de Gadadhar (Vide III.4). Uma grande reunião de eruditos ocorreu na casa dos
Lahas durante uma cerimônia Sraddha. Nessa reunião levantou-se uma controvérsia relativa a uma
questão teológica complicada e os eruditos não puderam chegar a uma solução correta do ponto
em questão. Gadadhar, que estava presente, resolveu o problema de tal maneira que, depois de
ouvir o que ele disse, os eruditos efusivamente louvaram-no e abençoaram-no do fundo do coração.
10. Depois de colocar o cordão sagrado, Gadadhar, com sua tendência espiritual inata,
ficou muito feliz em ter uma oportunidade de fazer algo de acordo com seu coração. O menino
havia ouvido sobre como o símbolo vivo de Raghuvir havia se revelado a seu pai num sonho e fora
trazido para a casa; que desde o auspicioso dia da chegada do Deus, o pequeno pedaço de terra
começou a dar arroz em grande abundância, em quantidade suficiente não somente para as
necessidades da família, mas também para uma sobra que permitisse a bondosa Chandradevi
atender os pobres que vinham a ela. Desde então o menino olhou para essa divindade da família com
grande devoção e reverência. Agora que ele tinha o privilégio de tocá-La e adorá-La, seu coração ficou
cheio de novo ardor de devoção. Muito tempo ele passava diariamente em adoração e em meditação,
depois de terminar as costumeiras orações diárias e outras obrigações. Servia Raghuvir com
especial constância e devoção, para que a divindade pudesse conceder-lhe a graça como havia
feito a seu pai, abençoando-o com suas visões e dando-lhe ordens de vez em quando. O Deus
Rameswar Siva e a Deusa Sitala também eram servidos. Não tardou que sua intensa devoção
desse fruto. O coração puro do menino tornou-se tão absorvido na adoração, que ele
experimentou o estado de Bhavasamadhi, também conhecido como Savikalpa-Samadhi. Depois dessa
experiência, várias visões espirituais vinham-lhe de tempos em tempos. Esse tipo de Samadhi e
visões ocorreram por ocasião do Sivaratri, naquele ano. (Vide II.2).
Naquele dia o menino havia jejuado e adorado com muita devoção, o grande Deus Siva,
origem de todos os deuses. Seu amigo Gayavishnu e outros meninos de sua idade também haviam
jejuado e decidiram manter-se em vigília aquela noite, assistindo a um drama exortando a glória de
Siva. Aquele drama devia ser encenado na casa de seu vizinho Sitanah Pyne. Depois de terminar a
adoração do primeiro quarto da noite, Gadadhar estava imerso em meditação de Siva, quando
subitamente seus amigos chegaram e disseram-lhe que ele teria de fazer o papel de Siva e falar
algumas palavras da peça na casa dos Pynes; porque explicaram, a pessoa que sempre representava
aquele papel havia adoecido e estava impossibilitada de participar. Gadadhar a princípio negou-se
dizendo que seria interferir com sua adoração; mas eles puseram de lado todas as objeções,
argumentando que se ele fizesse o papel de Siva, pensaria n'Ele o tempo todo, o que era tão valioso
quanto a adoração. Além do mais sua recusa privaria muitas pessoas de entretenimento; eles
também haviam jejuado e decidido ficar em vigília a noite toda assistindo ao drama. Vencido por
tais argumentos, Gadadhar finalmente concordou e apareceu no palco no papel de Siva. Com sua
maquiagem, de cabelo encaracolado, contas de rudraksha e cinzas, ficou tão absorvido no
pensamento de Siva que perdeu totalmente a consciência exterior. Como ele continuasse naquele
estado por longo período, a apresentação teve que ser interrompida naquela noite.
11. Gadadhar, entretanto, continuava naquele estado de êxtase que sobrevinha de vez em
quando. Esquecia-se de si mesmo e do que o rodeava enquanto meditava ou ouvia canções, música
etc. em louvor aos deuses e deusas. Então sua mente permanecia dentro de si mesma por um
certo tempo - curto ou longo - durante o qual não reagia a qualquer estímulo externo. Às vezes,
quando sua absorção se aprofundava mais, parecia uma estátua viva.
Saindo daqueles estados dizia que havia experimentado uma alegria maravilhosa
acompanhada de visões, enquanto meditava em alguns deuses e deusas ou ouvindo canções
glorificando-os. Tudo isso, durante muito tempo, alarmou Chandra e outros membros da família,
mas a ansiedade deles acalmou-se quando viram que a saúde do menino não estava de nenhum
modo afetada e que ele permanecia sempre alegre, ativo e eficiente. Gadadhar entrava então naquele
estado com muita freqüência, o que gradualmente o fez acostumar-se com ele e não podia controlá-
lo como desejava. Isso ajudava-o a compreender os assuntos sutis e várias verdades a respeito
de deuses e deusas. Ficava muito feliz e sem medo. Suas tendências espirituais tornaram-se
especialmente fortes e começou a participar de todo coração das diversas funções religiosas do
vilarejo, quer em honra de Hari ou de Siva ou de Manasa ou de Dharma. Sua abertura mental
não somente o fez inteiramente livre de qualquer má vontade contra os devotos de diferentes deuses
e deusas, mas manteve-o numa amizade positiva com todos. A tradição estabelecida do vilarejo sem
dúvida alguma ajudou-o nesse assunto, porque em contraste com outros vilarejos, pessoas de
todas as crenças em Kamarpukur - adoradores de Vishnu ou devotos de Siva ou de Dharma - não
se hostilizavam mas viviam em paz e amizade.
12. Embora como já vimos tivesse havido um considerável progresso espiritual, Gadadhar
não desenvolveu amor por seus estudos. Quando sentiu o desejo ardente dos eruditos por riqueza
e pelos prazeres mundanos, tornou-se avesso em adquirir conhecimento como eles, porque sua visão
interior aguda fazia-lhe em primeiro lugar, ver os motivos que estavam por trás de todas as ações
para depois, julgar seu valor de acordo com o modelo das boas qualidades de seu pai como,
desapego do mundo, devoção a Deus, veracidade, retidão de conduta, etc. A comparação revelou
para sua surpresa, que o objetivo da maior parte dos eruditos era completamente diferente daquele
de seu pai, mas sentiu-se mais triste do que surpreso ao ver que as pessoas estavam iludidas, pois
consideravam o mundo transitório como permanente. Deve-se então saber se, como resultado
daquela descoberta, tenha surgido em sua mente o desejo de conduzir a vida de forma diferente.
Depois de ouvir tudo isso o leitor talvez pergunte: "É possível para um menino de onze ou doze anos
ter essa profunda visão interior e discriminação?" A resposta é que Gadadhar não era um menino
comum. Nasceu com qualidades geniais, memória e tendências espirituais extraordinárias. Em seu
caso, portanto, a posse desses poderes não era surpreendente embora fosse tão jovem. Mas isto
à parte, devemos para o bem da verdade, narrar todos os fatos que nossa investigação trouxe à luz,
sem considerar o que se possa pensar deles.
13. Embora a aversão de Gadadhar pelo tipo de educação prevalecente tenha gradualmente
aumentado, ele continuou indo à escola. Tornou-se hábil na leitura de livros escritos em seu
idioma natal e em escrever naquela língua. Agora lia o Ramayana e o Mahabharata e outros livros
religiosos com tal devoção e com voz tão doce que as pessoas ficavam encantadas ao ouvi-lo. Os
aldeões de coração simples, iletrados, mostravam grande desejo de ouvi-lo na leitura desses
livros e Gadadhar ficava sempre feliz em atendê-los. Sitanath Pyne, Madhu Jugi e outros
convidavam-no a suas casas e homens e mulheres cheias de devoção, ouviam-no ler a vida de
Prahlada, a história de Dhruva ou outras narrativas do Ramayana, do Mahabharata e de outros
textos semelhantes.
Além do Ramayana, Mahabharata etc. ainda existem em Kamarpukur anotações das
histórias de deuses e deusas escritas em versões simples pelos poetas do vilarejo, bem conhecidos
nesses lugares. As narrativas sobre as revelações do grande deus Tarakesvar, a composição musical
relativa à Yogadya e às canções de Madaranohan de Vanavishnupur descrevendo deuses e deusas,
revelando sua verdadeira natureza aos homens santos e devotos e fazendo atos sobrenaturais -
tudo isso chegava, de tempos e tempos, aos ouvidos de Gadadhar. Com a ajuda de sua
extraordinária memória, o menino aprendia de cor muitas dessas composições poéticas, somente
ouvindo-as e, às vezes, as copiava de manuscritos ou de livros. Tomamos conhecimento disso
quando encontramos na casa de Kamarpukur, um manuscrito de Ramakrishnayana, composições
musicais sobre Yogadya e Sabahu, compiladas pelo próprio Gadadhar. Está também fora de
dúvidas, que muitas vezes o menino lia ou recitava essas narrativas para os homens e mulheres de
coração simples do vilarejo, sempre que lhe pediam.
Já falamos da indiferença de Gadadhar pela aritmética, mas depois de estar certo tempo na
escola, fez algum progresso nesse sentido também. Fomos informados que ele decorou as
tabuadas, até mesmo as de medida de terra, chamadas Katha, no Livro das Tabuadas e que
progrediu da simples soma até as de multiplicação e divisão, mas quando atingiu dez anos e
começou a experimentar êxtases, seu irmão mais velho Ramkumar deixou-o livre para ir à escola
sempre que quisesse e aprender quaisquer matérias que gostasse. Porque ele tinha medo que
Gadadhar tivesse tendência a alguma doença. Seu professor também não o pressionava quando
descobria que não progredia no estudo de determinada matéria. Portanto, é desnecessário
acrescentar que houve um pequeno progresso geral nos estudos de Gadadhar.
14. Passaram-se dois anos. Gadadhar completou seu décimo segundo aniversário. Seu
segundo irmão, Rameswar, e sua irmã mais nova, Sarvamangala, estavam agora com vinte e dois
e nove anos respectivamente. Vendo que Rameswar havia atingido a idade apropriada, Ramkumar
arranjou seu casamento com a irmã de Ramsaday Bandyopadhyaya, da vila de Gaurhati, perto de
Kamarpukur. Ficou também resolvido que o próprio Ramsaday se casaria com a irmã de
Rameswar. Como ambos casamentos haviam sido assim combinados, Ramkumar não teve qualquer
preocupação com o pagamento do dote, para a outra parte. Um outro incidente relativo à família de
Ramkumar ocorreu nessa época. Como sua esposa nunca havia concebido, embora não fosse mais
jovem, todos estavam certos de que era estéril. Quando a viram grávida ficaram muito contentes,
mas também apreensivos, porque alguns haviam ouvido Ramkumar predizer que ela morreria se
algum dia concebesse.
15. Uma mudança radical ocorreu nos negócios de Ramkumar desde o momento em que
sua esposa ficou grávida. Sua renda decrescia. Sua saúde definhava e ele não mais podia manter
seus antigos hábitos ativos. O comportamento de sua esposa também sofreu completa
transformação. Havia uma norma na família, desde o tempo de seu querido pai, que ninguém
(exceto os meninos ainda não investidos com o cordão sagrado e os doentes) poderiam comer
ou beber água antes de terminar a adoração a Raghuvir. Agora, a esposa de Ramkumar
quebrou a regra e fez ouvidos surdos às objeções dos outros membros da família, temerosos
de que um mal pudesse cair sobre eles. Ela discutia com todos os membros da família sobre
assuntos banais, criando assim mal-estar e continuou com essa conduta, apesar dos protestos
do marido e de Chandradevi. Lembrando-se, contudo, que uma mudança muitas vezes ocorre
nas mulheres durante a gravidez, eles deixaram-na em paz. Contudo, em vez de paz habitual
naquela família santificada de Kamarpukur, havia agora contínua desarmonia.
16. O irmão de Ramkumar, Rameswar, embora possuísse boa cultura, não tinha muita
habilidade para ganhar dinheiro. Assim, à medida que o número de pessoas na família
aumentava, havia um declínio na renda, ameaçando a anterior existência confortável.
Ramkumar ficou preocupado, mas apesar de seus esforços, não encontrava solução. Parecia
como se um poder invisível obstruísse todos os seus planos, fazendo-os dar em nada. Uma
sucessão de preocupações tornou sua vida um fardo. À medida que os dias e os meses
passavam e a época do parto de sua esposa aproximava-se, tornava-se cada vez mais
desanimado, recordando-se de sua antiga previsão sobre o destino dela.
17. Por fim ela deu à luz a um lindo menino, em algum momento de 1849 e enquanto
olhava o seu rosto, faleceu. Uma cortina de pesar caiu sobre a pobre família.
CAPÍTULO VIII
NO LIMIAR DA JUVENTUDE
ASSUNTOS: 1. Ramkumar inaugura uma escola de sânscrito (Tol) em Calcutá. 2. Efeito da morte da
esposa de Ramkumar sobre a família. 3. A história de Rameswar. 4. Projetos de Ramkumar para Gadadhar. 5.
Atitude e comportamento de Gadadhar. 6. A leitura e os cantos devocionais de Gadadhar. 7. Devoção das
mulheres do vilarejo por ele. 8. Gadadhar vestido de mulher. 9. Gadadhar e a família de Sitanah Pyne. 10.
Um golpe no orgulho de Durgadas Pyne. 11. As mulheres do bairro de negociantes. 12. Rukmini a respeito
de Gadadhar. 13. Todos os aldeões amavam Gadadhar. 14. A aversão de Gadadhar pela educação para
ganhar pão. 15. A necessidade do coração de Gadadhar. 16. Gadadhar deixa a escola e representa
dramas. 17. Seu progresso nas belas-artes. 18. Ramkumar leva Gadadhar para Calcutá.
1. A má sorte de Ramkumar continuou mesmo após a morte de sua esposa e cada dia que
passava ficava mais pobre. A renda proveniente de doações das pessoas que o convidavam para
cerimônias religiosas, decrescia. Ainda que crescesse arroz suficiente no pedaço de terra em
Lakshmijala, tornava-se cada vez mais difícil conseguir roupas e outros artigos diários. Também era
preciso leite para sua velha mãe e para Akshay, o bebê órfão de mãe. Tomando dinheiro
emprestado, Ramkumar fez dívidas que foram se acumulando dia após dia. Ele não podia impedir
que isso ocorresse apesar de tentar. Pensando conseguir mais dinheiro em qualquer outro lugar, fez
os preparativos para deixar Kamarpukur, aconselhado por seus amigos. Sua perda recente tornou-
lhe fácil dar esse passo porque pensou que conseguiria paz de espírito se deixasse a casa cheia de
recordações de sua companheira de trinta anos. Houve muita discussão, se Calcutá ou Burdwan
ofereciam melhores perspectivas para ganhar dinheiro. Finalmente decidiu-se por Calcutá, porque
seus amigos fizeram-no ver que Maheshchandra Chattopadhyaya de Sihar, Ramdhan Ghosh de
Desra e outros conhecidos tinham ido para lá, onde encontraram boas oportunidades de ganhar
dinheiro e melhorar suas condições, embora fossem inferiores a Ramkumar em erudição, inteligência
e caráter. Assim, Ramkumar, entregando a incumbência dos negócios a Rameswar, foi para Calcutá
logo após a morte da esposa. Inaugurou uma escola de sânscrito no bairro de Jhamapukur e começou
a ensinar alguns rapazes.
2. Muitas mudanças aconteceram na vida da família em Kamarpukur, com a morte da
esposa de Ramkumar. Chandradevi era agora obrigada a carregar o fardo de todas as obrigações
domésticas, incluindo o cuidado do bebê de Ramkumar, Akshay. A esposa de Rameswar tentava
ajudar tanto quanto possível mas, ainda sendo muito jovem, não era de muito auxílio. Chandradevi
tinha, pois, que fazer praticamente tudo sozinha - o serviço de Raghuvir, cuidar de Akshay, cozinhar
e outros serviços domésticos, o que lhe tomava o dia inteiro e ela não tinha mais um minuto de
descanso. Era muito difícil, a uma mulher de cinquenta e oito anos,1 (1 Chandradevi nasceu em 1791 e morreu em
1876 com a idade de oitenta e cinco anos. Diz-se que ela morreu no dia do aniversário de Sri RamaKrishna.) cuidar de todos os
afazeres domésticos, mas sabendo que essa era a vontade de Raghuvir, trabalhava sem uma
palavra de queixa.
3. Rameswar tinha de tomar conta da renda e das despesas da família e pensava como
poderia fazer as duas coisas e manter a família com conforto. Sua erudição, contudo, jamais o
ajudou a ganhar dinheiro. Por outro lado, passava muito tempo conversando com os monges
errantes e com religiosos, sempre que os encontrava e não hesitava em lhes suprir as necessidades.
Por isso, embora ganhasse um pouco mais do que antes, não podia pagar as dívidas da família e
sua renda era suficiente somente para atender às necessidades mínimas. Portanto não podia
economizar e estava sempre necessitado. Às vezes gastava mais do que ganhava e vivia
despreocupado, consolando-se com o pensamento de que Raghuvir proverá a família de algum
jeito.
4. Rameswar, sem dúvida, amava ternamente seu irmão mais novo Gadadhar, mas nunca
importou-se em saber se ele fazia progressos nos estudos. Além de ser temperamentalmente
incapaz de dar essa atenção, não tinha tempo, já que devia ir a vários lugares à procura de
trabalho remunerado. Assim não tinha nem inclinação nem tempo para vigiar a educação do
irmão. Tinha também a firme convicção de que a mente altamente disciplinada de Gadadhar o
impediria sempre de se desencaminhar porque já havia visto nele notável desenvolvimento das
tendências religiosas, mesmo naquela tenra idade. Essa convicção tornou-se mais forte quando viu
homens e mulheres do vilarejo colocarem plena confiança no menino e amarem-no afetuosamente.
Estava certo que ninguém poderia ganhar os corações e ser louvado por todos, a não ser que tivesse
valor inerente e nobreza de caráter. Assim Rameswar antevia, com alegria, o futuro glorioso do
irmão mais jovem e não tinha qualquer preocupação a seu respeito. Gadadhar tinha então treze
anos quando Ramkumar foi para Calcutá. Dali em diante não teve mais qualquer responsabilidade
e portanto, era dono de si mesmo, livre para conduzir-se da maneira que quisesse.
5. Como já mencionamos, a aguda visão interior de Gadadhar permitiu que mesmo com tenra
idade, percebesse os motivos das ações dos outros. Não levou muito tempo para
compreender que o único objetivo de estudarem ou se distinguirem em seus estudos
era o de possibilitar ganharem dinheiro, ou como ele mesmo dizia, "juntar arroz e
plântano." Compreendeu também que aquele que houvesse gasto toda energia na busca
de prazeres mundanos não poderia, como seu pai, dedicar-se à verdade ou a adquirir
força de caráter e realizar Deus. Cegas por interesse egoísta, algumas famílias do vilarejo
disputavam a terra e outras propriedades, dando lugar a litígio. Então dividiam suas casas, suas
terras etc., com trenas, declarando: "Esse lado é meu e aquele é seu." Mas mal haviam desfrutado
seus quinhões por alguns dias, a morte os levou! Gadadhar às vezes via essas coisas acontecendo
diante de seus olhos e chegava à conclusão de que o dinheiro e o desejo de desfrutar prazeres eram
a raiz de toda infelicidade da vida humana. Não foi, portanto, surpresa que se tenha tornado cada
vez mais avesso à erudição conquistada com o objetivo de ganhar dinheiro. Por outro lado, considerava
a conquista do amor a Deus como a meta principal da vida e contentava-se, como seu pai, com a
satisfação das necessidades diárias, a saber, 'comida e roupa simples'. Contudo ia à escola quase
diariamente, mas isso era devido à sua atração pela companhia de meninos de sua idade. Passava
agora a maior parte do tempo na adoração de Raghuvir e aliviando o fardo da mãe, ajudando-a
no trabalho doméstico e por causa de todas estas atividades tinha que permanecer em casa a
maior parte do dia.
6. Já que Gadadhar passava muito tempo em casa, as mulheres do vilarejo tiveram
oportunidade em vê-lo. Ao terminarem as obrigações domésticas, muitas delas iam até
Chandradevi e se encontrassem o menino em casa pediam-lhe para cantar ou ler textos
religiosos. Gadadhar as atendia sempre que podia. Se o encontrassem ajudando a mãe, elas
mesmas terminavam o trabalho para que ele lesse os Puranas ou cantasse. Isso tornou-se
quase uma rotina diária. As mulheres gostavam tanto, que procuravam acabar as obrigações
diárias o mais cedo possível para poderem ouvir as canções e leituras de Gadadhar por mais
tempo.
Além de ler os Puranas Gadadhar entretinha as mulheres de várias maneiras. Havia na
vila três grupos de atores Yatra, um de menestréis (Bauls) e um ou dois de poetas (Kavis).
Também muitos aldeões eram Vaishnavas e costumavam ficar em suas casas lendo todas as
noites, o Bhagavata, ou cantando as loas do Senhor. Sua memória privilegiada permitia a
Gadadhar lembrar-se das muitas composições musicais, peças, cantos e hinos a Deus, que
havia ouvido desde a infância. Como entretenimento especial, um dia ele começava um drama,
no outro cantava as canções dos Bauls ou Kavis, ou então, as loas do Senhor. Quando encenava
uma peça, ele próprio representava vários papéis, mudando a voz de acordo com cada
personagem. Se, em qualquer ocasião, visse a mãe ou qualquer mulher triste, começava a
representar uma farsa ou imitava tão bem os modos e gestos de alguém da vila conhecido de
todos, que as pessoas caíam na gargalhada.
7. Assim Gadadhar exercia grande influência sobre as aldeãs. Elas já haviam sabido do
estranho sonho e das visões espirituais que os pais do menino haviam tido por ocasião de seu
nascimento e também haviam visto com seus próprios olhos a mudança extraordinária que
ocorria na mente e no corpo dele sempre que entrava em contato com o espírito dos deuses e
deusas. Por conseguinte, era muito natural que sua intensa devoção a Deus, sua absorção ao ler
os Puranas, seu canto doce e seu não convencional comportamento para com todas elas,
levantassem naquelas mulheres uma devoção e uma afeição ímpares por ele. Disseram-nos que
Prasannamayi e outras senhoras idosas viam em Gadadhar a manifestação do Divino Menino
(Gopala) e amavam-no mais do que a seus próprios filhos. As mais jovens, crendo que ele nascera
como parte do Bhagavan Sri Krishna, consideravam-no seu amor espiritual e amigo. Muitas delas
haviam nascido em famílias Vaihnavas e uma fé poética simples era a base de sua religião. Não é
de se estranhar que realmente tivessem acreditado que esse menino de conduta e caráter nobres
fosse o Próprio Deus. Devido a essa crença contavam-lhe, sem qualquer reserva seus pensamentos
mais íntimos e procuravam seu conselho, tentando segui-lo. Em tais ocasiões, Gadadhar também
se comportava com elas como se fosse uma delas.2 (2Será visto dos fatos registrados no II.14 o estranho desejo
que Gadadhar tinha, na época ali referida, de ser completamente igual uma mulher.)
8. Às vezes representava papéis de mulheres bem conhecidas vestindo roupa e adornos
femininos. Isso ocorria, quando a pedido de suas amigas, fazia o papel de Radharani ou de sua
companheira íntima, Vrinda. Parecia-se então exatamente como uma mulher, nos gestos, voz e
movimentos. As aldeães diziam que ninguém poderia reconhecê-lo. Isso mostra quão
minuciosamente o menino havia observado os diversos modos das mulheres. Gostando de
pilheriar, muitas vezes passou com esse disfarce diante dos homens, com um jarro debaixo do braço,
para pegar água em Haldapukur; ninguém poderia jamais suspeitar que ele não era uma mulher!
9. Já falamos de Sitanah Pyne, um homem do vilarejo. Tinha sete filhos e oito filhas, que
viviam todos juntos na casa de Sitanah, mesmo após o casamento. Diz-se que diariamente era
necessária grande quantidade de especiarias para cozinhar sua comida e que dez pedras eram
necessárias para moê-las e fazer uma pasta. Muitos parentes distantes de Sitanah haviam também
construído suas casas nas proximidades. Portanto essa parte de Kamarpukur era conhecida como
o bairro dos negociantes. Como essas casas eram localizadas perto da de Kshudiram, muitas
mulheres desse bairro - especialmente a esposa e as filhas de Sitanah - costumavam ir à casa de
Chandradevi nas horas livres e assim vieram a conhecer Gadadhar intimamente. Muitas vezes
levavam-no para suas casas e pediam-lhe para representar o papel de personalidades dramáticas ou
fazer certos papéis de mulheres com roupas femininas. Muitas das mulheres da família de Sitanah
estavam proibidas de ir a qualquer lugar fora de casa e portanto, não tinham a boa sorte de ouvir as
leituras e as canções de Gadadhar na casa de Chandradevi. Talvez seja por isso que a esposa de
Sitanah e suas filhas convidavam-no para ir à sua casa. Foi assim que muitas mulheres do bairro
dos comerciantes não podendo ir à casa de Chandradevi viram Gadadhar e amaram-no. Sempre que
sabiam que ele estava na casa de Sitanah iam para lá e desfrutavam de suas leituras, suas
representações ou imitações. O dono da casa, Sitanah, gostava muito de Gadadhar e os outros
homens do bairro conheciam o belo caráter do menino e por isso não se importavam que suas
mulheres ouvissem o menino cantar os louvores a Deus.
A única pessoa no bairro dos comerciantes que levantou objeção, foi Durgadas Pyne. Ele
também tinha Gadadhar em alta conta e amava-o, mas em nenhuma circunstância permitiria o
relaxamento do sistema purdah estrito observado por suas mulheres. Vangloriava-se com Sitanah e
com os outros parentes, de que ninguém jamais havia visto as mulheres de sua casa nem sabia
qualquer coisa a respeito dos apartamentos internos em que elas viviam. Olhava mesmo com
desprezo para Sitanah e outros que não davam força, como ele, ao purdah.
10. Um dia estava Durgadas vangloriando-se diante de um parente, quando Gadadhar
chegou. Ouvindo isso, o menino disse: "Podem as mulheres serem protegidas pelo purdah? Podem
ser protegidas somente por uma boa educação moral e devoção a Deus. Posso ver todas as
pessoas e conhecer tudo dos apartamentos interiores de sua casa se quiser." A isso Durgadas
vangloriou-se ainda mais e disse: "Bem, vamos ver como você vai fazê-lo." "Ora, veremos", disse
Gadadhar, aceitando o desafio e saindo.
Algum tempo depois numa tarde, sem dizer qualquer palavra a ninguém, o menino
disfarçou-se de uma pobre tecelã, colocando um sari sujo e ordinário e entre outros enfeites, um
cinto de contas de prata em sua cintura. Chegou um pouco antes do anoitecer na casa de Durgadas,
vindo do mercado com uma cesta debaixo do braço e um véu cobrindo o rosto. Durgadas estava
sentado com uns amigos na sala de visitas de sua casa. Gadadhar apresentou-se como tecelã que
havia chegado do mercado para vender linha, mas teve a infelicidade de ser deixada para trás por
suas companheiras. Por isso ela estava pedindo abrigo por uma noite. Durgadas fez perguntas a
seu respeito e satisfeito com suas respostas, disse: "Muito bem, vá ter com as mulheres dos
cômodos interiores e peça-lhes para que a recebam:" Gadadhar inclinou-se em gratidão e
entrou. Repetiu a história para as mulheres e divertiu-se com suas tagarelices. Vendo-a tão
jovem e encantadora com suas palavras doces, as mulheres permitiram que ela ficasse.
Mostraram-lhe um lugar para descansar e deram-lhe alguma coisa para comer, arroz empapado
sem casca e adocicado. Gadadhar sentou-se no lugar indicado e enquanto comia, observava
minuciosamente cada cômodo e cada uma das mulheres. Não somente ouvia a conversa que elas
estavam tendo como tomou parte e às vezes fazia perguntas. A tarde toda foi passada dessa
maneira. Como Gadadhar ainda não havia voltado para casa embora fosse muito tarde, Chandradevi
mandou Rameswar à sua procura no bairro dos comerciantes aonde sabia que ele ia com freqüência.
Rameswar primeiro foi à casa de Sitanah mas foi informado que o menino não estava lá.
Aproximando-se da casa de Durgadas chamou-o pelo nome em voz alta. Quando Gadadhar ouviu a
voz do irmão, percebeu que já era tarde e gritou lá de dentro: "Estou indo, irmão" e correu para
encontrar Rameswar. Foi então que a verdade apareceu a Durgadas. A princípio ficou um pouco
embaraçado e aborrecido, pensando que Gadadhar o havia feito e à sua família de tolos; mas logo
começou a rir observando quão bem o menino havia feito seu papel. Quando na manhã seguinte
souberam do incidente, Sitanah e outros parentes ficaram contentes por Gadadhar ter dado um
golpe no orgulho de Durgadas. Dali em diante as mulheres da família de Durgadas também
começaram a freqüentar a casa de Sitanah sempre que Gadadhar estava ali.
11. As mulheres da família de Sitanah e do bairro dos comerciantes começaram a amá-lo
tanto que o mandavam buscar se não o vissem por alguns dias. Às vezes o menino entrava em
êxtase enquanto lia ou cantava na casa de Sitanah; e quando elas o viam naquele estado, sua
devoção não conhecia limites. Disseram-nos que muitas delas adoravam o menino quando ele estava
em êxtase como a Encarnação de Sri Gauranga ou de Sri Krishna. Elas tinham uma flauta de
ouro e várias roupas de personagens masculinas e femininas, para as encenações.
12. De tempos em tempos tivemos a oportunidade de ouvir algumas dessas mulheres
falarem da influência que Gadadhar, de múltiplas facetas, exercia sobre elas. Quando alguns de nós,
incluindo Swami Ramakrishnananda, fomos a Kamarpukur em 1893, encontramos a filha de
Sitanah Pyne, Rukmini, que tinha mais ou menos sessenta anos. O leitor fará uma boa idéia da
influência de Gadadhar quando relatarmos o que ela nos falou. Apontando para o norte, Rukmini
disse: "Nossa antiga casa ficava mais longe, para lá. Está agora dilapidada já que não sobrou
quase nenhum de nós, mas quando eu tinha dezessete ou dezoito anos era a casa de uma família
próspera. Sitanah Pyne era meu pai e éramos dezessete ou dezoito irmãs e primas, incluindo as
filhas do irmão mais velho e do irmão mais novo de meu pai. Embora houvesse pequena diferença de
idade entre nós, éramos todas mocinhas naquela época. Desde sua infância, Gadadhar costumava
brincar conosco e éramos grandes amigos. Embora ele fosse já rapazola, continuou a freqüentar
nossa casa mesmo quando não éramos mais crianças. Tinha livre acesso aos nossos cômodos
internos. Papai amava-o muito. Considerava-o sua Divindade Escolhida e tinha grande devoção e
respeito por ele, mas alguns de nossos vizinhos faziam objeção a isso dizendo: 'Há tantas moças
em sua casa e Gadadhar é agora um rapaz. Por que você permite que ele entre nos cômodos
internos?' Ele respondeu: 'Não se preocupem, conheço Gadadhar muito bem' e eles não
ousavam dizer mais nada. Ah, quantas histórias dos Puranas Gadadhar costumava nos contar e
como nos divertíamos! Costumávamos fazer nossas obrigações domésticas enquanto ouvíamos
aquelas histórias quase diariamente. Como posso exprimir com palavras a grande alegria que todos
sentíamos quando ele estava conosco? Se ocorresse dele não vir um dia, ficávamos ansiosas,
pensando que estivesse doente. Não ficávamos sossegados enquanto uma de nós não fosse até a
'Brahmani' (Chandra) sob pretexto de trazer água ou fazer qualquer outra coisa e trouxesse notícias
de Gadadhar. Cada palavra de Gadadhar era um néctar para nós. Quando não vinha à nossa casa
passávamos o dia inteiro conversando sobre ele."
13. A popularidade de Gadadhar não estava restrita ao círculo das mulheres do vilarejo.
Seu gênio, de diversidade e maneiras graciosas, faziam dele notícias para todas as pessoas do
vilarejo, fossem homens, mulheres ou crianças. Freqüentava os lugares onde aldeões, jovens ou
velhos reuniam-se para ouvir a leitura dos Puranas e das canções em louvor a Deus. Havia grande
alegria sempre e onde o menino estava presente; somente ele podia ler tão bem ou expor as
verdades religiosas com tanta seriedade. Não tinha rival em fervor espiritual quando cantava as
glórias de Deus e no seu poder de elevar os sentimentos espirituais. Ninguém tinha voz doce como
a sua nem podia dançar como ele. Em momentos de alegria superava a todos em sua habilidade
de representar papéis cômicos e na imitação de todas as espécies de afetações de homens e
mulheres. Também ninguém contava tão bem histórias novas ou cantava hinos de acordo com a
ocasião. Assim, todos, jovens e velhos, afeiçoavam-se a ele e ansiosamente esperavam sua chegada
a cada tarde. Gadadhar também ficava feliz em encontrar e entreter os aldeões, ora num lugar, ora
no outro.
Como com tão pouca idade o menino tivesse um julgamento correto, muitos aldeões
aceitavam seu conselho na solução de seus problemas mundanos. Atraídos por seu caráter puro e
vendo que entrava em êxtase quando pronunciava o nome de Deus ou cantava Suas glórias, as
pessoas religiosas procuravam seu conselho na escolha de seus ideais de disciplina espiritual.3 (3
Dizem que naquela época Srinivas Sankhari e alguns outros jovens adoravam-no como manifestação especial de Deus.)
Somente os hipócritas e mal intencionados tentavam evitá-lo, pois a aguda visão interior de
Gadadhar atravessava seus decepcionantes exteriores e detectava seus objetivos secretos. O veraz e
franco menino às vezes frustava essas pessoas, expondo-as diante de todos. Seu gosto pelas
brincadeiras ocasionalmente fazia com que imitasse os modos hipócritas daquelas pessoas na
presença de todos. Apesar disso torná-los zangados, nada podiam, porque todos ficariam do lado
de Gadadhar. Sua única salvação era apelar para a natureza bondosa do menino porque sabiam
que ele sempre era generoso com aqueles que apelassem para sua compreensão.
14. Como já mencionamos antes, Gadadhar continuou indo à escola durante algum tempo por
sua amizade pelos meninos de sua idade. Com quatorze anos, porém, sua devoção e seu desejo de
contemplação espiritual aumentaram de tal maneira que ele se convenceu que não havia utilidade
para ele, na educação para ganhar pão, conforme dada na escola. Então sentiu que sua vida tinha
um significado maior e que deveria dirigir todas suas energias para a realização de Deus. Uma
imagem fraca daquele objetivo muitas vezes surgia diante de sua visão mental, mas os detalhes
não lhe pareciam claros e ele não era capaz de captar seu significado ou compreender seu
propósito. Sempre que se via face ao problema de tomar uma decisão sobre o caminho futuro de sua
vida, o ideal de renúncia e de total dependência de Deus surgia diante de sua mente discriminativa.
Sua imaginação desenhava-lhe os vários símbolos e a parafernália de uma vida de renúncia - a
roupa ocre, o fogo sagrado, as esmolas e o andar de lugar em lugar sem qualquer apego. Logo em
seguida, entretanto, seu coração cheio de amor, recordava-lhe a condição de sua mãe, irmão e
outros membros da família e o fazia desistir de trilhar aquele caminho. Ao contrário, era necessário
que ele os ajudasse da melhor maneira que pudesse permanecendo no mundo, confiando em Deus,
como seu pai havia feito. Sempre que sua cabeça e seu coração apontavam para direções opostas,
ele esperava a orientação de Deus, dependendo inteiramente do que Raghuvir pudesse ordenar;
com o coração cheio de amor por aquela Divindade, o menino sempre a considerava
completamente sua. Confiante, portanto em que Raghuvir resolveria seus problemas na época
adequada, acalmava sua mente. Sempre que havia um conflito entre sua cabeça e seu coração, era o
coração que vencia e então ele fazia tudo sob aquela influência.
15. Por essa época um novo sentimento começou a brotar de vez em quando no coração
puro de Gadadhar, tão cheio de rara simpatia. Existia um relacionamento muito íntimo entre ele e
as pessoas do vilarejo e ele as considerava seus amigos queridos e plenamente compartilhava de
suas alegrias e tristezas. Por isso logo que a idéia de renunciar ao mundo surgiu em sua mente, seu
coração o fez lembrar-se daqueles aldeões de coração simples e afetuoso e sua confiança irrestrita
nele. Sabia que seu caminho era conduzir a própria vida de tal maneira que tomando-o como
modelo, eles poderiam realizar elevados ideais e transformar seu relacionamento atual em
parentesco espiritual. Livre do mais leve traço de egoísmo, o coração do menino dizia: " É
egoísmo renunciar ao mundo somente para a própria salvação. Faça algo que seja bom para os
outros também."
16. Com relação a seus estudos na escola e mais tarde na escola de sânscrito, a cabeça
e o coração de Gadadhar estavam de pleno acordo. Mesmo assim ele não abandonava
completamente a escola pois sabia que seus colegas sentiriam muito a sua falta. Todos os
meninos de sua idade, Gayavishnu e outros amavam-no ternamente e consideravam-no seu
líder por sua grande inteligência e coragem. Por fim Gadadhar encontrou a oportunidade
favorável para deixar a escola. Certo dia, alguns amigos que conheciam seu talento dramático
propuseram-lhe formar um grupo de artistas Yatra e pediram-lhe para encarregar-se do
treinamento. Gadadhar concordou. Mas sabendo que seus responsáveis fariam objeções, os
meninos preocuparam-se em primeiro lugar em conseguir um lugar para os ensaios. O
inteligente Gadadhar finalmente escolheu o pomar de mangas de Manikraja e ficou combinado
que diariamente alguns deles se ausentariam da escola para se encontrarem na hora marcada.
O plano foi imediatamente posto em ação. Sob a orientação de Gadadhar os meninos
aprenderam de cor seus papéis e canções e o pomar de mangas tornou-se o alegre lugar de
representação das peças que narravam as vidas de Sri Ramachandra e de Sri Krishna. Todos os
detalhes de cada representação foram organizados por Gadadhar com a ajuda de sua
imaginação e ele mesmo fazia os papéis principais. Os meninos, contudo, ficaram muito
contentes vendo o pequeno grupo trabalhando em perfeita harmonia. Diz-se que Gadadhar, de
vez em quando, entrava em êxtase, durante essas representações.
17. A habilidade do menino para pintar não podia agora ter muitas oportunidades de
afirmar-se, visto que a maior parte do tempo era gasto com cantos religiosos ou com a
representação das peças. Mas um dia, numa visita à sua irmã mais nova Sarvamangala, em
Gaurhati, ele a viu, feliz, servindo seu marido. Pouco tempo depois pintou um quadro
mostrando o casal naquele estado de felicidade e todos da família ficaram surpresos em ver
que o quadro parecia ter vida.
Gadadhar tornou-se muito competente em modelar imagens de deuses e deusas. Suas
inclinações religiosas levavam-no a fazê-las com freqüência e ele e os amigos adoravam as
imagens na maneira prescrita pelas escrituras.
Deixando a escola Gadadhar seguiu os ditames de seu coração e empenhou-se
naquelas atividades além de ajudar Chandradevi nos afazeres domésticos.
Afeiçoou-se muito a Akshay, filho órfão de mãe de seu irmão, que muitas vezes o
mantinha ocupado. Para permitir que Chandradevi tivesse tempo para seus afazeres, tornou-se
parte de sua rotina diária pegar a criança no colo e entretê-la de diversas maneiras.
Três anos assim se passaram e Gadadhar chegou a seu décimo sétimo aniversário. Pelo
esforço de Ramkumar o número de estudantes da escola de Calcutá havia aumentado nesse
período e agora ele ganhava mais dinheiro do que antes.
18. Embora passasse a maior parte do tempo em Calcutá, Ramkumar tinha o hábito de ir
a Kamarpukur uma vez por ano por algumas semanas, para ver como as coisas estavam indo
com sua mãe e com seus irmãos. Desta vez ficou particularmente preocupado com a indiferença
de Gadadhar por qualquer tipo de estudo sistemático. Com cautela fez-lhe perguntas, como
passava o tempo e depois de consultar sua mãe e Rameswar, decidiu levar Gadadhar para
Calcutá e mantê-lo próximo. Pensou que seria essa a maneira certa de agir pois, com o
aumento do número de estudantes a direção da escola havia se tornado difícil e ele sentia a
necessidade de um assistente. Ficou então estabelecido que Gadadhar iria para Calcutá ajudá-
lo um pouco e, ao mesmo tempo, estudar com os outros alunos, sob sua direção. Quando isso
foi exposto a Gadadhar, ele não levantou as mínima objeção, porque sabia que isso significava
ajudar seu irmão mais velho, a quem respeitava como a seu pai. Então, numa hora auspiciosa de
um dia favorável, Ramkumar e Gadadhar apresentaram homenagem a Raghuvir, tomaram a
poeira dos pés da mãe e partiram para Calcutá. Esse foi o fim do mercado de alegria em
Kamarpukur. Chandra e as outras mulheres passavam seus dias de uma maneira ou outra com a
doce lembrança de Gadadhar e o pensamento em seu bem-estar futuro.
PARTE II
PREFÁCIO
P ela graça de Deus a apresentação das práticas espirituais sem par de Sri Ramakrishna como
aspirante espiritual, é agora levada a público. Tentamos nessa seção não somente escrever a
natureza das Sadhanas que ele empreendeu e os princípios filosóficos a elas subjacentes, mas
também dar uma visão histórica desse período de sua vida, que se estende desde o seu décimo
sétimo até o quadragésimo ano e apresentam os acontecimentos numa ordem cronológica. Portanto
essa parte do livro, "Como Aspirante Espiritual", pode ser considerada a história de sua vida como
aspirante até a época em que seus jovens discípulos, incluindo Swami Vivekananda, vieram a seus
sagrados pés.
Tivemos grandes dúvidas se na época de escrever essa parte do livro, seria possível
determinar as datas de todos os acontecimentos importantes da vida do Mestre. Embora ele nos
tivesse falado dos fatos de sua vida como aspirante espiritual, jamais nos narrou
cronologicamente. Em conseqüência, os acontecimentos desse período de sua vida permaneceram
confusos e difíceis para seus devotos. Mas devido a investigações, somos agora capazes de
afirmar, por sua graça, as datas de muitos daqueles acontecimentos.
Continua até hoje uma controvérsia sobre o ano do nascimento do Mestre porque ele próprio
disse que seu horóscopo original havia sido perdido e o que foi feito mais tarde continha muitos
erros. Fomos capazes de resolver aquela controvérsia consultando diversos almanaques com mais
de cem anos. Por isso foi fácil determinar as datas dos acontecimentos da vida do Mestre. Os fatos a
respeito da adoração de Shodasi pelo Mestre não eram conhecidos até agora. Será fácil para o leitor
compreender aquele acontecimento ao ler essa parte do livro.
Concluindo, nossa humilde oração é que esse livro receba as bênçãos do Mestre e seja uma
fonte de benefícios para todos.
Autor
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
SADHAKA E SADHANA
ASSUNTOS: 1. Concepções errôneas sobre Sadhana. 2. A Sadhana é o meio para a realização de Brahman em todos os
seres. 3. A ilusão esconde a Verdade; A causa da ilusão é um mistério. 4. A realização dos sábios é a Verdade; por que?
5. A ilusão, embora compartilhada por muitos, não é o conhecimento correio. 6. Por que todos têm a mesma ilusão. 7. O
Universo está além do tempo e do espaço; Prakriti é sem começo. 8. A Sadhana é o esforço para conhecer a causa
universal. 9. Os dois caminhos da Sadhana. 10. O objetivo do caminho "Não é isto, Não é isto," é saber "Quem sou eu?" 11.
Nirvikalpa Samadhi. 12. O Nirvikalpa Samadhi e o caminho de "Isto, Isto". 13. As Encarnações: combinação do divino e do
humano.
Para nos familiarizar verdadeiramente com o estado mental do Mestre como Sadhaka,
devemos antes de mais nada, saber o que é Sadhana. Pode-se levantar uma objeção: por que
aumentar o tamanho do livro introduzindo este tópico, tão familiar às pessoas na Índia que têm sempre
praticado Sadhana de uma forma ou de outra? Que outra nação no mundo aplicou e ainda está
aplicando seus poderes para realizar diretamente as verdades do campo espiritual, como este país tem
feito, desde o despertar dos tempos? Em que outro país nasceram tantas Encarnações de Deus e tantos
conhecedores de Brahman? Portanto é supérfluo descrever outra vez princípios fundamentais da
disciplina espiritual para nós que já estamos familiarizados com eles.
1. Embora o que dissemos seja verdadeiro, uma necessidade real será atendida, porque as
pessoas geralmente têm idéias fantásticas a respeito da Sadhana em diversos lugares. Tendo
perdido o contato com as tradições autênticas, elas geralmente identificam Sadhana com a prática de
dureza física fora do comum com rituais feitos em lugares inacessíveis, utilizando materiais raros
obtidos em diversos lugares, com retenção de respiração e até com feitos fantásticos de mentes
desequilibradas. Também consideram peculiares essas práticas originalmente prescritas por algumas
grandes almas a fim de trazerem à normalidade mentes obsedadas por más impressões e hábitos
maus, como Sadhana, e essas são pregadas como adequadas a todos. Há ainda outros, que não
tendo desapego e desejando ardentemente desfrutar os objetos fugazes dos sentidos, como
formas belas e pratos saborosos, passam suas vidas em vãos esforços com a ilusão de que o
Senhor, a causa do universo, poderia ser coagido através de certos Mantras e práticas, como as
serpentes o são. Por isso não é fora de propósito fazer uma breve revisão das verdades sobre a
Sadhana, descoberta pelo esforço e perseverança dos sábios e videntes da Índia ao longo de milênios.
2. O Mestre costumava dizer: "Ver Brahman ou Deus em todos os seres é a última palavra
em Sadhana." Este é o propósito final das disciplinas espirituais e os Vedas e os Upanishads, as
escrituras mais autorizadas dos hindus, sustentam essa idéia. Tudo o que se vê no mundo, denso
ou sutil, sensível ou insensível - telhas e vigas, lama e pedra, plantas e árvores, homens e
animais, deuses e semideuses - são todos, dizem, o Brahman não-dual. É somente a realidade de
Brahman que se vê, se ouve, se toca, se cheira e se prova em diversas formas. Embora toda
conduta do dia a dia, ao longo da vida, esteja n'Ele, não se está consciente d'Ele e pensa-se que se
esteja lidando com coisas e pessoas diferentes. Isso será facilmente compreendido se descrevermos
aqui, através de perguntas e respostas, a essência das dúvidas a respeito dessas doutrinas e assim
como as respostas dadas nas escrituras.
Pergunta: Por que esse fato (que estamos experimentando o Brahman não-dual e não
objetos e pessoas individuais), não é diretamente percebido por nós?
Resposta: Vocês estão em ilusão. Como podem detectá-la enquanto não for removida?
Somente pela comparação com coisas e estados reais descobriremos as ilusões externas e internas.
De forma semelhante vocês devem ter uma espécie de conhecimento comparativo, se quiserem
descobrir aquela ilusão.
3. Pergunta: Bem, qual a causa da ilusão? E quando ela surgiu em nós? Resposta: A causa
da ilusão aqui é a mesma que em qualquer lugar. É a ignorância. Como podem saber quando essa
ignorância aparece? Enquanto estiverem em ignorância, seus esforços para conhecer sua origem
são inúteis. Ao sonhar, a pessoa permanece convencida de que o sonho é real. Quando o sono
acaba, o sonho é comparado com o estado de vigília e é reconhecido como irreal. Vocês poderão
objetar que certas pessoas têm, às vezes, a sensação de que estão dormindo, quando na realidade
estão no próprio estado de sonho. Mas também obtém esse conhecimento da memória do estado de
vigília. De maneira semelhante, algumas pessoas têm a memória da realidade do Brahman não-
dual, quando estão conscientes do mundo no estado de vigília.
Pergunta: Então qual a saída? Resposta: A saída é remover aquela ignorância. Posso dizer-
lhes com certeza que essa ignorância e ilusão podem ser removidas. Os antigos videntes foram
capazes de removê-las e deixaram instruções sobre seu método.
4. Pergunta: Muito bem, mas antes de prosseguirmos para conhecer esses meios,
queremos fazer uma ou duas perguntas. O senhor afirma que é irreal aquilo que nós e muitos
outros vemos e sentimos como real: o senhor considera que somente é real o que alguns sábios
viram e experimentaram. Não será que a percepção deles estava errada?
Resposta: Não existe a regra de que o que muitos acreditam é sempre o verdadeiro. Digo
que o conhecimento dos videntes é verdadeiro, porque com aquele conhecimento alcançaram a
liberdade do medo em todos os aspectos e desfrutaram paz eterna destituída de qualquer tipo de
infelicidade. Além disso esse conhecimento lhes trouxe a consciência de um grande propósito por
trás das lutas e sofrimentos sem sentido que terminam com a morte. Além disso, o reconhecimento
desenvolve sempre na mente humana, tolerância, contentamento, compaixão, humildade e outras
nobres qualidades dotando-a de uma magnanimidade maravilhosa. Sabemos pelas escrituras que
os videntes possuíam aquelas qualidades e poderes incomuns e nós as encontramos em pessoas
que, seguindo seus passos, alcançaram a perfeição.
5. Pergunta: Bem, como todos nós temos a mesma ilusão? O que identifico como um animal é
também conhecido por vocês como um animal e não como um homem; e assim é com tudo o que
existe. É inacreditável que, a totalidade das pessoas tenha a mesma ilusão sobre todas as coisas,
ao mesmo tempo. Vê-se em todos os lugares que se poucas pessoas tiverem um conhecimento
errado de uma determinada coisa, há muitas que têm a percepção correta . Mas aqui esta verdade
está contraditada. Portanto o que o senhor diz não parece ser provável.
6. Resposta: Aqui vocês encontram uma exceção à regra, porque não incluem entre as
pessoas, os poucos videntes que têm o conhecimento correto. Por outro lado a réplica está na
resposta à própria pergunta anterior. (Isto quer dizer que a aceitação de que um grupo de pessoas
veja um fenômeno de maneira diferente da que os outros percebem, é suficiente para não provar a
universalidade contida na pergunta sobre a percepção daquelas pessoas ignorantes.) Além disso,
em resposta à sua pergunta, como todas as pessoas estão sob a mesma ilusão, as escrituras
dizem: na mente cósmica sem limites e infinita o universo surgiu devido à ideação (imaginação
criativa) e como as mentes individuais de vocês, minha e de todas as pessoas são parte e estão
compreendidas naquela mente cósmica, estamos todos unidos para experimentar as ideações
dessa mente do mesmo modo. É por isso que não podemos, por nossos próprios esforços, ver um
animal como outra coisa. É por essa mesma razão que enquanto um de nós alcança conhecimento
reto e liberta-se daquela ilusão, todos os outros continuam como antes na mesma ilusão. (Por esta
razão o vidente iluminado sai dessa magia universal de ilusão ao realizar sua identidade com o
conhecimento dessa mente cósmica ou a Própria Pessoa Divina e participando dela, enquanto os
outros continuam no mesmo estado de ilusão.) Para compreender essa idéia, mais um ponto sobre
a mente cósmica da Pessoa Divina, deve ser entendido, que embora o universo surja na mente da
Pessoa onipresente que tudo penetra, por ideação, Ela não fica mergulhada na escravidão da
ignorância como nós, centros de consciência envolvidos nela. Isso porque Ela, a Pessoa que tudo
conhece vê a Realidade não-dual de Brahman interpenetrando a ideação, tanto dentro como fora
do universo nascido da ignorância. Não podemos fazê-lo porque o nosso caso é diferente. O sábio
iluminado, ao contrário de nós, é aquele que obtém o conhecimento ou a percepção interior da Pessoa
Divina que tudo conhece, pela identificação em ser ou ter a consciência com Ela. Portanto ele se torna
livre da ilusão da ignorância cósmica, à qual estamos sujeitos.) O Mestre mais tarde elucidou a
natureza da Pessoa Divina inatingível, dizendo: "Uma cobra tem veneno na boca. Come diariamente
por meio dela mas permanece não afetada pelo veneno. Qualquer um que ela morda, entretanto,
encontra a morte instantaneamente."
7. Por isso, do ponto de vista das escrituras, sabemos que o universo, uma idéia na mente
universal é, também, de certo modo uma ideação de nossas mentes pois nossas mentes limitadas têm
uma relação eterna e inseparável com a mente universal agregada, semelhante àquela dos membros
e do corpo. Também não se pode dizer que houve um tempo em que a ideação acima mencionada
não tenha existido na mente universal e que tenha vindo à existência posteriormente. As duas
categorias, nome e forma, ou espaço e tempo, sem as quais não poderia haver qualquer diversidade,
estão incluídas na idéia do universo; em outras palavras, elas tem uma coerência eterna e
inseparável com a referida idéia. Pensando com um pouco mais de calma, o leitor será capaz de
compreender isso e saber porque os Vedas e outras escrituras ensinam que Prakriti ou Maya, o
último material da criação, é sem começo e além do tempo. Se o universo é uma idéia mental e
essa idéia não está dentro do que compreendemos por "tempo", segue-se que simultaneamente
com a idéia de "tempo", a idéia de "universo" também existe na mente cósmica, suporte daquela
idéia. Como nossas mentes individuais limitadas vêm experimentando essa idéia (isto é o universo) por
um tempo infinitamente longo, temos a firme crença na existência real do universo. E tendo sido
privado do conhecimento imediato da realidade do Brahman não-dual por longo tempo, não
reconhecemos que o universo seja uma simples idéia e que somos incapazes de reconhecer nosso
erro. Pois, como já foi dito, somente pela comparação com coisas e estados reais é que podemos
reconhecer os erros externos e internos.
8. Agora está claro que nossa concepção, experiência etc. do universo assumiram suas
formas atuais como resultado de hábitos acumulados por um tempo quase que infinitamente
longo. Assim, se quisermos ter o conhecimento correto do universo teremos que estar
familiarizados com a entidade além de nome e forma, tempo e espaço, mente e intelecto e todas as
coisas abrangidas pelo universo. A luta por esse conhecimento tem sido descrita como Sadhana
pelos Vedas e outras escrituras: e os homens e mulheres que estão lutando nessa direção consciente
ou inconscientemente, são chamados Sadhakas.
9. Falando de forma geral, o esforço acima mencionado na busca da realidade além do
universo, tem tomado seu curso através de dois principais canais: um é aquele que tem sido
chamado nos Sastras como Neti, Neti (Isto não, Isto não) 1 (1 Brihadaranyaka Upanishad 2, 3, 6 e de fato
todos os Upanishads o advogam. O restante das escrituras hindus, baseado na parte dos Vedas de "trabalho", enfatizam o
caminho de "Isto, Isto".) ou o caminho do conhecimento; e o outro é Iti, Iti (Isto, Isto) ou o caminho
da devoção. O aspirante que segue o caminho do conhecimento tem desde o início, uma
concepção do Ideal Supremo; e sempre O tendo na lembrança, vai adiante, conscientemente, na
direção daquele Ideal. O viajante do caminho da devoção ignora muitas vezes onde irá, no final. Aceita
ideais cada vez mais elevados, um após outro, na medida em que caminha para frente e, por fim,
conhece diretamente a realidade não-dual além do universo. Essa é a única diferença entre os
dois; porque os viajantes, em ambos os caminhos, têm que renunciar ao conceito de universo do
homem comum. O homem, no caminho do conhecimento, tenta desde o começo, renunciar a ele em
todos os aspectos e embora o devoto prossiga em parte renunciando, em parte retendo-o, ele
também por fim renuncia a ele completamente e chega à verdade, "Uno sem segundo." A renúncia
dessa concepção comum do universo colorido pelo centro do nosso eu, que fez do prazer o único
objetivo da vida, foi chamada, pelas escrituras, desapego ou despaixão (Vairagya).
Como a vida humana está sempre mudando e deve acabar com a morte, o conhecimento da
transitoriedade do mundo vem naturalmente à mente humana. É possível, portanto, que no passado
a busca pela causa última do universo tenha tomado em primeiro lugar o caminho do "Isto não,
Isto não", juntamente com a renúncia completa do conceito comum do universo. É por isso que o
desenvolvimento completo pelo caminho do conhecimento ocorreu nos Upanishads antes que o
caminho da devoção se tornasse completo em todos os aspectos, embora estivessem
simultaneamente em voga.
10. Os Upanishads testemunham o fato que o homem avançou nesse caminho de
negação e tornou-se introspectivo em pouco tempo. Descobriu que de todas as entidades do
mundo, seu corpo e sua mente são os mais íntimos e imediatos objetos de conhecimento.
Parecem-lhe que ele obteria o conhecimento da causa do universo mais cedo, se continuasse a
buscá-lo mais através de seu corpo e de sua mente, do que através do mundo exterior. Se
assim como "somente pressionando com os dedos um grão de arroz na panela, pode-se saber
se todos os grãos estão bem cozidos ou não," assim também, logo que uma pessoa puder
conhecer em si mesma, a eterna causa universal, poderá também conhecê-la nas outras coisas
e pessoas. É por isso que a investigação e compreensão de "Quem sou eu?" torna-se o único
objetivo do aspirante no caminho do conhecimento.
11. Dissemos anteriormente que a idéia do universo, mantida pela maioria das pessoas,
deve ser renunciada tanto por homens no caminho do conhecimento, como por aqueles no
caminho da devoção. Por sua completa renúncia o homem se torna livre de todas as modificações
mentais e por conseguinte, pronto para o Samadhi. Esse tipo de Samadhi é chamado nas
escrituras, Nirvikalpa Samadhi. Falaremos ao leitor mais adiante (cf.III.3) como o aspirante no
caminho do conhecimento esforça-se para conhecer "Quem sou eu?", como alcança o Nirvikalpa
Samadhi e qual a experiência que tem nesse momento. Agora, deve-se explicar ao leitor como
o aspirante no caminho da devoção chega à realização daquele estado supraconsciente.
Designamos o caminho da devoção como o caminho de "Isto, Isto". Pois, embora o viajante
nesse caminho tenha conhecimento verdadeiro da transitoriedade do mundo, ele crê em Deus,
seu criador e está convencido da realidade e existência do mundo criado por Ele. O devoto olha e
mundo e todas as coisas e pessoas como relacionadas com Deus, tornando-as Suas. Ele afasta
tudo o que considera obstáculo no caminho que conduz à realização desse relacionamento. É o
ideal imediato do devoto ficar absorvido em Deus pelo amor e pela meditação de Suas formas 2
(2 Consideramos a adoração do Brahmo Samaj como meditação numa forma de Deus, porque quando se medita numa
personalidade que possui nobres qualidades, mas sem forma, somos levados a pensar numa ou outra dessas coisas como
éter, água, ar, fogo etc.) e também, tudo fazer por amor a Ele.
12. Vamos agora discutir como, esquecendo a existência do universo, uma pessoa atinge o
estado de consciência chamado Nirvikalpa, estando absorvido na meditação das formas de Deus. Já
dissemos anteriormente que o devoto aceita como seu Ideal Escolhido uma forma particular de Deus
e continua a pensar e a meditar naquela forma. No começo não pode trazer para seus olhos
mentais, na hora da meditação, a figura completa da pessoa de seu Ideal Escolhido. Às vezes as
mãos daquele quadro mental, às vezes os pés e às vezes somente o rosto, aparecem diante dele,
dissolvendo-se, por assim dizer, logo que são vistos; não permanecem diante dele. Como resultado
da prática, quando a meditação se aprofunda, o quadro completo daquela forma aparece diante
de seus olhos mentais. Quando a meditação se aprofunda, o quadro se apresenta em uma
continuidade vívida e ininterrupta, enquanto a mente permanece firme e inabalável. Depois de
acordo com o aumento da intensidade da meditação, o devoto torna-se consciente do movimento,
do sorriso, da fala e por fim, do toque daquela forma viva. Então o devoto vê, de olhos abertos
ou fechados, a presença viva e bondosa do Senhor e Seus movimentos graciosos em todos os
lugares e sob quaisquer condições. O aspirante sincero gradualmente tem visões de várias formas
divinas emanando do próprio Ideal Escolhido, como resultado de sua fé que "seu Ideal assumiu,
por sua própria vontade, todas as formas." O Mestre costumava dizer: "Quem tiver a visão
dessa forma como uma presença viva, obtém facilmente a visão de todas as outras formas."
"Do que foi dito antes, uma coisa está clara. Aquele que tem a boa fortuna de ter a visão
dessas formas vivas sente que elas pertencem ao campo das idéias e da experiência durante a
meditação, e que elas têm uma existência real como as coisas e as pessoas do estado de vigília.
Assim, à medida que se aprofunda o sentimento de que essas experiências do mundo das idéias são
reais como as do mundo exterior, intensifica-se a convicção de que essas últimas são uma
projeção mental. Durante a meditação profunda, as experiências no campo das idéias tornam-se
tão poderosas na mente do devoto, que ele não tem o mais leve conhecimento do mundo exterior
nesse momento. Esta condição do devoto foi chamada de "Savikalpa Samadhi". Contudo, devido à
força de seu poder mental, o mundo exterior se desvanece da mente do devoto por ocasião desse
Samadhi, mas o campo das ideais ainda persiste. Sua experiência do Ideal Escolhido nesse mundo de
ideais e a alegria que o devoto experimenta não são menos intensas e reais para ele do que aquelas
do mundo de vigília e seus contatos com os homens e com as coisas do mundo. Todas as idéias,
sem exceção, que surgem naquele momento em sua mente têm por objeto somente seu Ideal
Escolhido. As escrituras denominam essa condição mental do devoto Savikalpa Samadhi, porque
naquele momento as modificações mentais do devoto têm uma coisa como objeto principal.
Assim o mundo exterior denso desaparece da mente do devoto devido à meditação num
objeto particular no campo do mundo ideal, porque, quando uma idéia predomina, todas as
outras desaparecem. Atingir o Nirvikalpa Samadhi não está muito longe desse aspirante sincero
que foi capaz de avançar tanto. Assim a mente que se liberta da crença da existência do mundo
externo com o qual esteve familiarizado durante um período bem longo fica dotada de muito mais
força e determinação. A totalidade dessa mente vai adiante, com entusiasmo, na direção do prazer
da felicidade divina, quando então, fica convencido que o prazer daquela felicidade se torna mais
intenso se puder ficar completamente livre de modificações. Então a pessoa sobe ao plano mais
elevado no campo das idéias, pela graça de seu instrutor e de Deus e se estabelece firmemente no
conhecimento não-dual, alcançando a paz eterna. Ou pode-se dizer que o amor intenso pelo Ideal
Escolhido lhe mostra aquele plano e impelido por ele, realiza sua identidade com aquele Ideal,
como as Gopis de Vraja.
13. Estes são os caminhos estabelecidos pelas escrituras para quem trilha os caminhos do
conhecimento e da devoção para alcançar o objetivo final. Mas como as Encarnações Divinas são
dotadas, simultaneamente, de natureza humana e divina durante toda a vida, elas são às vezes,
vistas manifestando conhecimento e poder de uma pessoa perfeita, ainda no período de sua
Sadhana, o que acontece porque têm naturalmente o poder de morar em ambos planos, o divino
e o humano. Ou porque, sendo sua natureza divina inata e espontânea, às vezes atravessa o véu
externo de sua natureza humana e manifesta-se de tempos em tempos. Qualquer que seja nossa
conclusão, esses fatos fizeram as vidas das Encarnações de Deus impenetravelmente misteriosas para
o intelecto humano. Não parece provável que esse mistério intricado seja algum dia solucionado
completamente, mas é certo que um bem infindável advém ao homem se ele estudar essas vidas com
reverência. Na antiga Era Purânica, a natureza humana das Encarnações de Deus era mantida
oculta e somente o aspecto divino era manifestado. Nesta cética era moderna, a natureza divina
desses seres tem sido completamente desconsiderada, enquanto o lado humano é altamente
enaltecido. No presente exemplo faremos um esforço para explicar ao leitor pela discussão desses
dois aspectos, que ambas as naturezas coexistem nelas. Não é necessário acrescentar aqui que não
fomos capazes de considerar o caráter das Encarnações de Deus dessa maneira, se não tivéssemos
tido o privilégio de encontrar o grande Mestre e observar sua vida e seus feitos.
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
1. Além dos acontecimentos que já mencionamos, são conhecidos muitos outros fatos
relativos à absorção do Mestre em estados espirituais em sua infância. Sabemos dessa natureza de
sua mente, ligadas a muitos outros pequenos assuntos.
Por exemplo, o ceramista do vilarejo fazia imagens de Siva, Durga e outras divindades.
Durante um passeio o Mestre, com uns amigos, foi até ele. Olhou para as imagens durante um certo
tempo e subitamente disse: "O que é isso? Será que os olhos de uma divindade são desse modo?
Devem ser feitos assim." Dizendo isso explicou ao ceramista a maneira pela qual as linhas deveriam
ser modeladas e os olhos retratados, de maneira que a expressão do poder sobre-humano, a
compaixão, a interioridade e a felicidade pudessem ser mostrados, dotando a imagem de uma
aparência viva, divina. Todos ficaram assombrados pensando como o menino Gadadhar podia
compreender e explicar tudo isto sem que lhe tivesse sido ensinada aquela arte. Mas ninguém pôde
encontrar a razão.
Citando outra ocorrência: desejando adorar uma divindade, em brincadeira com seus
amigos, fez a imagem daquela divindade ou delineou-a de uma forma tão linda na tela, que as
pessoas ao vê-la, pensavam que era trabalho de um perito ceramista ou pintor.
Também uma afirmação inesperada e espontânea do Mestre a alguém tirou uma dúvida
que há muito tempo estava em sua mente. Aquela pessoa obteve a chave para seu caminho
espiritual e a capacidade de regular sua vida futura. Admirada com isso, esteve propensa em
pensar que seu Ideal Escolhido, na pessoa de Gadai, lhe mostrara o caminho por compaixão.
Além disso o menino Gadai maravilhou a todos, resolvendo com uma simples palavra, o
problema que os eruditos, bem versados nas escrituras, não haviam conseguido solucionar.
2. Não é verdade que cada um dos incidentes ímpares que ocorreram nos primeiros
tempos da vida do Mestre fosse expressão de seus poderes divinos, de um plano mais elevado
de consciência. Embora alguns deles fossem dessa natureza, podemos classificar os outros em
seis grandes divisões, a saber, aquelas indicativas de sua maravilhosa memória, seu forte poder
de julgamento, sua firmeza e forte determinação, sua infinita coragem, seu amor pela alegria
e seu ilimitado amor e compaixão. Mas a pureza, o inegoísmo e a fé ímpar constituíram um
fator comum de todos e parecia que esses constituintes inatos de sua natureza estavam
reagindo de tempos em tempos ao impacto de várias situações mundanas erigindo ondas de
memória, julgamento, determinação, coragem, alegria, amor e compaixão. O leitor terá uma
compreensão correta do que dizemos ao darmos alguns exemplos aqui.
3. Uma vez realizou-se uma representação teatral sobre a vida de Rama e Krishna.
Muitas pessoas, inclusive Gadadhar, assistiram. Todas esqueceram-se das canções e das
palavras sagradas dos Puranas no dia seguinte e estavam ocupadas em continuar com
objetivos egoístas. Mas não havia fim às emoções espirituais produzidas na mente de Gadai! O
menino reuniu os amigos no vizinho pomar de mangas, para ensaiá-los e desfrutarem aquela
felicidade. Fez todos decorarem o quanto possível, os papéis dos diferentes personagens do
drama. Tomou para si mesmo o papel principal e começou a apresentar a peça. Os agricultores,
de coração simples, que aravam os campos vizinhos, ficaram encantados vendo o desempenho
dos meninos e imaginaram como eles, tendo ouvido a peça somente uma vez, puderam decorar
quase todas as palavras e canções.
4. Na época de sua investidura com o cordão sagrado, o menino insistia, contra o
costume da família e da sociedade, que ele deveria ter a primeira cerimônia de esmolas, de
Dhani, uma mulher da casta de ferreiros (cf. pág.68). Encantado pela afeição e devoção daquela
senhora e atraído por sua intensa oração, o menino punha de lado as restrições da sociedade,
roubando curry, molho etc., cozidos por aquela mulher de casta inferior e comendo-os.
Temerosa, Dhani proibiu-lhe que o fizesse, mas não conseguiu fazer o menino desistir.
5. Os Sannyasins Naga, com seus cabelos emaranhados e corpos cobertos de cinzas sempre
geravam medo na mente dos meninos, nas cidades e nos vilarejos. Há uma crença corrente em toda
Bengala de que esses faquires atraíam os jovens; quando surgia uma oportunidade, raptavam-nos,
levando-os para lugares distantes a fim de reuni-los a seu grupo. Bandos desses faquires e vairagis
viajavam diariamente naquela época para o sul de Kamarpukur, pela estrada que ia até Puri, a
morada de Jagannath. Vinham ao vilarejo, mendigavam o alimento, descansavam um dia ou dois e
depois partiam para seu destino, Embora os amigos de Gadai tivessem medo daqueles homens
devido às crenças que prevaleciam sobre eles, Gadai estava acima desses medos. Misturava-se
com grupos desses mendicantes logo que os via e agradava-os com seu serviço e conversa doce.
Costumava passar muito tempo com eles para observar sua conduta e comportamento. Às vezes, a
pedido deles, compartilhava da comida que ofereciam à sua Divindade e voltando para casa, relatava
à sua mãe o que havia feito. Desejoso de imitá-los por sua admiração ao tipo de vida que
levavam, um dia ele apareceu diante da mãe, com o corpo todo coberto de cinzas, usando uma
tanga e kaupina, feita à moda deles, de pedaços da roupa nova com que seus pais lhe haviam
presenteado.
6. Muitas pessoas das camadas mais baixas da sociedade do vilarejo não sabiam ler o
Ramayana e o Mahabharata. Quando queriam ouvir a leitura desses livros, geralmente convidavam
um Brahmana ou alguém de sua própria casta para explicar os épicos. Quando chegava alguém
que sabia ler, ofereciam-lhe água para lavar os pés, fumo, um bom assento enquanto lia e, na falta
deste, uma esteira nova. Assim reverenciada, a pessoa enchia-se de orgulho e egoísmo. Amante do
divertimento, Gadadhar, com aguda inteligência, observava bem de perto e estudava os modos do
expositor das escrituras - como sentavam-se numa plataforma elevada diante da platéia do vilarejo,
como gesticulava enquanto recitava os versos dos textos com tom afetado e como, a cada vez,
esforçavam-se em mostrar erudição e superioridade sobre as pessoas sentadas diante dele. Depois,
Gadai imitava o maneirismo e a voz do homem, causando grandes risadas e muita alegria entre as
pessoas.
Pelo estudo dos fatos do começo da vida do Mestre, compreendemos a natureza da
mente com a qual ele estava equipado para empreender a disciplina espiritual. Sentimos que uma
mente assim poderia realizar tudo o que empreendesse, jamais esqueceria o que ouvisse e que
rejeitaria sem titubear tudo que considerasse obstáculo em seu caminho para a realização do
objetivo desejado. Compreendemos que esse coração faria todas as ações no mundo confiando
firmemente em Deus, em si mesmo e na natureza divina que se encontra no interior de todos os seres
humanos. Nenhuma idéia que tivesse o menor vestígio de estreiteza mental lhe seria aceitável,
muito menos as mentes mesquinhas e impuras e somente o amor, a pureza e a compaixão
regulariam-na o tempo todo, em todos os assuntos. Seria também realizado que nenhuma idéia,
tanto no seu próprio coração ou no coração dos outros seria capaz de enganá-lo, escondendo sua
natureza. Enquanto prosseguimos estudando suas Sadhanas, nos seria de ajuda compreender sua
exclusividade se nos recordarmos bem de perto o que foi dito sobre a constituição de seu coração e
de sua mente.
8. Vemos a primeira manifestação definitiva da atitude de um aspirante, quando ele estava na
escola do irmão, em Calcutá - no dia em que Ramkumar, o irmão mais velho, repreendeu-o pedindo-
lhe que aplicasse a mente na aquisição do conhecimento, ao que ele respondeu: "Não quero
aprender a arte de 'debulhar arroz e plântano'. Desejo uma educação que conduza ao reto
conhecimento e permita ao homem realmente alcançar o verdadeiro objetivo de sua vida". Tinha
então dezessete anos. Sabendo que havia poucas oportunidades de progredir na escola do vilarejo,
seus responsáveis, depois de se consultarem mutuamente, enviaram-no a Calcutá. Seu irmão mais
velho, dotado de mente religiosa, bem versado em astrologia e Smriti, havia inaugurado uma escola
de sânscrito perto da casa do falecido Digambar Mitra em Jhamapukur e tinha alguns alunos.
Encarregou-se também do serviço diário das divindades da família Mitra, bem como o de outras
famílias ricas daquele bairro. A maior parte do tempo era gasto em lecionar e fazer suas
obrigações religiosas diárias. Por isso, tornou-se muito difícil para ele, num curto espaço de
tempo, ir duas vezes por dia a diferentes casas e fazer o serviço do templo. Ao mesmo tempo, não
foi capaz de desistir disso, pois o ganho na escola, sob a forma de doações, era muito pequeno e a
cada dia diminuía. Como os assuntos da família poderiam ser administrados se ele rejeitasse o que
estava recebendo pelo serviço das divindades? Depois de reflexão feita sobre estes aspectos do
problema, resolveu trazer o irmão mais novo para Calcutá, encarregou-o do serviço das divindades
e ele próprio dedicou-se ao ensino.
9. Chegando a Calcutá, Gadadhar conseguiu seu trabalho favorito e o fez com prazer. Além
de servir o irmão mais velho, também estudava um pouco. Possuidor de nobres qualidades e de
aparência agradável, o rapaz logo tornou-se querido por todas as pessoas. As senhoras das
respeitáveis famílias daquele lugar, que usavam véu como as de Kamarpukur não hesitaram em
aparecer diante dele, quando se familiarizaram com sua vivacidade, comportamento puro,
conversa doce e devoção aos deuses. Ficavam ansiosas para que ele lhes fizesse alguns trabalhos
extraordinários e para ouvir canções devocionais. Aqui também, como em Kamarpukur, o rapaz
tornou-se o centro de atração de um grupo de pessoas afetivas sem qualquer esforço de sua
parte. Sempre que tinha um tempo vago, reunia-se com aquelas pessoas e passava alegremente
algum tempo em sua companhia. Portanto, o rapaz aqui também não fez qualquer progresso
significativo em seus estudos.
Embora Ramkumar observasse tudo, não podia subitamente falar com seu irmão, porque
pesava em sua consciência que ele já havia privado o irmão, o mais novo e querido filho, do
benefício da afeição maternal trazendo-o para longe, praticamente para sua própria conveniência.
Deveria ele, além disso, colocar obstáculos à alegria e à satisfação do jovem quando, atraídas por
suas nobres qualidades, as pessoas afetuosamente o convidavam a suas casas? E se ele assim o
fizesse, não seria a vida do rapaz em Calcutá tão insuportável como numa floresta? Se não houvesse
necessidades na família não seria preciso tirá-lo de sua mãe. Teria sido suficiente que ele fosse
enviado para algum vilarejo perto de Kamarpukur para estudar, sob a direção de um erudito. Nesse
caso poderia ficar com a mãe e ao mesmo tempo ser educado. Embora Ramkumar não se tenha
queixado durante um certo tempo por essas razões, ainda assim, movido por um sentimento de
dever, certo dia repreendeu brandamente o rapaz e pediu-lhe que direcionasse sua mente para os
estudos porque, parecia-lhe claro, um dia ou outro ele, de coração simples e esquecido de si
mesmo, teria que prover sua própria subsistência. Se agora não aprendesse como conduzir-se no
caminho que levava ao progresso dos negócios mundanos, será que poderia fazê-lo no futuro? Por
conseguinte, foi o amor fraternal e a sabedoria mundana que impulsionaram Ramkumar a agir
como agiu.
10. Ainda que encontrasse dificuldades surgidas das maneiras duras e egoístas do mundo
e houvesse adquirido alguma experiência, o afetuoso Ramkumar não conhecia muito a respeito da
natureza extraordinária da mente do irmão mais novo. Embora fosse sem dúvida um homem
de considerável experiência do mundo e bem familiarizado com as inclinações distorcidas das
mentes das pessoas mundanas, ele tinha pouca percepção da inclinação incomum da mente de
Gadadhar e de sua reação às situações da vida. Mal podia compreender que, apesar de sua
pouca idade, o irmão houvesse olhado através do vazio da natureza efêmera e não edificante dos
motivos por trás dos trabalhos da vida inteira dos mundanos chegando a aceitar um ideal
completamente diferente como meta e propósito da vida humana. Quando, impassível com a
repreensão, o jovem puro comunicou seus pensamentos sobre o assunto ao longo das linhas acima
mencionadas, Ramkumar não pôde de forma alguma compreendê-lo. Pensou que, como era o
predileto de seus pais, o rapaz estivesse ressentido ou aborrecido por ser assim repreendido pela
primeira vez na vida e por isso, havia respondido daquela maneira. Naquele dia o jovem amante da
verdade tentou da melhor maneira explicar sua relutância em participar do que considerava uma
simples educação para ganhar pão. Mas quem iria dar ouvidos às suas palavras? Um rapaz, afinal
de contas, é um rapaz! Ó! Estamos num mundo que pensa que se um homem está acima da
consideração egoísta em seus esforços deve ser suspeito de ter um cérebro desequilibrado.
Naquele dia Ramkumar não compreendeu as palavras do irmão. Além disso, assim como
quando castigamos alguém que amamos, nos arrependemos em seguida e tentamos reconquistar
nossa paz de espírito, amando-o cem vezes mais do que antes, assim Ramkumar comportou-se
com seu irmão durante algum tempo depois. Mas, ao examinarmos os atos de Gadadhar depois
desse incidente, teremos uma prova clara que desde então, ele buscou uma oportunidade para
preencher o desejo de seu coração.
11. A corrente de acontecimentos na vida do Mestre e de seu irmão mais velho fugiu um
pouco mais rapidamente durante os dois anos seguintes a esse acontecimento. A situação
financeira do irmão deteriorava a cada dia e apesar dele tentar, de diversas maneiras, não
conseguiu melhorá-la. Ponderou muito se deveria fechar a escola e procurar outro emprego. Mas
não podia encontrar qualquer solução. Podia compreender no fundo do seu coração que se
passasse os dias daquela maneira, em vez de adotar logo outros meios para a administração dos
negócios mundanos, ficaria cheio de dívidas e conseqüentemente sofreria. Mas, o que fazer?
Não havia aprendido outra coisa que não fosse ensinar, fazer rituais, oficiando-os. Será que teria a
essa altura de sua vida, energia e perseverança para tentar aprender uma profissão adequada a seu
tempo? Também mesmo se adquirisse uma arte dessa natureza e tentasse ganhar dinheiro,
certamente lhe seria difícil arranjar tempo para as orações e observâncias ritualistas diárias. Então,
decidindo "deixar Raghuvir modelar seu destino de acordo com Sua vontade", retirou a mente
desses pensamentos e continuou a fazer, com o coração partido, o que há muito tempo vinha
fazendo. Porque, pensamos, Ramkumar tinha grande fé em Deus, estava contente com o pouco que
tinha e sendo de boa índole, não participava muito da vida mundana.
Ocorreu então, pela vontade de Deus, um acontecimento que mostrou a Ramkumar uma
saída para aquela incerteza e o aliviou de todas as ansiedades.
CAPÍTULO IV
ASSUNTOS: 1. Porque Ramkumar iniciou Tol. 2. Rani Rasmani. 3. Sua devoção à Deusa. 4. A divina instrução
a respeito do templo. 5. A construção do templo. 6. O problema de fazer oferendas de arroz cozido. 7. A
opinião desvantajosa dos pundits sobre o assunto. 8. A opinião favorável de Ramkumar. 9. A decisão da Rani
de consagrar o templo. 10. O universalismo de Ramkumar. 11. A busca da Rani por um sacerdote adequado.
12. Mahesh Chandra oferece-se para procurar um sacerdote. 13. Ramkumar é convidado para ser sacerdote.
14. A entronização da Deusa. 15. O comportamento do Mestre no dia da consagração. 16. O Mestre na
consagração do templo. 17. Sua firmeza com respeito à comida. 18. Sua devoção ao Ganga. 19. Vivendo da
comida feita por ele. 20. A diferença entre iliberalidade e firmeza religiosa.
1. Ramkumar provavelmente tinha quarenta e cinco anos de idade quando começou seu
Tol em Calcutá em 1850. No passado, muitas faltas mundanas, má sorte, etc., provocaram-lhe
ansiedade durante um certo tempo. Sua esposa havia morrido ao dar à luz ao único filho,
Akshay. Dizia-se que o Sadhaka Ramkumar havia previsto a morte da esposa e comunicado a
algumas pessoas da família que ela não sobreviveria ao nascimento do primeiro filho. O Mestre
agora atingia seu décimo quarto aniversário. Muitas pessoas abastadas da classe média viviam
na rica Calcutá. Ramkumar poderia ter ficado livre dessas preocupações do mundo se tivesse
tornado eficientes os estudantes de sua escola, porque isso também faria crescer sua reputação de
erudito. Poderia fazer adoração religiosa e dar pareceres escritos sobre assuntos religiosos, o que
certamente lhe traria algumas rupias a mais. Talvez alguns desses pensamentos tenham trazido
Ramkumar a Calcutá depois da morte da esposa, ou talvez, com a morte dela tivesse ele sentido
uma grande mudança e vazio em sua vida e a idéia de que se livraria deles até certo ponto se
estivesse ocupado em vários trabalhos, num lugar distante o tenha levado a tomar aquele
rumo. Já explicamos qual a razão pela qual ele havia trazido o Mestre para Calcutá alguns anos
antes de inaugurar a escola em Jhamapukur e a maneira pela qual o Mestre passou os primeiros três
anos depois de sua chegada em 1852.
Devemos agora dirigir nossa atenção para outro lugar, se tivermos que acompanhar os
acontecimentos subseqüentes da vida do Mestre. O leitor deve agora direcionar sua mente para a
série de acontecimentos ocorridos pela vontade de Deus numa bem conhecida família, em outro
bairro de Calcutá. Nessa época Ramkumar se havia reunido ao grupo de Chatu Babu para
aumentar sua renda com presentes de despedida e melhorar a situação da escola.
2. Uma conhecida senhora chamada Rani Rasmani vivia em Janbazar, ao sul de Calcutá. Era
mãe de quatro filhas e ficara viúva com quarenta e quatro anos. Havia herdado a enorme
propriedade do marido, Rajchandra Das. Desde então ela mesma vinha administrando essa
propriedade, melhorando-a muito e tornando-se assim, bem conhecida em Calcutá. Ficou famosa e
benquista de todos não somente por sua habilidade em administrar, como também por inúmeras
outras virtudes e boas obras tais como sua fé em Deus, sua energia, 1 (1 Dizia-se que havia um quartel de
soldados ingleses perto da casa da Rani em Janbazar. Bêbados e descontrolados, os soldados um dia dominaram os porteiros,
entraram em casa e começaram a saqueá-la. Mathur Babu, genro da Rani e outros homens haviam saído a negócios. Sem
encontrar resistência os soldados estavam quase a ponto de entrar nos aposentos internos, quando a Rani tomou as armas,
pronta para enfrentá-los pessoalmente.) coragem, inteligência, presença de espírito e sobretudo por sua
simpatia pelos pobres2 (2 Dizia-se que o Governo britânico havia imposto uma taxa aos pescadores do Ganga. Muitos
pescadores viviam na propriedade da Rani. Oprimidos por causa da taxa, contaram-lhe sua triste história. A Rani ouviu e
disse-lhe para não terem medo. Por uma grande soma de dinheiro ela arrendou aquela parte do rio para pesca. O Governo
pensou que a Rani iria entrar no negócio de peixe, mas logo que o referido direito lhe foi concedido, a Rani pôs correntes em
muitos lugares, o que tornou quase impossível para os navios e outras embarcações do Governo entrarem no rio. Quando o
Governo protestou contra aquele ato da Rani, ela enviou-lhe um recado, "Comprei o direito de pescar no rio com o pagamento
de uma grande quantia, aos senhores. O que fiz estava de acordo com aquele direito. Se os navios e outras embarcações
passarem constantemente pelo rio, os peixes fugirão para outro lugar e eu perderei muito. Portanto, como posso retirar
as correntes do rio? Mas se os senhores concordarem em abolir o novo imposto sobre o direito de pescar, eu de minha parte,
estou pronta a abrir mão voluntariamente do meu direito. Caso contrário haverá litígio e o Governo terá que me ressarcir dos
prejuízos." Diz-se que devido a essa exposição razoável da Rani e também, sabendo que ela estava agindo assim para proteger
os pobres pescadores, o Governo, em pouco tempo, aboliu aquela taxa. Os pescadores então continuaram seu trabalho abenço-
ando-a muito. A Rani demonstrava grande interesse em todos os assuntos que diziam respeito ao bem de seu povo. Temos a
prova disso com a construção dos mercados em Sonai, Beleghata e Bhawanipur, o Ghat e a casa para morimbundos de Kalighat,
o Ghat do Ganga em Halishar, a estrada para Puri a pouca distância, do outro lado de Suvarnarekha e muitos outros atos
virtuosos. A Rani foi de peregrinação a Gangasagar, Triveni, Navadwip, Agrawip e Puri gastando grande quantidade de dinheiro
em nome dos deuses. Além disso, protegeu os arrendatários da propriedade de Makimpur contra a opressão dos plantadores de
índigo. Despendeu dez mil rupias mandando unir Madhumati a Navaganga pelo canal de Tona. Esse e outros atos de utilidade
pública atestam seu mérito.) representada pelas incessantes doações e distribuição inegoísta de alimento
para todos. Por suas nobres qualidades e atos, embora tenha nascido numa família Kaivarta (de
pescadores), provou ser merecedora de seu nome, "Rani", e atraiu o amor profundo e reverência
de todas as pessoas, independentemente de casta. Na época da qual estamos falando, as filhas da
Rani estavam casadas e tinham filhos. Nessa época a terceira filha da Rani havia morrido e
deixado apenas um filho. Pensando que esse acontecimento resultaria na gradual separação do
amável e elegante Mathurnath, seu terceiro genro, a Rani fez casar com ele, sua quarta filha,
Jagadamba Dasi e o fez novamente membro da família. Os descendentes das quatro filhas da Rani
ainda hoje estão vivos.3 3 Para informação do leitor damos aqui o quadro genealógico da Rani Rasmani, tirado do pequeno
livro Sri Dakshineswar:
3. Dotada de muitas virtudes, a Rani Rasmani tinha grande devoção aos sagrados pés da
Deusa Kali. "Sri Rasmani Dasi, anelando pelos pés de Kali" foram as palavras gravadas no selo
oficial de sua propriedade. Ouvimos do próprio Mestre que a devoção da Rani à Deusa
manifestava-se em todas suas palavras e atos.
4. Dizia-se que a Rani havia alimentado em seu coração, durante muito tempo, um forte
desejo de ir a Kasi prestar reverência e oferecer adoração especial a Visvesvara, o senhor do
universo e a Annapurna, a Mãe Divina. Dizia-se também que ela havia juntado uma grande soma
de dinheiro para aquele propósito, mas como seu marido havia morrido de repente e ela teve que
tomar sob seus ombros a responsabilidade de administrar a enorme propriedade, não havia sido
capaz de concretizar sua intenção até então. Agora que seus genros haviam aprendido a ajudá-la,
em particular o mais jovem, Mathuramohan, seu braço direito, ela estava se aprontando para ir a
Kasi. Quando estava tudo pronto, teve a visão da Deusa num sonho, na noite anterior à viagem4 (4
Alguns dizem que a Rani Rasmani iniciou a viagem de barco, chegando ao vilarejo de Dakshineswar, norte de Calcutá. Recebeu a ordem de
proibição enquanto passava a noite no barco. ). A Deusa deu-lhe essa instrução: "Não é necessário ir a Kasi.
Instala minha estátua em pedra, num lindo lugar às margens do Bhagirathi, faz Minha adoração e
oferecimento de comida, diariamente. Eu Me manifestarei na imagem e aceitarei tua adoração
diária." A devota Rani ficou extremamente maravilhada ao receber essa instrução. Desistiu de ir a
Kasi e decidiu utilizar o dinheiro que juntara, naquele empreendimento sagrado.
5. Não podemos dizer até que ponto essa tradição é verdadeira, mas é certo que a
devoção da Rani, há muito acumulada, à Mãe do universo estava a ponto de tomar uma forma
visível sob a forma do templo e da imagem. Ela comprou a grande área às margens do Bhagirath
por muito dinheiro e começou a construir um grande templo, com nove torres, além de outras
subsidiárias a essas. Havia, também, previsão para um lindo jardim ligado a esses templos.
Embora o trabalho de construção durasse sete ou oito anos, a obra não ficou pronta nem por
volta do ano de 1855. Então a Rani refletiu: "Como a vida é incerta, o desejo de instalar a Mãe do
universo talvez não se complete durante meu período de vida se levar tanto tempo para terminar o
templo." Pensando assim, a Rani fez a cerimônia de instalação da Mãe no dia "Snanayatra" de 31 de
maio de 1855. Como é necessário que o leitor conheça os acontecimentos ocorridos anteriormente,
vamos narrá-los agora.
6. Seja por causa da ordem divina que recebera da Própria Deusa, ou por um desejo ardente
de seu coração - porque os devotos sempre gostam de servir seus Ideais Escolhidos com o que
consideram o melhor - a Rani teve vontade de oferecer diariamente comida cozida à Mãe. A Rani
pensou: "Os templos e outros edifícios foram construídos de acordo com meu desejo. Vou dedicar
recursos suficientes para continuar com o serviço regularmente. Apesar de fazer tudo isso, se eu
não puder servi-La de acordo com o desejo de meu coração e oferecer-Lhe diariamente comida
cozida, tudo será em vão. Isto me trará, no máximo, uma pequena reputação; as pessoas dirão:
'Quão grande era a Rani Rasmani'. Mas para que me servem as palavras das pessoas sobre mim?"
"Ó Mãe do Universo", ela orou fervorosamente, "Tu me deste nome e fama em outros assuntos, mas
neste caso não me enganes, dando-me lixo. Não importa se tenho fama ou não, peco-Te,
permanece sempre verdadeiramente manifestada aqui e preenche o acariciado desejo desta Tua
serva, aceitando o serviço diário."
7. A Rani viu que seu status inferior no sistema de castas e as proibições das escrituras a
ele ligadas eram os maiores obstáculos a seu oferecimento de comida cozida. Em seu coração,
contudo, jamais duvidou que a Mãe do Universo aceitaria sua oferenda de alimento. De fato, seu
coração sempre se enchia de alegria com aquele pensamento e jamais duvidava. Então por que
foi instituída aquela proibição imprópria? Quem escreveu as escrituras? Foram os autores das
escrituras homens sem coração? Ou, movidos pelo interesse próprio, tentaram impor a distinção
entre o superior e o inferior, mesmo diante da Mãe do universo? Sendo assim, ela não encontrava
qualquer utilidade nessas escrituras. Preferia seguir os anseios de seu coração. Mas qual seria
então a saída? Se agisse contra os costumes em vigor, os devotos Brahmanas e as pessoas boas
não viriam ao templo tomar Prasada. Qual a solução? A Rani teve os pareceres escritos de Pundits
de diversos lugares, mas nenhum disse o que ela desejava.
8. Embora a construção do templo e da estátua estivesse concluídas, não havia o menor
sinal de realização do desejo da Rani em servir a Deusa de acordo com o contentamento de seu
coração. Nenhum dos pontos de vista sobre as injunções das escrituras expressas pelos eruditos,
grandes ou pequenos, foram de valia. Quando todas as suas esperanças quase haviam
desaparecido, um dia uma regra veio de Ramkumar de Chatushpathi, em Jhamapukur, que
dizia: "Se a Rani fizer doação da propriedade a um Brahmana, depois instalar a Deusa no
templo e providenciar a oferenda de comida cozida, não haverá violação do mandato das escrituras.
Os Brahmanas e as outras castas elevadas não incorrerão em culpa se tomarem Prasada do
templo."
9. As esperanças reviveram no coração da Rani. Ela decidiu consagrar o templo em nome
de seu Guru e, com sua permissão, assumir o cargo de oficial para supervisionar a propriedade e o
serviço do templo. Depois a Rani, informou aos outros pundits sua intenção de seguir a prescrição
das escrituras dadas por Ramkumar. Embora eles não ousassem falar claramente que seria um
ato em desacordo com as escrituras, disseram: "O ato ainda é contrário ao costume em vigor na
sociedade. Os Brahmanas e outras pessoas não podem tomar Prasada ali, mesmo se for feito dessa
maneira".
10. Podemos muito bem deduzir que a atenção da Rani tenha ficado grandemente atraída
por Ramkumar por esse acontecimento. Descobrimos que emitir tal prescrição, naqueles tempos,
era indicativa de um grande universalismo por parte de Ramkumar. As mentes dos Pundits
Brahmanas, dirigentes da sociedade haviam se confinado em caminhos estreitos naqueles dias.
Poucos entre eles conseguiriam sair desses caminhos e seguir uma orientação liberal na
interpretação das escrituras, opinando de acordo com as circunstâncias. Conseqüentemente
sentiam-se inclinados a desconsiderar aquelas opiniões.
11. A ligação da Rani com Ramkumar, contudo, não acabou aí. Embora ela apresentasse
respeito aos membros da família de seu instrutor espiritual, a inteligente Rani observou, de
maneira perspicaz, a ignorância dele a respeito das escrituras e uma inadequação em fazer o
serviço divino de acordo com elas. Por isso, decidiu que todo o encargo do serviço do novo
templo fosse permanentemente posto nas mãos dos Brahmanas de conduta virtuosa, bem
versados nas escrituras, mas que ao mesmo tempo, tomassem cuidado para que as oferendas
merecidas e adequadas à família do seu Guru não fossem afetadas. Aqui também, o costume em
vigor da sociedade interpunha-se em seu caminho. Naqueles dias os Brahmanas nascidos em boas
famílias e dedicados à tradição, nem saudavam as divindades instaladas pelos Sudras, muito
menos as adoravam. Consideravam os Brahmanas degradados como Sudras, como a família do
instrutor espiritual da Rani. Não é de admirar, portanto, que nenhum Brahmana, de conduta
reta, capaz de fazer rituais e oficiar como sacerdote, concordasse em encarregar-se da adoração do
templo da Rani. Contudo, a Rani não perdeu a esperança e aumentando salário e outras
remunerações, continuou a buscar um sacerdote, em vários lugares.
12. A casa de Hemangini Devi, prima do Mestre, ficava no vilarejo de Sihar, não longe de
Kamarpukur. Ai viviam muitos Brahmanas. Maheshchandra Chattopadhyaya, daquele vilarejo,
trabalhava na propriedade da Rani. Pensando que talvez pudesse ganhar um pouco mais,
ofereceu-se para procurar Brahmanas, que fossem sacerdotes e cozinheiros, para os templos da
Rani. Mahesh encarregou-se dessa tarefa escolhendo o irmão mais velho Kshetranath para o
cargo de sacerdote do templo de Radha-Govinda, fosse com a intenção de convencer os
Brahmanas pobres do vilarejo a aceitarem o emprego nos templos da Rani não era reprovável,
fosse visando a condição financeira de sua família, ou ambos. Como escolhera uma pessoa de sua
própria família para trabalhar com a Rani, tornou-se-lhe fácil até certo ponto, encontrar outros
Brahmanas para o serviço nos templos. Mas ficou muito apreensivo quando, apesar de muito
esforço, não encontrou sacerdote que servisse para o templo de Kali.
13. Mahesh há muito tempo era conhecido de Ramkumar. Parece que já tinham um
relacionamento íntimo desde o tempo em que viviam no vilarejo. Mahesh não ignorava que
Ramkumar era um Sadhaka devoto e há muito tempo iniciara-se no Mantra de Sakti por sua própria
vontade. Deduzimos também que Mahesh sabia da difícil situação de Ramkumar e de sua família.
Assim teve a atenção dirigida a ele a fim de conseguir a indicação de um sacerdote para o templo
da Mãe Kali. Mas logo lembrou-se que Ramkumar era um Brahmana que não oficiava sacrifícios
feitos por pessoas de casta inferior. Embora às vezes aceitasse o cargo de sacerdote nas casas de
Digambar Mitra e outros em Calcutá, aceitaria ele fazê-lo no templo da Rani, que era Kaivarta
por nascimento? Era muito duvidoso. Mas o dia da consagração da Deusa estava próximo e ainda
não havia sido encontrado um sacerdote. Pensando assim, Mahesh achou conveniente fazer pelo
menos uma vez mais um esforço naquela direção. Contudo não sabia como fazer. Contou tudo a
Rani e pediu-lhe para convidar Ramkumar para o cargo de sacerdote para o dia da consagração,
pelo menos para fazer todos os ritos daquele dia. A Rani já tinha Ramkumar em elevado
conceito, pois já tivera dele indicação favorável a respeito das escrituras. Assim ela ficou muito
satisfeita com a possibilidade de que ele oficiasse como sacerdote e humildemente enviou-lhe um
convite: "Estou agora pronta para consagrar a Mãe do universo baseada na força de sua
prescrição," escreveu e também tomei todas as providências para realizar aquela cerimônia na
hora auspiciosa no dia do próximo Snanayatra. Temos um sacerdote para Radha-Govinda. Mas
não há nenhum Brahmana para oficiar como sacerdote da Mãe Kali e ajudar-me no ato de sua
consagração. Por favor tome as providências que achar necessárias para ajudar-me. Como o senhor
é um erudito versado nas escrituras, não é necessário dizer-lhe que não é qualquer um que poderá
oficiar como sacerdote."
O próprio Mahesh levou a Ramkumar a carta com o pedido, explicou-lhe a situação e
persuadiu-o a que concordasse em oficiar como sacerdote, até que fosse encontrado alguém
disponível. Foi sem qualquer motivo financeiro que o devoto Ramkumar veio pela primeira vez a
Dakshineswar. Sua única intenção era que a consagração da Mãe Universal ocorresse sem qualquer
problema.5 (5 Ouvimos de Hriday, sobrinho do Mestre, o relato sobre a chegada de Ramkumar a Dakshineswar, mas
Ramlal, o filho de outro irmão mais velho do Mestre, dá uma versão diferente. Ele diz que, "Ramdhan Ghosh do vilarejo de
Desra, perto de Kamarpukur, era empregado da Rani Rasmani. A Rani o tinha em alto conceito por sua eficiência.
Gradualmente chegou a ser secretário dela. Como era conhecido de Ramkumar, enviou-lhe uma carta convidando-o a vir e
receber os presentes de despedida por ocasião da cerimônia de consagração do templo de Kali." Ramkumar foi à casa da Rani
em Janbazar e disse a Ramdhan, "A Rani é uma Kaivarta por nascimento. Somos Brahmanas pertencentes à classe
Rarhi. Ficaremos em má situação se aceitarmos seu convite para receber as oferendas." Ramdhan mostrou-lhe uma lista e
disse, "Por que? Veja quantos Brahmanas desta classe foram convidados. Todos irão e aceitarão as oferendas da Rani."
Ramkumar concordou em aceitar os presentes e chegou a Dakshineswar com o Mestre, no dia anterior à consagração. Fluía
uma corrente de felicidade no templo naquele dia devido à apresentação do Yatra, canto da glória de Kali, leitura do
Bhagavata e do Ramayana e assim por diante. Essas correntes de felicidade não cessaram nem durante a noite. Cada lugar
e canto do templo era claro como o dia devido às inúmeras luzes. O Mestre costumava dizer: "Andando em volta do templo,
sentia-se que a Rani havia trazido a montanha de prata, colocando-a ali.” Ramkumar chegou ao templo de Kali para ver o festival
no dia anterior à consagração.) Então devido ao humilde pedido da Rani e de Mathur Babu, ele viveu ali até
o fim da vida, depois de constatar que não havia outro sacerdote disponível. Todos os acon-
tecimentos do mundo, grandes ou pequenos, ocorrem pela vontade da Mãe Divina. Quem pode
dizer sim ou não, se Ramkumar, o devoto da Deusa conhecia a vontade da Fonte de todos os
desejos ao aceitar aquele encargo?
14. Assim a Rani conseguiu que Ramkumar, de forma inesperada, oficiasse como
sacerdote. Ela teve a consagração da Mãe Divina realizada com grande pompa no novo templo
na quinta-feira, 31 de maio de 1855, dia de Snanayatra. Dizia-se que naquela ocasião o
templo ficou cheio, ininterruptamente, dia e noite, com o barulho e o alvoroço das festas e
festividades. A Rani gastou prodigamente e fez o máximo para tornar todos os convidados e
outras pessoas tão felizes como ela própria estava. Muitos mestres dos Sastras e Pundits
Brahmanas chegaram na ocasião, vindos de diversos centros de cultura - de lugares distantes
como Kanyakubja, Kashi, Sylhet, Chittagong, Orissa, Navadvip, etc. Como presentes de
despedida cada um recebeu uma roupa de seda, um agasalho e moedas de ouro. A Rani, dizia-
se, gastou novecentos mil rupias na construção e cerimônias de consagração do templo.
Comprou de Trailokyanath Thakur, por duzentos e vinte e seis mil rupias o Salbari Parganah na
sub-divisão de Thakurgaon no distrito de Dinajpur, fez uma doação e dedicou a propriedade ao
serviço das divindades.
15. Alguns dizem que Ramkumar ganhou mantimentos que ele mesmo cozinhou naquele
dia, às margens do Ganga e, depois de oferecer comida a seu Ideal, tomou-a como Prasada.
Mas isso parece-nos improvável, porque Ramkumar era devoto da Deusa e havia dado a
prescrição sobre o oferecimento da comida cozida segundo seus conhecimentos das escrituras,
sem esperar qualquer ganho. É ilógico que ele mesmo não tomasse a comida oferecida, indo
contra sua própria recomendação e contra as injunções das escrituras devocionais. O Mestre
também não nos contou dessa maneira. Portanto nossa impressão é que no final da adoração
ele tomou com satisfação a comida oferecida à Mãe do universo. Mas apesar do Mestre ter se
juntado ao alegre festival de todo o coração, agiu de acordo com seu estrito princípio a respeito
de alimentos. Ao cair da tarde comprou no mercado vizinho, um pouco de arroz tostado, que
comeu antes de voltar à escola de Jhamapukur onde descansou pelo resto da noite.
16. O próprio Mestre contou-nos em diversas ocasiões muitas coisas sobre a fundação
pela Rasmani do templo de Kali em Dakshineswar. Costumava dizer: "A Rani Rasmani estava
pronta para ir a Kasi, morada de Vishnu e Annapurna. Marcou um dia para a partida e tinha, no
Ghat, mais ou menos cem barcos, pequenos e grandes, carregados com diversos artigos. Recebeu
instrução proibitiva da Deusa na noite imediatamente anterior ao dia da partida e resolveu não
prosseguir. Daí em diante empenhou-se em procurar um terreno adequado para construir o
templo."
Disse também: "Com a convicção de que a margem ocidental do Ganga pode ser
comparada a Varanasi, em primeiro lugar ela procurou um pedaço de terra em vilarejos como Bali
e Uttarpara, na margem ocidental do Ganga, mas nada encontrou.6 (6 As pessoas idosas desses
vilarejos testemunham esse fato, até hoje.) Embora a Rani estivesse disposta a pagar muito dinheiro, os
conhecidos proprietários de terra daqueles lugares disseram que não viriam ao Ganga por um Ghat
construído por qualquer pessoa nesses locais de suas propriedades. Portanto a Rani foi obrigada a
comprar o terreno à margem oriental do Ganga."
O Mestre costumava dizer: "Uma parte do terreno escolhido pela Rani em Dakshineswar
pertencia a um inglês e na outra parte havia um túmulo muçulmano associado à memória de um
santo. Esse terreno tinha a forma do casco de uma tartaruga. Um túmulo assim, segundo os
Tahtras, é bastante recomendável para a consagração de Sakti e Sua Sadhana. Portanto, guiada
pela Providência, a Rani escolheu aquele terreno."
Também ele levantava a razão pela qual a Rani havia consagrado a Mãe do universo no
dia Snanayatra, dia do festival de Vishnu, em vez de qualquer outro dia auspicioso para a
consagração de Sakti. "Rani praticou severas austeridades, de acordo com as escrituras, desde o
dia em que começaram a esculpir a imagem. Banhava-se três vezes ao dia, comia alimento
simples, deitava-se no chão e praticava Japa, adoração etc., segundo suas possibilidades. Depois
que o templo foi construído e a imagem esculpida, demorou ser escolhido o dia auspicioso para sua
consagração, devido à maneira vagarosa de trabalhar das pessoas. Nesse meio tempo, a
imagem foi guardada numa caixa, para não se danificar. Mas subitamente ela suou por uma
razão ou outra e a Rani recebeu uma ordem em sonho, "Por quanto tempo você vai me manter
confinada dessa maneira? Sinto-Me sufocada; consagra-Me o mais breve possível." Mal recebeu
essa ordem, a Rani muito agitada, mandou consultar o almanaque para ver um dia auspicioso. Mas
como esse dia não foi encontrado antes de Snanayatra, ela resolveu fazer a consagração naquele dia.
Além disso, ouvimos do Mestre muitas outras coisas, incluindo a consagração do templo em nome
do Guru da Rani, para que a comida cozida pudesse ser oferecida à Deusa. De Hriday soubemos
somente duas coisas: primeiro, que Ramkumar deu à Rani, prescrições das escrituras a respeito da
consagração do templo e em segundo lugar, que ele recorreu à prática do Dharmapatra7 (7 Ainda há o
costume nos vilarejos, das pessoas dependerem da Providência quando não há possibilidade de se chegar a uma conclusão
racional sobre determinado assunto e de se recorrer ao Dharmapatra, a folha da imparcialidade, para conhecer a vontade da
Providência. Ao escolherem esse modo, agem de acordo, sem argumentação ou raciocínio posterior. A folha da imparcialidade
é usada da seguinte maneira:
"SIM" e "NÃO" são escritos em alguns pedaços de papel ou em folhas de vílva, colocados num jarro de água vazio.
Pede-se a uma criança para apanhar um papel ou uma folha. Se a criança apanha o papel "SIM", a pessoa que recorreu a esse
recurso sabe que a Providência aprova o caminho desejado. Se o outro papel é apanhado, ele aceita que a vontade de Deus
proíbe o caminho. A divisão de propriedade e outras coisas, algumas vezes é feita com a ajuda desse esquema. Tomemos o
exemplo: quatro irmãos que moram juntos, querem viver separadamente e dividir a propriedade, mas não chegam a um
acordo quanto à parte de cada um. Pedem então a algumas pessoas importantes do vilarejo para encontrar a solução.
Dividem toda a propriedade tanto a parte móvel quanto a imóvel, em quatro partes iguais, na medida do possível. Decidem
por meio de uma "folha imparcial" qual a parte que deve caber a cada irmão. Uma prática semelhante também é seguida
aqui. Os nomes dos donos da propriedade são escritos em pequenos pedaços de papel. São dobrados para que ninguém
possa ler os nomes e depois colocados num jarro de água. Cada parte da propriedade, dividida em quatro partes, é marcada
com A, B, C e D etc., em pequenos pedaços de papel marcados de forma semelhante que são colocados, como antes, num
jarro. Duas crianças são chamadas e pede-se a uma delas para pegar um pedaço de um dos jarros e a outra criança, para
pegar o outro. Os pedaços são lidos e cada irmão deve aceitar o pedaço que corresponde a seu nome.) para convencer o
dono da propriedade a aceitar o cargo de sacerdote do templo.
Sabemos pelo comportamento do Mestre nessa época, que Ramkumar, em princípio, não
fez questão de aceitar permanentemente o cargo de sacerdote no templo de Kali em
Dakshineswar. Refletindo também, ficou claro que Ramkumar, que possuía um coração puro, não
tinha essa idéia naquela época. Ele deve ter pensado somente em dar a prescrição relativa à
oferenda da comida cozida à Deusa e em voltar a Jhamapukur, depois de pessoalmente oferecer
a comida cozida no dia da consagração.
De seu comportamento com seu irmão mais novo, nessa época, depreendemos que ele não
estava hesitante sobre o oferecimento da comida cozida e que não via nada de errado e em
desacordo com as escrituras. Vamos explicar isso agora.
Bem cedo, na manhã seguinte, o Mestre veio a Dakshineswar ou para saber de seu irmão ou
para observar, por curiosidade, as cerimônias que ainda continuavam desde a véspera. Ficou ali por
muito tempo, quando viu que não havia qualquer possibilidade do seu irmão voltar a Jhamapukur
naquele dia. Por isso, embora o irmão lhe tivesse pedido para ficar o resto do dia, não obedeceu e
regressou a Jhamapukur para comer. Por uma semana o Mestre não foi a Dakshineswar.
Permaneceu em Jhamapukur pensando que o irmão voltaria numa outra ocasião oportuna, depois
do término das cerimônias em Dakshineswar. Mas quando Ramkumar não regressou depois de uma
semana, ficou preocupado e foi a Dakshineswar para obter notícias. Soube que Ramkumar
havia concordado em assumir o cargo permanente para o culto da Mãe Divina, a pedido insistente
da Rani. O Mestre não aprovou aquela atitude, criticando bastante a conduta de seu irmão.
Recordou-lhe que seu pai não oficiava os sacrifícios Sudras nem aceitava presentes de ninguém e
procurou dissuadi-lo do caminho que havia tomado. Diz-se que Ramkumar tentou justificar sua
atitude junto ao Mestre de diversas maneiras, pela razão e por meio das escrituras, mas nada
tocou-lhe o coração. Por fim, ele recorreu ao expediente simples do Dharmapatra, a folha da
imparcialidade. A folha da imparcialidade dizia: "Ramkumar não incorreu em falta ao aceitar o
cargo de sacerdote, o que será benéfico para todos."
17. Embora o Mestre tenha ficado livre de ansiedade a respeito da decisão do irmão, outro
pensamento veio-lhe à cabeça. Pensou sobre o que deveria fazer, agora que o Chatushpafhi
havia sido abolido. O Mestre ficou absorvido naquele pensamento e não voltou a Jhamapukur
naquele dia. Mas não pôde concordar em tomar Prasada no templo, apesar da persuasão de
Ramkumar. Ramkumar disse: “Trata-se de um templo e a comida é cozida com água do Ganga. Além
disso foi oferecida à Mãe do universo. Não é reprovável que você a tome." Mas essas palavras não
tocaram o Mestre. Ramkumar disse: "Então pegue provisões da dispensa do templo, cozinhe-as
com suas próprias mãos nas areias do Ganga, debaixo do Panchavati e tome as refeições. Você
não aceita que o Ganga purifica tudo em suas margens e leito?" O princípio estrito do Mestre a
respeito da comida rendeu-se agora à sua devoção ao Ganga. Sua fé e devoção fizeram o que
Ramkumar, o bem versado nos Sastras, não pôde fazer com muita argumentação. O Mestre
concordou e continuou em Dakshineswar, tomando as refeições diárias preparadas por ele
mesmo, à maneira sugerida por Ramkumar.
18. Ah! Que devoção profunda ao Ganga o Mestre teve durante toda sua vida! Costumava
chamar a água do Ganga, 'Brahmavari,' isto é, Brahman na forma de água. Dizia: "Toda pessoa,
que mora em qualquer margem do Ganga, tem o coração mudado para um outro igual ao dos
deuses e dessa maneira são as virtudes manifestadas neles. O vento cheio das partículas sagradas
da água do Ganga purifica a terra em ambos os lados até onde sopra. Pela graça de Bhagirathi,
filha da grande montanha, bondade, austeridade, generosidade, devoção a Deus e firmeza
espiritual estão sempre manifestadas nas pessoas que vivem naquelas terras." Se alguém falasse
de coisas mundanas durante muito tempo ou se misturasse com pessoas mundanas, o Mestre lhe
pediria para beber um pouco de água do Ganga. Se um homem avesso a Deus e apegado à
mudanidade se sentasse em qualquer lugar da morada sagrada da Mãe Divina e a poluísse com
pensamentos mundanos, ele aspergia ali água do Ganga. Sentia-se muito mal quando via alguém
limpando-se com aquela água depois de ter respondido ao chamado da natureza.
19. Em poucos dias, o impacto de muitos fatores em seu novo ambiente ocasionou uma
transformação na mente do Mestre. A situação do templo nas margens do grandioso Ganga, os
lindos jardins cheios de pássaros chilreantes, o serviço divino feito pelos Sadhakas devotos no
templo espaçoso, a afeição sincera de seu irmão mais velho, que era verdadeiramente como um
pai para ele e também, o toque da fé e da devoção da Rani Rasmani e de seu genro Mathur Babu
em tudo. Tudo isso foram experiências que conspiraram para que se sentisse atraído a
Dakshineswar, tornando-a uma segunda Kamarpukur a seus olhos. Sem dúvida continuou a
cozinhar a comida diária ainda por algum tempo mais, mas vivia ali feliz, e aquela atitude de
incerteza relativa a seu dever futuro foi posta de lado.
20. Ao sabermos dos firmes propósitos do Mestre sobre alimentação, talvez pensemos:
"Esse conservadorismo estreito é encontrado geralmente em homens como nós. Ao mencionar esse
exemplo, o senhor quer dizer que o objetivo final da espiritualidade não pode ser realizado se não
for similarmente conservador?" Em resposta dizemos: "A falta de liberalidade e firmeza religiosa
não são a mesma coisa. A primeira nasce do egoísmo. Quando prevalece, o homem põe o mais
elevado valor naquilo que ele próprio compreende e faz, e assim limitando-se, permanece
despreocupado. Mas a última nasce da fé nos ensinamentos das escrituras e das grandes almas;
quando prevalece, o homem domina o egoísmo, progride na vida espiritual e gradualmente realiza a
verdade suprema. Quando aquele princípio firme predomina, uma pessoa pode no começo,
parecer não liberal por algum tempo, mas recebe com sua ajuda uma luz cada vez mais clara no
caminho de sua vida e a estreiteza que a limita desaparece por si mesma. Por isso, como podemos
negar que a firmeza seja absolutamente necessária no caminho do progresso espiritual?
Familiarizados com essa qualidade na vida do Mestre, da maneira mencionada acima,
compreendemos claramente que nós também seremos dotados de verdadeira liberalidade no
tempo devido e alcançaremos a paz final se formos em frente para realizar as verdades espirituais
com devoção total aos ensinamentos das escrituras e não de outra maneira. Temos que 'remover
um espinho com o auxílio de outro espinho' como o Mestre costumava dizer. Temos que recorrer
à firmeza religiosa para alcançar a liberalidade da verdade - temos que seguir regras e leis para
atingir o estado além deles."
Observando essa imperfeição na infância do Mestre, talvez alguns digam: "Por que então
ele é chamado de Encarnação de Deus? Por que não chamá-lo de homem? Mas se você desejar
fazer dele Deus, é melhor esconder essas imperfeições quando estiver escrevendo sua vida."
Dizemos: "Irmão, houve um tempo em que também não acreditávamos, nem em sonho, que Deus
pudesse tomar um corpo humano e encarnar-Se. Quando, contudo, por Sua graça ilimitada, o
Mestre fez-nos compreender que isso era possível, ao mesmo tempo deu-nos a percepção interna
para compreender a idéia de que a Encarnação também assumiria imperfeições mentais, assim
como ele assumiu a fraqueza do corpo. O Mestre costumava dizer: "O formato de um ornamento
não pode ser dado ao ouro se ele não contiver alguma liga." Jamais fez a menor tentativa de
esconder de nós aquelas imperfeições, embora nos tenha dito repetidamente: "Aquele que foi
Rama e Krishna tornou-Se agora essa caixa (mostrando o corpo), mas sua descida agora é
"incógnito", como o rei que vai, disfarçado, ver os arredores da capital. É assim."
CAPÍTULO V
ASSUNTOS: 1. A atração de Mathur pelo Mestre. 2. Hriday, sobrinho do Mestre. 3. O Mestre à chegada de
Hriday. 4. O amor de Hriday pelo Mestre. 5. Sua incapacidade para entender os atos do Mestre. 6. Mathur,
louvando a imagem de Shiva. 7. A opinião do Mestre sobre o serviço. 8. O Mestre hesita encontrar-se com
Mathur. 9. O Mestre aceita o cargo de sacerdote. 10. A imagem quebrada de Govinda. 11. O Mestre sobre a
adoração de uma imagem quebrada. 12. Seu talento musical. 13. Sua primeira visão durante a adoração. 14.
Ramkumar instruindo o Mestre sobre rituais. 15. Kenaram Bhattacharya inicia o Mestre em Mantra Sakti. 16.
A morte de Ramkumar.
1. A aparência agradável do Mestre, sua terna natureza, sua devoção e sua juventude
chamaram atenção de Mathur Babu, genro da Rani Rasmani, após algumas semanas da
consagração do templo. Vê-se muitas vezes que onde há uma íntima e duradoura relação de amor,
a atração que conduz a essa relação é sentida à primeira vista. As escrituras dizem que isso
decorre das impressões dos relacionamentos em vidas anteriores. Ao refletirmos sobre o
relacionamento profundamente amoroso que se desenvolveu mais tarde entre o Mestre e Mathur,
somos levados a concluir que uma atração indefinível ocorreu na mente de Mathur pelo Mestre
desde os primeiros dias de seu conhecimento. Um mês após a consagração do templo, o Mestre
passou a viver em Dakshineswar sem qualquer tarefa específica ou plano para o futuro. Nesse
meio tempo Mathur resolveu encarregá-lo de vestir a Deusa e discutiu o assunto com Ramkumar
que lhe contou tudo a respeito da atitude mental do irmão e desencorajou Mathur em seu
esforço de levar avante seu plano. Mathur, entretanto, não era homem de ser facilmente
dissuadido. Embora seu oferecimento tenha sido assim desencorajado, esperou uma oportunidade
para realizar seu intento.
2. Uma pessoa intimamente ligada à vida do Mestre chegou então a Dakshineswar.
Hridayram Mukhopadhyaya, filho da prima do Mestre, Hemangini Devi, veio a Burdwan em busca
de emprego. Tinha ele, então, dezessete anos. Ficou em Burdwan por algum tempo, na casa de
um conhecido de seu vilarejo, mas nada conseguiu. Ao saber que seus tios maternos moravam
no novo templo da Rani Rasmani, que os tinha em grande respeito, pensou que haveria chances
de concretizar seu objetivo se fosse ali. Assim Hriday não tardou em chegar ao templo de
Dakshineswar, onde começou a passar o tempo em companhia de seu tio, Sri Ramakrishna.
Eram ambos quase da mesma idade e íntimos desde a infância.
Hriday era alto, simpático e de constituição masculina. Seu físico era firme e forte, sua
mente extremamente ativa e livre de medo. Podia agüentar trabalhos pesados e adaptar-se
facilmente às circunstâncias. Desembaraçado, superava dificuldades e situações adversas,
inventando meios extraordinários. Além disso, tinha uma atenção muito terna e afetiva pelo tio
mais jovem, não poupando esforços para torná-lo feliz, mesmo que tivesse de suportar problemas
infindáveis.
Sempre ativo, Hriday não tinha um só traço de contemplação. Por isso sua mente, como a
das pessoas mundanas, não podia ficar livre das necessidades egoístas. Quanto mais analisamos
seu relacionamento com o Mestre desde os primeiros tempos, mais veremos que a pouca
contemplação e esforço inegoísta vistos em sua vida eram devidos à companhia constante do
Mestre, personificação daquelas virtudes. Hriday tinha o hábito de imitá-lo, às vezes, nesse
particular. A ajuda de um homem de ação, corajoso, reverente e fácil de ser conduzido, era
muito necessária para o sucesso da vida contemplativa daquele que era indiferente a comer,
beber e outras necessidades do corpo e que era completamente despido de egoísmo e sempre
absorto em contemplação. Foi essa a razão pela qual a Mãe Divina trouxe alguém como Hriday
para a vida do Mestre, naquele estágio inicial de sua Sadhana e estabeleceu um elo de profundo
e significativo relacionamento entre eles? Quem sabe? Contudo, é verdade que, sem Hriday, teria
sido impossível para o Mestre manter o corpo e a alma juntos naquela época. Portanto, seu
nome permanece eternamente ligado à vida de Sri Ramakrishna e merece para sempre a
homenagem do fundo do coração.
3. O Mestre tinha vinte anos e alguns meses quando Hriday chegou a Dakshineswar.
Podemos facilmente deduzir que sua vida tornou-se fácil até certo ponto quando teve a companhia
de Hriday. Daí em diante tudo que ele fazia, tomar banho, andar, deitar-se, sentar-se, etc., era
com sua ajuda. Os atos de Sri Ramakrishna, da natureza de um menino, pareciam sem propósito
aos olhos das pessoas comuns; mas Hriday, longe de criticá-los, aprovava-os de coração e
simpatizava com eles. Isto tornou-o benquisto aos olhos do Mestre.
4. Disse-nos o próprio Hriday: "Muitas vezes senti uma atração indescritível pelo Mestre e
ficava sempre com ele, como sua sombra. Um minuto de separação dele, causava-me dor. Eu o
banhava, passeava com ele, sentava-me a seu lado e deitava-me com ele. Tínhamos que nos
separar por algum tempo na hora da refeição do meio-dia, porque o Mestre tirava da dispensa
do templo arroz e outras provisões cruas, que cozinhava com suas próprias mãos. Tomava a
refeição no Panchavati enquanto eu tomava Prasada no templo. Antes de nos separarmos eu
preparava tudo para que ele cozinhasse. Seu princípio relativo à comida era tão estrito que se sentia
mal mesmo com o arroz cozido por ele mesmo. À noite, contudo, ele costumava tomar, como
todos nós, os Luchis oferecidos à Mãe do universo. Reparei que em muitas ocasiões, seus
olhos ficavam cheios de lágrimas quando comia Luchi e eu o escutava queixando-se tristemente à
Mãe do universo sobre sua situação.
O próprio Mestre, também, muitas vezes falava sobre os acontecimentos daqueles dias:
"Eu me sentia extremamente aflito em pensar que tinha que tomar alimento de um Kaivarta.
Muitos mendigos não vinham ao templo de Kali da Rasmani para comer, por aquela razão.
Como não havia número suficiente de pessoas para tomar o alimento cozido oferecido à
Divindade, as vacas eram alimentadas com ele e o que sobrava era jogado no rio." Mas ouvimos
tanto dele, quanto de Hriday, que ele não teve de comer alimento cozido por ele mesmo, durante
muito tempo. Nossa impressão é que assim agiu até assumir o cargo de sacerdote do templo de
Kali, dois ou três meses depois da consagração do templo.
5. Hriday sabia que o Mestre o amava ternamente. Havia somente uma coisa a respeito dele
que Hriday não podia de modo algum compreender: quando ele ia ajudar seu tio mais velho
Ramkumar, ou descansar depois do almoço, ou ver o serviço vespertino do templo, o Mestre
enganava-o e desaparecia por algum tempo, não sabia para onde. Não podia encontrá-lo, apesar
de muita busca. Perguntado a esse respeito na sua volta, depois de algumas horas, não dava uma
resposta clara e dizia: "Eu estava por aí." Nessas ocasiões, durante alguns dias, quando Hriday ia
buscá-lo, encontrava-o regressando do Panchavati. Pensava que teria ido ali talvez para responder
aos chamados da natureza e não lhe perguntava mais nada.
6. Hriday disse: "Certa vez, naquela época, ele teve em mente fazer uma imagem de Siva
para adoração. Já dissemos que às vezes assim fazia em sua infância, em Kamarpukur. Logo
que sentia desejo, pegava um pouco da terra do leito do rio e modelava, com suas próprias
mãos, a imagem de Siva, com o touro, o tambor etc. e adorava-O na imagem. Um dia Mathur
chegou, depois de uma caminhada e ansioso por conhecer qual a divindade que o Mestre estava
adorando com tanta concentração, aproximou-se e viu aquela imagem. Embora não fosse grande,
era linda. Mathur ficou encantado. Sentiu que a imagem tão expressiva da natureza divina, não
seria encontrada no mercado. Perguntou a Hriday, por curiosidade: "Como você conseguiu a
imagem? Quem a fez?" Ficou espantado ao saber de Hriday, que o Mestre fazia imagens de
divindades e consertava as partes quebradas. Pediu que a imagem lhe fosse dada depois da
adoração. Hriday concordou e com a permissão do Mestre, apanhou-a após a adoração, dando-a a
Mathur. Quando Mathur a recebeu, olhou-a muito minuciosamente e encantado com ela, enviou-a a
Rani para que ela a visse. Ela também ficou muito satisfeita e, como Mathur, expressou sua
surpresa ao saber que o Mestre a havia feito1. (1 Alguns dizem que esse acontecimento ocorreu após ter assumido
o cargo de sacerdote e que Mathur mostrou a imagem a Rani, dizendo: "A Deusa brevemente será 'despertada', porque temos um
sacerdote competente.") Pouco antes desse acontecimento, a idéia de nomear o Mestre para os deveres
do templo havia despontado na mente de Mathur. Aquela idéia tornou-se agora mais forte ao tomar
conhecimento daquela rara habilidade do Mestre. O Mestre já havia sabido pelo irmão, da intenção
de Mathur, mas não levou-a em consideração porque havia tomado a firme resolução, desde a
infância, "de que serviria somente a Deus."
7. Ouvimos o Mestre expressar, em diversas ocasiões, sua opinião sobre aceitar um serviço.
O Mestre não olhava com bons olhos qualquer pessoa que servisse outra sem ser pressionado pela
necessidade. Uma vez, quando veio a saber que um dos seus jovens devotos2 (2 Swami Niranjananda)
fora trabalhar, ficou muito desgostoso e ouviram-no dizer: "Senti mais dor em saber que ele estava
trabalhando do que ouvir que ele estava morto." Quando o Mestre o encontrou mais tarde e soube
que ele estava trabalhando para manter a velha mãe, disse, passando a mão afetuosamente sobre a
cabeça e o sobre o corpo do rapaz, "Não há mal nisso; você não pode ser censurado por trabalhar
por esse motivo; mas se você tivesse agido assim, sem a compulsão do dever, mas simplesmente
para ganhar dinheiro para satisfações egoístas, eu não poderia tocá-lo mais. Por isso digo: meu
Niranjan não tem a menor 'anjan' (mácula) em si; por que deveria rebaixar-se?"
Todos os recém-chegados ficaram surpresos ao ouvir essas palavras do Mestre a
NityaNiranjan, pois esse era seu nome completo e foi corajoso suficiente para dizer: "Senhor, o
senhor condena o trabalho; mas como poderemos manter nossas famílias sem ele?" O Mestre
respondeu: "Deixe quem quiser trabalhar que o faça; não proíbo ninguém de agir assim. Falo
somente a eles (mostrando Niranjan e os outros jovens devotos). O caso deles é diferente." O
Mestre estava moldando a vida desses jovens devotos de maneira diferente; e ele, não há
necessidade de dizer, deu esse conselho porque trabalhar não era compatível com a atitude que
um aspirante espiritual sincero deveria desenvolver.
8. Quando o Mestre soube por seu irmão, da intenção de Mathur Babu, procurou ficar, na
medida do possível, fora de suas vistas e evitá-lo. Porque assim como ele respeitava as pessoas
quando essa relação entrava em conflito com a verdade e os princípios religiosos, assim também
ele recusava ferir as outras, mostrando-lhes desrespeito desnecessário. Também era da natureza
do Mestre estimar os méritos de uma pessoa de boas qualidades e honrar um homem
respeitável de maneira natural e simples, sem esperar favores. Se Mathur tivesse que lhe pedir
para aceitar o cargo de sacerdote no templo antes que ele próprio tivesse chegado a uma
conclusão a respeito, teria que recusar e dessa maneira, feri-lo. Vemos claramente que essa
apreensão estava na origem da conduta do Mestre ao evitar Mathur Babu. Além disso era um
jovem sem importância e Mathur, braço direito da Rani, era uma pessoa muito importante. Sob
essas circunstâncias, se tivesse de recusar o oferecimento de Mathur, não seria bem visto e seria
considerado um capricho infantil de sua parte. Além disso, o estado emocional do Mestre estava
também mudando, como ele mesmo sentia, através de seu poder de introspecção. Com o correr
do tempo começou a sentir o encanto do jardim-templo de Dakshineswar e a vida ali lhe parecia
bastante cômoda e agradável. Já não estava tão ansioso por regressar a Kamarpukur, sua terra
natal. Agora não tinha mais objeção em ficar em Dakshineswar, desde que não fosse sobrecarregado
de deveres e de responsabilidades.
9. O que o Mestre percebia aconteceu pouco tempo depois. Quando Mathur veio um dia ao
templo para prestar adoração, viu o Mestre a uma certa distância e mandou chamá-lo. O Mestre
estava então passeando com Hriday. Vendo Mathur ao longe, afastou-se, quando o empregado de
Mathur chegou e lhe disse: "Babu deseja vê-lo." Hriday viu que o Mestre relutava em ir ver
Mathur e perguntou-lhe a razão. Ele respondeu: "Assim que eu for lá, ele me pedirá para ficar e
prestar serviço." Hriday disse: "Que mal há nisso? Só existe bem em ser escolhido para trabalhar
sob um grande homem neste lugar. Por que está relutando?" O Mestre respondeu: "Não tenho
desejo de ficar preso ao trabalho para o resto da vida. Além disso, se concordar em fazer o culto aqui
devo ficar responsável pelos ornamentos da Deusa; essa é uma tarefa difícil. Não será possível
mas se você assumir essa responsabilidade e ficar, não farei objeção em fazer o culto."
Foi realmente à procura de emprego que Hriday havia ido lá. Por isso concordou
alegremente com o que disse o Mestre, que então foi até Mathur. Como previsto, Mathur pediu-lhe
sinceramente para fazer o serviço do templo. O Mestre expressou sua concordância condicional e
Mathur aceitou. Nomeou o Mestre para vestir a imagem no templo de Kali e a partir daquele dia
pediu a Hriday para ajudar o Mestre e Ramkumar. Ramkumar ficou livre de ansiedade ao ver que
o irmão concordara em fazer aquela tarefa, a pedido de Mathur.
10. Todos os acontecimentos mencionados anteriormente ocorreram no período de três
meses após a consagração do templo. Era o final de 1855. As cerimônias ligadas ao "Oitavo Dia
Lunar", aniversário de Sri Krishna, haviam sido convenientemente feitas sem impedimentos no
templo. No dia seguinte era o festival de Nanda. A adoração especial do meio-dia de Radha-Govinda
e as oferendas de comida haviam terminado. O sacerdote Kshetranath levou Radharani para outro
aposento, colocando-A na cama. A seguir, quando estava pegando a imagem de Govinda, com o
mesmo propósito, o sacerdote caiu e uma perna da imagem quebrou-se. Com esse
acontecimento houve uma comoção no templo. Foram obtidas diversos pareceres dos pundits. Por
fim a perna quebrada da imagem foi colocada e a adoração da imagem continuou de acordo com o
conselho do Mestre (vide III, 6). Tendo visto o Mestre entrar às vezes em êxtase, Mathur ficou
ansioso em ter seu conselho sobre a substituição da imagem quebrada por uma nova. Hriday disse
que o Mestre estivera em êxtase antes de aconselhar Mathur e que, ao final do êxtase disse que a
substituição não era necessária. Mathur sabia que o Mestre podia consertar muito bem as partes
quebradas das imagens. Por isso o Mestre teve de colocar a perna da imagem, a pedido de
Mathur. E o fez tão bem que até hoje não se pode dizer que a imagem alguma vez quebrou,
mesmo se for examinada minuciosamente.
11. Depois que a imagem foi quebrada, muitos disseram diversas coisas sobre a adoração
sem valor de uma imagem destituída de um membro; mas a Rani Rasmani e Mathur Babu tinham
uma fé firme no conselho do Mestre e não deram ouvidos àquelas conversas. De qualquer maneira
o sacerdote Kshetranath foi destituído do serviço por descuido e o Mestre nomeado desde então,
para a adoração de Radha-Govinda. Hriday ajudava Ramkumar a vestir Mãe Kali durante Sua
adoração.
Noutra ocasião Hriday mencionou-nos outro fato sobre a imagem quebrada. Há um Ghat
pertencente a Ratan Roy, o conhecido proprietário de terras de Naral, perto de Kutighat, em
Baranagar, a algumas milhas ao norte de Calcutá. Perto daquele Ghat há um templo onde se
encontram as imagens dos dez Mahavidyas. No passado eram feitos adoração, oferecimentos
etc., naquele templo, mas na época de que estamos falando, estava em estado decadente.
Pouco tempo depois Mathur passou a ter muita devoção e reverência pelo Mestre. Ambos foram
certa vez ver o templo e encontrando-o em más condições, o Mestre pediu a Mathur para dar
mensalmente grande quantidade de arroz e duas rupias, com o que ele prontamente concordou.
Um dia, ao voltar de uma de suas visitas ao templo, o Mestre viu Jayanarayan Bandyopadhyaya,
o conhecido proprietário de terras do lugar, junto com muitas pessoas no Ghat que ele havia
consagrado. Como conhecia Jayanarayan, foi a seu encontro. Jayanarayan saudou-o e deu-lhe
as boas-vindas respeitosamente, apresentando-o ao seus companheiros. No curso da conversa,
surgiu o assunto do templo de Kali da Rani Rasmani e ele perguntou ao Mestre: "Senhor, Govinda
desse templo está quebrado?" O Mestre lhe disse: "Ah, que bela compreensão! Pode o Uno, que é
Todo indivisível estar quebrado?" Para evitar a possibilidade de vários assuntos serem
levantados sobre a pergunta de Jayanarayan, o Mestre mudou de conversa e aconselhou-o a
desistir das partes não essenciais de tudo e aceitar somente as essenciais. O inteligente
Jayanarayan também entendeu a sugestão do Mestre e evitou fazer outras perguntas vãs.
12. Ouvimos de Hriday que a maneira com que o Mestre fazia adoração deveria ser
observada. Quem o visse ficava encantado. Ó! As canções cantadas por ele, com sua voz doce e
com o coração transbordante de emoções! Quem ouvisse essas canções jamais poderia esquecê-
las. Nelas não havia nada da artificialidade dos chamados mestres da música de alta classe. Seus
únicos méritos eram a completa identificação de si mesmo com a emoção das canções, uma
expressão acurada das mesmas, numa voz doce que tocava o coração e a precisão de tempo e
cadência. Quem ouvisse o Mestre cantar ficaria convencido de que a emoção é a verdadeira vida
da música e que, na apresentação da maior parte dos cantores, esse fator vital da música não
aparece devido à falta de cuidado na observância de tempo e cadência. Sempre que a Rani vinha a
Dakshineswar mandava chamá-lo e ouvia suas canções. Ela gostava particularmente da seguinte
canção:
"Que idéia é essa, Ó Mãe, que ficas com Teus pés no peito de Hara?... Puseste Tua língua
para fora por Tua vontade, como se Tu fosses uma simples menina. Compreendi, Ó Salvadora; é
este Teu traço hereditário? Será que Tua mãe fica no peito de Teu pai, assim?"
Havia outra razão pela qual as canções do Mestre eram tão doces. Ele ficava tão absorvido
na emoção da canção, quando cantava, que se esquecia completamente que estava cantando para
alguém. Não vimos alguém como o Mestre, em toda nossa vida, cantar e se tornar tão absorvido
na emoção, a ponto de perder-se completamente nela. Até os cantores devocionais esperam
pelo menos um pouco de aplauso de seus ouvintes. Somente no Mestre vimos alguém que
sentia, quando elogiado pelas suas canções, que o elogio era para a emoção transmitida pela
canção e não para si mesmo.
13. Hriday costumava dizer que enquanto cantava, lágrimas abundantes corriam dos olhos
do Mestre. Por ocasião da adoração ficava tão absorvido que se tornava totalmente inconsciente de
qualquer pessoa que se aproximasse ou que o chamasse. O Mestre dizia que enquanto fazia
rituais como Anganyasa, Karanyasa, realmente via as letras dos Mantras colocadas em cores
brilhantes em seu corpo. Ele realmente via o Poder Enrolado subindo, em forma de serpente,
através do Sushumna até o Sahasrara (vide III.2). Sentia que as partes de seu corpo deixadas
para trás, por aquele Poder, imediatamente tornavam-se imóveis e insensíveis e aparentemente
mortas. Também quando, segundo o método prescrito de adoração, pronunciava o Mantra
"Rang",3 (3 Verdadeiro nome do fogo ou o som produzido por sua Sakti, ouvido pelos yogins) aspergia água em volta
de si mesmo e imaginava um muro de fogo em volta do lugar de adoração, ele realmente via um
muro de obstáculos intransponíveis com centenas de línguas espalhadas, protegendo o lugar do
adorador de todos os obstáculos. Hriday dizia que outros Brahmanas, vendo a mente do Mestre
tão absorvida e o corpo inteiro luzindo com um brilho resplandescente, diziam, um para o outro: "É
como se o Próprio Vishnu assumisse corpo humano e tivesse sentado para adorar."
14. Ramkumar, devoto da Deusa, estava quase totalmente livre de preocupações com
respeito à subsistência de seus familiares desde que chegara a Dakshineswar. Mas, de tempos em
tempos, preocupava-se com outro problema, porque havia notado em seu jovem irmão um gosto
pela solidão e um estranho estado de indiferença pelos negócios mundanos. Encontrava nele
completa falta de interesse por tudo. Ramkumar a princípio, pensou que o rapaz talvez estivesse
ansioso em voltar para a mãe, em Kamarpukur, em quem pensava sempre. Via o jovem ou
sentado quieto sob o Panchavati ou caminhando à margem do Ganga, longe do templo, pela
manhã e à tarde. Via-o naqueles dias durante muitas horas no bosque em torno do Panchavati e
então voltando de lá. O tempo passava mas o rapaz não mostrava vontade de voltar para casa.
Ramkumar, às vezes, indagava-lhe a esse respeito, mas ficava sabendo que ele não nutria aquele
desejo. Por isso desistiu da idéia de mandá-lo de volta para casa. Pensou: "Estou avançado em
idade e a cada dia mais doente. Quem sabe quando minha vida chegará ao fim?" Nessas
circunstâncias sentia que algo tinha que ser feito para assegurar o futuro do jovem irmão. Antes
de morrer, era seu dever imprescindível educar o rapaz, para que ele pudesse firmar-se em suas
próprias pernas, ganhar a vida decentemente e administrar os negócios mundanos. Por isso
Ramkumar ficou muito satisfeito quando Mathur consultou-o sobre a nomeação do rapaz para o
serviço do templo. Ficou livre de ansiedade quando depois de certo tempo, a pedido de
Mathur, o rapaz aceitou, de início, o encargo de vestir a imagem e depois oficiar como sacerdote,
começando a fazer essas tarefas com habilidade. Passou então a ensiná-lo a ler o Chandi e a fazer a
adoração da Mãe. Pensou que assim, o rapaz iria tornar-se perfeito no culto e poderia aliviá-lo,
quando ele próprio não pudesse mais fazê-lo. O Mestre logo aprendeu aqueles deveres e sabendo
que não é conveniente adorar a Deusa sem antes ser iniciado em Seu Mantra, resolveu tomar essa
iniciação.
15. Um competente Sadhaka da Sakti, chamado Kenaram Bhattacharya, vivia em
Baithakkhana-bazaar em Calcutá. Costumava freqüentar o templo da Rani Rasmani em
Dakshineswar e parece que era amigo de Mathur e de todos os outros membros da família da
Rani. Hriday contou-nos que todos o conheciam, mostravam-lhe grande respeito como um
devoto Sadhaka. Já era conhecido do irmão do Mestre, Ramkumar. O Mestre decidiu ser iniciado
por ele. Disseram-nos que logo após sua iniciação, o Mestre entrou em êxtase. Kenaram ficou
encantado ao ver sua devoção incomum e abençoou-o de todo o coração para que ele pudesse
realizar seu Ideal Escolhido.
16. Nessa época o próprio Ramkumar que fazia o serviço de Radha-Govinda, autorizou o
Mestre a fazer o culto da Mãe Kali, seja por causa da própria incapacidade física, ou porque
desejava que o Mestre se acostumasse à condução do culto. Mathur, em pouco tempo, veio a tomar
conhecimento desse fato e com a permissão da Rani, pediu a Ramkumar, que doravante fizesse
permanentemente o culto no templo de Vishnu. Agora o Mestre foi nomeado para o cargo de
sacerdote e Hriday para vestir a imagem no templo de Kali. O porquê desse arranjo na adoração
parece ter sido que Mathur achava que Ramkumar se tornara velho e enfermo e estava além de
suas forças desempenhar tarefas difíceis no templo de Kali. Ramkumar também ficou contente
com essa mudança e permanecendo ao lado do irmão no templo de Kali, ensinou-o a fazer o
culto e o serviço da Mãe, de forma adequada. Estava assim livre de preocupações. Pouco tempo
depois falou com Mathur e conseguiu que Hriday fosse nomeado para o culto de Radha-Govinda.
Agora estava se preparando para voltar para casa, em licença, por algum tempo. Mas Ramkumar
jamais voltou. Foi a negócios a um lugar chamado Syamnagar Mulajor ao norte de Calcutá, por uns
dias, mas ali morreu subitamente. Ramkumar adorou a Mãe Divina somente durante um ano,
depois que o templo da Rani Rasmani foi consagrado; portanto, morreu provavelmente durante a
metade de 1856.
CAPÍTULO VI
1. O Mestre era muito jovem quando seu pai morreu. Cresceu sob os cuidados afetuosos da
mãe, Chandradevi, e do irmão mais velho, Ramkumar. Ramkumar era mais ou menos trinta e um
anos mais velho do que ele. Por isso o Mestre respeitava o irmão quase como a um pai. É certo
que o Mestre ficou extremamente pesaroso com a morte súbita do irmão, que lhe era tão caro
como um pai. A renúncia ao mundo, por Buda, uma Encarnação de Deus, à vista de doença,
velhice e morte é bem conhecida. Quem pode dizer o quanto a morte do irmão contribuiu para
acender o fogo da renúncia na mente pura do Mestre, dando-lhe uma firme convicção a respeito
da transitoriedade do mundo? O que quer que tenha sido, ele passou a dedicar sua mente mais
intensamente à adoração da Mãe do universo, a partir daquela época e ficou ansioso para saber
se um homem sedento por Sua visão pode realmente ser abençoado por ela. Sabemos que nessa
época ele costumava passar os dias no templo com a Mãe Divina ao final do culto, permanecendo
absorto n'Ela. Tornou-se tomado, perdido no amor da Mãe enquanto cantava para Ela hinos
compostos por devotos como Ramprasad e Kamalakanta. Agora relutava em desperdiçar um só
momento em conversas vãs e quando a porta do templo era fechada ao meio-dia e à noite, ele
abandonava todos, entrava no bosque em volta do Panchavati e passava o tempo na contemplação
da Mãe do universo.
2. Esse comportamento do Mestre não agradava Hriday. Mas o que podia fazer? Não
ignorava que, desde a infância, o Mestre levava avante tudo o que desejava ardentemente e que
ninguém podia impedir que ele o fizesse. Portanto era inútil protestar ou pôr obstáculos. Mas
Hriday não pôde evitar em mostrar-lhe sua ansiedade quando viu que aquele estado crescia com
uma rapidez alarmante a cada dia. Hriday ficou bastante preocupado ao reparar que, ao invés de
dormir à noite, ele deixava o leito e ia a algum lugar. Passando as noites em claro, não poderia
agüentar o duro trabalho do serviço do templo. Além disso o Mestre já não comia tanto quanto
costumava. Era provável que sob essas circunstâncias sua saúde sofresse se não dormisse à
noite. Então Hriday resolveu inquiri-lo a respeito e acertar as coisas de acordo com suas
possibilidades.
3. Naqueles dias a terra em volta do Panchavati não era tão plana como hoje. Era cheia de
covas, vales, terras baixas, bosques etc. Ali cresceu uma árvore, Amalaki, entre as árvores e
plantas silvestres. Esse lugar havia sido um cemitério antes de ser um bosque. Por isso, as pessoas
dificilmente iam ali, mesmo durante o dia. Se fossem, jamais entravam no bosque. Por isso ir à
noite estava fora de cogitações. Ninguém se aventurava com medo dos fantasmas. Soubemos de
Hriday que as árvores cresciam na parte baixa do terreno. Assim, qualquer um que sentasse
debaixo da árvore não poderia ser visto na parte alta de fora do bosque. O Mestre costumava
sentar-se ali, à noite, para meditar.
4. Uma noite, quando o Mestre saiu, Hriday seguiu-o sem seu conhecimento e o viu entrar
no bosque. Não foi além, para que o Mestre não fosse incomodado. Mas a fim de assustá-lo, jogou
algumas pedras e cascalhes que cairam à volta dele durante algum tempo. Vendo que isso não
trazia o Mestre de volta, a única coisa a fazer era voltar para o quarto. Perguntou ao Mestre no dia
seguinte: "O que o senhor fez quando entrou no bosque, a noite passada?" O Mestre respondeu,
"Há uma árvore Amalaki lá. Sento-me debaixo dela e pratico meditação. As escrituras dizem que
meditar sob uma árvore Amalaki com algum desejo na mente, traz sua realização".
5. Depois desse incidente, todas as vezes que o Mestre sentava para meditar debaixo
daquela árvore, ocorriam de vez em quando vários tipos de perturbação, como pedras atiradas.
Embora soubesse que se tratava de Hriday, o Mestre jamais lhe falou a respeito. Mas Hriday não
se sentia bem vendo que de nenhum modo podia assustá-lo. Certo dia entrou no bosque, com
passos silenciosos, pouco tempo depois que o Mestre chegou à árvore e viu, de uma certa
distância, que ele tinha tirado a roupa e o cordão sagrado e estava sentado, à vontade, em
meditação. Ao ver pensou: "Será que o tio ficou maluco? Somente pessoas malucas agiriam
assim. Se ele quer meditar, que o faça; mas por que joga fora a única peça de roupa que está
vestindo?"
6. Assim pensando aproximou-se imediatamente dele e disse: "O que é isso? Que
história é essa de tirar o cordão sagrado, a roupa e ficar sentado totalmente nu?" Quando
gritou assim algumas vezes, o Mestre foi trazido à consciência normal do estado de absorção
interior e ouviu Hriday fazendo-lhe essas perguntas. Disse em resposta: "O que você sabe? Assim
livre de todos os laços, deve-se praticar meditação. Desde o nascimento o homem trabalha sob
os oito grilhões de ódio, medo, vergonha, aversão, egoísmo, vaidade, orgulho de descendência
nobre e obsessão pela conduta formal. O cordão sagrado também é um 'grilhão', porque é um
sinal do sentimento de auto-importância. 'Sou um Brahmana e superior a todos.' Quando se
chama a Mãe deve-se descartar os grilhões e chamá-La com a mente concentrada. É por esta
razão que me desfiz deles. Vou colocá-los quando terminar a meditação." Hriday ficou
espantado ao ouvir essas palavras que não lhe pareceram familiares e, incapaz de dar uma
resposta, deixou o local. Pouco tempo antes ele havia pensado que poderia mostrar ao tio, seu
erro e censurá-lo, mas o que ocorreu foi exatamente o contrário.
7. É bom expor aqui um fato relacionado com o acontecimento acima, porque se ele for
conhecido poderemos compreender muitos dos acontecimentos que ocorreram ao longo da vida
do Mestre. Desse incidente pode-se ver que o Mestre não podia ficar contente com o
pensamento de que, pela renúncia dos oito grilhões, estaria renunciando em verdade e em
realidade. Ficou satisfeito somente depois de renunciá-los, também, fisicamente. Nós o vemos
agir dessa maneira com respeito a todos os outros assuntos em sua vida posterior. Tomemos
como exemplos os seguintes fatos:
A fim de destruir a vaidade nascida de uma ascendência nobre e conquistar por meio dela
a verdadeira humildade, limpou com suas próprias mãos e com muito cuidado, lugares que
eram totalmente evitados pelos outros por serem muito sujos.
Ele soubera que a mente de um aspirante espiritual deveria olhar da mesma maneira um
torrão de terra, uma pedra preciosa e um pedaço de ouro - em outras palavras, considerar as
pedras preciosas e os metais preciosos como sem valor, como um punhado de terra. A não ser que
a mente fosse capaz de pensar assim, não lhe seria possível libertar-se do desejo dos prazeres
do corpo ou direcionar-se e totalmente para Deus e praticar Yoga. O Mestre, por essa razão,
apanhou uma moedas e um punhado de terra e os jogou ao Ganga, repetindo incessantemente,
"rupia-terra, terra-rupia."
8. A fim de tornar firme seu conhecimento de que Siva (Deus) está em todos os Jivas
(criaturas), comeu e colocou em sua cabeça, como Prasada, um pouco dos restos dos pratos de
folha dos pobres depois deles terem sido alimentados no templo de Kali. Em seguida levou as
folhas, na cabeça, às margens do Ganga. Com uma vassoura varreu e lavou o lugar com as
próprias mãos. Sentiu-se feliz em pensar que parte do serviço de Deus havia sido feito com a
ajuda de seu corpo mortal.
Muitos acontecimentos semelhantes podem ser mencionados. Nota-se que em todos esses
casos, ele não havia ficado (satisfeito com a mera renúncia mental dos obstáculos no caminho da
realização de Deus, mas também os descartara nas suas formas densas. Em outras palavras,
manteve o corpo e os sentidos longe dos objetos de tentação e obrigou esses últimos a agir em
contrário às suas inclinações naturais. Vê-se que ao agir assim, sua mente teve todas as
impressões passadas completamente destruídas. A mente pôde dali em diante captar as novas
inclinações contrárias tão firmemente, que jamais poderia ir contra elas. Não admitia que as
novas idéias fossem convenientemente apreendidas e as de sentido contrário abandonadas, até
que, pelo menos um pouco das primeiras tivessem sido levadas à prática com seu corpo e sentidos.
9. Totalmente avessos a abandonar as impressões passadas, pensamos que não havia
necessidade de tais atos do Mestre. No curso da discussão sobre tais ações suas, alguns
chegaram a dizer: "Seus atos, como limpar lugares sujos e abomináveis, jogar no Ganga as moedas
e punhados de terra, repetindo, 'rupia-terra, terra-rupia' parecem ser extravagâncias de sua
imaginação. O desenvolvimento mental que ele obteve por meio desses meios extraordinários
poderia ter sido conseguido mais rapidamente através de outros mais fáceis." Em resposta
dizemos: "Tudo soa tão bem. Mas quantas pessoas até agora conseguiram ficar completamente
adversos a visões, gosto e outros objetos mundanos, dedicando suas mentes a Deus e
adotando os seus chamados meios mais fáceis de mentalmente desistir dos objetos dos sentidos,
sem recorrer a práticas externas? Jamais poderá ser assim. Não se pode ser bem sucedido em
qualquer grande empreendimento, muito menos na realização de Deus, quando a mente tem uma
idéia e move-se numa determinada direção, enquanto o corpo age contrariamente a essa idéia e
move-se em direção oposta. Mas com esse anseio inerente para com os prazeres da vista, do
gosto etc., o homem não realiza a verdade dessa afirmação. Dominado pelas impressões passadas,
não procura abandonar fisicamente os objetos dos sentidos, mesmo quando compreende que
essa renúncia é boa, mas continua pensando: "Que o corpo faça como quiser, mas deixe a mente
voar alto." Ansioso por ter Yoga e Bhoga simultaneamente, engana-se a si próprio; porque,
como luz e trevas, essas duas coisas jamais podem coexistir. Ninguém até hoje foi capaz de
descobrir um método fácil de desenvolvimento espiritual que combine simultaneamente o
serviço de Deus e a mundanidade que é somente sinônimo de luxúria e ouro.1 (1 Não se pode servir a
Deus e a Mammon. Bíblia Sagrada. Math. V, 124.) Por conseguinte, as escrituras constantemente ensinam: "O
que quer que tenha que ser abandonado, tem que ser com corpo, mente e fala e o que quer
que seja aceito tem que ser aceito de forma similar. Somente assim o aspirante estará apto a
realizar Deus." É por isso que os sábios dizem: "O homem jamais poderá ter a realização do Ser
com a ajuda do conhecimento, sem a ajuda de prática e sem colocar emblemas, 2 (2 Tapasovapyalingat
— Mundaka Upanishad, 3.2.4.) o que faz surgir as atitudes espirituais." É também razoável crer que a
mente humana atinge o estado sutil a partir do denso e o causal a partir do sutil. "Não há outro
caminho para a realização da meta suprema3. (3 Svetasvatara Upanishad, 6.15.)
10. Já dissemos que o Mestre estava se tornando cada vez mais absorvido na adoração da
Mãe Divina, após a morte do irmão mais velho. Impelido por uma fé ardente, ele agora fazia
ansiosamente o que considerava próprio para alcançar Sua visão. Entoar canções de Ramprasad e
de outros grandes devotos-poetas diante da Deusa tornou-se agora um auxiliar constante de sua
adoração diária. Sua mente era tomada de fervor enquanto cantava essas canções, com o
coração cheio de profunda emoção espiritual. Pensava: "Devotos como Ramprasad tiveram a visão
da Mãe. Então é certo que a Mãe do universo é realizável; por que então não posso ser
abençoado com Sua visão?" Costumava dizer, com o coração ansioso: "Tu Te revelaste a
Ramprasad, Mãe. Por que então Tu não Te revelas a mim? Não quero riqueza, amigos, parentes,
prazer e outras coisas assim. Mostra-Te a mim." Orava e chorava dessa maneira, enquanto seu
peito ficava encharcado pelas lágrimas de seus olhos. Devido a isso o peso de seu coração diminuiu
um pouco. Impelido por uma afetuosa esperança, era tranqüilizado como uma criança e tornava-se
pronto para agradar a Deusa, cantando novamente para Ela. Continuou assim a passar os dias em
adoração, meditação e canto de hinos devocionais. Seu amor e anseio por Ela aumentavam dia a dia.
Assim o maravilhoso período destinado à adoração e ao serviço da Deusa aumentava.
Sentava-se para adorar e colocando uma flor na cabeça, de acordo com a prescrição das
escrituras e talvez permanecesse sem movimento como o tronco de uma árvore, meditando
durante duas longas horas. Depois de oferecer comida cozida e outras coisas à Mãe, talvez
passasse longo tempo pensando que Ela estava comendo. Também, talvez passasse muito tempo,
todas as manhãs, enfeitando a Deusa com grinaldas de flores, colhidas com as próprias mãos. Ou
passava um longo período fazendo o Arati vespertino, com o coração cheio de devoção amorosa.
Também, cantando para a Mãe do universo à tarde ou ao final do Arati ficava às vezes tão
absorvido, tomado por emoções espirituais, que podia ser impelido a fazer o Arati, os serviços
vespertinos de oferecimento de comida etc. depois de ser várias vezes lembrado que era tarde
demais para esses serviços. A adoração continuou assim por um tempo.
11. É claro que a atenção das pessoas do templo foi despertada para o Mestre ao verem
tanta devoção, ansiedade e firmeza espiritual. A princípio, as pessoas ridicularizam e zombam de
alguém que é visto abandonar o caminho seguido por elas e conduzir-se ou fazer algo de maneira
nova. Mas com o decorrer do tempo e com sua perseverança no caminho, apesar de toda crítica, a
atitude delas muda e a reverência passa ocorrer. O caso do Mestre não foi uma exceção. Logo
que começou a nova forma de adoração, tornou-se objeto de escárnio. Mais tarde as pessoas
começaram a reverenciá-lo. Diz-se que Mathur viu a adoração do Mestre nessa época e disse,
com grande alegria, à Rani Rasmani: "Temos um adorador extraordinário; a Deusa será
despertada brevemente." O Mestre jamais se desviou de seu rumo por causa da opinião das
pessoas. Como um rio correndo para o mar, sua mente, de agora em diante, progredia
incessantemente na direção dos sagrados pés da Mãe Divina do universo.
12. À medida que os dias se passavam, a devoção e a ansiedade do Mestre aumentavam.
Cada vez mais o fluxo contínuo de sua mente em direção à meta espiritual teve seu efeito no
corpo também, ocasionando o aparecimento de vários sintomas físicos. Sua necessidade de
comida e de sono diminuíram. Como o sangue de seu corpo estivesse circulando rapidamente
para seu peito e cérebro, seu peito aparecia constantemente avermelhado e seus olhos
ficavam às vezes subitamente cheios de lágrimas. Sentia grande ansiedade pela realização do
Divino e sua mente era tomada de uma ansiedade incessante em relação ao que deveria fazer e
como poderia ter a visão da Mãe. Por isso havia em seu corpo um estado de inquietude e falta de
tranqüilidade o tempo todo, exceto quando estava meditando ou fazendo o culto.
Soubemos pelo próprio Mestre que nessa época, ele cantou para a Mãe Divina e em
seguida chorou ansiosamente para ter a Sua visão, "Tu não ouves, Ó Mãe, não ouves? nem
um pouco das muitas orações que faço para Ti? Tu Te revelaste a Ramprasad. Por que não Te
revelas a mim?"
13. Costumava dizer: "Havia então, uma angústia intolerável em meu coração porque
não podia ter Sua visão. Assim como um homem torce a toalha com força para retirar toda
água, eu sentia como se alguém tivesse se apoderado do meu coração e da minha mente e os
estava torcendo da mesma maneira. Muito aflito com a idéia de que jamais pudesse ter a visão
da Mãe, entrei em agonia. Pensei que não havia utilidade em viver tal vida. Meus olhos
subitamente caíram na espada que havia no templo. Decidi por fim à minha vida naquele
momento. Como louco corri e apanhei-a e subitamente tive a maravilhosa visão da Mãe e cai
ao chão inconsciente. Não sabia o que acontecia no mundo exterior - como aquele dia e o
seguinte passaram desapercebidos. Mas no fundo do coração fluía uma corrente de intensa
felicidade jamais antes experimentada e tive o conhecimento imediato da Luz que é a Mãe."
Noutra ocasião o Mestre descreveu-nos, em detalhe, sua visão maravilhosa acima
mencionada. Ele disse: "Era como se as casas, portas, templos e todas as outras coisas
desaparecessem totalmente, como se não houvesse nada em lugar algum! E o que vi era um mar
ilimitado de Luz Consciente! Por mais distante e em qualquer direção que eu olhasse, via a
sucessão contínua de Ondas Brilhantes avançando, devastando e desencadeando-se de todos os
lados com grande velocidade. Logo caíram sobre mim, fazendo-me afundar nas Profundezas
Abismais da Infinitude. Fiquei arquejante e lutei, por assim dizer, perdendo todo sentido de
consciência externa." O Mestre contou-nos que naquela ocasião viu um mar luminoso de
Consciência. Mas o que dizer da forma da Mãe Divina consistindo somente de Pura Consciência? -
Sua forma com mãos que doam graças e liberdade sem medo? Será que o Mestre então teve a
visão daquela forma também naquele mar de Luz? Parece que sim porque, assim que recobrou a
mais leve consciência por ocasião da primeira visão, ele, nos foi dito, repetia incessantemente a
palavra "Mãe" com a voz embargada de emoção.
Quando a visão terminou, surgiu no coração do Mestre uma ardente e incessante
necessidade e aspiração de uma visão imediata constante da Mãe Divina, somente feita de
Consciência. Ainda que nem sempre fosse manifestado por sintomas externos, como choro, etc.,
isso sempre existiu em seu coração. Às vezes aumentava tanto que, incapaz de suprimi-lo, ele caía
ao chão contorcendo-se e lutando, com dor. Chorava tanto dizendo: "Concede-me Tua graça, Mãe!
Revela-Te a mim", que as pessoas juntavam-se à sua volta. Nem uma sombra de preocupação
com o que poderia estar pensando de tal inquietude passava por sua mente naquele momento.
Costumava dizer: "Embora as pessoas ficassem em volta, pareciam como sombras ou figuras
pintadas em telas e nem mesmo o mais leve sentimento de vergonha ou hesitação cruzava minha
mente naquela altura. Mas imediatamente perdia a consciência devido à angústia insuportável e
então, eu via aquela forma da Mãe com mãos que concedem graças e libertação do medo - a
forma que sorria, falava e consolava e ensinava-me, de maneiras infindáveis."
CAPÍTULO VII
ASSUNTOS: 1. Depois da primeira visão. 2. Novas sensações físicas e percepções mentais. 3. Mudança em
suas idéias e ações. 4. Contraste entre o comportamento atual e o anterior. 5. Pontos de vista de Hriday a esse
respeito. 6. Relato dos funcionários do templo e Mathur Babu. 7. Mathur impressionado com a adoração
do Mestre. 8. O Mestre atinge Ragatmika Bhakti. 9. As Encarnações e Ragatmika Bhakti. 10. A experiência
de Papa-purusha. 11. A punição do Mestre à Rani. 12. O Mestre transcende a adoração exterior. 13. Opinião de
Hriday sobre isto e as dúvidas de Mathur. 14. O tratamento do Mestre por Gangaprasad Sen. 15. A chegada
de Hriday a Dakshineswar.
1. Por alguns dias o Mestre tornou-se incapaz de empreender qualquer trabalho porque sua
mente estava absorvida na felicidade da visão da Mãe. Era-lhe impossível fazer regularmente o
culto e outras obrigações do templo. Hriday, de algum modo, as executava com a ajuda de outro
Brahmana. Também pensava em fazer um tratamento para o tio, porque achava que ele estava
ficando insano. De certa forma relacionara-se com um médico da casa principesca de Bhukailas,
sob o qual havia colocado o Mestre para tratamento e sabendo que não havia possibilidade de
uma recuperação rápida, enviou uma carta à mãe e ao irmão do Mestre em Kamarpukur.
2. Mas o próprio Mestre esforçava-se em fazer o culto nos dias em que estava de certa
forma, livre de emoções espirituais e de perda da consciência exterior pela ansiedade da visão de
Deus. As vezes, o Mestre falava-nos um pouco sobre seus pensamentos e experiências durante o
culto e meditação, naqueles dias. Dizia: "Costumava mostrar à minha mente a imagem da
Bhairava em postura de meditação, na sala de música e dizia-lhe: 'Você tem que estar firme e
imóvel assim e meditar nos Pés de Lotus da Mãe!' Mal havia sentado para meditar, ouvia
estalos produzidos pelas juntas do corpo e membros, a partir das pernas para cima. Uma após a
outra fechava-se, como se alguém de dentro girasse as chaves. Enquanto meditava, não podia
mover o corpo e mudar de posição nem abandonar a meditação, ir a outro lugar ou fazer qualquer
coisa que desejasse. Estava, por assim dizer, forçadamente mandado a me sentar na mesma
postura, enquanto as juntas não fizesse os estalos como antes e fossem abertas, dessa vez da
cabeça para as pernas. Quando sentava e meditava, tinha no início, a visão de partículas de luz
como se fossem bandos de vagalumes; via às vezes, que todos os lugares estavam cobertos de
massas de luz semelhantes à neblina. Em outras ocasiões percebia que todas as coisas estavam
interpenetradas por ondas brilhantes de luz, como prata. Via tudo isso, às vezes, de olhos
fechados, às vezes de olhos abertos. Não compreendia o que via, nem sabia se era bom ou mau ter
essas visões. Então orava à Mãe com o coração aflito: "Não compreendo, Mãe, o que está
acontecendo comigo; não conheço Mantras e outra maneira de chamar-Te; por favor ensina-me
pessoalmente o que me permitirá realizar-Te, Mãe! Se Tu não me ensinares, quem mais o fará?
Porque não há refúgio para mim a não ser em Ti! Costumava orar com a mente concentrada e
chorar com tanta comoção devido à ansiedade de meu coração."
3. O culto, a meditação, etc. do Mestre, sofreram novas mudanças. É difícil explicar quão
integralmente devotada e profunda era sua absorção n'Ela. Era caracterizada por uma
simplicidade infantil, doçura, fé e confiança na Mãe - seu único esteio e apoio. Livre da seriedade de
um adulto, não fez qualquer esforço pessoal para observar as prescrições das escrituras e
proibições relativas a tempo, lugar e pessoa; nem se preocupou em comportar-se à maneira dos
padrões aprovados tanto por mundanos quanto por divinos. Sempre que alguém o via pensava
que ele havia fundido sua pequena vontade e seu pequeno ego na vontade d'Ela, que era a fonte
de todos os desejos e que ele fazia tudo como se fosse totalmente um instrumento em sua mão,
orando do fundo do coração: "Ó Mãe, meu único refúgio! Bondosamente faz-me, Teu menino, dizer e
fazer o que devo." Era natural que esta marcada mudança, na conduta e no comportamento, do
que as pessoas mundanas consideravam correto, levou a críticas, inicialmente em sussurros e
mais tarde em maledicência declarada. Tudo isso, contudo, pouco lhe importou, porque, como
menino da Mãe Divina que era, agora vagueava e fazia tudo por Sua orientação. O vão clamor
do mundo não chegou a seus ouvidos. Embora no mundo, não pertencia a ele. O mundo exterior
transformara-se num mundo de sonhos para ele. Agora, apesar de seus esforços, não podia
atribuir-lhe substância. A forma da Mãe Universal, consistindo de Consciência pura e Felicidade, era
para ele a única realidade.
4. Anteriormente, em algumas ocasiões na hora do culto e da meditação, o Mestre
costumava ver a mão da Mãe Divina ou um pé brilhante e delicado, ou Sua doce, afetuosa e
sorridente face, supremamente bela. Agora ele via, até nas horas que não eram de adoração e de
meditação, a figura inteira da brilhante Mãe, sorrindo e falando, guiando-o e acompanhando-o,
dizendo: "Faça isso, não faça aquilo."
Previamente, ao oferecer comida cozida, etc., à Mãe, costumava ver um extraordinário
raio de luz saindo, brilhando, de Seus olhos. Tocava todas as coisas oferecidas, apanhava as partes
essenciais e recolhia-se novamente em Seus olhos. Agora ele via que mesmo antes que a oferenda
fosse feita, a própria Mãe, em pessoa, sentava-se para tomá-las, iluminando o templo como brilho
de Sua sagrada presença. Um dia Hriday chegou subitamente na hora da adoração e viu que o
Mestre havia pego um Arghya consistindo de rosas e de folhas de vilva que ia oferecer aos Pés de
Lotus da Mãe Divina. Ele estava tão absorvido n'Ela, quando subitamente gritou: "Espera, espera.
Deixa-me pronunciar o Mantra primeiro; depois Tu o tomarás." Então ofereceu a comida
ritualisticamente antes de terminar a adoração.
Antes da adoração e da meditação via Sua maravilhosa presença viva na imagem de pedra
diante dele. Agora, não via aquela imagem quando entrava no templo; mas, em seu lugar, em pé,
estava a Própria Mãe, viva, pura Consciência, com as mãos oferecendo dádivas e liberação do
medo. O Mestre disse: "Coloquei a mão perto de Suas narinas e senti que a Mãe estava realmente
respirando. Observei bem de perto mas jamais consegui ver a sombra da pessoa divina da Mãe na
parede do templo à luz do lampião, à noite. Ouvia em meu quarto o tilintar das tornozeleiras da
Mãe, quando ela subia as escadas como uma alegre menina. Saí e vi que, com os cabelos
esvoaçantes, Ela estava realmente na varanda do primeiro andar do templo, que agora olhava
Calcutá, para em seguida olhar o Ganga.
5. "Uma pessoa sentia-se tomada de medo" disse Hriday, "ao entrar no templo de Kali,
quando o Mestre não estava lá, mas imagine quando ele estava. Contudo não podia resistir à
tentação de ver como o Mestre se comportava durante adoração. O que eu vi quando subitamente
cheguei ali, em muitas ocasiões, encheu meu coração de medo e de devoção. Mas uma dúvida
surgiu quando saí. Pensei: 'Será que o tio ficou realmente louco? Por que ele comete esses atos
proibidos durante a adoração?' Fiquei apreensivo com o que a Rani e Mathur Babu pensariam e
diriam quando viessem a saber, mas esses pensamentos jamais passaram pela cabeça de meu tio,
nem deu ouvidos ao que eu lhe disse sobre isso. Também eu não podia me arriscar a lhe falar
muito; um medo indescritível e hesitação surgiram e fecharam minha boca, não sabia qual a razão.
Senti uma indefinível distância entre mim e ele, por algum motivo desconhecido. Não tendo outra
alternativa eu o servia silenciosamente como podia mas sentia-me apreensivo, com receio de que
ele algum dia me repreendesse."
Hriday deu-nos o seguinte relato sobre as ações do Mestre que enchiam seu coração de
espanto, medo e devoção ao entrar subitamente no templo na hora da adoração. Dizia: "Vi o tio
preparar um Arghya constituído de rosas e de folhas de vilva e tocar com elas a cabeça, o peito, os
membros e mesmo os pés para oferecê-las aos Pés de Lotus da Mãe do Universo...
"Vi que seu peito e seus olhos estavam sempre avermelhados como os de um bêbado.
Cambaleando, deixava o assento do adorador e subindo ao altar, acariciava a Mãe Divina tocando-
lhe afetuosamente o queixo e começava a cantar, rir, gracejar e conversar com Ela; ou às vezes,
pegava Suas mãos e dançava...
"Às vezes via que enquanto oferecia comida cozida etc., à Mãe Divina, levantava-se
subitamente, apanhava um pouco de arroz e curry de um prato, tocava a boca da Mãe Divina e dizia:
'Mãe, coma! Coma, Mãe!' depois talvez dizia: Tu me pedes para comer? Depois Tu vais comer?
Muito bem, estou comendo agora.' Dizendo isso tomava uma parte para si e colocava o resto em
Sua boca outra vez, dizendo: 'Já comi. Agora come Tu.' Um dia vi que durante o oferecimento da
comida, o Mestre viu um gato entrar miando no templo. Alimentou-o com a comida que devia ser
oferecida à Mãe Divina, dizendo: 'Vai comê-la, Mãe?'...
"Eu o vi em algumas ocasiões à noite, pondo a Mãe na cama e ele mesmo ficando na
cabeceira, dizendo, Tu me pedes para deitar? Está bem, vou deitar'...
"Vi também que quando ele se sentava para adorar, ficava tão absorvido na meditação,
que não tinha a menor consciência do mundo exterior por muito tempo...
"O tio levantava-se muito cedo e apanhava flores para fazer guirlandas para a Mãe Kali.
Naquela ocasião, também, parecia-me que havia alguém lá que ele acariciava e com quem
conversava, ria, gracejava, alegrava-se e brincava como uma criança levada. ...
"Depois via que o tio não havia conseguido dormir à noite. Sempre que eu despertava,
via que, tomado de emoções espirituais, ela falava ou cantava e às vezes, ia ao Panchavati e
ficava imerso em meditação."
6. Hriday costumava dizer que embora estivesse apreensivo com o comportamento do
Mestre, não podia desabafar suas apreensões com ninguém porque a pessoa poderia falar com
os funcionários mais categorizados do templo, prejudicando seu tio, envenenando-o junto aos
proprietários. Mas como poderiam as coisas ficar encobertas se não somente a cada dia, como a
cada momento, esses acontecimentos estranhos aconteciam? Alguns adoradores que vinham
ao templo de Kali na hora da adoração viam tudo com os próprios olhos e queixavam-se ao caixa
ou aos outros funcionários. Estes ouviam, vinham ao templo de Kali e constatavam tudo por si
mesmos, mas quando viam o rosto de Sri Ramakrishna transtornado e elevado como o de
alguém possuído por um poder, seu comportamento sem hesitação, seu destemer e total
abstração, recuavam com um medo indefinido de dizer-lhe qualquer coisa ou de proibi-lo de
fazer o que fazia. Consultaram-se mutuamente ao voltarem ao escritório do templo e
concluiram que o Bhattacharya deveria ter enlouquecido ou que estava tomado por algum
espírito. Ninguém poderia comportar-se de uma maneira contrária às escrituras na hora da
meditação. De qualquer forma, a oferenda de comida e os outros serviços da Deusa não estavam
realmente sendo feitos. O Bhattacharya havia estragado tudo. Eles nada podiam fazer a não ser
enviar uma mensagem aos proprietários.
Um recado foi enviado a Mathur em Janbazar. Em resposta ele escreveu que iria
pessoalmente observar os acontecimentos e tomar as providências necessárias. Pediu-lhes que
deixassem o Bhattacharya fazer a adoração e outros serviços a seu modo e que não pusessem
qualquer impecilho até que chegasse. Receberam a carta de Mathur e ansiosamente esperaram
sua chegada. Falaram entre si: "Está evidente que o Bhattacharya dessa vez será despedido. Logo
que Babu chegar vão expulsá-lo. Ofender os deuses! Por quanto tempo eles aguentarão?" e assim por
diante.
7. Um dia, inesperadamente, Mathur chegou na hora da adoração e sem ninguém saber
entrou no templo de Kali e observou minuciosamente os atos do Mestre durante muito tempo.
Tomado de emoções espirituais, o Mestre não notou sua presença. Como todos os dias, sua mente
estava absorvida na Presença Divina e ignorava a chegada e a saída de qualquer pessoa. Esse estado
foi a primeira coisa que Mathur observou quando entrou no templo. Ele pôde também perceber,
quando mais tarde ouviu seus importunos pedidos infantis a Ela, que tudo nascia de sua pura
devoção ingênua e amor à Divina Mãe. Quem mais poderia, pensou, realizar a Mãe, se essa
devoção sincera não pudesse? Seu coração ficou tomado de uma extraordinária felicidade ao
ver as torrentes de lágrimas cairem dos olhos do Bhattacharya enquanto fazia a adoração, como
ele estava cheio de alegria genuína e ilimitada e como ficava sentado, imóvel, privado de
consciência exterior e ignorando tudo que o cercava. Mathur sentiu que o templo sagrado estava
realmente cheio de intensa e palpável manifestação das presença divina. Teve agora a firme
convicção de que o Bhattacharya havia realmente sido abençoado pela graça da Mãe Universal.
Com os olhos cheios de lágrimas e o coração purificado pela devoção, repetidamente saudou a
Mãe Divina e Seu extraordinário adorador, de longe, dizendo: "Depois de muito tempo a
consagração da Devi correspondeu a seu objetivo! Pode-se dizer que agora a Devi foi
verdadeiramente consagrada e que o verdadeiro culto da Mãe foi feito." Voltou para casa sem nada
dizer aos funcionários. Na manhã seguinte o chefe do funcionários recebeu a ordem: "Não se
obstrua o Bhattacharya em sua adoração, qualquer que seja o modo como ele a faz."(cf. III,6).
8. Ao ouvir a série de acontecimentos acima mencionados, um leitor bem versado nas
escrituras facilmente compreenderá a natureza da grande mudança que havia ocorrido na mente do
Mestre naquela época, que ultrapassou os limites da devoção baseada nas prescrições das escrituras
(Vaidhi Bhakti) e progrediu rapidamente no campo do puro amor devocional (Ragatmika Bhakti).
Mas essa mudança veio de forma natural, simples, que mesmo o próprio Sri Ramakrishna não pôde
compreender claramente, quanto mais os outros. A única coisa que ele entendia era que, impelido
por seu amor à Mãe Divina, só podia comportar-se daquela maneira, como se fosse forçado a agir
assim. Nós o vemos pensar, às vezes: "O que está acontecendo comigo? Estou no caminho certo?"
Por isso, ansiosamente, falou à Mãe Divina: "Não sei nem compreendo, Ó Mãe! O que são essas
coisas que estão acontecendo comigo? por favor, faz-me agir como devo! Ensina-me o que Tu
queres que eu aprenda e revela-Te a mim! Continua sempre segurando-me pela mão!" Dirigia
essa suplicante oração à Mãe Divina, do fundo do coração, fugindo completamente de todos os
desejos que iam atrás dos valores mundanos como riqueza, sexo, honra, fama, prazeres e poderes.
A Mãe do Universo, de Sua parte, segurou-o pela mão, protegeu-o sob todas as circunstâncias e
atendeu à sua oração. Espontaneamente, sempre que necessário, Ela lhe trazia todas as coisas e
todas as pessoas necessárias ao crescimento e à perfeição de sua vida como aspirante fazendo-o
atingir fácil e naturalmente a meta última do puro conhecimento e pura devoção. No Gita (IX.22) o
Senhor prometeu a seus devotos: "Aqueles devotos com mente não dividida que Me adoram e
permanecem sempre unidos a Mim, que colocam sua mente totalmente em Mim e que não
pensam nem em seu alimento nem nos atos necessários à vida, trago, mesmo que não me "pe-
çam, todas as coisas que necessitam." Quanto mais estudamos a vida do Mestre nessa época, mais
ficamos perplexos vendo essa promessa do Gita literalmente cumprida em sua vida. Foi necessário
provar com clareza novamente, a verdade da promessa do Senhor nesta época moderna egoísta,
que tem a luxúria e a ambição como as únicas forças motivadoras da vida. Embora os Sadhakas
tenham até hoje ensinado aos homens de tempos em tempos a "abandonar tudo para ter Tudo",
significando que um Sadhaka não sofrerá falta de nada se renunciar tudo pelo Senhor, ainda
assim, os homens de mentalidade fraca, enredados nos objetos mundanos não conseguiram
acreditar na promessa sem vê-la ser cumprida novamente nos tempos modernos. Por isso, a Mãe
do Universo encenou essa peça maravilhosa com o Mestre, possuidor de uma mente não dividida,
para mostrar ao homem a verdade da afirmação das escrituras: Ouve isso, Ó homem, de
coração puro e avança no caminho da renúncia, de acordo com tua capacidade.
9. O Mestre costumava dizer que quando uma poderosa corrente de estados divinos chega
inesperadamente à vida humana, não pode ser cortada ou ocultada por qualquer esforço. Não é
tudo; o corpo denso, material, não consegue conter o espírito ativado pelo poderoso surgimento
de emoções divinas e muitas vezes fica completamente abalado. Muitos Sadhakas morrem assim.
É necessário um corpo preparado para conter a onda exuberante de emoções nascidas do
conhecimento perfeito ou devoção perfeita. Até hoje, somente os corpos das grandes almas,
conhecidas como Encarnações de Deus, puderam suportar aquela força em sua totalidade e continuar
a viver no mundo. É por isso que as escrituras devocionais as descrevem repetidamente como tendo
corpos formados de puro Sattva. As Encarnações podem agüentar o impulso total das emoções
espirituais somente porque vêm ao mundo com corpos feitos do elemento de puro Sattva, isentos de
qualquer contato com Rajas e Tamas. Apesar de terem esses corpos, em particular as
Encarnações, trilhando o caminho da devoção, são vistas sofrendo, tomadas pela poderosa
pressão dos estados divinos. São incontestáveis os relatos que recebemos, que as juntas dos corpos
de Jesus e de Sri Chaitanya afrouxaram e gotas de sangue saíam como suor, de cada poro de seus
corpos, devido à poderosa onda de emoções espirituais. Sem dúvida essas modificações físicas
foram extremamente dolorosas e contudo, através delas seus corpos adaptaram-se ao surgimento
extraordinário de emoções divinas. Com o tempo acostumaram-se a esses impulsos que, por isso,
deixaram de se manifestar de forma penosa para seus corpos.
10. Daqui em diante uma série de mudanças extraordinárias ocorreram no corpo do Mestre
com o aparecimento daquele amor devocional. Já mencionamos a sensação de queimação em seu
corpo, desde o começo de sua Sadhana. Teve de sofrer em diversas ocasiões essa sensação. O
próprio Mestre mostrou-nos a causa, várias vezes. "Na época de fazer o Sandhya e a adoração,"
dizia o Mestre, "eu costumava pensar, segundo a prescrição das escrituras, que o Papa-purusha no
interior do corpo havia sido queimado! Quem sabia se realmente havia um Papa-Purusha no
interior do corpo que poderia ser queimado e destruído de fato? Uma sensação de queimação
apareceu em meu corpo, desde o início da Sadhana. Pensei: 'O que é essa doença?' Ela aumentou
gradualmente e tornou-se insuportável. Vários tipos de óleos receitados pelos médicos foram
usados; mas nada a aliviou. Um dia, quando estava sentado no Panchavati, vi uma pessoa bem
escura, de olhos vermelhos e aparência horrível, cambaleando como se estivesse bêbado, saindo
deste (mostrando seu próprio corpo) e andando na minha frente. Vi também uma outra pessoa,
de aparência plácida, de roupa ocre, com um tridente na mão e saindo também do meu corpo.
Com força atacou a outra, matando-a. A sensação de queimação no corpo diminuiu depois dessa
visão. Sofri com essa sensação de queimação de forma contínua durante seis meses, antes que o
Papa-purusha fosse queimado."
O Mestre contou-nos que uma sensação parecida ocorreu-lhe de novo, pouco tempo depois
que o Papa-purusha foi queimado. O Mestre havia ido além dos limites da Vaidhi Bhakti ou
prática das disciplinas devocionais segundo as injunções das escrituras e empenhou-se no serviço
da Mãe Divina com Ragatmika ou devoção amorosa, da maneira como foi descrita anteriormente. A
sensação de queimação aumentou gradualmente tanto que ele não podia encontrar alívio,
mesmo que colocasse uma toalha úmida na cabeça e mantivesse o corpo imerso no Ganga durante
três ou quatro horas. Vamos descrever mais adiante (IV.1) os modos fáceis como a Brahmani, ao
chegar, curou a queimação mostrando que ela tinha sua origem na ânsia do Mestre pela total
visão do Senhor e pelo sofrimento por estar separado d'Ele. O Mestre sofreu novamente aquela
sensação de queimação em seu corpo mais tarde, por ocasião da prática do Madhura-Bhava, o
"estado doce de desposar Deus." Hriday disse: "O Mestre sofreu uma dor e uma sensação de
queimação semelhante àquela que se sente quando uma panela cheia de brasa incandescente é
colocada no peito de alguém. Sofreu durante muito tempo aquela sensação que lhe parecia de
tempos em tempos. Alguns anos depois do término da Sadhana, conheceu Kanailal Ghosal,
advogado de Barasat, um Sadhaka adiantado de Sakti, que aconselhou o Mestre a usar em seu
corpo um amuleto contendo o Mantra do Ideal Escolhido. A sensação parou quando o amuleto foi
colocado."
11. Mathur voltou para Janbazar e contou a Rani a extraordinária maneira de adoração. A
devota Rani ficou encantada. Ela costumava vir ao templo de Dakshineswar e ouvir as canções
entoadas pelo Bhattacharya e havia se afeiçoado a ele. Na ocasião em que a imagem de Govinda
foi quebrada, ela ficou admirada ao ver sua inteligência inspirada pela devoção (III.5,6). Não
precisou de muito tempo para que ela compreendesse que era possível para uma pessoa como o
Mestre ter a graça da Mãe Universal. Mas ocorreu logo um fato que poderia ter abalado a fé da Rani
e de Mathur. Um dia a Rani foi ao templo para adorar a Mãe Divina e reverenciar a Deusa. Mas
enquanto ela estava externamente ligada à adoração, pensava ansiosamente no possível sucesso
ou fracasso de uma ação judicial pendente, ao invés de estar absorvida no serviço divino. O
Mestre, em êxtase estava sentado perto, cantando para ela, a seu pedido. Conhecendo o estado
mental da Rani, castigou-a e corrigiu-a, esbofeteando sua terna pessoa, exclamando: "Ah, esse
pensamento até aqui!" A Rani, uma aspirante espiritual pronta para receber a graça da Mãe
Universal, compreendeu a fraqueza de sua mente e arrependeu-se. Sua devoção ao Mestre aumentou
muito depois desse incidente. Mencionaremos todos esses fatos em detalhe em outro capítulo (Vol.
II, parte III, 5).
12. Antes que se passasse muito tempo, a companhia constante da Mãe Divina levou o
Mestre a um tal estado feliz de espírito que já não lhe era mais possível fazer os serviços diários e
ocasionais do templo. O Mestre costumava dar um exemplo de como, com o progresso espiritual do
aspirante, as ações prescritas pelas escrituras caem por si mesmas. Dizia: "A sogra permite à nora
comer de tudo e fazer todos os trabalhos até que ela conceba, mas assim que ela fica esperando
criança, começa; uma pequena diferença sobre alimento e trabalho. Mais tarde, quando estiver em
adiantado estado de gravidez, seu trabalho é muito reduzido. Quando gradualmente se aproxima o
parto, não lhe é dado nenhum trabalho porque algum mal poderia sobrevir ao feto, e por fim,
quando o bebê nasce, os dias são utilizados em cuidar somente dele." Assim também a renúncia
do Mestre à adoração exterior e aos serviços da Mãe Divina aconteceu naturalmente. Ele agora
não estava mais consciente do tempo conveniente para a adoração e outros serviços. Sempre
imerso em estados espirituais, servia a Mãe Universal quando e como desejava. Por exemplo, às
vezes oferecia comida antes de fazer a adoração ou, absorvido em meditação, esquecia-se
completamente da idéia de sua existência separada d'Ela e enfeitava-se com flores, pasta de
sândalo, etc., trazidos para adoração da Deusa. O próprio Mestre disse-nos, em diversas
ocasiões, que seus atos tomavam essa forma por causa da visão constante da Mãe Divina interna
e externamente. Disse-nos mais: “Sempre que ocorria qualquer diminuição em sua constante
experiência da presença da Mãe Divina e absorção n'Ela, enchia-o um sentimento pungente de
separação, que o fazia jogar-se violentamente no chão, esfregar seu rosto nele e encher a
vizinhança com altos lamentos. Ele lutava pela vida e seu alento quase parava. Não notava que
todo o corpo estava sendo cortado, machucado e coberto de sangue. Igualmente não era
consciente quando tropeçava no fogo ou caía na água. Em seguida, quando novamente tinha a visão
da Mãe, aquela atitude mental desaparecia. Sua face brilhava de alegria e tornava-se uma
pessoa completamente diferente.
13. Mathur permitiu que a adoração do templo fosse conduzida de qualquer maneira pelo
Mestre até atingir o estado acima descrito. Mas, vendo que era impossível fazer o culto daquela
maneira, resolveu fazer algumas modificações. Hriday disse: "Houve uma razão especial para
aquela decisão de Mathur. Um dia o Mestre levantou-se subitamente do assento do adorador, em
estado de êxtase e viu Mathur Babu e eu no templo. Pegou-me pela mão, fez-me sentar naquele
assento e disse a Mathur: 'Hriday de hoje em diante fará o culto. A Mãe diz que Ela aceitará seu
culto da mesma maneira que o meu.' O devoto Mathur aceitou as palavras do Mestre como uma
ordem da Mãe. Não podemos constatar a veracidade das palavras de Hriday, mas Mathur sabia
muito bem que era impossível ao Mestre fazer o culto e outros serviços, diariamente, na condição
mental em que se encontrava.
14. Já dissemos que a mente de Mathur sentiu-se atraída pelo Mestre desde a primeira vez
que o viu. Desde então havia tentado contornar todas as dificuldades em mantê-lo em
Dakshineswar. Quanto mais se familiarizava com as extraordinárias e nobres qualidades do
Mestre, mais ficava encantado com elas e provia de acordo com suas necessidades, olhando
com olhos afetuosos, sempre protegendo-o contra as opressões injustas dos outros. Eis um
exemplo: Mathur providenciou para que o Mestre tivesse diariamente bebida feita de xarope de açú-
car cande, pois sabia que o humor do vento era muito forte em seu corpo. Ele o protegia contra
todas as críticas e interferências de pessoas irrefletidas, quando sua adoração tomou aquele rumo
incomum, sob a influência de Ragatmika Bhakti. Em outra passagem (III.6) mencionamos alguns
exemplos dessa natureza, mas parece-nos que ele tinha em mente dúvidas sobre o estado do
Mestre, desde o dia em que esbofeteara a Rani Rasmani, para ensiná-la. Concluiu que o
Mestre sofria de insanidade mental. Incapaz de compreender o adiantado estado do Mestre,
Mathur, que tinha mente humana, parece, inferiu que havia nele uma combinação de
espiritualidade e insanidade; porque naquela época, fez com que o Mestre fosse tratado por
Gangaprasad Sen, o conhecido médico aiurvédico de Calcutá.
Pensando que o Mestre sofria doença física, Mathur não somente tomou todas as
providências para seu tratamento, mas tambem tentou confortá-lo, apresentando-lhes razões e
argumentos, para que ele controlasse sua mente e prosseguisse com as práticas espirituais. Já
descrevemos em outro lugar (III,6), como Mathur convenceu-se do engano cometido com o
Mestre depois do incidente que o levou a ver dois hibiscos, um vermelho e outro branco,
brotados no mesmo galho de um pé de hibiscos vermelhos.
Sabendo que era impossível ao Mestre fazer o serviço diário da Deusa, no templo,
Mathur fez nova mudança. Ramtarak Chattopadhyaya, primo do Mestre, viera ao templo à
procura de trabalho. Foi então nomeado para o culto da Deusa até que o Mestre se recuperasse.
Isso ocorreu em 1858.
15. O Mestre costumava chamar Ramtarak, Haladhari. Em diversas ocasiões o Mestre
nos contou muitas coisas a seu respeito. Haladhari era um bom erudito e Sadhaka, dedicado à
prática dos rituais das escrituras. Era versado no Bhagavata, Adhyatma-Ramayana e outros
textos sagrados, os quais lia diariamente. Embora dedicasse um amor maior a Vishnu do que à
Devi, não era adverso a essa ultima. Apesar de devoto de Vidhnu, não hesitou em aceitar o
encargo do culto da Mãe Divina, a pedido de Mathur. Antes que Haladhari aceitasse aquele
encargo, Mathur providenciou para que ele tivesse comida crua para cozinhar para si mesmo.
Disseram-nos que Mathur, no início, fez objeção e perguntou: "Por que? Ramakrishna, seu
primo, e Hriday, seu sobrinho, não tomam Prasada no templo?" O inteligente Haladhari
respondeu: "Meu primo está num exaltado estado espiritual. Culpas não lhe advém de forma
alguma, estou nesse estado por isso será reprovável se eu quebrar o princípio relativo à
comida." Mathur ficou satisfeito ouvindo essas palavras. Haladhari obtinha provisões cruas e
diariamente cozinhava para si mesmo, no Panchavati.
Embora Haladhari não tivesse qualquer aversão à Sakti, não era favorável a que se oferecesse
sacrifício animal à Deusa. Como era norma no templo oferecer sacrifício animal à Mãe Divina, por
ocasião dos festivais, ele não podia fazer o culto naqueles dias com alegria e zelo. Disseram que
ele vinha fazendo adoração por quase um mês quando, certo dia em que ele fazia seu Sandhya viu
a Deusa assumir uma forma terrível e ouviu-A dizer-lhe: "Levante-se e vá embora daqui. Você não
vai fazer o culto. Seu filho morrerá devido à oferenda de seu culto irreverente." Diz-se que ele
recebeu a notícia da morte do filho poucos dias depois desse incidente. Ele contou ao Mestre esses
acontecimentos e desde então parou de fazer o culto da Deusa. Por isso Hriday retomou o culto de
Kali e Haladhari o de Radha-Govinda. Soubemos desse acontecimento pelo irmão de Hriday,
Rajaram.
CAPÍTULO VIII
ASSUNTOS: 1. Cronologia do período de Sadhana. 2. Suas divisões principais. 3. Uma recapitulação das
experiências dos quatros primeiros anos de Sadhana. 4. O significado das Sadhanas do Mestre: comparando
suas experiências com as escrituras. 5. A analogia de Suka. 6. O Mestre praticou Sadhana para os outros. 7.
A realização segue o anseio verdadeiro. 8. A Sadhana do Mestre de Dasya-Bhava personificando Mahavir. 9. A
visão de Sita. 10. Plantando o Panchavati. 11. Prática de Hatha-Yoga. 12. A maldição de Haladharí . 13. A
mudança de opinião de Haladhari a respeito do Mestre. 14. O orgulho de Haladhari de sua erudição. 15.
Haladhari e a concepção de Kali. 16. Haladhari repreendendo o Mestre por quebrar as regras de castas. 17. A
crítica de Haladhari e a ordem divina para que o Mestre permanecesse em Bhavamukha. 18. Duração da
permanência de Haladhari . 19. A discussão sobre intoxicação divina do Mestre. 20. O erro de considerar essa
intoxicação como doença. 21. O comportamento do Mestre desaprova tal conclusão. 22. Primeiro encontro de
Vaishnavacharan com o Mestre. 23. O Mestre fazendo outros tipos de Sadhana. 24. Sua mente funcionando
como Guru. 25. lição de suas visões. 26. Suas visões jamais provaram ser falsas. 27. Um exemplo. 28. Noções
equivocadas da Rani Rasmani e de Mathur.
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
ASSUNTOS: 1. A séria doença da Rani Rasmani. 2. A execução do Ato Devottara e sua morte. 3. A visão por
ocasião de sua morte. 4. As apreensões derradeiras da Rani provaram ser verdadeiras. 5. As providências de
Mathur para o serviço do templo. 6. Os recursos de Mathur para ajudar o Mestre. 7. As idéias de Mathur e
outros sobre o Mestre. 8. Chegada da Bhairavi Brahmani. 9. Seu primeiro encontro com o Mestre. 10. A
conversa entre eles. 11. A visão dela no Panchavati. 12. A discussão sobre os Sastras no Panchavati. 13.
Porque a Bhairavi veio morar no ghat de Devamandal. 14. As razões de sua convicção a respeito do estado
de Encarnação do Mestre. 15. A visita do Pandit Vaishnavacharan a Dakshineswar.
1. O Mestre, após seu casamento, voltou de Kamarpukur para Dakshineswar. Depois desse
acontecimento, em 1861, dois fatos importantes ocorreram que, devido à sua profunda influência na
vida futura do Mestre, merecem ser detalhados em especial.
O primeiro foi a morte da Rani. Ela teve um ataque de disenteria pouco depois da chegada do
Mestre a Dakshineswar. Ele contou a alguns de nós que a Rani, certo dia, levou uma queda, que deu
lugar à febre, dor no corpo, indigestão e outras complicações que gradualmente levaram à disenteria. A
doença, aos poucos, tomou um rumo fatal.
2. Possuidora de inúmeras qualidades nobres, a Rani havia consagrado o templo de Kali na
quinta-feira, 31 de maio de 1855; e para a continuação perpétua do serviço das divindades, havia
comprado no dia 29 de agosto daquele mesmo ano, três propriedades, no distrito de Dinajpur, por
duzentos e vinte seis mil rupias.1 (1 Queixa na Alta Corte de Justiça no. 308 de 1872, Puddomoni Dasee contra
Jagadamba Dasee, cita o seguinte Feito de Doação, executado por Rani Rasmanni: "De acordo com o último desejo de meu
marido... eu, em 18 de Jaistha 1262 B.S. (31 de maio de 1855) estabeleci e consagrei a Thakurs... e com o propósito de
continuar o seva, comprei três lotes dos Zemindars no Distrito de Dinajpur, no dia 14 Bhadra 1262 (29 de agosto de 1855) por
Rs. 226,000.") Embora tivesse em mente fazer doação da propriedade, até então não havia executado o
ato formal de doação. Vendo que a hora de sua morte estava se aproximado rapidamente, tornou-
se ansiosa em fazê-lo. Das quatro filhas da Rani, a segunda e a terceira, Kumari e Karunamayi,
morreram antes da consagração do templo de Kali. Portanto somente as outras duas filhas, a
mais velha, Padmamani e a mais nova, Jagadamba, estavam presentes em seu leito de morte.
Soubemos que quando chegou a minuta do ato de doação do templo de Kali, redigida de acordo
com a vontade da Rani, ela pediu as duas filhas para assiná-la, concordando assim, com os
termos do ato e desse modo, evitando todas as possibilidades de brigas futuras entre seus
descendentes, relativas à doação. Jagadamba assinou o documento, mas Padmamani não, apesar
dos repetidos pedidos da Rani, na hora da morte. Por isso a Rani não teve paz em seu leito de
morte. Como não restava outra alternativa, a Rani assinou2 (2 O Ato de Doação, datado de 18 de fevereiro de
1861, foi executado pela R a n i Rasmani; ela reconheceu a execução do mesmo diante de J. F. Watkins, promotor, Calcuta. Essa
doação foi aceita como válida por todas as partes na ação judicial Alípor no. 47 de 1872, Puddomoni contra Jagadamba e também,
quando aquela ação judicial (no. 308) foi revista depois da contestação de 15 de julho de 1881.) o ato de doação, no dia 18
de fevereiro de 1861 pensando: "A vontade da Mãe Divina será feita", e passou para a esfera da
Devi, na noite seguinte.
3. O Mestre dizia que a Rani Rasmani voltou para casa em Adiganga no Kalighat, poucos
dias antes de sua morte. Antes de falecer, viu muitos lampiões acesos à sua frente e subitamente
exclamou: "Tirem todos, não gosto deles. Minha Mãe, a Mãe do Universo está chegando agora;
todos os locais ficaram iluminados com o brilho de Sua sagrada pessoa. (Um pouco mais tarde)
Mãe, Tu chegaste? Mas Padma não assinou; o que vai acontecer, Mãe?" Assim falando a virtuosa
Rani entrou num estado tranqüilo e sereno e imediatamente caiu no sono no colo da Mãe, sono que
não tem despertar. Foi, também, levada às areias do Ganga e altos uivos3 (3 A Devi é representada
cercada de chacais. Assim o uivo dos chacais é considerado um bom augúrio.) dos chacais podiam ser ouvidos em
todos os lugares próximos.
4. A Rani estava muito apreensiva na hora da morte com o futuro do templo, que lhe era
mais caro do que sua vida e sua angústia por esse motivo era mais aguda do que a dor física
provocada pela doença fatal. A subseqüente história das brigas e litígios entre os netos justificou
esses temores da previdente Rani. Vê-se nos documentos oficiais, que a propriedade do templo
está agora hipotecada por um pouco menos de um laksh de rupias4 (4 O débito da hipoteca da propriedade
é de Rs.50,000; juros pagáveis trimestralmente, são de 876-0-0; custos da Justiça, já estipulados chegam a Rs. 20,000,
sem taxas.) para custear as pesadas despesas do litígio. Quem poderá dizer algo sobre o futuro do
templo - se alguma coisa dele permanecerá como resultado daquelas querelas, além da simples
memória, como um exemplo da piedade ímpar e louvável da Rani?
5. Desde a fundação do templo de Kali em Dakshineswar, Mathuranath Biswas, o genro
mais novo da Rani, sobressaiu-se como seu braço direito na administração da propriedade. Ele já
estava familiarizado com a situação financeira da doação do templo e desde o dia da
consagração empenhou-se ativamente na organização dos serviços e sua execução, segundo
os desejos da Rani. Por isso foi ele quem continuou a administrá-lo depois da morte da Rani.
Com a influência exaltadora de Sri Ramakrishna havia dominado por completo a mente de
Mathur algum tempo antes, o serviço da Mãe, em Dakshineswar, evidentemente não foi afetado
depois da morte da Rani.
6. Já falamos muitas vezes ao leitor sobre o relacionamento especial de Mathur com o
Mestre. Por isso é desnecessário mencioná-lo novamente. É suficiente dizer que a posição de
Mathur, como a única autoridade na administração do templo depois do súbito falecimento da
Rani, deu-lhe uma grande oportunidade de ajudar o Mestre em suas Sadhanas tântricas, que se
prolongaram por um longo período. Quem pode dizer se essa autoridade de Mathur sobre o
gerenciamento da propriedade não foi ocasionado pela vontade da Mãe Divina, para ajudar Seu
filho, o Mestre? Porque, vemos que daquela época em diante, até sua morte, Mathur
empenhou-se de todo o coração no serviço do Mestre. Ter fé firme numa pessoa por mais de
onze longos anos e passar a vida em exaltado estado espiritual são possíveis somente pela graça
de Deus. Fica-se convencido da boa sorte de Mathur pelo fato que, a cada dia sua fé no Mestre
aumentava, em vez de dar livre curso a paixões ao ponto de perder a cabeça pela aquisição do
poder total e único sobre a vasta propriedade da Rani.
7. Até agora ninguém, a não ser os Sadhakas de Deus, puderam formar qualquer idéia a
respeito do elevado estado espiritual do Mestre. A maioria das pessoas pensava que ele estava
louco, pois diziam que ele não sabia discernir completamente o que era bom e o que era mau
para si mesmo; não era atraído pelos objetos de prazer; jamais havia feito mal a alguém, vivendo
satisfeito dentro de si, passando os dias repetindo os nomes de Deus - Hari, Rama ou Kali - um
de cada vez. Viram também que ele não podia melhorar sua situação mundana, nem poderia
jamais fazê-lo, mesmo sendo favorito da Rani e de Mathur Babu - cuja influência era suficiente
para fazer as pessoas aumentarem suas fortunas, sob todos os aspectos. Porém uma coisa eles
todos compreenderam: que, embora aquele louco fosse uma pessoa inútil, mesmo assim, seus
olhos brilhantes, seu comportamento extraordinário, sua voz doce, seu modo de falar terno e sua
maravilhosa presença de espírito tinham tal atração e encanto para todos, que ele poderia,
sem vacilar, aproximar-se e fazer-se benquisto até daquelas pessoas ricas e respeitáveis das
quais ninguém se aventurava aproximar-se. Embora as pessoas em geral e os funcionários do
templo de Kali em particular, tivessem formado uma idéia um tanto estranha do Mestre, Mathur
tinha dele uma visão bem diferente. Hriday contou-nos que Mathur havia dito: "A razão pela
qual ele parece louco é que ele teve a graça da Mãe de todos."
8. Logo após a morte da Rani, ocorreu outro acontecimento importante na vida do Mestre.
Havia um lindo jardim de flores na espaçosa margem do Ganga, a oeste do templo de Kali.
Como o jardim era muito bem tratado, as árvores e trepadeiras cresciam exuberantes incorporando-
se maravilhosamente à beleza do lugar e enchendo todos os espaços com o perfume das flores.
Embora o Mestre não fizesse o culto da Mãe Divina naquela época costumava apanhar
diariamente flores naquele jardim, fazer guirlandas e enfeitá-La com suas próprias mãos. Ainda
hoje, no meio do jardim há um lance de escadas que vai do Ganga ao templo, através de um lindo
pórtico aberto e um Ghat de tijolos para uso das mulheres, no lado nordeste da margem, ao lado
do Nahabat, ao norte do templo de Kali. As pessoas costumavam chamar aquele Ghat, Bakul-
Ghat, por causa de uma grande árvore bakul que se espalhava próxima dali.
Um dia o Mestre estava apanhando flores naquele jardim, quando um bote chegou ao ghat
de Bakul e ancorou. Uma bela senhora, vestida como Bhairavi, roupa ocre e folgada, e cabelo
ondulante, desceu com uma pilha de livros na mão e caminhou na direção do pórtico, no amplo
Ghat, ao sul. Embora a Bhairavi houvesse passado da juventude, ninguém poderia considerá-la
avançada em idade porque a graça e a beleza da juventude ainda eram visíveis em sua pessoa. O
próprio Mestre nos disse que a Bhairavi tinha então, quarenta anos. Não podemos dizer até onde o
Mestre, à primeira vista, previu o futuro relacionamento, mas é verdade que sentiu grande
atração por ela, como as pessoas sentem quando vêem alguém cuja vida está ligada à sua
própria. Assim que o Mestre viu a Bhairavi, de longe, voltou a seu quarto, chamou Hriday e pediu-
lhe que fosse buscar a Sannyasini para ele. Hriday hesitou e disse: "A senhora é uma estranha.
Por que viria?" O Mestre respondeu, "Peça-lhe em meu nome e ela virá prontamente." Hriday
disse que não foi pequena a surpresa que sentiu ao ver a ansiedade do Mestre em falar com uma
mulher que lhe era completamente estranha; jamais o havia visto comportar-se assim.
Contudo Hriday sabia que ele devia somente obedecer a seu tio insano. Portanto foi ao
pórtico, viu a Bhairavi sentada e disse-lhe que seu tio materno, que era devoto de Deus, pedia-
lhe que fosse vê-lo. Hriday ficou ainda mais admirado ao ver que a Bhairavi imediatamente
levantou-se para acompanhá-lo, sem qualquer pergunta.
9. Quando a Bhairavi chegou ao quarto do Mestre e viu-o, foi tomada de alegria e
espanto, derramou lágrimas de felicidade e disse, "Ah, meu filho, você está aqui! Eu sabia que
você vivia num lugar às margens do Ganga e há tanto tempo venho procurando-o; finalmente
o encontrei". O Mestre lhe disse: "Como soube de mim, mãe?" A Bhairavi respondeu: "Há muito
tempo sabia, pela graça da Mãe Universal, que teria de encontrar três de vocês. Já encontrei dois
em Bengala Ocidental. Hoje encontro-o aqui."
10. O Mestre sentou-se então ao lado da Bhairavi e falando alegremente, como uma
criança, com o coração aberto à sua mãe, continuou narrando suas visões extraordinárias - a
perda da consciência do mundo exterior enquanto falava sobre Deus, a sensação de queimadura
em seu corpo, a falta de sono, outras mudanças em seu corpo, devido às quais era tomado
como louco. Repetidamente perguntava-lhe: "Mãe, por que essas coisas estão acontecendo
comigo? Será que fiquei realmente louco? Será que fui tomado de uma doença terrível por
chamar a Mãe com todo o coração?" Ouvindo essas palavras do Mestre, como mãe, ora agitada, ora
alegre, com o coração desmanchando-se em compaixão, consolava-o, dizendo-lhe repetidamente:
"Quem o chama de louco, meu filho? Não é loucura. Você está em estado de Mahabhava e é por isso
que todas essas coisas lhe estão acontecendo. É dado às pessoas comuns compreenderem o estado
em que se encontra? Em sua ignorância, dizem todos os tipos de coisas. Tudo isso aconteceu a
Sri Radharani e a Sri Chaitanya, o Grande Senhor. Está tudo relatado nas escrituras devocionais.
Tenho esses livros comigo. Vou lê-los para você e provar que esses estados ocorreram com aqueles
que verdadeiramente chamaram por Deus no passado e assim o fazem no presente." Hriday
simplesmente estava perplexo ao ver a Bhairavi Brahmani e seu tio comportando-se e
conversando um com o outro como parentes próximos ou amigos de longa data.
Quando mais tarde o Mestre achou que o dia estava avançando, deu à Bhairavi
Brahmani, como desjejum, frutas, raízes, manteiga, açúcar cande etc., todos Prasad da Devi; e
sabendo que a Brahmani, inspirada por amor espiritual maternal por ele, não tomaria nada sem
antes alimentá-lo, ele primeiro dividiu com ela um pouco de todas aquelas coisas. Depois que ela
prestou reverência às divindades e tendo tomado seu desjejum, apanhou da dispensa do templo um
pouco de farinha, arroz etc., como Bhiksha, para fazer oferenda cozida ao símbolo de pedra de
Raghuvir que ela usava no pescoço. Ela mesma cozinhou no Panchavati.
11. Em seguida, quando terminou de cozinhar, colocou comida, bebida etc., diante de
Raghuvir e ofereceu-a a Ele. Logo meditou em seu Ideal Escolhido. Ao aprofundar sua
concentração entrou em Samadhi e teve uma visão extraordinária. De seus olhos escorriam
lágrimas abundantes de amor e ele ficou completamente esquecido do mundo. Sentindo uma
atração irresistível para ir ao Panchavati naquele momento, o Mestre entrou em êxtase e não
sabendo exatamente o que fazia, começou como alguém hipnotizado, a comer a comida oferecida
pela Brahmani a seu Ideal Escolhido. A Brahmani retomou a consciência normal depois de algum
tempo, abriu os olhos para ver aquele comportamento encantador do Mestre, que estava em
Bhavasamadhi, fora da consciência do mundo. Vendo que tudo correspondia à sua visão, ela foi
tomada de felicidade e espanto e os pêlos de seu corpo eriçaram-se. Descendo à consciência
normal, o Mestre sentiu-se constrangido com o que havia feito e disse a Brahmani: "Quem sabe,
mãe, porque perco o autocontrole e faço essas coisas?" A Brahmani então, como mãe,
tranqüilizou-o dizendo: "Fez bem, meu filho. Não é você que fez isso, mas o Uno dentro de você.
Ele fez o que sempre faz. Do que vivenciei durante a meditação, cheguei à conclusão correta de
quem fez e sinto que não necessito mais prestar adoração cerimonial; minha adoração finalmente
atingiu seu objetivo." Assim falando, a Brahmani, sem hesitar, partilhou dos restos da comida
que havia sido deixada pelo Mestre, como Prasad sagrado do seu Ideal Escolhido. Tendo obtido a
presença concreta e permanente de Raghuvir no corpo e na mente do Mestre, ela agora, com
muito cuidado, jogou no Ganga o emblema de Raghuvir, que tão ternamente havia adorado
todos aqueles dias, derramando lágrimas de amor e de alegria, como havia feito num estado
semi-consciente de absorção espiritual.
12. A afeição mútua e atração experimentadas à primeira vista pelo Mestre e pela
Brahmani, aumentavam diariamente. Com o coração transbordante de afeição espiritual e
maternal, a Sannyasini permaneceu em Dakshineswar. O Mestre e a Brahmani empenhavam-se
diariamente em conversas espirituais no Panchavati e costumavam ficar tão absorvidos nelas,
que nenhum deles notava o tempo passar. O Mestre falou francamente à Brahmani a respeito de
seus estados e visões espirituais e de vez em quando fazia-lhe diversas perguntas. A Bhairavi
Brahmani resolvia todos aqueles problemas, com a ajuda de livros sobre os Tantras. Às vezes,
também, ela lia versos do Chaitanya Bhagavata, do Chaitanya Charitamrita e de outros livros
devocionais que mostravam os sinais produzidos pelo forte aparecimento do amor divino nos
corpos e mentes das Encarnações de Deus, dissipando assim, as dúvidas do Mestre. Assim fluía
uma corrente de felicidade divina no Panchavati.
13. Seis ou sete dias passaram-se, quando pareceu evidente ao arguto Mestre que não era
bom manter a Brahmani ali, embora nada houvesse de censurável. Incapazes de compreender
aquele relacionamento puro, as pessoas mundanas, dadas à luxúria e ao ouro, poderiam começar
a falar mal do caráter da pura mulher. Logo que esse pensamento surgiu, mencionou-o à
Brahmani. A Brahmani também sentiu que era razoável e deixou o templo de Kali, decidindo morar
em algum lugar na vizinhança e vir diariamente ver o Mestre, durante algum tempo.
Na direção norte do templo, no vilarejo de Dakshineswar, na margem do Ganga, está o
Devamandal Ghat. A Brahmani foi para lá, onde passou a morar5.( 5 Hriday dizia: "O próprio Mestre
aconselhou a Brahmani a morar em Devamandal Ghat. Enviou-a à casa de Mandal. Logo que ela ali chegou, foi recebida
pela esposa do último Navinchandra Niyogi. A piedosa senhora não somente deu-lhe permissão para morar no quarto do
Ghat, pelo tempo que quisesse, como também deu-lhe cama, uma porção de arroz, grãos, ghee e outros alimentos." ) Ela
passeava pelo vilarejo, tornando-se querida das senhoras do lugar, por suas nobres qualidades.
Por isso não teve qualquer problema de casa e comida e podia encontrar-se com o Mestre
diariamente, sem medo da crítica das pessoas. Costumava visitar o templo de Kali todos os dias,
durante algum tempo e conversar com ele, como antes. Ela armazenava vários tipos de
provisões, pedidas às mulheres do vilarejo e cozinhava no templo, para oferecê-las ao Mestre
(III,8).
14. O que ouviu das experiências, visões e estados espirituais do Mestre levou a Brahmani
à firme convicção de que todos aqueles estados eram produzidos por seu extraordinário amor a
Deus. Quando viu que ele sentia felicidade suprema ao cantar a glória do Senhor e que muitas
vezes perdia a consciência em Bhavasamadhi enquanto conversava com Deus, teve a certeza de
que ele não era um Sadhaka comum. Ao constatar tudo isso, lembrou-se várias vezes das
sugestões encontradas no Chaitanya Charitamrita, no Chaitanya Bhagavata e em outros livros do
vaishnavismo bengali, de que Chaitanya, o Grande Senhor, novamente tomaria um corpo e
desceria à terra, para a liberação do homem. A Brahmani, grande erudita que era, comparou
minuciosamene a conduta e o comportamento do Mestre com os de Chaitanya, relatados
naqueles livros e encontrou grande semelhança. Viu manifestado no Mestre, como em
Chaitanya, o poder de despertar a espiritualidade nos outros pelo toque, durante o
Bhavasamadhi. Assim também, guirlandas, pasta de sândalo etc. que, segundo relatos, curaram a
constante sensação de queimadura no corpo de Chaitanya que sofria com as dores da separação de
Deus, foram também aplicadas ao Mestre, com o mesmo objetivo, obtendo igual resultado (IV,1).
Por isso a lembrança da divina visão a respeito de Sri Ramakrishna, que a Brahmani havia tido
no Panchavati no primeiro dia de sua chegada, bem como os acontecimentos ainda mencionados
convenceram-na profundamente que Chaitanya e Nityananda haviam voltado novamente na época
atual e estavam morando no corpo e na mente do Mestre a fim de disseminarem o amor a Deus
para a liberação dos Jivas. O Mestre, ao dirigir-se ao vilarejo de Sihar, conforme já mencionamos,
viu dois rapazes de tenra idade, saindo do seu corpo. A Brahmani ouviu do próprio Mestre sobre
essa visão e ficou ainda mais convencida de sua conclusão sobre ele. Disse: "Chaitanya está se
manifestando nesta época na 'envoltura' de Nityananda."
A Sannyasini Brahmani não esperava favor de ninguém neste mundo; não tinha medo de ser
condenada ou ridicularizada se sua conclusão a respeito de Sri Ramakrishna fosse comentada. Por
isso, indagada a esse respeito, não hesitou em expressar plenamente seu ponto de vista,
primeiro ao Mestre e em seguida, aos outros. Certo dia o Mestre estava sentado no Panchavati
com Mathur e Hriday. Ao longo da conversa o Mestre falou a Mathur sobre a fé da Brahmani a
seu respeito e disse: "Ela disse que os sinais que estavam manifestados nas Encarnações de Deus
estão aqui neste corpo e nesta mente. Ela leu muitas escrituras e tem consigo muitos livros."
Quando Mathur ouviu isso, riu e disse: "Pai, deixe que ela diga o que quiser; as Encarnações de
Deus não podem ser mais do que dez. Por isso, como suas palavras podem ser verdadeiras? Mas
não há dúvida que a Mãe Kali conferiu Sua graça ao senhor."
Estavam assim conversando, quando viram a Sannyasini vindo em sua direção. Mathur
perguntou ao Mestre: "É ela?" O Mestre respondeu: "Sim". Viram que ela havia conseguido em
algum lugar, um prato cheio de doces e estava chegando com ele na mão, num raro estado
espiritual, caracterizado pela introversão e esquecimento do mundo exterior. Com o coração
transbordante de amor, como Yasoda, a mãe de Krishna, que tinha zelo em alimentar seu Gopala,
ela caminhava em direção ao Mestre, com o prato de doces na mão. Quando se aproximou deles, viu
Mathur Babu e assim, cuidadosamente se conteve e estendeu o prato para Hriday, para que ele
desse ao Mestre. Apontando para Mathur, o Mestre então lhe disse: "Mãe, eu estava lhe
contando o que a senhora havia falado sobre mim, a que ele respondeu que as Encarnações de
Deus não podem ser mais do que dez." Mathur saudou a Sannyasini nesse meio tempo e admitiu
que realmente havia levantado objeção. A Brahmani deu-lhe suas bênçãos e respondeu: "Por que?
O Bhagavata não fala a princípio de vinte e quatro Encarnações e em seguida, de inúmeras
outras? Além disso, o novo advento do Grande Senhor Chaitanya está claramente mencionado
nos livros vaishnavas, e entre ele e Sri Chaitanya podem-se observar grandes semelhanças em
suas experiências e caráter." A Brahmani manteve assim sua posição e disse que se um bom
erudito do Bhagavata e dos livros dos instrutores vaishnavas bengalis fosse consultado, só
poderia confirmar a verdade do que ela havia dito. Ela estava disposta, disse, a sustentar sua
posição na presença de um erudito. Não sabendo o que dizer, Mathur permaneceu em silêncio.
15. Todas as pessoas, importantes ou não, no templo de Kali, ficaram aos poucos sabendo
da convicção extraordinária da Brahmani sobre o Mestre. Isto ocasionou grande alvoroço entre
elas. Mencionamos em detalhe em outro lugar, o resultado desse sensacional desenvolvimento
(III,5,6;IV,1). Por isso será suficiente mencionar aqui somente que, embora a Brahmani tivesse
subitamente elevado o Mestre à posição de Deus e lhe prestado a reverência devida a Deus, na
presença de todos, ele permaneceu a mesma criança simples da Mãe Divina, intocada pelo
egoísmo e pelas mudanças resultantes. Mas ele queria conhecer as opiniões das pessoas bem
versadas nos Sastras sobre a conclusão da Brahmani e insistiu, como um menino, para que Mathur
convidasse os Pundits a virem a Dakshineswar. Como resultado desse pedido, o Pundit
Vaishnavacharan veio ao templo de Kali. Descrevemos em outro lugar (IV,1), como a Brahmani
ao encontrar-se com Vaishnavacharan, não somente manteve sua posição diante dele, mas também
o fez apoiá-la...
CAPÍTULO XI
SADHANA TÂNTRICA
ASSUNTOS: 1. O entendimento correto da Brahmani a respeito do Mestre. 2. Porque ela lhe pediu para fazer
Sadhana Tântrica. 3. Como a Brahmani pôde pensar em ajudá-lo, uma Encarnação. 4. A ansiedade dela
para agir assim. 5. O Mestre pedindo permissão da Mãe Divina. 6. O zelo do Mestre na Sadhana. 7.
Construção do assento no Panchavati. 8. Vendo a Deusa na mulher. 9. Renúncia à aversão. 10. O
comportamento do Mestre por ocasião das Sadhanas Tântricas. 11. A história de Ganesha. 12. A volta ao redor
do universo por Ganesha e Kartika. 13. A singularidade do Mestre em sua Sadhana Tântrica. 14. O propósito
divino por detrás de tudo isso. 15. A implicação do sucesso do Mestre sem associação com uma mulher. 16.
Objetivo das práticas tântricas. 17. Outra razão para o sucesso do Mestre sem associação com uma mulher. 18.
Suas experiências durante a Sadhana Tântrica. 19. Repartindo a comida tomada pelos chacais e cães. 20.
Penetração pelo fogo do conhecimento. 21. O despertar da Kundalini. 22. Visão da Brahmayioni. 23. Anahata
Dhvani. 24. Inutilidade dos poderes miraculosos. 25. A conversa do Mestre com Swami Vivekananda a esse
respeito. 26. O poder ilusório da Mãe Universal. 27. A beleza de Shodasi, a Mahavidya. 28. Resultados da
Sadhana Tântrica. 29. Esplendor da pessoa do Mestre. 30. A Bhairavi Brahmani, uma parte de Yogamaya.
1. A Brahmani não chegou à conclusão acima sobre a natureza incomum do Mestre somente
pela razão e dedução. O leitor pode recordar-se do que ela disse ao Mestre, em seu primeiro
encontro com ele, que tinha que entrar em contato com três pessoas, Sri Ramakrishna e mais duas
outras e ajudá-las em seu desenvolvimento espiritual. Ela havia recebido ordem da Mãe do
Universo muito antes de ter tido o privilégio de encontrar o Mestre. Está, portanto, claro que foi sua
percepção interior, resultante de suas práticas espirituais, que a trouxe a Dakshineswar e
ajudou-a a entender o Mestre. Com o passar dos dias, à medida que a associação da Brahmani
com o Mestre se tornava cada vez mais íntima, teve a avaliação exata do papel que ela teria em sua
Sadhana e a natureza da assistência que deveria dar-lhe. Portanto, agora não passava o tempo
em simplesmente mudar a concepção errônea que as pessoas tinham a respeito dele, mas obrigava
o Mestre a praticar diversas disciplinas de acordo com as injunções estritas das escrituras, para
que ele, tendo uma visão perfeita da Mãe Universal e dotado de Sua graça e favor infinitos se
tornasse firmemente estabelecido em Seu próprio poder divino, isto é, em sua verdadeira natureza.
2. A Brahmani, ela mesma uma aspirante adiantada, ao ver o Mestre e conversar com ele,
não levou muito tempo para compreender que o Mestre não poderia livrar-se das dúvidas sobre
seu próprio estado, porque havia alcançado, até então, a visão da Mãe Divina somente com a ajuda
de sua extraordinária devoção, ao invés de seguir estritamente os tradicionais caminhos dos
instrutores espirituais. Por isso surgia de vez em quando na mente dele, a dúvida se suas visões da
Mãe Divina, eram ou não o resultado de um desarranjo do cérebro, ou se suas extraordinárias
mudanças físicas e mentais eram apenas sintomas de uma doença maligna. A Brahmani pensou no
assunto e induziu o Mestre a seguir o caminho da disciplina prescrita pelos Tantras. Ela sabia que,
assim que o Mestre seguisse o caminho da disciplina trilhado pelos Sadhakas do passado e tivesse
experiências dos estados espirituais semelhantes àqueles experimentados por eles,
compreenderia que esses seus estados não eram produzidos por qualquer doença. Quando ele visse
relatado, nos Tantras, que determinados resultados eram produzidos pela execução de ritos
particulares e quando ele próprio conseguisse aqueles resultados pela prática daqueles ritos, teria
a firme convicção de que, pela disciplina, o homem alcança experiências incomuns ao elevar-se a
planos de consciência, no campo interior, cada vez mais altos e que seus estados físicos e mentais
haviam sido produzidos somente daquela maneira. O resultado seria que, por mais incomuns que
fossem as experiências que ele pudesse vir a ter no futuro, ele as consideraria verdadeiras e iria em
direção a seu objetivo sem ser perturbado por elas. A Brahmani sabia que as escrituras, por esta
razão, aconselhavam que o aspirante sempre comparasse as experiências de sua própria vida com as
palavras do Guru e com os Sastras, para ver se concordavam ou não.
3. Por que a Brahmani, pode-se perguntar, empenhava-se em fazer o Mestre praticar
aquelas disciplinas, embora soubesse que ele era uma Encarnação Divina? Ou será que aquele que
compreende a glória das Encarnações de Deus aceita a conclusão de que elas são perfeitas e que as
disciplinas são completamente desnecessárias para elas? Respondemos que isso teria sido
verdadeiro, se a Brahmani sempre estivesse consciente somente da grandeza transcendente do
Mestre e livre da afeição pessoal por ele. Mas esse não foi o caso. Já dissemos que a Brahmani
sentiu desde o primeiro encontro, uma afeição maternal pelo Mestre. Não há na terra nada mais
poderoso do que o amor para obliterar numa pessoa, a consciência de poder sobre o objeto de seu
amor e impeli-la a fazer o que considera bom. Portanto não há dúvida que foi sua afeição sincera
por ele que impeliu a Brahmani a induzir o Mestre a fazer aquelas práticas espirituais, embora
conhecesse a grandeza do Mestre. O mesmo ocorreu nas vidas de todas as Encarnações. Apesar
das pessoas ligadas a esses seres serem às vezes tomadas por temor pelo conhecimento de seus
extraordinários poderes espirituais, elas, como se vê, esquecem-se de tudo no momento seguinte e,
encantadas pela atração de seu objeto de amor, sentem-se contentes simplesmente em oferecer-
lhes o amor de seus corações, buscando o seu bem-estar. De maneira semelhante, a Brahmani,
embora maravilhada com os freqüentes e extraordinários êxtases e com a manifestação de
poderes no Mestre, esquecia sua importância imediatamente, cega pelo amor maternal. Não é
necessário dizer que a afeição filial autêntica do Mestre por ela e sua absoluta dependência e fé nela
não tiveram um papel pequeno ao levantar ondas ternas, embora austeras, de afeto maternal no
coração da Sannyasini. Foi esse afeto maternal que a fez esquecer-se dos poderes dele e impeliu-a
a suportar problemas infindáveis para tornar o Mestre feliz de todas as maneiras, protegendo-o das
tiranias dos outros e ajudando-o em sua Sadhana naquela fase de sua vida.
4. Quando há oportunidade de ensinar um discípulo extraordinariamente brilhante, surge,
naturalmente, no coração do Guru, um contentamento e uma satisfação supremos. A Brahmani
jamais havia sonhado que, no mundo espiritual, poderia nascer, na época atual, uma pessoa tão
elevada e competente como o Mestre. Por isso podemos muito bem imaginar a grande alegria que
deve ter enchido o seu coração, ao ter a oportunidade de ensiná-lo. Por isso não é de se espantar
que ela estivesse tão ansiosa para que o Mestre experimentasse, em pouco tempo, todos os
resultados de seus estudos e austeridades.
5. Ouvimos do próprio Mestre que ele havia perguntado à Mãe Divina sobre a justeza e
necessidade das disciplinas, de acordo com os Tantras, antes de começar a praticá-las e que as
havia feito com Sua permissão. Portanto, não foi simplesmente a ansiedade e a persuasão da
Brahmani que o fizeram levar a cabo aqueles exercícios espirituais, mas também sua percepção
interior, nascida da Sadhana. Essa percepção fez com que sentisse no fundo do seu coração que a
oportunidade de alcançar o conhecimento imediato da Mãe Divina recorrendo aos métodos das
escrituras, havia chegado. Assim, a mente concentrada do Mestre, agora, adiantara-se
rapidamente, movida pelo poder da aspiração, ao longo do caminho da Sadhana ensinada pela
Brahmani. Não nos é possível, mortais comuns, sentir a medida e a intensidade daquela ansiedade
porque, onde está aquela tranqüilidade e aquele direcionamento de nossas mentes para um só
ponto, distraídos como somos por muitas e para muitas direções? Onde está em nós aquela
coragem sem limites, para mergulharmos de cabeça no mar de consciência profunda e tocar seu
fundo, em vez de sermos iludidos pelas faltas de suas ondas superficiais representadas pelos
objetos da consciência normal? Onde está em nós o poder de erradicar o apego a todas as coisas do
mundo, incluindo nossos próprios corpos e mergulhar com total abandono, nas profundezas da
interiorização espiritual para realizar o que o Mestre nos recomendava repetidamente ao dizer:
"Mergulhem profundamente, mergulhem nas profundezas de vocês mesmos." Soubemos que
tomados pela angústia de seu coração, o Mestre esfregava o rosto nas margens de areia do Ganga,
no Panchavati, dizendo: "Mãe, revela-Te." e isso foi assunto de um dia ou dois? Persistiu inabalável e
os dias passavam. Aquelas palavras apenas entram em nossos corações, mas não ocasionam ecos
correspondentes em nossos corações. E como pode ser diferente? Temos a fé infantil do Mestre,
que tudo consome, na existência da Mãe Divina e na oportunidade de alcançar Sua visão
renunciando a tudo e chamando-A com a mais profunda ansiedade do coração?
6. Um dia, enquanto vivia em Kassipur, o Mestre surpreendeu-nos ao dar uma pequena
indicação da medida e da intensidade de seu anseio espiritual na época da Sadhana. Não podemos
dizer se seremos capazes de dar ao leitor a mais fraca pintura do que sentimos então. Vamos, contudo,
tentar.
Nós testemunhamos, com nossos próprios olhos, o desejo ardente do Swami Vivekananda
pela realização de Deus - como, o despertar espiritual lhe veio quando ia depositar a taxa para o
exame de Direito: como, tomado por intenso zelo e esquecido do mundo, correu pela cidade como
louco, descalço e coberto somente por uma simples peça de roupa, até o lugar onde se
encontrava o Mestre e obteve sua graça ao revelar-lhe a angústia de seu coração; como, desde
então, dia e noite passava o tempo em Japa, meditação, canções devocionais e estudo
espiritual; como, devido ao entusiasmo sem limite pela Sadhana, seu coração normalmente
terno tornou-se duro, ficando bastante indiferente ao sofrimento da mãe e dos irmãos; e como,
avançando com devoção integral no caminho da Sadhana, determinado por seu preceptor, teve
visão após visão, culminando por desfrutar a felicidade do Nirvikalpa Samadhi, após período de três
ou quatro meses. Tudo isso ocorreu diante de nossos próprios olhos e deixou-nos atônitos.
Profundamente satisfeito, o Mestre costumava exaltar a devoção extraordinária do Swami e sua
ansiedade e entusiasmo pelas práticas espirituais. Um dia, naquela época, o Mestre comparou o
amor do Swami e entusiasmo pela Sadhana, com os seus próprios e disse: "A devoção e entusiasmo
de Narendra são realmente extraordinários, mas comparados com a ansiedade daqui (mostrando a
si próprio) por ocasião da Sadhana, o seu é absolutamente comum. Não é nem um quarto
daquele." Pode imaginar, ó leitor, a surpresa que sentimos com aquelas palavras do Mestre?
Assim o Mestre aceitou a sugestão da Mãe Universal, esqueceu tudo o mais e mergulhou
na Sadhana. A erudita e magistral Brahmani esforçou-se bastante para conseguir, de diversos
lugares, as coisas especificamente necessárias a certos ritos particulares e deu ao Mestre instruções
relativas à sua aplicação por ocasião da Sadhana.
7. Os crânios1 (1 Agora ouve, Ó Rainha dos Devas, a melhor Sadhana com a ajuda dos crânios, com a qual o Sadhaka
alcança a meta suprema que é a Própria Devi, Ó Aquela de rosto excelente; "os três crânios" são os de um homem, de um búfalo
e de um gato ou são "três crânios somente de um homem e as cabeças de chacal, de cobra, de cachorro e de um touro e, entre
elas, a cabeça de um homem. Caso contrário, somente os cinco crânios de um homem são chamados, Ó Poderosa, em conjunto, "os
cinco crânios"... E um altar, de um palmo quadrado, deve ser feito. Ou um altar de quatro cúbitos quadrados, Ó Devi, deve ser
construído." A 5" Patala-Yogini-Tantra.) de cinco seres mortos, inclusive o de um homem, foram trazidos de
algum lugar, longe do Ganga; e dois altares 2
(2 Os Sadhakas geralmente fazem um altar sobre as cinco cabeças
enterradas e sentadas sobre ele, praticam Japa, meditação etc. Mas o Mestre não falou-nos de "dois assentos de crânios". Os
três crânios humanos foram enterrados debaixo do altar, debaixo da árvore vilva e cinco crânios de cinco espécies de geres
mortos, enterrados debaixo daquele, no Panchavati. Em pouco tempo tornou-se perfeito em suas Sadhanas. Jogou aqueles
crânios no Ganga e derrubou ambos os altares. Foram feitos "dois assentos" porque o assento dos "três crânios" era
favorável à Sadhana ou porque o lugar sob a árvore vilva era, naquela época, completamente solitário e portanto, mais
adequado para as Sadhanas. Ou pode ser que nenhum fogo para o Homa pudesse ser aceso sob a árvore vilva, devido à
proximidade do depósito da "Companhia" (depósito do Governo da Índia)) propícios às Sadhanas Tântricas foram
construídos, um sob a árvore vilva, situado no limite norte do templo e o outro, no Panchavati,
plantado pelo próprio Mestre. Sentado em qualquer um desses 'crânios-assentos', segundo a
necessidade, o Mestre passava o tempo em Japa, meditação, etc. Esse Sadhaka extraordinário e
sua guia não tiveram consciência, durante alguns meses, de quantos dias e quantas noites se
passaram. Mestre costumava dizer:3 (3 Damos aqui, de uma forma interligada, o que ouvimos do Mestre por diversas
vezes.) "Durante o dia a Brahmani ia a diversos lugares, longe do jardim-templo, apanhava e trazia
artigos raros prescritos pelos Tantras. Colocando-os sob a árvore vilva ou no Panchavati à noite, ela
me chamava, ensinava-me a usar tais coisas e ajudava-me a fazer a adoração da Mãe Divina
segundo as regras prescritas com sua ajuda, pedindo por fim, para mergulhar em Japa e meditação.
Eu fazia tudo de acordo, mas tinha que fazer pouco Japa; porque, mal passava o rosário uma vêz,
mergulhava completamente em Samadhi e realizava os resultados próprios daqueles ritos. Assim
não havia limite para minhas visões e experiências, todas extraordinárias. A Brahmani fez-me
executar, uma após a outra, todas as disciplinas prescritas nos sessenta e quatro Tantras principais,
todas difíceis de fazer e, ao tentar praticá-las, muitos Sadhakas fracassaram. Mas eu passei por todas
elas com sucesso, pela graça da Mãe.
8. "Numa ocasião vi que a Brahmani havia trazido - ninguém sabia de onde - uma linda
mulher, em plena juventude e disse-me: 'Meu filho, adora-a como a Devi.' Quando a adoração
terminou ela disse: 'Sente-se em seu colo, meu filho, e faça Japa.' Fui tomado de medo, chorei
amargamente e disse à Mãe: 'Ó Mãe, Ó Mãe! Mãe do Universo! Que ordem é essa que Tu dás
àquele que tomou refúgio absoluto, em Ti? Tem Teu fraco filho o poder de ser tão
imprudentemente arrojado?' Mas logo que disse isso, senti como se estivesse tomado por alguma
força desconhecida e um vigor extraordinário encheu meu coração. Logo que acabei de me sentar
no colo da mulher, pronunciando os Mantras, como hipnotizado, inconsciente do que estava fa-
zendo, mergulhei completamente em Samadhi. Quando retomei à consciência, vi a Brahmani
servindo-me com muito cuidado, tentando trazer-me à consciência normal. Ela disse: 'O rito foi
completado, meu filho; outros, com muita dificuldade conseguem controlar-se sob tais
circunstâncias e então terminam o rito com Japa nominal somente por pouco tempo; mas você
perdeu toda a consciência e esteve em Samadhi profundo.' Ao ouvir isso tranquilizei-me e comecei
a saudar a Mãe repetidamente, com o coração grato por me ter permitido passar ileso por aquela
prova.
"Noutra ocasião vi que a Brahmani havia cozinhado peixe no crânio de um cadáver e feito
Tarpana. Pediu-me para fazer o mesmo e tomar aquele peixe. Assim o fiz e não senti qualquer
aversão.
9. Mas no dia em que a Brahmani trouxe um pedaço de carne em decomposição e pediu-me
que a tocasse com a língua depois do Tarpana, senti aversão e disse: Isso pode ser feito?' Assim
indagada, ela respondeu: 'O que há de mal, meu filho? Veja como faço.' Assim, colocou um
pedaço em sua boca e disse: 'A aversão não deve ser cultivada,' e colocou, novamente, um
pouco diante de mim. Quando a vi agir assim, a idéia da terrível forma Chandika da Mãe Universal
surgiu em minha mente e pronunciando repetidamente 'Mãe', entrei em Bhava-samadhi. Não senti
então aversão quando a Brahmani colocou o pedaço em minha língua.
10. "Tendo assim me iniciado no Purnabhisheka, a Brahmani ordenou-me fazer,
diariamente, os numerosos ritos tântricos. Agora não me recordo de todos os detalhes, mas lem-
bro-me do dia em que pude, pela graça da Mãe, assistir, com perfeita equanimidade, o prazer
supremo de um casal de amantes, nada mais vendo do que o maravilhoso jogo do Divino. A mente
em vez de descer à vizinhança dos sentimentos humanos comuns elevou-se cada vez mais alto,
mergulhando, por fim, em Samadhi profundo. Depois de retomar à consciência normal, ouvi a
Brahmani dizer: 'Você alcançou o objetivo desejado de uma Sadhana tântrica muito difícil e
estabeleceu-se no estado divino. Esta é a última Sadhana da atitude 'heróica' de adoração.'
"Pouco tempo depois fiz a adoração da figura feminina segundo os ritos tântricos, com a ajuda
de uma outra Bhairavi, no hall aberto de música do templo, na presença de todos, durante o
dia. Quando terminei saudei-a segundo as prescrições dos Sastras. Esse foi o último rito
relacionado com a atitude heróica de adoração, que completei daquela maneira. Mesmo que
minha atitude mental a respeito de todas as mulheres, isto é, a de um filho para com sua mãe
tenha permanecido inalterada durante toda a Sadhana tântrica, assim também jamais pude
experimentar uma gota de vinho naquela ocasião. A simples menção da palavra Karana4
(vinho) (4 Em bengali a palavra Karana significa tanto 'causa' como 'vinho'; assim pela lei de associação, a menção de
um leva ao pensamento do outro, de vinho à Causa Universal.) inspirava em mim a experiência da Causa
Universal e eu me perdia nela completamente. De forma semelhante, logo que ouvia outras
palavras daquele tipo, a Causa do Universo apresentava-Se diante de mim e eu entrava em
Samadhi.
11. Um dia, enquanto ainda vivia em Dakshineswar, o Mestre mencionou sua atitude
filial em relação a todas as mulheres e contou-nos uma história dos Puranas. A história fala
quão firmemente o conhecimento da relação filial com todas as mulheres, sem exceção
estabeleceu-se no coração de Ganesha, o chefe dos iluminados. Antes de nos contarem aquela
história, não tínhamos muita devoção e reverência por esse Deus barrigudo com cara de
elefante, com suor escorregando de suas têmporas. Mas quando ouvimos a história dos lábios
santos do Mestre, ficamos convencidos que Ganesha era realmente digno de ser adorado antes
de todos os deuses, como de fato o é. A história é como se segue:
Um dia Ganesha, com tenra idade, enquanto brincava, viu um gato em quem, por
brincadeira, bateu, feriu e torturou de diversas maneiras. O gato conseguiu fugir com vida.
Quando Ganesha se acalmou e foi até sua mãe, viu com surpresa, marcas dê pancada em
várias partes do sagrado corpo da Devi. Muito desgostoso em ver aquele estado de sua mãe, o
menino perguntou-lhe a razão. A Devi respondeu-lhe tristemente: "Você mesmo é a causa desta
minha triste condição!" Mais triste do que surpreso, o dedicado Ganesha disse com lágrimas
nos olhos: "Que estranho! Mãe, quando bati na senhora? Não me recordo que Sua criança,
ignorante como é, tenha cometido qualquer ato mau pelo qual a senhora tenha que sofrer
insultos das mãos de alguém."
Parvati Devi, cuja forma externa densa é o universo, disse: "Procure recordar se você
bateu em algum ser vivo hoje." "Sim", disse Ganesha, "Eu bati num gato há pouco tempo."
Ganesha pensou que o dono do gato havia batido em sua mãe. A mãe de Ganesha tomou o
rapaz arrependido em seus braços e consolou-o, dizendo: "Não é assim, meu filho, ninguém
bateu em meu corpo; mas fui eu quem assumiu a forma de um gato; é por isso que você está
vendo as marcas de suas pancadas em mim. Você agiu assim sem saber; portanto, não se
lamente; mas lembre-se, de hoje em diante, que todos os Jivas do mundo que têm forma
feminina são partes de mim e os que têm forma masculina são partes de seu pai. Não há outras
pessoas ou coisas no mundo a não ser Siva e Sakti." Ganesha teve fé naquelas palavras e
guardou-as, como relíquias, no santuário do seu coração. Quando atingiu a idade de se casar,
não consentiu em fazê-lo porque assim, teria que se casar com sua mãe. Ganesha permaneceu
então um Brahmacharin toda a vida e tornou-se o mais importante entre os seres iluminados,
porquanto sempre teve em seu coração a certeza de que o universo era da natureza de Siva e
Sakti, Brahman e Seu Poder.
12. Depois dessa narrativa, o Mestre contou-nos a seguinte história que também, revela
a grandeza do conhecimento de Ganesha; mostrando certa vez o valioso colar de pedras
preciosas em seu pescoço a Ganesha e Kartika, Parvati Devi disse-lhes: "Darei este colar àquele
que andar em volta do Universo, compreendendo os quatorze mundos e voltar para mim, em
primeiro lugar." Kartika, Comandante do exército celestial, tendo como veículo um pavão,
sorriu com certo desdém, pensando no corpo gordo, pesado e barrigudo do irmão mais velho e
na pouca força e no movimento vagaroso do rato, sua montaria, ficando absolutamente certo de
que o colar já era seu. Imediatamente começou a fazer a volta em torno do universo. Muito
tempo depois da partida de Kartika, o tranqüilo Ganesha deixou seu lugar calmamente e vendo,
com os olhos do conhecimento, que o universo era formado de Siva e Sakti, localizado nos
corpos de Hara e Parvati, circulou-os de maneira graciosa, adorou-os e sentou-se. Muito tempo
depois, Kartika voltou. Então satisfeita com o conhecimento e a devoção de Ganesha, Parvati Devi
colocou o colar de pedras preciosas afetuosamente em seu pescoço como símbolo de Sua graça.
Assim mencionando a grandeza do conhecimento de Ganesha e sua relação filial com
todas as mulheres sem exceção, o Mestre disse: "Minha atitude com as mulheres é a mesma; é
por isso que tive a visão da forma maternal da Causa do Universo em minha esposa e adorei-a,
inclinando-me a seus pés."
13. Não ouvimos falar de nenhum outro Sadhaka, em qualquer época que, mantendo
intacta aquela atitude filial para com todas as mulheres, tenha adotado as disciplinas tântricas
segundo as regras prescritas para o modo heróico de adoração. Seguindo essa maneira heróica, os
aspirantes têm, ao longo do tempo, tomado uma companheira por ocasião de sua Sadhana. Como
não vêem qualquer aspirante da atitude heróica abrir mão dessa prática, as pessoas têm a firme
convicção de que a realização do objetivo desejado da disciplina, isto é, alcançar a graça da Mãe
Divina, é impossível sem essa prática. Tal idéia conferiu às escrituras conhecidas como Tantras,
uma reputação desfavorável.
14. Somente o Mestre, a Encarnação dessa época, veio estabelecer uma nova tradição a
esse respeito, quando não manteve a companhia de uma mulher nem mesmo em sonho.
Através da prática do Mestre da adoração heróica, apesar de manter a atitude filial para com
todas as mulheres, um propósito oculto da Mãe é revelado.
15. O Mestre disse: "Não levei mais de três dias para ser bem sucedido em qualquer das
disciplinas. Quando escolhia uma determinada disciplina e pedia importunadamente à Mãe Divina,
com ardente ansiedade no coração, para realizar seu objetivo, Ela benignamente coroava-me de
sucesso, dentro do curto período de três dias." Está claramente provado que a presença de uma
mulher não é auxiliar indispensável para aquelas práticas, porquanto o Mestre foi bem sucedido
naquelas disciplinas num período bem curto, sem utilizar uma mulher. Se os Sadhakas vêm
fazendo assim, é somente conseqüência da fraqueza e da falta de autocontrole de sua parte. A
promessa dos Tantras que, pela prática contínua de seus ritos com uma companheira, um Sadhaka
pode eventualmente alcançar o estado divino ou Divyabhava (estado acima da natureza do
sexo), é somente uma concessão feita ao homem fraco e um exemplo de catolicidade e cuidado
para tornar sua disciplina acessível a todos. Jamais deve ser interpretada como prescrição
obrigatória.
16. O objetivo comum a todas as práticas tântricas é dar ao aspirante, através do
autocontrole e perseverança, a certeza de que vista, gosto e outras experiências dos sentidos que
tentam os seres humanos e acarretam-lhe repetidos nascimentos e mortes, impedindo-o de alcançar
o conhecimento pela realização de Deus - nada mais são do que formas verdadeiras de Deus.
Levando em consideração as diferenças na capacidade de autocontrole e no grau de certeza
alcançado pelos aspirantes, os Tantras lidaram com três tipos diferentes de adoração, a saber: o
"animal" ou Pasu, o "heróico" ou Vira e o "divino" ou Divya 5 (5 O que se segue é importante para a classificação.
Pasu ou o homem de mentalidade animal é aquele que não tem muito autocontrole. Provavelmente sucumbe aos objetos
dos sentidos se for exposto a eles. Tem, portanto, que seguir estritamente, a prática da 'virtude enclausurada', isto é, de
evitar expor-se aos objetos tentadores dos sentidos. As Sadhanas para ele são baseadas nesse princípio. O Vira ou
Sadhaka heróico é aquele cujo poder de autocontrole está altamente desenvolvido, e cuja convicção nos ensinamentos dos
Tantras, de que todas as manifestações da natureza - nobres, belas e sublimes, bem como as degradantes, tentadoras,
terríficas e repulsivas - são expressões da Mãe Divina é desenvolvido o suficiente para que ele se mantenha impassível mesmo
quando exposto a elas. É colocado nessas situações como teste de sua força e não, para sucumbir a elas sob o disfarce de
piedade. O Divya ou personagem divino é aquele que provou sua força e visão interior e cuja natureza dos sentidos foi
completamente divinizada. Vê Deus em tudo.) e aconselham-nos a adorar Deus adotando o primeiro, o
segundo ou o terceiro modo, de acordo com cada aptidão. Ao longo do tempo as pessoas
esqueceram-se quase completamente que as práticas tântricas frutificariam somente se os
aspirantes observassem um austero autocontrole, como base daquelas disciplinas. Ao invés,
cederam à sensualidade grosseira devido à sua fraqueza, mas sem o conhecimento adequado, as
pessoas, contudo, começaram a culpar os Tantras pelos abusos de seus seguidores. O sucesso do
Mestre, mesmo mantendo a atitude filial em relação a todas as mulheres através dessas práticas,
foi de grande benefício tanto para os aspirantes sinceros, como para as escrituras tântricas - para os
primeiros, ao mostrar-lhes o verdadeiro caminho para alcançarem o objetivo de suas vidas e
para as escrituras, mostrando sua verdadeira glória e estabelecendo, firmemente sua autenticidade.
17. Embora o Mestre tenha praticado as disciplinas, segundo os mistérios tântricos durante
três ou quatro anos, parece que ele não nos disse qual a ordem em que foram praticadas nem
nos deu qualquer relato detalhado a esse respeito. Mas a fim de encorajar-nos no caminho da
Sadhana, falou-nos sobre esses eventos em diversas ocasiões e, segundo as necessidades
individuais, fez com que alguns raros entre nós fizéssemos aquelas práticas. A Mãe do universo,
parece, tornou o Mestre completamente familiarizado com esse caminho naquela época, porque se
ele não tivesse tido as experiências incomuns das práticas tântricas, não teria sido capaz de
detectar os estados mentais dos devotos, de diferentes naturezas, que vieram a ele, no final de
sua vida e de conduzí-los no caminho da Sadhana. Mostramos, em outro lugar (III,1,2), uma
pequena indicação de como o Mestre guiou, ao longo dos diversos caminhos de disciplinas, os
devotos que vieram a ele e tomaram refúgio a seus pés. Um estudo daquela parte mostrará
quão razoável é o que falamos acima.
18. Além de nos falar assim sobre as práticas tântricas, o Mestre às vezes contava muitas de
suas visões e experiências. Iremos agora descrever algumas delas. Uma mudança total ocorreu
em sua natureza interior por ocasião de sua Sadhana tântrica.
19. Quando disseram-lhe que a Mãe Divina às vezes assumia a forma de um chacal e que o
cachorro era o transporte da Bhairava, passou a considerar os restos dos alimentos tomados por
esses animais como puros e sagrados e tomou-os, sem hesitar, como Prasad.
20. Oferecendo, como oblações aos pés de lótus da Mãe Divina, seu corpo, sua mente,
sua vida e tudo o mais, o Mestre via-se incessantemente penetrado interna e externamente, pelo
fogo do conhecimento.
21. O Mestre viu nessa época o despertar da Kundalini prosseguindo até o alto da cabeça.
Todos os lótus, do Muladharâ, o centro básico, até o Sahasrara de mil pétalas na cabeça, ergueram-
se e desabrocharam plenamente. Logo que aconteceu isso, um após o outro, teve experiências
estranhas e maravilhosas (III.2). Viu, por exemplo, que um ser celestial e luminoso atravessava o
Sushumna, o Canal Central, até aquele lótus subindo e os fazia florescer ao tocá-los com sua língua.
22. Certa vez, quando Swami Vivekananda sentou-se em meditação, apareceu diante
dele, um muito grande e maravilhoso triângulo de luz que ele sentiu como se estivesse vivo.
Um dia vindo a Dakshineswar, falou ao Mestre a esse respeito e o Mestre disse: "Muito bem,
você viu o Brahmayani; enquanto eu praticava Sadhana sob a árvore Vilva também o vi. E o que
é mais, observei-o dando à luz a inúmeros mundos a cada momento."
23. Por essa época o Mestre ouviu, surgindo naturalmente e sem cessar, de todos os
lugares do universo, o Anahata Dhvani, o grande som Pranava, que é formado de todos os
diferentes sons do universo. Alguns entre nós, ouviram do próprio Mestre que naquela época,
ele podia compreender a linguagem dos animais.
24. Nesse período, o Mestre viu a Própria Mãe Divina na forma feminina. No final desse
tempo o Mestre viu-se diante de poderes miraculosos, como o de tornar-se tão pequeno como o
átomo. Um dia foi, a pedido de Hriday, até a Mãe Universal para saber a respeito da
propriedade de usá-los e ouviu que deveriam ser rejeitados e descartados como fezes. O
Mestre disse que desde então, soava-lhe repugnante ouvir o termo 'poder miraculoso'.
25. Estamos nos recordando de algo a respeito da posse pelo Mestre, dos 'oito poderes
miraculosos'. Um dia chamou particularmente Swami Vivekananda ao Panchavati e disse-lhe:
"Olhe. Tenho os bem conhecidos 'oito poderes miraculosos.' Há muito tempo, entretanto,
decidi que jamais faria uso deles; nem sinto necessidade de usá-los. Você terá muitas coisas a
fazer, como pregar religião; decidi dá-los a você; aqui estão." Em resposta o Swami lhe disse:
"Senhor, eles me ajudarão de algum modo a realizar Deus?" O Mestre respondeu que não,
mas que em certos trabalhos, como pregar religião, poderiam ser úteis. O Swami, portanto,
recusou-se a aceitá-los, para a imensa alegria do Mestre.
26. Surgiu na mente do Mestre, nessa época, o desejo de ver o poder de ilusão da Mãe
do universo. Em conseqüência viu uma figura feminina de extraordinária beleza surgindo das
águas do Ganga e dirigindo-se, com um andar elegante, ao Panchavati. Em seguida, viu que
aquela figura estava em adiantado estado de gravidez. Pouco tempo depois ela deu à luz a um
lindo menino, em sua presença e logo amamentou-o com muito carinho; viu que a mesma
figura assumiu uma forma muito cruel e assustadora. Tomando o bebê em sua boca, mastigou-o
e engoliu-o. Depois entrou nas águas do rio do qual havia surgido.
27. Além das visões acima mencionadas, não havia limite para o número de formas da
Devi, desde a de dois braços até a de dez braços, que viu naquele período. Assim também
algumas conversaram com ele e instruiram-no. Embora todas aquelas formas da Mãe fossem
extraordinariamente belas, disse-nos que não podiam comparar-se à de Sri Rajarajeswari,
também chamada Shodasi. O Mestre dizia: "Vi, numa visão, a beleza da pessoa de Shodasi, que
se diluía e se espalhava em volta, iluminando todos os lugares." Naquela ocasião o Mestre teve
visões de várias formas masculinas como Bhairava e também, dos seres celestiais. Desde a
época de sua Sadhana tântrica houve tantas visões extraordinárias e experiências na vida do
Mestre dia após dia, que está além de nossa capacidade enumerá-las todas. É desnecessário
perder mais tempo mencionando-as.
28. Ouvimos do próprio Mestre que desde a época da Sadhana Tântrica, o orifício de seu
Sushumna foi completamente aberto e sua natureza transformada permanentemente na de um
menino. Desde a última parte desse período ele não mais pôde conservar a roupa, o cordão
sagrado etc., em seu corpo por nenhum momento, apesar de seus esforços. Não sentia onde,
nem quando, todas essas coisas caíram. Não é necessário dizer que esse estado era causado
pela ausência da consciência do corpo, devido ao fato de sua mente permanecer sempre
absorvida nos pés de lótus da Mãe Divina. Soubemos pelo próprio Mestre que, ao contrário dos
Paramahamsas comuns, ele jamais foi um monge errante ou andou nu — e que esse estado lhe
veio naturalmente com a perda gradual da consciência corpórea. O Mestre dizia que, no final
dessas disciplinas, seu conhecimento da não dualidade em relação a todas as coisas aumentou
tanto que sentia que tudo aquilo que considerava insignificante desde a infância parecia-lhe
agora ser tão puro quanto as coisas mais puras. Afirmava: "As folhas do sagrado basil (Tulasi)
e as da Sajna (vara de tambor)6 (6 Hyperanthena moranga.) pareciam-me igualmente sagradas."
29. Assim também o esplendor da pessoa do Mestre aumentou tanto em poucos anos
desde aquela época que ele tornou-se o centro de atração, o tempo todo. Como era destituído
de egoísmo, orou à Mãe Divina várias ocasiões para libertá-lo daquela beleza celestial e
implorando dizia: "Mãe, não tenho a menor necessidade dessa beleza exterior; toma-a em seu
lugar e dá-me beleza espiritual interior." Já falamos ao leitor, em outro lugar (III.7,8) que essa
sua opção foi atendida mais tarde.
30. Assim como a Brahmani ajudou o Mestre em sua Sadhana Tântrica, assim o Mestre
ajudou a Brahmani mais tarde a desenvolver sua vida espiritual. Já demos uma indicação de que,
sem a ajuda do Mestre ela não poderia ter se estabelecido no estado divino. O nome da
Brahmani era Yogeswari que, o Mestre dizia, era uma parte de Yogamaya (poder místico do
Senhor).
Alcançando os poderes divinos pela Sadhana Tântrica, o Mestre veio a tomar
conhecimento de outra coisa. Soube, pela graça da Mãe Divina, que muitas pessoas viriam até
ele nos últimos dias para cumprirem o objetivo de suas vidas, isto é, atingir a iluminação
espiritual. Ele falou sobre isso a Hriday e também a Mathur, que era extremamente dedicado a
ele. Mathur respondeu: "Ótimo, Pai! Vamos todos nós nos divertir em sua companhia."
CAPÍTULO XII
1. Sri Yogeswar, a Brahmani, chegou ao templo de Kali depois da morte da Rani Rasmani,
no final de 1861. Desde então até 1863, o Mestre aplicou-se, de forma particular, às disciplinas
tântricas. Mathur Babu teve o raro privilégio e a bênção de servir o Mestre nos dias em que ele
mergulhou nas práticas daquelas disciplinas. Anteriormente, Mathur já havia firmemente se
convencido, ao testar o Mestre repetidamente, de seu extraordinário amor a Deus, seu maravilhoso
autocontrole e sua ardente renúncia e desapego. Da mesma maneira suas experiências com o
Mestre nesse período de Sadhana Tântrica estabeleceram-no na convicção de que a Devi, seu
Ideal Escolhido, havia ficado satisfeita em manifestar-Se a ele na pessoa do Mestre e aceitado seus
serviços (III.6) e também, protegê-lo em tudo, acompanhando-o a todos os lugares, manter sua
influência e autoridade sobre a propriedade e derramar sobre ele honrarias e reconhecimento, à
medida que o tempo passava. Ele assim pensava porque, nessa época, foi bem sucedido no que
quer que empreendesse e sentiu a mão protetora do Divino na companhia amiga do Mestre. Por
isso não é de se admirar que Mathur tenha gasto prodigamente largas somas de dinheiro,
fornecendo os artigos necessários à Sadhana do Mestre e ao serviço de Deus e outros atos
virtuosos, segundo os desejos do Mestre.
Como a manifestação dos poderes espirituais do Mestre aumentavam dia após dia com as
práticas tântricas, Mathur, que havia tomado refúgio a seus pés sagrados, sentiu que seu ardor,
sua coragem e sua força aumentavam de forma correspondente. Sua experiência nesse período
foi exatamente a de um devoto que, movido pela fé de que a graça e a proteção de Deus estão
nele, sente um influxo de força extraordinária e de entusiasmo em seu coração. Mas, de
mentalidade mundana como era, com predominância de Rajas, Mathur ficou muito satisfeito em
servir o Mestre e praticar atos virtuosos. Jamais desejou penetrar fundo no campo espiritual.
Apesar dessa limitação, estava totalmente convencido de que o Mestre era a única fonte de
sua força, de sua inteligência e de sua esperança, que somente ele era o esteio e o apoio
neste mundo e no próximo e que ele estava na raiz de suas prosperidade mundana e de sua
posição exaltada.
2. Os empreendimentos que Mathur levou avante nessa ocasião provaram que agora ele
se considerava plenamente seguro em seus negócios mundanos, pela graça do Mestre. Lemos
no livro: "A História da Vida de Rani Rasmani", página 236, que Mathuranath realizou uma
cerimônia religiosa, muito dispendiosa, chamada Annameru, consistindo de uma "montanha de
alimentos" e de outras necessidades, em 1864 em Dakshineswar. Hriday disse que além de
uma grande soma de ouro, prata, etc., ele doou aos pundits uma grande quantidade de arroz e
de sésamo, nomeando Sahachari, a famosa cantora, para cantar as glórias de Deus e Rajnayan
para cantar as canções do Chandi, convertendo durante algum tempo o templo de Kali num
festival. Hriday também disse que Mathur viu o Mestre entrar repetidamente em êxtase ao
ouvir as canções profundamente devocionais apresentadas por aqueles cantores. De fato
tomou os vários graus da reação apreciativa do Mestre como sendo a medida dos talentos
deles e assim deu-lhes como recompensa, xales preciosos, sedas e centenas de rupias.
3. Atraído pela humildade e outras virtudes de Padmalochan, o então principal pundit
da corte do Maharaja de Burdwan, o Mestre foi vê-lo pouco antes da doação da "montanha de
alimentos" feita por Mathur. O Mestre nos disse que Mathur queria muito levar o famoso erudito ao
encontro dos Pundits, reunidos durante aquela cerimônia religiosa e fazê-lo aceitar presentes.
Sabendo que o Pundit era extremamente dedicado ao Mestre, Mathur enviou-lhe um convite através
de Hriday. Mas naquela ocasião Padmalochan não pode aceitar o convite respeitoso de Mathur.
Narramos em detalhe, em outra ocasião (III.2), a história de Padmalochan.
4. O Mestre sentiu-se atraído pelas disciplinas das doutrinas Vaishnavas depois de haver
realizado as Tântricas. Encontramos, como resultado de nossas pesquisas, algumas razões
óbvias para esse fato. Primeiro, a dedicada Bhairavi Brahmani era muito versada nas disciplinas
dos Panchabhavas (os cinco estados espirituais), mencionados nas escrituras Vaishnavas e
havia passado longos períodos para dominar um ou outro deles. Já mencionamos anteriormente
que ela alimentava o Mestre com a mesma atitude espiritual afetuosa com a qual Yasoda
costumava alimentar o filho, Gopala. Portanto é provável que ela tenha encorajado o Mestre a
fazer as disciplinas das escrituras Vaishnavas. Em segundo lugar era natural que o Mestre,
nascido numa família Vaishnava, tivesse amor pelas disciplinas e estados espirituais dos
Vaishnavas. Ele havia tido grandes oportunidades para cultivar reverência por aquelas Sadhanas, que
prevaleciam em Kamarpukur e vizinhanças. Em terceiro lugar e a razão mais importante contudo, foi
que havia no Mestre uma mistura extraordinária das naturezas masculina e feminina. Sob a influência
de uma delas, ele parecia ser o mais austero e valoroso dos homens, destemido como um leão, que
não sossegava sem investigar tudo até o fundo. Sob a influência da outra, tornava-se possuído por
uma maravilhosa natureza feminina, terna mas severa, dedicando-se a ver e a pesar as coisas e as
pessoas no mundo por meio de seu coração. Tornava-se, por natureza, profundamente apegado
ou desapegado de certas coisas e podia, com facilidade, suportar infortúnios infindáveis quando seu
coração respondia, mas ao contrário das pessoas comuns, nada podia fazer quando sentia que não
devia.
5. Nos primeiros quatro anos das práticas espirituais, o Mestre não aceitou qualquer coisa
ajuda externa e empreendeu as disciplinas das atitudes de Santa (calma), Dasya (servidão) e às
vezes também, o de Sakhya (camaradagem) como a de Sridam, Sudama e outros amigos de
Krishna em Vraja sendo bem sucedido em todas elas. O leitor talvez se recorde que o Mestre
recorreu ao Dasya Bhava e passou algum tempo no mesmo estado de Mahavir, para quem
Ramachandra era tão caro como a vida e que teve a visão de Sita, a filha de Janaka, sofredora a
vida inteira. Por isso, agora dedicou a mente às disciplinas das duas atitudes mais importantes, a
de Vatsalya (amor dos pais) e a de Madhura (amor conjugal), praticadas pelos instrutores
Vaishnavas. Nessa época ele se considerava amiga da Mãe Divina, dedicando-se a abaná-La com
um Chamara. Vestido com roupas femininas e cercado de senhoras, prestou reverência à Devi
durante Seu culto de outono na casa de Mathuranath em Calcutá e devido à sua absorção nos
sentimentos femininos, muitas vezes esquecia-se que tinha um corpo masculino (III,7). Quando
começamos a visitar os sagrados pés do Mestre em Dakshineswar, muitas vezes víamos sua
natureza feminina manifestar-se. Mas na época de que estamos falando, essa natureza não
predominava por muito tempo. E não havia necessidade, porque tornou-se fácil para ele, pela
graça da Mãe Divina, morar à vontade em qualquer um dos estados, de homem ou de mulher,
ou da não-dualidade, fonte de todos os estados. Ele então permanecia, para o bem dos devotos
visitantes, em qualquer um desses estados particulares, enquanto o espírito o impelia a fazê-lo.
6. Para avaliar adequadamente a grande importância do seu período de Sadhana, temos que
levar em consideração suas grandes qualidades, inerentes por nascimento, a maneira pela qual ele
reagia às experiências quotidianas ao longo da vida e a natureza da mudança que nele se operou
com a tempestade espiritual que se abateu sobre ele nos últimos oito anos de suas Sadhanas. Ele
nos disse que, até sua chegada ao templo de Kali em Dakshineswar em 1855, e ainda durante
algum tempo depois, acreditava sinceramente que levaria, como seus ancestrais, a vida de um
estrito e virtuoso chefe de família. Como era livre de egoísmo desde o nascimento, jamais lhe
passou pela cabeça que era superior a qualquer pessoa a esse respeito ou que possuísse
qualidades mais nobres do que as de qualquer um. Mas sua extraordinária especialidade começou a
manifestar-se quando penetrou no campo da ação. Sentiu como se um Poder Divino desconhecido o
acompanhasse a todo momento, pintando em cores sombrias a transitoriedade e inutilidade das
visões, gostos, etc., diante de seus olhos, forçando-o a orientar sua vida para uma direção
oposta. Buscador inegoísta da verdade pura, o Mestre logo acostumou-se a viver no mundo sob
a inspiração daquele Poder. É claro que lhe teria sido difícil agir dessa maneira se tivesse um forte
desejo de possuir qualquer objeto de prazer do mundo.
7. O que dissemos ficará claro se nos recordarmos do comportamento Mestre ao longo de
sua vida, em todos os campos. Ele não deu continuidade aos estudos quando compreendeu que o
objetivo dos Brahmanas de adquirir conhecimento era somente, "fardo de arroz e plantano", em
outras palavras, ganhar dinheiro. Aceitou o cargo de sacerdote, pensando que seria bom tratar dos
negócios mundanos; mas logo compreendeu que o objetivo de adorar Deus era algo bem diferente,
isto é, vê-Lo e n'Ele viver; logo tornou-se louco para realizá-Lo. Sabia que a realização de Deus
dependia de um perfeito autocontrole e embora casado, absteve-se de qualquer relacionamento
sexual com sua esposa no corpo, mente e fala. Compreendeu que ninguém pode ter confiança
perfeita em Deus se armazenar para uso futuro e imediatamente retirou de sua mente a idéia de
guardar até mesmo coisas triviais, para não falar de acumular ouro e outros metais preciosos.
Exemplos como esses poderiam ser facilmente multiplicados. Quando consideramos esses fatos,
torna-se claro quão pouco sua mente sofreu as influências das tendências diversas enraizadas, que
produzem ilusões nas mentes das pessoas. O poder do Mestre de captar idéias e praticá-las era tão
forte que nenhuma tendência adversa podia resistir e fazê-lo desviar-se do caminho.
8. Além disso, desde a infância, o Mestre foi um Srutidhara, pessoa de memória retentiva
extraordinária, que podia repetir palavra por palavra, na ordem correta, o que havia lido somente
uma vez, podendo guardá-lo para sempre. O leitor já conhece como ele em sua infância,
juntamente com os amigos, costumava ensaiar nos campos e nas pastagens de Kamarpukur, as
canções, Yatras e histórias do Ramayana, do Mahabharata e outros trechos, depois de tê-los ouvido
somente uma vez. Vemos, assim, que o Mestre entrou na vida de Sadhaka com três qualidades
raras - uma memória com poderes extraordinários, verdade e sinceridade de objetivo que não se
detinha sem antes pôr em prática uma idéia ou princípio que tivesse aceito como verdadeiro e
desejado pela mente. É difícil para os aspirantes comuns adquirirem essas qualidades na mesma
extensão, mesmo depois de uma vida inteira de esforço. Não é, portanto, de se admirar que o
Mestre tenha alcançado, em pouco tempo, grande sucesso em sua vida espiritual. Se ficamos
admirados em saber que ele foi bem sucedido em cada uma das disciplinas, mesmo em somente
três dias, é porque não compreendíamos nem um pouco sua constituição mental fora do comum.
9. O leitor compreenderá melhor ao mencionarmos alguns acontecimentos da vida do
Mestre. No começo de sua prática espiritual, logo que o Mestre discriminou entre o real e o irreal e
jogou no Ganga algumas moedas com um punhado de terra, repetindo "rupia-terra, terra-rupia", o
apego ao ouro, que penetra até o fundo do coração humano, foi erradicado para sempre de sua
mente. Mal havia acabado de limpar com as próprias mãos os lugares abominavelmente sujos, em
contato com os quais as pessoas normalmente só se sentiriam limpos e purificados com um banho,
sua mente abandonou o egoísmo resultante da consciência de ser um Brahmana de nascimento e
ele ficou para sempre convencido de que não era de forma alguma superior àquelas pessoas,
consideradas intocáveis pela sociedade. Logo que ficou convencido de que era filho da Divina
Mãe e que todas as "mulheres eram partes d'Ela"1, (1Chandi,11.6 ) foi-lhe impossível considerar
qualquer mulher como não sendo a expressão da Própria Mãe Divina, nem pôde pensar em ter
qualquer relacionamento conjugal com quem quer que fosse. Quando se pondera sobre esses
exemplos, sente-se claramente que o Mestre não poderia ter alcançado tais resultados se não
tivesse tido um poder extraordinário de captar as idéias e pô-las em prática. O motivo pelo qual não
conseguimos acreditar totalmente nesses acontecimentos da vida do Mestre e ficamos espantados
ao ouvi-los, é a ausência total dessas qualidades em nós mesmos. Por exemplo, se olharmos no
fundo de nossos corações, vemos que o apego ao ouro não desaparecerá se jogarmos mil vezes
n'água moedas e torrões de terra; que o egoísmo de nossa mente não será lavado mesmo se
limparmos inúmeras vezes lugares sujos; e que a atitude filial em relação a qualquer mulher não
surgirá em nossas mentes no momento crítico, mesmo se nos disserem durante toda a vida a
verdade, que a mulher é uma manifestação espiritual da Mãe Divina. Não podemos alcançar os
resultados que o Mestre conseguiu nesses assuntos, apesar de nossos esforços, porque nosso poder
de compreender as idéias e pô-las em prática é limitado e obstruído pelas impressões de nossos
Karmas passados. Entramos no campo da Sadhana com a mente destituída de autocontrole e poder
retentivo, contendo todos os tipos de traços adversos. E os resultados obtidos, também, são
correspondentemente fracos.
É duvidoso que mesmo ao longo de quatro ou cinco séculos venha ao mundo alguém com a
mente dotada de poderes tão extraordinários como a do Mestre. É impossível para mentes como as
nossas sequer imaginar o quanto ela foi inigualável - como, por natureza, era dotada de total
autocontrole e poder retentivo perfeito, como era despida de quaisquer traços malévolos e como
seu extraordinário anelo pela visão da Mãe Divina, que retirou até mesmo as preocupações vitais
como a de comida e de sono e levou às alturas seu poder natural e visão interior.
10. Já dissemos que o serviço da Mãe Divina no templo de Dakshineswar não foi afetado com
a morte da Rani Rasmani. Seu sucessor, Mathur, para quem Sri Ramakrishna era tão caro como a vida,
não somente era propenso a dar uma quantia estipulada para Seu serviço, mas generosamente
gastava grandes somas eventuais de dinheiro, em cumprimento aos pedidos Mestre. Além de
efetuar os serviços das divindades, ele gostava muito de servir os homens santos. Devido aos
ensinamentos do Mestre, Mathur, que havia tomado refúgio a seus pés, considerava os homens
santos como imagens verdadeiras de Deus. Por isso, quando o Mestre pediu-lhe para dar aos
Sadhus artigos de uso diário como roupas, cobertores, jarros e outros, além de comida, Mathur
comprou-os e armazenou-os num aposento para que pudessem estar disponíveis para serem
distribuídos aos homens santos, a qualquer momento, na quantidade que lhes satisfizesse. Disse aos
funcionários que os artigos no novo depósito deveriam ser distribuídos segundo as ordens do
Mestre. Assim também, quando logo depois veio a saber que o Mestre desejava servir os
devotos de todas os credos, dando-lhes artigos úteis para suas práticas espirituais, Mathur
também tomou as devidas providências (III,2). Todas essas doações foram feitas provavelmente em
1862-3, quando a maravilhosa hospitalidade do templo de Kali da Rani Rasmani tornou-se bem
conhecida em todas as partes, entre os Sadhus. Embora mesmo durante a vida da Rani o templo
de Kali fosse considerado pelos peregrinos em viagem, como um lugar de descanso, a caminho de
seus destinos, agora sua reputação espalhou-se por regiões afastada e os devotos monges, os
principais de todas as crenças, vieram em grande número. Satisfeitos com a hospitalidade a
eles dada, seguiam seu caminho, abençoando o administrador pelos serviços prestados com tanta
dedicação. Já relatamos em outro lugar tudo o que o próprio Mestre nos falou dos importantes
homens santos que vieram assim. Mencionamos novamente aqui somente porque queremos
contar ao leitor a respeito da chegada a Dakshineswar de um santo da seita de Ramawat, chamado
"Jatadhari", por quem o Mestre foi iniciado no Mantra de Rama e de quem recebeu a imagem do
Menino Rama chamado "Ramalala." Foi provavelmente em 1864 que ele veio até o Mestre.
11. Em diversas ocasiões ouvimos do próprio Mestre a respeito do amor e do apego
extraordinários de Jatadhari a Ramachandra. A imagem do Menino Ramachandra era-lhe muito
querida. Mesmo antes de chegar a Dakshineswar, a longa e dedicada adoração daquela imagem
o havia levado a um estado de amor divino e introversão que o permitiram realmente ter a visão de
Rama como uma criança luminosa, aceitando todos seus serviços, santificados pela intensa
devoção. A princípio aquela visão aparecia diante dele por um momento, de vez em quando,
fazendo-o transbordar de felicidade. Mas à medida que ele avançava na Sadhana, com o passar do
tempo, a visão tornava-se mais intensa e contínua por longos períodos, até que por fim, ela se
tornou tão vívida e contínua como os objetos dos olhos são. Assim estabelecido em contemplação
espiritual amorosa, ele teve o Menino Rama quase como companheiro constante. Empenhando-se
diariamente no serviço daquela imagem de Ramalala, por meio da qual conseguiria realizar aquela
visão divina em sua vida, Jatadhari viajou pelos diversos lugares de peregrinação na Índia e
chegou ao templo de Kali em Dakshineswar.
12. Embora empenhando-se de todo o coração no serviço de Ramalala, como presença viva,
Jatadhari não contou a ninguém o segredo de que possuía o privilégio de ter de vez em quando a
forma do Menino Rama, a personificação do amor. As pessoas somente viam que ele servia
diariamente a imagem mental de uma criança, com extraordinária constância. Sabiam disso e
nada mais. Mas a visão interior do Mestre, o senhor imaculado do campo dos estados
espirituais, rompeu a densa cortina exterior desde o primeiro encontro com Jatadhari e desvendou o
escondido mistério interior. Por isso ele tinha grande respeito por aquele monge e com satisfação o
supria de todos os artigos necessários para o serviço de Ramalala. Além disso, o Mestre passava
diariamente com ele muitas horas e, com devoção, observava seu serviço a Ramalala. O Mestre
assim fez porque ele, como já dissemos em outro lugar (IV,2) tinha a visão divina da forma
celestial de Rama, a personificação do amor espiritual que Jatadhari também costumava ter. Em
conseqüência o relacionamento do Mestre com Jatadhari gradualmente tornou-se íntimo e respeitoso.
13. Já mencionamos que o Mestre passou algum tempo em estado de mulher para satisfazer
a necessidade de desenvolver aquele aspecto de sua personalidade dual. Considerando-se eterna
companheira da Mãe Universal, aplicou-se totalmente, por um período relativamente longo, a Seu
serviço. Adornava-A enfeitava-A com grinaldas de flores feitas por suas próprias mãos e com jóias
de ouro, arranjados por Mathur a seu pedido, abanava-A com um Chamara para refrescá-La e
cantava e dançava diante d'Ela vestindo roupa feminina para agradá-La. É desnecessário dizer
que o Mestre empenhou-se em fazer tudo isso porque surgiu e sua mente uma forte necessidade
de fazê-lo.
14. O amor e a devoção do Mestre por Rama reviveu na companhia de Jatadhari. A forma
que agora ele via na imagem, sob o impulso despertado, foi a do Menino Rama, personificação do amor
espiritual. Portanto não é de se admirar que sua mente estivesse agora preenchida de afeição
maternal por aquela Criança divina. O Mestre começou a sentir por ela o amor e a atração
maravilhosa que a mãe sente por seu filhinho. Somente aquele amor e atração, sem dúvida, fizeram
o Mestre sentar-se agora, ao lado da imagem infantil de Ramalala e olhá-la tão fixamente que não
tinha consciência do tempo transcorrido. Devido às diversas e alegres travessuras infantis, o Mestre
dizia que, o extraordinário e brilhante Menino Luminoso fazia-o esquecer-se de tudo o mais, tentando
prendê-lo diariamente a seu lado, espreitando-o ansiosamente quando ele saía e acompanhava-o a
todos os tempos, apesar de seu pedido para que não o fizesse.
15. A mente ativa do Mestre não podia deixar qualquer trabalho pela metade. Isso foi
verdadeiro com os assuntos do mundo exterior e também, com o campo ideal do espírito. Foi
visto que, se qualquer idéia surgisse espontaneamente em seu coração, não sossegava enquanto
não alcançasse seus últimos limites. Ao estudarem esta faceta de sua natureza, alguns leitores
poderão pensar: "Mas isso é bom? Será benéfico para um homem perseguir qualquer e toda idéia
que possa surgir em sua mente a qualquer hora e tornar-se instrumento em suas mãos?" Apesar
dessa natureza do Mestre não o deixar desviar-se do caminho, isto não deve ser imitado pelas
pessoas em geral, porquanto todas as idéias, boa ou más, surgem nas mentes da humanidade
fraca. Os homens jamais devem ter essa fé em si mesmos a ponto de acreditar que somente
idéias boas surgirão em sua mente. Por isso deve ser o objetivo do homem controlar seus desejos.
Sem dúvida é um argumento razoável, mas há outro lado, sobre o qual temos algo mais a dizer.
16. Não podemos negar que a mente de uma pessoa, ávida de sexo e ouro, aos quais está
totalmente presa, não deve depositar tanta confiança em si mesma. Por isso somente os
ignorantes, aqueles de visão curta, podem questionar a necessidade de se controlar os desejos. Mas,
em alguns raros Sadhakas, os Vedas e outras escrituras dizem que o autocontrole vem pela graça
de Deus, como uma função normal, como a respiração. Por isso, completamente livres de
atração pela luxúria e pelo ouro, suas mentes convertem-se em repositórios somente de idéias
boas e salutares. O Mestre também dizia que nenhum desejo mau, pela graça da Mãe Divina
levanta a cabeça e controla a mente de um homem que tomou perfeito refúgio n'Ela. Ele dizia: "A
Mãe não lhe permite dar um passo em falso." O homem que atingiu esse estado pode confiar
perfeitamente em cada impulso seu; então isso não lhe faz qualquer mal, mas torna-se também
uma fonte de imenso bem para os outros, porque passa a ser absolutamente impossível àquele
homem procurar seu próprio interesse naquele estado, pois o pequeno "eu", que nasceu da
identificação com o corpo, que produz egoísmo e que permanece sempre insatisfeito com os
prazeres do mundo, está fundido para sempre no "Eu" de Deus, que tudo penetra. Por isso, a
vontade de Deus, cuja natureza é fazer bem a todos, manifesta-se então com diversos desejos na
mente daquele homem para o bem-estar universal. Ou o Sadhaka, naquele estado, sempre sente no
fundo do coração, "Eu sou a máquina e Tu és o maquinista"; e estando certo de que o que surge
como desejos em sua própria mente, brota da vontade de Deus, a Pessoa que Tudo penetra e ele
não hesita em agir segundo a força dos desejos. A prova dessas ações inspiradas é que elas sempre
trazem grandes benefícios para os outros. Esses estados aparecem muito cedo nas vidas de
almas de grandeza incomum, como o Mestre. Portanto essas grandes almas, como lemos em
suas biografias, confiam integralmente nas tendências de suas mentes e muitas vezes agem de
acordo com elas sem parar para refletir ou encontrar razão para isso. Mantendo suas pequena
vontades identificadas com a grande Vontade Universal, sempre podem detectar e compreender tudo
além das mentes e intelectos das pessoas comuns, pois as idéias que surgem de suas mentes
são verdades eternas que existem em estado sutil na Mente Universal.
17. Assim também, essas grandes almas, embora unas com a humanidade normal,
distinguem-se das outras por sua absoluta dependência da Vontade Universal e sua libertação do
medo e da busca de interesse próprio. Assim, ao contrário das pessoas comuns, são muitas vezes
vistas cooperando em circunstâncias e atividades que causam sua própria destruição, apesar de
conhecerem de antemão as conseqüências nefastas dessa cooperação. Não somente não
demonstram aversão a elas, como lhe dão boas vindas. O leitor compreenderá o que queremos dizer
se dermos alguns exemplos. Consciente do inevitável banimento de Sita, Rama enviou-a para a
floresta, embora soubesse que ela era inocente. Ainda que soubesse que o abandono de Lashmana,
que lhe era mais querido do que sua vida, inevitavelmente terminasse Seu Lila como ser humano,
ele continuou até o fim. Sabendo de antemão que a raça dos Yadus, a qual ele pertencia, seria
destruída, Krishna não fez a menor tentativa para impedi-la. Ao contrário, agiu de maneira a que se
realizasse no tempo certo. Assim também, tendo como certo que encontraria a morte nas mãos
de um caçador, escondeu cuidadosamente seu corpo atrás de uma árvore e conservou os dois pés
avermelhados balançando de tal modo que, assim que o caçador os viu, confundiu-os com um
passarinho e atirou sua flecha. Então Ele abençoou o caçador que estava arrependido de seu engano
e deixou o corpo.
Embora já soubesse que atingiria Parinirvana, ou o estado sem corpo no final de sua
beatitude, se aceitasse a hospitalidade de Chandala, Buda aceitou-o e ascendeu àquele estado,
protegendo o Chandala com sua bênção e consolo, contra o ódio e reprovação dos outros. Também,
consciente de que a religião pregada por ele logo seria poluída, se aprovasse a iniciação das
mulheres em Sannyasa, ele permitiu que a venerável Gautami, sua tia, fosse iniciada.
Embora sabendo que Judas o trairia com seus inimigos, que poriam fim à sua vida, Jesus,
outra Encarnação de Deus, sempre permaneceu afeiçoado a ele.
18. Encontramos muitos desses eventos até na vida de pessoas perfeitas, liberadas em
vida, para não falar nas Encarnações de Deus. Ao tentarmos conciliar essas expressões incomuns
de esforço pessoal, tão freqüentemente visto na vida dos grandes homens, com a teoria de sua
absoluta dependência na Vontade Universal, inevitavelmente concluímos que seus esforços pessoais
nada mais são que manifestações dessa mesma Vontade que tudo penetra. É claro, portanto,
que todas as impressões egoístas nas mentes dessas pessoas que dependem absolutamente da
vontade de Deus, são destruídas de uma vez por todas; suas mentes ascendem a um plano de
consciência sagrado, onde somente desejos puros, absolutamente não tocados pelo egoísmo,
surgem nelas. Assim, livremente depositando a fé nos desejos de Sua mente e agindo sob seus
impulsos, esses Sadhakas, naquele estado, não incorrem em qualquer censura. Não se pode deixar
de dizer que tais atos do Mestre não devem ser imitados por pessoas comuns. Mas os Sadhakas,
no estado ímpar acima mencionado, serão bastante iluminados por eles na condução de suas vidas.
As escrituras compararam seus desejos, como comer, beber etc., necessários à preservação da
vida, a sementes fritas. Assim como as sementes tostadas das árvores, trepadeiras etc., perdem o
poder vital e não podem germinar, assim os desejos daquelas pessoas, tostados no fogo do
autocontrole e do conhecimento divino não podem mais atraí-las ao prazer e desviá-las. O Mestre
também comentou a esse respeito da seguinte maneira: "Entrando em contato com a pedra
filosofal, a espada de aço transforma-se em ouro; mantém inalterada sua formidável forma, mas
não pode mais ferir."
19. Os videntes dos Upanishads dizem que todos os processos mortais dos Sadhakas,
naquele estado correspondem a fatos. Em outras palavras, todas as idéias que surgem
naturalmente em suas mentes provam ser objetivamente verdadeiras e jamais ao contrário.
Jamais poderíamos ter acreditado nas palavras acima mencionadas dos videntes, se não
tivéssemos, repetidas vezes, testado as idéias do Mestre, estabelecido em Bhavamukha e as
tivéssemos achado verdadeiras. Se ele hesitasse comer qualquer alimento, verificava-se depois que
o alimento havia sido contaminado anteriormente. Se ele sentisse que seu poder de falar
falhasse subitamente quando estava prestes a dar um conselho sobre assunto espiritual a
alguém, ficava provado que a referida pessoa, na verdade, estava completamente despreparada
para isso. Se ele sentisse que determinada pessoa não realizaria verdades religiosas, ou realizaria
somente algumas em sua vida, isso realmente ocorria. Quando determinado estado ou a forma
especial de uma divindade aparecesse em sua mente, ao ver certa pessoa, sabia-se que ela era um
Sadhaka daquele estado, ou que adorava aquela divindade. Se subitamente dissesse algo a
alguém sob influência de um estado interior, aquela pessoa obtinha mais luz e sua vida mudava
completamente. Inúmeros incidentes desse tipo podem ser citados.
20. Impulsionado por aquele estado devocional interno irresistível, o Mestre, como
costumava fazer antes, olhava-se agora como mulher tanto no corpo como na mente e agia de
acordo. Assim quando teve a visão de Rama, como um meigo menino, assumiu a atitude de
afeição maternal por Ele. Sem dúvida havia sido iniciado no Mantra de Rama há muito tempo atrás
para fazer de forma correta a adoração e o serviço da divindade Raghuvir; mas então não estava
atraído para Ele em outro estado a não ser o de servo para seu Amo. Tomado pelo estado
mencionado com a Divindade, ficou agora ansioso para ser iniciado por um Guru, de acordo com as
escrituras com o Mantra adequado a esse novo estado e atingir o limite último de realização
naquela disciplina. Perfeito no Mantra da Divina Criança, Jatadhari veio a tomar conhecimento da
ansiedade do Mestre e, com alegria, iniciou-o no Mantra de seu próprio Ideal Escolhido. Mergulhado
na Sadhana daquele Mantra da maneira ensinada por ele, o Mestre foi bem sucedido no decorrer
de somente alguns dias, a ter a visão do Menino Rama. Absorvido na meditação daquela forma
divina, na atitude de afeição maternal, logo chegou à realização: "Rama, que é filho de Dasaratha,
está em todo ser; o mesmo Rama é imanente no universo e contudo o transcende." Isto quer dizer
que Rama não somente é filho de Dasaratha, mas também existe como Jiva em cada corpo. Assim
também, penetrando o Universo e eternamente manifestando-se como ele, Ele está sempre existindo
em Sua própria natureza sem atributos, destituída de Maya e além de tudo no universo, Ouvimos
o Mestre recitando, em diversas ocasiões, os versos Hindi acima referidos.
21. Além de iniciar o Mestre no Mantra, Jatadhari, antes de ir-se embora, deu de presente
ao Mestre a imagem de Ramlala, a quem ele havia servido durante tanto tempo com devoção
exclusiva. Pois aquela imagem viva expressou a Jatadhari seu desejo de viver dali para frente com o
Mestre. Já descrevemos em outro lugar (IV.2) em detalhes, a extraordinária Lila daquela imagem
com o Mestre e Jatadhari. Portanto é desnecessário tratar deste assunto aqui.
22. Quando o Mestre dedicou sua mente, da maneira supracitada, para aumentar sua
devoção Vatsalya e experimentar a realização final, a Bhairavi Brahmani estava em Dakshineswar.
O próprio Mestre contou-nos que ela era altamente experiente nas disciplinas dos Panchabhavas
mencionados nos livros Vaishanavas, quanto era nos Tantras. Será que o Mestre recebeu
qualquer ajuda especial dela enquanto praticava as Bhavas Vatsalya e Madhura? Não ouvimos
dele nada a esse respeito mas o Mestre e Hriday disseram-nos que, estabelecida na atitude de
afeição maternal com Deus, a Brahmani tratava o Mestre como Gopala, o Menino Krishna. Portanto
deduz-se que o Mestre recebeu pelo menos alguma ajuda dela, tanto na época em que adotou o
estado de afeição maternal com o Menino Rama e teve a experiência final naquele estado, como
quando praticou a Madhura Bhava, o estado doce, no qual ele adotou a atitude de uma mulher para
com seu amante. Pode-se duvidar se ele realmente recebeu dela alguma ajuda em particular;
mas admite-se, sem dúvida, que um forte desejo de praticar as disciplinas daquelas atitudes surgiu
em sua mente quando viu a Brahmani envolvida neles, enaltecendo-os.
CAPÍTULO XIII
1. É muito difícil para quem não seja um Sadhaka, entender o espírito das ações e
experiências dos Sadhakas e chegar a um conhecimento adequado, porque trata-se de um
assunto do espírito, fora do campo dos densos e ilusórios objetos dos sentidos. Aí a sequência de
tempo, que se refere aos acontecimentos e objetos da vida sensória, deixa de ter qualquer
significado. Assim, os esforços frenéticos da vida competitiva, que nascem dá natureza inferior
do homem, mas erroneamente interpretados como grandeza e heroísmo pelas pessoas
mundanas não têm relevância. As únicas entidades significantes são a mente do aspirante e as
infindáveis correntes de impressões aí armazenadas pelas experiências das vidas passadas. A
atração para ideais elevados e para um objetivo final, nascida da insatisfação gerada pelos
conflitos da vida exterior, é o fator principal.
Há também a presença consequente da luta contra as Impressões adversas do passado
lutas que engendram um poder daqueles esforços para superá-las. Também a vida de um
Sadhaka é caracterizada pela tentativa resoluta de mergulhar cada vez mais profundamente em sua
própria personalidade, ao voltar a mente para dentro de si mesma, longe dos sentidos. Escavando,
por assim dizer, as camadas cada vez mais profundas do mundo interior, o Sadhaka experimenta
campos de idéias cada vez mais profundos até que atinge o Campo de sua existência e permanece
uno com ele - a imutável Realidade sem segundo, destituída de som, tato e forma e da qual todas
as idéias, inclusive o sentido do Eu, brotam e têm seu ser. Essa é a experiência do Samadhi. Se as
impressões sutis da mente não forem completamente erradicadas, um traço de ignorância ainda é
deixado e consequentemente, o Sadhaka desce do Samadhi para experimentar novamente o
mundo exterior, revertendo o processo através do qual atingiu o conhecimento imediato da
Realidade não-dual. Assim, a mente do aspirante continua a descer, da consciência
supraconsciente à normal e novamente eleva-se à supraconsciente, repetidamente.
2. A história do mundo espiritual, desde os tempos mais antigos até os dias presentes,
também relata a descrição de algumas mentes, cujo estado natural parece ser o plano supra-
consciente, mas que de algum modo mantiveram-se forçosamente confinadas, por algum tempo,
ao plano do mundo exterior, para o bem da humanidade. Quanto mais estudarmos a história
das lutas espirituais de Sri Ramakrishna, mais compreenderemos que sua mente pertenceu a
essa classe. Se os leitores, com o estudo deste livro, não ficarem convencidos, foi devido à
deficiência do autor, porque o Mestre dizia-nos repetidamente: "Agarrava-me forçosamente a um
ou dois desejos banais, com a ajuda dos quais mantinha a mente voltada para baixo, por causa
de todos vocês; senão uma inclinação natural era a de permanecer unida e identificada com o Uno
indivisível."
3. Alguns dos antigos videntes descreveram a Realidade não-dual indivisível
experimentada em Samadhi como o 'Vazio' (Sunya, o grande Vazio do Ser) e outros como o 'Ple-
no' (Purna, a Plenitude do Ser). De fato ambos implicam na mesma experiência. Porque
descreveram-n'A como 'O Uno do qual todas as coisas vêm a ser e ao qual se unem.' A Realidade,
que foi chamada por Buda como o "Vazio"(Sunya), na qual todos os seres extinguem-se, foi
descrita por Sankara como o "Pleno", (Purna), que constitui o substratum não modificado de todos
eles. Se deixarmos de lado as opiniões dos últimos instrutores budistas e estudarmos Buda e
Sankara, sem dúvida chegaremos a essa conclusão.
4. O plano da consciência não-dual, contido nos conceitos de "Vazio" e de "Pleno" foi
descrito nos Upanishads ou Vedanta como o estado além de toda ideação, pois perfeitamente
estabelecido nele, a mente do aspirante transcende os limites de todos os outros planos de
consciência, produzidos pelo jogo de criação, preservação e dissolução de Deus e funde-se na
homogeneidade. Por essa razão o estado não-dual de consciência é algo não relacional, diferente
das cinco atitudes, Santa, Dasya, etc., com a ajuda das quais a limitada mente humana entra no
campo espiritual e une-se a Deus numa relação eterna. Somente quando o homem se torna
absolutamente indiferente a todo tipo de prazer desse mundo ou do outro, e atinge pela força da
pureza, uma posição mais elevada do que os deuses, entra no estado não-dual. Com essa ajuda
realiza Brahman sem atributos, no qual todo o Universo juntamente com Deus, seu criador,
preservador, criador e destruidor, tem seu eterno ser e ao alcançá-lo, atinge o ápice da vida.
5. Deixando de lado o estado não-dual e Brahman sem atributos, atingível com o auxílio
desse estado, encontramos os aspirantes dos cultos de Bhakti falando da manifestação das "cinco
atitudes" (Panchabhava) a saber, Santa (atitude plácida), Dasya (atitude de um servo), Sakhya
(atitude de camaradagem), Vatsalya (atitude de pais) e Madhura (atitude conjugal). O objeto a ser
alcançado por cada uma é Brahman com atributos ou Isvara, que tudo controla, todo poderoso e por
natureza eternamente puro, desperto e livre. O aspirante procura conhecê-lo "através da relação
correspondente a uma ou outra dessas atitudes que ele assume e Ele, o Senhor, que é o controlador
interno de todos os seres e repositório de todos os estados, vê a devoção integral do aspirante e para
ajudá-lo a desenvolver a atitude, revela-Se a ele, na forma apropriada e assim o abençoa. É dessa
maneira que Deus, que é consciência pura, assume nas diferentes épocas, várias formas que são as
personificações desses diferentes estados. Ele, lemos nas escrituras, encarna-Se como homem para
satisfazer os desejos de Seus devotos.
6. As cinco atitudes são as formas sutis e purificadas das relações mundanas pelas quais os
seres humanos estão ligados uns aos outros em sua vida diária. Somos conscientes das relações
particulares com pai, mãe, marido, esposa, amigo, amiga, senhor, servo, filho, filha, rei, súdito,
instrutor, discípulo e assim por diante e sentimos também que, à exceção dos inimigos, devemos
comportar-nos com todas as outras pessoas, de maneira calma e respeitosa. Os instrutores de Bhakti
classificaram essas relações nas cinco divisões de Santa e o restante, mencionadas acima, e
aconselhavam as pessoas a adotar uma ou outra dessas atitudes para a prática, a fim de
estabelecerem um relacionamento amoroso com o Divino. Porque é mais fácil para os Jivas
tentarem conhecer Deus com a ajuda dessas cinco atitudes, cuja natureza já lhes é conhecida em
seus relacionamentos mundanos. Isso não é tudo. Aquelas atitudes que, enquanto baseadas nas
relações mundanas enraizadas em desejos, produzem somente aversão, apego e várias outras
modificações similares e impelem os homens a cometerem ações más, entretanto, quando
orientadas para Deus, ajudam os aspirantes a alcançarem a realização de Deus por sua força
original irresistível, sem corrupção mundana. Tome-se, por exemplo, a luxúria, doença, por assim
dizer, do coração e causa de toda infelicidade mas quando direcionada para Deus, manifesta-se
como desejo pela visão de Deus. A raiva do aspirante será agora direcionada contra as pessoas e
as coisas que são obstáculos no caminho daquela visão. Agora ficará louco e enfatuado com o
desfrutar da maravilhosa beleza e amor de Deus. Notando o esplendor ímpar de espiritualidade
nas pessoas que conseguiram alcançar a visão sagrada de Deus, auge da felicidade, agora ele
ficará ansioso para tê-la.
7. Não podemos dizer com certeza que os ensinamentos a respeito dessas cinco atitudes de
relacionamento amoroso com Deus foram dados por um determinado instrutor numa
determinada época. Mas muitas almas grandes apareceram na Índia, a grande hermida do mundo,
em épocas diferentes e empenharam-se em práticas para a realização de Deus, por meio de uma,
duas ou mais atitudes e, ao se tornarem íntimas d'Ele através de Seu amor extraordinário,
ensinaram os homens a fazer o mesmo. Quando estudamos as vidas ímpares desses instrutores, fica
claro que somente o amor de Deus está na raiz das Sadhanas daquelas atitudes e que o referido
amor tem sempre como objeto, uma ou outra das numerosas expressões do aspecto pessoal de
Deus, pois, enquanto um homem não experimenta a Realidade-não dual, estará sempre ligado
somente à concepção e experiência de Deus como Pessoa.
8. Ao estudarmos o desenvolvimento do amor entre dois amantes, vemos como ele
elimina a distância e a diferença entre os respectivos poderes e posições em sua situação mun-
dana. De maneira semelhante, o amor remove, aos poucos, da mente do aspirante empenhado
na Sadhana de qualquer uma dessas atitudes, sua consciência dos poderes ilimitados de Deus e o
ensina a olhar Deus somente como seu bem-amado, segundo sua atitude particular. Portanto, o
aspirante que trilha esse caminho torna-O seu muito íntimo por meio do amor e, de forma alguma
hesita em pedir, importuná-Lo ou até mesmo censurá-Lo, devido ao seu sentimento de intimidade
amorosa com Ele. Quanto mais a prática de uma dessas atitudes permitir ao aspirante esquecer
os poderes de Deus e experimentar somente Seu amor e doçura, mais exaltada ela é considerada
nessa Sadhana de atitudes. É somente desse ponto de vista que os instrutores de Bhakti
atribuiram superioridade ou inferioridade a cada uma dessas atitudes e deram o lugar mais
elevado à Madhura Bhava; e cada uma delas seria, como aqueles instrutores admitiram
unanimemente, capaz de fazer o aspirante realizar Deus.
9. Sabe-se pelo estudo da história das religiões que, com o desenvolvimento final de qualquer
uma dessas atitudes, o aspirante esquece-se de si mesmo e sente-se feliz quando o objeto de seu
amor está feliz. Absorvido no pensamento d'Ele durante a separação, às vezes perde mesmo a
consciência de sua própria existência. Do estudo dos livros devocionais, como o Bhagavata, vê-se
que não somente as Gopis de Vraja esqueceram-se de sua existência, mas realmente, em algumas
ocasiões, identificaram-se com seu bem-amado Krishna. É bem conhecido dos livros devocionais
cristãos que, absorvidos na Paixão de Cristo, alguns místicos suportaram os estigmas e sangraram
pelas marcas em seu corpo.1 (1 Vide vidas de São Francisco de Assis e de Santa Catarina de Sienna.) Vemos,
portanto, que com o desenvolvimento final de cada uma das atitudes, o aspirante fica absorvido no
pensamento de seu objeto de amor e unido e identificado com Ele sob o forte impulso do amor, realiza
o estado não-dual de consciência. A vida ímpar de luta espiritual de Sri Ramakrishna lançou uma
luz maravilhosa sobre esse assunto. Ele praticou cada uma dessas atitudes do amor espiritual e em
cada uma mergulhou no objeto de seu amor. Esquecendo-se completamente de sua própria
existência, realizou a Realidade não-dual.
Como, pergunta-se, pode a mente humana experimentar, com a ajuda dessas cinco
atitudes, a Realidade não-dual, que está além de todos os estados? Pois nenhuma atitude pode
levantar-se, existir ou desenvolver-se na mente humana sem a consciência de duas pessoas.
10. É verdade. Mas quanto mais uma atitude se desenvolve, mais ela estende sua própria
influência e remove gradualmente todas as idéias contrárias da mente do aspirante. Assim
também, quando completamente desenvolvida, a mente concentrada do aspirante, às vezes em
meditação, esquece-se do "eu" (servo) e do "Tu" (o Amo) e também, o relacionamento entre eles
e permanece perfeitamente identificada através do amor com a Realidade simbolizada pela
palavra Tu. A mente humana, dizem os eminentes instrutores da Índia, não está ao mesmo
tempo consciente do eu e do Tu relacionamento amoroso entre eles. Conhece a entidade
simbolizada pela palavra "Tu", num dado momento e pela palavra "eu" no momento seguinte,
mas como a mente oscila rapidamente entre as idéias dessas duas entidades, desenvolve-se nela a
idéia de uma relação entre elas. Parece então ser simultaneamente consciente dessas duas
entidades e da relação entre elas. Mas quando o desassossego da mente é destruído pela
influência da atitude madura do amor, gradualmente é capaz de detectar o que foi dito acima.
Quanto mais o funcionamento da mente é tranqüilizado por ocasião da meditação, mais compreende,
aos poucos, que viu a Realidade não-dual de dois ângulos de visão e confundiu-A com duas
entidades independentes.
11. Ficamos simplesmente admirados ao pensar quanto tempo e que esforços sobre-
humanos de inúmeros aspirantes foram necessários para o completo desenvolvimento de cada
uma das atitudes pelas quais a mente humana foi capaz de realizar a Realidade não-dual. Ao
estudarmos a história das religiões, conforme as escrituras, fica claro que uma determinada
atitude tornou-se o principal apoio da mente humana durante a meditação numa determinada
época e com a ajuda dela muitos aspirantes eminentes daquele período, realizaram Deus e alguns
raros alcançaram o conhecimento imediato da Realidade não-dual de Brahman. Nos períodos
Védico e Budista encontramos a predominância da atitude Santa culminando na experiência da Não-
dualidade. As atitudes Dasya e Apatya2 (2 Apatya, isto é, a atitude de considerar Deus como pai ou como mãe. Aqui,
como pai.) prevaleceram na época upanishádica. As atitudes Santa e Dasya, misturadas com a ação
sem motivo são a principal característica do período épico. A mistura de Apatya com Madhura
parcial é observada na época tântrica e as atitudes Sakhya, Vatsalya e Madhura são vistas
florescerem com toda exuberância no período Vaishnava.
12. Na história religiosa da Índia encontramos estas cinco atitudes totalmente
desenvolvidas e florescendo lado a lado com a experiência da consciência não-dual. Mas isso não
ocorreu nas comunidades religiosas em outras partes do mundo. Entre elas somente as atitudes
Santa, Dasya e Apatya floresceram. Embora as canções do Rei Salomão, o sábio real, expressando
as atitudes doce e de amigo em relação a Deus estejam intactas nas comunidades judia, cristã e
muçulmana, os membros dessas comunidades são incapazes de compreender a importância
dessas canções e dão-lhes um significado diferente. As atitudes de Sakhya e Madhura, é
desnecessário dizer, ainda sobrevivem em grande escala na comunidade Sufi que professa o
Islamismo, embora a maioria dos muçulmanos encarem essa adoração de Deus contrária aos
preceitos do Corão. Assim também, a comunidade cristã católica apesar de render homenagem a
Maria, mãe de Cristo, está longe de reconhecer a Maternidade de Deus. Portanto não foi tão
proveitosa como a adoração da Mãe Universal existente na Índia, pois não permitiu ao aspirante
realizar o indivisível Existência-Conhecimento-Felicidade absolutos e experimentar a manifestação
divina em todas as mulheres sem exceção. A corrente da idéia da Maternidade de Deus
desapareceu na metade do caminho, como o rio Phalgu.3 (3 Rio semi-místico.)
13. Quando a mente do aspirante é atraída para Deus, a ajuda de alguma atitude de amor,
torna-se, como já dissemos anteriormente, gradualmente absorvida naquela atitude, desvia-se do
mundo exterior e funde-se no Ser. No momento em que a mente se funde, suas impressões
passadas interpõem-se em seu caminho e tentam fazê-lo nadar na superfície, empurrando-o
repetidamente para cima. Portanto a mente humana com o fardo de poderosas impressões
passadas, não pode ficar absorvida nem mesmo num estado, apesar de lutar toda a vida:
Quando isso acontece, em primeiro lugar fica desencorajada e desiste do esforço e por fim,
perdendo a fé no evangelho da própria realização espiritual, começa a considerar o desfrutar de
visões, gostos etc. do mundo exterior como a única coisa digna de possuir e procurar com avidez.
Aversão às coisas exteriores, absorção na meditação do objeto de amor devocional e êxtase
produzido por seu estado espiritual são, portanto, considerados na esfera dessa forma de
Sadhana como a medida do progresso do aspirante em direção do objetivo.
14. É difícil para alguém que não tenha tentado cultivar qualquer dessas atitudes,
compreender a grande extensão da luta interna que um aspirante tem que experimentar, ao
enfrentar os fortes obstáculos causados pela manifestação de impressões passadas, submersas
nas camadas da mente. Somente quem passou por tais dificuldades e sofrimentos ficará atônito
com a rapidez com a qual Sri Ramakrishna pôde ter a mente absorvida numa atitude após a outra.
Também, somente assim poderá avaliar a idéia de que a mente do Mestre deve ter sido algo bem
maior que a mente humana, para poder agir assim.
15. Será que foi devido à incapacidade da mente humana comum de compreender as
verdades sutis do campo espiritual que a história das Sadhanas desses heróis espirituais, co-
nhecidos como Encarnações de Deus, não tenha sido convenientemente registrada? Pois tudo o
que conseguimos das histórias sobre eles refere-se a seus atos comoventes de renúncia, antes
de terem embarcado na vida da Sadhana e com os poderes maravilhosos que manifestam depois
de Suas Sadhanas para redimir o homem da ignorância e dos envolvimentos mundanos. Quanto às
Encarnações, encontramos pouco registro de sua extraordinária luta interior na qual elas devem
ter-se empenhado no período de suas Sadhanas, para destruir e arrancar de vez as impressões
profundas de suas mentes e para obter autocontrole. Ou aquela luta foi descrita em tais histórias,
com a ajuda de metáforas e hipérboles, de tal maneira que agora nos é impossível separar o grão
da verdade do restante de descritivas extravagâncias.
16. O leitor compreenderá o que queremos dizer quando dermos alguns exemplos. Sri
Krishna muitas vezes estava empenhado em praticar austeridades, visando conseguir poderes
especiais, com o propósito de fazer bem à humanidade. Mas não há relato sobre a sucessão de
atitudes de sua mente, exceto que ele ficou num pé só por um certo período, vivendo somente
de água e ar.
Não temos um relato detalhado das Sadhanas de Buda, a não ser sobre seu desapego
do mundo, sua saída de casa com intuito de se tornar eremita e em seguida, estabelecer-se
em Dharmachakra, a roda da religião. Contudo um pouco da história de suas atitudes espirituais
está disponível, ao contrário de outros heróis espirituais. Sabe-se que, abstendo-se de comida
e bebida e tomando a firme resolução de ser bem sucedido, empenhou-se em fazer
austeridades e meditação durante seis longos anos sem sair do mesmo lugar e que, controlando
as forças vitais internas e praticando meditação, entrou em Samadhi. Seu biógrafo também
tentou dar ênfase à luta contra as impressões latentes da mente, ao introduzir a história da
luta com Mara (Satã Budista).
É também conhecida a história da luta de Jesus. Depois de registrar alguns
acontecimentos da vida de Jesus até a idade de doze anos, o biógrafo descreveu como, aos
trinta anos, Jesus foi balizado por João, um santo realizado, e foi sozinho para o deserto onde
praticou austeridades e meditação durante quarenta dias; como, apesar de ser tentado por
Satã, saiu vitorioso e regressou; e como, por fim, empenhou-se em fazer bem à humanidade.
Continuou no corpo denso somente por mais três anos após esse acontecimento. Não há,
portanto, registros de como passou o tempo entre doze e trinta anos.
Embora boa parte dos acontecimentos da vida de Sankara seja conhecida, tem-se
muitas vezes que deduzir a história das atitudes de sua mente.
Encontramos registrados muitos acontecimentos da Sadhana de Chaitanya. A história de
seu exaltado amor a Deus, destituído do mais leve traço de desejo, tem sido descrita de
maneira incompreensível para as mentes comuns, sob forma de metáforas, com a ajuda das
histórias do amor entre Radha e Kr ishna e sua separação. Tem-se que admitir que Chaitanya e
seus principais companheiros registraram, com algum detalhe, embora numa linguagem
metafórica, as mudanças que ocorreram na mente do aspirante desde o começo até quase o
final do estado perfeito de cada uma das atitudes de Sakhya, Vatsalya e Madhura, com ênfase
especial para essa última. Mas não apresentaram a verdade definitiva, quando a mente do
aspirante torna-se completamente absorvida em qualquer uma das três atitudes acima
mencionadas, experimenta sua unidade com o objeto de seu amor e se funde na Realidade não-
dual. A vida ímpar de Sri Ramakrishna e a extraordinária história de sua Sadhana ensinaram-
nos, com muita clareza, essa verdade última na idade moderna e permitiram-nos compreender que
todos os estados religiosos de todas as comunidades religiosas do mundo conduzem a mente do
aspirante a um e mesmo objetivo. Deixando de lado todas as outras coisas que podem ser
aprendidas de sua vida, pode-se aqui dizer que todo o mundo está indubitavelmente em dívida com
ele para sempre, pela catolicidade abrangente de sua visão espiritual, estabelecendo a verdade
de todas as religiões.
17. A Madhura Bhava é considerada a maior contribuição dos instrutores Vaishnavas, como
Chaitanya, ao mundo espiritual. Se eles não a tivessem pregado, muitas pessoas teriam ficado
sem os meios para a realização de Deus e a paz e a felicidade que disso resulta. Foram os primeiros
a compreender que a Lila de Vrindavan de Sri Krishna não foi representada em vão e também, a se
esforçar para explicá-la aos outros. Se não tivesse havido o advento de Chaitanya, Vrindavan
teria sido olhada como uma floresta comum.
18. Esforçando-se, à imitação do ocidente, para registrar somente os acontecimentos
externos, os historiadores da idade moderna dirão: "Mas não há evidência que o jogo de
Vrindavan tenha realmente ocorrido, como vocês dizem. Portanto, não vêem que muito de sua
alegria e de sua tristeza e os estados, incluindo Mahabhava, são todos sem base?" Os instrutores
Vaishnavas responderiam: "Podem vocês, de sua parte, dar evidência que esses incidentes
mencionados nos Puranas não tenham ocorrido? Enquanto não estivermos convencidos de que seus
historiadores exploraram totalmente a história dessas épocas antigas, continuaremos a considerar
que suas dúvidas a respeito desses incidentes mencionados nos Puranas, são injustificadas e
inválidas. Além disso mesmo se vocês alguma vez apresentarem tal prova, nossa crença não será
afetada. Não afetará de forma alguma o eterno jogo do Senhor, na eterna Vrindavan. Esse jogo
divino místico permanecerá eternamente no campo espiritual ideal. Se vocês desejarem
testemunhar a verdade desse jogo de amor entre Radha e Krishna, podem fazê-lo no campo da
consciência espiritual; mas antes de tudo, terão que tornar-se capacitados para isso, em
primeiro lugar eliminando qualquer vestígio de luxúria de seu corpo, de sua mente e de sua fala e
aprender a fazer ação inegoísta, seguindo os passos de qualquer uma das amigas de Srimati Radha.
Verão então que Sri Vrindavan, o "playground" de Sri Hari, está eternamente ali no seu coração e
que essa peça está sendo encenada dentro de você todos os dias."
19. Aquele que não aprendeu a manter-se independente dos acontecimentos externos e a
estudar, com o coração puro, a história dos estados devocionais pela aceitação ampla do mundo ideal
como real, nunca será capaz de desfrutar a beleza de Seu jogo em Vrindavan. Enquanto Sri
Ramakrishna estava descrevendo aquele jogo do Divino, com grande entusiasmo, aos jovens de
educação inglesa que estavam com ele, viu que eles não estavam gostando e disse: "Por que vocês
não observam e apreendem a atração do coração de Srimati por Sri Krishna, naquele jogo divino?
Quando se tem esse tipo de atração por Deus, Ele é realizado. Vejam como as Gopis estavam
loucas por Krishna, renunciando a tudo que tinham - maridos, filhos, família e boa conduta, honra e
desonra, vergonha e aversão, medo da opinião pública e da sociedade e assim por diante! Quando
se pode ser assim, realiza-se o Senhor." "Enquanto", continuou ele, "uma pessoa não estiver livre
do menor vestígio de luxúria, não pode compreender o estado espiritual de Radha, a personificação
do Mahabhava. Logo que viram Krishna, a personificação da Existência-Conhecimento-Bem-
aventurança, as Gopis sentiam alegria em seus corações, dezenas de milhões de vezes maior do
que o prazer sexual; então perdiam a consciência do corpo; Ah, poderia a idéia de prazer sexual
pelo corpo desprezível passar então por suas mentes? A luz divina, saindo de Sri Krishna, tocava
seus corpos produzindo em cada poro um prazer inifinitamente maior do que o sexual."
Certa vez Swami Vivekananda levantou objeção a respeito da historicidade do jogo de Radha
e Krishna em Vrindavan e fez uma tentativa de contestar sua autenticidade. Em resposta o Mestre
disse: "Muito bem, vamos aceitar como verdadeiro que jamais houve alguém chamado Radha e
que algum Sadhaka amoroso imaginou essa personalidade de Radha. Mas ao pintar aquele
personagem deve-se admitir que o Sadhaka teve de se perder completamente no estado de Radha
e assim, tornar-se Radha. É verdade, portanto, que o jogo de Vrindavan foi encenado no mundo
exterior também."
Realmente, embora inúmeras objeções com respeito ao jogo de amor do Senhor em
Vrindavan possam ter-se levantado, a Madhura Bhava, descoberta primeiramente pelos
instrutores Vaishnavas liderados por Chaitanya e outros e manifestada em suas vidas puras,
permaneceria eternamente verdadeiro. O aspirante qualificado sempre alcançará a sagrada visão
do Senhor, sentir-se-á abençoado por considerá-Lo seu marido e ele próprio Sua esposa e, com o
desenvolvimento final daquele estado, ficará estabelecido no próprio Brahman puro, não-dual.
20. Embora para as mulheres seja fácil e natural atribuir o papel de marido ao Senhor e
empreender a disciplina, de acordo, parece não ser natural para aqueles que têm corpo
masculino. Portanto, a questão naturalmente surge na mente: por que Chaitanya introduziu no
mundo tal disciplina inadequada? Em resposta, dizemos que todas as ações da Encarnação de
uma época são feitas para o bem da humanidade. Esse caminho de Sadhana foi introduzido por
Sri Chaitanya com o mesmo objetivo. Fez os aspirantes avançarem no caminho de Madhura
Bhava, mantendo em mente o ideal espiritual que os aspirantes daquela época ansiavam
realizar. Não é possível que o eternamente perfeito Chaitanya, uma Encarnação de Deus, tenha
se empenhado em praticar aquela atitude para o seu próprio bem e tenha se estabelecido como
ideal perfeito na sociedade. Sri Ramakrishna dizia, "Assim como os colmilhos externos dos
elefantes são para atacar os inimigos e os internos para mastigar a comida e manter seus
corpos, assim os dois estados manifestavam-se em Sri Chaitanya, um interior e outro, exterior.
Ele fez bem à humanidade com a ajuda do estado exterior de Madhura Bhava e ele próprio,
estabelecido em Brahman, a frutificação do amor a Deus, desfrutou pessoalmente a imensa
felicidade do estado interior da Não-dualidade”.
21. Os historiadores dizem que apareceram nesse país instrutores de Vrajayana no final
da Era Budista. Pregavam que a mente humana tendo tentado realizar o Nirvana, a beatitude
final e tendo quase se libertado das cadeias dos desejos, avançou para mergulhar no grande
Vazio, com a ajuda da meditação. Mas então, "Niratma", a deusa da não-existência, apareceu
diante dela e, ao invés de dar-lhe permissão, manteve-a unida a seu próprio corpo. Assim,
embora o corpo denso no qual os aspirantes haviam desfrutado objetos humanos não mais
existisse, ela o fez desfrutar diariamente do agregado das essências de prazeres sensuais, porque
ele ainda possuía um corpo sutil. Portanto não é de se admirar que a doutrina que essa seita
pregava, a saber, o desfrutar do prazer sutil do mundo ideal pela renúncia do prazer dos objetos
densos tenha posteriormente se deturpado; que o desfrutar do prazer constante dos objetos densos
tenha sido encarado como o objetivo da religião; e que disso tudo deve ter resultado no amplo
predomínio da relação sexual livre no país. Na época do advento de Chaitanya, as pessoas
incultas adotaram aquela deturpada doutrina budista e estavam divididas em várias seitas secretas.
O puro Vamachara, mencionado nos Tantras, desviou-se mesmo entre a maioria das classes mais
elevadas e a busca de poderes miraculosos e o desfrutar de prazeres sensuais pelo culto da Mãe
Universal e meditação n'Ela ficou em voga. No meio desses cultos os aspirantes que queriam
alcançar a felicidade divina seguindo qualquer uma das puras atitudes espirituais viram-se
abandonados, sem orientação. Foi nesse quadro que Sri Chaitanya apareceu. Primeiro colocou
diante daqueles aspirantes os ideais de extraordinária renúncia e desapego, ao praticá-los ele
mesmo em sua vida, e depois salientou que, se uma pessoa se tornasse pura e santa e olhasse a
si mesmo como mulher e Deus como seu esposo, poderia realmente realizar a felicidade divina
ilimitada, no mundo sutil. Além disso pregou a glória dos nomes de Deus para as pessoas em
geral e induziu-as a repetir continuamente Seus nomes e cantar Suas glórias em voz alta. Muitas
seitas budistas ainda não corrompidas e decaídas de seu ideal foram assim colocadas
novamente, por sua graça, no verdadeiro caminho espiritual. Embora os grupos de seguidores do
decaído Vamachara tenham em princípio se oposto a ele abertamente, sentiram a extraordinária
atração pelo ideal ímpar de sua vida, tornaram-se auto-negadores e tentaram ter a visão da Mãe
Universal pela adoração sem interesse. Portanto, ao registrarem os acontecimentos da vida
extraordinária de Chaitanya, alguns escritores disseram que os budistas, que sustentavam a doutrina
do Vazio, também se alegraram por ocasião de seu nascimento.4 (4 Chaitanya-Mangala.)
22. Sri Krishna, o supremo Ser, a personificação da Existência-Conhecimento-Bem-
aventurança, é o único Purusha5, (5 Purusha: Existência-Conhecirnento-Bem-Aventurança como sujeito, conhe-
cedor, o que desfruta; Prakriti: Existência-Conhecimento-Bem-Aventurança como objeto, o conhecido, o que é desfrutado.
Existência-Conhecimento-Bem-Aventurança Absolutos significam consciência pura ou absoluta, quando a vontade (que, sendo
um modo de consciência, nada mais é do que consciência), não está ativa ou não é conhecida. Quando a vontade está ativa ou
conhecida, a mesma consciência pura aparece ou é vista como partida em duas, sujeito e objeto, e é falada em termos de
amor, com ênfase no aspecto felicidade.) o princípio masculino e todos os Jivas e criaturas, “tanto os
densos, como os sutis”, são partes de Prakriti, a personificação do supremo amor e, portanto,
Suas esposas. Assim, se os Jivas se tornarem puros e santos e adorá-Lo de todo o coração como
seu marido, alcançarão, por Sua graça, liberação e o estado de infindável e pura Felicidade, o
objetivo e a realização mais elevada. “Isto é tudo, a Madhura Bhava, pregado por
Chaitanya”. Todas as outras atitudes devocionais estão incluídas na grande atitude, a Mahabhava,
da qual Radha, a Gopi mais importante, é a personificação. Cada uma das outras Gopis é a
personificação de uma, duas ou mais atitudes contidas na grande atitude. O aspirante fica assim
capaz de dominar as atitudes que constituem a Mahabhava ao se empenhar na Sadhana à
imitação das Gopis de Vraja e por fim torna-se abençoado com o lampejo da grande Felicidade que
emana da grande atitude. O objetivo final do aspirante neste caminho é ficar feliz sob todos os
pontos de vista com a felicidade de Krishna ao abandonar todos os desejos para a felicidade dele ou
dela para sempre através da contemplação do estado de Radha, a personificação de Mahabhava.6 (6 O
estado no qual se tem receio que algum mal possa abater-se sobre Krishna, mesmo quando ele está feliz e portanto,
não se pode permanecer tranqüilo sequer por um momento, é o estágio Rudha de Mahabhava, isto é, o estágio em que os
Vikaras sattvicos atingiram o ponto mais elevado. O estágio Adhirudha do Mahabhava é o ponto mais alto do estágio Rudha;
é aquele estágio de felicidade e de dor, que surge respectivamente da união e da separação de Krishna, do qual toda a
felicidade que existe no âmago do universo e também a dor produzida pela mordida de todas as cobras e picadas de todos os
escorpiões são como uma gota no oceano, por assim dizer. A última mencionada atitude da Mahabhava tem duas
características: primeira, Modana, isto é, alegria que é encontrada somente nas amigas de Radha; segunda, Madana,
"inebriação", que é o completo florescimento de todas as emoções sattvicas e de mudanças corpóreas encontradas somente
em Radha. - Bhakti-grantharali de Sri Chakravarty.)
23. O amor de casal, casados de acordo com as regras da sociedade, flui restringido pelas
condições exteriores como nascimento, família, conduta virtuosa, medo da sociedade e da opinião
pública. Esse par vive dentro dos limites dessas regras e suporta sacrifícios para a felicidade de
cada um, tendo em mente diversas coisas que devem ou não ser feitas. Desejosa de observar
rigorosamente as regras sociais duras e rígidas, a mulher casada não hesita, em muitas ocasiões,
em reprimir ou limitar seu relacionamento de amor com seu marido. Mas o comportamento
amoroso de uma amante é diferente. Devido ao impulso do amor, essa mulher com freqüência
desrespeita todas as convenções sociais e não hesita em se unir a seu amado mesmo ao custo
de toda segurança social. Os instrutores Vaishnavas aconselharam os aspirantes a assumirem
para com Deus aquela relação amorosa que tudo devora. Portanto, embora Radha, a senhora
suprema de Vrindavan, fosse a esposa de Ayan Ghosh, foi descrita como aquela que a tudo
renunciou por amor a Krishna.
24. Os instrutores Vaishnavas descreveram a Madhura Bhava como o agregado das
essências das outras quatro doutrinas e algo mais. Porque a mulher que ama serve seu amante
como uma escrava, dá bom conselho sob quaisquer circunstâncias como amiga, sente-se feliz com a
felicidade dele e infeliz com suas aflições, empenha-se como mãe alimentando seu corpo e sua
mente e pensa em seu bem-estar sob todos os aspectos. Assim, anulando totalmente sua própria
personalidade, ela se Ocupa em entreter seu amante e de todas as maneiras proporcionar-lhe alegria
e conforto, mantendo-o assim, inundado de extraordinária paz e felicidade. A mulher que se
esquece sob a influência do amor, mantendo vigilância perfeita no bem-estar e felicidade do
amante é descrita nos livros devocionais como Samartha, "a excelente", e seu amor, o melhor.
Todos os outros tipos de amor, manchados com um traço de egoísmo, foram incluídos em outras
classes, isto é, Samanjasa, "o equilibrado" e Sadharani, "o comum". A mulher da primeira classe
importa-se com a própria felicidade, na mesma extensão que a de seu amante e aquela da
última classe olha o amante como querido somente por causa de sua própria felicidade.
25. Seja como for Chaitanya pregou a glória dos nomes de Deus e ensinou os aspirantes a
conduzirem suas vidas com o ideal de renúncia austera e de colocarem, no que diz respeito ao amor,
na posição de bem-amados de Krishna e assim, tentou sustar a maré de sensualidade que
prevalecia na sociedade daquela época. Seu modo de devoção e de instrução aos aspirantes propiciou
um bem eterno à humanidade. Mostrou o caminho certo àqueles que se haviam desviado, trouxe
para os limites de uma nova sociedade aqueles que haviam sido excomungados e que viviam fora
do pálio das castas, abraçando a todos dentro de uma nova casta chamada "devotos de Deus" e
apresentou o elevado e puro ideal de renúncia e desapego a todas as comunidades. Entretanto, isso
não é tudo. Provou, sem dúvida, que todas as modificações mentais e físicas chamadas "oito
Sattvikas Vikaras"7 (cujas contrapartes tamásicas são produzidas pelo amor e união dos pares
comuns de amantes) (7 As modificações sattvikas são aquelas que produzem uma convulsão de emoção no corpo e
na mente. São oito em número as saber: imobilidade, transpiração, horripilação, dificuldade de pronúncia, tremor, palidez,
lágrimas e perda de consciência. Estão organizadas em cinco graus segundo dêem cada vêz, mais prazer, tirando sua
nomenclatura da capacidade de incandescer do fogo, isto é, fumaça, combustão sem chama, chama, brilho e incandescência.)
realmente sobrevêm ao aspirante possuidor de mente pura, pela intensa meditação e
contemplação do Marido Divino, o Amante do Universo. Isso converteu, naquela época, o
Alankara Sastra, a ciência da retórica, numa escritura espiritual, dando à literatura dramática,
poética e sensual a cor do amor espiritual, tornando-a agradável aos aspirantes espirituais e
levando-os ao progresso. Assim tornou o caminho da Sadhana fácil para eles. Trouxe poesia e
romance à vida do aspirante, além de tornar-lhe fácil amar a Deus como "muito íntimo", seu mais
próximo e querido. Permitiu-lhe sublimar as paixões mais baixas como a luxúria e cólera, dirigindo-
as para o Senhor, ao contrário da prática da Santa-bhava, a atitude de tranqüilidade, na qual as
paixões são simplesmente evitadas ou afastadas.
26. Embora aos olhos de alguns críticos modernos, a Madhura Bhava pareça não ser natural
e adequada para aqueles que têm corpos masculinos, não leva muito tempo para que um
Vedantista constate seu valor. Ele sabe que, como resultado de hábitos antigos, todos os
pensamentos convertem-se em Samskaras na mente humana e que é devido a essas
impressões que o homem percebe as diversidades do Universo, que realmente é o Brahman não-
dual. Se ele puder, pela graça de Deus, realmente considerar o universo como não existente neste
instante, experimentará seu imediato desaparecimento no Vazio. O universo existe para um homem
somente porque ele o considera como existente. Eu sou um homem somente porque me olho
como homem e uma outra pessoa é mulher porque se olha como tal. Assim também é fato da
experiência diária que, quando uma atitude predomina na mente humana, encobre e gradualmente
destrói todas as outras contrárias. Portanto o esforço de um aspirante para encobrir e
gradualmente destruir todas as outras atitudes de sua mente, pela predominância da Madhura
Bhava, é considerado pela Vedanta como semelhante ao esforço de "remover o espinho em seu pé
com a ajuda de outro espinho". A consciência de que "eu possuo um corpo", que é a base de todas
as outras impressões da mente humana e a crença firme, "sou um homem ou uma mulher",
devido à sua ligação com aquele corpo, são as duas tendências dominantes na mente de um ho-
mem. Quando um aspirante masculino é capaz de esquecer sua natureza masculina ao atribuir a
natureza de marido ao Senhor e de esposa a si mesmo, ele, é desnecessário dizer, pode muito
facilmente jogar fora a atitude "sou Sua esposa" e alcançar o estado além de todas as atitudes.
Portanto, o Vedantista acha bastante razoável que um aspirante, quando perfeito na disciplina da
Madhura Bhava, chegue bem perto do plano que transcende todas as atitudes.
27. É o objetivo do aspirante, pergunta-se, a realização atitude devocional de Radha? Os
instrutores Vaishnavas, contudo, não aconselham essa prática. Sustentam que a atitude ser
somente amiga de Radha é atingível, mas não a dela própria. Entretanto, deve inferir-se que a
última é o objetivo final do aspirante, pois a diferença entre a atitude de Radha e a de suas
amigas é somente de grau e não de espécie. Como Radha, suas amigas também adoravam
Krishna, a personificação da Existência-Conhecimento-Bem-Aventurança como seu marido
procuravam realizar a união entre Radha e Krishna, a fim de torná-lo feliz, porque elas
constataram que Ele sentia-se mais feliz unido a ela. Assim também, vemos que embora Rupa,
Sanatana, Jiva e outros instrutores Vaishnavas antigos, que passaram suas vidas em Vrindavan
fazendo o serviço das diferentes imagens de Krishna, não instalaram a imagem de Radha ao lado de
Krishna. Deduz-se que não agiram assim somente porque consideravam-se na posição de Radha.
Aqueles que desejam estudar em detalhe a atitude Madhura Bhava mencionada nos livros
Vaishnavas, deverão pesquisar os escritos dos primeiros instrutores Vaishnavas como Rupa,
Sanatana e Jiva e também os poemas dos poetas Vaishnavas como Vidyapati e Chandidas no
Purvaraga (a aurora do amor divino), Dana (oferenda ou dedicação), Mana (rejeição
emocionada do carinho do Bem-amado devido ao excesso de emoção), Abhimana (o sentimento
ferido do amor) e Madhura ( angústia da separação).8 (8 Essas canções sobre a angústia da separação são,
em conjunto, chamadas Mathur, associadas à cidade de Madhura, porque as Gopis de Vrindavan experimentaram aquela
intensa angústia quando Krishna partiu para Mathura, de onde nunca mais regressou.) Discutimos aqui o essencial da
Madhura Bhava porque assim será fácil compreender que maravilhoso pináculo de excelência o
Mestre atingiu na prática dessa atitude.
CAPÍTULO XIV
ASSUNTOS: 1. O Mestre naturalmente inclinado para os estados espirituais. 2. Efeitos da Sadhana sobre ele. 3.
Sua primeira atitude quanto à Madhura Bhava. 4. A sanção das escrituras para as Sadhanas do Mestre. 5.
Aceitação pelo Mestre dos mandamentos das escrituras. 6. O Mestre usando roupa feminina durante a
Madhura Bhava. 7. Traços femininos manifestam-se nele. 8. O Mestre como amiga, na família de Mathur. 9. A
não identificação do Mestre usando roupa feminina. 10. As mudanças durante a Madhura Bhava. 11. O amor
transcendental do Mestre. 12. O amor transcendental de Srimati. 13. Sri Gauranga sobre o amor
transcendental. 14. A visão de Radha pelo Mestre. 15. A identificação do Mestre com Srimati . 16. As
extraordinárias mudanças físicas do Mestre durante o estado de mulher. 17. A mente cria o corpo. 18. A visão
de Sri Krishna pelo Mestre. 19. Uma aspiração juvenil sua. 20. Os três como o Uno e o Uno como três.
1. O Mestre costumava ficar completamente absorvido em qualquer atitude espiritual
adotada por sua mente pura e concentrada. Essa atitude particular ocupava completamente sua
mente durante aquele período, varrendo todas as outras atitudes, convertendo seu corpo num
instrumento perfeitamente adequado à manifestação daquele estado. Estudando sua vida vemos
essa característica mental presente desde a meninice. Observamos essa sua natureza quase
diariamente quando o visitávamos em Dakshineswar. Enquanto mergulhado numa determinada
atitude espiritual, ao ouvir música devocional, ou por qualquer outra razão, sentia muita dor se
alguém cantasse ou falasse de acordo com outra atitude. Evidentemente ele experimentava dor
porque o fluxo de sua mente numa determinada direção sob a Influência de um estado era
subitamente obstruído pela introdução de outro estado. Patanjali, o grande pensador, descreveu o
estado mental que tem somente uma corrente de pensamento concentrada num objeto
determinado, como sendo Savikalpa-samadhi. O mesmo tem sido descrito como Bhava-samadhi nas
escrituras devocionais. Isso mostra que a mente do Mestre estava acostumada a mergulhar
naquela espécie de êxtase, desde a infância.
2. A característica de sua mente, acima mencionada, tomou novo rumo a partir do
momento em que começou as práticas espirituais. Enquanto nos primeiros tempos sua mente
permanecia somente numa atitude por pouco tempo e depois mudava para outra, notava-se
agora que, uma vez iniciada uma atitude, ela persistia até que progredisse a seus limites
máximos, terminando com um vislumbre da consciência não-dual. Como exemplos desse fato
pode-se dizer que enquanto não alcançou o limite máximo da atitude Dasya, ele não praticou
Apatya ou atitude no qual a pessoa considera Deus como Pai ou Mãe; da mesma maneira não
se empenhou em praticar as atitudes de Vatsalya e Madhura Bhava antes de ter a experiência
final de Apatya, como ensinado nos Tantras. Exemplos desse tipo podem facilmente multiplicar-
se ao estudarmos os acontecimentos da época de sua Sadhana.
3. Quando a Brahmani chegou, a mente do Mestre estava profundamente empenhada na
contemplação da Maternidade de Deus. Nessa época ele via a manifestação real da Mãe Divina
em todas as criaturas sensíveis ou insensíveis, mas especialmente naquelas que tinham a forma
feminina. Por isso, compreendemos claramente a razão pela qual ele se dirigiu à Brahmani
como "mãe" logo que a viu e que acreditava plenamente ser seu filho, sentava-se em seu colo
e tomava alimento de suas mãos. Inspirada pelo estado devocional das Gopis de Vraja, às
vezes a Brahmani cantava canções que transmitiam a idéia de relacionamento conjugal com
Deus, quando o Mestre dizia, segundo o testemunho de Hriday, que ele não gostava daquela
atitude e pedia-lhe que parasse e cantasse canções expressando a Maternidade de Deus. A
Brahmani rapidamente compreendeu a atitude do Mestre e começou a cantar canções relativas
ao estado de atendente feminina da Mãe do Universo; ou apresentava canções tomadas da
afeição explosiva de Yasoda por seu Gopala. Esses são, naturalmente, fatos que ocorreram
muito antes dele se empenhar na atitude de Madhura Bhava. Sua sinceridade transparente e
pura está evidente com esses fatos. Como ele mesmo costumava dizer: "Não existe simulação
em minha mente."
4. Já vimos como o Mestre passou pelas atitudes de servo de Deus e também, de Seu
filho. Descreveremos agora as práticas nas quais ele se empenhou na disciplina de Madhura
Bhava. Embora o Mestre fosse quase "iletrado", como a palavra é comumente entendida, um estudo
de sua vida revela como ele manteve a autoridade das escrituras durante toda a vida. Mesmo suas
primeiras Sadhanas efetuadas sem a ajuda de qualquer Guru e guiadas pelos puros impulsos de
seu coração, não estavam em contradição com os Sastras. Provaram somente sua universalidade
- a verdade que o sucesso preencherá os esforços de qualquer pessoa nesse campo, desde que seu
coração seja puro, santo e cheio de aspiração, "sem qualquer dissimulação". E não há nada com o
que se admirar; pois, pensando um pouco veremos que as escrituras foram compiladas dessas
experiências originais. Os textos que fazem parte dos Sastras são somente o relatos das
experiências de corações como o do Mestre. São o resultado de seus esforços para a realização
da Verdade. O Mestre, contudo, era iletrado e por isso, sem qualquer conhecimento prévio desses
Sastras. Entretanto alcançou a realização dessas verdades nele relatadas, por seus esforços
independentes. Essa vida extraordinária, portanto, desenvolve-se somente para provar a
universalidade das experiências descritas nas escrituras e são somente a confirmação, e não a
contradição, das escrituras. Swami Vivekananda salientou esse ponto quando disse: "A razão do
Mestre encarnar-se nesta época, como pessoa iletrada, foi para provar que os estados e experiências
contadas nos Sastras são verdadeiros."
5. Como exemplos da adesão instintiva do Mestre à autoridade das escrituras, podemos
mencionar aqui a maneira pela qual ele vestia diferentes vestimentas, uma atrás da outra, sob o
impulso das diversas atitudes. Os videntes disseram através dos Upanishads que não se pode
alcançar a perfeição somente por Tapas, sem a adoção de emblemas externos.1 (1 Mundaka Upunishad
3,2,4. A Auto-realização não é possível somente pelo Conhecimento, sem utilizar os sinais de Sannyasa, i. é, roupa ocre etc.) Vê-
se na vida do Mestre que, impelido por seu coração, ele vestiu roupas e outros emblemas
exteriores propícios às práticas de qualquer atitude espiritual que adotasse na ocasião. Por
exemplo, usou roupas vermelhas, cinzas, vermelhão e contas de Rudraksha como determinados nos
Tantras, quando estava praticando a atitude filial com Deus, como Mãe. Por ocasião das atitudes
devocionais dos livros Vaishnavas vestiu o Bhek, a conhecida roupa tradicional dos ascetas
Vaishnavas, que consistia de roupa branca, pasta branca de sândalo, grinaldas de contas feitas
do sagrado basil, etc. Desejando realizar o estado não-dual, ensinado na Vedanta, vestiu a roupa
ocre, abandonou o cordão sagrado e o tufo de cabelo no alto da cabeça. Assim também, quando
assumiu várias formas masculinas de vestimenta na época dos estados masculinos, não hesitou em
enfeitar-se com roupas e adornos femininos, enquanto praticava as atitudes femininas. O Mestre
ensinou-nos em diversas ocasiões, que não se poderia realizar Deus enquanto não se liberasse dos
oito grilhões: vergonha, ódio, medo e egoísmo devido ao nascimento, família, boa conduta etc. que
acompanham a pessoa de uma vida para a outra. O quanto ele próprio seguiu esse ensinamento
durante toda a vida, no corpo, na mente e na fala, pode claramente ser compreendida pelo estudo
cuidadoso de todas as suas ações, incluindo aquela de usar roupas especiais, ornamentos e outros
emblemas apropriados, por ocasião das diferentes Sadhanas.
6. Empenhado nas práticas da Madhura Bhava, o Mestre ficou ansioso em usar roupas e
enfeites femininos. Sabedor de seu desejo, o grande devoto Mathur teve o prazer de adorná-lo
algumas vezes com um sari luxuoso e outras vezes, com uma anágua, uma echarpe de gaze e um
corpete. Querendo fazer com que seu modo de vestir feminino fosse perfeito, Mathur embelezou-o
com uma peruca de cabelos longos e um conjunto de jóias de ouro. Esse presente de Mathur,
soubemos de fonte confiável, deu às pessoas maldosas a oportunidade de caluniar a austera
renúncia do Mestre. Mas nem ele nem Mathur prestaram atenção. Mathur ficou extremamente feliz
com a satisfação que havia dado ao "paizinho" e isso era seus olhos justificativa suficiente. Vestido
dessa forma, enfeitado com tais jóias, o Mestre identificou-se totalmente com o estado das
mulheres devotas de Vraja, perdidas de amor por Krishna e sua consciência masculina desapareceu
completamente. Seus pensamentos, palavras e movimentos passaram a se parecer em todos os
aspectos com os de uma mulher. Ouvimos do Mestre que ele esteve nesses trajes de mulher durante
seis meses, com a mente absorvida no sentimento de que era a esposa espiritual de Deus.
7. Já mencionamos em outro lugar a extraordinária coexistência, no Mestre, dos
temperamentos masculino e feminino. Portanto, deve-se imaginar que, sob a influência de roupas
femininas, o temperamento do belo sexo tenha surgido nele? Mas ninguém jamais poderia ter
imaginado que, sob o impulso dessa atitude, seus movimentos, fala, sorriso, olhar, gestos e
outras ações do corpo e de sua mente poderiam tornar-se completamente femininos. Que tudo
isso tenha ocorrido, por mais impossível que possa parecer, foi confirmado tanto por Hriday
quanto pelo próprio Mestre. Ao freqüentarmos Dakshineswar, vimo-lo imitar, diversas vezes, os
modos das mulheres. Essas imitações costumavam ser tão naturais e perfeitas que até as
senhoras ficavam admiradas.
8. Naquela época às vezes o Mestre ia à casa da Rani Rasmani em Janbazar e ali vivia com
as senhoras, nos cômodos internos. Acostumadas à pureza de caráter do Mestre e com a ausência
de qualquer traço de luxúria, as senhoras consideravam-no divino. Além disso elas agora estavam
encantadas com seu comportamento feminino simpaticamente tão afinado com o delas. Portanto,
habituaram-se a pensar nele como uma delas e deixaram de sentir qualquer hesitação feminina ou
vergonha em sua presença (III.7). Nessa época, quando o marido de uma das filhas de Mathur veio
à casa de Janbazar, o Mestre, soubemos dele próprio, adornou-a com as melhores roupas e jóias, fez
seu cabelo, instruiu-a de diversos modos como entreter o marido, conduziu-a pela mão, como uma
amiga, ao quarto de seu marido e voltou, depois de fazê-la sentar-se junto dele. Ele dizia: "Como
elas me consideravam uma amiga, não se sentiam constrangidas."
9. "Quando ele estava assim cercado pelas senhoras", Hriday dizia: "era difícil até para os
parentes próximos, reconhecê-lo imediatamente. Um dia naquela época, Mathur Babu levou-me ao
cômodo interno e perguntou: 'Pode dizer-me qual delas é seu tio?' Embora eu tivesse vivido com ele
durante tanto tempo e o servido diariamente, não pude, de imediato, distingui-lo. Nesse período de
sua vida, em Dakshineswar, o tio costumava apanhar e juntar flores no jardim, logo de manhã. Nós o
observávamos cuidadosamente e notávamos que, sempre que começava a andar, seu pé esquerdo
movimentava-se em primeiro lugar, como o de uma mulher. A Bhairavi Brahmani costumava dizer:
'Muitas vezes eu o confundi com Sri Radharani, quando o via apanhar flores daquele jeito'. Depois
de apanhar flores e fazer grinaldas variadas, costumava enfeitar Radha-Govinda todos os dias e
às vezes, tendo adornado a Mãe do universo também daquele jeito, orava implorando-lhe,
como faziam as Gopis de Vraja a Katyayani, para deixá-lo ter Krishna como seu Marido Espiritual.
10. Desejoso da visão de Krishna e de tê-lo como seu Esposo Espiritual, o Mestre agora
fazia o serviço e o culto da Mãe Divina. Empenhou-se então no serviço dos sagrados pés de
Krishna com a mente concentrada e passava os dias em oração anelante e ansiosa. Essa oração
ardente em seu coração jamais cessava - nem durante o dia nem durante a noite. Dias e meses
transcorreram sem sucesso, mas nem o desespero nem qualquer abatimento diminuiram-lhe a
ânsia. Sua oração expressava-se em lágrimas copiosas e num anseio da alma que se
desenvolveu numa inquietude, num anelo ansioso pelo bem-amado, como um possesso,
fazendo-o esquecer-se de comer, dormir e dos cuidados vitais com corpo. E como vamos
descrever a agonia da separação - um anseio pela completa união durante todo o tempo - do
querido do seu coração, agora obstruída cruelmente por múltiplas barreiras; esse anseio que
agita seu coração, devasta sua mente e destrói seu corpo e seus órgãos dos sentidos -como
poderemos descrever a agonia produzida por tal anseio? Além disso, essa agonia de separação
não terminou simplesmente ao manifestar-se como estados mentais agonizantes, mas também
ocasionou outra vez aquela queimação ardente, insuportável e aquele intenso calor que ele
sentia por todo o corpo durante os estágios iniciais de sua Sadhana. Ouvimos do próprio
Mestre que gotas de sangue saíam às vezes de cada poro, devido ao poderoso sentimento de
separação de Krishna. Todas as juntas de seu corpo pareciam afrouxar-se ou quase deslocar-se,
os sentidos abstinham-se de funcionar e o corpo permanecia imóvel e inconsciente, às vezes
como o de um morto - tudo devido à extrema angústia do coração.
11. Nós, eternamente identificados com o corpo e conscientes de ser isso e somente
isso, entendemos por amor, a atração de um corpo por outro. Ou se formos, como resultado
de um forte esforço estrênuo, apenas um pouco além da consciência do corpo denso e olharmos
o amor como atração para um agregado de qualidades nobres manifestadas num determinado
corpo, chamamos a isso amor transcendental e lhe cantamos aleluia. Mas não nos leva muito
tempo compreender que mesmo esse chamado amor transcendental, louvado por gerações de
poetas, não está livre da consciência do corpo denso e dos desejos sutis por prazer. Ah, quão
sem valor, insignificante e vazio esse amor parece em contraste com o verdadeiro amor
transcendental manifestado na vida do Mestre!
12. Somente Srimati Radharani, dizem as escrituras devocionais, compreendeu esse amor
transcendental, em toda sua plenitude. Nela temos o modelo perfeito. Em nenhuma das escrituras
devocionais ninguém pode ser encontrado igual a ela pois, completamente esquecida das próprias
satisfações do corpo e da mente, ela pôde abandonar vergonha, ódio e medo, sem se importar com a
opinião pública e social: pôde pisar no prestígio devido a nascimento, família, boa conduta e posição
respeitável, a fim de sentir-se feliz somente com a felicidade de Krishna. Segundo essas
escrituras Vaishnavas nenhum Jiva pode alcançar a plenitude dessa forma de amor; somente
uma realização parcial dele pode ser atingida pelo Sadhaka e mesmo assim, somente pela graça de
Radha, porque Krishna, a personificação de Existência-Conhecimento-Bem-Aventurança está
eternamente cativado por seu amor, destituído do mais leve traço de luxúria e atende ao desejo
dos devotos por Sua visão, por intercessão dela. A implicação desses ensinamentos é que,
enquanto uma pessoa não realizar o tipo de amor experimentado por Srimati (Radha),
personificação do amor transcendental, não se pode ter Deus como marido e sentir a perfeita doçura
do amor que é chamado Madhura Bhava.
13. Embora a glória extraordinária do amor de Radharani por Krishna tenha sido altamente
louvada por Sukadeva, o líder dos Paramahamsas e por outros sábios dotados de auto-controle,
livres do domínio de Maya, a maioria das pessoas na Índia não soube durante muito tempo como
realizá-Lo em suas vidas. A fim de fazer as pessoas compreenderem a realizá-Lo, o Senhor, dizem as
escrituras Vaishnavas, teve de encarnar-Se como Srimati num mesmo corpo, com Krishna no
interior e Radha no exterior, naquela personificação extraordinária d'Ele que é conhecida como
Gauranga ou Sri Chaitanya. Assim Gaurang veio à terra para fazer bem à humanidade, ensinando-lhe a
relação extraconjugal do amor no campo espiritual, tendo Deus como amante e o Jiva como a
mulher apaixonada por Ele. Todos os sinais observados no corpo de Radharani, devido ao amor por
Krishna, também manifestaram-se no corpo de Gauranga pelo poder de seu amor por Deus, apesar
de ser homem. Disso podemos afirmar que Gauranga era Srimati; porque os sinais físicos e
mentais de Madhura Bhava, que se manifestaram somente em Srimati no passado, também
foram observados nele. Assim Sri Gauranga é o segundo exemplo do ideal de amor
transcendental.
14. Assim compreendendo que alcançar a visão de Krishna era impossível sem a graça
de Radha, o Mestre agora passou a se dedicar integralmente à conquista do Seu favor. Perdido
na lembrança e reflexão da forma de Radha, a personificação do amor, ele incessantemente
oferece a Seus pés de lótus as emoções ardentes de seu coração. Em conseqüência foi logo
abençoado com a visão da forma sagrada de Radha, destituído do menor traço de luxúria. Viu
então que aquela forma desaparecia também em seu próprio corpo, como as outras divindades
ao ter suas visões, "É sempre possível", dizia o Mestre, "descrever a glória e a doçura dessa
incomparável, pura, brilhante forma de Radha, que a tudo renunciou por amor a Krishna! O
esplendor de seu corpo era amarelo brilhante como o pólen das flores Nagakesara (mesua
férrea).
15. Daí em diante o Mestre começou a se considerar Srimati em êxtase. Perdeu
completamente a consciência da existência separada devido à contemplação da forma sagrada
e do caráter de Radha e ao sentimento incessante de identificação com ela. Por isso pode-se
dizer com certeza que seu amor por Deus, tomando a forma de relacionamento conjugal,
desenvolveu-se num estado tão profundo com o de Radha, pois na realidade todos os sinais de
Mahabhava, que constituem o ápice da Madhura Bhava, manifestaram-se nele depois da visão
acima mencionada, como o foram em Radha e Gauranga. As descrições dos sinais físicos que
se manifestam no Mahabhava são relatados nos escritos dos reverenciados instrutores
Vaishnavas. A Bhairavi Brahmani e mais tarde Vaishnavacharan e outros Sadhakas, todos bem
versados nas escrituras Vaishnavas, ficaram espantados ao ver a manifestação daqueles sinais
do estágio Mahabhava do relacionamento conjugal, na pessoa sagrada do Mestre e prestaram-
lhe, do fundo do coração, sua adoração e reverência. Falando da Mahabhava, o Mestre nos
disse, em diversas ocasiões: "Está escrito nas escrituras devocionais que o conjunto de
dezenove tipos de emoções que se manifestam num único receptáculo, é chamado Mahabhava.
É necessária uma vida inteira para que o homem pratique somente uma dessas emoções,
antes que possa alcançar perfeição nela. Dezenove desses estados foram totalmente
manifestados aqui (mostrando seu próprio corpo) num único receptáculo."2 ()
2
As divisões da Ragatmika Bhakti segundo os instrutores Vaishnavas como Jiva Goswami, são dadas abaixo:
16. Já mencionamos anteriormente que saía sangue de cada poro do corpo do Mestre
devido à extrema angústia pelo sentimento de separação de Krishna. Isso aconteceu nessa
época, último estágio da Mahabhava. Ele tornava-se tão absorvido no pensamento constante de
si mesmo como mulher, que não podia considerar-se como pessoa de outro sexo, mesmo em
sonho. Seu corpo e seus sentidos funcionavam naturalmente como os de uma mulher.
17. A Vedanta ensina que é a mente do homem que criou seu corpo na forma atual e
que o está transformando a cada momento de sua vida, ao decompô-lo e a tornar compô-lo por
meio de intensos desejos. Embora já nos tenham falado do grande controle da mente sobre o
corpo, na realidade não compreendemos sua completa extensão. Isto porque não há objeto para
o atingimento do qual experimentamos aquele tipo de desejo intenso, sob a influência do qual a
mente desliga-se de todos os outros objetos e concentra-se naquele particular e por ele
manifesta poderes extraordinários. Este ensinamento da Vedanta, é desnecessário acrescentar,
está claramente provado pelo fato de que o corpo do Mestre mudou em pouco tempo, devido ao
intenso desejo de experimentar determinado objeto. Ouvindo os detalhes das experiências
espirituais do Mestre e desejando compará-las com as dos videntes perfeitos de épocas passadas,
Padmalochan e outros Pandits eminentes disseram ao Mestre: "Suas experiências ultrapassaram as
relatadas nos Vedas e Puranas." Fica-se admirado ao estudar as mudanças físicas do Mestre sob a
influência de suas fortes emoções e tem-se que salientar que as modificações de seu corpo foram
além dos fatos até então descobertos pela fisiologia e indicam o início de uma maravilhosa revolução
nesta.
18. À medida que sua consciência de Deus como marido tornava-se perfeita e intensificada,
experimentava dessa maneira a graça de Radharani, a suprema Senhora de Vraja e finalmente,
pouco tempo depois foi abençoado com a sagrada visão de Krishna, personificação de Existência-
Conhecimento-Bem-aventurança puros. Essa forma de Krishna realizada na visão, também
fundiu-se com sua sagrada pessoa como todas as outras formas percebidas anteriormente. Tota
Puri, o Paramahamsa, chegou dois ou três meses depois do Mestre ter tido aquela visão e o fez
dedicar-se à disciplina do estado espiritual não-dual, bem conhecido na Vedanta. Perfeito nas
práticas de Madhura Bhava, o Mestre, é claro, vinha desfrutando a felicidade divina, naquele estado,
há pouco tempo. Ouvimos do próprio Mestre que naquela ocasião, ele se perdia completamente no
pensamento de Krishna e às vezes considerava-se Krishna e olhava todos os seres, desde
Brahman até uma folhinha de grama como formas de Krishna. Quando freqüentávamos
Dakshineswar e estávamos em sua companhia, um dia apanhou uma flor de grama, veio ao nosso
encontro com o rosto brilhando de alegria e disse: "A pele de Sri Krishna, que eu costumava ver
então (na época em que praticava Madhura Bhava) era como esta."
19. Um desejo sob o impulso do estado feminino costumava surgir na mente do Mestre
durante sua adolescência, antes de deixar Kamarpukur para ir a Calcutá. Sabendo que as Gopis de
Vraja tinham Krishna, a personificação de Existência-Conhecimento-Bem-aventurança puros como
seu marido espiritual por meio do amor, porque haviam nascido mulher, ele costumava pensar
que ele, também, teria sido abençoado o suficiente para amar e ter Krishna como marido, se tivesse
nascido numa forma feminina. Considerando seu corpo masculino como um obstáculo para alcançar
Krishna, imaginou então que, se nascesse novamente, se tornaria uma linda viúva-menina, de
cabelos compridos, numa família Brahmana e conheceria como marido somente Krishna. Teria para
subsistência o suficiente em comida e roupa simples. Em volta da cabana haveria um Katha3 (3
Isto é, 0,O16 acres.) ou dois de terra, onde ela cultivaria, com suas próprias mãos, algumas verduras e
legumes para consumo próprio. E teria com ela uma senhora mais velha como guardiã, uma vaca
que ela mesmo ordenharia e uma roça. A imaginação do menino ia além. Continuava pensando que
durante o dia, depois de terminar os trabalhos domésticos, ficaria naquela roca, cantando a respeito
de Krishna e depois do crepúsculo choraria ardentemente em segredo, ansiando alimentar Krishna
com suas próprias mãos, com doces feitos do leite daquela vaca. Krishna também ficaria
satisfeito e chegando vestido de pastor, os comeria. Essa chegada e partida repetir-se iam
diariamente sem o conhecimento das outras pessoas. Embora de maneira diferente, seu desejo a
esse respeito veio a se realizar da maneira que já mencionamos, por ocasião de sua prática de
Madhura Bhava.
20. Concluiremos o presente tópico relatando outra visão do Mestre, enquanto desfrutava
Madhura Bhava. Um dia naquela época, enquanto ouvia a leitura do Bhagavata diante do templo de
Vishnu, entrou em êxtase e teve a visão da luminosa forma de Sri Krishna. Viu que um raio de luz,
como um fio, saía de Seus pés de Lótus, tocava o livro, depois o coração do Mestre e permaneceu
tocando simultaneamente os três por algum tempo. Surgiu daquela visão a firme convicção de
que, embora os três, isto é a escritura, o devoto e Senhor aparecem como entidades diferentes,
são uma e a mesma coisa; em outras palavras são manifestações da mesma Realidade. "Os três -
o Bhagavata ( a escritura), o Bhakta (o devoto) e o Bhagavan (Senhor) - são o Uno e o Uno são
os três", ele dizia.
CAPÍTULO XV
ASSUNTOS: 1. Um estudo do estado mental do Mestre nessa época. 2. A Sadhana mesmo depois da
realização: seu significado. 3. A mãe do Mestre em Dakshineswar. 4. Ausência de avareza nela. 5. Saída de
Haladhari e a chegada de Akshay. 6. Praticando o estado não dual depois da perfeição. Em Bhavasamadhi;
sua explicação. 7. Estado-não dual e estado devocional . 8. Sri Tota em Dakshineswar. 9. O Mestre
recebendo instrução divina para praticar Vedanta. 10. O conceito de Tota sobre a Mãe do Universo. 11. A
iniciação do Mestre em Sannyasa, feita de forma privada. 12. Execução de ritos preliminares. 13. Mantras de
oração preliminares à iniciação em Sannyasa. 14. O conteúdo do Mantra do Viraja-Homa. 15. O Mestre
abandonando o cordão sagrado e o tufo. 16. A exortação de Tota. 17. O Mestre atinge Nirvikalpa Samadhi.
18. A avaliação de Tota e sua surpresa. 19. Tota faz o Mestre descer do Samadhi. 20. O Mestre cura Jagadamba
Dasi.
CAPÍTULO XVI
1. O corpo robusto do Mestre ficou enfraquecido e doente durante alguns meses, seja como
resultado da cura da doença fatal de Jagadamba Dasi, como mencionado antes, seja de seus
esforços sobre-humanos durante seis longos meses para morar continuamente no plano de
consciência não-dual. Ele nos disse que teve, então, grave crise de disenteria. Seu sobrinho
Hriday empenhou-se em cuidar dele dia e noite. Mathur colocou-o sob tratamento com Gangaprasad
Sen, o famoso médico e tomou medidas especiais para sua dieta etc. Embora seu corpo estivesse
muito doente, é surpreendente ver quão extraordinariamente calma e feliz estava sua mente, livre
da consciência do corpo. À menor sugestão, sua mente libertava-se da consciência do corpo e ao
mesmo tempo das garras da doença e de todos os objetos e experiências do mundo e ficava
absorvido no plano sutil de Nirvikalpa, onde nenhuma modificação mental pode perturbar. Mal
ouvia as palavras Brahman, Atman ou Isvara, mergulhava em seu conteúdo, esquecendo todas as
outras coisas e sua própria existência separada durante certo tempo. Está claro, pois, que
apesar da severa dor em seu corpo devido à seriedade da doença, na realidade muito pouco a
sentia. Mas a dor, devido à doença, ouvimos do próprio Mestre, fazia sua mente descer às vezes
de planos elevados da experiência espiritual e tornava-se consciente do corpo. O Mestre dizia que
foi durante essa época que os mais importantes Paramahamsas, seguidores da Vedanta,
costumavam visitá-lo. Seu quarto estava sempre reverberando com os sons de suas discussões a
respeito dos preceitos da Vedanta, como Neti, Neti (isto não, isto não), o Sat-Chit-Ananda
(Existência-Conhecimento-Bem-aventurança Absolutos) Ayam-atma Brahma (este Ser é
verdadeiramente Brahman) e assim por diante. Quando, durante as discussões desses elevados
ensinamentos vedantistas, não chegavam a uma conclusão correta sobre alguma questão, o Mestre
tornava-se o árbitro e decidia. Não é necessário acrescentar que estivesse ele sempre distraído,
como as outras pessoas, por sua doença, nunca lhe teria sido possível ter tomado parte
constantemente naquelas discussões filosóficas de difícil compreensão.
2. Foi aproximadamente no final do período de seis meses de sua absorção no plano
Nirvikalpa, que o Mestre teve, como descrito em detalhe em outro lugar (II.8), a maravilhosa
experiência auditiva, ordenando-lhe, pela terceira vez, que "permanecesse em Bhavamukha".
Embora a chamemos experiência auditiva, o leitor deve entendê-la como realização, do fundo do
coração, pois o Mestre não a ouviu, ao contrário das duas ocasiões anteriores, da boca de
qualquer forma visível. Agora ela lhe vinha como consciência imediata da existência dessa idéia
ou expressão de vontade na mente cósmica de Brahman onipresente. Sua mente estava então na
maior parte do tempo, em completa unidade com o Ser Não-dual Absoluto e sempre que, por
períodos breves, ele sentia um obscuro sentido de diferença do Absoluto, estava pousado na
consciência de ser parte do Brahman que tudo penetra, com atributos (Savisesha-Brahman) que é
o mesmo que a Mãe do universo (III.3). Devido a essa realização, o objetivo futuro de sua vida
foi-lhe completamente revelado.
Ele não necessitava de corpo, nem lhe foi deixado qualquer traço de 'vontade de viver',
contudo veio ordem da Mãe universal para 'permanecer' em Bhavamukha". Disse o Mestre que
deveria dali para frente viver no corpo de acordo com a vontade e propósito do jogo Divino. Para
isso seu corpo deveria sobreviver e isso não teria sido possível se ele tivesse de permanecer
identificado eternamente com Brahman. Daí a ordem divina. Veio também a conhecer suas vidas
anteriores, através de Jatismaratwa (poder de se recordar de vidas passadas) como também ser um
Adhikarika-purusha (aquele que tem comissão divina especial), ou melhor, uma Encarnação de
Deus, eternamente puro por natureza, mas agora havia assumido um corpo e feito Sadhanas para
deter o declínio da religião na época moderna e propiciar bem-estar à humanidade. Além disso
veio a saber que foi visando cumprir algum propósito especial Seu que a Mãe universal trouxe-o à
terra como filho de uma pobre família Brahmana, destituído de toda grandeza de poderes exteriores.
Veio a saber também, que somente algumas pessoas seriam capazes de conhecer e entender,
durante sua vida, o mistério daquele jogo da Mãe Divina e que logo que a maioria das pessoas
começassem a compreendê-lo, a Mãe absorveria Seu filho em Sua própria Pessoa; mas que as
ondas espirituais que seu corpo e sua mente gerariam continuariam a se movimentar com força
ainda maior, depois de seu desaparecimento, contribuindo para o bem-estar da humanidade.
3. Devemos recordar-nos de algumas afirmações das escrituras, se quisermos
compreender como o Mestre pôde ter aquelas experiências extraordinárias. O aspirante, dizem as
escrituras, alcança Jatismaratwa 1 (1 As vidas anteriores são recordadas ao se alcançar o conhecimento dos
Samskaras (impressões passadas). Aforismos de Patanjali - 4.18.) antes de se tornar totalmente estabelecido na
Consciência Pura, com a ajuda do estado não-dual. Em outras palavras, com o pleno
desenvolvimento dessa lembrança, sua memória alcança tal estado de maturidade, que o histórico
completo de sua transmigração - como, onde, quantas vezes foi encerrado em corpos e que ações,
boas ou más, fez -é-lhe revelado com grande nitidez. A experiência apresenta à sua mente, a
lição da transitoriedade de tudo e completa futilidade do envolvimento no ciclo repetitivo de
nascimentos e mortes e da busca de prazeres atingíveis através dela. O intenso desapego que
então surge no coração do aspirante liberta-o de todos os desejos.
4. O Upanishad2 (2 Chandogya Upanishad, 8.2.) diz que os desejos dessas pessoas se realizam
que suas mentes podem, através do Samadhi, explorar qualquer esfera que desejar, seja dos
deuses ou dos ancestrais ou de quaisquer outros seres extraterrestres. Patanjali, o grande sábio,
menciona em seus Yoga Sutras, que todos os tipos de poderes ióguicos são alcançados por essas
pessoas. Assim também o autor do Panchadasi, reconciliando as contradições aparentes envolvidas
na coexistência dos poderes ióguicos e ausência de desejo na mesma pessoa, sustenta que, embora
elas atinjam tais poderes maravilhosos, jamais utilizam para seus interesses particulares, pela
simples razão que não possuem desejos, Totalmente dependentes da vontade de Deus, somente
os Adhikarikas, entre eles usavam, às vezes, aqueles poderes para o bem-estar de muitos. É por
isso que o autor de Panchadasi diz que essa pessoa tem o poder, mas não a necessidade, de mudar
as circunstâncias mundanas, nas quais ela alcança o conhecimento de Brahman e passa seu tempo
naquele estado.
5. Se estudarmos a vida do Mestre nessa época, à luz do acima mencionado, o 'como' e o
'porquê' da maioria de suas realizações extraordinários, senão todas elas, são plenamente
revelados. Pode-se compreender, como resultado da oferenda de todo coração de si mesmo aos pés
de lótus do Senhor, a maneira como ele pode alcançar o perfeito desapego e como, em tão
pouco tempo, pôde ascender e firmemente estabelecer-se no plano Nirvikalpa de conhecimento
de Brahman. Pode-se compreender como ele alcançou Jatismaratwa, através do qual teve o
conhecimento imediato que o Uno, que Se manifestou como Rama e Krishna em épocas passadas
e fez bem à humanidade, assumiu novamente um corpo e manifestou-Se atualmente como
"Ramakrishna"(II.21). Pode-se compreender porque ele jamais utilizou os poderes divinos para o
conforto do próprio corpo e mente, embora as manifestações desses poderes, para o bem da
humanidade, ocorressem quase diariamente; porque ele podia e despertava nos outros o poder de
realizar verdades espirituais com um simples olhar ou desejo; e porque sua extraordinária influência
está se espalhando lenta mas efetivamente, conquistando domínio em todos os países do mundo.
6. Assim o Mestre conheceu seu passado e seu futuro quando desceu do estado não dual
ao campo das idéias, onde ficou estabelecido final e totalmente. Mas todas essas experiências não
parecem ter-lhe vindo subitamente num dia. Ele, deduzimos, teve o conhecimento perfeito de todas
essas coisas após um ano de sua descida ao campo das idéias. Nessa ocasião a Mãe do universo
esteve removendo, por assim dizer, véu após véu, diante de seus olhos, explicando-lhe com
clareza tudo aquilo, dia após dia. Se nos perguntarem porque todas aquelas experiências não
foram reveladas, simultaneamente ao Mestre, respondemos que, estabelecido no estado não-
dual de consciência e completamente perdido na felicidade de Brahman, ele não tinha tempo ou
inclinação para conhecê-las, até que a mudança na mente tomou a direção para o exterior.
Assim cumpriu-se a oração sincera à Mãe do universo no começo de sua Sadhana: "Mãe, não
sei o que devo fazer, aprenderei o que Tu mesma me ensinares."
7. Firmemente estabelecido no plano não-dual de consciência, o Mestre realizou também
outro fato. Veio a sentir, no fundo do coração, que a realização da não-dualidade era o objetivo
último de todos os tipos de disciplinas, pois, tendo feito Sadhanas segundo os ensinamentos
de todas as religiões que prevaleciam na Índia, já estava convencido de que todas levam os
aspirantes ao plano não-dual. Perguntado a respeito do estado não-dual, ele, portanto, disse-
nos várias vezes: "É o final, meu filho, o ápice, que vem por si mesmo na vida de todos os
aspirantes, como o desenvolvimento último de seu amor por Deus. Saiba que se trata da última
palavra de todas as crenças e as crenças são só caminhos (e não o objetivo)."
8. Tendo assim tido a experiência direta da Não-dualidade, a mente do Mestre foi
tomada de ilimitada catolicidade. Passou a ter uma simpatia extraordinária por todas as
comunidades religiosas que ensinavam que o objetivo da vida humana era a realização de Deus.
Mas não compreendeu a princípio que esta catolicidade e simpatia universal eram descobertas
suas (IV.4) e que nenhum aspirante, nem mesmo o mais importante entre eles, pôde, no
passado, alcançá-las de forma tão completa como ele. Veio a tomar conhecimento desse fato
gradualmente, ao longo de seu contato com Sadhakas, sábios pertencentes às diversas
comunidades religiosas no templo de Kali em Dakshineswar e em outros bem conhecidos
lugares de peregrinação. Daquela época em diante não pôde mais suportar intolerância e
exclusivismo em assuntos religiosos e tentou todos os meios para corrigir aquela visão estreita.
9. Podemos claramente compreender, de um acontecimento recente, como o
estabelecimento na consciência não-dual conduziu a mente do Mestre a um estado de extrema
liberalidade. O Mestre, já vimos, ficou doente durante alguns meses depois de ter alcançado o
ápice de sua prática da atitude não-dual. O evento em referência ocorreu logo após sua
recuperacão. Por essa época um ardente aspirante espiritual chamado Govinda Ray, que devia
há muito tempo estar buscando Deus, chegou a Dakshineswar. Hriday contou-nos que ele era
um Kshatriya por nascimento. Talvez fosse conhecedor das línguas persa e árabe. Tendo estudado
as diversas doutrinas e entrado em contato com várias comunidades religiosas, foi por fim,
atraído pela doutrina liberal do Islamismo e formalmente iniciado nela. Govinda, sedento da
verdade, aceitou a fé islâmica, mas não podemos dizer o quanto seguiu suas maneiras sociais e
seus costumes. Contaram-nos que logo que foi iniciado, dedicou-se ardentemente à leitura do
Corão e às práticas religiosas prescritas por aquela escritura. Govinda era um ardente amante de
Deus. O método de adorar a Deus segundo os ensinamentos e atitude mental prevalecente entre os
Sufis, seguidores de uma das seitas islâmicas, parecem ter cativado sua mente; porque ele agora
empenhava-se dia e noite na prática das atitudes devocionais, como a dos Derviches, devotos dessa
seita.
10. De uma maneira ou outra, Govinda chegou ao templo de Kali em Dakshineswar e
começou a passar o tempo com seu "Assento" estendido sob a sombra cheia de paz do Panchavati
que, pensou, era um lugar favorável às práticas religiosas. Assim como os Sannyasins hindus, os
faquires muçulmanos também eram bem-vindos ao templo de Kali da Rani Rasmani e a
hospitalidade era igualmente oferecida a ambos. Portanto, enquanto ali estava, Govinda não
tinha que sair para esmolar. Feliz, passava os dias em práticas espirituais segundo os
ensinamentos de sua religião.
11. O Mestre foi atraído para o devoto Govinda e depois de conversar com ele, ficou
encantado com sua fé sincera e seu amor a Deus. A mente do Mestre estava assim atraída para a
religião islâmica. "Esse também", pensou: "é um caminho para a realização de Deus. A Mãe
esportiva, fonte de Lila infinita, vem abençoando muitas pessoas com o atingimento de Seus pés de
Lotus também por este caminho. Devo ver como as pessoas que n'Ela tomam refúgio são
conduzidas à realização de suas aspirações espirituais. Vou ser iniciado por Govinda e empenhar-
me na prática dessa atitude espiritual."
12. O pensamento foi imediatamente seguido pela ação. O Mestre expressou seu desejo a
Govinda e foi iniciado. Empenhou-se na prática do Islamismo segundo suas regras. O Mestre dizia:
"Eu repetia a sílaba sagrada 'Allah' com grande devoção, usava roupas como os muçulmanos,
dizia o Namaz três vezes ao dia e nem me sentia inclinado a ver as divindades hindus, isso para
não falar em saudá-las à maneira hindu de pensar, desapareceu de minha mente. Passei três
dias naquela atitude e tive a completa realização do resultado das práticas segundo aquela fé."
Por ocasião da prática do Islamismo, o Mestre teve primeiro a visão de uma figura brilhante, que
impressionava, com longa barba; em seguida, alcançou o conhecimento de Brahman que tudo
permeia com atributos e, finalmente, fundiu-se no Brahman sem atributos, o Absoluto.
13. Segundo Hriday, por ocasião da prática do Islamismo o Mestre quis comer alimento
muçulmano. Foi somente o pedido solícito de Mathur que o impediu de fazê-lo. Sabendo que a
natureza infantil do Mestre não se contentaria se aquele desejo não fosse pelo menos
parcialmente satisfeito, Mathur mandou trazer um cozinheiro e sob as instruções do qual um
cozinheiro Brahmin preparou a comida do Mestre à moda muçulmana. O Mestre nem uma vez
entrou no pátio interno do templo de Kali enquanto praticava o Islamismo, mas permaneceu na
mansão de Mathur, situada do lado de fora.
14. Do acontecimento mencionado acima, fica claro o quanto simpática tornou-se a mente
do Mestre em relação às outras comunidades religiosas depois de ter alcançado perfeição na
disciplina vedantista. Fica também claro como tendo somente fé no conhecimento vedantista, os
hindus e maometanos da Índia podem harmonizar-se uns com os outros e desenvolver um
sentimento fraternal, pois caso contrário, como o Mestre costumava dizer: "Existe uma montanha
de diferença entre eles. Seus pensamentos e crenças, atos e comportamento tornaram-se
incompatíveis uns com os outros, apesar de viverem juntos por tanto tempo." Será que a prática
do islamismo pelo Mestre, a Encarnação Divina desta época, indicou que a diferença algum dia
desapareceria e tanto hindus quanto muçulmanos se abraçarão com amor?
15. Como resultado de estar estabelecido no plano de consciência Nirvikalpa, a memória
da Não-dualidade costumava ser subitamente despertada no Mestre e sua mente ficava
submergida no Absoluto mesmo com a menor sugestão recebida das visões e das pessoas vivendo
estritamente dentro dos limites do plano da dualidade. Vimos como aquele estado lhe vinha pela
associação de idéias, mesmo sem desejá-lo. É, pois, desnecessário acrescentar que ele poderia
alcançar a qualquer momento aquele plano, por um simples desejo. Ficará claro, pelos
incidentes que se seguem, embora pequenos, como era profundo e amplo seu estado não-dual e
como sua mente tinha uma atração natural por ele.
16. Os jardineiros não achavam conveniente semear verduras no espaçoso templo de
Dakshineswar, coberto pelo capim, durante a estação das chuvas. Por isso os capinadores foram
autorizados a cortar e retirar o capim. Um dia, tendo obtido permissão para apanhar capim sem
pagar nada, um velho cortador começou a cortá-lo e arrumá-lo em um fardo e estava pronto a
levá-lo ao mercado para vendê-lo. O Mestre viu que o velho havia cortado, por cobiça, muito capim
e que estava acima de suas forças levá-lo ou mesmo levantar aquele fardo. Mas o cortador
indigente recusou-se a reconhecer esse fato e apesar de repetidos esforços para levantar aquele
grande peso e colocá-lo em sua cabeça, não conseguiu. Olhando aquela cena, o Mestre foi tomado
de emoção espiritual e pensou: "Ah, o Ser, o conhecimento infinito mora no interior e contudo
tanta tolice e ignorância no exterior!" Então exclamando, "Ó Rama, inescrutável é Teu jogo!" entrou
em êxtase.
Um dia em Dakshineswar o Mestre viu uma linda borboleta voando com um pequeno graveto
preso à cauda. A princípio ficou penalizado pensando que algum garoto travesso havia feito
aquilo, mas logo em seguida teve uma intuição e rindo, disse: "Ó Rama, Tu mesmo Te conduziste
a tal situação!"
Certa vez um determinado lugar do jardim do templo de Kali estava coberto de grama
durva que havia recentemente brotado e tinha uma linda aparência. Enquanto olhava para ela, o
Mestre transcendeu a consciência normal e sentia-se identificado com aquele lugar, quando um
homem passou por aquele campo. Com isso o Mestre ficou bastante inquieto, sentindo uma dor
insuportável em seu peito. Mencionando aquele acontecimento, disse-nos mais tarde: "Senti então
aquela espécie de dor que se sente quando alguém pisa no peito de uma pessoa. Aquele estado de
Bhavasamadhi é muito doloroso. Embora eu o tenha tido por somente seis horas, mesmo assim
tornou-se insuportável."
Um dia o Mestre, em Bhavasamadhi, estava olhando o Ganga, no espaçoso Ghat de pórtico
aberto. Dois barcos estavam ancorados no Ghat e os barqueiros discutiam por qualquer razão. A
briga tornou-se gradualmente acirrada e o homem mais robusto deu um forte tapa nas costas do
mais fraco. A isso o Mestre subitamente deu um grito de dor. Hriday ouviu-o do templo de Kali,
dirigiu-se para lá rapidamente e viu que as costas do Mestre estavam vermelhas e inchadas. Tomado
de raiva, Hriday disse repetidamente: "Tio, mostre-me o homem que lhe bateu; vou arrancar sua
cabeça." Depois, quando o Mestre havia se acalmado um pouco, Hriday, atônito ao ouvir o
ocorrido, pensou: "Será possível?" Girish Chandra Ghosh ouviu esse acontecimento dos lábios
do Mestre e contou-nos. Inúmeros eventos dessa natureza a respeito do Mestre podem ser
mencionados, mas nos abstemos de narrá-los para evitar o supérfluo.
CAPÍTULO XVII
ASSUNTOS: 1. A visita do Mestre a Kamarpukur com Hriday e a Bhairavi. 2. Entre amigos e parentes. 3. A
Santa Mãe em Kamarpukur. 4. A conduta do Mestre com todos. 5. O Mestre a respeito do progresso espiritual
de alguns deles. 6. O sentimento do Mestre em Kamarpukur. 7. O amor do Mestre por seu vilarejo natal. 8. O
Mestre cumprindo o dever com sua esposa. 9. O sucesso do Mestre nesse caso. 10. A apreensão da
Brahmani. 11. A Brahmani em estado de orgulho e egoísmo. 12. Um acontecimento ilustrativo. 13. A
discussão de Hriday com a Brahmani. 14. O reconhecimento pela Brahmani do seu erro e sua partida. 15. O
regresso do Mestre a Dakshineswar.
1. Como já foi dito, o Mestre sofreu durante seis meses e quando ficou curado de sua
enfermidade, notou-se que sua mente, em lugar de tender constantemente para a Não-
dualidade, havia se habituado a morar no estado de Bhavamukha no qual a multiplicidade e Não-
dualidade (Dvaita e Advaita) são simultaneamente percebidas. Mas seu corpo não era tão forte e
saudável quanto antes e temia-se que sua disenteria pudesse voltar por falta de água pura, já
que as águas do Ganga estavam salinas por ser estação chuvosa. Decidiu-se então que ele iria a
Kamarpukur, sua terra natal por alguns meses. Foram tomadas medidas para sua viagem em
1867. A dedicada Jagadamba Dasi, esposa de Mathur Babu, sabia que o lar do Mestre continuava
pobre como o de Siva. Por isso tomou, com muito cuidado, todas as medidas a fim de obter os
artigos necessários para que o "pai" não tivesse qualquer dificuldade (IV.1). O Mestre então
partiu, num dia auspicioso. Hriday e a Bhairavi acompanharam-no, mas sua idosa mãe, aferrada à
antiga decisão de viver perto do Ganga, permaneceu em Dakshineswar sob os cuidados de Mathur.
2. Havia oito anos que o Mestre não ia a Kamarpukur. Por isso seus amigos e parentes
estavam ansiosos para vê-lo. Não é necessário dizer que havia uma razão especial, porque
muitas notícias estranhas a seu respeito chegavam de vez em quando a seus ouvidos. Souberam
que ele gritava: "Hari, Hari", vestido de mulher, que havia se tornado monge, que repetia
continuamente "Allah, Allah", comportando-se assim de maneira estranha. Mas logo que o Mestre
permaneceu entre eles, viram como eram sem fundamento as notícias, porque constataram que ele
era o mesmo de sempre. A mesma amabilidade, a mesma alegria afetuosa, a mesma veracidade
austera, a mesma profunda sensibilidade religiosa e a mesma onda de transbordante de emoção
ao ouvir o nome de Hari - todas essas suas antigas qualidades numa intensidade ainda maior do
que antes. A única mudança que viram nele, foi que seu corpo e sua mente tinham um tal brilho
indescritível e celestial que hesitavam em chegar à sua presença subitamente ou falar de assuntos
mundanos sem que ele mesmo provocasse. Também sentiam que todas as suas ansiedades
mundanas dissolviam-se no ar quando estavam em sua presença e que, ao invés, fluía em seus
corações uma corrente serena e tranqüila de felicidade e de paz. Além disso, quando estavam
longe dele, experimentavam forte e inexplicável desejo de ir até ele uma vez mais. Assim, havia
um fluir incessante de felicidade naquela família pobre por ele estar com ela depois de tanto
tempo. E, a fim de encher a taça de felicidade até a borda, um mensageiro, sob orientação das
senhoras, foi enviado a Jayrambati, vilarejo do sogro do Mestre, para trazer sua esposa. O Mestre
soube, mas não expressou nem aprovação nem desaprovação. Até agora sua esposa o havia
encontrado somente uma vez após o casamento. Isto ocorreu de acordo com o costume da família,
pelo fato do Mestre ter sido levado a Jayrambati quando ela tinha sete anos. Mas ela era então
muito jovem para entender o que o casamento significava. Portanto a única coisa relacionada com o
acontecimento que ela reteve na memória foi que o Mestre, ao chegar à casa de seu pai com
Hriday, trouxe-lhe muitas flores de lótus, tirou-a de um lugar reservado da casa onde ela havia
se escondido, adorou seus pés com aquelas flores, enquanto ela se encolhia por timidez, seis anos
mais tarde, ela foi levada a Kamarpukur, já com treze anos. Dessa vez passou ali um mês, mas
não teve a boa sorte de ver o Mestre ou sua sogra, pois ambos estavam em Dakshineswar.
Voltou novamente seis meses após à casa do sogro para passar um mês e meio, mas não pôde
ver nenhum dos dois pela mesma razão.
3. Três ou quatro meses depois da volta de sua visita à casa do sogro chegaram notícias
da vinda do Mestre a Kamarpukur e o pedido para ela reunir-se a ele. Havia completado
quatorze anos, seis ou sete meses antes desse acontecimento. Foi praticamente o primeiro
encontro de fato com o marido, depois do casamento.
4. Parece que o Mestre permaneceu então em Kamarpukur durante seis ou sete meses. Os
amigos de seus primeiros anos e todos os homens e mulheres do vilarejo que o conheciam
juntaram-se a ele como antes, tentando fazê-lo feliz. O Mestre também estava muito satisfeito de
vê-los, depois de tanto tempo. Ao misturar-se com homens e mulheres de Kamarpukur que viviam
vida estritamente mundana, o Mestre sentiu uma alegria semelhante àquela que os grandes
pensadores e eruditos sentem quando, nas horas de lazer, depois de duras tarefas, reúnem-se às
crianças em seus divertimentos, sem rumo e sem sentido. Ele, contudo, sentiu fortemente que
eles deveriam tornar-se conscientes da transitoriedade desta vida e embora vivendo no mundo,
deveriam gradualmente alcançar auto-controle e aprender a confiar em Deus em todos os
assuntos. Isso deduzimos da maneira pela qual ele sempre nos ensinava as mesmas coisas por
meio de brincadeira e alegria, felicidade e encantamento.
Descobrindo que, embora vivendo no estreito mundo de um pequeno vilarejo, alguns haviam
feito progressos inesperados na vida espiritual, ele foi tomado de admiração pela glória
inconcebível de Deus. Contou-nos, muitas vezes, um acontecimento para ilustrar isso.
5. O Mestre disse que um dia, naquela época, estava descansando em seu quarto, depois
do almoço. Algumas senhoras vizinhas vieram vê-lo, sentaram-se próximas dele e começaram a
conversar sobre assuntos espirituais. O Mestre subitamente entrou em êxtase e sentiu que era
um peixe brincando alegremente, às vezes chegando até a superfície, às vezes mergulhando
profundamente no oceano de Existência-Conhecimento-Bem-aventurança. O Mestre costumava
entrar em tais êxtases com muita freqüência enquanto conversava. Portanto, sem estarem
conscientes do que acontecia, as senhoras expressavam suas próprias opiniões, o que criou muito
barulho. Uma delas proibiu as outras de agirem assim e pediu-lhes que se conservassem
caladas até que o êxtase terminasse. Ela disse: "Ele agora tornou-se um peixe nadando no mar
de Existência-Conhecimento-Bem-Aventurança. Se fizerem barulho, a felicidade dele será
interrompida." Embora muitas delas não acreditassem em suas palavras, todas permaneceram
quietas. Quando desceu daquele estado e lhe perguntaram sobre sua experiência, o Mestre
disse: "Sim, o que ela diz é verdade. Que estranho! Como ela pôde sabê-lo?"
6. Parece-nos que as visitas diárias dos homens e das mulheres de Kamarpukur agora
pareciam ser uma grande novidade para o Mestre. Sentia-se como alguém que tivesse voltado
para casa, vindo de um lugar distante e para quem cada pessoa e objeto do vilarejo pareciam
novos. Embora o Mestre tivesse estado ausente de sua terra natal pelo curto período de oito
anos, uma violenta tempestade de lutas espirituais havia assolado seu coração durante aquele
período produzindo uma mudança radical; durante aqueles oito anos esquecera-se de si
mesmo e do mundo e elevara-se muito além dos limites de tempo e de espaço. Mas quando
descia, voltava transfigurado pelo conhecimento de que Brahman existia em todos os seres e
via que todas as pessoas e coisas estavam embebidas em extraordinária luz nova. É bem
conhecido em filosofia que nossa consciência de tempo e a medida de sua duração surgem da
sucessão de nossos acontecimentos mentais. Por isso um curto período, durante o qual grande
número de pensamentos surge e mergulha em nossas mentes, parece-nos muito longo. Fica-se
admirado ao se pensar quantas tumultuosas ondas de pensamentos e de emoções surgiram na
mente do Mestre durante esse período. Não é, portanto, surpreendente que tal período lhe
parecesse tão longo?
7. Ficamos admirados ao pensar na maravilhosa relação de afeto que o Mestre havia
estabelecido com todas as pessoas de Kamarpukur. Homens e mulheres de todas as famílias,
incluindo os Lahas, os Brahmanas, os ferreiros, os carpinteiros, os negociantes de ouro e outros
estavam todos ligados a ele, num relacionamento de amor reverente. Ficamos espantados ao
ouvir o Mestre falar, em diversas ocasiões, com grande prazer, sobre a devoção e o afeto de
um grande número de homens e mulheres por ele. Entre eles estavam a pura e devota
Prasanna, irmã viúva de Dharmadas Laha; o amigo do Mestre, Gaya-vishnu Laha, filho de
Dharmadas; Srinivas Sankhari, dotado de fé sincera; as devotas da família Pyne e
Bhikshamata Dhani, a babá do Mestre, que pertencia à classe dos ferreiros. Todos
permaneciam a maior parte do tempo com o Mestre, naqueles dias em Kamarpukur. Os que
não podiam fazê-lo, devido às obrigações domésticas ou outros negócios, vinham de manhã ou ao
meio-dia, ou à tarde, sempre que tinham um momento livre. Quando chegavam, as senhoras
traziam vários doces e pratos deliciosos e sentiam-se muito felizes em alimentar o Mestre. Já
demos ao leitor em outro lugar (IV.1) uma indicação de como o Mestre, apesar de viver com a
família em casa, cercado pelas pessoas no vilarejo que se comportavam de maneira tão gentil,
sempre permaneceu divinamente inspirado. Portanto, é desnecessário repeti-lo aqui.
8. Quando veio desta vez a Kamarpukur, o Mestre deu muita atenção ao cumprimento de
uma outra obrigação. A princípio esteve indiferente à vinda de sua esposa a Kamarpukur, mas
agora teve a intenção de dar-lhe educação e treiná-la para seu bem-estar. Sabendo que o Mestre
era casado, Tota Puri, o instrutor que o havia iniciado em Sannyasa, havia-lhe dito certa vez: "Que
importa? Somente ele pode ser olhado como realmente estabelecido em Brahma, cuja renúncia,
desapego, discriminação e conhecimento permanecem intactos em todos os aspectos, apesar de
sua esposa estar com ele. Só pode ser considerado como tendo realmente atingido o
conhecimento de Brahman, aquele que pode olhar igualmente tanto o homem quanto a mulher,
como o Ser e comportar-se de acordo. Outros que têm consciência aguda da diferença de sexos (e
se mantém longe do sexo oposto como medida de proteção) podem ser bons Sadhakas, mas
ainda estão muito longe do conhecimento de Brahman." Esse comentário de Tota Puri veio à
mente do Mestre e induziu-o a testar o conhecimento alcançado pelas práticas espirituais que
se estenderam durante longo período, bem como zelar pelo bem-estar de sua esposa.
9. O Mestre jamais pôde negligenciar ou deixar inacabada qualquer coisa que considerasse
obrigação. O mesmo comportamento valeu aqui também. Não parou de educar a jovem esposa
que dependia completamente dele com relação a tudo ligado a seu bem-estar mundano e espiritual.
Dali em diante ficou especialmente atento para que ela aprendesse as obrigações domésticas,
conhecesse o caráter das pessoas, desse bom uso ao dinheiro e sobretudo se auto-entregasse a
Deus e se comportasse corretamente de acordo com o lugar, tempo e circunstâncias (III.2 e 4).
Em muitos outros lugares soubemos quão abrangente foi o resultado do ensinamento que o
Mestre lhe transmitiu, reforçando-o com o exemplo de sua própria vida de continência ininterrupta.
Basta dizer que a Santa Mãe, como ela era chamada pelos devotos de Sri Ramakrishna, ficou
extremamente feliz com essas experiências. Em todos os aspectos continuou recebendo atenção
afetuosa do Mestre, destituída, contudo, de qualquer traço de luxúria e ela, de sua parte,
ofereceu-lhe adoração durante toda sua vida como seu Ideal Escolhido, seguindo seus passos e
moldando sua vida de acordo com seus ensinamentos.
10. A Bhairavi Brahmani em muitas ocasiões não compreendeu o Mestre quando ele
adiantava-se em cumprir seu dever para sua esposa. Já vimos que ela tentou fazer o Mestre
desistir de ser iniciado em Sannyasa quando ele conheceu Tota Puri (III.2). Isso porque pensou que
o pensamento de Deus seria totalmente arrancado da mente do Mestre se ele fosse assim
iniciado. Mesmo agora um pouco dessa apreensão ainda tomava conta de seu coração. Parece que
ela achava que prejudicaria a continência do Mestre se ele se misturasse tão intimamente com a
esposa. Mas o Mestre não pôde ceder às idéias da Brahmani, como não pôde fazê-lo quando ela
demonstrou apreensão pela associação dele com Tota Puri. A Brahmani ficou bastante magoada
com a atitude do Mestre, o que provocou egoísmo, agravado pelo orgulho e pela vaidade,
resultando muitas vezes em perda de fé no Mestre. Hriday contou-nos que de vez em quando ela
expressava seus sentimentos. Por exemplo, se alguém diante dela fizesse uma pergunta sobre
algum assunto espiritual e dissesse que iria perguntar a Sri Ramakrishna e conhecer sua opinião a
esse respeito, enfurecia-se e dizia: "O que ele pode dizer? Fui eu quem abriu seus olhos." Ou
discutia com as mulheres da família por motivos banais, mesmo sem qualquer razão. Mas o
Mestre permaneceu calmo apesar das palavras e do comportamento opressivo dela e não cessava
de demonstrar-lhe devoção ou de reverenciá-la como antes. Instruída pelo Mestre, a Santa Mãe
apresentava a Brahmani o respeito devido à sua própria sogra e sempre empenhou-se no seu
serviço com amor e devoção; considerando-se uma jovem ignorante, não protestava contra
quaisquer de suas palavras ou ações.
11. Quando o orgulho e o egoísmo estão em ascenção, até a inteligência de um homem
sensato torna-se anuviada. Devido ao seu próprio comportamento perverso, começa a experimentar
baques e golpes a cada momento. A frustração repetida dessas experiências, se ele ainda tiver
algum bom senso, lhe ensinará seu erro e o trará de volta ao estado normal. Tal foi o caso da
erudita Brahmani agora. Incapaz, sob a influência de seu orgulho excessivo, de olhar de maneira
adequada as pessoas e as circunstâncias, um dia criou uma situação bastante embaraçosa. O
incidente foi o seguinte:
12. Já falamos de Srinivas Sankhari. Embora não tivesse nascido de família importante,
Srinivas estava acima da maioria dos Brahmanas no que diz respeito à devoção a Deus. Certo dia
nessa época, veio ao Mestre para obter Prasad de Raghuvir. Não é necessário dizer que o Mestre
e todos os membros da família ficaram muito felizes de terem Srinivas com eles. A devota
Brahmani também estava satisfeita de ver a fé e a devoção de Srinivas. Conversaram sobre vários
assuntos devocionais até o meio-dia, quando a oferenda a Raghuvir e outros serviços terminaram
e Srinivas sentou-se para comer. Quando terminou e estava pronto para limpar, segundo o
costume, o lugar onde havia comido, a Brahmani proibiu-o. "Nós mesmos o faremos." Sob a
insistência da Brahmani, Srinivas não teve outra alternativa senão esquecer o assunto e voltar
para casa.
13. Nos vilarejos, naqueles dias, dominados como estavam por regras e regulamentos de
casta, já haviam surgido muitas contendas e ressentimentos devido à transgressão daquelas
regras. O mesmo aconteceu agora pois, as mulheres Brahmanas que visitavam o Mestre,
levantaram grande objeção à retirada dos restos de Srinivas pela Bhairavi, que era de casta
Brahmana. A Bhairavi não admitiu a validade da objeção. A discussão aumentou
gradativamente. Hriday, sobrinho do Mestre, soube do acontecimento. Pressentindo que uma
grande briga poderia surgir com aquele evento banal, Hriday pediu à Brahmani para não violar
o costume vigente, mas ela não lhe deu atenção. Hriday inflamou-se e seguiu-se uma
discussão barulhenta entre ele e a Brahmani. Hriday disse: "Se você assim proceder, não lhe
permitiremos permanecer na casa." A Brahmani não era do tipo de pessoa que se intimidasse
com ameaças. Respondeu: "E se você não deixar? Manasa1 (1 Manasa - deusa das cobras. A Brahmani
comparou-se assim, a uma cobra zangada.) irá dormir no quarto de Sitala ." (2 O templo no qual Sitala, a deusa, foi
2
CAPÍTULO XVIII
7. Além de visitar os templos, o Mestre foi ver os importantes santos de Kasi. Hriday
sempre o acompanhou. O Mestre fez algumas visitas ao famoso Trailanga Swami, um dos mais
importantes Paramahamsas. O Swami estava então fazendo voto de silêncio e ficava no Manikernika
Ghat. No primeiro encontro o Swami, como forma de lhe dar uma cordial recepção, colocou sua
caixa de rapé diante do Mestre para que ele a usasse. Examinando os órgãos dos sentidos e os
membros do santo, o Mestre disse a Hriday, que ele possuía os sinais de um verdadeiro
Paramahamsa e que isso equivalia dizer que era a imagem viva de Shiva. O Swami havia
resolvido mandar construir um Ghat perto de Manikernika. A pedido do Mestre, Hriday participou
daquela obra, colocando algumas pás de terra ali. Num daqueles dias, o Mestre convidou e trouxe
Trailanga Swami à residência de Mathur e alimentou-o com Payasam, servindo-o com suas
próprias mãos.
O Mestre permaneceu em Kasi cinco ou seis dias e daí foi para Prayag com Mathur. Banhou-
se na sagrada confluência onde permaneceu três noites. Mathur e todos os outros rasparam a cabeça
de acordo com a prescrição das escrituras mas o Mestre não, dizendo: "Não é necessário que eu
faça isso." De Prayag voltaram a Kasi, onde passaram uma quinzena antes de seguirem para
Vrindavan.
9. Em Vrindavan Mathur hospedou-se numa casa perto de Nidhuvam. Como em Kasi, ali
também ostentou sua pompa e seu poder. Foi com a esposa visitar os templos, onde doaram
algumas moedas de ouro como sinal de respeito enquanto saudavam as divindades. Além de visitar
Nidhuvan, o Mestre foi a Radhakunda, Shyamakunda e ao monte Govardhan, cujo cume atingiu em
estado extático. Ouviu falar a respeito dos importantes santos do lugar e visitou-os. Ficou muito
contente em encontrar Gangamata, em Nidhuvan. Mostrou a Hriday os sinais dela e disse que ela
havia alcançado um estado elevado de espiritualidade.
10. Tendo permanecido em Vrindavan mais ou menos uma quinzena, Mathur e sua comitiva
regressaram a Kasi. Para verem Viswanath, o Grande Senhor do universo, vestido com roupa
especial e enfeitado de jóias, ali permaneceram até aproximadamente a metade do ano de 1868.
Nessa época o Mestre viu a imagem dourada de Annapurna.
11. O Mestre, dizia Hriday, encontrou a Bhairavi Brahmani, Yogeswari, em Kasi. Foi
diversas vezes à sua casa, no bairro chamado "Sessenta e Quatro Yoginis." A Brahmani ali morava
com uma senhora chamada Mokshada. O Mestre ficou satisfeito em ver a fé e devoção dessa
senhora. A Brahmani acompanhou o Mestre a Vrindavan, onde ele pediu que ela vivesse ali
permanentemente. Ela veio a falecer pouco tempo depois que o Mestre regressou de Vrindavan.
12. Durante sua estada em Vrindavan, o Mestre quis ouvir o instrumento de corda
chamado Vina, mas seu desejo não foi satisfeito, porque naquela ocasião não havia qualquer
tocador disponível. Novamente surgiu em sua mente esse desejo ao regressar a Kasi. Acompanhado
de Hriday, foi à casa do exímio tocador de Vina, Maheshchandra Sarkar, a quem pediu para tocar.
Mahesh vivia no bairro chamado Madanpura em Kasi. Com muita satisfação, a pedido do Mestre,
tocou durante muito tempo. Logo que ouviu o doce som da Vina, o Mestre entrou em êxtase.
Retomando consciência parcial, foi ouvido orando à Mãe Divina: "Mãe, dá-me consciência normal;
quero ouvir atentamente a Vina." Imediatamente após, ficou em condição de permanecer no plano
exterior de consciência e de ouvir a música com alegria, de vez em quando cantando também com
acompanhamento da Vina. De cinco às oito da tarde passou o tempo de forma muito agradável,
quando Mahesh ofereceu-lhe uma comida ligeira, que ele tomou, voltando em seguida à casa de
Mathur. Mahesh acostumou-se então a visitar o Mestre todos os dias.
13. Mathur expressou o desejo de ir a Gaya, morada de Vishnu, mas como o Mestre fez
grande objeção, desistiu da idéia e regressou a Calcutá. Depois dessa peregrinação aos principais
lugares, durante aproximadamente quatro meses, o Mestre, segundo Hriday, regressou a
Dakshineswar, na metade de 1868. O Mestre trouxe de Vrindavan um pouco de terra de
Radhakunda e de Shyamakunda. Chegando a Dakshineswar, espalhou, com a ajuda de Hriday, um
pouco de terra em volta do Panchavati e enterrou o restante, com suas próprias mãos, em sua
cabana de Sadhana, dizendo: "Este lugar torna-se a partir de hoje tão santo quanto Vrindavan."
Pouco tempo depois, pediu a Mathur para convidar os instrutores e devotos Vaishnavas de vários
lugares que vieram e o Mestre celebrou um festival no Panchavati. Mathur deu dezesseis rupias
para cada instrutor Vaishnava e uma rupia para cada devoto, na hora da despedida, mostrando
assim, seu respeito a eles.
14. A esposa de Hriday morreu pouco depois de sua volta da peregrinação. Devido a esse
fato sua mente foi tomada de desapego durante algum tempo. Hriday já dissemos anteriormente,
não tinha um temperamento contemplativo. Seu ideal de vida era melhorar sua condição
mundana e passar a vida desfrutando o máximo possível dos prazeres do mundo. Embora outros
estados lhe sobreviessem, de vez em quando, devido à sua constante companhia com o Mestre,
essas, contudo, não podiam durar muito. Sempre que surgia uma oportunidade para satisfazer seu
desejo de prazer, esquecia-se de tudo o mais, perseguia o que tanto ansiava e enquanto não
alcançasse, nenhum outro pensamento entrava em sua mente. Portanto, embora todas as
Sadhanas do Mestre tivessem sido feitas durante a permanência de Hriday em Dakshineswar, ele
foi pouco tocado ou influenciado pelo fervor devocional que presenciava no tio. Contudo, Hriday
amava verdadeiramente o tio e não deixava de prestar-lhe qualquer serviço que fosse necessário,
em qualquer momento e como resultado, desenvolveu grande coragem, sagacidade e inteligência.
Quanto mais ouvia dos homens santos a respeito da natureza sobre-humana de seu tio e quanto
mais observava a manifestação dos poderes divinos durante suas práticas espirituais, maior era
seu sentimento de força - graças à proximidade de seu querido tio. Seu sentido de proximidade
com o Mestre era devido ao grande serviço que lhe prestava - o sentimento de que o Mestre era
'intimo' e ele próprio seu favorito - fizeram-no pensar que todas as conquistas do Mestre eram,
de uma certa maneira, suas também. Se por acaso fizesse qualquer esforço para consegui-los, seu
tio, por seus divinos poderes, permitiria que ele os fizesse. Ele, portanto, não se sentia na
obrigação de pensar na vida após a morte. Queria primeiro desfrutar um pouco deste mundo e
depois dedicar-se aos assuntos espirituais. Essa tinha sido sua atitude em relação à vida até
agora. Tomado de pesar com a morte da esposa, pensou agora que o momento adequado para
uma mudança em sua visão e modo de vida havia chegado. Dedicou-se com mais firmeza do
que antes à adoração da Mãe do universo e começou a praticar meditação, despojando-se das
roupas e do cordão sagrado, à imitação do Mestre. Com sinceridade pediu também, ao Mestre que
o ajudasse a ter experiências espirituais semelhantes às deles. O Mestre assegurou-lhe que ele
não tinha necessidade de fazer tais coisas, pois todos os resultados seriam seus, somente por
estar servindo-o. Disse-lhe que se ambos estivessem cheios de inspiração divina dia e noite e se
esquecessem de tudo o que diz respeito ao corpo, como comer e dormir, nenhum seria capaz de
tomar conta um do outro. Hriday, contudo, não deu atenção àquelas palavras. O Mestre por fim,
teve de ceder e disse: "Que vontade da Mãe seja feita. Alguma coisa deve acontecer por minha
vontade? Foi a Mãe que retirou minha mente do mundo e deu-me aquelas condições e fez-me ter
experiências estranhas; se a Mãe assim desejar, você também as terá."
15. Alguns dias depois dessa conversa, Hriday começou a ter, durante a adoração, algumas
visões maravilhosas e estados de êxtase divino ligados e estados de semi-absorção de consciência.
Um dia Mathur Babu viu Hriday assim e perguntou ao Mestre: "Que estado é esse que Hriday
está, Pai?" O Mestre explicou-lhe: "Não há nada errado com ele. Importunou a Mãe para ter visões
espirituais, por isso ele as está tendo. A Mãe o trará de volta à sua condição normal depois de
fazê-lo sentir um pouco o gosto das visões." "Pai", disse Mathur, "tudo é Seu jogo; somente o
senhor colocou Hriday nesse estado. Tranquilize-o por favor, pois ambos devemos permanecer
com o senhor, como Nandi e Bhringi e servi-lo. Por que estados estranhos devem ocorrer
conosco?"
16. Pouco tempo depois desta conversa entre o Mestre e Mathur, uma noite Hriday viu o
Mestre ir em direção ao Panchavati. Pensando que ele poderia necessitar de sua jarra e toalha,
pegou-os e seguiu-o. Enquanto caminhava, Hriday teve uma visão extraordinária. Viu que o Mestre
não era um ser humano, que não era constituído de carne e sangue, que o Panchavati estava
iluminado pela luz que saía de seu corpo e que enquanto o Mestre caminhava, nem seus pés, que
eram também de luz, tocavam o solo, mas transportavam-se pelo ar. Tomando tudo como ilusão
ótica, Hriday esfregou os olhos repetidamente, observou todas as coisas à sua volta, em seu
estado natural e olhou para o Mestre uma vez mais. Nada adiantou. Embora ele visse todas as
outras coisas - árvores, trepadeiras, o Ganga, a cabana, etc.- como eram, via sempre o Mestre
naquela forma luminosa. Muito admirado, Hriday perguntou-se se havia ocorrido qualquer mudança
em sua mente, que o fazia ter aquela experiência. Assim pensando, olhou para seu próprio corpo
e viu que ele, também, era um ser brilhante feito de luz - um atendente e companheiro do
Próprio Deus, servindo-O eternamente, uma parte e pedaço de Sua pessoa divina de luminosidade
espiritual solidificada, tendo agora uma existência separada, com o único objetivo de servi-Lo. Ao
ter essa experiência e conhecer o mistério de sua própria vida, seu coração foi inundado por uma
forte corrente de felicidade. Esqueceu-se de si próprio, esqueceu-se do mundo e de considerar se
as pessoas do mundo falariam bem ou mal dele. Ficou em êxtase somente com consciência
parcial e gritava repetidamente, como louco: "Ó Ramakrishna! Ó Ramakrishna! Não somos seres
normais. Por que estamos aqui? Venha, vamos de lugar a lugar libertar as almas da escravidão! Sou
também o que o senhor é."
O Mestre disse-nos: "Ouvindo-o gritar assim, disse: 'Ah, pare! Pare! Mas por que você
está se comportando dessa maneira? As pessoas vão sair correndo pensando que alguma
calamidade caiu sobre nós.' Mas deu ele ouvidos a tudo isso? Então precipitei-me em sua direção,
toquei seu coração e disse: 'Faz o rapaz a ser estúpido outra vez, Ó Mãe'."
17. Hriday disse-nos que assim que o Mestre falou, sua felicidade e visão desapareceram
no vazio e ele novamente voltou a seu antigo estado de tolo. Então caindo subitamente do êxtase,
sua mente encheu-se de melancolia. "Tio", soluçou ele, "por que fez isso, por que disse que eu
deveria tornar-me tolo? Nunca mais terei aquela visão de felicidade." "Eu disse, respondeu o
Mestre, que você deveria ser tolo para sempre? Eu disse: 'Fique calmo agora'. Que estardalhaço
você fez com uma visão tão pequena! E por isso que tive que falar assim. Que riqueza de visões
e experiências tenho durante as vinte e quatro horas! Mas faço qualquer estardalhaço? Ainda não
chegou o momento de você ter essas visões. Agora fique tranqüilo, quando for a época terá várias
visões e experiências."
18. Embora Hriday tivesse que permanecer calado com as palavras do Mestre, sentiu-se
muito ferido. Sob a influência do egoísmo, pensou mais tarde que tentaria ter de algum modo
aquela visão novamente. Refletindo assim, aumentou seu período de Japa e meditação e decidiu
que iria ao Panchavati à noite sentando-se sob a árvore onde o Mestre no passado costumava
sentar-se para Japa e meditação e chamaria a Mãe do universo. Assim pensando, na calada da
noite, saiu da cama, foi ao Panchavati e sentou-se no lugar do Mestre para meditar. De modo
bastante estranho, o Mestre sentiu desejo de ir naquele momento ao Panchavati. Mal havia
chegado ouviu Hriday, de modo comovente chamando-o, "Salve-me, tio, salve-me! Estou sendo
queimado até morrer." O Mestre caminhou rapidamente até ele e perguntou-lhe: "O que há
Hriday?" Desassossegado pela dor, Hriday disse: "Tio, mal sentei aqui para meditar senti como se
alguém estivesse jogando um prato cheio de carvão em brasa em meu corpo. Estou com uma
queimadura insuportável." O Mestre passou a mão em seu corpo e disse: "Não tenha medo; vai
esfriar. Por que você fez tudo isso? Já não lhe disse repetidamente que alcançará tudo se me
servir?" Hriday costumava dizer que toda sua dor foi retirada imediatamente pelo toque das mãos do
Mestre. Hriday jamais voltou ao Panchavati para meditar e convenceu-se de que não seria bom agir
de maneira contrária aos conselhos do tio.
19. Hriday, sem dúvida, conseguiu ter certa paz com as palavras do Mestre, mas as
obrigações diárias do templo agora pareciam-lhe insípidas. Sua mente procurava algo novo, do qual
poderia obter alguma alegria. Vendo a chegada do outono de 1868, decidiu fazer a adoração da
Mãe em sua casa. Ganganarayan, seu meio irmão mais velho havia morrido e Raghav, outro
parente, nomeado agora para receber aluguel na propriedade de Mathur Babu, estava com uma boa
renda. Com a mudança de tempo, quando o prosperidade cresceu, um novo hall de adoração foi
construído. Ganganarayan havia demonstrado desejo de invocar a Mãe Divina e adorá-La ali, mas
não teve oportunidade de fazê-lo. Hriday lembrou-se daquele desejo dele e procurou satisfazê-lo.
Sabendo que Hriday, homem de ação, pudesse conseguir paz com a celebração do culto, o
Mestre concordou, enquanto que Mathur prestou-lhe ajuda financeira. Hriday queria muito levar o
Mestre consigo e tê-lo em sua residência durante o culto, mas Mathur não concordou porque
desejava que o Mestre ficasse com ele naquela ocasião. Ferido no coração por ter falhado a esse
respeito, Hriday preparou-se para ir para casa sozinho a fim de fazer o culto. Vendo-o tão triste, o
Mestre, como Hriday nos contou, consolou-o, dizendo: "Por que você está magoado? Através do
corpo sutil irei diariamente ver seu culto; ninguém a não ser você me verá. Tenha, segundo o
Tantradharaka, um Brahmana para recitar os Mantras para você e faça você mesmo o culto
com devoção. Ao invés de manter jejum rigoroso, ao meio dia beba um pouco de leite, água do
Ganga e xarope de açúcar cande. Se fizer o culto dessa maneira, a Mãe do universo certamente
aceitará sua adoração." Hriday disse que o Mestre deu-lhe instruções detalhadas a respeito da
pessoa a quem pedir para fazer a imagem, quem seria nomeado Tantradharaka e todas as outras
coisas a serem feitas. Muito feliz foi para casa fazer o culto.
20. Chegando em casa Hriday procedeu de acordo com as instruções do Mestre. Fez os ritos
relativos ao sexto dia da quinzena brilhante, como o despertar da Deusa, a consagração preliminar
da imagem e a invocação da Devi e ele mesmo fez o culto. Durante o serviço de acenar as luzes
(Arati), no ritual do culto do dia Saptami, Hriday viu a luminosa forma do Mestre, em pé, em
êxtase, ao lado da imagem. Hriday informou-nos que costumava ser tomado de grande amor
espiritual para ter essa visão do Mestre em todos os dias do culto durante o serviço de agitar a luz
e também, nos ritos especiais do Sandhipuja ou culto de junção, assim chamado devido à sua
execução na junção dos dias de culto Ashtami e Navami. Hriday voltou a Dakshineswar logo
depois que o culto terminou e contou ao Mestre tudo a respeito. "No momento do Arati e do
'culto de junção', disse-lhe o Mestre: "eu costumava sentir um grande desejo de ver sua
adoração e então, entrava em êxtase. Sentia que entrava num 'caminho de luz' e estava presente
no seu saguão de adoração num corpo luminoso."
21. Hriday contou-nos que uma vez o Mestre predisse, em êxtase: "Você fará o culto anual
três vezes". E isso realmente aconteceu. Não levando em consideração as palavras do Mestre, ele
estava fazendo os preparativos para o culto pela quarta vez, quando uma série de obstáculos
ocorreram e que por fim ele teve de desistir. Hriday casou-se novamente após o culto do primeiro
ano. Dali em diante dedicou sua mente ao serviço do Mestre e ao culto no templo de Dakshineswar
como antes.
CAPÍTULO XIX
1. Já tornamos o leitor um pouco familiarizado com Akshay, filho do irmão mais velho do
Mestre, Ramkumar. Akshay veio a Dakshineswar e foi nomeado sacerdote no templo de Vishnu em
1865, pouco tempo depois que Tota Puri ali chegou. Akshay tinha então mais ou menos dezessete
anos. É preciso dizer alguma coisa a seu respeito. Como a mãe morreu por ocasião de seu
nascimento, tornou-se objeto de especial amor de todos os parentes. Tinha apenas três ou
quatro anos quando o Mestre veio pela primeira vez a Calcutá, em 1852. O Mestre, portanto, teve
oportunidade de pegar Akshay no colo e educá-lo com cuidado amoroso durante dois ou três anos
antes de ir para Calcutá. Seu pai, Ramkumar, entretanto, jamais o pegou no colo. Ao lhe ser
perguntada a razão, dizia: "Será amor desperdiçado; a criança não viverá muito." Depois o
Mestre esqueceu-se de si mesmo, do mundo e de todas as suas preocupações, durante seus dias de
absorção nas práticas espirituais. Akshay estava passando então os ternos dias de sua juventude e
agora tornara-se um belo rapaz.
2. Soubemos pelo Mestre e pelos parentes que Akshay era na verdade um belo rapaz.
Disseram que sua pele era tão brilhante quanto suas feições eram cheias de graça. Parecia a
forma viva de Siva.
3. Akshay era muito devotado desde a infância, a Sri Ramakrishna. Diariamente passava
muito tempo no serviço de Raghuvir, divindade da família. Portanto sua indicação para sacerdote
do templo de Vishnu em Dakshineswar foi uma tarefa muito a seu agrado. O Mestre dizia: 'Enquanto
ele fazia o culto de Radha-Govinda, ficava tão absorvido em meditação, que não tinha idéia do
grande número de pessoas que entravam e saíam do templo e não voltava à sua consciência
normal antes de algumas horas". Terminado o culto diário no templo, ele ia, soubemos por Hriday,
ao Panchavati e aí passava muito tempo adorando Siva. Então cozinhava suas refeições e depois
de comer, dedicava-se ao estudo do Bhagavata. Além disso, devido a uma nova necessidade de
amor a Deus, praticava tanto Nyasa e Pranayana que sua garganta e palato sangravam e
inchavam repetidamente. Não será portanto de admirar que tanto amor e devoção de sua parte a
Deus o tornassem tão querido ao Mestre!
4. Um a um passaram-se os anos até que chegamos ao final do ano Bengali de 1275 (A.
D.1869). O tio de Akshay, Rameswar, veio a tomar conhecimento da tendência do jovem Akshay
e começou a procurar uma noiva para impedir aquela inclinação! Foi no mês de Chaitra que uma
noiva adequada foi encontrada no vilarejo de Kuchkol, não longe de Kamarpukur e Rameswar veio a
Dakshineswar para levar Akshay para casa. Foram feitas objeções contra sua viagem,
considerado que o mês de Chaitra não fosse auspicioso para início de viagem. Rameswar e
Akshay não deram atenção a isso e disseram que a proibição das escrituras não eram aplicáveis
quando se tratasse de regresso à casa depois de uma estada temporária em qualquer lugar. O
casamento de Akshay realizou-se logo depois de sua volta ao lar, no mês de Vaisakh 1276
(A.D.1869).
5. Akshay ficou seriamente doente quando estava na casa de seu sogro alguns meses após
o casamento. Rameswar, recebendo essas notícias, trouxe-o para Kamarpukur, onde entrou em
tratamento e melhorou. Foi então mandado para Dakshineswar. Sua aparência melhorou e a
saúde parecia recuperar-se, quando certo dia teve um ataque de febre. Os médicos pensaram que
se tratasse de uma febre simples e da qual se curaria brevemente.
6. Quando soube que Ashay havia adoecido na casa do seu sogro, logo após o casamento, o
Mestre, Hriday contou-nos, disse: "Hridu, os presságios são extremamente maus; ele casou-se com
uma noiva de Rakshsagana; receio que o rapaz morrerá." Como a febre não cedesse depois de
três ou quatro dias, chamou Hriday e disse, "Hridu, os médicos não foram capazes de diagnosticar
a doença. Akshay está com uma febre complicada, elevada e contínua. Chame um bom médico e
dê-lhe um bom tratamento, se desejar, mas o rapaz, é certo, não sobreviverá."
7. Hriday dizia: "Ao ouvi-lo falar assim censurei-o dizendo: 'Não fale assim, tio. Não deixe
que tais palavras saiam de seus lábios!' Ele disse: 'Será que falo por mim mesmo? Digo coisas
involutariamente sob influência divina; digo o que a Mãe me faz saber e dizer. Será que desejo que
Akshay morra?."
8. Hriday ficou muito alarmado ao ouvir estas palavras do Mestre. Chamou bons médicos e
tentou por diversos modos curar Akshay. Mas a doença continuou piorando. Akshay sofreu durante
mais ou menos um mês. Quando seu último momento chegou, o Mestre foi à sua cabeceira e
disse: "Akshay diga: 'Ganga, Narayana, OM Rama'. " Akshay repetiu o Mantra, uma, duas, três
vezes e morreu. Hriday contou-nos que quanto mais ele chorava a morte de Akshay, mais o
Mestre ria, em êxtase.
9. Embora o Mestre risse daquela maneira, olhando de um elevado plano de consciência
espiritual, a morte de seu querido sobrinho, Akshay, não significa que ele não tenha sentido um
grande choque em seu coração. Muito tempo depois falou-nos desse acontecimento, diversas
vezes. Costumava dizer que embora durante o êxtase considerasse a morte como apenas uma
mudança de estado, sentiu grande vazio com a morte de Akshay, quando retornou ao estado
normal de consciência (III,I). Nunca mais pode morar na mansão dos proprietários após a morte de
Akshay, porque foi ali onde ele morreu.
10. Rameswar, segundo irmão mais velho do Mestre, foi escolhido para fazer a adoração
de Radha-Govinda em Dakshineswar, após a morte de Akshay. Mas ele nem sempre podia estar
em Dakshineswar uma vez que era encarregado da administração da casa de Kamarpukur.
Costumava deixar alguém competente e de confiança em seu lugar, em Dakshineswar - e ir
ocasionalmente a seu vilarejo para ali ficar. Informaram-nos que Ramachandra Chattopadhyaya e
outra pessoa chamada Dinanath oficiavam por ele durante sua ausência.
11. Foi nesse período que Mathur, acompanhado pelo Mestre, foi à sua propriedade rural e à
casa de seu Guru. Isso foi talvez para aliviar o sentimento de falta produzido pela morte de Akshay
no coração do Mestre. Porque, se de um lado o elevado devoto Mathur considerava o Mestre o
Próprio Deus e o seguia implicitamente em todos os assuntos espirituais, por outro lado, ele o
considerava uma criança frágil a ser protegida em todos os assuntos mundanos. Durante essa
viagem, o Mestre ficou muito comovido ao ver a condição extremamente miserável dos homens e
mulheres num certo vilarejo. Convidou a todos e fez Mathur dar a cada óleo suficiente para
esfriar a cabeça, uma refeição completa e uma muda de roupa. Hriday disse que este evento
aconteceu em Kalaighat, perto de Ranaghat, quando Mathur, acompanhado por ele e pelo
Mestre, estava num barco no canal Churni.
12. Hriday contou-nos que Mathur tinha uma casa no vilarejo chamado Sonabere, perto
de Satkshira. Os povoados vizinhos pertenciam à propriedade de Mathur, para onde levou o
Mestre. A casa do Guru de Mathur não ficava longe. Naquela época havia um litígio entre os
membros da família do Guru sobre a divisão de sua propriedade. Pediram a Mathur que
intercedesse como mediador. O vilarejo chamava-se Talamagro. Durante o trajeto Mathur
mandou o Mestre e Hriday cavalgarem seu elefante e ele próprio foi de palanquim. 1 (1 Hriday dizia que,
enquanto ia para o vilarejo, Mathur pediu ao Mestre para ir num palanquim porque o chão era muito irregular e ele próprio conduziu
seu elefante. Chegando ao vilarejo, contudo, satisfez a curiosidade do Mestre e o fez sentar-se no elefante.) Satisfeito com o
carinhoso serviço dos filhos do preceptor de Mathur, o Mestre passou ali algumas semanas antes de
regressar a Dakshineswar.
13. Pouco tempo depois de sua volta ocorreu um evento importante relacionado com o
Mestre em Kolutola, em Calcutá. Um Hari Sabha, reunião onde o nome de Hari era cantado
costumava ser realizado na casa de Kalinath Datta, também conhecido como Kalinath Dhar. Tendo
sido convidado para o Sabha o Mestre aceitou e, em êxtase, sentou-se no lugar reservado em
nome e em honra de Sri Chaitanya, o Grande Senhor. Demos ao leitor uma descrição detalhada do
incidente, em outro lugar (IV.3). Muito tempo depois o Mestre teve desejo de visitar Navadwip e
Mathur levou-o a Kalna, Navadwip e outros lugares. Já dissemos ao leitor em outro lugar como
ele encontrou o devoto, Bhagavan Das, em Kalna e que maravilhosa visão teve em Navadwip
(IV.3). Foi talvez em 1870 que visitou aqueles lugares sagrados. Ele não se sentiu tão
profundamente inspirado em Navadwip como quando passou pelos bancos de areia
acumulados no leito do Ganga, perto daquele lugar. Mathur e outros perguntaram-lhe qual a
razão e o Mestre disse que a velha Navadwip, contendo os lugares do divino esporte de
Chaitanay havia submergido no rio. Estavam situados onde agora estavam os bancos de areia.
Foi por isso que entrou em êxtase profundo, ao passar por eles.
14. Não é fora de propósito mencionar aqui, sob a autoridade de Hriday, um
acontecimento que ilustra a devoção inegoísta de Mathur, alcançada como resultado do serviço
abnegado que ele dedicou ao Mestre durante quatorze longos anos. Uma vez Mathur Babu
ficou acamado devido a um furúnculo numa das juntas de seu corpo. Tendo sabido da
ansiedade de Mathur para ver o Mestre naquela ocasião, Hriday falou ao Mestre a esse
respeito. Mas ele disse: "Qual a utilidade de minha ida? Posso curá-lo?" Quando Mathur viu que
o Mestre não vinha, mandou mensageiro atrás de mensageiro informando seu desejo ardente.
Depois de tanta súplica, o Mestre teve de ceder. A felicidade de Mathur não teve limites quando
o Mestre chegou. Levantou-se com muita dificuldade, sentou-se inclinado num almofadão e
disse: "Pai, dá-me um pouco de poeira de seus pés."
O Mestre disse: "Para que serve você tomar a poeira de meus pés? Curará seu
furúnculo?"
Mathur respondeu, "Pai, será que sou tão mesquinho? Quero a poeira de seus pés para
curar meu furúnculo? Os médicos estão aqui para isso. Quero a poeira de seus pés para
atravessar o mar do mundo."
Logo que Mathur assim falou, o Mestre entrou em êxtase. Mathur colocou a cabeça nos
pés do Mestre e considerou-se abençoado. Lágrimas de felicidade escorriam-lhe dos olhos.
Mathur curou-se de sua doença pouco depois.
15. Tanto Hriday quanto o Mestre nos falaram de diversos eventos daquela época, que
demonstram a grande fé e devoção de Mathur pelo Mestre. Mathur tinha a firme convicção de
que o Mestre era seu único refúgio e abrigo tanto aqui como na vida após a morte. A graça do
Mestre para ele também, não conhecia limites. Embora o Mestre, que era mentalmente
independente, se sentisse de vez em quando aborrecido com alguns atos de Mathur, esquecia-
se imediatamente deles e satisfazia-lhe os desejos e procurava fazer tudo o que propiciasse seu
bem-estar, tanto neste mundo como no próximo. Que uma forte e profunda relação de amor
existia entre o Mestre e Mathur, pode ser claramente visto na seguinte história.
16. Um dia o Mestre disse, em êxtase: "Mathur, enquanto você viver, eu também estarei
aqui (em Dakshineswar)". Mathur ficou alarmado ao ouvir isso, porque sabia que a Própria Mãe
do universo na pessoa do Mestre estava sempre protegendo-o e à sua família. Portanto, ao
ouvir isto, Mathur pensou que o Mestre desampararia sua família depois de sua morte. Então,
com muita humildade disse ao Mestre: "Por que, Pai? Minha esposa e meu filho Dwaraka são
também muito devotados ao senhor." Vendo que Mathur ficara angustiado, o Mestre disse:
"Muito bem, ficarei aqui enquanto sua esposa e Dwari viverem." De fato, aconteceu assim. O
Mestre deixou Dakshineswar para sempre pouco tempo depois da morte de Jagadamba e
Dwarakanath. Jagadamba Dasi morreu em 1881.2 (2 Jagadamba morreu em, ou em torno do, dia 1° de janeiro
de 1881, sem fazer testamento, deixando o demandante Trayluksha, então único filho de Mathura, herdeiro sobrevivente."
Transcrito da Declaração do Demandante na Ação n° 203 de 1889 da Alta Corte.) Depois desse acontecimento, o
Mestre permaneceu em Dakshineswar por pouco mais de três anos.
17. Noutra ocasião Mathur disse ao Mestre: "O que é isso, Pai? O senhor disse que seus
devotos viriam, mas onde estão eles? Não os vejo chegar." O Mestre respondeu: "Não sei
quando a Mãe os trará. Mas a Própria Mãe na verdade me revelou isso. Tudo o que Ela me fez
saber, provou ser verdadeiro, um a um; quem sabe por que ainda não aconteceu?" Assim
falando, o Mestre entrou num estado depressivo pensando: "Será que aquela minha visão foi
uma miragem?" Mathur ficou triste ao vê-lo naquele estado e pensou consigo mesmo que havia
sido uma tolice de sua parte ter levantado a questão. Para consolar o Mestre, que tinha a
natureza de uma criança, disse-lhe então: "Pai, deixe-os vir ou não. Estou aqui, seu devoto,
sempre seguindo-o obedientemente. Como se pode dizer que sua visão a respeito dos devotos
não era verdade? Pois eu mesmo sou um monte deles. Foi por isso que a Mãe disse: 'Muitos
devotos virão'." O Mestre respondeu: "O que você diz pode ser verdadeiro, quem sabe?" Mathur
não continuou com o assunto, mas puxado um outro desviou a mente do Mestre.
18. Falamos ao leitor na terceira parte intitulada, "Como Mestre Espiritual" que grandes
mudanças se operaram nas idéias de Mathur pela constante companhia do Mestre. Aqueles que
prestam serviço a uma pessoa liberada tornam-se, dizem as escrituras, recipientes dos
resultados de todas as boas ações feitas por ela. Portanto, é de se admirar que aqueles que
servem uma Encarnação de Deus sejam dotados de tão grandes qualidades superiores?
19. O contínuo fluxo de tempo com suas ondas de adversidades e prosperidade,
felicidade e miséria, união e separação, vida e morte, gradualmente trouxe o mundo no ano da
Era Bengali de 1278 (A.D.1871). O relacionamento de Mathur com o Mestre, aprofundando-se
através dos anos, atingiu o décimo quinto ano. Os meses de Vaisakh e Jyaishtha tinham passado
e Ashadh também já havia mergulhado no abismo do passado, quando Mathur ficou acamado
com febre. Aumentando rapidamente, a febre evoluiu para um tipo complicado e contínuo e
numa semana Mathur perdeu a capacidade de falar. O Mestre sabia de antemão que o voto de
devoção de Mathur estava chegando ao fim e que a Mãe estava prestes a levar Seu devoto
para Seu seio brevemente. Portanto, embora costumasse mandar Hriday diariamente ver
Mathur, ele mesmo não foi vê-lo sequer uma vez. O último dia chegou e Mathur foi levado ao
Khalighat. O Mestre nem mesmo mandou Hriday aquele dia, mas permaneceu em êxtase
profundo à tarde, por duas ou três horas. Seu corpo permanecia em Dakshineswar enquanto ia,
em corpo celeste, por um caminho de luz até Mathur, seu devoto, e ajudou-o a alcançar o
objetivo, o preenchimento de sua vida. Pessoalmente o fez alcançar a esfera para a qual uma
pessoa é qualificada somente com grande acúmulo de méritos.
20. Quando o êxtase do Mestre chegou ao fim, passava das cinco da tarde. Chamou
Hriday e disse: "Mathur entrou num carro celestial no qual companheiras da Mãe elevaram-no
afetuosamente e seu espírito foi para a esfera da Devi." Hriday permaneceu calado enquanto
ouvia. Quando a noite estava avançada, os funcionários do templo de Kali voltaram e disseram
a Hriday que Mathur havia morrido às cinco da tarde. Ouvimos do Mestre em outra ocasião - e já
familiarizamos o leitor com isto em outro lugar (III.7)3 (3 Mathuranath Moan Biswas morreu em julho, sem
testamento, deixando como sobreviventes Jagadamba, única viúva, Bhupal já falecido, um filho de outra esposa falecida
antes dele, - e Dwarkanath Biswas já falecido, o réu Trayluksha Nath e Thakurdas (aliás) Dhuamadas, três filhos da
mencionada Jagadamba. Citado da declaração de demandante no Processo 230 de 1889 da Alta Corte - Shyama Charar
Biwas vs. Trayluksha Nath Biswas, Gurudas, Kallidas, Durgadas e Kumudini.) que o altamente dedicado
Mathuranath teria que voltar a esse mundo, porque seu desejo de prazeres ainda não havia se
esgotado.
CAPÍTULO XX
A ADORAÇÃO DE SHODASI
ASSUNTOS: 1. O primeiro encontro da Santa Mãe com o Mestre após o casamento. 2. Sua atitude mental
então. 3. Sua vida em Jayrambati. 4. Sua angústia mental e determinação. 5. Pondo em prática sua
determinação. 6. Ida a Dakshineswar a pé como pai. 7. A visão da Santa Mãe durante sua doença. 8. O
comportamento do Mestre à chegada da Santa Mãe. 9. Sua alegria transbordante com esse fato. 10. O
Mestre testando seu próprio conhecimento de Brahman. 11. O treinamento de sua esposa. 12. Seu método
de ensino. 13. Como o Mestre considerava a Santa Mãe. 14. O Mestre testando seu autocontrole. 15. O
comportamento ímpar do mestre. 16. O Mestre a respeito da natureza extraordinária da Santa Mãe. 17. A
decisão do Mestre depois do teste. 19. A Santa Mãe adorada como Divindade. 20. O Samadhi do Mestre e
oferenda. 21. A Santa Mãe e o Samadhi contínuo do Mestre.
1. Mathur havia morrido, mas o curso da vida no templo de Dakshineswar continuou como
antes. Dias e meses passaram-se e chegou o ano de 1872. Ocorreu então um acontecimento
especial na vida do Mestre. Devemos agora direcionar nossa atenção à casa do sogro do Mestre
no vilarejo de Jayrambati para compreender a série de eventos que levaram àquele
acontecimento.
Quando o Mestre foi com a Bhairavi Brahmani e Hriday a Kamarpukur, sua terra natal em
1867, as senhoras de sua família, como já foi mencionado anteriormente, trouxeram sua esposa.
Esta foi, na realidade, a primeira vez que a Santa Mãe encontrou seu marido. Qualquer um que
tenha tido a oportunidade de comparar as jovens de cidades como Calcutá com as de vilarejos como
Kamarpukur, verá que os corpos e as mentes das moças das cidades desenvolvem-se mais cedo
do que aqueles das jovens dos vilarejos. Nos povoados, as meninas de quatorze anos e às vezes de
quinze e dezesseis, não apresentam os sinais físicos de sua juventude plenamente desenvolvida.
Suas mentes, como seus corpos, desenvolvem-se tarde. Essa constituição saudável das moças
criadas nos vilarejo é talvez devida ao fato que elas não têm que viver em lugares pequenos,
amontoadas como pássaros em gaiolas. Vivem num ambiente natural, respirando ar puro e andando
livremente pela vila.
2. A Santa Mãe, portanto, era muito jovem quando com a idade de quatorze anos encontrou
seu marido no sentido verdadeiro, pela primeira vez. Sua capacidade de compreender o ideal
profundo e a responsabilidade da vida de casada, estavam a ponto de desabrochar. Naquela
época a jovem pura eslava maravilhada, experimentando uma felicidade celestial indescritível por
estar na divina companhia do Mestre e por desfrutar seu amor inegoísta e sua atenção, não
corrompidos pelas necessidades do corpo. Por diversas ocasiões ela costumava descrever aquela
sua alegria às devotas do Mestre, dizendo: "Meu coração estava incessantemente cheio de uma
felicidade indescritível e desde então senti sempre como se um jarro de felicidade, cheio até a
borda estivesse sido colocado em meu coração."
3. Depois de alguns meses, quando o Mestre voltou a Calcutá, vindo de Kamarpukur, a
jovem também regressou à casa do pai, sentindo em seu coração que estava de posse de uma
riqueza infinita de felicidade. Aquela sensação de felicidade produziu uma mudança em toda sua
conduta, fala, movimento e trabalho, mas não se sabe se as pessoas de modo geral notaram,
porque aquela felicidade tornou-a calma e não volúvel, pensativa e não ousada, inegoísta e não
interesseira. E acima de tudo, ao remover de seu coração todas as espécies de necessidade tornou-
se infinitamente simpática às tristezas e ao sofrimento das pessoas, convertendo-se gradualmente
na personificação da própria compaixão. Pela influência dessa alegria, mesmo o sofrimento físico
interminável agora lhe parecia não ter qualquer conseqüência e ela não sentia qualquer mágoa se
seu cuidado e sua afeição pelos outros não tivessem qualquer retorno. Assim, contente com as
mais simples necessidades físicas e perdida em si mesma, a moça vivia na casa do pai apenas
fisicamente, sua mente morando bem longe, em Dakshineswar, aos pés do Mestre. Embora um
forte desejo surgisse de vez em quando em sua mente para ir até ele e vê-lo, controlava-se e
permanecia paciente, pensando todo o tempo que aquele que bondosamente a havia amado em
seu primeiro encontro, jamais poderia esquecê-la e certamente a chamaria no momento oportuno.
Assim passaram-se os dias, um após o outro, e a jovem, firme em sua fé, esperou pelo dia
auspicioso.
4. Quatro longos anos passaram-se, mas a forte corrente de esperanças e saudade
continuou fluindo na mente da jovem. Seu corpo, contudo, não continuou no mesmo estado de
sua mente, mas transformando-se diariamente, moldou-se no de uma jovem de dezoito anos,
pelo ano de 1872. Embora a felicidade oriunda de seu primeiro encontro com o divino marido a
mantivesse num plano muito acima da dor e do prazer diários, mesmo isto não ficou livre das
intrusões do mundo hostil e sem compaixão. Porque em seus mexericos, as pessoas do vilarejo
faziam comentários ferinos, dizendo que seu marido estava louco, que tirava a roupa, andava
nu, repetindo "Hari, Hari", e as moças de sua idade referiam-se a ela como esposa de um louco,
considerando-o objeto de piedade ou desprezo. Ela ficava com o coração partido com tudo isso, mas
nada dizia. Embora absorvida no pensamento do Mestre, às vezes entregava-se a dúvidas: "Não
é ele então a mesma pessoa que vi antes? A mudança de que as pessoas falam realmente
aconteceram com ele? Se por vontade da Providência isso realmente ocorreu, não posso mais ficar
aqui; devo ficar a seu lado e servi-lo." Refletiu muito e chegou à conclusão de que deveria ir
pessoalmente a Dakshineswar e ter todas as dúvidas esclarecidas à luz dos fatos e fazer o que as
circunstâncias exigiam.
5. Sri Chaitanya nasceu no dia de lua cheia do mês Phalgun, dia do Dolyatra, dia de
festa no qual Sri Krishna é embalado num balanço. Muitas pessoas dos lugares mais afastados de
Bengala vêm todos os anos nesta época a Calcutá para se banharem nas sagradas águas do
Ganga. Algumas mulheres, parentes distantes da Santa Mãe, haviam decidido que lá iriam naquela
época do ano. A moça foi até elas e expressou seu desejo de tomar banho no Ganga. Pensando que
não seria razoável levá-la sem permissão de seu pai, as senhoras resolveram consultar
Ramchandra Mukhopadhyaya a esse respeito. Assim que o inteligente pai ouviu, compreendeu
porque a filha queria ir a Calcutá e organizou tudo para ele mesmo levá-la.
Graças à estrada-de-ferro, a distância entre Calcutá e a longínqua Kasi ou Vrindavan
parece bem reduzida em termos de tempo que se gastava para atingir aqueles lugares. Mas, não
havendo aquela bênção naqueles dias, Kamarpukur, terra natal do Mestre e Jayrambati, terra natal
da Santa Mãe, ficavam longe de Calcutá.
6. Assim ainda é hoje1 (1 Agora pode-se tomar um trem de Howrah a Vishnupur ou a Tarakeswar e então
viajar de ônibus para Jayrambati e Kamarpukur; ou viajar diretamente, de carro ou ônibus de Howrah a Kamarpukur.) isto
para não falar daquela época. Naqueles dias as linhas da estrada-de-ferro não haviam sido
estendidas ou via Vishnupar ou via Tarakeswar, nem era Chalal ligada a Calcutá por barco. Portanto
as pessoas daqueles vilarejos não tinham outra alternativa senão viajar de palanquim ou a pé. E
todos, exceto os ricos como zamindars e outros, utilizavam somente o último. Assim,
acompanhado da filha e outros companheiros, Ramchandra iniciou uma longa viagem a pé. Todos
caminharam com alegria nos primeiros dois ou três dias. Viram um arrozal atrás do outro, pequenos
lagos cheios de lótus e desfrutaram das sombras refrescantes de árvores como peepal e baniano.
Mas aquela alegria não continuou até o destino. Não habituada à fatiga das viagens, a filha de
Ramchadra teve um forte ataque de febre durante a viagem, o que deixou o pai muito aflito. Vendo
que era impossível prosseguir enquanto a filha estivesse naquele estado, parou numa hospedaria e
ali permaneceram.
7. A terrível angústia que a Santa Mãe sentiu em seu coração devido à doença que lhe
acometeu, não pode ser descrita, mas teve uma maravilhosa visão que a consolou. Às vezes
costumava dar a seguinte descrição dessa visão às devotas: "Perdi completamente a consciência
devido à elevada temperatura e permaneci inconsciente mesmo sobre minha roupa, quando vi uma
moça chegar e sentar-se a meu lado. Sua pele era negra, mas eu jamais havia visto antes tanta
beleza. Sentou-se a meu lado e começou a passar a mão sobre minha cabeça e meu corpo. Sua
mão era tão suave e refrescante que a sensação de queimação de meu corpo começou a
diminuir. Perguntei-lhe afetuosamente: 'Posso saber de onde você veio?' A moça disse: 'Venho de
Dakshineswar.' Admirada eu disse: 'De Dakshineswar? Pensei em ir lá para vê-lo e servi-lo (o
Mestre); mas tive essa febre durante a viagem e não poderei satisfazer esse desejo.' 'Por que
não? Perguntou a moça. 'Você certamente irá a Dakshineswar. Ficando boa, você irá e o verá. É por
você que eu o mantive lá.' Eu disse: 'É assim? Por favor diga-me, você está ligada a ele?' 'Sou
sua irmã.' Ela respondeu. Eu disse: 'Verdade! É por isso que você veio.' Conversando com ela
dessa maneira, peguei no sono."
8. Ramachandra levantou-se de manhã para ver se a febre de sua filha persistia. Pensou
que seria melhor continuar a viagem devagar, ao invés de ficar sem auxílio, esperando na
estrada. Encorajada pela visão da noite anterior, a Santa Mãe aprovou a idéia. Mal haviam andado
um pouco quando encontraram um palanquim. Novamente ela teve febre, mas como não era tão
forte como a da noite anterior ela não perdeu o domínio de si mesma. Nem mesmo falou com
alguém sobre isso. Gradualmente chegaram ao fim da viagem e a Santa Mãe encontrou o Mestre em
Dakshineswar, às nove horas da noite.
O Mestre ficou preocupado ao vê-la com aquela febre. Arranjou-lhe cama em seu próprio
quarto, do contrário sua febre aumentaria devido ao frio e disse com um suspiro: "Por fim você
veio. Meu Deus! Meu Mathur não está mais aqui. Que cuidado ele teria tido com você!" Com as
providências adequadas tomadas para remédio, dieta, etc., a Santa Mãe recuperou-se em dois ou
três dias. O Mestre manteve-a em seu quarto por três ou quatro dias e pessoalmente
supervisionou tudo. Então providenciou para que ela fosse viver com sua mãe no Nahabatkhana, o
salão de música.
9. Assim foram removidas as preocupações causadas pelos rumores. A poeira da dúvida,
levantada pelos rumores e que havia anuviado sua fé, agora espalhou-se por todos os lados e
desapareceu. O cuidado afetuoso e a atenção ansiosa que o Mestre lhe dedicou confirmaram sua fé
em que ele era seu antigo ser e que somente pessoas com mentalidade mundana, sem qualquer
força de discriminação, haviam espalhado aqueles falsos rumores. Seu 'senhor' era o mesmo
'senhor', assim refletiu a Santa Mãe, que longe de tê-la esquecido continuava tão terno com ela
quanto anteriormente. Portanto decidiu rapidamente o que deveria fazer. Passou a viver feliz no
Nahabat e empenhou-se no serviço do Mestre e de sua mãe. O pai dela, feliz com a felicidade da
filha, ainda permaneceu uns dias mais e depois voltou satisfeito para casa.
10. Já falamos ao leitor sobre a linha de pensamento do Mestre na situação com a qual se
defrontou com a chegada da Santa Mãe em Kamarpukur enquanto esteve ali em 1867.
Recordando-se das palavras de Tota Puri que o conhecedor de Brahman supera a diferença
entre homem e mulher baseada na consciência do corpo, ficou preparado para utilizar aquela situa-
ção tanto para testar seu próprio conhecimento como para cumprir o dever para com sua esposa,
mas teve de regressar a Calcutá quando havia começado a realizar aqueles dois objetivos. Tendo-
a ao lado agora aplicou sua mente outra vez naqueles objetivos.
11. Por que então, pode-se perguntar, não havia trazido a esposa para Dakshineswar antes
e testado seu conhecimento? Em resposta pode-se dizer que um homem comum sem dúvida assim
teria agido. Mas o Mestre não pertencia à classe de seres humanos comuns e por isso sua conduta
foi diferente. Aqueles acostumados a fazer tudo dependendo inteiramente de Deus o tempo todo,
não planejam previamente o que querem fazer. Em vez de dependerem, como nós, do pequeno e
limitado intelecto para tomar decisões sobre assuntos que afetam o bem-estar deles mesmos e
de outros, procuram ajuda e orientação do intelecto Divino, que tudo penetra. São, portanto,
avessos a cortejar qualquer situação por iniciativa própria. Agem o tempo todo de pleno acordo
com a vontade universal e se, por si mesmo, sem qualquer iniciativa de sua parte, um tempo de
prova vier, continuam submetendo-se a ela. O Mestre não se aplicou voluntariamente a provar a
profundidade de seu conhecimento divino, mas quando viu que a esposa havia vindo a Kamarpukur
e que, se tivesse que cumprir o dever para com ela, teria de suportar aquela prova, somente
então estava pronto para submeter-se a ela. Também, quando pela vontade de Deus a situação
mudou e ele teve de regressar a Calcutá e viver longe de sua esposa, jamais procurou trazê-la por
sua própria iniciativa. Até que ela mesmo chegasse, não fez o menor esforço para trazer a Santa
Mãe a Dakshineswar. Podemos assim ver por meio de nosso intelecto comum uma coerência
desenvolvendo-se em todas as fases do comportamento do Mestre em relação a ela. Além disso,
temos que compreender que por sua visão ióguica ele sabia que esta era a vontade de Deus.
12. Agora quando viu que havia chegado o tempo de submeter-se à prova do
cumprimento dos deveres para com sua esposa, sentiu-se perfeitamente pronto. Sempre que
havia uma oportunidade costumava ensinar à Santa Mãe tudo a respeito do objetivo e dos deveres
da vida humana. Dizia-se que nessa época falou à Santa Mãe: "Assim como a 'tia' lua é a tia de
todas as crianças, assim Deus é de todos." É privilégio de qualquer um chamar por Ele. Qualquer
um que O chame, será abençoado com Sua visão. Se você chamá-Lo, também O verá." O método
de ensino do Mestre não consistia somente em dar instruções a um discípulo. Mantinha o
discípulo perto dele, tornava-o seu em todos os aspectos pelo amor e pela afeição, e então, dava-
lhe instruções. Mesmo assim o Mestre não parava por aí. Mantinha o olho aguçado vendo até onde
o discípulo punha as instruções em prática; e se, inadvertidamente, o discípulo agisse contrari-
amente a suas instruções, corrigia-o mostrando os desvios de sua parte. Agora adotou também o
mesmo método com a Santa Mãe. O quanto ele a tornou sua por meio do amor, desde o
primeiro dia, fica claro pelo fato que ele pedia-lhe para morar em seu próprio quarto assim que
ela chegou, e que, quando ela recuperou-se da enfermidade, deu-lhe permissão para compartilhar
seu próprio leito, todas as noites. Já falamos ao leitor em outro lugar (III.4) sobre o
comportamento puro e imaculado do Mestre com a Santa Mãe naquela época. Não vamos,
portanto, repetí-lo aqui. Acrescentaremos somente uma ou duas palavras ao que já mencionamos.
13. Certo dia, nessa época, enquanto massageava os pés do Mestre, a Santa Mãe
perguntou-lhe: "Como você me considera?" Logo veio a resposta: "A Mãe que está no templo, a
Mãe que deu nascimento a este corpo e que está agora vivendo no Nahabat, a mesma Mãe está
agora massageando meus pés. Verdadeiramente, sempre considero você uma forma da bem-
aventurada Mãe Divina."
14. Noutra ocasião, vendo a Santa Mãe adormecida a seu lado, o Mestre dirigiu-se à sua
própria mente e começou a discriminar: "Este é, Ó mente, um corpo feminino. As pessoas
consideram-no como um objeto de grande prazer, uma coisa altamente apreciada e
morrem para desfrutá-lo. Se alguém, contudo, está atrás disso, ficaria obcecado com a
consciência do corpo. Não se pode ir além dele e realizar Deus que é a Existência-
Conhecimento-Bem-aventurança. Ó mente, não acolha um pensamento no interior e
uma atitude contrária no exterior. Diga com sinceridade se quer tê-lo ou Deus. Se quiser,
está aqui diante de você; tome-o" Ele discriminou assim, mas mal havia abrigado em sua
mente a idéia de tocar a pessoa da Santa Mãe, sua mente encolheu-se e imediatamente perdeu-
se tão profundamente em Samadhi que não retomou à consciência normal naquela noite. Teve que
ser trazido com grande dificuldade à consciência normal na manhã seguinte pela repetição
contínua do nome de Deus em seus ouvidos.
15. Acontecimentos assim, narrados pelo Mestre a partir das páginas de sua vida na
companhia da Santa Mãe, descrevendo o total desapego e ausência de desejos carnais em ambos,
apesar do total desabrochar de sua juventude, são desconhecidos na vida de qualquer outra
Encarnação de Deus na história espiritual do mundo. Encantado de ouvir essas coisas, o coração
humano vem naturalmente acreditar na natureza divina do casal e sente-se compelido a ter amor do
fundo do coração e reverência por eles. O Mestre, livre da consciência do corpo, passou noites
inteiras em êxtase, nesta época. Mesmo quando ele voltava ao plano de consciência normal no
final do êxtase, sua mente morava num estado tão exaltado que a consciência do corpo como a
das pessoas comuns nunca surgia, nem mesmo por um momento.
16. Assim os meses correram e mais de um ano passou-se. Entretanto o autocontrole do
maravilhoso Mestre e de sua igualmente maravilhosa esposa não os abandonou. Nem mesmo
por um instante, por uma inadvertência, suas mentes consideraram a união física como agradável
e desejável. Recordando o que aconteceu naquela ocasião, o Mestre dizia-nos de vez em quando,
"Não tivesse ela (a Santa Mãe) sido tão pura, perdido o autocontrole de si mesmo e me assediado,
quem sabe meu autocontrole teria sido desfeito e surgida a consciência do corpo? Havia implorado
à Mãe Divina, depois do meu casamento, para que mantivesse a mente dela absolutamente livre de
luxúria. Tendo vivido com ela naquela época, vi que a Mãe Divina realmente ouviu e atendeu
aquela minha oração."
17. Um ano de experiência convenceu-o de que nenhuma paixão do corpo poderia alguma
vez vencer sua mente e que sua feição mental a respeito da esposa, como parte da Mãe Universal ou
Brahman havia se tornado uma duradoura e inquebrantável inclinação de sua consciência. Estava
convicto que a Mãe Divina o havia feito suportar aquele teste e que, por Sua graça, sua mente
estava agora estabelecida no estado divino de uma maneira fácil e natural. Sentiu agora no fundo do
seu coração que sua Sadhana, pela graça da Mãe, estava perfeitamente completada e que sua
mente estava tão absorvida em Seus pés de lótus, que não havia possibilidade de qualquer desejo
contrário à Sua vontade ali surgir consciente ou inconscientemente. Por ordem da Mãe Divina, um
desejo maravilhoso surgiu agora em seu coração e que ele pôs em prática sem a mínima hesitação.
Vamos contar ao leitor de forma relacionada o que, de vez em quando ouvimos a este respeito, do
Mestre e da Santa Mãe.
18. Um pouco mais da metade do mês de Jyaishtha do ano de 1280 da Era Bengali (25 de
maio de 1873) passou-se. Era o dia da lua nova, ocasião sagrada para a adoração da Phalaharini
Kalika Devi. Era o dia de um festival especial no templo de Dakshineswar. O Mestre havia feito
preparativos especiais naquele dia para a adoração da Mãe do universo. Estes preparativos, contudo,
não haviam sido feitos no templo, mas particularmente em seu próprio quarto, segundo sua
vontade. Um assento de madeira, pintado de Alimpana, pigmento de pó de arroz, para que a Devi
se sentasse durante a adoração, foi colocado no lado direito do adorador. O sol se pôs. A noite de
lua nova, coberta pela profunda escuridão, iluminou a terra. Hriday, sobrinho do Mestre, tinha que
fazer um culto especial à Devi, no templo. Ajudou o Mestre o quanto pôde, nos preparativos para
a adoração e foi para o templo. Tendo terminado o serviço noturno e a adoração de Radha-Govinda,
o sacerdote principal, Dinu, veio ajudar o Mestre. Eram nove horas da noite quando todos os
preparativos para a adoração da Devi ficaram prontos. Neste meio tempo, o Mestre mandou um
recado à Santa Mãe para que ela fosse ao culto. Ela foi ao quarto e o Mestre deu início à
adoração.
19. Os artigos do culto foram purificados pelos Mantras e terminaram todos os ritos
preliminares. O Mestre fez sinal para que a Santa Mãe se sentasse no assento de madeira enfeitado
de Alimpana. Enquanto presenciava o culto, a Santa Mãe já estava em estado semi-consciente. Não
totalmente consciente do que fazia, ela como uma pessoa encantada pelos Mantras, permaneceu
olhando para o norte, à direita do Mestre que estava sentado com o rosto para o leste. Segundo as
prescrições das escrituras, o Mestre aspergiu repetidamente a Santa Mãe com água purificada
pelos Mantras, do jarro colocado diante dele, pronunciando o Mantra em seu ouvido recitando a
oração: 'Ó Senhora, Ó Mãe Tripurasundari que és a controladora de todos os poderes, abre a porta
à perfeição! Purifica seu corpo e sua mente (da Santa Mãe), manifesta-Te nela e sê benéfica."
20. Depois o Mestre executou o Nyasa dos Mantras na pessoa da Santa Mãe de acordo com
as prescrições dos Sastras e adorou-a com os dezesseis artigos, como se fosse a Própria Devi.
Em seguida ofereceu alimento com sua mão e pôs uma parte dele na boca da Santa Mãe que
perdeu a consciência normal e entrou em Samadhi. O Mestre também, pronunciando Mantras em
seu estado semi-consciente, entrou em completo Samadhi. O adorador em Samadhi tornou-se
perfeitamente identificado e unido à Devi.
Passou-se um longo tempo. O segundo quarto da noite terminou e o terceiro já ia
adiantado, quando o Mestre, cuja alegria estava somente no Ser, apresentou um pequeno sinal de
retomar à consciência normal. Retomando ao estado semi-consciente novamente, ofereceu-se à
Devi. Agora abandonou para sempre aos pé de lótus da Devi tudo o que era seu - o resultado de
suas Sadhanas, seu rosário etc. - a par com seu ser e saudou-a pronunciando os Mantras:
"Ó Tu, Ó bom augúrio de todas as coisas auspiciosas! Ó porta de todas as ações! Ó refúgio! Ó
Uno de três olhos! Ó esposa de pele clara de Siva! Ó Narayani! Inclino-me ante Ti, inclino-me ante
Ti!"
A adoração chegou ao fim. 2 (2 Com respeito à data exata do Shodasi Puja, há uma outra versão que saiu
depois da publicação desse livro. Está contido no trabalho bengali sobre as conversações da Santa Mãe, entitulado Mayer-
Katha, vol.II. Nele está relatado que ela falou que o Puja teve lugar depois de um mês e meio após sua chegada a
Dakshineswar. Neste caso deve ter ocorrido no puja Phalaharini-Kali de junho de 1872 e não, em maio de 1873.) A Sadhana
do Mestre alcançou seu ápice com a adoração d'Aquela que governa o universo, a Mãe Divina no
corpo de uma mulher, a personificação do próprio conhecimento espiritual. O homem-deus
alcançou perfeição em todos os aspectos.
21. A Santa Mãe permaneceu com o Mestre mais ou menos cinco meses depois da
adoração de Shodasi. Agora, como antes, ela empenhava-se no serviço do Mestre e de sua mãe,
passava seu dia no Nahabat e à noite compartilhava da mesma cama que ele. O Mestre vivia
em contínuo Bhava-Samadhi, dia e noite. Às vezes sua mente mergulhava em Nirvikalpa Samadhi
de tal maneira que apareciam em seu corpo sinais de morte. Apreensiva com a ocorrência de tais
estados a qualquer hora da noite, a Santa Mãe não podia dormir. Quando numa ocasião o Mestre
não desceu à consciência normal do Samadhi durante muito tempo, ela ficou alarmada e não
sabendo o que fazer, perturbou o sono de Hriday e de outros. O Samadhi do Mestre terminou
quando Hriday chegou e pronunciou os nomes de Deus em seus ouvidos durante bom tempo. Vindo
a saber de tudo isso depois de seu Samadhi e também da perturbação do sono da Santa Mãe a
cada noite, o Mestre arranjou para que levassem a cama dela para o Nahabat junto de sua
mãe. Ela viveu assim cerca de um ano e meio com o Mestre em Dakshineswar e voltou a
Kamarpukur provavelmente num dia de outubro de 1873.
CAPITULO XXI
ASSUNTOS: 1. O desejo do Mestre por Sadhana termina com o Shodasi-Puja. 2. A razão para isto. 3. A
prática da religião de Jesus. 4. Sua visão da verdadeira forma de Jesus. 5. Seus pontos de vista a respeito de
Buda. 6. A fé do Mestre na religião Jaina e Sikh. 7. Reafirmação das experiências extraordinárias do Mestre . 8.
Experiências a respeito de si mesmo. 9. Experiências sobre assuntos espirituais em geral. 10. Opiniões de
três Sadhakas eruditos sobre o Mestre. 11. A época da chegada desses três eruditos. 12. O Mestre gritando
pela chegada dos seus devotos do círculo íntimo.
APÊNDICE À PARTE II
1. Já falamos ao leitor que a Santa Mãe voltou a Kamarpukur em outubro de 1873, depois
da adoração de Shodasi. Pouco depois de sua chegada, Rameswar, o segundo dos irmãos mais
velhos do Mestre, morreu de tifo. A espiritualidade, de uma forma ou outra, manifestava-se na
vida de cada homem e de cada mulher pertencente à linha paterna do Mestre. Ouvimos muitas coisas
ilustrativas a esse respeito sobre Rameswar.
2. Rameswar era um homem de natureza muito liberal. Dava sem hesitar aos Sannyasins e
faquires que viessem à sua porta qualquer coisa que pedissem, desde que houvesse na casa. Seus
parentes disseram que esses mendicantes costumavam vir e desejar muitas coisas - um, uma
panela, outro, um jarro d'água, um terceiro, um cobertor e assim por diante - e Rameswar
tirava da casa e lhes dava. Se qualquer membro da casa fizesse qualquer objeção, calmamente
dizia: "Deixe-os levar, não façam objeção. Teremos muitos desses artigos outra vez, por que se
aborrecer?" Rameswar possuía também algum conhecimento de astrologia.
3. Quando Rameswar estava vindo para casa, voltando de Dakshineswar pela última vez, o
Mestre soube que ele não regressaria mais e em êxtase, disse-lhe: "Vejo que você está
voltando para casa; vá mas não compartilhe o leito com sua esposa; se o fizer, é duvidoso que
você sobreviva." Mais tarde um de nós1 (1 Swami Premananda.) ouviu a esse respeito, do próprio Mestre.
4. Pouco tempo depois de Rameswar chegar em casa soube-se que estava doente.
Quando o Mestre ouviu, disse a Hriday: "Ele não obedeceu à proibição; é duvidoso que sua vida
seja salva". Depois de cinco ou seis dias chegaram notícias que Rameswar havia morrido. O Mestre
temeu que a notícia sobre a morte do filho fosse um grande choque para sua idosa mãe. Foi ao
templo e lamentando-se, orou à Mãe do universo para que Ela a poupasse de sofrimento. Então
o Mestre, com lágrimas nos olhos, ele mesmo nos contou, foi do templo até o Nahabat para
transmitir a notícia e consolar sua mãe. O Mestre disse: "Eu tinha medo que a mãe pudesse
perder completamente a consciência ao ouvir a notícia e aí seria duvidosa a chance dela
sobreviver. Mas em realidade, ocorreu o contrário. A mãe ouviu a notícia, expressou um pouco de
tristeza e começou a consolar-me dizendo: 'O mundo é transitório, todo o mundo deve morrer um
dia ou outro; assim é inútil lamentar-se.' Pareceu-me que a Mãe Divina havia elevado sua mente
ao tom mais elevado, como um Tanpura ajustado a uma nota muito alta e por isso a tristeza e o
pesar humanos não a tocavam. Quando notei isso saudei a Mãe Divina repetidamente e fiquei livre
de ansiedade."
5. Rameswar teve conhecimento da época de sua morte cinco ou seis dias antes. Contou
para os parentes e fez todos os preparativos para o funeral e para a cerimônia de Sraddha. Vendo
uma mangueira em frente à sua casa ser cortada por algum motivo, disse: "É bom, a madeira será
usada nos ritos do funeral!" Pronunciou o nome sagrado de Sri Ramachandra até os últimos
momentos. Ficou inconsciente apenas por certo período de tempo antes de morrer. Antes de sua
morte pediu aos parentes para não cremar seu corpo, mas que o enterrassem na estrada próxima.
Ao ser perguntado a razão, respondeu: "Vou atingir um céu elevado pela virtude do toque da
poeira dos pés de muitos Sadhus que caminharam na estrada." Rameswar morreu altas horas da
noite.
6. Rameswar e um aldeão chamado Gopal foram amigos durante muito tempo. Gopal disse
que após a morte de Rameswar - que deve ter ocorrido simultaneamente com o incidente - ouviu
uma pancada na porta da casa e, ao perguntar quem era, ouviu a resposta: "Sou Rameswar e
vou dar um mergulho no Ganga. Raghuvir está ali na casa; por favor veja que Sua adoração não
seja prejudicada de modo algum." Quando Gopal foi abrir a porta, ao chamado do amigo, este
lhe disse novamente: "Não tenho corpo, assim você não poderá me ver mesmo que abra a porta."
Apesar disso Gopal abriu a porta mas não viu ninguém. Então foi à casa de Rameswar para se
certificar de que o que ouvira era verdadeiro, e soube que Rameswar havia falecido.
7. Ramlal Chattopadhyaya diz que seu pai Rameswar morreu em 1873 com a idade
aproximadamente de cinquenta e oito anos. Apanhou as cinzas do falecido pai e foi para Vaidyavati
perto de Calcutá e jogou-as no Ganga. Aí atravessou o rio de barco, para ver o Mestre, em
Dakshineswar. Olhando para Barrackpur, enquanto atravessava o rio, viu o templo da Devi
Annapurna que estava sendo erigido a favor de Jagadamba Dasi, esposa de Mathur Babu, ainda em
construção. A consagração da Devi ocorreu depois, em 1875. Com a morte de Rameswar, seu filho
Ramlal foi nomeado sacerdote em Dakshineswar.
8. Quando Mathur morreu, Sambhucharan Mallick de Sinduriapati, Calcutá, veio a conhecer
o Mestre e dedicou-lhe grande amor e reverência.2 (2 Alguns devotos do Mestre dizem que ouviram-no dizer que
depois da morte de Mathur Babu, Manimohan Sen de Panihati tomou para si o amoroso dever de suprir todas as necessidades
do Mestre. Manimohan tinha muito respeito pelo Mestre e costumava visitá-lo com freqüência. Sambhu assumiu aquela
obrigação depois de Manimohan. Sambhu, o próprio Mestre afirmava, foi o segundo provedor de suas necessidades. Assim
Mani Babu parece-nos, não pôde continuar servindo-o por muito tempo, apesar de ter começado a cumprir a tarefa que havia
se imposto.) Sambhu por essa época tinha grande atração pela religião do Brahmo Samaj. Era
conhecido das pessoas de Calcutá por sua generosidade. Seu amor e devoção ao Mestre tornavam-
se cada vez mais profundos e ele teve o privilégio de servi-lo, como Mathur. Também ficava feliz em
suprir suas necessidades, sempre que vinha tomar conhecimento de alguma. Continuou a servi-lo
até o fim de seus dias e sentia-se altamente gratificado. Sambhu dirigia-se ao Mestre como
"Guruji", (honrado preceptor). Aborrecido, o Mestre lhe disse: "Quem é Guru e quem é discípulo?
Você é meu Guru." Mas, ao invés de desistir, Sambhu chamou-o assim pelo resto da vida. Essa
maneira de se dirigir ao Mestre é prova clara que a companhia do Mestre lhe havia trazido muita
iluminação e completo sucesso em sua vida espiritual. Sua esposa também ofereceu ao Mestre
adoração do fundo do coração, como ao Próprio Deus. Quando a Santa Mãe estava em
Dakshineswar, costumava levá-la para sua casa todas as terças-feiras3 (3 Terça-feira é olhada como dia
auspicioso para a adoração da Devi.) e adorava seus sagrados pés com os seis artigos tradicionais.
9. A Santa Mãe veio a Dakshineswar pela segunda vez, provavelmente na metade de 1874.
Passou a viver, como antes, com a mãe do Mestre no Nahabat. Sabedor disso e presumindo que ela
estava se sentindo desconfortável vivendo num aposento tão pequeno, Sambhu comprou, por
duzentos e cinqüenta rupias, um terreno próximo ao templo de Dakshineswar no qual desejou
construir para ela um espaçoso cômodo, com telhado de sapé. Nessa época, o capitão Viswanath
Upadhyaya, oficial do Governo do Nepal estava visitando o Mestre a quem tornou-se extremamente
dedicado. Conhecendo a decisão de Sambhu de mandar construir o aposento, o Capitão Viswanath
prontamente ofereceu-se para doar a madeira necessária para a construção, porque todos os
negócios de madeira Sal do Governo do Nepal estavam em suas mãos e por conseguinte, não lhe
seria muito caro consegui-la. Quando se iniciou a construção do quarto, Viswanath enviou três
grandes toras de madeira Sal de seu estoque, para o vilarejo de Belur, do outro lado do Ganga.
Mas como durante a noite a maré ficou muito alta, uma das peças foi arrastada pela água. Hriday
ficou aborrecido chegando ao ponto de chamar a Santa Mãe de "infeliz". Contudo, ao tomar
conhecimento de que uma das toras havia sido arrastada, o Capitão enviou outra e a construção
foi terminada. A Santa Mãe viveu ali aproximadamente um ano. Uma mulher foi contratada para
ficar com a Santa Mãe e ajudá-la nos seus afazeres. A Santa Mãe cozinhava a comida que levava
diariamente ao Mestre no templo de Dakshineswar e voltava depois que ele a tomava. O Mestre
também costumava visitá-la durante o dia, ficar com ela algum tempo e depois voltar ao templo.
Somente uma vez houve uma exceção a essa rotina. Uma tarde, logo que o Mestre chegou,
começou a chover tão forte e continuamente até tarde da noite, que lhe foi impossível regressar ao
templo aquela noite. Foi então obrigado a ficar. A Santa Mãe cozinhou sopa e arroz para o Mestre
que passou a noite lá.
10. A Santa Mãe teve forte ataque de disenteria depois de estar morando ali há cerca de um
ano. Sambhu Babu tomou todos os cuidados para seu restabelecimento. Chamou o Dr. Prasad
que a pôs sob tratamento. Na convalescência, foi mandada para sua cidade natal, o vilarejo de
Jayrambati, provavelmente em 1876. Mal chegou ocorreu uma recaída da doença e ela ficou
novamente de cama. Gradualmente foi piorando tanto que todos duvidaram que ela se
recuperasse. Ramchandra, pai da "Santa Mãe”, havia recentemente morrido. Assim, sua Mãe e
seus irmãos serviam-na da melhor maneira que podiam. Contaram-nos que ao ouvir a respeito da
séria doença, disse a Hriday: "Então, Hriday, parece que a vinda e a saída dela do mundo foi em
vão! Não há razão de se tomar um corpo humano se Deus não for alcançado."
11. Vendo que a doença não cedia de jeito algum, a Santa Mãe resolveu observar
Prayopavesaba (jejum até a morte), diante da Devi. Pensando que sua mãe e seus irmãos se
opusessem, foi sem consentimento deles ao templo de Simhavahini, no vilarejo e aí praticou
Prayopavenasa. Depois de permanecer naquela condição por algumas horas, a Devi ficou
satisfeita e deu-lhe o remédio para sua recuperação.
Mal havia tomado o remédio de acordo com a ordem da Devi, curou-se e ficou forte como
antes. Desde que a Santa Mãe havia feito Prayopavesana e obtido o remédio, a Devi passou a ser
conhecida nos vilarejos vizinhos como aquela especialmente "despertada", isto é, aquela com quem
se pode comunicar, fazer oferendas e orar com a certeza de resposta.
12. Sambhu serviu o Mestre e a Santa Mãe durante aproximadamente quatro anos,
quando, então, ficou doente. Um dia o Mestre foi visitá-lo durante sua doença e ao regressar,
disse: "Não há óleo no lampião de Sambhu." As palavras do Mestre efetivaram-se pouco tempo
depois. Sambhu morreu de diabetes com complicações. Sambhu Babu era muito liberal e um
intrépido devoto de Deus. A alegria de sua mente não esmoreceu sequer um dia durante sua
enfermidade. Com o coração cheio de alegria disse a Hriday, poucos dias antes de falecer: "Não
tenho qualquer ansiedade a respeito da morte; já fiz minhas malas e estou pronto para partir."
Muito tempo antes de conhecer Sambhu Babu, o Mestre, em êxtase, viu que a Mãe do universo
havia escolhido Sambhu como o segundo provedor de suas necessidades e reconheceu-o à primeira
vista.
13. Ocorreu um importante acontecimento na vida do Mestre depois que a Santa Mãe foi
para a casa do pai durante a enfermidade. No dia do aniversário do Mestre em 1876 sua mãe,
Chandramani Devi, morreu com oitenta e cinco anos. Devido à velhice, sua força mental e seus
sentidos começaram a se enfraquecer alguns anos antes da morte. Daremos a seguir a descrição
de sua morte, como nos foi transmitida por Hriday:
Hriday estava de viagem para casa quatro dias antes da morte de Chandramani. Estava
desassossegado com vago temor ocasionado por pressentimentos indefinidos e por essa razão
hesitou bastante em voltar para casa e deixar o Mestre sozinho. Hriday passou ao Mestre sua
apreensão que lhe disse: "Então não vá." Passaram-se três dias sem que algo ocorresse.
O Mestre tinha o hábito de visitar sua mãe diariamente por certo tempo e servi-la com suas
próprias mãos. Hriday também costumava servi-la e a mãe de Kali, uma empregada, ficava a maior
parte do dia com a velha senhora. Agora ela não estava com boa vontade para com Hriday porque,
em sua senilidade, havia ficado com a impressão desde a morte de Akshay, que fora Hriday que o
havia matado e que estava tentando matar o Mestre e sua esposa também. Por esta razão, às vezes
ela prevenia o Mestre dizendo: "Jamais concorde com o que Hriday diz." Sinais de perda de lucidez
devido à idade foram vistos em outras ocasiões. Tome-se por exemplo, o seguinte fato: A fábrica de
juta de Alambazar estava situada perto do jardim de Dakshineswar. Os operários tinham licença para
sair por algum tempo ao meio-dia. Eram chamados meia hora depois pelo toque de um apito. A
velha senhora achava que o apito era o bater das conchas em Vaikunthar e por isso ela não
deveria comer antes que o apito tocasse. Ao ser-lhe pedido para que comesse, respondia: "Como
posso comer? A comida ainda não foi oferecida à Lakshirni-Narayana. A concha em Vaikuntha ainda
não tocou. Pode-se comer algo antes disso?" Era difícil fazê-la sentar-se para comer nos feriados,
quando o apito não tocava. Hriday e o Mestre tinham que inventar muitas razões para que ela
tomasse a refeição.
O quarto dia chegou. A velha senhora até então não havia apresentado qualquer sinal de
enfermidade. O Mestre foi vê-la após o escurecer e encheu sua mente de alegria levando a
conversa para o início de sua vida. Ela foi posta na cama à meia-noite, quando então o Mestre
voltou para o quarto.
Era a manhã seguinte. O relógio bateu oito horas, mas a velha senhora não abriu a porta e
saiu. A mãe de Kali subiu até a porta do aposento no primeiro andar do Nahabat, chamando-a
repetidamente, mas não obteve resposta. Pôs o ouvido na porta e ouviu um som que não era
normal, saindo da garganta da velha senhora. Ficou alarmada e falou com o Mestre e Hriday.
Hriday chegou, tirou com jeito a barra da porta, pelo lado de fora e viu que ela estava
inconsciente. Trouxe então um remédio ayurvédico e colocou-o na língua. Começou a fazê-la tomar
leite e água do Ganga, gota a gota, em pequenos intervalos. Permaneceu naquele estado
durante três dias. Chegaram então os últimos momentos. Ela foi levada ao Ganga sagrado. O
Mestre ofereceu a seus pés de lótus flores, pasta de sândalo e folhas de basil sagrado. Como era
proibido ao Mestre, um Sannyasin, fazer os funerais de sua mãe, ele encarregou o filho de seu
irmão, Ramlal, para executar os ritos fúnebres. Quando terminou, Ramlal a pedido do Mestre,
libertou um touro e fez a cerimônia do Sraddha segundo as prescrições das escrituras.
14. Em consideração ao prestígio e à honra de Sannyasa e prescrições das escrituras
relacionadas com ela, o Mestre não observou Asaucha nem fez quaisquer outros ritos por ocasião da
morte da mãe. Sentindo por isso que havia negligenciado os deveres próprios de um filho, certo
dia esteve a ponto de oferecer Tarpana. Mas mal havia apanhado um Anjali de água, veio-lhe uma
inspiração espiritual; os dedos ficaram insensíveis e separados um do outro e toda a água saiu por
entre os dedos, apesar de repetidos esforços para fazer o ritual. Então cheio de tristeza, confessou
à sua mãe falecida sua incapacidade para fazê-lo. Mais tarde um Pandit disse-lhe que essa reação
vem a um homem que alcançou o estado em que as ações caem. Com o progresso na
espiritualidade ele atinge o estado em que a execução de todas as ações védicas torna-se
impossível e por essa razão não incorre em pecado.
15. Um importante acontecimento ocorreu na vida do Mestre, pela vontade da Mãe Divina, no
ano anterior à morte de sua mãe. Em 1875 o Mestre teve vontade de conhecer Kesav Chandra Sen,
chefe do Brahmo Samaj da Índia. Quando o Mestre estava em êxtase recebeu orientação da Mãe
Divina nesse sentido e sabendo que Kesav e seus discípulos estavam fazendo práticas na chácara de
Jayagopal Sen em Belgharia, a poucas milhas de Calcutá, foi com Hriday na carruagem do capitão
Viswanath, onde chegou aproximadamente uma hora da tarde. Naquele dia o Mestre estava usando
uma roupa bordada de vermelho. A extremidade da parte da frente, arrumada em dobras, havia sido
jogada no ombro esquerdo e balançava em suas costas.
16. Hriday desceu da carruagem e viu Kesav e seus seguidores sentados no ghat do lago do
jardim. Aproximando-se, Hriday disse a Kesav: "Meu tio materno é um grande amante de Deus e
gosta de ouvir conversas e canções sobre Hari. Ouvindo-as ele fica inspirado e entra em êxtase. Ele
soube que o senhor é um grande devoto de Deus e veio aqui para ouvir palestras do senhor sobre a
glória divina do senhor. Se o senhor concordar, vou trazê-lo aqui." Kesav concordou. Hriday ajudou o
Mestre a descer da carruagem e acompanhou-o. Kesav e os outros até então haviam estado muito
ansiosos para vê-lo, mas quando o viram, a ansiedade esfriou porque ele parecia um homem comum.
17. O Mestre aproximou-se de Kesav e disse: "É verdade, senhores, que todos os senhores
têm a visão de Deus? Gostaria de conhecer a natureza dessa visão. É por isso que vim até os
senhores." Dessa maneira levantou-se o assunto Deus. Não podemos dizer qual foi a resposta de
Kesav às palavras do Mestre. Mas o Mestre, disse-nos Hriday, cantou a famosa canção de Ramprasad:
"Quem sabe, Ó mente, como Kali é? Ela não pode ser vista pelo estudo dos seis Darsanas" e
imediatamente entrou em Samadhi. Quando viram aquele êxtase do Mestre, Kesav e os outros não o
consideraram num elevado estado de consciência. Pensaram que se tratasse de simples fingimento ou
de um desarranjo do cérebro. Visando trazê-lo de volta à consciência normal, Hriday começou então a
pronunciar o Pranava em seu ouvido. A isso seu rosto brilhou com um doce sorriso. Retomando assim
à consciência parcial, o Mestre continuou explicando assuntos espirituais profundos numa linguagem
tão simples com ajuda de exemplos banais, que todos ficaram encantados e permaneceram olhando
fixamente para o seu rosto. Ninguém reparou que a hora de tomar banho e de comer já havia
passado há muito tempo e que imperceptivelmente, o momento da próxima prece estava prestes a
chegar. Vendo o estado deles, o Mestre disse: "Se outro animal aproxima-se de um rebanho de
gado eles vão este avança para atacá-lo com chifradas, mas se chega uma vaca, eles lambem os
corpos uns dos outros. Hoje nosso caso é exatamente esse." Dirigindo-se a Keshav disse: "Sua
cauda caiu". Incapazes de compreender o significado dessas palavras, os seguidores de Keshav
pareciam aborrecidos, mas o Mestre encantou-os ao explicar-lhes o que queria dizer: "Vejam",
disse, "enquanto o girino tem cauda vive somente dentro d'água e não pode subir à terra; mas
quando a cauda cai, pode viver tanto na terra como na água. Assim também, enquanto um homem
tem a cauda da ignorância, só pode viver na água do mundo, mas quando ela cair, poderá mover-
se livre pelo mundo como em Existência-Conhecimento-Bem-Aventurança. Sua mente, Ó
Keshav, alcançou agora aquele estado em que o senhor pode viver tanto no mundo como, em
Existência-Conhecimento-Bem-Aventurança." O Mestre passou muito tempo debatendo assuntos
como esse e voltou para Dakshineswar naquele mesmo dia.
18. A mente de Kesav, desde a primeira vez que o viu, foi bastante atraída para o Mestre e
desse dia em diante até sua morte, considerou uma honra e um privilégio encontrá-lo e desfrutar de
sua companhia. Ele ou ia ao templo de Dakshineswar ou levava o Mestre de vez em quando à sua
residência "Kamal Kutir" em Calcutá. O relacionamento entre o Mestre e Kesav aprofundou-se de
tal maneira, que ambos sentiam grande falta se não se vissem por alguns dias. Quando isso
ocorria, ou o Mestre ia a Calcutá ou Keshav vinha a Dakshineswar. Além disso Keshav
considerava como sendo parte do festival anual do Brahmo Samaj vir com seus companheiros até o
Mestre ou levá-lo com eles para passarem um dia falando sobre o Divino. Muitas foram as
ocasiões em que ele com seus seguidores vieram a Dakshineswar num barco a vapor, cantando
todos as glórias de Deus, apanhavam o Mestre e navegavam pelo Ganga, o todo tempo ouvindo
seus ensinamentos maravilhosos e doces.
19. Lembrando-se das prescrições das escrituras, Kesav jamais foi de mãos vazias a
Dakshineswar. Sempre que vinha, trazia frutas e colocava-as diante do Mestre e como um
devotado seguidor, sentava-se a seus pés e conversava com ele. Certa vez o Mestre disse-lhe
como um gracejo: "Kesav, você encanta tantas pessoas com suas palestras. Por que não fala
qualquer coisa para mim?" Kesav respondeu humildemente: "Senhor, será que devo ir à loja de
um ferreiro para vender agulhas? Por favor diga o senhor qualquer coisa e deixe-me ouvir. As
pessoas ficam encantadas quando lhes digo algumas palavras suas."
20. Um dia o Mestre explicou a Kesav em Dakshineswar que se uma pessoa aceita a
existência de Brahman, tem igualmente que aceitar a existência do poder de Brahman e que
Brahman e Seu poder são eternamente um e o mesmo. Kesav aceitou. O Mestre disse-lhe então
que, como Brahman e Seu poder, as três entidades, - a saber, as palavras divinas (as escrituras), o
devoto e o Senhor - são inseparáveis, em outras palavras, eternamente idênticos. Os três, a
saber, as escrituras, o devoto e o Senhor são o Uno e o Uno é os três. Isso Kesav também
compreendeu e aceitou. O Mestre continuou dizendo que os três, a saber, o Guru, Krishna (o
Senhor) e o devoto são o Uno e o Uno são os três, o que agora ele iria explicar-lhe. Kesav refletiu
um pouco - não sabemos que pensamentos passaram por sua mente - e ele disse com humildade,
"Senhor, não posso agora aceitar mais do que o senhor já disse. Portanto, é desnecessário tratar
deste assunto por hora." O Mestre disse: "Está bem. Vamos parar por aqui." A mente de Kesav,
que havia sido inspirada pelas idéias e ideais ocidentais, recebeu assim muita luz na companhia
divina do Mestre. Dia a dia seu entendimento a respeito da religião védica expandia-se e ele
mergulhou em Sadhana. Isso é evidente porque seus pontos de vista religiosos gradualmente
sofreram uma mudança à medida que entrava em contato íntimo com o Mestre.
21. A mente humana a não ser que seja penosamente ferida, não se sente inclinada a se
desapegar do mundo e a realizar Deus como o seu tudo. Kesav havia tido um grande golpe depois
de dar sua filha em casamento ao príncipe de Coochbehar, aproximadamente três anos após
conhecer o Mestre. Esse casamento ocasionou grande comoção no Brahmo Samaj da Índia, que se
dividiu em dois. O grupo em oposição a Kesav separou-se formando nova sociedade chamada
General Brahmo Samaj. O Mestre em Dakshineswar ficou bastante chocado ao ouvir a respeito
daquela briga entre os dois grupos por causa de um assunto fútil. Tomando conhecimento da regra
do Brahmo Samaj sobre a idade permitida para o casamento das meninas, o Mestre disse:
"Nascimento, morte e casamento são coisas que dependem inteiramente da vontade de Deus.
Não podem ser controlados por regras duras e fixas. Por que Kesav quis fixá-las?" Se alguém
levantasse o assunto do casamento de Coochbehar e condenasse Kesav na presença do Mestre,
ele costumava dizer: "Por que Kesav deve ser reprovado por isso? É um homem que tem família.
Por que ele não faria o que fosse bom para seus filhos e filhas? O que há para ser condenado
quando um homem, tendo a responsabilidade de uma família em seus ombros, faz algo sem se
desviar do caminho da virtude? Kesav em nada agiu contra a religião ou contra a moralidade.
Pelo contrário desempenhou o dever de um pai." Portanto olhando do ponto de vista dos deveres
de um chefe de família, o Mestre sempre apoiou o ato de Kesav, não o considerando censurável.
Contudo não há dúvida de que o golpe ocasionado pelo incidente do casamento de Coochbehar fez
a mente de Kesav interiorizar-se ainda mais e conduziu-o mais rapidamente ao longo do caminho
da espiritualidade.
22. Apesar do grande amor do Mestre por ele e das muitas oportunidades que teve de
ver e ouvir o Mestre, não se sabe se Kesav, inspirado pelas idéias e pelos ideais ocidentais como
estava o tenha compreendido perfeitamente. Porque de um lado ele considerava o Mestre a
personificação viva da espiritualidade - pessoalmente levou-o à sua casa, mostrou-lhe os lugares
onde dormia, comia, sentava-se e meditava sobre o bem do seu Samaj e pedia-lhe que o
abençoasse de maneira que sua mente não pudesse se esquecer de Deus e pensasse nos objetos
mundanos quando estivesse num desses lugares. Então, levando-o ao lugar onde meditava em
Deus, Kesav ofereceu flores a seus pés de lótus.4 (4 Ouvimos a esse respeito de Vijaykrishna Goswami.) Quando
vinha a Dakshineswar muitos de nós o vimos saudar o Mestre, pronunciando, "Salve a (Nova) Re-
velação!"
23. Por outro lado era incapaz de aceitar completamente a frase do Mestre: "Todas as
religiões são verdadeiras - tantos credos, tantos caminhos." Procurou fundar um novo credo
chamado: "A Nova Revelação", reunindo o que lhe parecia ser o essencial de todas as religiões e
rejeitando o que lhe parecia não essencial. Como esse movimento surgiu pouco tempo depois de
ter travado conhecimento com o Mestre, é provável que se tratasse de uma aceitação parcial e
da propagação da conclusão final do Mestre relativa à verdadeira natureza de todas as religiões.
24. Quando as poderosas ondas da educação e da civilização ocidentais chegaram à Índia e
começaram a ocasionar mudança radical no enfoque espiritual e social das pessoas, todo o homem
de talento deste país começou a procurar harmonizar a cultura e a civilização do Oriente com as do
Ocidente. Assim como em Bengala, Rammohan Roy, Maharshi Devendranath, Brahmananda
Kesav e outros dedicaram suas vidas àquele objetivo, assim também em outras partes do país
muitas almas apareceram e fizeram o mesmo trabalho; mas nenhuma delas o conseguiu de
maneira perfeita antes da chegada do Mestre. O Mestre praticou convenientemente as disciplinas
de todas as religiões da Índia em sua própria vida, alcançando os resultados das Sadhanas
prescritas em cada uma delas, mostrando que a religião neste país não era a causa de
degradação e que essa causa deveria ser procurada em outro lugar. Mostrou também que a
sociedade, modos, costumes, em resumo, a cultura e a civilização da Índia tinham sua base na
religião, que havia trazido glória e prosperidade a este país no passado e que a mesma religião que
dá vida ainda existe não decaída e que poderíamos novamente pilotar com sucesso o barco
nacional, se apenas pudéssemos pôr todos nossos esforços e empenho nela e em nada mais. O
Mestre ele mesmo levando uma vida ideal, mostrou ainda o quanto a religião poderia alargar a
visão do homem. A seguir transmitiu o poder de liberalizar daquela religião a seus discípulos -
especialmente Swami Vivekananda - que até então haviam sido inspirados pelas idéias e ideais
ocidentais, ensinou como executar todas as ações do mundo tão preso à religião dando assim
uma maravilhosa solução para o intricado problema da Índia, acima mencionado. Da mesma
maneira como havia estabelecido a harmonia espiritual entre as religiões do mundo ao demonstrar a
verdade de todas seguindo realmente as práticas espirituais requeridas por elas, parou com as
disputas entre as várias seitas do hinduísmo pelas práticas ortodoxas de cada uma, mostrando sua
perfeição em si mesmo. Dessa maneira ele nos demonstrou a verdadeira base de nossa
nacionalidade no passado e o que deveria ser feito no futuro.
25. Embora Kesav não tenha logrado compreender a implicação total dos ideais do
Mestre, este sentia por Kesav um amor maravilhoso, o que se pode depreender de sua reação
à morte de Kesav em 1884. O Mestre dizia: "Não pude deixar o leito por três dias ao saber da
notícia; tinha a impressão que um dos meus membros estava paralisado."
26. Vamos fechar esse Apêndice mencionando um fato ocorrido quando se encontrou
com Kesav pela primeira vez. O Mestre teve o desejo de ver o enfeitiçador Sankirtan intinerante
de Sri Chaitanya. A Mãe Divina satisfez aquele desejo mostrando-o da seguinte maneira:
permanecendo do lado de fora do quarto, ele viu lindas ondas de Sankirtan dirigindo-se para
ele, vindas do Panchavati, prosseguindo para o portão principal do jardim de Dakshineswar e
desaparecendo atrás das árvores. Viu que, absorvido no amor de Deus, Gauranga, a lua de
Navadwip, caminhava a passos lentos na parte central, com Nityananda e Advaita de cada lado
e cercado por uma densa multidão. Todos estavam em estado de embriaguez espiritual
produzida por amor a Deus, alguns expressando a felicidade dos seus corações ao perderem o
controle de si mesmos e outros, pelas frenéticas danças extáticas. A multidão era tão grande
que parecia como, se não houvesse fim ao número de pessoas ali. Alguns rostos no maravilhoso
Sankirtan ficaram gravados na tela da memória do Mestre, em cores brilhantes. Quando ele os
viu chegar como seus devotos, pouco tempo depois de ter tido aquela visão, o Mestre chegou à
conclusão que eles haviam sido companheiros de Chaitanya numa vida anterior.
Pouco tempo depois dessa visão, o Mestre foi a Kamarpukur e ao vilarejo natal de
Hriday, Sihar. Phului-Shyambazar está situado a poucas milhas de Sihar. Sabedor que ali havia
muitos Vaishnavas que enchiam o lugar todos os dias com a felicidade do Sankirtan, teve
vontade de ir ouvi-lo. O vilarejo de Belte fica perto de Shyambazar. Natavar Goswami daquele
vilarejo já havia encontrado o Mestre antes e convidou-o para santificar seu lar com a poeira
de seus pés. Acompanhado de Hriday, o Mestre foi à sua casa, onde permaneceu por sete dias
e desfrutou da felicidade do Sankirtan com os Vaishnavas de Shyambazar. Apresentado ao
Mestre, Ishanchandra Mallick daquele lugar, convidou-o com grande respeito à sua casa para
que ali compartilhasse da felicidade do Sankirtan. Os Vaishnavas foram muito atraídos para ele, ao
verem seus estados maravilhosos durante o Sankirtan. A notícia de seus estados místicos espalhou-
se nas redondezas - não somente em Shyambazar, mas também em Ramjivanpur, Krishnaganj e
outros vilarejos vizinhos ou afastados. Desses lugares vieram grupos de Sankirtan que desejavam
desfrutar a felicidade divina com ele. Isto tornou o vilarejo muito cheio de gente e o Sankirtan
desenvolvia-se dia e noite. Correu a notícia de que havia chegado um devoto de Deus que morria e
ressuscitava várias vezes ao dia. As pessoas esqueciam-se de comer e de dormir, e ansiosas em
vê-lo, subiam nas árvores e alcançavam os terraços das casas. Assim, durante sete dias e sete
noites, fluiu ali uma onda de felicidade celestial. As pessoas ficavam loucas por assim dizer, para
ver o Mestre e tocar seus pés. O afluxo era tão grande que o Mestre não tinha tempo nem mesmo
para tomar banho ou comer. Para salvá-lo do cansaço, Hriday fugiu secretamente com ele para
Sihar, chegando assim ao fim, aquele "mercado de felicidade." Ishan Choudhuri, Natavar Goswami,
Ishan Mallick, Srinath Mallick e outros do vilarejo de Shyambazar e seus descendentes ainda hoje
em dia falam daquele acontecimento e dedicam-lhe muito amor e respeito. O Mestre também
conheceu Raicharan Das, o famoso tocador de Khol (tambor) de Krishnaganj. Assim que ele
começava a tocar o Khol, o Mestre entrava em êxtase. A respeito desse acontecimento, em parte
contou-nos o Mestre, em parte Hriday. Conseguimos saber da data correta da seguinte maneira:
Um grande devoto do Mestre, Mahendranath Pai, médico de Alarnbazar, conheceu o Mestre
depois que Kesav Babu tivera o privilégio de encontrar o Mestre, em 1875. Mahendranath Pai
informou-nos que seu encontro com o Mestre ocorreu logo depois da volta do Mestre de Sihar e que
o Mestre falou-lhe naquela ocasião sobre os acontecimentos de Phului-Shyambazar Portanto, esses
eventos devem ter acontecido depois de 1879, data a partir da qual os devotos escolhidos do
Mestre começaram a chegar. Somente Swami Yogananda, cuja casa se situava bem perto do templo
de Dakshineswar, deve ter vindo ao Mestre mais cedo.
Swami Vivekananda chegou em 1881. A morte de Jagadamba Dasi ocorreu em janeiro de 1881.
Aproximadamente seis meses depois, Hriday tolamente adorou os pés da neta de Mathur, de tenra
idade. Seu pai, temendo que sobreviesse algum mal à criança, ficou muito aborrecido e
despediu Hriday do serviço do templo de Kali. Hriday ainda estava com o Mestre quando de sua
visita a Phului-Shyambazar. Portanto o acontecimento em discussão deve ter acontecido algum
tempo em, ou antes de 1879.
Aqui termina o Sadhakabhava, período da vida do Mestre como aspirante espiritual
praticando Sadhanas.