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Belo Horizonte
2013
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Belo Horizonte
2013
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Dissertação intitulada Efeitos da pulsão linguagem e laço social sobre a constituição dos
sujeitos, de autoria do mestrando Ricardo Mégre Alvares da Silva, aprovada pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
AGRADECIMENTOS
Ao meu grande Mestre, na acepção grega da palavra, Célio Garcia, que me acolheu
quando eu caminhava a esmo e me ensinou a verdadeira dimensão do social no cerne da
própria psicanálise.
Ao meu Orientador, Professor Oswaldo França Neto, que nos momentos precisos
soube me conduzir a cada vez que me perdi durante o percurso.
À Professora Ilka Franco Ferrari, que anos atrás fez com que eu transformasse um
escorregão em minha primeira produção científica. Que após tantos anos, continuou me
indicando caminhos através das valiosas contribuições trazidas no momento da minha
qualificação e, por último, prontamente aceitou nosso convite para participar como membro
da banca examinadora da minha dissertação.
À Professora Nádia Laguárdia Lima, que infelizmente não pôde participar da minha
defesa, mas foi responsável pela leitura cuidadosa do meu projeto de qualificação, para que eu
trouxesse para minha dissertação os artigos sobre a técnica de Freud, fundamentais no
desenvolvimento do meu trabalho.
À Professora Andréa Máris Guerra, que resgatou meu prazer em ler Freud pela
delicadeza com que trata tanto a obra freudiana quanto seus alunos. Além disso, pelo pronto
atendimento ao nosso convite para compor nossa banca.
Ao Professor Cássio Eduardo Miranda, que nos momentos de desespero esteve ao meu
lado.
Aos meus alunos, com especial carinho a Matheus Ribeiro e Ademir Venil, que
souberam me escutar antes mesmo de que eu soubesse a dimensão da minha fala.
Ao Dr. Celso Rennó Lima, pelos anos de escuta e pela gentileza em me conceder uma
entrevista sem a qual este trabalho não teria o mesmo brilho.
Ao Dr. Francisco Paes Barreto, que mesmo distante, nos momentos de incerteza está
sempre disponível para escutar minhas dúvidas.
E, por último, mas não menos importante, aos meus pais. Sem eles nada disso teria
sido possível.
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RESUMO
A presente dissertação discute os efeitos da pulsão e da linguagem sobre o laço social e suas
consequências sobre a constituição dos sujeitos. Com base em dois casos clínicos, demonstra
as mutações inéditas ocorridas nos enlaçamentos dos sujeitos contemporâneos e seus
sucedâneos na clínica psicanalítica. Por fim, aponta a relação indissolúvel entre pulsão,
linguagem e laço social a partir da noção de que um resto não dialetizável sempre permanece.
ABSTRACT
This current dissertation discusses the effects of the desire and the language on the social lace
and its consequences on the individuals’ constitution. Based on theoretical-argumentative
principles of the psychoanalytic theory. It goes through the main Freud’s and Lacan’s texts
which are about the social aspects and the relation between the individual and the culture.
Based on two clinical case, inedited mutations ocurred in the connections of the
contemporaneous individuals and their substitutes in the psychoanalytic clinic. Finally, it
shows the indissoluble relation between desire, language and social lace from the notion that a
non-dialetable rest always remains.
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 9
1 CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E SUA INSERÇÃO NO CAMPO DO
SOCIAL................................................................................................................... 14
1.1 Da surdez dos DSMs à escuta psicanalítica: um caso paradigmático................ 14
1.2 Primeiras elaborações teóricas acerca da constituição subjetiva....................... 17
1.3 Formalização teórica dos conceitos fundamentais a partir da clínica - práxis... 20
1.3.1 Trieb – construção conceitual e articulações diversas........................... 24
1.3.2 Elaborações sobre o conceito de recalque............................................. 27
1.4 A influência dos ideais sociais na constituição dos sujeitos............................. 29
1.5 Da compulsão à repetição ao conceito de pulsão de morte............................... 33
2 SURGIMENTO DA LEI: DO TOTEM AO ASSASSINATO DO PAI............... 40
2.1 No princípio era a interdição: a regulação simbólica dos laços sociais............ 41
2.2 Tabu e doença neurótica - articulações possíveis.............................................. 44
2.3 Peculiaridades relativas ao tabu......................................................................... 48
2.4 Considerações acerca dos sentimentos sociais.................................................. 52
2.5 Animismo: uma teoria psicológica da concepção do mundo............................ 53
2.6 O mito freudiano: seus desdobramentos e seus efeitos sobre a teoria
psicanalítica...................................................................................................... 56
2.7 Articulações entre o complexo de Édipo e o assassinato do pai primevo......... 60
3 MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO: DOS PRIMÓRDIOS DA SOCIEDADE
AO CONTEMPORÂNEO........................................................................................ 66
3.1 Da família primitiva à família nuclear burguesa............................................... 67
3.2 A fratura da modernidade e seus efeitos nos enlaçamentos sociais................... 69
3.3 O declínio do mestre antigo e a ascensão do mestre capitalista........................ 75
3.4 Impasses da constituição subjetiva no contemporâneo - vinheta clínica........... 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 102
REFERÊNCIAS............................................................................................................... 109
9
INTRODUÇÃO
Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um
objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse
sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia
social (Freud, 1921/1996, p. 81).
1
“Em 28 de julho de 2010, a agência de notícias Reuter deu a conhecer a resposta que o Royal London College
of Psichiatrics endereçara ao grupo de psiquiatras que, nos EUA, está encarregado de revisar o DSM-IV para a
edição do DSM-V [...]. Esta resposta foi originada por uma consulta no qual o grupo norte-americano solicita de
seus colegas britânicos opiniões e recomendações surgidas da aplicação do DSM-IV desde 1992 (ano de sua
publicação) até a atualidade. Nela, os psiquiatras ingleses manifestam que a aplicação do DSM-IV tem
produzido ao menos três epidemias falsas: (1) o Transtorno Bipolar; (2) o Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade; e (3) o Autismo infantil.” Jerusalinsky, Alfredo & Frendrik, Silvia (Orgs.). (2011). O livro negro
da psicopatologia contemporânea. São Paulo, Vialettera, p. 10.
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um. Enquanto o primeiro se coloca numa posição reverente frente à teoria buscando uma
purificação e a eliminação de aderências potencialmente degradantes, o segundo persegue o
novo, insiste em transpor os limites do já estabelecido, a fim de alcançar o status de criador.
Ocupa-se, então, em diferenciar comentário de releitura, guardando para a releitura a
condição de fazer surgir o inédito, o que está para além do texto de forma radical,
diferentemente do comentarista, que, mesmo não sendo um mero copiador, se limita a fazer
surgir uma novidade que seja ainda expressão do próprio texto.
É na perspectiva de uma releitura que Garcia-Roza (1994) propõe abordar os escritos
psicanalíticos. Finalizando uma construção textual refinada, o autor defende uma releitura que
se aproxima da escuta analítica, buscando no texto sua potencialidade significante, no sentido
de produzir uma multiplicidade de sentidos. Nessa perspectiva, entretanto, assevera quanto
aos limites dessa empreitada no sentido de não resvalar para o campo da opinião, da doxa, que
seria exatamente o que o discurso acadêmico busca ultrapassar.
Feita a advertência, Garcia-Roza (1994) é contundente em defender seu processo de
releitura enquanto um método privilegiado de pesquisa em psicanálise, onde os conceitos
surgiriam como singularidades a partir da textualidade do texto, em vez de derivações de um
processo lógico abstrato. Termina com esta afirmativa:
A questão maior não é essa que opõe discurso conceitual e discurso psicanalítico, mas a que
opõe duas concepções de conceito: o conceito entendido como entidade abstrata, como universal
formal, e o conceito entendido como singularidade, como respondendo a verdadeiros problemas
(Garcia-Roza, 1994, p. 20).
Embora nosso enfoque central seja a pesquisa teórica tal como descrita acima,
pretendemos apresentar, ao início e ao final desta dissertação, dois fragmentos de casos, a fim
de exemplificar nossa hipótese de mutação dos laços sociais e seus efeitos nos vários campos
da civilização, com especial destaque para a patologização e a consequente medicalização da
vida.
Em 1910, em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, Freud apresenta
sua visão da posição da psicanálise, ressaltando os avanços e as dificuldades inerentes a uma
teoria inacabada, mas em contínua elaboração. Naquele momento, ele parece já perceber uma
tensão na relação entre sociedade e psicanálise. De acordo com o teórico, “A sociedade não
pode responder com simpatia a uma implacável exposição de seus efeitos danosos e
deficientes. Porque destruímos ilusões, somos acusados de comprometer os ideais” (Freud,
1910/1990, p. 132). A psicanálise, assim, assume uma posição crítica frente à sociedade,
11
asseverando que o social contribui de forma significativa para o aparecimento das doenças
neuróticas na civilização.
A discussão a respeito da utilidade pública da psicanálise e sua aplicação à terapêutica
não é algo recente. Em 1919, dirigindo-se aos psicanalistas, Freud (1919/2010) postula sobre
a necessidade de se estender a aplicação do método psicanalítico a mais pessoas,
acrescentando serem necessárias para isso algumas adaptações. Afirma sobre a necessidade de
misturar o ouro da psicanálise pura ao cobre da sugestão e talvez até mesmo lançar mão da
hipnose. Nesse ponto, porém, devemos estar advertidos de que o autor, sete anos antes, em
Recomendações ao médico que pratica a psicanálise (Freud, 1912/2010), havia se
posicionado em relação à aplicabilidade de seu método nas instituições asseverando que,
apesar de eventuais desvios provocados por particularidades institucionais, a psicanálise pura
seria a saída ideal, mesmo em condições aparentemente desfavoráveis à sua aplicabilidade, o
que demonstra a preocupação de Freud quanto à diferenciação entre a psicanálise e uma
psicologia da consciência, atento que era a aparentes melhoras transitórias e aos efeitos
danosos decorrentes da aplicação desta última.
Desde o início estamos advertidos quanto à garantia da manutenção, no campo
civilizatório, de uma ética do bem-estar entre os sujeitos, o mesmo não acontecendo com a
ética da psicanálise; a ética do bem-dizer que ela segue e propaga não possui garantias de
sobrevivência (Barreto, 1999). Miller (2004) assevera que a questão da sobrevivência da
psicanálise seria antes uma escolha da humanidade, ressaltando inclusive a possibilidade da
criação de uma sociedade harmônica, através de dispositivos físico-químicos que
funcionariam como reguladores do desejo e do gozo. A questão é que essa proposta está
atrelada, como toda escolha, a uma perda, nesse caso, a perda da própria subjetividade. Resta
saber se estamos dispostos a nos tornar autômatos, abrindo mão de nossa singularidade
subjetiva, estreitamente ligada ao atravessamento da angústia, que, como nos aponta Garcia, é
essencial para que nos tornemos verdadeiramente humanos (Garcia, 2000, p. 24).
Para melhor entendimento das discussões iniciadas acima, o presente trabalho foi
dividido em três capítulos. No primeiro discutimos a constituição dos sujeitos, tomando como
premissa que não nascemos humanos, mas temos a possibilidade de nos tornar humanos na
presença de outros humanos e sob seus cuidados. Nesse sentido, desde o início consideramos
impensável o sujeito fora do campo social; portanto é necessário introduzir esse sujeito no
campo social, que, por definição, antecede cada um de nós. Além disso, introduzimos o
postulado de que a linguagem é fundamental para o estabelecimento dos laços sociais entre os
sujeitos, além de organizar os ideais civilizatórios através dos tempos. Nesse ponto
12
Neste capítulo, após um percurso pela obra freudiana, esclarecemos como Freud, a
partir de sua clínica, elabora suas construções metapsicológicas, dando ênfase à constituição
dos sujeitos e sua entrada no campo civilizatório. Fizemos nossas articulações com base em
cotejamentos com um fragmento de caso clínico por nós supervisionado, na intenção de
seguir a trilha deixada pelo criador do método psicanalítico. Ao longo de sua prática clínica,
Freud não se atém apenas ao funcionamento interno do aparelho psíquico de seus analisantes.
Em Psicologia das massas e análise do eu ele afirma que “[...] a psicologia individual é
também, desde o início, psicologia social [...]” (Freud, 1921/2011 p. 14). Na discussão acerca
do fragmento clínico a seguir, explicitamos os condicionantes dos ideais culturais
contemporâneos e seus efeitos nos laços sociais, que por sua vez, tiveram consequências no
posicionamento da analisante em questão frente aos seus pares.
Concomitantemente, vimos como Freud, ao longo de todo o seu trabalho, foi
moldando seus conceitos em um constante movimento dialético. Se no começo de sua obra
temos a impressão de certa influência biologicista, encontramos desde o Projeto, passando
pela Carta 52 e A interpretação dos sonhos indícios de, senão todos, pelo menos a maioria
dos conceitos fundamentais que, através de um incansável e sistemático trabalho de
elaboração teórica, foram sendo gradualmente forjados, lapidados e devidamente articulados,
resultando no consistente arcabouço teórico psicanalítico. Tal criação tem o status de um
divisor de águas. O mundo jamais será o mesmo depois do aparecimento da psicanálise.
padronização desmedida dos laços sociais em nome do mestre moderno, o mestre capitalista
(Lacan, 1969-1970/1992).
Vejamos um fragmento de caso supervisionado pelo autor, que nos faz refletir acerca
da patologização e da medicalização desmedida de sujeitos que buscam, através de formações
sintomáticas, dizer algo de um saber sobre si, que ele próprio não tem consciência, um saber
inconsciente, portanto. Trata-se de uma menina de 11 anos, estudante do 5º ano da rede
municipal de educação. Após uma palestra ministrada pela Polícia Militar sobre o tema do
abuso sexual infantil, essa criança se dirigiu a uma policial e disse que o tio fazia com ela
coisas semelhantes às descritas no encontro. Imediatamente a polícia acionou o Conselho
Tutelar do município para que fossem tomadas as medidas cabíveis nesse tipo de situação.
Além disso, foi aberto um inquérito policial para verificar a veracidade dos fatos.
A ação dos conselheiros, além de comunicar ao ministério público através da vara da
infância e juventude, foi agendar uma consulta com o psiquiatra infantil da rede municipal de
saúde. Ao tomar conhecimento da situação, tentamos realizar uma intervenção através da
equipe multiprofissional do Centro de Referência Especializado da Assistência Social
(CREAS). Infelizmente não tivemos tempo hábil, e a jovem acabou sendo atendida pelo
psiquiatra sem a participação de outros profissionais da rede. Logo após a intervenção
psiquiátrica, através de um estagiário de psicologia de uma faculdade local supervisionado
pelo autor, iniciou-se o tratamento da criança a partir do método psicanalítico.
Inicialmente, como indica Viganó (2010), buscamos ouvir todos os envolvidos: a
criança, seus familiares, os conselheiros tutelares, a equipe do CREAS e o próprio psiquiatra.
Deste conseguimos apenas o acesso ao prontuário da criança, que já era sua paciente há
aproximadamente 03 anos, data que posteriormente, através das sessões do tratamento
psicanalítico, percebemos coincidir com a mudança da criança para a casa dos avôs, onde
morava o tio apontado como suposto abusador da menor. No início de tratamento, segundo
anotações do psiquiatra, a criança se apresentava agitada, dispersa, com dificuldades de
aprendizagem (encaminhamento escolar); fez-se então o diagnóstico de transtorno de déficit
de atenção e hiperatividade (TDAH), e foi prescrito o medicamento Ritalina, um
psicoestimulante.
Temos aqui, em consonância às considerações de Barreto (2010), a psiquiatria atuando
dentro da ética do bem-estar, onde a supressão do sintoma é buscada através de
medicamentos, buscando silenciar o sujeito que, mesmo de uma forma desajeitada, tenta pela
via do sintoma, falar de seu mal-estar. Alguns meses depois, sem a melhora esperada pelo
tratamento medicamentoso, o profissional acrescenta outro remédio: Tofranil, antidepressivo
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tricíclico, indicado, entre outras coisas, para terror noturno e pânico. Finalmente, na última
consulta psiquiátrica, em decorrência da denúncia de abuso sexual, o médico inicia seu relato
escrito exatamente pelo fato narrado pela mãe: os atos libidinosos do tio em relação à criança.
Em seguida, porém, segue dizendo do medo e da insegurança da criança em ficar sozinha. O
diagnóstico em letras garrafais é PARANOIA. Então, às medicações prescritas anteriormente
acrescenta Haldol, conhecido neuroléptico de ação incisiva sobre delírios e alucinações.
Surpreendentemente, apesar de explicitar a questão do abuso sexual no prontuário da
jovem, o psiquiatra se comporta como se não houvesse escutado nada ou feito qualquer
relação entre o fato e os sintomas apresentados. Eis a surdez produzida pela padronização
objetivante dos DSMs. Seguindo outra vertente, a criança passa a ser atendida pelo estagiário
de psicologia como dito anteriormente. Vejamos os desdobramentos decorrentes da escuta
psicanalítica.
Seguindo as Recomendações ao médico que pratica a psicanálise (Freud, 1912/2010),
desde o início dos atendimentos, acatamos a regra fundamental da associação livre.
Primeiramente nos é relatado o constrangimento em ter que comparecer à delegacia para
responder a perguntas relativas à sua relação com o tio. Tudo começa com a mudança para a
casa dos avôs por causa da separação de seus pais, que atualmente reataram o casamento.
Logo pudemos perceber a divisão subjetiva entre dizer a verdade sobre o comportamento do
tio e o temor de que por isso o avô (pai do transgressor) viesse a morrer. Em conversa o pai se
mostra apático, sem querer se posicionar frente ao problema, o que corrobora o lugar de
destaque ocupado pelo avô da analisante em sua constelação familiar.
Nas sessões seguintes, muitas vezes tendo o discurso mediado por desenhos, nossa
analisante fala de seus anseios e inquietações. Diz que gostaria de ser estilista e apresenta
desenhos de roupas através dos quais deixa transparecer seus ideais de feminilidade, elegância
e vulgaridade (certa vez tenta mudar a cor de um vestido a princípio colorido de vermelho
dizendo que estava muito vulgar).
Frente ao silêncio operante do analista, a jovem continua se posicionando no campo
dos ideais: primeiro diz do seu desconforto em ser gordinha, mas rapidamente encontra uma
saída ao contestar o diagnóstico de seu médico que a aponta como obesa: “Eu não sou obesa,
sou gordinha, sou criança, só adultos são obesos, crianças são gordas”. Ao ter o termo
“criança” destacado de seu discurso pelo analista, faz uma retificação subjetiva passando a se
apresentar como uma pré-adolescente. Daí por diante passa a falar de seu desejo pelos garotos
da escola e a fazer planos para seu futuro.
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Ao final nos diz que estava parando de tomar os medicamentos justificando que não
precisava mais deles. Quanto ao término do tratamento provocado pelo final do semestre
letivo, se mostra triste, mas logo demonstra interesse em continuar no próximo semestre com
outro estagiário. “Ainda tenho muito que falar...”. A mãe por sua vez insiste na medicação da
criança dizendo que a Ritalina a torna mais dócil, o que facilita o convívio entre elas.
Na premissa desta dissertação, apresentada na introdução, vê-se claramente a
preocupação de Freud com relação aos determinantes acidentais advindos da civilização e sua
influência na constituição dos sujeitos e de seus ideais. Tais determinantes estão presentes em
nosso caso, tanto na questão do discurso moralizante em relação à pedofilia quanto ao ideal
estético da magreza imposto pela mídia, passando pelos sintomas apresentados pela criança
como uma forma de falar de sua angústia. Estes são prontamente rechaçados enquanto uma
linguagem por todos os envolvidos e identificados como patologias pertencentes à criança em
questão.
A teoria freudiana se constrói a partir da prática clínica de seu autor. Médico
neurologista, Freud é capturado muito cedo pela histeria e é com base nessa neurose que ele
inicia a construção do arcabouço teórico psicanalítico. Na nota do editor inglês de um de seus
últimos escritos, Análise terminável, análise interminável encontramos uma alusão sobre o
pessimismo de Freud em relação aos resultados terapêuticos de seu método. Tentemos,
portanto, a partir de um percurso pela metapsicologia freudiana, ou seja, pelas suas
elaborações teóricas, lançar luz sobre alguns dos impasses da clínica psicanalítica
relacionados ao social a partir do fragmento ora apresentado.
Já em seu Projeto para uma psicologia científica, considerado por muitos como um
escrito pré-psicanalítico, Freud, mesmo ainda trazendo em sua escrita marcas da neurologia
de seu tempo, dá indícios da importância da relação com outro humano para formação de um
Eu, termo já presente nesse escrito. Descrevendo a experiência de satisfação, Freud (1950
[1895] 1990) demonstra que certos estímulos endógenos necessitam de uma alteração no
mundo externo para serem satisfeitos.
18
O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua
por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por
descarga através da via da alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima
função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de
todos os motivos morais (p. 431, grifos do autor).
Faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente na infância e só
desperta no período de vida designado da puberdade. Mas este não é um erro qualquer, e sim um
equívoco de graves consequências, pois é o principal culpado de nossa ignorância de hoje sobre as
condições básicas da vida sexual. (Freud, 1905/1990, p. 162).
Ressalta ainda que desde 1896, em seu artigo sobre a etiologia da histeria, nunca
deixou de destacar a importância da sexualidade infantil (Freud, 1905, p. 163). Temos,
portanto, nos Três ensaios uma confirmação contundente acerca da importância da
sexualidade na vida dos seres humanos em geral, e não apenas naqueles com uma suposta
predisposição degenerativa ou que foram molestados precocemente.
Seguindo o percurso freudiano, encontraremos nos Extratos dos documentos dirigidos
a Fliess, mais precisamente, na Carta 52, de 06 de dezembro de 1896, uma complexa
elaboração que apresenta a essência do que seria mais tarde a parte principal do capítulo VII
da Traumdeutung, um dos pilares da psicanálise. Nessa carta, Freud (1950 [1892-1899] 1990)
apresenta “[...] a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra
em vários tempos” (p. 324). Prossegue sugerindo que a memória passa por diferentes registros
que de tempos em tempos se rearranjam, são transcritos de diferentes formas, e ao final, numa
camada chamada Vorbewusstsein (pré-consciência), os traços que continuam sendo inscritos e
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[...] podemos fazer um juízo adequado do quebra-cabeças se pusermos de lado essas críticas da
composição inteira e de suas partes, e se, em vez disso, tentarmos substituir cada elemento isolado por
uma sílaba ou palavra que possa ser representada por aquele elemento de um modo ou de outro. As
palavras assim compostas já não deixarão de fazer sentido, podendo formar uma frase poética de
extrema beleza e significado (Freud, 1900/1990, p. 271).
comunicação, bem como sua participação fundamental na constituição dos laços sociais e
mesmo dos próprios sujeitos que se enlaçam.
Se estendermos a explicação da relação entre os pensamentos latentes e o conteúdo
dos sonhos à associação livre desenvolvida pela nossa analisante durante suas sessões, não
teremos dificuldades em inferir a outra cena que se apresenta para além do discurso
manifesto. Num dos encontros do fragmento de caso apresentado anteriormente, a analisante
se põe a falar sobre a preocupação de sua mãe em relação a brincar com fogo, dizendo que
sabe bem o que está fazendo, que já não é mais criança e já sabe manusear o fogão. Numa
aparente mudança de assunto, segue dizendo de sua preferência em se relacionar com amigas
mais velhas. Diz de seu desejo de sair sozinha sem ser vigiada, poder ir a barzinhos e
participar da vida noturna, pois já não é mais criança mas uma pré-adolescente, já tendo feito
até... (interrompe a frase). Nesse ponto talvez possamos pensar nas “brincadeiras” com o tio e
o interesse manifesto em relação aos colegas da escola.
Após mais de dez anos, Freud (1911/2004) retoma suas formalizações teóricas a partir
de suas hipóteses clínicas no artigo Formulações sobre os dois princípios do acontecer
psíquico, discutindo sobre a relação que neuróticos, psicóticos e humanos em geral
estabelecem com a realidade externa. Conclui que todos se afastam mais ou menos da
realidade conforme esta lhes inflija determinada cota de desprazer, ressaltando que uma
ruptura radical ocorre em algumas psicoses. Não teríamos, portanto, uma objetividade em
relação a uma realidade externa, mas uma representação psíquica singular deste campo que se
apresenta a nós desde fora.
Revisitando os estudos do capítulo VII do Traumdeutung, postula a existência de
processos psíquicos primários e secundários, funcionando segundo dois princípios: prazer e
realidade, respectivamente. Considera que no início estamos sob a égide do princípio do
prazer, onde a satisfação é buscada a partir de pensamentos alucinados. Só a frustração das
exigências pulsionais pelas vias alucinatórias faz com que o aparelho psíquico passe a
considerar a existência de uma realidade externa a ele. A partir de então, as sensações e a
consciência passam a ter mais importância, assim como a atenção que nos serve para
monitorar o mundo externo a partir de seus estímulos sobre o organismo, mantendo sempre
21
atualizadas as informações referentes ao mundo externo para maior agilidade nos casos do
surgimento de necessidades internas inadiáveis.
[...] o recalque, que excluía do processo de investimento uma parte das representações mentais
(Vorstellungen) que se mostrassem geradoras de desprazer, foi substituído por uma imparcial avaliação
de juízo. A esta cabia então decidir se determinada representação era verdadeira ou falsa, isto é, se
estava ou não em sintonia com a realidade, e para tal comparava-a com os traços de lembranças
deixadas pela realidade (Freud, 1911/2004, p. 66).
[...] um determinado tipo de atividade do pensar foi apartado do teste de realidade, permaneceu
livre deste e ficou submetido apenas ao princípio do prazer. É ele o fantasiar, que já se inicia com o
brincar das crianças e mais tarde prossegue com o devanear, deixando então de sustentar-se em objetos
reais (Freud, 1911/2004, p. 67).
(1914/2004) em seu artigo sobre o assunto lance alguma luz sobre o tema. Segundo o editor
inglês, já em 1909, antes, portanto, da formalização conceitual relativa aos dois princípios do
acontecer psíquico, Freud já definia o narcisismo como uma fase normal entre o autoerotismo
e o amor objetal. No referido artigo, o autor traz a novidade de uma divisão da libido em
libido objetal e libido do eu, afirmando que o narcisismo seria “[...] o complemento libidinal
do egoísmo próprio da pulsão de autoconservação [...]” (Freud, 1914/2004, p. 97). Como
consequência dessa assertiva o eu de cada pessoa passa a ser considerado como o primeiro
investimento libidinal dos seres humanos.
É a partir desse ego narcísico completamente idealizado que os humanos, em algum
momento, farão seus investimentos objetais, lembrando que o primeiro objeto para todos é o
próprio eu. Freud (1914/2004) então se pergunta pela causa de a psique humana abandonar
seu narcisismo primário e investir parte de sua libido em objetos, trazendo como resposta que
“Um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas, no final, precisamos começar a amar
para não adoecer, e iremos adoecer se, em consequência de impedimentos, não pudermos
amar” (p. 106). Essa necessidade de amar implica escolhas que, segundo o autor, novamente
se dividem em duas formas, narcísica e de ligação, baseadas nas representações das primeiras
experiências objetais dos sujeitos.
Ainda no artigo sobre o narcisismo, Freud (1914/2004), traz a questão sobre os
destinos das pulsões que inicialmente se concentravam no eu do infans,2 concluindo que nem
toda libido se dissolveu em investimentos objetais:
Sabemos que, quando as moções pulsionais libidinais entram em conflito com as concepções
[Vorstellungen] culturais e éticas do indivíduo, o destino das moções será o recalque patogênico.
Todavia, não estamos com isso querendo dizer que na condição do recalque o sujeito passa a ter um
conhecimento meramente intelectual sobre a existência dessas concepções [Vorstellungen], ele continua
a considerá-las parâmetros fundamentais para si próprio e se submete de fato às exigências que derivam
dessas concepções culturais e éticas. Já dissemos que o recalque ocorre a partir do Eu, mas poderíamos
ser mais precisos: ele parte da avaliação que o Eu faz de si mesmo (Freud, 1914/2004, p. 112).
um egoísmo primário, o que justifica o termo objetal. Ora, isso significa que tomamos o outro
como objeto de nosso amor enquanto ele atende os nossos próprios interesses. Nesse sentido,
o amor dirigido a outro sujeito, para além de seu status de objeto, seria uma ilusão, podendo
fazer romper os laços civilizatórios a cada vez que se apresentar sua face verdadeira, utilitária
e narcísica (Freud, 1930/2010).
Na tentativa de esclarecer melhor a passagem de parte do egoísmo original humano
para investimentos objetais amorosos — principais responsáveis pelo estabelecimento de
laços sociais entre os indivíduos e entre estes e o Coletivo — vamos nos aprofundar no
conceito de pulsão, um conceito aparentemente contraditório, segundo o comentador editorial
do artigo Pulsões e destino da pulsão (1915/2004). Como saída para tal contradição, o
referido comentador argumenta “[...] que sua solução esteja precisamente na ambiguidade do
próprio conceito — um conceito-limite entre o físico e o mental” (p. 134).
Freud (1915/2004), já no princípio do artigo acima referido, discute sobre as
particularidades de um conceito ainda em construção, ponderando que, se a ciência exige
clareza e exatidão desde o início, na prática as coisas se dão de maneira diversa. Aponta para
a dialética entre a prática clínica e a construção teórica, admitindo que por vezes a intuição
possa surgir antes mesmo de sua comprovação propriamente dita (p.145). Temos, então,
claros indícios de que o autor esteja às voltas com a construção de um conceito novo e
inusitado, algo da ordem da invenção, portanto.
O ponto de partida para tal construção foi o já conhecido ‘esquema do arco reflexo’,
tomado de empréstimo da fisiologia e que consiste em reagir a um estímulo exterior que
atinge o sistema nervoso através de uma ação motora que de alguma forma cesse tal estímulo.
Concomitantemente, Freud (1915/2004) adverte no sentido de não se fazer uma equivalência
entre pulsão e estímulo psíquico, ressaltando a existência de estímulos psíquicos não
pulsionais. Surge, então, a primeira e principal diferenciação da pulsão: ser uma força
constante e endógena, não admitindo pela segunda característica a fuga como solução. Resta,
portanto, satisfazer tal necessidade, outro nome dado pelo autor para o estímulo pulsional (p.
146). Temos aqui um estímulo externo atingindo de alguma forma o mental, transformando-se
nessa passagem em estímulo psíquico interno que passa a fazer uma exigência imperativa de
satisfação; se pensarmos nesse estímulo pulsional, primariamente externo, partindo de outro
sujeito ou de alguma exigência dos ideais culturais de determinado grupo social, podemos
estabelecer uma articulação entre o pulsional e o social, produzindo interferências mútuas,
incluindo impasses e mesmo impossibilidades harmônicas.
24
Podemos então concluir que são as pulsões, e não os estímulos externos, os verdadeiros
motores dos progressos que levaram o sistema nervoso, com sua capacidade de realizações ilimitadas, a
seu atual nível de desenvolvimento (Freud, 1915/2004, p. 147-148).
[...] a “pulsão” nos aparecerá como um conceito-limite entre o psíquico e o somático, como o
representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a psique, como uma
medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo
(Freud, 1915/2004, p. 148).
[...] é aquilo que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta. Ele é o elemento mais
variável na pulsão e não está originalmente vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentado em razão de
sua aptidão para propiciar a satisfação (Freud, 1915/2004, p. 149).
O caso de amor e ódio torna-se de especial interesse para nós, porque não se encaixa em nossa
explanação das pulsões. Não duvidamos de que exista a mais estreita relação entre a vida sexual e esses
dois sentimentos opostos. Porém, se tivéssemos de considerar o amar como sendo apenas um tipo de
pulsão parcial figurando lado a lado com as outras pulsões parciais também pertencentes à sexualidade,
com razão teríamos dificuldades em aceitar essa ideia. Tendemos muito mais a enxergar no amar a
expressão da vertente sexual inteira (Freud, 1915/2004, p. 157).
Buscando esclarecer melhor o caso descrito, o autor observa que ele não suporta
apenas o par de opostos amar-odiar; teríamos também amar-ser amado. E mais, considerando
26
os opostos amor e ódio em conjunto, teríamos a indiferença. Ora, esses pares parecem conter
a essência das relações humanas, dos enlaces dos sujeitos entre si e entre o grupo do qual
fazem parte. Essência marcada pela ambivalência presente nas relações amorosas, quase
sempre mescladas por sentimentos odiosos dirigidos ao mesmo objeto que se ama. Esse
parece ser um daqueles pontos citados por Freud (1917-1990) em seu artigo Dificuldades no
caminho da psicanálise, onde chama atenção de que a dificuldade em relação ao
entendimento da psicanálise se deve mais a questões afetivas do que racionais, ou seja, não
compreendemos facilmente coisas que não são agradáveis mas dizem respeito ao âmago do
nosso ser.
Se acompanharmos atentamente o raciocínio freudiano em relação ao amor, não seria
exagerado supor que na existência humana, num primeiro tempo, mesmo ínfimo ou mítico,
toda pulsão sexual, amorosa está voltada para o próprio ser, o que abre o caminho para a
posição narcísica primária. Por consequência, o investimento ou sentimento relativo a coisas e
pessoas alheias ao referido ser, nesse momento ancorado no autoerotismo, é, primeiramente,
ódio ou, no melhor dos casos, indiferença a tudo e a todos ao seu redor. Seria, então, uma
característica do humano um amor objetal surgido secundariamente a um narcisismo primário,
condicionado ao seu próprio desamparo, ou seja, o amor ao próximo tem como base um
egoísmo primário com vistas a atender suas necessidades a partir do princípio do prazer.
Pode-se antever aqui a afirmativa feita por Freud (1930/2010) de que todo indivíduo em
separado é um inimigo potencial da civilização.
27
Tomemos agora O recalque (1915/2004), considerado por Freud como a pedra angular
que alicerça toda a psicanálise. Embora usado anteriormente pelo psicólogo Herbert nos
primórdios do século XIX, o termo recalque é considerado por Freud um conceito original de
sua autoria: a significação que ele lhe é confere é inédita, da ordem da invenção, portanto (p.
175). Feitas as devidas considerações, Freud passa a delimitar seu conceito indicando de
início que não se aplicaria a grandes quantidades de tensão, como a necessidade de comer,
tomada por ele como exemplo, mas seria antes um mecanismo eficiente em se tratando de
moções pulsionais.
Ao tratarmos dos dois princípios do acontecer psíquico, o mecanismo do recalque não
atua desde o início da existência de um indivíduo; ele surge a partir da ineficácia da fuga
motora primariamente utilizada para evitar um desprazer provocado por alguma exigência
pulsional.
Claro que, se em vez de uma pulsão, se tratasse de um estímulo externo, a fuga teria sido a
medida mais apropriada para escapar de seu raio de ação, mas, no caso de uma pulsão, tal fuga não teria
serventia, pois o Eu não pode fugir de si mesmo. Em um período posterior, o sujeito perceberá que
repudiar o conteúdo da pulsão [trieberegung] baseando-se em um julgamento de valor (condenação)
pode ser uma providencia eficaz (Freud, 1915/2004, p. 177).
inelutavelmente submetidos às exigências de uma sociedade que muitas das vezes vão de
encontro às exigências imperativas de satisfação dos impulsos pulsionais.
Para avançar nas tentativas plausíveis de conciliar a questão do recalque às exigências
pulsionais, temos a proposta de dividir a pulsão em dois componentes: um representante
ideacional e uma quantidade de afeto. Podemos supor neste ponto que teríamos um
representante ideacional, de alguma forma articulado à língua, matéria-prima dos
pensamentos, conscientes ou não, e um quantum afetivo não submetido a uma lógica racional,
portanto acéfalo. Talvez tenhamos aqui um lampejo em relação a uma impossibilidade
estrutural de uma harmonização das relações baseada no bom senso, uma vez que teríamos,
em nível pulsional algo da ordem do non sens.
Sem a pretensão de esgotar a discussão em relação ao recalque, Freud (1915/2004)
sustenta a maior importância do destino da quantidade de afeto em relação ao representante
ideacional, argumentando que as sensações advindas do processo de recalque são as que
realmente nos interessam para compreendê-lo. “Se um recalque não consegue impedir que
surjam sensações de desprazer ou medo [Angst], podemos dizer que ele fracassou, ainda que
seu objetivo tenha sido alcançado com relação à parcela representacional” (p. 183). Continua
trazendo a questão da inacessibilidade ao inconsciente, ao afirmar que um recalque
inteiramente bem-sucedido escapa ao nosso interesse. Somos, portanto, determinados por algo
inteiramente estranho a nós, ao qual podemos simplesmente rechaçar, pois está fora do campo
de nossa responsabilidade ou, o que é mais difícil, nos posicionamos eticamente no sentido de
admitir, mesmo sem uma compreensão imediata, nossa íntima ligação com esse estranho
radical, nos responsabilizando por seus efeitos.
Outro ponto abordado pelo autor em relação ao recalque é o grau de deformação ou
deslocamento que deve atingir para que a resistência do consciente seja suspensa.
então, por ordem cronológica, a revolução provocada por Copérnico ao retirar a Terra e, por
conseguinte, o homem do centro do universo, rebaixando-a a apenas mais um planeta de um
sistema mais amplo. Em seguida apresenta Darwin, que retira do homem sua descendência
divina, alinhando-o aos demais animais superiores. Restava-nos a racionalidade cartesiana.
Eis que surge o terceiro golpe narcísico desvelado pela psicanálise: o Eu não é senhor de sua
própria morada; somos determinados por uma instância inconsciente.
Faz, então, uma perspicaz analogia com a forma de governo absolutista, recentemente
abolida na maioria dos países ocidentais. Compara o Eu do sujeito como um Rei que governa
apenas a partir das informações de seus assessores mais próximos, não se dando ao trabalho
de ouvir o clamor das massas, aqui representando o material psíquico inconsciente recalcado.
Ignorar as exigências de seus súditos — nesse caso uma clara alusão às exigências pulsionais
— de modo algum faz com que desapareçam; pelo contrário, provoca um recrudescimento
das insatisfações culminando muitas vezes numa revolução que acaba por destituir o
soberano. Ou seja, ignorar as manifestações do inconsciente faz com que o Eu desenvolva
sintomatologias patológicas a fim de satisfazer os impulsos pulsionais que não cessam de
pressionar o aparelho psíquico.
Com tal analogia, Freud (1917/1990), pretende demonstrar que a descoberta da
psicanálise de que o Eu dos sujeitos é determinado por uma instância inconsciente que não
cessa de fazer exigências relativas a satisfações pulsionais inerentes ao aparelho psíquico não
é uma invenção com intenções obscuras de subverter a ordem vigente. É antes o resultado da
teorização de um longo trabalho clínico feita com o rigor e a imparcialidade exigidos pela
ciência. Ignorar tais resultados não vai fazer com que eles deixem de existir, mas torna os
sujeitos impotentes frente a conflitos internos erroneamente considerados fatalidades do
destino frente às quais ele nada pode fazer exatamente por considerar não ter nenhuma
participação em relação ao surgimento dos males que o afligem. Por outro lado, considerar
que, mesmo sem ter consciência disso, um sujeito pode ter alguma participação subjetiva em
seus sofrimentos, tornaria possível um trabalho no sentido de se implicar subjetivamente com
as questões sintomáticas, buscando ao menos transformá-las em formas menos sofridas e
dolorosas em sua existência.
Pouco depois, em seu artigo Introdução à psicanálise e às neuroses de guerra (1919),
originalmente escrito como introdução ao primeiro volume da Internationaler
Psichoanalytischer, Freud comenta sobre as expectativas dos médicos em relação ao
tratamento às neuroses de guerra, que, segundo ele, nada mais são do que as conhecidas
neuroses traumáticas de tempos de paz. Naquele momento, o método psicanalítico era visto
31
como uma possibilidade promissora para o tratamento dessas neuroses. Entretanto, com o fim
da guerra se interrompeu o grupo de trabalho que estava sendo preparado para utilizar o
método psicanalítico e, consequentemente, verificar a eficácia de seus resultados.
Concomitantemente ao fim da guerra, as neuroses de guerra também desapareceram, o que
para Freud é uma das evidências do caráter psicogênico dessas neuroses. Ora, tal caráter não é
outra coisa senão mais uma evidência dos adoecimentos provocados por exigências sociais
insuportáveis para alguns sujeitos, justamente por irem de encontro às suas exigências
pulsionais.
Tal episódio não deixou de ser importante para a divulgação da psicanálise, mas Freud
(1919/1990) está advertido que, mesmo com a concordância quase universal da existência de
um ganho primário relacionado com a fuga para a doença, não deveria se iludir com o
reconhecimento dos princípios teóricos de sua teoria pelos opositores. Se, por um lado, a
psicanálise foi recrutada pelo social a fim de ser aplicada a determinada neurose, seus
opositores, “[...] cuja aversão à sexualidade é evidentemente mais forte do que sua lógica,
apressaram-se a proclamar que a investigação das neuroses de guerra desmentiu finalmente
esta parte da teoria psicanalítica” (Freud, 1919/1990, p. 260). Voltamos ao recém-discutido
artigo sobre a dificuldade da psicanálise, onde o autor reitera que fatores emocionais
narcísicos interferem na compreensão e aceitação de sua teoria.
Em relação ao eu, Freud (1919/1990) supõe que ele se divide provocando um conflito
neurótico. Por um lado, a libido do eu, cuja função é a manutenção da sua integridade
narcísica do eu, se vê seriamente ameaçada por um risco iminente de morte. Por outro lado,
aparece aqui o fator da heteroagressividade em relação a outro semelhante, que em tempos de
paz não fica tão evidenciada. Vemos ressurgir a questão da agressividade, já evidenciada no
artigo sobre o narcisismo. Embora ainda considere Eros a grande força que nos impulsiona e
nos embaraça frente a exigências incompatíveis com nossos ideais, inelutavelmente marcados
pelo campo do social, Freud esbarra novamente na agressividade e na questão da morte, nesse
ponto específico, da morte biológica, para além das diversas mortes de nossos ideais e
expectativas com as quais nos deparamos tão frequentemente em nosso cotidiano. Penso que
aqui, mesmo que não esteja ainda devidamente elaborada, podemos ver se desenhar algo do
campo de Tânatos, algo mais arcaico que suplanta o princípio do prazer, que mais tarde
veremos surgir como pulsão de morte.
No apêndice Memorandum sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra,
publicado ao final do artigo discutido acima, encontramos Freud aguerrido numa dura crítica
à medicina de sua época. Discute o diagnóstico e principalmente a etiologia das neuroses
32
3
A saúde mental, no modelo preconizado pela Organização Mundial de Saúde, ao suprimir o sintoma faz um
“curto-circuito” entre os conceitos de universal e de particular ao excluir o singular. Garcia aponta para os
sujeitos que não aceitam o lugar oferecido a eles pelo Social. Eles entram, assim, em um processo de
desinserção, acabando por formar um outro coletivo/particular: os irregulares, em contraponto com aqueles que
aceitam a regulação do sistema social, os regulares frente ao Ideal Social. Cf. Garcia, C. Psicanálise, psicologia,
psiquiatria e saúde mental: interfaces. Belo Horizonte, 2002.
33
Voltemos a Freud, mais precisamente ao seu artigo O estranho (1919/1990) onde faz
uma extensa discussão do aspecto de estranheza surgido repentinamente em situações e
atividades até então familiares e rotineiras. Aqui ele acena pela primeira vez para
[...] ficaríamos gratos a uma teoria filosófica ou psicológica que soubesse nos informar sobre
os significados das sensações de prazer e desprazer tão imperativas para a psique. Contudo,
infelizmente, sobre este ponto de vista nada de útil nos é oferecido. Trata-se do território mais obscuro e
inacessível da vida psíquica (Freud, 1920/2006, p. 135).
Em seguida, o autor dedica toda a primeira parte de seu artigo a uma revisão dos
princípios do prazer e da realidade, lembrando que o segundo continua trabalhando em função
do primeiro. Antecipa possíveis críticas acerca de uma maior presença de sensações
desprazerosas no cotidiano das pessoas relembrando a teoria do recalque e a clivagem
34
subjetiva dela resultante. Enfim, propõe que, a fim de conseguir algum material novo, bem
como novas questões, um aprofundamento em relação às reações psíquicas ao perigo exterior
seria o caminho mais apropriado.
Para pensar sobre perigo exterior, vamos contextualizar o momento em que esse artigo
foi escrito, qual seja, o final da Primeira Grande Guerra. Provavelmente não foi sem surpresa
que o autor assistiu, num momento em que a ciência acenava com avanços sem igual para a
humanidade, a um conflito sangrento bem no berço da cultura ocidental. Nesse momento
surgem inúmeros casos de neurose traumática, “[...] um estado psíquico que se segue após
graves choques mecânicos, colisões de trens e outros acidentes que envolvem risco de vida
[...]” (Freud, 1920/2006, p. 139). Segundo o autor, tentativas de atribuir tais casos a lesões
orgânicas ocasionadas por um violento choque mecânico não se sustentaram. Descreve essa
neurose como tendo traços comuns à histeria, mas com um profundo sofrimento psíquico só
encontrado em casos de hipocondria ou melancolia — quadros clínicos situados no campo das
psicoses.
Como uma forma de avançar em suas investigações Freud (1920/2006), propõe lançar
mão do estudo dos sonhos, que considera ser “[...] o caminho mais confiável para pesquisar os
processos psíquicos profundos” (p. 140). Surge, então, uma questão desconcertante em
relação à teoria dos sonhos: além de guardiões do sono, os sonhos têm a função de realizar
desejos inconscientes. A neurose traumática tem como característica a produção de sonhos
recorrentes cujo conteúdo é exatamente a situação traumática vivida pelo sonhador, fazendo-o
despertar com um susto semelhante ao sofrido na ocasião de seu acidente ou trauma. Como
saída desse impasse Freud levanta duas hipóteses: ou o próprio trauma produz alterações na
função do sonho, ou estaríamos frente a tendências masoquistas primárias do eu, tema que
será aprofundado adiante.
Nesse ponto Freud (1920/2006) decide retomar a discussão sobre o desenvolvimento
do aparelho psíquico na infância, tomando como referência a brincadeira. Relata, então, suas
conclusões com base na observação de uma criança de aproximadamente um ano e meio, com
a qual passou alguns dias. Tal criança, que segundo o autor não apresentava nenhum dom
intelectual acima da média e era descrita pelos pais como tranquila e obediente, criou o hábito
de atirar pequenos objetos para longe de si, provocando algum incômodo no momento de
guardar seus brinquedos. O lançamento dos objetos produzia satisfação na criança, sendo
seguido de um som traduzido com o aval da mãe como fort (foi-se, foi embora). Seguindo sua
observação, Freud percebe que a criança brinca com um objeto ligado a um fio, que permitia
que ele fosse arremessado e depois resgatado. O momento do resgate produzia visivelmente
35
uma maior satisfação, seguido de um alegre da (aí, está aí). Freud, no entanto, não deixa de
perceber que o primeiro momento do jogo não deixa de ser uma brincadeira completa
produzindo satisfação independentemente do segundo movimento (p. 141).
Freud (1920/2006) reconhece nessa brincadeira um avanço infantil em direção à sua
entrada na cultura, ressaltando que nesse momento vemos a criança renunciar a uma
satisfação pulsional em troca de um possível acesso à civilização. O jogo, chamado por ele de
fort-da, poderia ser uma forma de representar a ausência da mãe e seu retorno. Isso porque era
a mãe que cuidava do pequeno sujeito em todas as suas necessidades: alimentação, higiene,
afetos, etc. Nosso observador não deixa de notar que muitas vezes essa mãe deixava o filho
por horas, provavelmente para cuidar de outros afazeres, e nesses momentos a criança nunca
chorava. Supõe, então, que uma das funções do jogo poderia ser a de aplacar a angústia
produzida pela ausência desse outro materno, tão fundamental para a própria sobrevivência do
infans nesse momento de sua existência. Outra suposição, relativa à primeira parte do jogo,
visivelmente mais frequente, é uma espécie de vingança contra a mãe, que é jogada fora
simbolicamente representada pelos objetos que são atirados para longe. Surge a questão de
como algo que é vivido como desprazeroso pode se transformar em brincadeira prazerosa,
dentro da lógica do princípio do prazer. Isso é parcialmente resolvido através da hipótese de
que, por um lado, o jogo completo representaria o retorno do objeto desejado, o que se
encontra em concordância com o princípio do prazer; por outro lado, a atitude de vingança em
relação à mãe suposta no primeiro tempo da brincadeira tira a criança de uma posição passiva
de objeto à mercê dos caprichos de um outro possibilitando, assim, sua assunção à posição de
sujeito desejante.
Numerosos casos são discutidos detalhadamente por Freud (1920/2006) na tentativa de
verificar a possibilidade de outro princípio mais arcaico que o princípio do prazer. Em suas
diversas investigações o autor se mostra um investigador rigoroso e imparcial, esgotando as
explicações em relação aos fenômenos que parecem desafiar o domínio do princípio do prazer
no acontecer psíquico sem ter que lançar mão de um novo motivo, a saber, a pulsão de morte.
Ao final, entretanto, o autor admite:
36
Todavia, em uma reflexão mais criteriosa, teremos que admitir que mesmo nos outros
exemplos trazidos por nós os fatos não estarão suficientemente bem explicados se utilizarmos apenas os
motivos que já nos são familiares. Enfim, ainda restam tantos aspectos sem explicação, que a
formulação da hipótese da compulsão à repetição se justifica. Esta de fato nos parece ser mais arcaica,
mais elementar e mais pulsional do que o princípio do prazer, o qual ela suplanta. Mas se essa
compulsão á repetição realmente existir na vida psíquica, então gostaríamos de saber mais sobre a
função que lhe corresponde, em que condições ela pode manifestar-se e qual sua relação com o
princípio do prazer, pois foi a ele que até agora atribuímos o domínio sobre o curso dos processos de
excitação na vida psíquica (Freud, 1920/2006, p. 148).
4
Devemos estar advertidos que Freud, em nota de rodapé acrescentada em 1919 na p. 496, da sessão B do
capítulo VII da Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1900/1996) faz coincidir Pcp com Cs.
37
Por esse caminho Freud acaba por apontar uma característica universal das pulsões:
Uma pulsão seria, portanto, uma força impelente [drang] interna ao organismo vivo que visa
a restabelecer um estado anterior que o ser vivo precisou abandonar devido à influência de forças
perturbadoras externas. Trata-se, portanto, de uma espécie de elasticidade orgânica ou, se preferirmos,
da manifestação da inércia na vida orgânica (Freud, 1920/2006, p. 160).
A etiologia de todo distúrbio neurótico é, afinal de contas, uma etiologia mista. Trata-se de
uma questão de os instintos serem excessivamente fortes – o que equivale dizer, recalcitrantes ao
amansamento por parte do ego – ou dos efeitos de traumas precoces (isto é) prematuros que o ego
imaturo foi incapaz de dominar. Via de regra, há uma combinação de ambos os fatores, o constitucional
e o acidental (Freud, 1937/1990, p. 251).
Ao final, Freud (1937) se pergunta se mais do que buscar explicações para as curas
realizadas, não deveríamos nos indagar pelos obstáculos encontrados em direção à cura. Essa
parece ser uma tarefa deixada por Freud aos seus sucessores. Cabe aos estudiosos e
praticantes da psicanálise buscar incessantemente tal resposta, mesmo sabendo que é, em
certo sentido, impossível respondê-la completa e definitivamente.
Mas não é nesse ponto limite, nesse esgar da psicanálise, que estaria seu fascínio?
Afinal de contas, se conseguíssemos domar todas as pulsões, não acabaríamos por eliminar
aquilo que constitui o singular de cada um de nós? Teixeira (2007) nos ensina de forma
contundente que os nomes histérico, obsessivo, psicótico ou qualquer outro, no que diz
respeito à psicanálise, não se prestam a classificação ou agrupamentos, mas antes dizem dos
modos que o sujeito encontra para permanecer inagrupável, dessemelhante de qualquer outro.
39
Poderíamos, então, pensar em uma relação dialética das pulsões, inerentes aos seres
candidatos à hominização, e da linguagem enquanto constitutiva do campo social da
civilização humana? Avancemos em direção à constituição dos laços sociais e suas exigências
lógicas relacionadas às leis da linguagem. A partir de diferentes entrecruzamentos de três
elementos indissociáveis relativos à constituição de um sujeito falante — pulsões, linguagem
e campo do social — uma infinidade de singularidades subjetivas são fundadas.
40
[...] entender a força avassaladora de Oedipus Rex, apesar de todas as objeções levantadas pela
razão contra a sua pressuposição do destino; e podemos entender porque os ‘dramas do destino’
posteriores estavam fadados a fracassar lamentavelmente. Nossos sentimentos opõem-se a qualquer
compulsão arbitrária e individual [do destino], tal como é pressuposto em Die Ahnfrau [de Grillparzer],
etc. Mas a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença
dentro de si mesma. Cada pessoa da plateia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo
como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a
realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual (Freud,
1990, 1897, p. 365).
civilização, tal como articulado no mito moderno freudiano construído em Totem e Tabu
(Freud, [1912-1913] 2012), artigo que termina por retomar o conceito do complexo de Édipo.
O que é um totem? Via de regra é um animal, comível, inofensivo ou perigoso, temido e mais
raramente uma planta ou força da natureza (chuva, água), que tem uma relação especial com todo o clã.
O totem é, em primeiro lugar, o ancestral comum do clã, mas também seu espírito protetor e auxiliar,
que lhe envia oráculos, e,mesmo quando é perigoso para outros, conhece e poupa seus filhos. Os
membros do clã, por sua vez, acham-se na obrigação, sagrada e portadora de punição automática, de
não matar (destruir) seu totem e abster-se de sua carne (ou dele usufruir de outro modo). O caráter do
totem não é inerente a um só animal ou ser individual, mas a todos da espécie (Freud, [1912-1913]
2012, p. 20).
Freud destaca que as relações de um indivíduo com seu totem organizam os seus laços
sociais, sobrepondo-se inclusive às suas relações consanguíneas. Teríamos, então, desde
povos os mais primitivos, representações simbólicas organizando as relações sexuais e
impondo interditos a certos enlaçamentos para além da natureza, dos parentescos biológicos
dos indivíduos, dando especial destaque ao excepcional horror ao incesto e às punições
automáticas advindas dele. Podemos inferir que, se Freud afirma não haver ainda a presença
de instituições sociais semelhantes às que supomos haver entre os homens ditos civilizados,
ele não deixa de considerar a existência, desde os primórdios da humanidade, de alguma
forma de organização das relações entre os indivíduos para além das leis da natureza, leis
simbólicas, portanto.
Seguindo suas considerações que relacionam o totemismo e o horror ao incesto, o
autor destaca a opinião de outros teóricos no sentido de que a exogamia poderia ser anterior
ao totemismo, tendo se juntado às proibições desse tipo de organização posteriormente. Mais
uma vez reaparece a linguagem como elemento constitutivo dos enlaçamentos sociais, sendo
que, no caso das tribos australianas e das comunidades totêmicas em geral, a linguagem que
os enlaça tem a peculiaridade de representar os graus de parentesco não como “o laço entre
dois indivíduos, mas entre um indivíduo e um grupo” (Freud, [1912-1913] 2012, p. 26).
Temos, portanto, a linguagem surgindo como um terceiro que estabelece as possibilidades e
os limites de articulação entre iguais; algo anterior aos indivíduos e regulador dos enlaces
sociais entre eles, um dispositivo que estabelece regras de convívio entre o indivíduo e seu
grupo.
A consequência da determinação relacional indivíduo-grupo é o que, segundo Freud
([1912-1913] 2012), L. H. Morgan denominou sistema ‘classificatório’. Nesse tipo de
sistema, Morgan destaca a peculiaridade dos laços sociais estabelecidos entre pais e filhos. Ali
um filho chama de pai não apenas seu progenitor, mas todos os homens da tribo que
eventualmente poderiam sê-lo; da mesma forma a palavra mãe é utilizada para nomear todas
as mulheres da tribo em que o filho foi gerado. Temos novamente uma preponderância dos
determinantes sociais em relação aos físicos nas relações de linguagem estabelecidas por
43
esses povos, que Freud chama a atenção pela semelhança que teriam em nossa própria cultura,
onde as crianças são orientadas a chamar as pessoas mais próximas de sua família de tio ou
tia, mesmo não havendo nenhuma relação consanguínea entre eles.
Para justificar a aparência confusa do uso das palavras nessas tribos primitivas para
seus contemporâneos, Freud lança mão da suposição de que poderia ser
[...] indício daquela instituição matrimonial que o Rev. L. Fison denominou ‘casamento grupal’
cuja natureza consiste em que determinado número de homens exerce direitos conjugais sobre
determinado número de mulheres. Os filhos desse casamento grupal consideram-se então,
justificadamente, irmãos uns dos outros, embora não tenham nascido todas da mesma mãe, e vêem
todos os homens do grupo como seus pais (Freud, [1912-1913] 2012, p. 26).
p. 308) afirma que o tabu é o mais antigo código de leis não escritas da humanidade.
Considera-se geralmente que o tabu é mais antigo que os deuses e remonta a épocas anteriores
a qualquer religião” (Freud, [1912-1913] 2012, p. 43).
Considerando tabu como um código de leis não escrito, podemos supor que ele era
transmitido através da fala, o que vem reforçar nossa suposição de que o campo da linguagem
funda a sociedade humana. Nesse ponto lancemos mão de Agamben (2010), que por sua vez
nos remete à Política de Aristóteles, onde encontramos uma distinção entre voz e linguagem:
Só o homem entre os viventes possui a linguagem. A voz, de fato, é sinal da dor e do prazer e,
por isso, ela pertence também aos outros viventes (a natureza deles, de fato, chegou até a sensação da
dor e do prazer e a representá-los entre si), mas a linguagem serve para manifestar o conveniente e o
inconveniente, assim como o justo e o injusto; isto é próprio do homem com relação aos outros
viventes, somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e das outras coisas do
mesmo gênero, e a comunidade destas coisas faz a habitação e a cidade (1253a, 10-18).
luz sobre a obscura origem de nosso próprio ‘imperativo categórico’” (Freud, [1912-1913]
2012, p. 48).
Nesse ponto Freud formaliza o uso das pesquisas feitas por Wilhelm Wundt como
fundamento para suas próprias investigações e questionamentos, justificando que o mesmo
“promete ‘ir buscar a origem do conceito de tabu em suas raízes mais remotas’ (1906, 301)”
(Freud, [1912-1913] 2012, p. 42). Portanto, com base em Wundt e considerando-se o conceito
de tabu como proibições diversas, abrangendo desde a abstenção em tocar determinadas
pessoas, animais, plantas ou objetos os mais variados até o uso de palavras proscritas, pode-se
afirmar que nenhuma raça ou cultura escapa indene dos maus efeitos do tabu. Nesse sentido,
encontramos algo que nos é familiar desde a psicanálise: a questão da representatividade, já
discutida a partir da Interpretação dos sonhos, onde um elemento qualquer surge no lugar de
outro que se encontra inconsciente. Essa pode ser uma boa explicação para o deslizamento de
um tabu a elementos tão diversos. Os tabus seriam, então, suportes para regulação das
relações sociais humanas, determinantes para limites e possibilidades de enlaces sociais a
partir da linguagem.
Seguindo Wundt, Freud ([1912-1913] 2012) escreve que o autor estabelece duas
classes de tabus. A primeira, em relação a restrições relacionadas a animais, mais exatamente
proibições em tocá-los ou devorá-los, seria o núcleo mesmo do totemismo. Teríamos aqui
totens servindo de suporte para um tabu, para uma proibição simbólica tida como natural para
aqueles a ela submetidos. A segunda, referente a pessoas, é totalmente diversa, se restringindo
a ocasiões como nascimento, puberdade, doença e, sobretudo, a morte. É interessante observar
como nesse ponto vemos o biológico sendo recoberto por tessituras linguísticas diversas que
se esforçam para esfumaçar a trajetória que leva a todos, inexoravelmente, ao mesmo fim.
Dito de outra maneira, do narcisismo primário que reveste os recém-natos ao horror
insuportável da morte, marca indelével da finitude de todo humano.
Quanto à promessa de buscar a origem, Freud demonstra um descontentamento em
relação à solução apresentada por Wundt, segundo a qual
Não sendo, originalmente, senão o temor objetivado do poder demoníaco que se supõe oculto
no objeto ‘tabuizado’, o tabu proíbe irritar esse poder, e ordena que, onde este tenha sido provocado,
deliberadamente ou não, a vingança do demônio seja afastada [Wundt, 308] (Freud, [1912-1913] 2012,
pp. 50-51).
47
Pondera que essa seria uma boa saída se os demônios existissem de fato, mas nos lembra de
que assim como os deuses, os demônios são criação de nosso psiquismo, não podendo ser a
origem de um conceito.
Freud, entretanto, não desvaloriza as pesquisas de Wundt, ressaltando a importância da
dupla significação do tabu que, segundo esse autor, indica o que é sagrado e o que é impuro.
Wundt entende que nos primórdios do tabu, ele portaria a marca do demoníaco, num sentido
ainda neutro, anterior à distinção entre sagrado e impuro. Esse temor que acompanha o tabu
seria, portanto, a essência que permanece imutável no conceito. Veremos adiante que é a
partir da psicanálise que surge a possibilidade de se buscar a origem do ‘demoníaco’
propriamente dito.
O próprio Wundt percebe a coincidência entre o fenômeno tabu e as neuroses
obsessivas descritas à luz da psicanálise, não podendo evitar se utilizar do arcabouço teórico
psicanalítico, aplicando-o aos fenômenos sociológicos. Temos aqui, apesar das críticas e dos
impasses, a psicanálise sendo utilizada para o estudo de fenômenos sociais. Se Freud nos
adverte quanto ao risco de confundirmos as aparências com o caráter fundamental das formas
que se nos apresentam, ele não deixa de nos chamar a atenção, asseverando que “A primeira e
mais óbvia coincidência das proibições obsessivas (dos neuróticos) com o tabu está em que
são igualmente desprovidas de motivação em sua origem” (Freud, [1912-1913] 2012 p. 46).
Ora, basta-nos lançar mão do conceito psicanalítico de desejos proibidos por questões de
ideais ligados à moral de cada época ou cultura, repassados a nós por um outro significativo, e
ligar ao mecanismo do recalque presente no aparelho psíquico afastando tais desejos da
consciência mas mantendo-os ativos no inconsciente, que restituiremos sem dificuldades os
motivos das proibições nas neuroses e nos tabus: as pulsões sexuais incompatíveis com os
ideais do Eu.
Outra coincidência é em relação aos núcleos do tabu e da neurose. Em ambos
encontramos como proibição principal o toque, “daí o nome ‘medo do toque’, délire de
toucher” (Freud, [1912-1913] 2012, p. 54). Nesse trecho encontramos Freud mais uma vez às
voltas com um aparelho psíquico que bem poderia ser nomeado aparelho de linguagem,
quando ele diz que o tocar se estende ao metafórico, chegando ao ponto de o pensamento
coincidir com o ato, ou seja, o fato de pensar em algo proibido é equivalente a tocá-lo. A
proibição, portanto, deve estar ligada a um pensamento que expressa um desejo de realizar um
ato, lembrando-nos que no inconsciente propriamente dito, a existência de uma fantasia não se
diferencia da realização de um desejo. A punição, assim, encontra sua explicação nesse ponto
inconsciente onde algo proibido foi satisfeito. Eis o psíquico tomando do campo do social,
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construído ele mesmo por pensamentos traduzidos pela fala de outros significativos, os
parâmetros para a construção do seu Eu a partir de seus Ideais civilizatórios.
Considerando as possíveis distorções e incongruências inevitáveis na proposta de se
comparar o tabu com as doenças neuróticas de seus pacientes, Freud pondera “[...] que
devemos ficar satisfeitos em lançar alguma luz sobre os tabus mais originais e significativos”
([1912-1913] 2012, pp. 59-60). Propõe, então, uma reconstrução da história do tabu com base
num estudo comparativo com as neuroses obsessivas. Nesse sentido, as proibições tomadas
como naturais por aqueles submetidos a elas, foram em algum momento impostas desde fora,
do campo social de uma geração anterior, de forma violenta, pois tais proibições certamente
iam de encontro às inclinações pulsionais dos recém-chegados ao grupo. Com o passar do
tempo, proibições originalmente impostas de uma geração a outra “talvez já tenham se
‘organizado’ como parte do patrimônio psíquico herdado” (p. 60). É colocada em questão a
própria suposição da existência de ideias inatas em contraposição àquelas adquiridas
incidentalmente na ontogênese ou mesmo na filogênese dos humanos.
(Freud [1912-1913] 2012, p. 66). A suposição a ser demonstrada é que como na neurose
obsessiva,
desdobramentos, como mudar o nome do falecido para que não perceba que se fala dele, ou
mudar os nomes de todos de uma tribo relacionados ao morto. Freud nos lembra que
[...] nossas crianças, que não se contentam com a ideia de que a semelhança das palavras carece
de sentido, e deduzem, coerentemente, que, se duas coisas têm nomes que soam iguais, isso indica uma
profunda concordância entre elas. Mesmo o adulto civilizado pode perceber, em várias peculiaridades
de sua conduta, que não está longe, como pensa, de levar a sério e ao pé da letra os nomes próprios,
assim como também crê que seu nome se acha peculiarmente ligado à sua pessoa (Freud, [1912-1913]
2012, p. 96).
Mais uma vez surgem na letra freudiana evidências da estreita ligação entre a
linguagem e a própria hominização dos indivíduos de nossa espécie. Tem-se a impressão de
que a linguagem antecede a cada um de nós e é a matéria-prima da construção das
subjetividades, produzindo seres linguageiros, inelutavelmente marcados por ela, que nesse
sentido se confunde com a própria civilização humana, sendo condição para adentrar nela a
submissão de cada um às leis linguísticas.
Para solucionar o impasse sobre a origem do tabu, Freud ([1912-1913] 2012) lança
mão do conceito psicanalítico de projeção, onde um indivíduo desloca seus próprios
sentimentos a outro que não ele próprio. Considerando também a partir da experiência
psicanalítica, a ambivalência afetiva que desenvolvemos em relação às pessoas que,
mormente são indubitavelmente amadas por nós, sem dificuldades poderíamos concluir que
por ocasião da morte de nossos entes queridos, os sentimentos hostis inconscientes aflorem
projetados naqueles que amamos, transformando-os, assim, em seres temíveis. Quanto às
objeções relativas às afirmações acima, o autor é enfático: “Não podemos prescindir da
hostilidade inconsciente como o motivo que normalmente atua e verdadeiramente move”
(Freud, [1912-1913] 2012, p. 106). Eis a aposta radical sobre o determinismo do inconsciente
da qual Freud não abre mão, implicando aí uma posição ética de se responsabilizar ou não por
algo que desconhecemos, mas que, no entanto, nos envolve na trama dos laços sociais e
civilizatórios.
Para além do tabu dos mortos, Freud ([1912-1913] 2012) supõe que o conceito de
projeção pode ser de grande valia para o entendimento da configuração da psique primitiva.
Ele nos adverte que a projeção não é um dispositivo defensivo, podendo ocorrer mesmo na
ausência de conflitos. “A projeção de percepções internas para fora é um mecanismo
primitivo, ao qual estão sujeitas nossas percepções sensoriais, por exemplo, e que
normalmente tem o papel principal na configuração do mundo externo, portanto” (Freud,
[1912-1913] 2012, p. 107). Evidencia-se, portanto, que a percepção do mundo externo traz
51
A experiência nos ensina que existe para a imensa maioria das pessoas um limite além do qual
suas constituições não podem atender às exigências da civilização. Aqueles que desejam ser mais
nobres do que suas constituições lhes permitem, são vitimados pela neurose. Esses indivíduos teriam
sido mais saudáveis se lhes fosse possível ser menos bons (Freud, 1908/1990, p. 197).
Freud parece elevar o termo sentimentos sociais ao nível de um conceito; esse tipo de
sentimento leva em consideração os semelhantes em vez de tomá-los como objetos sexuais a
serem usados para satisfações egoístas. Na neurose teríamos um recuo desses investimentos
sociais em relação ao outro, que posteriormente retornariam sintomaticamente como uma
supercompensação dos desejos inconscientes recalcados. Sem se deter na origem dos
impulsos sociais Freud se esforça em comparar o tabu e a neurose obsessiva no intuito de
estabelecer qual a relação “[...] das diversas formas de neurose com as formações culturais, e
como o estudo da psicologia das neuroses é relevante para compreendermos a evolução
cultural” (Freud, [1912-1913] 2012, p. 119) Ele supõe que enquanto o fator característico da
neurose é o predomínio dos elementos pulsionais sexuais, no tabu, para além do sentido
sexual encontrado nas proibições, haveria, “[...] sobretudo o significado mais geral de ataque,
de apoderamento, de afirmação da própria pessoa” (p. 119). Mas afinal afirma sobre os
instintos sociais, que teriam eles próprios surgidos da fusão de impulsos egoístas e eróticos.
Devemos lembrar que nesse ponto de suas formulações teóricas o autor está às voltas com os
53
conceitos de libido objetal e libido do eu, já discutidos anteriormente. Veremos que, mais
tarde, os impulsos egoístas e eróticos de alguma forma se fundem, sendo componentes do
vindouro conceito de Eros — pulsão de vida — sempre se movimentando na direção de
incessantes enlaçamentos.
Freud termina seu ensaio fazendo uma analogia entre as neuroses e as produções
civilizatórias.
Pode-se arriscar a afirmação de que uma histeria é uma caricatura de uma obra de arte, uma
neurose obsessiva, a caricatura de uma religião, e um delírio paranóico, de um sistema filosófico. A
diferenciação remonta, em última análise, ao fato de as neuroses serem formações associais; elas
procuram obter, por meios privados, o que na sociedade surgiu mediante o trabalho coletivo (Freud,
[1912-1913] 2012, p. 120).
sua subjetividade, com quantidade variável de fios advindos dos três sistemas, produzindo
uma trama única e inimitável.
Depois de uma detalhada descrição de feitiçaria e magia, onde destaca coincidências e
diferenças entre os dois dispositivos, o autor nos mostra que, ao final, o que realmente nos
interessa é a onipotência creditada ao pensamento pelos povos primitivos, de tal modo que o
homem primitivo
[...] sabia como eram as coisas do mundo, ou seja, tal como ele as percebia. Estamos
preparados para saber, portanto, que o homem primitivo deslocava relações estruturais de sua própria
psique para o mundo exterior, e, por outro lado, podemos fazer a tentativa de colocar de volta na psique
humana aquilo que o animismo ensina sobre a natureza das coisas (Freud, [1912-1913] 2012, p. 144).
Assim, do fato de haver semelhante concluiremos que há dessemelhante, e daí, que há relação,
já que basta dois termos serem considerados semelhantes ou dessemelhantes para que uma relação entre
eles seja definível. Concluiremos em seguida, que existem propriedades, já que basta que entre dois
termos exista uma relação para que uma propriedade comum possa, por abstração, ser construída.
Concluiremos igualmente que existem classes e que elas são fundadas nas propriedades, que as
propriedades são apenas uma maneira de construir semelhante, que existem todos e que eles têm um
limite, cada todo suspendendo-se no ponto onde surge um dessemelhante. Concluiremos, enfim, que há
representável, já que a representação nada supõe a não ser a similitude e a relação. Pela simples
reiteração e combinação dos procedimentos acessíveis, os todos cuja existência supomos poderão assim
estar ligados uns aos outros num tecido de semelhante e dessemelhante, que podemos da mesma forma
constituir como todo do representável: o que nomeamos realidade (Milner, 2006. pp. 7-8).
Tudo isso a partir de rearranjos entre as palavras, produzindo assim novos pensamentos e
novos sentidos.
Levando em consideração a proximidade da onipotência dos pensamentos dos povos
primitivos ao conceito de narcisismo, Freud propõe a seguinte comparação entre o
desenvolvimento da concepção de mundo e o desenvolvimento libidinal individual:
Tal comparação deve ser considerada com cautela, pois pode dar margem a
interpretações errôneas se tomada isoladamente. Vamos avançar na teoria freudiana até O
mal-estar na civilização, onde Freud (1930/2010) faz observações a respeito desse estado
maduro produzido a partir do cientificismo. Inicialmente o autor realmente concorda que se
conseguirmos abrir mão das exigências do princípio do prazer sublimando as pulsões ao
ponto de nos satisfazermos a partir do prazer obtido através do trabalho psíquico e intelectual,
“[...] o destino não pode fazer muito contra o indivíduo” (Freud, 1930/2010, p. 35). Segue,
entretanto, afirmando que tais satisfações são acessíveis a um número reduzido de pessoas
possuidoras de dons e disposições especiais, asseverando que “[...] Também a esses poucos
ele não pode assegurar completa proteção do sofrimento, não lhes proporciona um escudo
impenetrável aos dardos do destino e costuma falhar, quando o próprio corpo é a fonte do
sofrer” (Freud, 1930/2010, p. 36).
Segundo Freud (1930/2010), portanto, uma maturidade envolvendo uma harmonia em
relação à sociedade é estruturalmente impossível. Além das limitações impostas pelas
exigências pulsionais, o autor acrescenta que, apesar de ser uma fonte de prazer quando
livremente escolhido, o trabalho não consta entre as alternativas mais comuns como meio para
se alcançar a felicidade, encontrando-se ao contrário como naturalmente aversivo para a
maioria dos povos civilizados.
Feitas essas considerações, voltemos ao término do terceiro ensaio de Totem e tabu,
onde Freud discute as críticas a respeito da vulnerabilidade de sua produção teórica pela
analogia feita entre o psiquismo dos povos primitivos, considerada por muitos, rudimentar em
relação ao aparelho psíquico do homem civilizado. Ressalta que, por essas mesmas razões,
deixamos de considerar a complexidade da vida anímica das crianças, deixando, assim, passar
56
[...] menciona a crença alemã de que uma faca não deve ser deixada com a lâmina para cima;
Deus e os anjos poderiam nela se ferir. Não deveríamos reconhecer nesse tabu o pressentimento de
certos “atos sintomáticos”, nos quais a faca poderia ser usada por maus impulsos inconscientes? (Freud,
[1912-1913] 2012, p. 155).
2.6 O mito freudiano: seus desdobramentos e seus efeitos sobre a teoria psicanalítica
Passemos ao quarto e último ensaio, que é, em parte, uma compilação dos três
primeiros, contendo, entretanto, a novidade da construção, por Freud, de uma espécie de mito
moderno. Já de início o autor indica sua pretensão: buscar, tomando como base a psicanálise,
a gênese da religião, instituição presente, senão em todas as culturas, na maioria delas. Para
tanto, retoma o conceito de totemismo, tomando-o como um sistema que desempenha o papel
de uma religião, além de fornecer os alicerces para organização social dos povos primitivos
que tomam tal sistema como referência na ordenação de seus ritos, usos e costumes.
Utilizando-se de pesquisas de estudiosos de sua época, Freud ([1912-1913] 2012) apresenta a
suposição de que todo um conjunto de usos e costumes de várias sociedades antigas e
modernas seriam resíduos de um tempo em que o campo do social se organizava através dos
totens. Retoma, então, Wundt, concordando que “[...] é grande a probabilidade de que a
cultura totêmica tenha sido, em toda parte, um estágio preliminar dos desenvolvimentos
posteriores e uma fase de transição entre o estado do homem primitivo e a era dos deuses e
heróis” (Freud, [1912-1913] 2012, p. 156). Compartilhar dessa assertiva é um ato de coragem,
considerando-se o caráter de universalidade nela contido.
Em seguida, Freud cita S. Reinach, a quem atribui a autoria de uma espécie de
catecismo do totemismo, onde são enumerados doze princípios básicos, já desenvolvidos
57
O totemismo é, assim, tanto um sistema religioso como social. No aspecto religioso, consiste
nas relações de respeito e proteção mútuos entre um homem e seu totem; no aspecto social consiste nas
relações dos membros do clã entre si e com os homens dos outros clãs (Freud, [1912-1913] 2012, p.
161).
[...] acredita ser indiferente, em princípio, de que modo os clãs adotaram nomes de animais.
Suponha-se, apenas, que um dia lhes veio à consciência que os tinham, e que não sabiam explicar a si
mesmos de onde vinham. A origem desses nomes foi esquecida (Freud, [1912-1913] 2012, pp. 172-173
grifos do autor).
Os autores sociológicos citados por Freud parecem insistir nos chamados instintos
sociais para explicar a formação das instituições totêmicas. Seus diversos argumentos, porém,
incluindo exemplos de alguns povos selvagens, parecem ser facilmente refutáveis, não
apresentando solidez que nos permita avançar calcados neles. As teorias psicológicas não
diferem das sociológicas quanto a sua solidez. Os autores apresentados por Freud acabam
buscando fórmulas e estruturas altamente complexas, incompatíveis com as primitivas formas
de organização social dos povos estudados. Não seria viável esperar que recuando no tempo
encontrássemos formas mais sofisticadas de organização, mas antes estruturas mais
rudimentares.
Diante dos diversos pontos de vista dos pesquisadores investigados, “As discussões
sobre a exogamia dos povos totêmicos são, devido a natureza do material, particularmente
complicadas e de difícil apreensão — confusas, podemos dizer” (Freud, [1912-1913] 2012, p.
184) Afinal, conclui o autor, temos duas propostas que divergentes: uma que considera a
exogamia como parte da essência do totemismo, e outra que considera fruto do acaso a
coexistência desses dois traços nas culturas primevas. Nesse ponto, Freud acentua que Frazer,
em particular, defende a segunda posição, considerando o totemismo e a exogamia como
instituições inexoravelmente distintas. Desde essa posição, grande parte dos autores concorda
quanto à anterioridade temporal do totemismo em relação à exogamia.
Acompanhando as querelas de diversos autores que se ocuparam desse controverso
tema, Freud ([1912-1913] 2012) ressalta aquilo que considera uma preciosidade
argumentativa de Frazer que ressoa com a experiência da psicanálise: a insustentabilidade do
postulado relativo a uma aversão inata ao incesto. Pelo contrário, as análises demonstram que
as primeiras pulsões sexuais infantis têm caráter incestuoso. O posterior retorno do material
que foi recalcado devido à incompatibilidade de seus conteúdos com a moral sexual civilizada
seria a verdadeira fonte das doenças neuróticas que hoje assolam a humanidade.
Depois de exaustivas explanações sobre o assunto, o autor declara que
[...] somos obrigados, no final da pesquisa, a concordar com a resignada sentença de Frazer, de
que não conhecemos a origem do horror ao incesto e não sabemos sequer que direção tomar. Nenhuma
das soluções até aqui apresentadas para o enigma parece satisfatória (Freud, [1912-1913] 2012, pp. 192-
193).
de vida dos macacos superiores, que também o homem viveu originalmente em pequenas
hordas, dentro das quais o ciúme do macho mais velho e forte impediu a promiscuidade”
(Freud, [1912/1913] 2012, p. 193).
Surge, portanto, um novo afeto, advindo das relações sociais numa dada comunidade,
que provavelmente terá uma participação capital no esclarecimento de nossas questões sobre
os laços sociais.
Atento às condições relacionais na horda primitiva, Atkinson, citado por Freud,
percebe que tais condições produziam necessariamente a exogamia entre os machos mais
jovens, considerando que
Cada um desses jovens expulsos podia fundar uma horda semelhante, na qual vigorasse a
mesma proibição de atos sexuais motivada pelo ciúme do chefe, e no curso do tempo essas
circunstâncias resultariam na regra, agora consciente em forma de lei: “Nada de relações sexuais entre
companheiros de horda”. Após o estabelecimento do totemismo a regra teria se transformado em: “Nada
de relações sexuais no interior do totem” (Freud, [1912-1913] 2012, p. 194).
Freud eleva a experiência analítica à altura de lançar sobre a escuridão acima descrita
um único raio de luz. Para tanto, retoma a discussão acerca da proximidade dos laços
estabelecidos pelas crianças e povos primitivos em relação aos animais; ambos se relacionam
com estes com a mesma naturalidade com que estabelecem laços entre si, não parecendo
perceber qualquer diferenciação entre eles, em outras palavras, crianças e primitivos
interagem com os animais como seus iguais. O autor chega a insinuar uma maior proximidade
das crianças com os animais do que com seus congêneres adultos, os quais são muitas vezes
percebidos como seres enigmáticos ([1912-1913] 2012, p. 196).
Conforme anunciamos anteriormente, neste ponto Freud retoma a questão do
complexo de Édipo, fazendo uma analogia com o que supostamente pode ter ocorrido na
fundação de nossa civilização. Para o autor, em tempos imemoriais, os sentimentos de
hostilidade e ciúmes em relação aos pais podem ter sido concretizados através da morte do pai
61
de uma mítica horda primeva pelos seus próprios filhos machos. Seguindo Darwin, Freud
supõe a existência de hordas onde o macho dominante teria acesso a todas as mulheres do
grupo; os jovens machos seriam banidos do grupo e, obviamente, alijados de estabelecer laços
sociais — e ocasionalmente sexuais — com as mulheres do bando. Essa fraternidade excluída
passaria a viver próxima a esse grupo, alimentando-se de seus restos mas excluída
socialmente. Nesse sentido, o pai não só representa mas também encarna a lei que organiza os
laços sociais nessa estrutura, laços que excluem os púberes machos, ao mesmo tempo em que
permitem ao pai enodamentos irrestritos.
Esses jovens exilados que supostamente vivem à margem do grupo descrito acima,
separados por uma espécie de fratura social, têm grandes possibilidades de estreitar os laços
fraternos e, ao mesmo tempo, sobredeterminar seus sentimentos hostis em relação ao pai.
Podemos verificar tal hipótese no artigo Psicologia das massas e análise do eu, onde Freud
(1921/2011) se aprofunda nos fenômenos de massa, ressaltando que os humanos, quando
agrupados, tendem a apresentar um rebaixamento intelectual acompanhado de um
arrefecimento dos sentimentos hostis. Como consequência, atos que seriam impensáveis por
um sujeito isoladamente, são praticados com frequência por grupos humanos. Ora, isso é
facilmente verificável nos casos de extrema violência apresentados pela mídia, em suas
diversas formas, por grupos de pessoas, seja grupos organizados, seja ajuntamentos casuais
provocados por qualquer situação fortuita.
Aplicando as conclusões do artigo à construção do mito freudiano, vemos que Freud
antecipa em Totem e tabu ([1912-1913] 2012) aquilo que formalizaria anos depois em
Psicologia das massas e análise do eu. Seguindo nossa história, o grupo de jovens exilados,
por sua situação de extrema miséria associada aos impulsos hostis acirrados, acaba por atacar
e matar o pai, devorando-o em seguida em um banquete totêmico, que como já discutimos,
representa uma forma de incorporar as qualidades de um guerreiro de valor. Teríamos, então,
a manifestação da ambivalência afetiva: o pai temido e odiado é também alvo de amor e
admiração.
Tomando como base a íntima relação estabelecida pelas crianças pequenas com os
animais nos reportemos àquele que poderíamos chamar de primeiro tratamento analítico de
uma criança: Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909/1990). Esse clássico
freudiano trata exatamente da ambivalência afetiva de uma criança em relação ao seu pai.
Essa criança desloca seus sentimentos hostis originalmente dirigidos ao pai, para um medo
injustificado de ser mordido por cavalos. Nesse caso poderíamos considerar o cavalo como
62
um sucedâneo paterno; prova disso é que Hans5, além do medo, apresentava profundo
interesse e respeito por essa espécie animal.
Teríamos, portanto, no caso Hans, assim como em outros casos de análise infantil
estudados pelos discípulos de Freud que trabalharam no campo da clínica psicanalítica da
infância, que as crianças atendidas manifestavam em relação ao pai sentimentos hostis que
culminavam no desejo de morte. A diferença estaria no tratamento dado a esses impulsos, que
no caso das crianças da era vitoriana, em decorrência de entraves psíquicos derivados dos
ideais civilizatórios daquele tempo, em vez de repetir concretamente o parricídio,
apresentavam sintomas neuróticos que deixavam claros indícios de que o desejo de morte e o
coincidente sentimento de culpa advindo da ambivalência afetiva se encontravam recalcados
no inconsciente.
Terminando o mito freudiano, os jovens, que estabelecem uma relação de amor e ódio
com a figura paterna, não ousam ocupar o lugar do pai morto, inclusive pelo acréscimo do
temor de terem o mesmo destino dele. O pai morto, portanto, acaba se tornando ainda mais
forte, identificando-se agora, mais que nunca, com a lei, à qual todos os membros da tribo
acabam por se submeter. Teríamos, enfim, que um assassinato ou, mais precisamente, um
parricídio, funda nossa civilização, onde a lei encarnada por um pai violento e ciumento,
ganha legitimidade por sua morte, e seu lugar não pode mais ser mais ocupado por nenhum
outro homem. O lugar vazio, entretanto, é completamente preenchido de sentido, passando a
dar lugar a uma lei transcendente à qual todos devem se submeter, sob pena de serem punidos
em caso de desobediência aos seus mandamentos pelos próprios membros da civilização, que
passam à função de guardiões e representantes de uma lei acima dos homens. Tal lei
doravante passa a legitimar os tipos de enlaces sociais aceitáveis, regendo, assim, toda a
organização das relações dos homens entre si e entre cada um e a coletividade como um todo.
Voltemos ao artigo Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011), artigo do qual
retiramos a premissa que norteia nossas investigações. Logo em seu início, Freud esclarece o
que chama de psicologia de massas, em oposição à psicologia individual. Enquanto nesta
última ele inclui, além dos processos narcísicos de satisfação pulsional que independem de
outras pessoas, indivíduos mais próximos como pais, irmãos, médicos, professores exercendo
extraordinária influência sobre cada um de nós, considera a primeira como uma psicologia
que tem como objeto de estudo as influências exercidas por grupos maiores, compostos
inclusive por pessoas estranhas a um sujeito, produzindo nos indivíduos comportamentos
5
Nome adotado por Freud para se referir à criança do caso clínico em questão.
63
6
Nesse ponto há um erro na Standard inglesa, já notado por vários estudiosos, que consiste em traduzir o
advérbio vorher (antes) por later (depois). Na mesma frase, “por apoio” é nossa versão para Anlehnungs-, que
Strachey traduz, recorrendo ao grego antigo, por “anaclítico” (Psicologia das massas e análise do eu. In: Obras
completas, v. 15, p. 61).
7
No próximo capítulo veremos que Jacques Lacan faz uma diferenciação de fundamental importância entre
Super-eu e ideal de Eu.
64
[...] impressão de que o complexo de Édipo simples não é absolutamente o mais frequente, mas
corresponde a uma simplificação ou esquematização que, não há dúvida, com frequência se justifica em
termos práticos. Uma investigação mais penetrante mostra, em geral, o complexo de Édipo mais
completo, que é duplo, um positivo e um negativo, dependente da bissexualidade original da criança;
isto é, o menino não tem só uma atitude ambivalente com o pai e uma terna escolha objetal pela mãe,
mas ao mesmo tempo comporta-se como uma garota, exibe a terna atitude feminina com o pai e,
correspondendo a isso, aquela ciumenta e hostil em relação à mãe. Essa interferência da bissexualidade
torna muito difícil compreender as primitivas identificações e escolhas objetais, e ainda mais difícil
descrevê-las de modo inteligível. Também pode ser que a ambivalência constatada na relação com os
pais deva se referir inteiramente à bissexualidade, e não, como apresentei acima, ter se desenvolvido a
partir da identificação, pela atitude de rivalidade (Freud, 1923, 2011, p. 41).
Excluído o medo da castração, também deixa de haver um forte motivo para a construção do
Super-eu e a demolição da organização genital infantil. Bem mais que no menino, essas mudanças
parecem consequência da educação, da intimidação externa, que ameaça com a ausência de amor. O
complexo de Édipo da menina é muito mais inequívoco do que o do pequeno portador do pênis;
segundo minha experiência, raramente vai além da substituição da mãe e da postura feminina diante do
pai. A renúncia do pênis não é tolerada sem uma tentativa de compensação. [...] no conjunto é preciso
admitir que nossa compreensão desses processos de desenvolvimento da menina é insatisfatória, plena
de lacunas e pontos obscuros. (Freud, 1924/2011, pp. 212-213).
65
Esse fragmento não é sem importância, principalmente para os fins de nossa pesquisa
visto que o autor coloca em discussão os fatores determinantes para a formação do Super-eu,
ressaltando que no caso da menina, o campo do social parece produzir mais efeitos do que
sobre o menino. Ora, se a civilização humana é vista por Freud (1930/2010) como um
processo mutável por definição, podemos supor que o Super-eu feminino é mais passível de
modificações por forças externas à psique que o masculino. Como veremos no próximo
capítulo, isso não é sem efeitos na constituição dos sujeitos e no estabelecimento dos laços
sociais na contemporaneidade.
Outro ponto capital em termos de complexidade é o caráter dual da gênese do Super-
eu; além de um resíduo das primeiras escolhas objetais do Isso, tal instância apresenta outra
face: possui, na mesma intensidade dos investimentos pulsionais oriundos do Isso, o sentido
de uma poderosa formação reativa a este. O Ideal de Eu, portanto, instância psíquica
representante dos mais altos valores civilizatórios transmitidos a cada integrante da cultura,
tem suas raízes no Isso, trazendo em si, além da internalização de uma lei transgeracional,
exigências pulsionais imperativas que muitas vezes eclodem violentamente. Relembremos
que, por detrás de nossos mais altos padrões éticos e morais, repousa oculto o ato inaugural da
civilização humana: o parricídio! Tudo repousa em um paradoxo fundante que se revela no
Super-eu; guardião dos mais elevados princípios éticos, mas que traz a potência originária de
Tânatos, vez por outra realizada violentamente contra o próprio Eu pela via de um mortífero
masoquismo primário.
66
A vida humana em comum teve então um duplo fundamento: a compulsão ao trabalho, criada
pela necessidade extrema, e o poder do amor, que no caso do homem não dispensava o objeto sexual, a
mulher, e no caso da mulher não dispensava o que saíra dela mesma, a criança. Eros e Ananke
tornaram-se também os pais da cultura humana (Freud, 1930/2010, pp. 62-63).
Diante desse estado de coisas, o autor se pergunta como poderíamos esperar outro
destino para os homens em comunidade senão uma felicidade cada vez mais profícua.
Lembra, entretanto, que o prazer retirado do amor genital se tornou para alguns
homens o protótipo da felicidade. Nesses casos, tais pessoas apresentam uma fragilidade
importante; passam a depender de outro, eleito seu objeto sexual, para serem felizes e quando,
por algum motivo, perdem esse objeto, acreditam ter perdido também a suposta felicidade que
acreditavam atrelada a ele. Em outro ponto desta dissertação, quando desenvolvemos a
questão dos investimentos libidinais, vimos que o estado de enamoramento coincide com um
68
dos momentos de maior fragilidade dos humanos, quando se retira a maior parte do
investimento libidinal egoico depositando-o em um outro tomado como objeto de desejo.
Seguindo a discussão sobre o amor, Freud (1930/2010) traz a questão do amor sexual
inibido em sua finalidade.
O amor inibido na meta foi, na origem, amor plenamente sensual, e ainda o é no inconsciente
humano. Ambos, amor plenamente sensual e amor inibido na meta, vão além da família e estabelecem
novas uniões com pessoas antes desconhecidas. O amor genital conduz à formação de novas famílias,
aquele inibido na meta, a “amizades” que culturalmente se tornam importantes, pois escapam a várias
limitações do amor genital – a exclusividade, por exemplo. No curso da evolução, porém, o vínculo
entre amor e civilização deixa de ser inequívoco. Por um lado, o amor se opõe aos interesses da cultura;
por outro lado, a cultura ameaça o amor com sensíveis restrições. (p.66).
Neste ponto fica clara a influência do contexto histórico em que Freud se encontra
inserido. Se o autor está atento à dupla determinação da fundação dos laços sociais – amor e
necessidade – podemos acrescentar que inúmeros arranjos podem ser feitos a partir desses
elementos. Em outras palavras, a exigência da fidelidade e da relação monogâmica entre um
homem e uma mulher — deixando para ela um maior rigor relativo a restrições relativas ao
prazer sexual e ao trabalho fora da esfera doméstica — é apenas uma entre as inúmeras
possibilidades de arranjos que poderiam atender às exigências pulsionais em acordo com
determinados ideais vigentes; nesse caso, o modelo de organização social patriarcal da era
vitoriana. De modo algum isso anula a afirmação feita há pouco em relação à impossibilidade
de uma civilização sem algum tipo de mal-estar.
Ainda em relação ao amor, Freud (1930/2010) argumenta que o desvio da pulsão
sexual de sua finalidade é inalcançável para a maioria da humanidade. Essa inabilidade à
sublimação é o que faz com que, frente às exigências do campo do social em relação à
renúncia de satisfações sexuais diretas, muitos caiam enfermos vitimados pela neurose. Além
disso, existe a questão da agressividade, dificuldade escamoteada pela religião, poderosa
instituição que por muitos séculos vem sendo uma das maiores responsáveis pela manutenção
de certa estabilidade e ordem social, mesmo que por vezes através de meios condenáveis. Um
dos dispositivos por ela utilizado nessa empreitada é a insistência no virtuoso amor inerente
aos homens, deixando oculta a verdade da humanidade:
69
[...] o ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender,
quando atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte quinhão de
agressividade. Em consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador
e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu
trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu
patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo (Freud, 1930/2010, pp. 76-
77).
Talvez seja o momento de nos indagar sobre o destino a ser dado à pulsão destrutiva
que nos habita. Esse parece ser o desafio da comunidade humana em qualquer momento
histórico. No entanto, para atender a nossa pesquisa, vamos nos ater à modernidade e ao
contemporâneo, com suas diversas nomeações como modernidade consumada, pós-
modernidade, hipermodernidade, entre outras. Considerando não haver consenso quanto ao
momento exato do início do período moderno e menos ainda sobre seu final, optamos por
considerar a localização temporal proposta por Dufour (2005). Em seu livro A arte de reduzir
cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal, o autor propõe localizar o início da
modernidade entre o final do século XV e início do XVI, justificando sua escolha por ser o
momento inaugural da globalização, caracterizado pelos encontros, muito deles violentos,
entre povos europeus, americanos e orientais, quando na maioria das vezes o europeu
colonizador busca impor sua superioridade em relação a outras culturas, alguma delas mais
antigas que ele próprio (Dufour, 2005, p. 45).
Tal assertiva parece coincidir com o posicionamento de Badiou (2007) em relação aos
efeitos das colonizações no século XX, objeto de estudo de seu livro O século. Para o autor,
mesmo distantes, as atrocidades cometidas nas colônias, somadas à violência das trincheiras
da Primeira Grande Guerra, dão a medida do aspecto monstruoso desse século. Badiou,
porém, não se atém ao horror; ele traça várias possibilidades de leitura desse período, que
70
parece conter uma fratura que produz uma mutação inédita nos laços sociais, como veremos
adiante.
Aprofundemos, então, no trabalho de Badiou (2007). Logo de início o autor se
pergunta o que é um século, sinalizando que não irá se ater ao determinismo temporal
arbitrário de cem anos. Segue propondo três possibilidades de localização de balizadores que
sintetizassem o século XX. Primeiro fala de um século que se inicia com a guerra de 1914-
1918, incluindo aí a revolução de outubro de 1917 e termina 65 anos depois, com a queda do
império soviético. Em seguida apresenta o século totalitário, mais curto que o soviético e
marcado pelo crime.
Trata-se de um século de 60 anos, que se inicia com Lênin em 1917 e termina com a
morte de Mao Zedong em 1976, passando por Hitler e Stalin; dessa perspectiva nos chama a
atenção a enumeração dos mortos em escala industrial. Por fim, o curto século de 30 anos dito
liberal, onde encontramos triunfante o capital, a partir dos anos 1970.
Feitos esses rápidos esboços temporais, históricos e políticos, vejamos o que é possível
descortinar com Badiou em relação às verdades ocultas nas entrelinhas da história. A primeira
questão diz respeito à negação em relação à política de Hitler, rapidamente, como num golpe
de prestidigitação, nomeando-a barbárie, buscando, assim, negar o status pensável a uma
estratégia política que, ao contrário, foi detalhadamente pensada.
A política é pensamento, a barbárie não é pensamento, logo nenhuma política é bárbara. Esse
silogismo visa apenas a dissimular a barbárie, entretanto evidente, do capitalismo parlamentarista que
hoje nos determina. Para sair dessa dissimulação, é preciso afirmar, no e pelo testemunho do século, que
o nazismo é política, é pensamento (Badiou, 2007, p. 14-15).
Neste ponto talvez seja pertinente voltar com Dufour (2005) a Auschwitz e à solução
final, momento histórico apontado pelo autor como uma fratura na modernidade que, se não
marca seu final, ao menos indica a falência da legitimidade de seus grandes Sujeitos.
Com efeito, nada mais indica, depois de Auschwitz, essa catástrofe ocorrida no coração da
região mais culta do mundo, a velha Europa, que se possa ainda invocar um grande Sujeito que viria
garantir a existência possível dos sujeitos falantes. O diferendo, o que quebra o princípio de
encadeamento discursivo, outrora característico das situações de colonização, se instalou, com
Auschwitz, no coração da cultura europeia. Mais nenhuma forma de grandes Sujeitos é possível. A
civilização que produziu estes grandes Sujeitos sucessivos, presumidos como nossos salvadores, se
autodevorou. Auschwitz desfez qualquer lei possível — fracasso ontológico cuja fórmula mais mordaz
e mais concisa possível foi dada pelo poeta Ghérassim Luca: “Como condenar em nome da lei / o crime
cometido em nome da lei?” 8 Enquanto o crime cometido em nome da lei (o genocídio dos índios, por
exemplo, ou o tráfico dos negros) permaneceu exterior ao território europeu, ele não feria em nada a
autoridade dos grandes Sujeitos do ocidente, muito pelo contrário, mas, quando o crime foi cometido no
interior e conduziu a autodestruição da civilização europeia, esses grandes Sujeitos se encontraram
deslegitimados em bloco (Dufour, 2005, pp. 58-59).
8
G. Luca, Héros-Limite, Gallimard, Paris, 2001, cf. “ŒdipeSphinx” [1976], p. 206.
72
revolução provocada pela invenção da psicanálise, a subversão no campo das artes provocada
por Picasso e Braque, a aparição de Fernando Pessoa próximo a 1914 dando novos rumos a
poesia. Isso só para citar alguns dos incontáveis prodígios do período. Temos, portanto, em
relação ao século que se inicia, a mesma expectativa de tempos melhores indicada por Freud
em relação à civilização (Freud, 1930/2010, p. 64).
Tal período promissor da Belle époque, como dito há pouco, coincide com o ápice da
colonização europeia.
[...] o período bendito é também o apogeu das conquistas coloniais, da influência europeia
sobre a terra inteira, ou quase. E que assim, em outro lugar, longe, mas também bem perto das almas, e
em cada família, a servidão e o massacre já estão presentes. Desde antes da primeira Guerra existe a
África, entregue ao que algumas raras testemunhas ou artistas dirão ser presunçosa selvageria de
conquista. Eu mesmo olho com horror o dicionário Larousse de 1932, transmitido pelos meus pais, em
que, no registro da hierarquia das raças, tratado como evidente para todos, é desenhado o crânio do
negro entre o do gorila e o do europeu (Badiou, 2007, p. 20).
Isso salta aos olhos em O mal-estar da civilização, onde Freud (1930/1910) antevê os
acontecimentos de seu tempo e mesmo antecipa com extrema clareza o que está por vir. Uma
passagem exemplar, entre tantas que poderiam ser ressaltadas, diz respeito ao seu comentário
sobre a experiência soviética, em que, sem se posicionar contrariamente à proposta
revolucionária do modelo comunista, destaca a ingenuidade desse modelo em relação aos
homens e suas relações objetais, seja com outros humanos, seja com suas propriedades,
considerando-se que muitas vezes esses dois lugares se confundem e se misturam.
Outra antecipação de Freud (1930/2010) em relação ao seu tempo pode também ser
verificada quando ele concluiu que, ao final das contas, os homens, diante de tantas agruras,
não podem viver sem formações substitutivas. Lança, então, mão da poesia
Temos, portanto, desde os versos de Goethe, a ciência e a arte, para Freud realizações
supremas da humanidade, como alternativas à religião, que nosso autor, em seu artigo O
futuro de uma ilusão, compara à neurose obsessiva, considerando-a uma atitude infantil da
humanidade frente ao seu inegável desamparo. Nesse mesmo artigo, prevê que os avanços
científicos acabarão por derrubar a ilusão religiosa pela via da razão (Freud, 1927/1990).
A partir dos elementos articulados por Goethe em seu poema, Freud (1930/2010)
desenvolve propostas para o enfrentamento das vicissitudes impostas à humanidade. Primeiro
sugere as distrações que nos façam esquecer nossas desgraças; para tanto, nos lembra a saída
proposta por Voltaire (1563/1996) ao final de seu livro Cândido, onde a personagem, frente a
todas as desventuras vividas no decorrer da narrativa insiste em que “[...] devemos cultivar
nosso jardim” (Voltaire, 1563/1996, p. 94), se referindo ao seu encontro com um interlocutor
camponês que lhe diz que o cultivo da terra seria um bom caminho para se livrar dos vícios do
tédio e da necessidade. Tal saída é vista por Freud como análoga ao trabalho científico, que
seria uma forma de extrair luz de nossas desgraças, trazendo como acréscimo inestimáveis
contribuições à humanidade.
Em relação às artes, Freud (1930/2010) argumenta que, considerando a dimensão da
importância da realidade psíquica em nossas vidas, as ilusões produzidas pelas obras de arte
podem ser um artifício engenhoso para nos distrair por alguns momentos de nossa trágica
9
“WerWisseschaft und Kunstbesizt,/ hat auch Religion;/Werjenebeidennichtbesizt,/ der habe Religion”, Goethe,
“ZahmenXenien.
74
Miller (2005b), em artigo por nós traduzido livremente, encontra-se, como vários
autores de seu tempo, às voltas com articulações entre psicanálise e sociedade. Ao se referir à
sociedade, o autor precisa que ela seria nosso Outro. Mais à frente, pondera que se utiliza do
termo “sociedade” para se fazer entender, mas na verdade a sociedade é algo da ordem do
imaginário, um ato de fé numa espécie de divindade social.
Sem dúvida, a sociedade é um conceito duvidoso. Lacan fala de laço social — faz isso
precisamente para não perturbar-nos — e isto nos permite seguir sonhando. O laço social quer dizer que
o sujeito não está só com seu isso, seu eu e seu supereu, que a verdade da vida psíquica não é um
solipsismo, que o sujeito não é autista, que está sempre no campo do Outro, e inclusive, o campo do
Outro precede ao sujeito, o sujeito nasce no campo do Outro. Mas laço social não é equivalente a
sociedade (Miller, 2005b).
Vemos, portanto, no início de seu ensino, o elevado status dado pelo autor à
instituição família no processo de constituição dos sujeitos, incluindo inclusive a
hereditariedade psíquica. Mais à frente, na apresentação de um segundo fragmento clínico da
contemporaneidade, discutiremos a posição lacaniana em relação aos efeitos das mudanças
77
Lacan, portanto, acaba por formalizar uma diferença entre o ideal de eu e o supereu,
instâncias sobrepostas por Freud, que na maioria das vezes as toma como sinônimos, não
tendo se dedicado a uma diferenciação mais rigorosa entre elas como faz Lacan.
Para avançar na discussão a respeito do ideal de eu, retomaremos um clássico
lacaniano, que, embora apresentado como uma comunicação de 17 de julho de 1947, já havia
sido apresentado “[...] treze anos antes, isto é, em 1936, inclusive sendo apresentadas por duas
vezes em duas instituições de psicanálise: na sociedade psicanalítica de Paris (SSP) e na
International Pshicoanalitical Association (IPA)” (Boni Junior, 2010, p. 16).
Trata-se do artigo O estádio do espelho como formador do eu10 tal como nos é
apresentado na teoria psicanalítica. Como podemos constatar, é um artigo que antecede os
Complexos familiares e é praticamente contemporâneo a ele. Nesse trabalho, Lacan
(1947/1998), fazendo articulações com a psicologia comparada e mesmo com a neurologia,
traz contribuições significativas ao nosso tema de pesquisa. Ele inicia comparando o filhote
humano com o chimpanzé, ressaltando que, por um breve período, o chimpanzé supera o
filhote em inteligência. Extrai daí uma interessante observação: enquanto o chimpanzé, ao se
deparar com sua própria imagem no espelho, perde rapidamente seu interesse por ela,
provavelmente pela falta de utilidade prática de tal imagem, o filhote humano, por volta dos
seis meses, é capturado por sua imagem, ficando fascinado por ela.
[...] ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado
por algum suporte humano ou artificial (o que chamamos, na França, um trotte-bébé [um andador]),
supera, numa azáfama jubilatória, os entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posição
mais ou menos inclinada e resgatar, para fixá-lo, um aspecto instantâneo desta imagem (Lacan,
1947/1998, p. 97).
10
Neste caso, trata-se do termo francês Je, que na teoria lacaniana é entendido como sujeito do inconsciente.
79
Estamos aqui no domínio do imaginário, mas não podemos deixar de considerar, que
concomitantemente a esse encontro inusitado com sua própria imagem, é dito ao infans, que
aquela imagem é ele. Temos, portanto, uma situação em que o sujeito é apontado como
estando em outro lugar, fora de si. Daí voltarmos à célebre frase de Rimbaud: Je est un autre.
O autor, entretanto, não deixa de salientar que esse momento traz impressões
contraditórias, pois a harmonia da imagem especular não coincide com as sensações desse
filhote prematuro, totalmente dependente de um Outro primordial para sua própria
sobrevivência. Nesse momento, onde o desenvolvimento neurológico se dá no sentido céfalo-
caudal, diferentemente da imagem harmônica, o pequeno filhote tem antes uma turbulência
interna que provavelmente dificulta sua identificação primordial. Isso “[...] antes de se
objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no
universal, sua função de sujeito” (Lacan, 1947/1998, p. 97).
Temos, portanto, já neste momento do ensino de Lacan, indicativos dos campos do
Real, do Simbólico e do Imaginário. O real, representado literalmente pela prematuridade
neurobiológica dos filhotes humanos; e o imaginário e o simbólico se entrelaçando nesse
momento inaugural, em que se dá a entrada no campo da linguagem e se estabelecem os
primeiros laços sociais mediadores das relações civilizatórias.
Anterior à entrada na dialética identificatória através da qual se constituem os sujeitos,
encontramos destacado o Ideal Ich freudiano. Esse eu ideal, talvez pela peculiaridade da
condição prematura em que nascem os humanos, nunca vai coincidir totalmente com a
objetividade do eu de cada sujeito, independentemente das tramas identificatórias construídas
por cada um ao longo de sua existência. Tal fato pode ser facilmente demonstrável, por
exemplo, pela estranheza que experimentamos ao ouvir nossa própria voz em algum
dispositivo de gravação ou ao ver nossa imagem em uma fotografia.
De qualquer modo, nosso pequeno sujeito, ao se constituir, primeiro se posiciona
narcisicamente, como nos indica Freud, quando argutamente percebe que o fascínio que os
bebês exercem em nós se deve exatamente à sua posição narcísica, manifesta em sua grande
indiferença em relação aos outros. “His Majesty the baby, tal como nós mesmos nos
imaginamos um dia.” (Freud, 1914/2004, p. 110, grifos do autor).
Retomemos a questão do narcisismo, já desenvolvida no primeiro capítulo,
acrescentando a visada lacaniana de eu ideal. O eu ideal, coincidente com o narcisismo
primário, vai se desfazendo frente às dificuldades inevitavelmente encontradas por cada um
de nós à medida que enveredamos pelo campo do social. A cada decepção em relação à ilusão
80
narcísica de completude, se erige um ideal que nós passamos a desejar alcançar. Esse seria o
caminho para a construção do Ideal de eu, que cresce em proporção direta ao gradual
desmoronamento de nosso eu ideal primordial totalmente narcísico.
Avançando com Lacan ([1956-1957] 1995), passemos ao seu O seminário, livro 4: a
relação de objeto, mais precisamente àquilo que ele nomeia o primeiro tempo do Édipo.
Nesse tempo, encontramos o filho identificado ao falo e formando com a mãe uma imaginária
célula narcísica. Na realidade, ainda não temos nesse momento um sujeito como tal, mas
apenas um ser pulsante entregue aos cuidados dessa mãe, que pode ou não fazê-lo coincidir
com um objeto fálico, dando, assim, a ele, um lugar no seu desejo. Um ponto importante
nesse momento é que essa mãe, simbólica, por se fazer presente ou ausente sem nenhuma
regulação externa a ela, surge como toda, como um Outro sem barra que encarna uma lei
caprichosa e arbitrária. Nesse sentido, ela parece coincidir com o pai terrível da horda
primeva freudiana. Se não houver a entrada de um terceiro que faça a função de barra para
essa mãe, existe um risco considerável de essa criança se fixar no campo da psicose, dentro da
linguagem, mas fora do discurso, no sentido dado por Lacan ([1969-1970] 1992) em O
seminário, livro 17: o avesso da psicanálise.
Não devemos, por isso, nos arvorar em diagnósticos apressados sustentados em
fenômenos observados na clínica. Como veremos no fragmento clínico apresentado ao final
deste capítulo, apesar de inúmeros indícios de uma relação mãe-filho como a apresentada
acima, não teremos como resultado um filho psicótico. Assim sendo, devemos antes estar
advertidos com relação às relações de compreensão; Lacan ([1955-1956] 1985) assevera:
“Comecem por não crer que vocês compreendem. Partam da ideia do mal-entendido
fundamental” (p. 30). Entendemos, assim, que uma saída, seja neurótica, seja perversa, seja
psicótica, se verifica não pelos sintomas, mas pela posição do sujeito frente ao Outro.
Voltemos à situação contemporânea tal como nos é apresentada por Dufour (2005). O
autor anuncia aí a morte do sujeito crítico cartesiano e do sujeito neurótico freudiano. Isso
porque, segundo ele, estamos atravessando uma crise sem precedentes em relação à existência
de grandes sujeitos que tenham a legitimidade necessária para ocupar substancialmente o
lugar do Outro. “[...] não digo que todos os indivíduos vão se tornar loucos, simplesmente
digo que, ao assegurar o advento e o êxito dessa forma sujeito ideal, os promotores do novo
capitalismo fazem grandes esforços para que eles se o tornem” (Dufour, 2005, p. 22).
Teríamos, então, na contemporaneidade, um mundo com certas modalidades
relacionais que poderiam propiciar deslizamentos mais frequentes para um campo social
psicotizante, o que não quer dizer que todos estão se tornando psicóticos, mas, no sentido
81
Temos, então, pela frente um desafio que vai além de simplesmente negar a existência
em relação à legitimidade da autoridade que perdurou até a modernidade. Parece-nos uma
questão irreversível, e nosso papel é verificar os efeitos dessa crise de legitimidade e avaliar
seus efeitos na clínica, a fim de buscar no campo das invenções saídas possíveis.
Em outubro de 1969, no momento em que ministrava O seminário, livro 17: o avesso
da psicanálise, Jacques Lacan, em resposta à Sra. Jenny Aubry, lhe entregou um manuscrito
que mais tarde foi publicado em Outros escritos (1969/2003) sob o título Nota sobre a
criança, que exploraremos mais detalhadamente no fragmento que encerra este capítulo.
Por ora, o que nos interessa é que logo em seu início o artigo fala da percepção de
Lacan em relação ao fracasso das utopias comunitárias. Não nos parece exagerado supor que
tais fracassos poderiam ser as propostas ideológicas fascistas, nazistas e comunistas relativas à
criação de um homem novo, como já discutimos a partir de Badiou (2007), acompanhadas do
episódio de Auschwitz, em relação ao qual faremos um último desdobramento, da falência do
controle da Igreja sobre a ciência e, por último, mas não menos importante, do declínio do
Nome-do-Pai e suas implicações na família contemporânea.
82
Com relação ao fracasso das ideologias, Badiou (2007), nos brinda com uma
sofisticada e sarcástica elaboração em relação a certos intelectuais franceses, que acreditamos
poder ser estendida aos dos demais países, ao menos os ocidentais, a saber:
Atualmente, isto é, no ano quarto do século XXI, só se fala dos direitos humanos e do retorno
do religioso. [...] Nesse jogo, até se veem certos intelectuais, na França, realmente ansiosos em
promover — num campo conflituoso agora selado pela guerra do Homem (ou do Direito) contra um
Deus (terrorista) — um significante mestre sobressalente. Renegados pelo gauchismo dos anos 70, estão
eles, entretanto, inconsoláveis com o fato de a “Revolução ter deixado de ser o nome de todo
acontecimento autêntico; de o antagonismo das políticas já não nos entregar a chave da História do
mundo, de ter soçobrado o caráter absoluto do Partido, das Massas e da Classe. Aí estão eles, pois,
pobres intelectuais sem recurso, em simetria com os falsos profetas barbudos e com seu Deus mais ou
menos petroleiro, ocupados em fazer do extermínio dos judeus pelos nazistas o acontecimento único e
sagrado do século XX: do antissemitismo, o conteúdo destinal da história da Europa; a palavra “judeu”
a designação vitimária de um absoluto sobressalente; e a palavra “árabe”, com custo escondida atrás de
Islâmico, a designação do bárbaro (Badiou, 2007, p. 250).
[...] A psicanálise não é uma psicologia [...] uma parte da obra de Lacan, contra a escola
americana, nos lembra que a psicanálise não é uma Psicologia, não é uma teoria do eu, de reforço ou
adaptação. A psicanálise tem a ver com a verdade do sujeito e de forma alguma com sua psicologia
(Badiou, 1996).
Prossegue dizendo que a psicologia é uma técnica e, como tal, não tem uma ética.
Uma técnica em si não é boa nem má. O que a qualifica como uma coisa ou outra é o objetivo
a ser alcançado por sua aplicação em um determinado contexto. Acreditamos poder [que é
possível] estender tais considerações à ciência em geral.
Ainda com Badiou (2007), voltemos a Auschwitz, implicitamente criticado como
utilizado de certa forma abusiva pelos intelectuais a que se refere. Tendo esse autor em alta
conta, não podemos deixar de lembrar o que faz do massacre dos judeus algo paradigmático e
inédito na história da humanidade. É claro que já houveram inúmeros massacres, mas em
83
nenhum deles, como o próprio Badiou reconhece no nazismo, havia uma política tão bem
elaborada, no sentido de desumanizar os judeus antes de exterminá-los, como nos lembra
Lebrun (2010), em relação à proibição seguida de punição aos alemães que se referissem aos
judeus como vítimas ou mortos. A ordem era para que fossem tratados como trapos ou
marionetes (p. 24). Talvez por isso o que aconteceu em Auschwitz marca uma falha da língua,
algo da ordem do inominável. Por outro lado, não podemos nos esquecer do horror de
Hiroxima, onde milhões de pessoas foram simplesmente obliteradas (Lebrun, 2004, p. 18).
Em relação à perda de controle da Igreja em relação à ciência, devemos ser prudentes.
Lacan (1964) tece considerações interessantes sobre a posição materialista e cientificista de
Freud revelando que “[...] a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto —
mesmo fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai — a
verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente” (Lacan, 1964/1988, p. 60).
Para Lacan, portanto, o cientificismo freudiano acaba por reforçar o lugar do Nome-
do-Pai. Entendemos que, quando fala da perda do controle da Igreja, Dufour (2005) está se
referindo não à questão do sagrado, mas ao lugar de Outro ocupado por essa instituição
durante séculos, funcionando, assim, como um dispositivo regulador e transmissor de uma
legitimidade da autoridade pela via da tradição, que como vimos há pouco, não funciona mais.
Em relação a Lacan (1964/1988), não devemos nos esquecer de que ele está
exatamente no momento de sua excomunhão da IPA, quando interrompeu seu seminário sobre
Os Nomes-do-Pai. Sabemos que essa pluralização não foi sem consequências, podendo
localizar um de seus maiores efeitos em O seminário, livro 23: Joyce, o sinthoma. Nesse
seminário, Lacan ([1975-1976] 2007), já em seu último ensino, reduz o Nome-do-Pai,
conceito elaborado por ele a partir do pai freudiano, fundamental para a dissolução do Édipo,
a uma forma, entre tantas, de fazer uma amarração entre real, simbólico e imaginário,
produzindo um sujeito razoavelmente estável.
Após tantas digressões, voltemos para O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise
([1969-1970] 1992). Logo de início, o autor indica que
[...] o que constitui meu discurso como uma tomada — disse eu — do projeto freudiano pelo
avesso. Escrito portanto bem antes dos acontecimentos — uma retomada pelo avesso.
O que isso quer dizer? Ocorreu-me com muita insistência no ano passado distinguir o que está
em questão no discurso como uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra, sempre mais
ou menos ocasional. O que prefiro disse, e até proclamei um dia, é um discurso sem palavras (Lacan,
[1969-1970] 1992, pp. 10-11).
84
Mesmo cientes da explicação que se segue ao fragmento acima, onde o autor esclarece
que sem palavras o discurso pode perfeitamente subsistir e que o que não poderia faltar seria a
linguagem sem a qual as palavras sucumbiriam, tal recorte nos remeteu a dois autores que
tomaram Lacan como referência maior em seus trabalhos.
Primeiro nos veio à lembrança um livro de Safouan (1993), cujo sugestivo título A
palavra ou a morte: como é possível uma sociedade humana? não nos passou despercebido.
Sem a pretensão de nos aprofundar nessa densa obra, gostaríamos de extrair dela algo que
segundo o próprio autor diz ter mudado sua perspectiva diante da psicanálise e seus efeitos
sobre os sujeitos. Trata-se de um episódio acontecido durante uma supervisão feita com o Dr.
Lacan; nela, o então neófito analista Safouan, fala ao supervisor de seu incômodo em relação
a um analisante:
“Mas senhor, este jovem (o “paciente” do qual eu me ocupara) vem ver-me três ou quatro
vezes por semana, conta-me histórias que não acabam mais, paga-me e se vai. O que eu tenho para lhe
dar em troca?” Resposta: “Ora, seu silêncio!” Depois de uma tal resposta, não se é mais o mesmo de
antes. Aquilo que para você era perplexidade, senão confusão, transforma-se, como por magia, em
trunfo, e mesmo em ferramenta (Safouan, 2003, p. 9).
Cremos poder supor nesse testemunho do autor, a antecipação do que mais tarde seria
formalizado por Lacan ([1969-1970] 1992) como sendo o discurso do analista, que tem no
silêncio a ferramenta, termo utilizado por Safouan, que faz surgir o analista como sujeito-
suposto-saber, a quem o analisante passa a endereçar seus significantes mestres.
Na mesma direção, nos lembramos de SILET, Os paradoxos da pulsão, de Freud a
Lacan. Nesse seminário, no qual também não iremos nos aprofundar, Miller (2005), discorre,
bem no início, sobre a questão do silêncio, articulando-o com a dificuldade em intitular o
seminário que se iniciava. Por fim, surge o significante Silet.
É latim. Para lhes dar uma referência gramatical léxica precisa, é a terceira pessoa do presente
do indicativo do verbo silere, que pode ser traduzido como a atividade de “permanecer silencioso”, no
sentido do verbo ativo. Quando se diz “calar-se”, imaginamos sempre que alguém nos faz calar.
Todavia, no fundo, trata-se da atividade de guardar silêncio. E se o ponho em latim, é porque Silet é um
sintagma completo. Não é preciso acrescentar um substantivo ou pronome para indicar o sujeito do
verbo. A ambiguidade permanece: é “ele” ou “ela”? Precisamente por essa razão é que o digo em latim
(Miller, 2005a, p. 11).
Mais uma vez temos o discurso do analista em destaque, onde o seu silêncio, tantas
vezes criticado por tantos, se revela como ativo e operante. O autor ainda se diverte nos
colocando a situação em termos de um jogo de adivinhação, qual seja, “O que há em comum
entre o analista e a pulsão? Resposta: o silêncio” (Miller, 2005a, p. 11).
85
Feitas as associações que nos ocorreram neste ponto, vamos esclarecer a novidade
lacaniana da formalização de quatros tipos de discurso, que definiriam as formas possíveis de
laço social dentro do campo da linguagem. Aqui devemos estar advertidos de que não está
ainda incluído o quinto discurso, o do capitalista, já comentado há pouco com Dufour (2005)
e que retomaremos adiante em detalhe. Lebrun (2009) lembra dos três impossíveis, extraídos
por Freud de um antigo provérbio alemão — são eles: governar, educar e tratar (este último
no sentido médico, que Freud substitui pelo termo psicanalisar). Parece-nos que os quarto
discursos teriam sido extraídos por Lacan desses três impossíveis destacados por Freud,
acrescentados de um discurso mais recente, que faz nascer a própria psicanálise, o discurso da
histérica, que entraria na série como fazer desejar.
Traremos a seguir do engenhoso dispositivo criado por Lacan ([1969-1970] 1992),
nomeado pelo termo quadrípodes e tentaremos esclarecer a dinâmica de seu funcionamento.
Temos acima e à esquerda, o agente, no sentido daquele que agencia o outro, situado à
sua frente. Abaixo do outro, temos a sua produção e, por último, abaixo do agente, a verdade.
Tomemos agora cada um dos quatro elementos que circulam no quadrípode, a fim de
esclarecer o que cada um deles significa. Por motivos didáticos utilizaremos, como Lacan
([1969-1970] 1992), o discurso do mestre para realizar o anunciado esclarecimento.
Como dissemos há pouco, podemos ter um discurso sem palavras, mas não sem a
linguagem. Lacan nos lembra, então, do que ele chama de sujeito, que seria resultado de “[...]
uma relação fundamental, aquela que defini como sendo a de um significante com um outro
significante” (Lacan, [1969-1970] 1992, p. 11). Podemos, a partir dessa assertiva, localizar
um ponto onde o autor dá ao sujeito o status de um efeito de linguagem. Articula, então, a
parte superior do quadrípode — S1 S2 —, destacando S1 como o significante mestre
numa posição de exterioridade que acaba por fazer surgir o campo do Outro, que antecede a
cada sujeito. O S2 por sua vez representa toda a bateria de significantes. Teríamos, assim, o
discurso enquanto um enunciado, como uma intervenção do significante mestre sobre S2, que
nessa estruturação representa não um conjunto disperso de significantes, mas uma rede já
estabelecida como um saber (Lacan, [1969-1970] 1992, p. 11).
Completando o quadrípode do discurso do mestre antigo, teríamos abaixo da barra,
recalcado, o $, o sujeito barrado. Do outro lado, abaixo do saber pertencente ao escravo
agenciado pelo senhor, nesse momento ocupando o lugar de mestre, teríamos a produção de
um gozo representado por a, objeto extraído do campo do Outro. Este gozo do Outro se
produz do lado do escravo, que, ao mesmo tempo que abre mão do próprio corpo, sustenta o
senhor no lugar de mestre através do reconhecimento deste como tal (Lacan, [1969-1970]
1992).
Ainda em relação ao discurso do mestre, Lacan lança nesse seminário uma
antecipação do que se passava em segredo no leste europeu, a saber, o declínio do
comunismo.
87
É singular ver que uma doutrina como a de Marx, que instaurou sua articulação sobre a função
da luta, da luta de classes, não impediu que dela nascesse aquilo que agora é justamente o problema que
se apresenta a todos, a saber, a manutenção de um discurso do senhor (Lacan, [1969-1970] 1992, p. 31).
O fato de que o tudo-saber tenha passado para o lugar do senhor, eis o que, longe de esclarecer,
torna mais opaco o que está em questão — isto é, a verdade. De onde sai isso, o fato de que haja nesse
lugar um significante de senhor? Pois é precisamente o S2 do senhor, mostrando o cerne do que está em
jogo na nova tirania do saber (Lacan, 1969-1970/1992).
O sinal de verdade está agora em outro lugar. Ele deve ser produzido pelos que substituem o
antigo escravo, isto é, pelos que são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis, tanto quanto os
outros. Sociedade de consumo, dizem por aí, Material humano, como se enunciou um tempo — sob os
aplausos de alguns que ali viram ternura (Lacan, [1969-1970] 1992, p. 33).
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.11
11
PESSOA, F. Autopsicografia.
89
Nele, o autor indica uma inversão do lado esquerdo, colocando o $ sobre o S1, que
nada mais é senão o capital, que passa, assim, a ocupar o lugar da verdade desse sujeito. Basta
observar atentamente a posição das setas que veremos que tal inversão reduz o sujeito a um
mero consumidor dos objetos a — em sua vertente mais-de-gozar — produzidos pelo saber
científico.
Em relação ao discurso do capitalista, elaborado por Lacan pouco tempo depois dos já
discutidos quatro discursos, Lima (2013) ressalta que tal discurso traz a peculiaridade de não
fazer laço social. Questionado se com a proposição do quinto discurso anunciado como aquele
que verdadeiramente reina soberano na modernidade, os outros quatro discursos ficaram, por
assim dizer, desatualizados ou mesmo inoperantes Lima (2013) é incisivo em responder que
absolutamente tal suposição não procede. Retoma o fato de que exatamente por tal discurso
não fazer laço social, qualidade essencial de todos os outros discursos, estes são essenciais
para compreendermos as relações estabelecidas entre os sujeitos falantes e mesmo operarmos
na posição de analistas. Segue apresentando uma descoberta de sua autoria a partir dos cinco
discursos cujos matemas se seguem:
90
Analisando a direção das setas que indicam as relações possíveis entre os quatro
elementos componentes de cada discurso, Lima (2013) descobre que nos quatro primeiros
discursos o sentido das setas leva invariavelmente à formação de uma banda de Moebius,
figura topológica que tem a característica de não apresentar dois lados, quais sejam, dentro e
fora. Dizendo de outra maneira, partindo-se de qualquer ponto da banda pode-se retornar ao
ponto inicial sem se mudar de lado. Tal peculiaridade é utilizada por Lacan para exemplificar
o inconsciente a partir da topologia, como algo que funciona numa lógica onde o conceito de
dentro e fora se acha excluído. O quinto discurso, entretanto, ao inverter as posições de $ e S1,
acaba por desfazer a banda de Moebius e com ela a característica de funcionamento da
dinâmica do Inconsciente estruturado como linguagem.
Mas, afinal, quais as consequências dessas mudanças que discutimos ao longo deste
capítulo? Lebrun (2008a), em seu livro A perversão comum: viver juntos sem outro, faz a
seguinte afirmação:
É incontestável que os modos de regulação social não funcionam mais como antes em nossas
sociedades. A referência à norma naturalmente admitida e reconhecida, ao ideal implicitamente
partilhado, à hierarquia veiculada pela tradição, todas essas coisas que cada geração, até ainda há pouco
se dava a incumbência de transmitir às seguintes, tudo isso — é o mínimo que se pode dizer — está
seriamente questionado (Lebrun, 2008a, p. 111).
Nesse fragmento, o autor parece resumir nossas articulações. Se ele afirma ser
inconteste tais argumentações, isso parece coincidir com o que discutimos a respeito da
pluralização do significante Nome-do-Pai, que faz com que passemos a viver juntos tendo
como norteadores referências, as mais diversas. Nesse sentido, Lebrun (2008a) acrescenta que
91
“[...] estamos diante de uma crise de referências, não sabemos mais a quais delas nos
agarrarmos para enfrentar as modificações introduzidas pelo triunfo irrestrito da modernidade
e dos valores que ela veicula”. Tal crise afeta de modo especial os recém-chegados, que de
alguma forma devem se fundar no campo do Outro, tal como discutiremos a partir de Dufour
(2005) no fragmento clínico que traremos adiante.
Se com Freud (1930/2012) nos perguntamos o que fazer com a agressividade que nos
habita, Lebrun (2008b) inicia seu trabalho O futuro do ódio, devaneando:
Como seria bom para nós, se o ódio não nos habitasse, se não estivesse em nós, se ele não nos
tivesse construído. O que acontece é que ele nos concerne, sim, eventualmente, na medida em que
podemos ser objeto ou vítima dele; que deveríamos reconhecer que ele existe, sim, e, infelizmente, que
nós não podemos impedi-lo de existir. E, se ele estivesse em outro lugar, no outro, próximo ou muito
longe, pouco importaria, mas não dentro das nossas próprias muralhas, não na nossa própria cidade, não
alojado em nosso próprio corpo! (Lebrun, 2008b, p. 13)
Nesse sentido ele é freudiano, apontando que antes mesmo de nos constituirmos
sujeitos, lá está o ódio, outra vertente de Tânatos, da pulsão de morte. Mas ódio de quem?
Então o autor argumenta que esse ódio está para além dos nossos primeiros outros, seja
nossos pais, seja outros, que nos introduziram no campo da linguagem; “[...]deveremos
imediatamente perceber que o ódio refere-se primeiro à linguagem” (Lebrun, 2008b, p. 15).
Ora, essa é a posição de Lacan (1964/1988) em O seminário, livro 11: os conceitos
fundamentais da psicanálise em relação ao encontro traumático discutido exaustivamente no
capítulo tiquê e autômaton, onde o autor indica que, em verdade, o encontro traumático não é
com o sexual, mas antes com a linguagem enquanto realidade representada.
Voltemos a Lebrun (2008b) e a questão do ódio que nos habita. Esse autor argumenta
que o ódio, até pouco tempo era suportado pelos pais ou seus substitutos, que literalmente o
suportavam sem titubear. A função principal dos pais como educadores era naturalmente
exercida pelo par parental. Acontece que a privatização da família indicada por Lebrun (2004)
acabou por encavilhar na relação entre pais e filhos um novo elemento: os pais, antes de tudo
educadores, passaram a ter uma nova e imperativa preocupação: não perder o amor dos filhos.
Essa nova posição traz como consequência um certo vacilo no momento de suportar o
ódio do pequeno infans, contrariando-o, impondo um não definitivo a certas exigências de
“vossa majestade o bebê”. Tal vacilo faz perdurar o todo-poder-infantil, termo que pode ser
equiparado ao natural narcisismo primário freudiano. Sabemos que o ódio que nos habita deve
ser barrado para que possa tomar outra direção, idealmente, ser sublimado. Essa mutação nos
laços sociais parentais passa a produzir novos sujeitos, não perversos, na acepção estrutural
92
lacaniana, mas com traços de perversão. (Lebrun, 2008b). Passemos a apresentação e análise
de um caso clínico supervisionado por nós para ilustrar e buscar avançar em nossa discussão.
12
Na ocasião fazíamos parte da equipe gestora de uma Secretaria Municipal de Saúde, acionada pelo Conselho
Tutelar para atendimento à demanda ora discutida.
93
Inicia-se, assim, um longo depoimento da mãe do quanto era bom o filho caçula de
quatro irmãos. Tudo isso testemunhado pelo jovem, um simpático garoto de aparência
infantil, quase angelical, que assistia a tudo impassível, sem esboçar nenhuma reação que
denotasse algum traço de agressividade. Nesse ponto poderíamos supor, com considerável
margem de acerto, que o adolescente em questão só estava ali de corpo presente, e a questão
de ausência de agressividade seria só uma miragem comumente tomada como verdade quando
caímos na armadilha das relações de compreensão, onde fazemos suposições sobre o outro a
partir de nós mesmos — aquilo que muitos psicólogos e outros profissionais da saúde e
assistência têm em grande conta: a empatia. Em verdade, consonantes com O seminário de
Jacques Lacan, livro 3: as psicoses ([1955-1956] 1992), frente ao silêncio do sujeito só
podemos deduzir que ele nada disse, estando provavelmente eclipsado e reduzido ao dizer da
mãe.
Seguindo a versão da mãe, aparece aquilo que seria, segundo ela, o motivo da evasão
escolar de seu filho: um computador. Desde que se apossou desse objeto precioso, com o
poder de conectar um sujeito ao mundo virtual, o jovem passa a ocupar todo seu tempo em
jogos e outros passatempos ofertados pela Web. Tudo o mais passa para uma segunda cena,
inclusive a escola. Como segue noite adentro conectado,13 o adolescente não consegue
acordar pela manhã para frequentar as aulas. Ao ser interrogada sobre a quem pertence o
computador e por que não é estabelecido um horário para seu uso, o que aparece é um silêncio
desconcertante.
Uma diferença crucial nesse caso, em relação ao apresentado no início da dissertação é
que nele pudemos fazer um curto-circuito em relação à psiquiatria, encaminhando a família
para um atendimento psicanalítico a ser feito por um estagiário supervisionado por este autor,
que à época atuava como supervisor de estágios em uma faculdade de psicologia local. O
representante do Conselho Tutelar, por sua vez, se comprometeu a buscar alternativas para a
reinserção do jovem na rede de ensino público.
Nesse primeiro momento, o que chama a atenção é a ausência do pai, convocado junto
com a mãe para uma entrevista inicial. Ao ser indagada sobre a ausência de seu marido, a mãe
responde com certo desdém que ele não costuma se envolver nesses problemas. Pode-se
perceber desde o início indícios da existência de uma ausência ou precariedade da função do
13
Bauman (2004) estabelece uma discussão em relação às conexões, termo que, segundo ele, estaria substituindo
as relações humanas no espaço virtual da web. As consequências dessa substituição seriam o estabelecimento de
laços sociais inconsistentes, sem garantia de nenhuma estabilidade. É possível simplesmente desconectar alguém
de nosso campo relacional, da mesma forma que podemos ser “deletados” por outrem sem sequer sabermos por
quê. Frequentemente esses laços ‘”frouxos”, que de certa forma isentam os sujeitos de uma responsabilização
frente aos outros, acabam por produzir angústia naqueles que deles fazem uso.
94
pai, que apesar de nossa insistência, nunca compareceu às entrevistas agendadas. Isso nos faz
pensar que, embora tenha cumprido sua função de interdição estrutural, posto não se tratar de
uma psicose, esse pai não aparece quando buscado na puberdade, momento da revivência do
Édipo (Freud, 1905/1990). A mãe, por sua vez, insiste em um discurso que gira sempre em
torno de apontar empecilhos a toda e qualquer proposta feita pelos agentes responsáveis por
fazer o filho retornar à escola.
No segundo encontro, embora o analista tenha convocado o jovem, surge novamente
sua mãe, contrariando a orientação do nosso analista neófito, que inadvertidamente permite a
ela a continuidade de seu discurso sobre o filho, ou seja, o filho ainda permanece sendo dito
pelo Outro, no caso, a mãe. Ela comenta, en passant, sobre a manifestação do desejo de seu
filho em retornar às aulas, mas imediatamente retoma a série de impedimentos tomados como
justificativas para manter o filho fora da escola: o horário noturno traz vários riscos, o trajeto
que leva à escola é perigoso, as pessoas com as quais vai se relacionar são mais velhas que ele
e não são de boa índole; enfim, “meu filho ainda não foi preparado para dar conta sozinho, ele
ainda é muito novo”.
Em continuidade às primeiras entrevistas, nosso estagiário finalmente recebe o jovem
em questão. Diferentemente do discurso da mãe, ele apresenta um fato pontual como motivo
de seu abandono escolar: um comentário feito por um colega sobre a aparência de seu cabelo.
A partir desse momento ele passa a se olhar no espelho com grande frequência e começa a
sentir vergonha de seu corpo, a se achar horrível, o que, segundo ele, torna insuportável sua
ida à escola, onde estaria exposto ao olhar dos outros.
Coincidindo com o abandono da escola surge uma mudança que não é sem
consequências. Esse jovem, o mais novo de uma família de quatro irmãos, mora não com seus
pais, mas com a avó, que tem uma casa no mesmo lote de sua antiga residência. Ele justifica
que se mudou por falta de espaço na casa dos pais, por volta de seus doze anos. Esclarece que
sempre dormiu na cama com os pais por sentir medo de dormir sozinho. Com o seu
crescimento o espaço foi ficando insuficiente para os três. Surge, então, uma situação
inusitada: para solucionar o problema, é o pai que se retira da cama do casal e passa a dormir
no sofá. Ao se perceber na cama de casal, sozinho com a mãe, o púbere se retira
imediatamente indo morar na casa da avó, onde passa a ter seu próprio quarto. Ressalta
espontaneamente que estava ocupando o lugar que pertencia ao pai por direito. Não podemos
deixar de reconhecer nessa situação a coincidência com o momento em que, segundo Freud, o
Édipo é revivido, agora com possibilidades reais de ser consumado o desejo sexual recalcado,
momento em que o sujeito foge horrorizado (Freud, 1905/1990, p. 212).
95
Mulher
de uma lei simbólica encontra-se inscrito em seu inconsciente. O que parece acontecer é que,
ao buscar o pai, ele encontra um lugar vazio no desejo da mãe onde o pai deveria estar. Surge,
então, o desamparo e a paralisação desse sujeito, que talvez tenha a ver com o que Freud
(1926 [1925] 1996) nos apresenta como uma inibição sintomática, cuja função é evitar a
angústia.
A respeito da constituição subjetiva, Lacan (1969/2003), em Nota sobre a criança,
aponta as funções da mãe e do pai relativas ao desejo. Nesse ponto de seu ensino ele indica
que “[...] o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático
na estrutura familiar” (p. 369). Segundo o autor, casos em que a criança revela a verdade do
par parental, embora mais complexos, são de melhor prognóstico. Quando a subjetividade da
mãe se encontra envolvida, as chances de uma saída pela via de uma posição desejante do
infans se reduz, correndo-se o risco de ficar aprisionado na sedutora porém mortífera posição
de objeto a na fantasia da mãe. Ressalta que nessa situação a criança “[...] aliena em si
qualquer acesso possível da mãe a sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência e até a
exigência de ser protegida” (p. 370).
Ora, se o autor diz de uma exigência, pode-se inferir que a criança não está totalmente
passiva e assujeitada à mãe, que de algum modo há uma possibilidade de escolha; sendo
assim, mesmo não sendo uma saída típica, uma criança pode escapar à psicose. Talvez essa
tenha sido a escolha feita por nosso sujeito, posto que frente ao desvelamento do real do sexo,
esse púbere se desarvora diante do encontro inesperado, para o qual ele se encontra
despreparado, ficando numa posição de um não saber lidar com a dimensão pulsional do gozo
sexual da mãe em sua dimensão escópica, que surge de forma intrusiva, resultando em um
encontro traumático com um desejo descabido e inaceitável.
Diante de tal cena, sua reação, que muito provavelmente apresenta uma questão
relativa à própria subjetividade conforme a segunda possibilidade apresentada por Lacan
(1969, p. 369) é de fuga, o que nos permite pensar em uma saída neurótica, apesar da aparente
precariedade do pai, cujo nome não parece apresentar a potência necessária para vetorizar a
encarnação da lei no desejo.
Seguindo com Lacan (1973-1974), avancemos à décima lição de O seminário, livro
21: le non-dupes errent (inédito), onde é retomada a questão do significante do Nome-do-Pai
e sua função na metáfora paterna. O autor argumenta que o Nome-do-Pai, lugar de exceção e
da lei, tem alguma coisa a ver com o amor. Ressalta que a mãe tem uma tarefa imprescindível
em relação ao Nome-do-Pai, sendo a responsável pela apresentação deste ao filho. Quando
por algum motivo esse significante paterno não se apresenta, a mãe ainda pode exercer a
98
Ora, toda a dificuldade clínica está bem neste lugar: que uma mãe deva recorrer a Outro, passa
ainda, mas que às vezes deva consentir em entregar-se nas mãos de um terceiro para uma decisão que
não vai no sentido que lhe agrada é outra história! Uma coisa é que seja reconhecida terceiridade, outra
coisa que seja enunciada a partir dessa mesma terceiridade uma fala arrimada no corpo daquele que a
99
enuncia e que, além disso, essa fala seja reconhecida como legítima, por exemplo, ao poder referir-se ao
funcionamento do social (Lebrun, 2008a, p. 280).
apresenta no dia a dia ou aquele que, protegido pela suposta privacidade da web, ousa se
apresentar sob as mais diversas construções imaginárias possíveis — desde um loquaz sedutor
a um assassino violento e sanguinário até quaisquer outras produções fantasmáticas. Nosso
jovem, apesar de não descrever nenhuma peripécia que nos faça pensar em construções como
as citadas acima, simplesmente faz desaparecer sua imagem nas relações virtuais, o que pode
ser indício de um eclipsamento subjetivo facilitado pelo campo virtual.
Ainda em relação ao estabelecimento quase exclusivo de laços sociais no campo
virtual, poderíamos, acompanhando Bauman (2004), pensar na fluidez e inconsistência dessa
modalidade de enlaçamento. Em seu livro Amor líquido esse autor supõe que os antigos
relacionamentos estabelecidos entre as pessoas estão sendo substituídos por conexões. Ele
sugere que, na atualidade, cada vez mais as pessoas não se relacionam, mas antes, se
conectam, fazendo alusão à facilidade oferecida aos sujeitos pelo mundo virtual em
simplesmente poder se desconectar excluindo, assim, do seu campo social pessoas que podem
ter estado em contato, tendo inclusive estabelecido vínculos afetivos, por dias semanas ou até
anos seguidos.
Essa falta de consistência ou de garantias em relação a um outro significativo, embora
de certa forma sempre tenha existido na civilização, toma uma forma radical, como
encontramos, por exemplo, na formidável obra de Milan Kundera (1983), intitulada A
insustentável leveza do ser. Nela, como em Amor líquido, é possível perceber claramente a
impossibilidade de se estabelecer uma relação amorosa através de laços inconsistentes, prestes
a se romper a qualquer momento sem a necessidade de nenhuma justificativa. Dizendo de
outra forma, o amor exige sacrifícios, exige renúncias que os sujeitos pós-modernos não
parecem dispostos a sustentar.
Não devemos, todavia, recuar diante desse desafio imposto à clínica psicanalítica pela
contemporaneidade. Lembremos que o método psicanalítico parte da clínica para então, a
posteriori, ser teorizado. O mestre vienense estabeleceu seus textos metapsicológicos após
anos de prática clínica. Mesmo tendo atuado como um dedicado pesquisador/analista durante
todo o seu percurso, Freud (1912/2010) em um de seus artigos sobre técnica, recomenda
explicitamente evitar elaborações teóricas durante um tratamento psicanalítico, pois se corre o
risco de contaminá-lo com as expectativas do próprio analista. Diante das dificuldades
inerentes a uma clínica que se pauta na ética do bem-dizer, não devemos recuar, mas avançar
sempre, sabendo que somos desbravadores de um Real que não cessa de não se inscrever.
n
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
um sonho que prolonga seu sono acrescentando a realidade externa de um barulho de uma
batida ao conteúdo onírico, numa interessante perspectiva.
Veja para o que eu os dirijo — para a simetria dessa estrutura que me faz, depois da batida do
despertar, só poder me sustentar, em aparência, numa relação para com minha representação, a qual, em
aparência, faz de mim apenas consciência. Reflexo de algum modo, involutivo — em minha
consciência, é apenas minha representação que eu reapreendo (Lacan, 1964/1988, p. 58).
Temos aqui a suposição de que o nosso eu se “dissolve” durante o sono, dando lugar
ao inconsciente, para Lacan (1964) estruturado como uma linguagem, que seria o lugar de
nossa verdade. Quando despertamos, retomamos apenas uma pequena parte de um arranjo
mais complexo. Essa pequena parte é o nosso eu consciente que nos representa no campo da
realidade. Lembremos com Milner (2006) que a realidade é imaginária, enquanto o que nos
nomeia nos fazendo um é da dimensão simbólica. “Diante de S que distingue e de I que liga,
R é, portanto, o indistinto e o disperso como tais; o que, em sua linguagem bivalente, Freud
opunha como Tanatos ao Eros da ligação” (Milner, 2006, p. 9). Novamente nos deparamos
com a pulsão e a linguagem numa relação que talvez pudéssemos considerar como dialética,
podendo mesmo adicionar o laço social enquanto o que constitui a realidade como tal.
Entretanto, surge também algo da ordem do irrepresentável, não dialetizável, poderíamos
talvez dizer.
Também no seminário 11 comentado acima, Lacan (1964/1993) retoma a Carta 52,
lembrando estar nela a essência do sétimo capítulo da Traumdeutung, onde Freud, retomando
as camadas superpostas dos arranjos dos traços mnêmicos e destacando, como fizemos há
pouco, a instância onde os traços se juntam aos restos de palavras fazendo surgir o eu, a
Vorbewusstsein (pré-consciência) . Lacan, avançando até o modelo ótico freudiano nos indica:
Aí está o lugar em que se joga a questão do sujeito do inconsciente. E não é, diz Freud, um
lugar especial, anatômico, se não, como concebê-lo tal como nos é apresentado? — imenso
desdobramento, espectro especial, situado entre percepção e consciência, como se diz entre couro e
carne, Vocês sabem que esses dois elementos formarão mais tarde, quando se tratar de estabelecer a
segunda tópica, o sistema percepção-consciência. Wahrnehmung-Bewusstsein, mas não se deve
esquecer então o intervalo que os separa, no qual está o lugar do Outro, onde o sujeito se constitui
(Lacan, 1964/1993, p. 48).
aquilo que um significante representa para outro significante. É nessa hiância que surge, em
sua forma fugaz e fugidia, o tal sujeito do inconsciente.
Para compreender a questão de um resto irremovível, vamos à Televisão, onde Lacan
nos brinda com a seguinte pérola: “Digo sempre a verdade; não toda, porque dizê-la toda não
se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente; faltam as palavras. É justamente por
esse impossível que a verdade provém do real” (Lacan, 1974/1993, p. 11). Tomamos essa
edição mais antiga em vez de lançar mão da tradução mais recente contida nos Outros escritos
(2003) por um pequeno detalhe que a nosso ver faz toda a diferença. Trata-se de uma nota de
tradução referente ao final da citação acima. Nessa nota, o tradutor Antônio Quinet nos
esclarece que no programa que foi ao ar na televisão francesa Lacan diz “[...] la verité touche
au réel” (p. 85). Entendemos que essa expressão nos revela a verdade em relação ao real, qual
seja, a de sempre nos escapar, deixando sempre um resto impossível de ser dito. Pouco tempo
antes, Lacan ([1969-1970] 1992), falando sobre as mulheres e sua relação peculiar com a
verdade, arremata dizendo: “Mas a verdade não permite, mesmo em nosso contexto, um
acesso fácil. Como certos pássaros, de que me falavam quando eu era pequeno, ela só é
capturada se se colocar sal em sua cauda” (p. 58). Ora, se pudéssemos nos aproximar o
bastante a ponto de poder “salpicar” a cauda de tais pássaros, não seria mais fácil apanhá-los
num salto? Eis aí o estatuto da verdade: quando estamos prestes a capturá-la, ela nos escapa.
Mas afinal qual seria nossa verdade senão a de que nos constituímos em torno de um
vazio. É assim que Lebrun (2008b) argumenta para responder:
[...] por que o ódio? Digamos que ele ocorre cada vez que o subterfúgio é desmascarado, cada
vez que nos fica evidente que é o vazio que habita o cheio, o buraco que está no coração do vaso, cada
vez que se ouve repetidamente que o que cremos ser consistente e sólido não é senão frágil e precário
(p. 23).
Tal vazio está diretamente relacionado à linguagem ou, mais exatamente, ao fato de
habitarmos a fala. Falar implica evocar o que não está presente; podemos discorrer sobre as
pirâmides do Egito, sobre o Expresso do Oriente ou seja lá do que for. Mas pagamos um alto
preço por nossa habitação, qual seja, “[...] é como se nossa relação com a realidade ficasse
afetada dessa distância da qual a linguagem nos autorizou e condenou no mesmo movimento”
(Lebrun, 2008b, p. 23).
Mais uma vez, desta feita acompanhando Lebrun (2008b), lancemos mão da poesia,
que em diversas ocasiões produz um efeito de verdade que supera em muito o saber científico.
Trata-se do seguinte trecho de um poema de Henry Michaux, citado por Lebrun: “Senhor
104
Tigre, é um toque de clarim em todo o seu ser quando percebe a sua presa [...]. Quem ousa
comparar seus segundos com aqueles? Quem, em toda a sua vida, teve somente dez segundos
tigre?” (p. 23).
Diferentes do animal, quando nos lançamos em direção ao objeto, é sempre um
encontro faltoso por definição. Em termos freudianos diríamos que é sempre um reencontro
com um objeto desde sempre perdido. Com Lacan, diríamos que nos resta do pequeno
perverso polimorfo freudiano um corpo mortificado pela incidência do significante sobre nós,
que se traduz num deserto de gozo com alguns oásis mais ou menos bem localizados.
Tomando a questão do sujeito enquanto efeito de linguagem, Lacan ([1969-1970]
1992) retoma o traço primário freudiano de onde deriva seu conceito de traço unário, tomado
como o que há de mais simples em uma marca, como sendo a origem do significante. “[...] é
no traço unário que tem origem tudo que nos interessa, a nós, psicanalistas, como saber”
(Lacan, 1969-1970/1992, p. 48). Como já discutido no capítulo terceiro desta dissertação (p.
86) é nesse momento inaugural que vemos o nascimento do sujeito — um significante
representando um sujeito para outro significante. Podemos, a partir das articulações feitas
acima, inferir que daí nasce a repetição, que nada mais é do que o resultado de uma perda que
busca incessantemente ser recuperada. Temos, pois, o inconsciente enquanto cadeia de
significantes persistindo e determinando os sujeitos por toda a vida, outra forma de dizer da
indestrutibilidade do desejo freudiano, posto que há sempre uma perda irrecuperável. O
sujeito do inconsciente, por sua vez, diferentemente do inconsciente enquanto cadeia de
significantes, apresenta-se eventualmente como uma figura evanescente que vez por outra
surge para, em seguida, desaparecer.
Abordemos agora a questão da Lei, essencial para a manutenção de uma certa ordem
em qualquer sociedade. Nas sociedades animais, temos as leis da natureza, mas os humanos,
por serem falantes, estão excluídos desse campo. Na tentativa de buscar uma explicação para
a fundação e a manutenção da humanidade, no segundo capítulo do presente trabalho
exploramos exaustivamente Totem e tabu, artigo em que o próprio Freud ([1912-1913] 2012)
faz uma pesquisa exaustiva se utilizando de vários autores e pesquisadores de sua época, a fim
de esclarecer ao máximo, a partir dos povos primitivos, uma plausível história de nossa
civilização. Em seu trabalho, o autor cria uma espécie de mito moderno para explicar a
fundação da civilização. Nesse mito — onde, segundo Lacan (p. 83 deste trabalho) Freud
acaba por proteger o pai — a lei simbólica surge a partir do assassínio do pai de uma mítica
horda primeva, cometido pelos filhotes machos, expulsos do bando por esse pai terrível que
detinha para si todas as fêmeas, encarnando, assim, uma lei arbitrária. Após a morte do pai, a
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fátria assassina realiza um banquete totêmico, que para os praticantes do canibalismo tem por
objetivo incorporar as qualidades do guerreiro morto. Isso porque, segundo Freud, esse pai
odiado era, ao mesmo tempo amado, invejado e admirado. Depois desse ato, ninguém ousou
ocupar o lugar do pai morto, que desta passa ao status de uma lei à qual todo homem deve se
submeter. Sobre esse pai mítico, Lacan ([1956-1957] 1995) considera que ele tenha sido
morto exatamente para demonstrar que era impossível matá-lo, fazendo inclusive alusão à
origem latina do verbo matar em algumas línguas, onde “tutare, quer dizer conservar” (p.
215).
Em relação à lei simbólica que organiza a civilização, encontramos em Freud e Lacan
articulações dela com o Deus do monoteísmo. Como já vimos, Freud acreditava no fim da
religião a partir do avanço da ciência; Lacan, por sua vez, nos diz que Deus é inconsciente,
outra forma de nomear o Outro. É a partir daí também que Lacan extrai seu conceito de
Nome-do-Pai, como lugar de exceção. Chegamos, então, a um dos pontos centrais do nosso
trabalho: o declínio do Nome-do-Pai na modernidade. Como organizar a sociedade sem o
Outro da tradição?
Miller (2005) faz interessantes articulações a respeito disso terminando por dizer que,
por volta dos anos 1970, a partir da formulação do discurso do capitalista surge uma nova era
onde os sujeitos não seriam mais determinados pelo discurso do Outro, estariam livres para
determinar a si mesmos, inventar seus próprios significantes-mestres. A partir daí teremos
infindáveis considerações de diversos pesquisadores contemporâneos, que não seríamos
capazes de esgotar. Apresentamos alguns deles durante o terceiro capítulo, como Lebrun
(2008a), que articulamos à discussão de Miller (2005), mais exatamente em relação à sua
advertência quanto ao desaparecimento do laço social de fato.
Além da referência acima, nos utilizamos fartamente da obra de Lebrun, com especial
destaque a sua ponderação a respeito da impossibilidade lógica da eliminação do lugar de
exceção feita nas paginas 81-82, suas elaborações sobre as modificações do modelo familiar
ao longo do tempo, além de outras importantes discussões propostas contidas no capítulo.
Outro autor importante em nossas elaborações teóricas foi Dufour (2005), através de sua obra
A arte de reduzir cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal, de onde retiramos
inclusive o ponto de referência que utilizamos para dizer do início e do ponto de fratura do
período histórico nomeado modernidade.
Alain Badiou, principalmente através de seu livro O século (2007) foi outra
contribuição inestimável, principalmente para melhor compreender o século XX, ápice da
modernidade e referência maior da fratura indicada por diversos pesquisadores como tendo
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