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Libro: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciÍncias sociais.

Perspectivas latino-
americanas. Edgardo Lander (org). ColecciÛn Sur Sur, CLACSO, Ciudad AutÛnoma de
Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.

Disponible en la World Wide Web: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/

RED DE BIBLIOTECAS VIRTUALES DE CIENCIAS SOCIALES DE AMERICA LATINA Y EL


CARIBE, DE LA RED DE CENTROS MIEMBROS DE CLACSO
http://www.clacso.org.ar/biblioteca
biblioteca@clacso.edu.ar
www.clacso.org

TÌtulos del Programa Sur-Sur

A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciÍncias sociais
Perspectivas latino-americanas

Edgardo Lander
(Organizador)

Textos completos
Õndice

ApresentaÁ„o da ediÁ„o em portuguÍs, 3


Carlos Walter Porto-GonÁalves

Pref·cio, 6
Francisco LÛpez Segrera

ApresentaÁ„o, 7
Edgardo Lander

CiÍncias sociais: saberes coloniais e eurocÍntricos, 8


Edgardo Lander

Europa, modernidade e eurocentrismo, 24


Enrique Dussel

A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfÈrio ocidental no horizonte conceitual da


modernidade, 33
Walter D. Mignolo

Natureza do pÛs-colonialismo: do eurocentrismo ao globocentrismo, 50


Fernando Coronil

O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalizaÁ„o ou pÛs-desenvolvimento?63


Arturo Escobar

CiÍncias sociais, violÍncia epistÍmica e o problema da ìinvenÁ„o do outroî, 80


Santiago Castro-GÛmez

Superar a exclus„o, conquistar a equidade: reformas, polÌticas e capacidades no


‚mbito social, 88
Alejandro Moreno

Abrir, ìimpensarî e redimensionar as ciÍncias sociais na AmÈrica Latina e Caribe


… possÌvel uma ciÍncia social n„o eurocÍntrica em nossa regi„o? 95
Francisco LÛpez Segrera

Colonialidade do poder, eurocentrismo e AmÈrica Latina, 107


AnÌbal Quijano

2
ApresentaÁ„o da ediÁ„o em portuguÍs

Carlos Walter Porto-GonÁalves*

A COLONIALIDADE DO SABER: eurocentrismo e ciÍncias sociais. Perspectivas Latino-americanas,


livro organizado por Edgardo Lander, È um marco nas ciÍncias sociais. Tomo o cuidado de evitar dizer
que se trata de um marco das ciÍncias sociais latino-americanas para n„o reproduzir a geopolÌtica do
conhecimento que, sob o eurocentrismo, caracteriza o conhecimento produzido fora dos centros
hegemÙnicos e escrito em outras lÌnguas n„o-hegemÙnicas como saberes locais ou regionais. … como
se houvesse um saber atÛpico, um saber-de-lugar-nenhum, que se quer universal, e capaz de dizer
quais saberes s„o locais ou regionais. Assim como cada um, de cada lugar do mundo, tem de assinalar
em seu endereÁo eletrÙnico o paÌs onde mora e de onde fala ñ.br (Brasil) ou .ve (Venezuela); ou .mx
(MÈxico) ou .cu (Cuba) ou .ar (Argentina) ou .co (ColÙmbia )ñ aquele que fala a partir dos EUA n„o
precisa apor .us ao seu endereÁo e, assim, È como se falasse de lugar-nenhum tornando familiar que
cada qual se veja, sempre, de um lugar determinado, enquanto haveria aqueles que falam como se
fossem do mundo e n„o de nenhuma parte especÌfica. No Brasil, h· o nordestino, o sulista e o nortista,
1
mas n„o h· o sudestino, nem o centro-oestista . Afinal, o sudeste È o centro e, como tal, n„o È parte. …
o todo! E a melhor dominaÁ„o, sabemos, È aquela que, naturalizada, n„o aparece como tal. J· houve
Època em que se opÙs o verbo ‡ aÁ„o. Todavia, a palavra, se verbo, indica aÁ„o.
N„o pense o leitor que ir· encontrar aqui mais uma vers„o de um terceiro-mundismo que durante muito
tempo comandou as an·lises crÌticas do pensamento social. N„o, o leitor encontrar· aqui uma refinada
an·lise que sabe dialogar com o legado de conhecimento europeu, enquanto um legado que tem seu topoi,
como diria Boaventura de Sousa Santos. Afinal, apesar dos europeus imporem seu capitalismo em toda
parte, isso n„o quer dizer que sua episteme dÍ conta de toda a complexidade das distintas formaÁıes sociais
que se constituÌram em cada lugar e regi„o do mundo nesse encontro, Etienne La BoÈtie chamou mal-
encontro, da Europa com outros mundos a partir de 1492, sobretudo. Assim, se Imannuel Wallerstein nos
falou de um sistema-mundo, AnÌbal Quijano a partir de um outro lugar subalterno, nos conduzir· ‡ idÈia de
um mundo moderno-colonial. Que o di·logo entre distintas matrizes de racionalidades e de distintos topoi
possa se fazer nos mostram os prÛprios I. Wallerstein e A . Quijano quando, juntos, nos indicam a idÈia de
um sistema-mundo moderno-colonial, mais completa e mais complexa.
A Colonialidade do Saber nos revela, ainda, que, para alÈm do legado de desigualdade e injustiÁa sociais
profundos do colonialismo e do imperialismo, j· assinalados pela teoria da dependÍncia e outras, h· um legado
epistemolÛgico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do prÛprio mundo em que
vivemos e das epistemes que lhes s„o prÛprias. Como nos disse Walter Mignolo, o fato de os gregos terem
2
inventado o pensamento filosÛfico , n„o quer dizer que tenham inventado O Pensamento. O pensamento est·
em todos os lugares onde os diferentes povos e suas culturas se desenvolveram e, assim, s„o m˙ltiplas as
epistemes com seus muitos mundos de vida. H·, assim, uma diversidade epistÍmica que comporta todo o
patrimÙnio da humanidade acerca da vida, das ·guas, da terra, do fogo, do ar, dos homens.
Aqui, nesse livro, a crÌtica ao eurocentrismo È uma crÌtica ‡ sua episteme e ‡ sua lÛgica que opera por
separaÁıes sucessivas e reducionismos v·rios. EspaÁo e Tempo, Natureza e Sociedade entre tantas. H·,
mesmo nos centros hegemÙnicos, aqueles que apontam esses limites e a prÛpria ciÍncia natural
eurocÍntrica revela seu di·logo com o pensamento oriental. EspaÁo e tempo È cada vez mais
espaÁo/tempo e, nas ciÍncias sociais, como aqui nesse livro È destacado, essa compreens„o n„o-
dicotÙmica nos permite ver que modernidade n„o È algo que surgiu na Europa e que, depois, se expandiria
pelo mundo, como se houvesse na geografia mundial um continuum de diferentes tempos, como no seu
evolucionismo unilinear. Entretanto, a Europa sÛ se coloca como centro do Mundo a partir da descoberta
da AmÈrica posto que, atÈ ali, sÛ uma parte marginal da atual Europa, Norte da It·lia e seus financistas, se
integravam no centro din‚mico comercial do mundo e que os turcos, em 1453, haviam politicamente
controlado quebrando aqueles circuitos. AtÈ ali, ir no caminho certo era se orientar! No Oriente, se
encontravam as chamadas grandes civilizaÁıes, inclusive, com suas religiıes tradicionais e o peso da
tradiÁ„o era ali t„o forte que, talvez, nos ajude a compreender o porquÍ da verdadeira obsess„o pelo novo
3
que caracterizar· o eurocentrismo e suas sucessivas fugas para a frente. Ao fundamentalismo
tradicionalista, o fundamentalismo do novo!
… essa vis„o eurocÍntrica que nos impedir· de ver que n„o h· um lugar ativo, a Europa, e lugares
passivos, a AmÈrica, por exemplo. Desde o inÌcio da primeira modernidade, sob hegemonia ibÈrica, que a
colonialidade lhe È constitutiva. A AmÈrica teve um papel protagÙnico, subalternizado È certo, sem o qual a
Europa n„o teria acumulado toda a riqueza e poder que concentrou. Sublinhemos que a teoria da moderno-
colonialidade ao ressaltar o papel protagÙnico subalternizado indica n„o um lugar menor da AmÈrica e maior
da Europa, como se poderia pensar nos marcos dicotomizantes do pensamento hegemÙnico. Ao contr·rio,

3
assinala que h· uma ordem geopolÌtica mundial que È conformada por uma clivagem estruturante moderno-
colonial e que sÛ pode ser compreendida a partir dessa tens„o que a habita.
O eurocentrismo tem-nos impedido de ver que, aqui, na AmÈrica, esse continente sem-nome prÛprio,
ao contr·rio da ¡sia e da ¡frica que se deram seus prÛprios nomes, È que se desenvolveram as primeiras
manufaturas modernas (sic) com seus engenhos para produzir aÁ˙car. Esses engenhos modernos (sic)
eram movidos a chibata. Aqui, nesta AmÈrica, se desenvolveram as primeiras cidades racionalmente
planejadas, planejadas para dominar. A cidade das letras de Angel Rama. Foi aqui, nesta AmÈrica que,
pela primeira vez, como nos ensina Hanna Arendt, que a humanidade descobriu que a misÈria humana
n„o era natural e podia ser revertida pela aÁ„o humana. Assim, foi nesta AmÈrica que o mundo ficou de
cabeÁa para baixo ñThe world upside downñ como diz o tÌtulo da m˙sica tocada em Yorktown na cerimÙnia
que pÙs fim ‡ Guerra de IndependÍncia estadunidense, inaugurando, ali, uma nova p·gina na geografia
polÌtica mundial, quando o poderoso impÈrio brit‚nico viu-se humilhado por um improvisado exÈrcito de
colonos, com uma boa ajuda francesa, diga-se de passagem. Foi nesse mesmo continente que, em 1804,
pela primeira vez, tentou-se uma dupla emancipaÁ„o, p·gina ainda aberta na geografia polÌtica mundial,
em que os negros do Haiti tentaram se emancipar, ao mesmo tempo, da FranÁa e dos brancos donos de
plantations naquela que, atÈ ent„o, era a mais rica colÙnia francesa. Ao contr·rio dos livros de histÛria que,
eurocentricamente, falam da histÛria da liberdade a partir da RevoluÁ„o Francesa ou da RevoluÁ„o
Americana ou, ainda, dos pressupostos do Iluminismo, foi no Haiti que, pela primeira vez, tentou-se a
liberdade para todos, independentemente de se ser branco e europeu. Thomas Jefferson e Napole„o,
assim como toda a elite crioula na AmÈrica, tiveram tanto medo do haitianismo como, mais tarde, seus
descendentes teriam do comunismo. Se tanta festa se fez, em 1992, para comemorar os 500 anos do 12
de outubro de 1492; em 1976, os 200 anos do 4 de julho de 1776 e, em 1989, os 200 anos do 14 de julho
de 1789, os 200 anos do 1804 haitiano passou sem comemoraÁ„o. Ou, pior, ali estavam, em 2004, as
tropas estadunidenses para, com o apoio da FranÁa e do Canad·, aplicar um coup díetat de velho estilo,
apeando do poder o presidente eleito na terra de Toussant de LíOverture. Talvez seja por isso que as
populaÁıes origin·rias de nuestra AmÈrica venham, hoje, comemorando n„o mais o 12 de outubro mas,
sim, o 11 de outubro, o seu o ˙ltimo dia de liberdade! Outros marcos, outras marcas. DescolonizaÁ„o do
pensamento.
AnÌbal Quijano numa assertiva antolÛgica nos d· a chave de nossa formaÁ„o especÌfica no contexto
do sistema-mundo moderno-colonial: na AmÈrica Latina o fim do colonialismo n„o significou o fim da
colonialidade. Pablo Gonz·lez-Casanova j· havia nos alertado, tambÈm para o colonialismo interno n„o
no sentido econÙmico, mas num sentido muito prÛximo ao de Quijano e que nos ajuda a entender por
que, na crise do estado que hoje nos acompanha, emergem os indÌgenas, os afrodescendentes, os
camponeses e o indigenato, como Darcy Ribeiro (1986) nomeava o campesinato etnicamente
diferenciado entre nÛs.
A Colonialidade do Saber, ao recuperar a simultaneidade dos diferentes lugares na conformaÁ„o de
nosso mundo: abre espaÁo para que m˙ltiplas epistemes dialoguem. Em nuestra AmÈrica mais que
hibridismos h· que se reconhecer que h· pensamentos que aprenderam a viver entre lÛgicas distintas, a
se mover entre diferentes cÛdigos e, por isso, mais que multiculturalismo sinaliza para
interculturalidades (S. R. Cucicanqui e C. Walsh, entre muitas e muitos), para gnoses liminares
(Mignolo), para di·logo de saberes (Leff, Porto-GonÁalves).
Estamos, pois, diante de um grande livro que nos abre amplas perspectivas teÛricas (e polÌticas) para
entender complexos processos, muitos dos quais postos em marcha por v·rios movimentos sociais que
tomam a nossa paisagem. N„o que tenhamos aqui intelectuais dos movimentos. O que temos aqui s„o
intelectuais que pıem em xeque, tambÈm, o lugar dos intelectuais e, assim, s„o intelectuais em
movimento. Abrem-se aqui boas pistas para que os intelectuais se encontrem com a vida e, quem sabe
assim, nos ajudem a reinventar a pÛlis, ou melhor, a plaza.

Bibliografia
Arendt, Hanna 1971 Sobre a RevoluÁ„o (Lisboa: Moraes Ed.).
Arendt, Hanna 1995 A CondiÁ„o Humana (Rio de Janeiro: Forense Universit·ria).
Assies, Willem 2000 ìLa oficializaciÛn de lo no oficial: øRe-encuentro de dos mundos?î. Curso Identidad, autonomÌa y
derechos indÌgenas: DesafÌos para el tercer Milenio, Arica, Chile.
Chiapas 2001 (MÈxico: UNAM/ERA) N{ 11.
Cusicanqui, Silvia Rivera 1990 ìEl potencial epistemolÛgico y teÛrico de la historia oral: de la lÛgica instrumental a la
descolonizaciÛn de la historiaî em Temas Sociales (La Paz) N{ 11.
Fals Borda, Orlando (org.) 1998 ParticipaciÛn popular: retos del futuro (Bogot·: ICFES/IEPRI/COLCIENCIAS).

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Lander, Edgardo (org.) 2000 La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas
latinoamericanas (Buenos Aires: CLACSO/UNESCO).
Leff, Enrique 2005 Racionalidad Ambiental: la reapropiacion social de la naturaleza (MÈxico: Siglo XXI).
Mignolo, Walter 2003 HistÛrias Locais/Projetos Globais (Belo Horizonte: UFMG).
Porto-GonÁalves, Carlos Walter 2000 ìPara alÈm da crÌtica aos paradigmas em crise: di·logo entre diferentes
matrizes de racionalidadeî. Anais do III Encontro Iberoamericano de EducaciÛn Ambiental, Caracas.
Porto-GonÁalves, Carlos Walter 2001 GeografÌas, movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentabilidad
(MÈxico: Siglo XXI).
Quijano, AnÌbal 2000 ìColonialidad del poder, eurocentrismo y AmÈrica Latinaî em Lander, Edgardo (org.) La
colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas (Buenos Aires:
CLACSO/UNESCO).
Quijano, AnÌbal 2004 ìEl laberinto de AmÈrica Latina. øHay otras salidas?î em OSAL (Buenos Aires: CLACSO) N{ 13,
enero-abril.
Rama, ¡ngel 1985 A Cidade das Letras (S„o Paulo: Ed. Brasiliense).
Ribeiro, Darcy 1986 AmÈrica Latina: A P·tria Grande (Rio de Janeiro: Ed. Guanabara).
Santos, Boaventura de Sousa (org.) 2002a Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa (Rio
de Janeiro: CivilizaÁ„o Brasileira).
Santos, Boaventura de Sousa (org.) 2002b Produzir para viver: os caminhos da produÁ„o n„o capitalista (Rio de Janeiro:
CivilizaÁ„o Brasileira).
Santos, Boaventura de Sousa (org.) 2003 Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural (Rio
de Janeiro: CivilizaÁ„o Brasileira).
Wallerstein, Immanuel 1998a ìEl espacio tiempo como base del conocimientoî em Fals Borda, Orlando (org.)
ParticipaciÛn popular: retos del futuro (Bogot·: ICFES/IEPRI/COLCIENCIAS).
Wallerstein, Immanuel 1998b Impensar las ciencias sociales (MÈxico: Siglo XXI).
Walsh, C. 2002 ìInterculturalidad, reformas constitucionales y pluralismo jurÌdicoî em Boletin ICCI-RIMAI (Quito) Ano 4,
N{ 36, marÁo. PublicaÁ„o mensal do Instituto CientÌfico de Culturas IndÌgenas.

Notas

* Carlos Walter Porto-GonÁalves È Professor do Programa de PÛs-graduaÁ„o em Geografia da Universidade Federal Fluminense,
membro do Grupo de Trabalho ëHegemonias e EmancipaÁıesí do Clacso e, em 2004, recebeu o PrÍmio Nacional de CiÍncia e
Tecnologia ñPrÍmio Chico Mendesñ do MinistÈrio do Meio Ambiente.
1 Referente ‡ regi„o Centro-Oeste, hoje dominada pelos grandes capitais (agronegÛcio, sobretudo) e, portanto, extens„o do Centro.
2 Ali·s, os gregos tiveram seu legado guardado durante muito tempo numa biblioteca no Egito, em Alexandria e, sÛ na geografia
construÌda a partir da moderno-colonialidade, a GrÈcia passou a ser considerada berÁo da civilizaÁ„o Ocidental. Fernando Coronil
nos dir·, ainda, que AristÛteles sÛ chegou a Paris no sÈculo XII e, mesmo assim, a partir de uma traduÁ„o feita em Toledo, atual
Espanha.
3 Umberto Eco chama fundamentalista aquela idÈia que n„o precisa ser argumentada, È fundamento. Assim, o novo È bom porque È
novo e, por obra desse raciocÌnio tautolÛgico que nos È imposto, o velho È ruim porque È velho. N„o se precisa entrar no mÈrito o
novo È consagrado e o velho demonizado!

5
Pref·cio
A UNIDADE REGIONAL de CiÍncias Sociais e Humanas para a AmÈrica Latina e Caribe com sede nos
escritÛrios da UNESCO em Caracas, a partir de conversas nossas durante o ano de 1997 com Immanuel
Wallerstein ñnesse momento Presidente da AssociaÁ„o Mundial de Sociologiañ e com Edgardo Lander,
tomou a decis„o de participar do Congresso Mundial de Sociologia (Montreal, 24 de julho a 2 de agosto de
1998) no simpÛsio Alternativas ao eurocentrismo e ao colonialismo no pensamento social latino-americano
contempor‚neo.
A perspectiva latino-americana acerca de temas-chave, como a colonialidade do saber e o impacto do
eurocentrismo nas ciÍncias sociais da regi„o, deu lugar a um frutÌfero debate que comeÁou no prÛprio
simpÛsio e teve continuidade durante um ano e meio de maneira virtual, coordenado por Edgardo Lander.
Os trabalhos que inicialmente se apresentaram enriqueceram-se ao serem reescritos, e decidiu-se
solicitar contribuiÁıes a outros autores especialistas no tema.
Sem a tenacidade e o talento de Edgardo Lander, fazendo sugestıes relevantes a todos os autores e
insistindo no cumprimento do cronograma, este livro ñA colonialidade do saber: eurocentrismo e ciÍncias
sociais. Perspectivas latino-americanasñ n„o teria sido possÌvel. A ele em primeiro lugar, como diretor do
projeto e editor da obra, e igualmente a todos os autores que contribuÌram com este livro, queremos
agradecer pelo esforÁo que redimensiona a presenÁa da UNESCO num tema-chave, j· abordado de outros
‚ngulos em valiosas histÛrias da AmÈrica Latina e da ¡frica da OrganizaÁ„o, entre outros textos e programas
que colocam a Ínfase neste polÍmico assunto, tambÈm tratado nos RelatÛrios Mundiais da UNESCO sobre
Cultura e CiÍncias Sociais.

Francisco LÛpez Segrera


Diretor UNESCO-Caracas/IESALC
Caracas, 2 de fevereiro de 2000

6
ApresentaÁ„o
ESTE LIVRO TEM ORIGEM no simpÛsio Alternativas ao eurocentrismo e colonialismo no pensamento
social latino-americano contempor‚neo, organizado no contexto do Congresso Mundial de Sociologia
realizado em Montreal, entre julho e agosto de 1998, com o patrocÌnio da Unidade Regional de CiÍncias
Sociais e Humanas para a AmÈrica Latina e o Caribe da UNESCO. O encontro foi convocado partindo-se do
seguinte texto:
O eurocentrismo e o colonialismo s„o como cebolas de m˙ltiplas camadas. Em diferentes momentos
histÛricos do pensamento social crÌtico latino-americano levantaram-se algumas destas camadas.
Posteriormente, sempre foi possÌvel reconhecer aspectos e dimensıes (novas camadas de ocultamento)
que n„o tinham sido identificadas pelas crÌticas anteriores.
Hoje nos encontramos diante de novos questionamentos globais e fundamentais dos conhecimentos e
disciplinas sociais em todo o mundo. O RelatÛrio Gulbenkian, coordenado por Immanuel Wallerstein, È
uma significativa express„o destas reflexıes, como tambÈm o s„o a crÌtica ao Orientalismo, os estudos
pÛs-coloniais, a crÌtica ao discurso colonial, os estudos subalternos, o afro-centrismo e o pÛs-
ocidentalismo.
O propÛsito deste simpÛsio È recolher, incorporando para isso uma perspectiva histÛrica, os debates
latino-americanos atuais a propÛsito desses assuntos. Num mundo no qual parecem impor-se por um lado o
pensamento ˙nico do neoliberalismo e, por outro, a fragmentaÁ„o e o ceticismo da pÛs-modernidade, quais
s„o as potencialidades que se est„o abrindo no continente no conhecimento, na polÌtica e na cultura a partir
da recolocaÁ„o destas questıes? Qual È a relaÁ„o destas perspectivas teÛricas com o ressurgimento das
lutas dos povos historicamente excluÌdos, como os povos negros e indÌgenas na AmÈrica Latina? Como se
colocam, a partir destes temas, os (velhos) debates sobre a identidade e tudo o que diz respeito ‡
miscigenaÁ„o, transculturaÁ„o e especificidade da experiÍncia histÛrico-cultural do continente? Quais s„o
hoje as possibilidades (e a realidade) de um di·logo feito a partir das regiıes excluÌdas subordinadas pelos
conhecimentos coloniais e eurocÍntricos (¡sia, ¡frica, AmÈrica Latina)?
No ano e meio posterior ‡ realizaÁ„o desse simpÛsio e a partir da continuidade dos interc‚mbios e
debates entre seus participantes, produziram-se tanto modificaÁıes importantes na maior parte dos textos
originais, como tambÈm a incorporaÁ„o de textos de outros autores que realizaram contribuiÁıes
significativas aos temas debatidos no simpÛsio. Desta maneira, este livro, longe de refletir a publicaÁ„o
tardia das apresentaÁıes realizadas num simpÛsio, condensa dois anos de trabalho coletivo que
certamente foram extremamente estimulantes para todos, especialmente para o editor. Quero aproveitar
novamente a oportunidade para agradecer a todos os autores ñparticipantes ou n„o do simpÛsioñ pela
riqueza do debate que hoje colocamos nas m„os dos leitores.
Quero reconhecer igualmente o apoio com que contou este projeto desde que foi inicialmente pensado h·
trÍs anos por parte de Francisco LÛpez Segrera em seu duplo papel de patrocinador (Conselheiro Regional
de CiÍncias Sociais da UNESCO para a AmÈrica Latina e o Caribe) e como participante acadÍmico.
Por ˙ltimo, last but not least, quero agradecer pela qualidade do paciente e inestim·vel trabalho editorial
realizado por Julieta Mirabal para a publicaÁ„o deste livro.
Edgardo Lander
Caracas, janeiro de 2000

7
CiÍncias sociais: saberes coloniais e eurocÍntricos1

Edgardo Lander*

NOS DEBATES POLÕTICOS e em diversos campos das ciÍncias sociais, tÍm sido notÛrias as dificuldades
para formular alternativas teÛricas e polÌticas ‡ primazia total do mercado, cuja defesa mais coerente foi
formulada pelo neoliberalismo. Essas dificuldades devem-se, em larga medida, ao fato de que o
neoliberalismo È debatido e combatido como uma teoria econÙmica, quando na realidade deve ser
compreendido como o discurso hegemÙnico de um modelo civilizatÛrio, isto È, como uma extraordin·ria
sÌntese dos pressupostos e dos valores b·sicos da sociedade liberal moderna no que diz respeito ao ser
humano, ‡ riqueza, ‡ natureza, ‡ histÛria, ao progresso, ao conhecimento e ‡ boa vida. As alternativas ‡s
propostas neoliberais e ao modelo de vida que representam n„o podem ser buscados em outros modelos ou
teorias no campo da economia, visto que a prÛpria economia como disciplina cientÌfica assume, em sua
essÍncia, a vis„o de mundo liberal.
A express„o mais potente da efic·cia do pensamento cientÌfico moderno ñespecialmente em suas
expressıes tecnocr·ticas e neoliberais hoje hegemÙnicasñ È o que pode ser literalmente descrito como a
naturalizaÁ„o das relaÁıes sociais, a noÁ„o de acordo com a qual as caracterÌsticas da sociedade chamada
moderna s„o a express„o das tendÍncias espont‚neas e naturais do desenvolvimento histÛrico da
sociedade. A sociedade liberal constitui ñde acordo com esta perspectivañ n„o apenas a ordem social
desej·vel, mas tambÈm a ˙nica possÌvel. Essa È a concepÁ„o segundo a qual nos encontramos numa linha
de chegada, sociedade sem ideologias, modelo civilizatÛrio ˙nico, globalizado, universal, que torna
desnecess·ria a polÌtica, na medida em que j· n„o h· alternativas possÌveis a este modo de vida.
Essa forÁa hegemÙnica do pensamento neoliberal, sua capacidade de apresentar sua prÛpria narrativa
histÛrica como conhecimento objetivo, cientÌfico e universal e sua vis„o da sociedade moderna como a forma
mais avanÁada ñe, no entanto, a mais normalñ da experiÍncia humana, est· apoiada em condiÁıes histÛrico-
culturais especÌficas. O neoliberalismo È um excepcional extrato purificado e, portanto, despojado de tensıes
e contradiÁıes, de tendÍncias e opÁıes civilizatÛrias que tÍm uma longa histÛria na sociedade ocidental. Isso
lhe d· a capacidade de constituir-se no senso comum da sociedade moderna. A efic·cia hegemÙnica atual
desta sÌntese sustenta-se nas tectÙnicas transformaÁıes nas relaÁıes de poder ocorridas no mundo nas
˙ltimas dÈcadas. O desaparecimento ou derrota das principais oposiÁıes polÌticas que historicamente se
confrontavam com a sociedade liberal (o socialismo real e as organizaÁıes e lutas populares anticapitalistas
em todas as partes do mundo), bem como a riqueza e o poderio militar sem rivais das sociedades industriais
do Norte, contribuem para a imagem da sociedade liberal de mercado como a ˙nica opÁ„o possÌvel, como o
fim da HistÛria. No entanto, a naturalizaÁ„o da sociedade liberal como a forma mais avanÁada e normal de
existÍncia humana n„o È uma construÁ„o recente que possa ser atribuÌda ao pensamento neoliberal, nem ‡
atual conjuntura polÌtica; pelo contr·rio, trata-se de uma idÈia com uma longa histÛria no pensamento social
ocidental dos ˙ltimos sÈculos.
A busca de alternativas ‡ conformaÁ„o profundamente excludente e desigual do mundo moderno exige um
esforÁo de desconstruÁ„o do car·ter universal e natural da sociedade capitalista-liberal. Isso requer o
questionamento das pretensıes de objetividade e neutralidade dos principais instrumentos de naturalizaÁ„o e
legitimaÁ„o dessa ordem social: o conjunto de saberes que conhecemos globalmente como ciÍncias sociais.
Esse trabalho de desconstruÁ„o È um esforÁo extraordinariamente vigoroso e multifacetado que vem sendo
realizado nos ˙ltimos anos em todas as partes do mundo. Entre suas contribuiÁıes fundamentais se destacam:
2
as m˙ltiplas vertentes da crÌtica feminista , o questionamento da histÛria europÈia como HistÛria Universal
(Bernal, 1987; Blaut, 1992; 1993), o desentranhamento da natureza do orientalismo (Said, 1979; 1994), a
exigÍncia de ìabrir as ciÍncias sociaisî (Wallerstein, 1996), as contribuiÁıes dos estudos subalternos da Õndia
(Guha, 1998; Rivera Cusicanqui e Barrag·n, 1997), a produÁ„o de intelectuais africanos como V. Y. Mudimbe
(1994), Mahmood Mamdani (1996), Tsenay Serequeberham (1991) e Oyenka Owomoyela, e o amplo espectro
da chamada perspectiva pÛs-colonial que muito vigor encontra em diversos departamentos de estudos culturais
de universidades estadunidenses e europÈias. A procura de perspectivas do saber n„o eurocÍntrico tem uma
longa e valiosa tradiÁ„o na AmÈrica Latina (JosÈ MartÌ, JosÈ Carlos Mari·tegui) e conta com valiosas
contribuiÁıes recentes, dentre as quais as de Enrique Dussel (Apel, Dussel e Fornet B., 1992; Dussel, 1994;
1998), Arturo Escobar (1995), Michel-Rolph Trouillot (1995), AnÌbal Quijano (1990; 1992; 1998), Walter Mignolo
(1995; 1996), Fernando Coronil (1996; 1997) e Carlos Lenkersdorf (1996).
Este texto inscreve-se dentro de tal esforÁo, argumentando que È possÌvel identificar duas dimensıes
constitutivas dos saberes modernos que contribuem para explicar sua efic·cia neutralizadora. Trata-se de duas
dimensıes de origens histÛricas distintas, que sÛ adquirem sua atual potÍncia neutralizadora pela via de sua
estreita imbricaÁ„o. A primeira refere-se ‡s sucessivas separaÁıes ou partiÁıes do mundo ìrealî que se d„o
historicamente na sociedade ocidental e as formas como se vai construindo o conhecimento sobre as bases

8
desse processo de sucessivas separaÁıes. A segunda dimens„o È a forma como se articulam os saberes
modernos com a organizaÁ„o do poder, especialmente as relaÁıes coloniais/imperiais de poder constitutivas do
mundo moderno. Essas duas dimensıes servem de sustento sÛlido a uma construÁ„o discursiva neutralizadora
das ciÍncias sociais e dos saberes sociais modernos.

I. As m˙ltiplas separaÁıes do Ocidente


Uma primeira separaÁ„o da tradiÁ„o ocidental È de origem religiosa. Um substrato fundamental das
formas particulares do conhecer e do fazer tecnolÛgico da sociedade ocidental È associado por Jan Berting ‡
separaÁ„o judaico-crist„ entre Deus (o sagrado), o homem (o humano) e a natureza. De acordo com Berting
(1993), nesta tradiÁ„o:
Deus criou o mundo, de maneira que o mundo mesmo n„o È Deus, e n„o se considera sagrado. Isto est·
associado ‡ idÈia de que Deus criou o homem ‡ sua prÛpria imagem e elevou-o acima de todas as outras
criaturas da terra, dando-lhe o direito [...] a intervir no curso dos acontecimentos na terra. Diferentemente da
maior parte dos outros sistemas religiosos, as crenÁas judaico-crist„s n„o estabelecem limites ao controle da
natureza pelo homem 3.

…, no entanto, a partir da IlustraÁ„o e com o desenvolvimento posterior das ciÍncias modernas que se
4
sistematizam e se multiplicam tais separaÁıes . Um marco histÛrico significativo nestes sucessivos
processos de separaÁ„o È representado pela ruptura ontolÛgica entre corpo e mente, entre a raz„o e o
mundo, tal como formulada na obra de Descartes (Apffel-Marglin, 1996: 3).
A ruptura ontolÛgica entre a raz„o e o mundo quer dizer que o mundo j· n„o È uma ordem significativa, est·
expressamente morto. A compreens„o do mundo j· n„o È uma quest„o de estar em sintonia com o cosmos,
como era para os pensadores gregos cl·ssicos. O mundo tornou-se o que È para os cidad„os do mundo
moderno, um mecanismo desespiritualizado que pode ser captado pelos conceitos e representaÁıes construÌdos
pela raz„o (Apffel-Marglin, 1996: 3).

Esta total separaÁ„o entre mente e corpo deixou o mundo e o corpo vazios de significado e subjetivou
radicalmente a mente. Esta subjetivaÁ„o da mente, esta separaÁ„o entre mente e mundo, colocou os seres
humanos numa posiÁ„o externa ao corpo e ao mundo, com uma postura instrumental frente a eles (Apffel-
Marglin, 1996: 4).
Cria-se desta maneira, como assinalou Charles Taylor, uma fissura ontolÛgica entre a raz„o e o mundo
(Apffel-Marglin, 1996: 6), separaÁ„o que n„o est· presente em outras culturas (Apffel-Marglin, 1996: 7).
Somente sobre a base destas separaÁıes ñbase de um conhecimento descorporizado e descontextualizadoñ
È concebÌvel esse tipo muito particular de conhecimento que pretende ser des-subjetivado (isto È, objetivo) e
universal.
Estas tendÍncias radicalizam-se com as separaÁıes que Weber conceitualizou como constitutivas da
modernidade cultural, e uma crescente cis„o que se d· na sociedade moderna entre a populaÁ„o em geral e
o mundo dos especialistas. Como assinala Habermas:
[Weber] caracterizou a modernidade cultural como a separaÁ„o da raz„o substantiva expressa na religi„o e a
metafÌsica em trÍs esferas autÙnomas: ciÍncia, moralidade e arte, que se diferenciaram porque as visıes do
mundo unificadas da religi„o e da metafÌsica se cindiram. Desde o sÈculo XVIII, os problemas herdados destas
velhas visıes do mundo puderam ser organizados de acordo com aspectos especÌficos de validade: verdade,
direito normativo, autenticidade e beleza, que puderam ent„o ser tratados como problemas de conhecimento, de
justiÁa e moral ou de gosto. Por sua vez, puderam ser institucionalizados o discurso cientÌfico, as teorias morais,
a jurisprudÍncia e a produÁ„o e crÌtica de arte. Cada domÌnio da cultura correspondia a profissıes culturais, que
enfocavam os problemas com perspectiva de especialista. Este tratamento profissional da tradiÁ„o cultural traz
para o primeiro plano as estruturas intrÌnsecas de cada uma das trÍs dimensıes da cultura. Aparecem as
estruturas das racionalidades cognitivo-instrumental, moral-pr·tica e estÈtico-expressiva, cada uma delas
submetida ao controle de especialistas, que parecem ser mais inclinados a estas lÛgicas particulares que o
restante dos homens. Como resultado, cresce a dist‚ncia entre a cultura dos especialistas e a de um p˙blico
mais amplo.

9
O projeto de modernidade formulado pelos filÛsofos do iluminismo no sÈculo XVIII baseava-se no desenvolvimento de
uma ciÍncia objetiva, de uma moral universal, de uma lei e uma arte autÙnomas e reguladas por lÛgicas prÛprias
(Habermas, 1989: 137-138).

Na autoconsciÍncia europÈia da modernidade, estas sucessivas separaÁıes se articulam com aquelas


que servem de fundamento ao contraste essencial estabelecido a partir da conformaÁ„o colonial do mundo
entre ocidental ou europeu (concebido como o moderno, o avanÁado) e os ìOutrosî, o restante dos povos e
culturas do planeta.
A conquista ibÈrica do continente americano È o momento inaugural dos dois processos que
5
articuladamente conformam a histÛria posterior: a modernidade e a organizaÁ„o colonial do mundo . Com o
inÌcio do colonialismo na AmÈrica inicia-se n„o apenas a organizaÁ„o colonial do mundo mas ñ
simultaneamenteñ a constituiÁ„o colonial dos saberes, das linguagens, da memÛria (Mignolo, 1995) e do
imagin·rio (Quijano, 1992). D·-se inÌcio ao longo processo que culminar· nos sÈculos XVIII e XIX e no qual,
pela primeira vez, se organiza a totalidade do espaÁo e do tempo ñtodas as culturas, povos e territÛrios do
planeta, presentes e passadosñ numa grande narrativa universal. Nessa narrativa, a Europa È ñou sempre
foiñ simultaneamente o centro geogr·fico e a culminaÁ„o do movimento temporal. Nesse perÌodo moderno
primevo/colonial d„o-se os primeiros passos na ìarticulaÁ„o das diferenÁas culturais em hierarquias
cronolÛgicasî (Mignolo, 1995: xi) e do que Johannes Fabian chama de a negaÁ„o da simultaneidade
6
(negation of coevalness) . Com os cronistas espanhÛis d·-se inÌcio ‡ ìmassiva formaÁ„o discursivaî de
construÁ„o da Europa/Ocidente e o outro, do europeu e o Ìndio, do lugar privilegiado do lugar de enunciaÁ„o
associado ao poder imperial (Mignolo, 1995: 328).
Tal construÁ„o tem como pressuposiÁ„o b·sica o car·ter universal da experiÍncia europÈia. As obras de
Locke e de Hegel ñalÈm de extraordinariamente influentesñ s„o neste sentido paradigm·ticas. Ao construir-se a
noÁ„o de universalidade a partir da experiÍncia particular (ou paroquial) da histÛria europÈia e realizar a leitura
da totalidade do tempo e do espaÁo da experiÍncia humana do ponto de vista dessa particularidade, institui-se
uma universalidade radicalmente excludente.
BartolomÈ Clavero realiza uma significativa contribuiÁ„o a esta discuss„o em sua an·lise das concepÁıes
do universalismo, e do indivÌduo e seus direitos, no liberalismo cl·ssico e no pensamento constitucional. Este
È um universalismo n„o-universal na medida em que nega todo direito diferente do liberal, cuja sustentaÁ„o
est· na propriedade privada individual (Clavero, 1994; 1997).
A negaÁ„o do direito do colonizado comeÁa pela afirmaÁ„o do direito do colonizador; È a negaÁ„o de um direito
coletivo por um direito individual; Locke no segundo Treatise of Government, elabora mais concretamente esse
direito como direito de propriedade, como propriedade privada, por uma raz„o muito precisa. A propriedade, para
ele, È fundamentalmente um direito de um indivÌduo sobre si mesmo. … um princÌpio de disposiÁ„o pessoal, de
liberdade radical. E o direito de propriedade tambÈm pode sÍ-lo sobre essas coisas desde que resulte da prÛpria
disposiÁ„o do indivÌduo n„o apenas sobre si mesmo, mas sobre a natureza, ocupando-a e nela trabalhando. … o
direito subjetivo, individual, que constitui, que deve assim constituir o direito objetivo, social. A ordem da sociedade
ter· de responder ‡ faculdade do indivÌduo. N„o h· direito legÌtimo fora desta composiÁ„o (Clavero, 1994: 21-22).

ëLet him [the Man] plant in some in-land, vacant places of Americaí, que assim o homem colonize as terras vazias da
AmÈrica, um territÛrio que pode ser considerado vazio juridicamente porque n„o est· povoado de indivÌduos que
respondam ‡s exigÍncias da prÛpria concepÁ„o, a uma forma de ocupaÁ„o e exploraÁ„o da terra que produza antes
de tudo direitos, e direitos antes de mais nada individuais (Clavero, 1994: 22).

[...] se n„o h· cultivo ou colheita, nem a ocupaÁ„o efetiva serve para gerar direitos; outros usos n„o valem, essa parte
da terra, esse continente da AmÈrica, ainda que povoado, pode ser considerado desocupado, ‡ disposiÁ„o do
primeiro colono que chegue e se estabeleÁa. O indÌgena que n„o se atenha a esses conceitos, a tal cultura, n„o tem
nenhum direito (Clavero, 1994: 22).

Eis aqui a linha de chegada do discurso propriet·rio, ponto de partida da concepÁ„o constitucional. E n„o È desde
logo uma mera ocorrÍncia de um pensador isolado. Estamos diante de uma manifestaÁ„o realmente paradigm·tica
de toda uma cultura, talvez ainda da nossa (Clavero, 1994: 22-23).

Para a perspectiva constitucional, para esta nova mentalidade, os indÌgenas n„o re˙nem as condiÁıes para terem
direito algum, nem privado nem p˙blico. The Wealth of Nations de Adam Smith, sua riqueza das naÁıes n„o
menos paradigm·tica, contÈm e difunde a conclus„o: ëThe native tribes of North Americaí n„o tÍm por seu

10
particular ëstate of societyí, por um estado julgado primitivo, ëneither sovereign nor commonwealthí, nem soberano
nem rep˙blica, tampouco algum direito polÌtico .

Com este alcance de privaÁ„o jurÌdica da populaÁ„o indÌgena, poder-se-· alegar por terras americanas ñinclusive para
efeitos judiciaisñ n„o sÛ John Locke, mas tambÈm Adam Smith, sua Wealth of Nations. Valem mais como direito para
privar de direito que o prÛprio ordenamento particular (Clavero, 1994: 23).

Foi, assim, necess·rio estabelecer uma ordem de direitos universais de todos os seres humanos como
um passo para exatamente negar o direito ‡ maioria deles.
O efeito È n„o a universalizaÁ„o do direito, mas a entronizaÁ„o do prÛprio universo jurÌdico, com expuls„o radical de
qualquer outro. J· n„o se trata simplesmente de que o indÌgena se encontre numa posiÁ„o subordinada. Agora o
resultado È que n„o possui lugar algum se n„o se mostra disposto a abandonar completamente seus costumes e
desfazer inteiramente suas comunidades para integrar-se ao ˙nico mundo constitucionalmente concebido do direito
(Clavero, 1994: 25-26).

[...] n„o se concebe apenas um direito individual, este direito privado. Direito, tambÈm se admite coletivo, de uma
coletividade, mas sÛ aquele ou somente daquela que corresponda ou sirva ao primeiro, ao direito de autonomia
pessoal e de propriedade privada, a esta liberdade civil fundamental que assim se concebia. Dito de outro modo, sÛ
tem cabimento como p˙blico o direito n„o de qualquer comunidade, mas somente da instituiÁ„o polÌtica constituÌda de
acordo com o referido fundamento, com vistas a sua existÍncia e asseveramento.

Tanto as comunidades tradicionais prÛprias como todas as estranhas, tais como as indÌgenas sem soberano
nem constituiÁ„o, ficam excluÌdas de um nÌvel parit·rio do ordenamento jurÌdico ou mesmo do campo do direito;
o primeiro no que diz respeito ‡s prÛprias, o segundo, o mais excludente, no que diz respeito ‡s alheias, as que
n„o respondam ‡ forma estatal (Clavero, 1994: 27).

O universalismo da filosofia da histÛria de Hegel reproduz o mesmo processo sistem·tico de exclusıes. A


7
histÛria È universal como realizaÁ„o do espÌrito universal . Mas desse espÌrito universal n„o participam
igualmente todos os povos.
J· que a histÛria È a figura do espÌrito em forma de acontecer, da realidade natural imediata, ent„o os momentos do
desenvolvimento s„o existentes como princÌpios naturais imediatos, e estes, porque s„o naturais, s„o como uma
pluralidade fora da outra e, ademais, de modo tal que a um povo corresponde um deles, È sua existÍncia geogr·fica e
antropolÛgica (Hegel, 1976: 334).

Ao povo a que corresponde tal momento como princÌpio natural, È-lhe encomendada a execuÁ„o do mesmo no
progresso da autoconsciÍncia do espÌrito do mundo que se abre. Este povo, na histÛria universal e para essa
Època, È o dominante e nela sÛ pode fazer Època uma vez. Contra este seu absoluto direito de ser portador do
atual grau de desenvolvimento do espÌrito do mundo, os espÌritos dos outros povos n„o tÍm direitos, e eles,
como aqueles cuja Època passou, n„o contam na histÛria universal (Hegel, 1976: 334-335).

Deste universalismo eurocÍntrico excludente, derivam as mesmas conclusıes que podemos observar em
Locke com relaÁ„o aos direitos dos povos. Diferentemente dos povos que s„o portadores histÛricos da raz„o
universal, as naÁıes b·rbaras (e seus povos) carecem de soberania e de autonomia.
Um povo n„o È ainda um Estado, e a passagem de uma famÌlia, de uma horda, de uma cl„, de uma multid„o, etc.,
a uma situaÁ„o de Estado constitui a realizaÁ„o formal da idÈia em geral nesse povo. Sem essa forma, carece,
como subst‚ncia Ètica que È em si (an sich), da objetividade de ter nas leis, como determinaÁıes pensadas, uma
existÍncia empÌrica para si e para os outros universal e v·lida para todos e, portanto, n„o È reconhecido: sua
autonomia, j· que carece de legalidade objetiva e de racionalidade firme para si, È apenas formal e n„o È
soberania (Hegel, 1976: 335).

[...] ocorre que as naÁıes civilizadas consideram a outras que lhes ficaram para tr·s nos movimentos
substanciais do Estado (os povos pastores face aos caÁadores, os agricultores face a ambos, etc.), como
b·rbaros, com a consciÍncia de um direito desigual, e tratam sua autonomia como algo formal (Hegel, 1976:

11
336).

A narrativa de Hegel est· construÌda sobre uma trÌade de continentes (¡sia, ¡frica, Europa). Estas ìpartes
do mundo n„o est„o [...] divididas por casualidade ou por razıes de comodidade, mas se trata de diferenÁas
8
essenciaisî . A HistÛria move-se do Oriente ao Ocidente, sendo a Europa o Ocidente absoluto, lugar no qual
9
o espÌrito alcanÁa sua m·xima express„o ao unir-se consigo mesmo . Dentro desta metanarrativa histÛrica, a
AmÈrica ocupa um papel ambÌguo. Por um lado È o continente jovem, com a implicaÁ„o potencial que esta
caracterizaÁ„o pode ter como portador de futuro, mas sua juventude se manifesta fundamentalmente em ser
dÈbil e imaturo (Gerbi, 1993: 527 y 537). Enquanto sua vegetaÁ„o È monstruosa, sua fauna È fr·gil (Gerbi,
1993: 537), e mesmo o canto de seus p·ssaros È desagrad·vel (Gerbi, 1993: 542). Os aborÌgenes
americanos s„o uma raÁa dÈbil em processo de desaparecimento (Gerbi, 1993: 545). Suas civilizaÁıes
careciam ìdos grandes instrumentos do progresso, o ferro e o cavaloî (Gerbi, 1993: 537).
10
A AmÈrica sempre se mostrou e continua mostrando-se fÌsica e espiritualmente impotente .
Mesmo as civilizaÁıes do MÈxico e do Peru eram meramente naturais: ao se aproximarem do espÌrito, a
chegada da incompar·vel civilizaÁ„o europÈia, n„o lhes podia acontecer outra coisa que n„o fosse seu
desaparecimento (Gerbi, 1993: 545, 548).

II. A naturalizaÁ„o da sociedade liberal e a origem histÛrica das ciÍncias sociais


O processo que culminou com a consolidaÁ„o das relaÁıes de produÁ„o capitalistas e do modo de vida
liberal, atÈ que estas adquirissem o car·ter de formas naturais de vida social, teve simultaneamente uma
dimens„o colonial/imperial de conquista e/ou submiss„o de outros continentes e territÛrios por parte das
potÍncias europÈias, e uma encarniÁada luta civilizatÛria no interior do territÛrio europeu na qual finalmente
acabou-se impondo a hegemonia do projeto liberal. Para as geraÁıes de camponeses e trabalhadores que
durante os sÈculos XVIII e XIX viveram na prÛpria carne as extraordin·rias e traum·ticas transformaÁıes
(expuls„o da terra e do acesso aos recursos naturais), a ruptura com os modos anteriores de vida e de
sustento ñcondiÁ„o necess·ria para a criaÁ„o da forÁa da trabalho ìlivreîñ e a imposiÁ„o da disciplina do
trabalho fabril, este processo foi tudo, exceto natural.
As pessoas n„o entraram na f·brica alegremente e por sua prÛpria vontade. Um regime de disciplina e de
normatizaÁ„o cabal foi necess·rio. AlÈm da expuls„o de camponeses e de servos da terra e da criaÁ„o da
classe prolet·ria, a economia moderna exigia uma profunda transformaÁ„o dos corpos, dos indivÌduos e das
formas sociais. Como produto desse regime de normatizaÁ„o criou-se o homem econÙmico (Escobar, 1995:
60).
Em diversas partes da Europa, e com particular intensidade no Reino Unido, o avanÁo deste modelo de
organizaÁ„o n„o apenas do trabalho e do acesso aos recursos, mas do conjunto da vida, sofreu ampla
resistÍncia tanto nas cidades como no campo. Detenhamo-nos na caracterizaÁ„o dessa resistÍncia, desse
conflito cultural ou civilizatÛrio, como o formula o historiador inglÍs E. P. Thompson, l˙cido estudioso da
sensibilidade popular de tal perÌodo:
Minha tese È a de que a consciÍncia do costume e os usos do costume eram especialmente robustos no sÈculo
dezoito: de fato, alguns dos ëcostumesí eram de invenÁ„o recente e eram na realidade demandas por novos ëdireitosí
[...] a press„o para ëreformarí foi resistida obstinadamente e no sÈculo dezoito abriu-se uma dist‚ncia profunda, uma
alienaÁ„o profunda entre as culturas de patrÌcios e plebeus (Thompson, 1993: 1).

Esta È, ent„o, uma cultura conservadora em suas formas que apela aos usos tradicionais e busca reforÁ·-los. S„o
formas n„o-racionais; n„o apelam a nenhuma raz„o atravÈs do folheto, serm„o ou plataforma; impıem as sanÁıes
do ridÌculo, a vergonha e as intimidaÁıes. Mas o conte˙do e o sentido desta cultura n„o podem ser facilmente
descritos como conservadores. Na realidade social, o trabalho est·-se tornando, dÈcada a dÈcada, mais ëlivreí dos
tradicionais controles senhoriais, paroquiais, corporativos e paternais, e mais distante da dependÍncia clientelista
direta do senhorio (Thompson, 1993: 9).

DaÌ um paradoxo caracterÌstico do sÈculo: encontramos uma cultura tradicional rebelde. A cultura conservadora
dos plebeus resiste, em nome do costume, a essas racionalizaÁıes econÙmicas e inovaÁıes (como o
cercamento de terras comuns, a disciplina no trabalho e os mercados ëlivresí n„o regulados de gr„os) que
governantes, comerciantes ou patrıes buscam impor. A inovaÁ„o È mais evidente na camada superior da
sociedade que nas classes baixas, mas como esta inovaÁ„o n„o È um processo tecnolÛgico/sociolÛgico neutro e
sem normas (ëmodernizaÁ„oí, ëracionalizaÁ„oí) e sim a inovaÁ„o do processo capitalista, È freq¸entemente

12
experimentada pelos plebeus na forma de exploraÁ„o, ou apropriaÁ„o de seus direitos de uso tradicionais, ou a
ruptura violenta de modelos valorizados de trabalho e Ûcio... Portanto, a cultura plebÈia È rebelde na defesa dos
costumes. Os costumes defendidos s„o os do prÛprio povo, e alguns deles est„o, de fato, baseados em
recentes asserÁıes na pr·tica (Thompson, 1993: 9-10).

As ciÍncias sociais tÍm como piso a derrota dessa resistÍncia; tÍm como substrato as novas condiÁıes
que se criam quando o modelo liberal de organizaÁ„o da propriedade, do trabalho e do tempo deixam de
aparecer como uma modalidade civilizatÛria em disputa com outra(s) que conserva(m) seu vigor, e adquire
11
hegemonia como a ˙nica forma de vida possÌvel . A partir deste momento, as lutas sociais j· n„o tÍm como
eixo o modelo civilizatÛrio e a resistÍncia a sua imposiÁ„o, mas passam a definir-se no interior da sociedade
12
liberal . Estas s„o as condiÁıes histÛricas da naturalizaÁ„o da sociedade liberal de mercado. A ìsuperioridade
evidenteî desse modelo de organizaÁ„o social ñe de seus paÌses, cultura, histÛria e raÁañ fica demonstrada
tanto pela conquista e submiss„o dos demais povos do mundo, como pela ìsuperaÁ„oî histÛrica das formas
anteriores de organizaÁ„o social, uma vez que se logrou impor na Europa a plena hegemonia da organizaÁ„o
liberal da vida sobre as m˙ltiplas formas de resistÍncia com as quais se enfrentou.
… este o contexto histÛrico-cultural do imagin·rio que impregna o ambiente intelectual no qual se d· a
constituiÁ„o das disciplinas das ciÍncias sociais. Esta È a vis„o de mundo que fornece os pressupostos
fundacionais de todo o edifÌcio dos conhecimentos sociais modernos. Esta cosmovis„o tem como eixo
articulador central a idÈia de modernidade, noÁ„o que captura complexamente quatro dimensıes b·sicas: 1)
a vis„o universal da histÛria associada ‡ idÈia de progresso (a partir da qual se constrÛi a classificaÁ„o e
hierarquizaÁ„o de todos os povos, continentes e experiÍncias histÛricas); 2) a ìnaturalizaÁ„oî tanto das
relaÁıes sociais como da ìnatureza humanaî da sociedade liberal-capitalista; 3) a naturalizaÁ„o ou
ontologizaÁ„o das m˙ltiplas separaÁıes prÛprias dessa sociedade; e 4) a necess·ria superioridade dos
conhecimentos que essa sociedade produz (ìciÍnciaî) em relaÁ„o a todos os outros conhecimentos.
Tal como o caracterizam Immanuel Wallerstein (1996) e o grupo que trabalhou com ele no RelatÛrio
Gulbenkian, as ciÍncias sociais se constituem como tais num contexto espacial e temporal especÌfico: em
cinco paÌses liberais industriais (Inglaterra, FranÁa, Alemanha, as It·lia e os Estados Unidos) na segunda
metade do sÈculo passado. No corpo disciplinar b·sico das ciÍncias sociais ñno interior das quais
continuamos hoje habitandoñ estabelece-se em primeiro lugar uma separaÁ„o entre passado e presente: a
disciplina histÛria estuda o passado, enquanto se definem outras especialidades que correspondem ao
estudo do presente. Para o estudo deste ˙ltimo delimitam-se ‚mbitos diferenciados correspondentes ao
social, ao polÌtico e ao econÙmico, concebidos propriamente como regiıes ontolÛgicas da realidade histÛrico
social. A cada um destes ‚mbitos separados da realidade histÛrico-social corresponde uma disciplina das
ciÍncias sociais, suas tradiÁıes intelectuais, seus departamentos universit·rios: a sociologia, a ciÍncia
polÌtica e a economia. A antropologia e os estudos cl·ssicos definem-se como o campo para o estudo dos
outros.
Da constituiÁ„o histÛrica das disciplinas cientÌficas que se produz na academia ocidental interessa destacar
dois assuntos fundacionais e essenciais. Em primeiro lugar est· a suposiÁ„o da existÍncia de um metarrelato
universal que leva a todas as culturas e a todos os povos do primitivo e tradicional atÈ o moderno. A sociedade
industrial liberal È a express„o mais avanÁada desse processo histÛrico, e por essa raz„o define o modelo que
define a sociedade moderna. A sociedade liberal, como norma universal, assinala o ˙nico futuro possÌvel de
todas as outras culturas e povos. Aqueles que n„o conseguirem incorporar-se a esta marcha inexor·vel da
histÛria est„o destinados a desaparecer. Em segundo lugar, e precisamente pelo car·ter universal da
experiÍncia histÛrica europÈia, as formas do conhecimento desenvolvidas para a compreens„o dessa
sociedade se converteram nas ˙nicas formas v·lidas, objetivas e universais de conhecimento. As categorias,
conceitos e perspectivas (economia, Estado, sociedade civil, mercado, classes, etc.) se convertem, assim, n„o
apenas em categorias universais para a an·lise de qualquer realidade, mas tambÈm em proposiÁıes
normativas que definem o dever ser para todos os povos do planeta. Estes conhecimentos convertem-se,
assim, nos padrıes a partir dos quais se podem analisar e detectar as carÍncias, os atrasos, os freios e
impactos perversos que se d„o como produto do primitivo ou o tradicional em todas as outras sociedades.
Esta È uma construÁ„o eurocÍntrica, que pensa e organiza a totalidade do tempo e do espaÁo para toda a
humanidade do ponto de vista de sua prÛpria experiÍncia, colocando sua especificidade histÛrico-cultural
como padr„o de referÍncia superior e universal. Mas È ainda mais que isso. Este metarrelato da
modernidade È um dispositivo de conhecimento colonial e imperial em que se articula essa totalidade de
povos, tempo e espaÁo como parte da organizaÁ„o colonial/imperial do mundo. Uma forma de organizaÁ„o e
de ser da sociedade transforma-se mediante este dispositivo colonizador do conhecimento na forma ìnormalî
do ser humano e da sociedade. As outras formas de ser, as outras formas de organizaÁ„o da sociedade, as
outras formas de conhecimento, s„o transformadas n„o sÛ em diferentes, mas em carentes, arcaicas,
primitivas, tradicionais, prÈ-modernas. S„o colocadas num momento anterior do desenvolvimento histÛrico da
humanidade (Fabian, 1983), o que, no imagin·rio do progresso, enfatiza sua inferioridade. Existindo uma
forma ìnaturalî do ser da sociedade e do ser humano, as outras expressıes culturais diferentes s„o vistas
13
como essencial ou ontologicamente inferiores e, por isso, impossibilitadas de ìse superaremî e de chegarem
a ser modernas (devido principalmente ‡ inferioridade racial). Os mais otimistas vÍem-nas demandando a
aÁ„o civilizatÛria ou modernizadora por parte daqueles que s„o portadores de uma cultura superior para
saÌrem de seu primitivismo ou atraso. AniquilaÁ„o ou civilizaÁ„o imposta definem, destarte, os ˙nicos
13
destinos possÌveis para os outros .
O conjunto de separaÁıes sobre as quais est· sustentada essa noÁ„o do car·ter objetivo e universal do
conhecimento cientÌfico est· articulado com as separaÁıes que estabelecem os conhecimentos sociais entre
a sociedade moderna e o restante das culturas. Com as ciÍncias sociais d·-se o processo de cientifizaÁ„o da
sociedade liberal, sua objetivaÁ„o e universalizaÁ„o e, portanto, sua naturalizaÁ„o. O acesso ‡ ciÍncia, e a
relaÁ„o entre ciÍncia e verdade em todas as disciplinas, estabelece uma diferenÁa radical entre as
sociedades modernas ocidentais e o restante do mundo. D·-se, como aponta Bruno Latour, uma
diferenciaÁ„o b·sica entre uma sociedade que possui a verdade ño controle da naturezañ e outras que n„o o
tÍm.
Aos olhos dos ocidentais, o Ocidente, e apenas o Ocidente, n„o È uma cultura, n„o È apenas uma cultura.
Por que se vÍ o Ocidente a si mesmo desta forma? Por que deveria ser o Ocidente e sÛ o Ocidente n„o uma cultura?
Para compreender a Grande Divis„o entre nÛs e eles. Devemos regressar a outra Grande Divis„o, aquela que se d·
entre humanos e n„o-humanos... De fato, a primeira È a exportaÁ„o da segunda. NÛs ocidentais n„o podemos ser
uma cultura mais entre outras, j· que nÛs tambÈm dominamos a natureza. NÛs n„o dominamos uma imagem, ou uma
representaÁ„o simbÛlica da natureza, como fazem outras sociedades, mas a Natureza, tal como ela È, ou pelo menos
tal como ela È conhecida pelas ciÍncias ñque permanecem no fundo, n„o estudadas, n„o estud·veis, milagrosamente
identificadas com a Natureza mesma (Latour, 1993: 97).

Assim, a Grande Divis„o Interna d· conta da Grande Divis„o Externa: nÛs somos os ˙nicos que diferenciamos
absolutamente entre Natureza e Cultura, entre CiÍncia e Sociedade, enquanto que a nossos olhos todos os demais,
sejam chineses, amerÌndios, azandes ou baruias, n„o podem realmente separar o que È conhecimento do que È
sociedade, o que È signo do que È coisa, o que vem da natureza daquilo que sua cultura requer. FaÁam o que fizerem,
n„o importa se È adaptado, regulado ou funcional, eles sempre permanecem cegos no interior desta confus„o. S„o
prisioneiros tanto do social quanto da linguagem. NÛs, faÁamos o que fizermos, n„o importa qu„o criminosos ou
imperialista possamos ser, escapamos da pris„o do social e da linguagem para ter acesso ‡s coisas mesmas atravÈs de
uma porta de saÌda providencial, a do conhecimento cientÌfico. A separaÁ„o interna entre humanos e n„o-humanos
define uma segunda separaÁ„o ñexterna desta vezñ atravÈs da qual os modernos puseram-se a si mesmos num plano
diferente dos prÈ-modernos (Latour, 1993: 99-100).

Este corpo ou conjunto de polaridades entre a sociedade moderna ocidental e as outras culturas, povos e
sociedades, polaridades, hierarquizaÁıes e exclusıes estabelece pressupostos e olhares especÌficos no
conhecimento dos outros. Neste sentido È possÌvel afirmar que, em todo o mundo ex-colonial, as ciÍncias
sociais serviram mais para o estabelecimento de contrastes com a experiÍncia histÛrica universal (normal) da
experiÍncia europÈia (ferramentas neste sentido de identificaÁ„o de carÍncias e deficiÍncias que tÍm de ser
superadas), que para o conhecimento dessas sociedades a partir de suas especificidades histÛrico-culturais.
Existe uma extraordin·ria continuidade entre as diferentes formas atravÈs das quais os conhecimentos
eurocÍntricos legitimaram a miss„o civilizadora/normalizadora a partir das deficiÍncias ñdesvios em relaÁ„o
ao padr„o normal civilizadoñ de outras sociedades. Os diferentes recursos histÛricos (evangelizaÁ„o,
civilizaÁ„o, o fardo do homem branco, modernizaÁ„o, desenvolvimento, globalizaÁ„o) tÍm todos como
sustento a concepÁ„o de que h· um padr„o civilizatÛrio que È simultaneamente superior e normal. Afirmando
o car·ter universal dos conhecimentos cientÌficos eurocÍntricos abordou-se o estudo de todas as demais
culturas e povos a partir da experiÍncia moderna ocidental, contribuindo desta maneira para ocultar, negar,
subordinar ou extirpar toda experiÍncia ou express„o cultural que n„o corresponda a esse dever ser que
fundamenta as ciÍncias sociais. As sociedades ocidentais modernas constituem a imagem de futuro para o
resto do mundo, o modo de vida ao qual se chegaria naturalmente n„o fosse por sua composiÁ„o racial
14
inadequada, sua cultura arcaica ou tradicional, seus preconceitos m·gico-religiosos ou, mais recentemente,
pelo populismo e por Estados excessivamente intervencionistas, que n„o respondem ‡ liberdade espont‚nea
do mercado.
Na AmÈrica Latina, as ciÍncias sociais, na medida em que apelaram a esta objetividade universal,
contribuÌram para a busca, assumida pelas elites latino-americanas ao longo de toda a histÛria deste
continente, da ìsuperaÁ„oî dos traÁos tradicionais e prÈ-modernos que tÍm servido de obst·culo ao
progresso e ‡ transformaÁ„o destas sociedades ‡ imagem e semelhanÁa das sociedades liberais
15
industriais . Ao naturalizar e universalizar as regiıes ontolÛgicas da cosmovis„o liberal que servem de
14
base a suas constriÁıes disciplinares, as ciÍncias sociais est„o impossibilitadas de abordar processos
histÛrico-culturais diferentes daqueles postulados por essa cosmovis„o. Caracterizando as expressıes
culturais como ìtradicionaisî ou ìn„o-modernasî, como em processo de transiÁ„o em direÁ„o ‡
modernidade, nega-se-lhes toda possibilidade de lÛgicas culturais ou cosmovisıes prÛprias. Ao coloc·-las
como express„o do passado, nega-se sua contemporaneidade.
T„o profundamente arraigados est„o esta noÁ„o do moderno, o padr„o cultural ocidental e sua seq¸Íncia
histÛrica como o normal ou universal, que este imagin·rio conseguiu constranger uma alta proporÁ„o das
lutas sociais e dos debates polÌtico-intelectuais do continente.
Estas noÁıes da experiÍncia ocidental como o moderno num sentido universal com o qual È necess·rio
comparar outras experiÍncias permanecem como pressupostos implÌcitos, mesmo em autores que
expressamente se propıem ‡ compreens„o da especificidade histÛrico-cultural deste continente. Podemos
ver, por exemplo, a forma como GarcÌa Canclini aborda a caracterizaÁ„o das culturas latino-americanas
como culturas hÌbridas (1989). Apesar de rejeitar expressamente a leitura da experiÍncia latino-americana da
16
modernidade ìcomo eco diferido e deficiente dos paÌses centraisî , caracteriza o modernismo nos seguintes
termos:
Se o modernismo n„o È a express„o da modernizaÁ„o socioeconÙmica, e sim o modo como as elites assumem a
intersecÁ„o de diferentes temporalidades histÛricas e com elas tentam elaborar um projeto global, quais s„o as
temporalidades na AmÈrica Latina e que contradiÁıes gera seu encontro?

A perspectiva Pluralista, que aceita a fragmentaÁ„o e as combinaÁıes m˙ltiplas entre tradiÁ„o, modernidade e pÛs-
modernidade, È indispens·vel para considerar a conjuntura latino-americana de fim de sÈculo. Assim se comprova [...]
como se desenvolveram em nosso continente os quatro traÁos ou movimentos definidores da modernidade:
emancipaÁ„o, expans„o, renovaÁ„o e democratizaÁ„o. Todos se manifestaram na AmÈrica Latina. O problema n„o
reside em que n„o nos tenhamos modernizado, e sim na forma contraditÛria e desigual pela qual estes componentes
vÍm-se articulando (GarcÌa Canclini, 1989: 330)

Parece claro que aqui se assume que h· um tempo histÛrico ìnormalî e universal, que È o europeu. A
modernidade entendida como universal tem como modelo ìpuroî a experiÍncia europÈia. Em contraste com
esse modelo ou padr„o de comparaÁ„o, os processos de modernidade, os processos da modernidade na
AmÈrica Latina d„o-se de forma ìcontraditÛriaî e ìdesigualî, como intersecÁ„o de diferentes temporalidades
histÛricas (temporalidades europÈias?).

III. Alternativas ao pensamento eurocÍntrico-colonial na AmÈrica Latina hoje


No pensamento social latino-americano, seja do interior do continente ou de fora dele ñe sem chegar a
constituir um corpo coerenteñ produziu-se uma ampla gama de buscas, de formas alternativas do conhecer,
questionando-se o car·ter colonial/eurocÍntrico dos saberes sociais sobre o continente, o regime de
separaÁıes que lhes servem de fundamento, e a idÈia mesma da modernidade como modelo civilizatÛrio
universal.
De acordo com Maritza Montero (1998), a partir das muitas vozes em busca de formas alternativas de
conhecer que se vÍm verificando na AmÈrica Latina nas ˙ltimas dÈcadas, È possÌvel falar da existÍncia de
um ìmodo de ver o mundo, de interpret·-lo e de agir sobre eleî que constitui propriamente uma episteme com
o qual ìa AmÈrica Latina est· exercendo sua capacidade de ver e fazer de uma perspectiva Outra, colocada
enfim no lugar de NÛsî. As idÈias centrais articuladoras deste paradigma s„o, para Montero, as seguintes:
- Uma concepÁ„o de comunidade e de participaÁ„o assim como do saber popular, como formas de
constituiÁ„o e ao mesmo tempo produto de uma episteme de relaÁ„o.
- A idÈia de libertaÁ„o atravÈs da pr·xis, que pressupıe a mobilizaÁ„o da consciÍncia, e um sentido crÌtico que
conduz ‡ desnaturalizaÁ„o das formas canÙnicas de aprender-construir-ser no mundo.
- A redefiniÁ„o do papel do pesquisador social, o reconhecimento do Outro como Si Mesmo e, portanto, a
do sujeito-objeto da investigaÁ„o como ator social e construtor do conhecimento.
- O car·ter histÛrico, indeterminado, indefinido, inacabado e relativo do conhecimento. A multiplicidade de
vozes, de mundos de vida, a pluralidade epistÍmica.
- A perspectiva da dependÍncia, e logo, a da resistÍncia. A tens„o entre minorias e maiorias e os modos
alternativos de fazer-conhecer.
- A revis„o de mÈtodos, as contribuiÁıes e as transformaÁıes provocados por eles (Montero, 1998).

15
As contribuiÁıes principais a esta episteme latino-americana s„o identificadas por Montero na teologia da
libertaÁ„o e na filosofia da libertaÁ„o (Dussel, 1988; Scalone, 1990), bem como na obra de Paulo Freire,
Orlando Fals Borda (1959; 1978) e Alejandro Moreno (1995).

IV. TrÍs contribuiÁıes recentes: Trouillot, Escobar e Coronil


TrÍs livros recentes ilustram-nos o vigor de uma produÁ„o teÛrica cuja riqueza reside tanto em sua
perspectiva crÌtica do eurocentrismo colonial dos conhecimentos sociais modernos quanto das
17
reinterpretaÁıes da realidade latino-americana que oferecem, partindo de outras suposiÁıes .

Michel-Rolph Trouillot
As implicaÁıes da narrativa histÛrica universal que tem a Europa como ˙nico sujeito significativo s„o
abordadas por Michel-Rolph Trouillot. Em Silencing the Past. Power and the Production of History, ele analisa
o car·ter colonial da historiografia ocidental mediante o estudo das formas como foi narrada a revoluÁ„o
18
haitiana, enfatizando particularmente a demonstraÁ„o de como operam as relaÁıes de poder e os silÍncios
19
na construÁ„o da narrativa histÛrica .
As narrativas histÛricas baseiam-se em premissas ou compreensıes anteriores que por sua vez tÍm
como premissas a distribuiÁ„o do poder de registro (archival power). No caso da historiografia haitiana, como
no caso da maioria dos paÌses do Terceiro Mundo, essas compreensıes anteriores foram profundamente
modeladas por convenÁıes e procedimentos ocidentais (Trouillot, 1995: 55).
De acordo com Trouillot, a RevoluÁ„o Haitiana foi silenciada pela historiografia ocidental, porque dadas
suas suposiÁıes, essa revoluÁ„o, tal como ocorreu, era impens·vel (1995: 27).
De fato, a afirmaÁ„o de acordo com a qual africanos escravizados e seus descendentes n„o podiam imaginar sua
liberdade ñe menos ainda formular estratÈgias para conquistar e afianÁar tal liberdadeñ n„o estava baseada tanto na
evidÍncia empÌrica quanto numa ontologia, uma organizaÁ„o implÌcita do mundo e de seus habitantes. Ainda que de
nenhum modo monolÌtica, esta concepÁ„o do mundo era amplamente compartilhada por brancos na Europa e nas
AmÈricas, e tambÈm por muitos propriet·rios n„o-brancos de plantaÁıes. Mesmo que tenha deixado espaÁo para
variaÁıes, nenhuma destas variaÁıes incluiu a possibilidade de um levante revolucion·rio nas plantaÁıes de escravos, e
menos ainda que fosse exitoso e conduzisse ‡ criaÁ„o de um Estado independente.

Assim, a RevoluÁ„o Haitiana entrou na histÛria mundial com a caracterÌstica particular de ser inconcebÌvel ainda
enquanto corria (Trouillot, 1995: 73).

Numa ordem global caracterizada pela organizaÁ„o colonial do mundo, pela escravid„o e pelo racismo,
n„o havia oportunidade para d˙vidas quanto ‡ superioridade europÈia e, portanto, acontecimentos que a
pusessem em quest„o n„o eram concebÌveis (Trouillot, 1995: 80-81).
O impens·vel È aquilo que n„o pode ser concebido dentro do leque de alternativas disponÌveis, aquilo que subverte
as respostas, pois desafia os termos com os quais se formulam as perguntas. Neste sentido, a RevoluÁ„o Haitiana foi
impens·vel em seu tempo. Desafiou os prÛprios pontos de referÍncia dos quais seus defensores e opositores
vislumbravam a raÁa, o colonialismo e a escravid„o (Trouillot, 1995: 82-83).

A vis„o de mundo vence os fatos: a hegemonia branca È natural, tomada como um elemento dado; qualquer
alternativa ainda est· no domÌnio do impens·vel (Trouillot, 1995: 93).

De acordo com Trouillot, o silenciamento da RevoluÁ„o Haitiana È apenas um capÌtulo dentro da narrativa
da dominaÁ„o global sobre os povos n„o europeus (1995: 107).

Arturo Escobar
Em Encoutering Development. The Making and Unmaking of the Thirld World, Arturo Escobar propıe-se a
contribuir para a construÁ„o de um quadro de referÍncia para a crÌtica cultural da economia como estrutura
fundacional da modernidade. Para tanto, analisa o discurso ñe as instituiÁıes nacionais e internacionaisñ do
desenvolvimento no pÛs-guerra. Este discurso, produzido sob condiÁıes de desigualdade de poder, constrÛi
20
o Terceiro Mundo como forma de exercer controle sobre ele . De acordo com Escobar (1995: 5), dessas
desigualdades de poder, e a partir das categorias do pensamento social europeu, opera a ìcolonizaÁ„o da
16
21
realidade pelo discursoî do desenvolvimento .
A partir do estabelecimento do padr„o de desenvolvimento ocidental como norma, ao final da
Segunda Guerra Mundial, d·-se a ìinvenÁ„oî do desenvolvimento, produzindo-se substanciais
mudanÁas nas formas como se concebem as relaÁıes entre os paÌses ricos e os pobres. Toda a vida
cultural, polÌtica, agrÌcola e comercial destas sociedades passa a estar subordinada a uma nova
estratÈgia (Escobar, 1995: 30).
Foi promovido um tipo de desenvolvimento que correspondia ‡s idÈias e expectativas do Ocidente prÛspero, o que os
paÌses ocidentais consideravam que era o curso da evoluÁ„o e do progresso [...] ao conceitualizar o progresso nestes
termos, a estratÈgia do desenvolvimento transformou-se num poderoso instrumento para a normalizaÁ„o do mundo
(Escobar, 1995: 26).

A ciÍncia e a tecnologia s„o concebidas n„o apenas como base do progresso material, mas como a
origem da direÁ„o e do sentido do desenvolvimento (Escobar, 1995: 36). Nas ciÍncias sociais do momento
predomina uma grande confianÁa na possibilidade de um conhecimento certo, objetivo, com base empÌrica,
sem contaminaÁ„o pelos preconceitos ou pelos erros (Escobar, 1995: 37). Por isso, apenas determinadas
formas de conhecimento foram consideradas apropriadas para os planos de desenvolvimento: o
conhecimento dos especialistas, treinados na tradiÁ„o ocidental (Escobar, 1995: 111). O conhecimento dos
ìoutrosî, o conhecimento ìtradicionalî dos pobres, dos camponeses, n„o apenas era considerado n„o
pertinente, mas tambÈm como um dos obst·culos ‡ tarefa transformadora do desenvolvimento.
No perÌodo do pÛs-guerra, deu-se o ìdescobrimentoî da pobreza massiva existente na ¡sia, na ¡frica e na
AmÈrica Latina (Escobar, 1995: 21). A partir de uma definiÁ„o estritamente quantitativa, dois terÁos da
humanidade foram transformados em pobres ñe portanto em seres carentes, necessitando de intervenÁ„oñ
quando em 1948 o Banco Mundial definiu como pobres aqueles paÌses cuja renda anual per capita era menor
do que u$s 100 ao ano: ìse o problema era de renda insuficiente, a soluÁ„o era claramente o
desenvolvimento econÙmicoî (Escobar, 1995: 24). Desta forma:
O desenvolvimento entrou em cena criando anormalidades (os ëpobresí, os ëdesnutridosí, as ëmulheres gr·vidasí, os
ësem-terraí), anomalias que ent„o se tratava de reformar. Buscando eliminar todos os problemas da face da Terra, do
Terceiro Mundo, o que realmente conseguiu foi multiplic·-los atÈ o infinito. Materializando-se num conjunto de
pr·ticas, instituiÁıes e estruturas, teve um profundo impacto sobre o Terceiro Mundo: as relaÁıes sociais, as formas
de pensar, as visıes de futuro ficaram marcadas indelevelmente por este ubÌquo elemento. O Terceiro Mundo chegou
a ser o que È, em grande medida, pelo desenvolvimento. Este processo de chegar a ser implicou escolhas entre
opÁıes crÌticas e altos custos, e os povos do Terceiro Mundo mal comeÁam a perceber sua verdadeira natureza
(Escobar, 1991: 142).

Por tr·s da preocupaÁ„o humanit·ria e a perspectiva positiva da nova estratÈgia, novas formas de poder e de
controle, mais sutis e refinadas, foram postas em operaÁ„o. A habilidade dos pobres para definir e assumir suas
prÛprias vidas foi erodida num grau inÈdito. Os pobres transformaram-se em alvo de pr·ticas mais sofisticadas, de
uma variedade de programas que pareciam inescap·veis. Originado das novas instituiÁıes do poder nos Estados
Unidos e na Europa, dos novos Ûrg„os de planejamento das capitais do mundo subdesenvolvido, este era o tipo de
desenvolvimento que era ativamente promovido, e que em poucos anos estendeu seu alcance a todos os aspectos
da sociedade (Escobar, 1995: 39).

A premissa organizadora era a crenÁa no papel da modernizaÁ„o como a ˙nica forÁa capaz de destruir as
superstiÁıes e relaÁıes arcaicas, a qualquer custo social, cultural ou polÌtico. A industrializaÁ„o e a urbanizaÁ„o eram
vistas como inevit·veis e necessariamente progressivos caminhos em direÁ„o ‡ modernizaÁ„o (Escobar, 1995: 39).

Estes processos, de acordo com Escobar, devem ser entendidos no ‚mbito global da progressiva
expans„o destas formas modernas n„o apenas a todos os ‚mbitos geogr·ficos do planeta, mas tambÈm ao
prÛprio coraÁ„o da natureza e da vida.
Se com a modernidade podemos falar da progressiva conquista semiÛtica da vida social e cultural, hoje esta
conquista estendeu-se ao prÛprio coraÁ„o da natureza e da vida. Uma vez que a modernidade se consolidou e a
economia se transforma numa realidade aparentemente suprema ñpara a maioria um verdadeiro descritor da
realidadeñ o capital deve abordar a quest„o da domesticaÁ„o de todas as relaÁıes sociais e simbÛlicas restantes
nos termos do cÛdigo de produÁ„o. J· n„o s„o unicamente o capital e o trabalho per se que est„o em jogo, mas a

17
reproduÁ„o do cÛdigo. A realidade transforma-se, para tomar emprestada a express„o de Baudrillard, no ëespelho
da produÁ„oí (Escobar, 1995: 203).

Na procura de alternativas a estas formas universalistas de submiss„o e controle de todas as dimensıes


da cultura e da vida, Escobar aponta para duas direÁıes complementares: a resistÍncia local de grupos de
base ‡s formas dominantes de intervenÁ„o, e a desconstruÁ„o do desenvolvimento (Escobar, 1995: 222-
223), tarefa que implica o esforÁo da desnaturalizaÁ„o e desuniversalizaÁ„o da modernidade. Para este
˙ltimo item È necess·ria uma antropologia da modernidade, que conduza a uma compreens„o da
modernidade ocidental como um fenÙmeno cultural e histÛrico especÌfico (Escobar, 1995: 11). Isto passa
necessariamente pela desuniversalizaÁ„o dos ‚mbitos nos quais se partilhou a sociedade moderna.
Qual cÛdigo estrutural foi inscrito na estrutura da economia? Que vasto desenvolvimento civilizatÛrio resultou das atuais
concepÁ„o e pr·tica da economia? [...] Uma antropologia da modernidade centrada na economia conduz-nos a
narraÁıes de mercado, produÁ„o e trabalho, que est„o na base do que se pode chamar de economia ocidental. Estas
narrativas raramente s„o questionadas, s„o tomadas como as formas normais e naturais de ver a vida. No entanto, as
noÁıes de mercado, economia e produÁ„o s„o contingÍncias histÛricas. Suas histÛrias podem ser descritas, suas
genealogias marcadas, seus mecanismos de poder e verdade revelados. Ou seja, a economia ocidental pode ser
antropologizada, para demonstrar como se compıe de um conjunto de discursos e pr·ticas muito peculiares na histÛria
das culturas.

A economia ocidental È geralmente pensada como um sistema de produÁ„o. Da perspectiva da antropologia da


modernidade, entretanto, a economia ocidental deve ser vista como uma instituiÁ„o composta de sistemas de
produÁ„o, poder e significaÁ„o. Os trÍs sistemas uniram-se no final do sÈculo dezoito e est„o inseparavelmente
ligados ao desenvolvimento do capitalismo e da modernidade. Devem ser vistos como formas culturais atravÈs das
quais os seres humanos s„o transformados em sujeitos produtivos. A economia n„o È apenas, nem sequer
principalmente, uma entidade material. … antes de mais nada uma produÁ„o cultural, uma forma de produzir sujeitos
humanos e ordens sociais de um determinado tipo (Escobar, 1995: 59).

Os antropÛlogos foram c˙mplices da racionalizaÁ„o da economia moderna ao contribuir para a naturalizaÁ„o das
construÁıes da economia, da polÌtica, da religi„o, do parentesco e similares, como os blocos prim·rios na construÁ„o de
toda sociedade. A concepÁ„o de acordo com a qual estes domÌnios s„o prÈ-sociais deve ser rejeitada. Pelo contr·rio,
devemos interrogar-nos sobre os processos simbÛlicos e sociais que fazem com que estes domÌnios apareÁam como
auto-evidentes e naturais (Escobar, 1995: 99).

Fernando Coronil
Do livro de Fernando Coronil The Magical State, interessa destacar sua an·lise de algumas cisıes
fundantes dos saberes sociais modernos que foram caracterizadas na primeira parte deste texto, assunto
abordado a partir da exploraÁ„o das implicaÁıes da exclus„o do espaÁo e da natureza que se deu
historicamente na caracterizaÁ„o da sociedade moderna. De acordo com Coronil, nenhuma generalizaÁ„o
pode fazer justiÁa ‡ diversidade e complexidade do tratamento da natureza na teoria social ocidental. No
entanto, considera que:
os paradigmas dominantes tendem a reproduzir os pressupostos que atravessam a cultura moderna, na qual a
natureza È mais um pressuposto. As visıes do progresso histÛrico posteriores ao Iluminismo afirmam a primazia do
tempo sobre o espaÁo e da cultura sobre a natureza. Nos termos destas polaridades, a natureza est· t„o
profundamente associada a espaÁo e geografia que estas categorias freq¸entemente se apresentam como met·foras
uma da outra. Ao diferenci·-las, os historiadores e cientistas sociais usualmente apresentam o espaÁo ou a geografia
como um cen·rio inerte no qual tÍm lugar os eventos histÛricos, e a natureza como o material passivo com o qual os
seres humanos constroem seu mundo. A separaÁ„o da geografia e da histÛria e o domÌnio do tempo sobre o espaÁo
tÍm o efeito de produzir imagens de sociedades separadas de seu ambiente material, como se surgissem do nada
(Coronil, 1997: 23).

Nem nas concepÁıes da economia neocl·ssica nem nas marxistas a natureza È incorporada centralmente
como parte do processo de criaÁ„o de riqueza, fato que tem vastas conseq¸Íncias. Na teoria neocl·ssica, a
18
separaÁ„o da natureza do processo de criaÁ„o de riqueza expressa-se na concepÁ„o subjetiva do valor,
centrada no mercado. Desta perspectiva, o valor de qualquer recurso natural È determinado da mesma maneira
que o de outra mercadoria, isto È, por sua utilidade para os consumidores tal como esta È medida no mercado
(Coronil, 1997: 42). Do ponto de vista macroeconÙmico, a remuneraÁ„o dos donos da terra e dos recursos
naturais È concebida como uma transferÍncia de renda, n„o como um pagamento por um capital natural. … esta
22
a concepÁ„o que serve de base ao sistema de contas nacionais utilizado em todo o mundo .
Marx, apesar de afirmar que a trindade (trabalho/capital/terra) ìcontÈm em si mesma todos os mistÈrios do
23
processo social de produÁ„oî , acaba formalizando uma concepÁ„o da criaÁ„o de riqueza que ocorre no
interior da sociedade, como uma relaÁ„o capital/trabalho, deixando a natureza de fora. Como a natureza n„o
24
cria valor, a renda refere-se ‡ distribuiÁ„o, n„o ‡ criaÁ„o de mais-valia (Coronil, 1997: 47).
Para Coronil, È fundamental a contribuiÁ„o de Henry Lefebvre (1991) no que diz respeito ‡ construÁ„o
social do espaÁo como base para ìpensar o espaÁo em termos que integrem seu significado socialmente
construÌdo com suas propriedades formais e materiaisî (Coronil, 1997: 28). Interessam aqui dois aspectos do
pensamento de Lefebvre sobre o espaÁo. O primeiro refere-se ‡ concepÁ„o do espaÁo como produto das
relaÁıes sociais e da natureza (que constituem sua matÈria-prima) (Coronil, 1997: 28).
[O espaÁo] È tanto o produto como a prÛpria condiÁ„o de possibilidade das relaÁıes sociais. Como uma relaÁ„o
social, o espaÁo È tambÈm uma relaÁ„o natural, uma relaÁ„o entre sociedade e natureza atravÈs da qual a
sociedade ao mesmo tempo em que produz a si mesma transforma a natureza e dela se apropria (Coronil, 1997:
28)25.

Em segundo lugar, para Lefebvre, a terra inclui ìos latinfundi·rios, a aristocracia do campoî, o ìEstado-
26
naÁ„o confinado num territÛrio especÌficoî e ìno sentido mais absoluto, a polÌtica e a estratÈgia polÌticaî .
Temos assim identificadas as duas exclusıes essenciais implicadas pela ausÍncia do espaÁo: a natureza
27
e a territorialidade como ‚mbito do polÌtico .
Coronil afirma que na medida em que se deixa de fora a natureza na caracterizaÁ„o teÛrica da produÁ„o e do
desenvolvimento do capitalismo e da sociedade moderna, tambÈm se est· deixando o espaÁo fora do olhar da
teoria. Ao fazer-se a abstraÁ„o da natureza, dos recursos, do espaÁo e dos territÛrios, o desenvolvimento histÛrico
da sociedade moderna e do capitalismo aparece como um processo interno e autogerado da sociedade moderna,
que posteriormente se expande ‡s regiıes ìatrasadasî. Nesta construÁ„o eurocÍntrica, desaparece do campo de
vis„o o colonialismo como dimens„o constitutiva destas experiÍncias histÛricas. Est„o ausentes as relaÁıes de
subordinaÁ„o de territÛrios, recursos e populaÁıes do espaÁo n„o-europeu. Desaparece assim do campo de vis„o
a presenÁa do mundo perifÈrico e de seus recursos na constituiÁ„o do capitalismo, com o qual se reafirma a idÈia
da Europa como ˙nico sujeito histÛrico.
A reintroduÁ„o do espaÁo ñe, por essa via da dialÈtica, dos trÍs elementos de Marx (trabalho, capital e
terra)ñ permite ver o capitalismo como processo global, mais que como um processo autogerado na Europa,
e permite incorporar ao campo de vis„o as modernidades subalternas (Coronil, 1997: 8).
Recordar a natureza ñreconhecendo teoricamente seu significado histÛricoñ permite-nos reformular as histÛrias
dominantes do desenvolvimento histÛrico ocidental, e questionar a noÁ„o segundo a qual a modernidade È a criaÁ„o
de um Ocidente autopropelido (Coronil, 1997: 7).

O projeto da paroquializaÁ„o da modernidade ocidental [...] implica tambÈm o reconhecimento da periferia como
o lugar da modernidade subalterna. O propÛsito n„o È nem homogeneizar nem catalogar as m˙ltiplas formas da
modernidade, menos ainda elevar a periferia por meio de um mandato sem‚ntico, mas sim desfazer as
taxonomias imperiais que fetichizam a Europa como portadora exclusiva da modernidade e esquecem a
constituiÁ„o transcultural dos centros imperiais e das periferias colonizadas. A crÌtica do locus da modernidade
feita de suas margens cria as condiÁıes para uma crÌtica inerentemente desestabilizadora da prÛpria
modernidade. Ao desmontar-se a representaÁ„o da periferia como a encarnaÁ„o do atraso b·rbaro,
desmistifica-se a auto-representaÁ„o europÈia como a portadora universal da raz„o e do progresso histÛrico
(Coronil, 1997: 74).

Uma vez que se incorpora a natureza ‡ an·lise social, a organizaÁ„o do trabalho n„o pode ser abstraÌda
de suas bases materiais (Coronil, 1997: 29-30). Em conseq¸Íncia, a divis„o internacional do trabalho tem de
ser entendida n„o apenas como a divis„o social do trabalho, mas tambÈm como uma divis„o global da
natureza (Coronil, 1997: 29).
O que se poderia chamar de divis„o internacional da natureza fornece a base material para a divis„o internacional do
trabalho: ambos constituem duas dimensıes de um processo unit·rio. O foco exclusivo no trabalho obscurece a vis„o

19
do fato inevit·vel de que o trabalho sempre est· localizado no espaÁo, que transforma a natureza em localizaÁıes
especÌficas, e que portanto sua estrutura global implica tambÈm uma divis„o global da natureza (Coronil, 1997: 29).

Como a produÁ„o de matÈrias-primas na periferia est· geralmente organizada em torno da exploraÁ„o n„o
apenas do trabalho, mas tambÈm dos recursos naturais, acredito que o estudo do neocolonialismo requer uma
mudanÁa de foco do desigual fluxo de valor para a estrutura desigual da produÁ„o internacional. Esta
perspectiva coloca no centro da an·lise as relaÁıes entre a produÁ„o de valor social e a riqueza natural
(Coronil, 1997: 32).

Para romper com este conjunto de cisıes, particularmente com as que se construÌram entre os fatores
materiais e os fatores culturais (Coronil, 1997: 15), Coronil propıe uma perspectiva holÌstica da produÁ„o que
inclua tais ordens de um mesmo campo analÌtico. Assim como Arturo Escobar, concebe o processo produtivo
simultaneamente como criaÁ„o de sujeitos e de mercadorias.
Uma perspectiva holÌstica em torno da produÁ„o abarca tanto a produÁ„o de mercadorias quanto a formaÁ„o
dos agentes sociais implicados neste processo e, portanto, unifica num mesmo campo analÌtico as ordens
materiais e culturais dentro das quais os seres humanos formam a si mesmos enquanto fazem seu mundo. [...]
Esta vis„o unificadora busca compreender a constituiÁ„o histÛrica dos sujeitos num mundo de relaÁıes sociais e
significados feitos por seres humanos. Como estes sujeitos s„o constituÌdos historicamente, e j· que s„o
protagonistas da histÛria, esta perspectiva vÍ a atividade que faz a histÛria como parte da histÛria que os forma
e relata sua atividade (Coronil, 1997: 41).

Uma apreciaÁ„o do papel da natureza na criaÁ„o de riqueza oferece uma vis„o diferente do capitalismo. A
inclus„o da natureza (e dos agentes a ela associados) deveria substituir a relaÁ„o capital/trabalho da
centralidade ossificada que tem ocupado na teoria marxista. Juntamente com a terra, a relaÁ„o capital/trabalho
pode ser vista dentro de um processo mais amplo de mercantilizaÁ„o, cujas formas especÌficas e efeitos devem
ser demonstrados a cada inst‚ncia. ¿ luz desta vis„o mais compreensiva do capitalismo, seria difÌcil reduzir seu
desenvolvimento a uma dialÈtica capital/trabalho que se origina nos centros avanÁados e se expande em
direÁ„o ‡ periferia atrasada. Pelo contr·rio, a divis„o internacional do trabalho poderia ser mais adequadamente
reconhecida simultaneamente como uma divis„o internacional de naÁıes e da natureza (e de outras unidades
geopolÌticas, tais como o primeiro e o terceiro mundos, que refletem as cambiantes condiÁıes internacionais).
Ao incluir os agentes que em todo o mundo est„o implicados na criaÁ„o do capitalismo, esta perspectiva torna
possÌvel vislumbrar uma concepÁ„o global, n„o eurocÍntrica de seu desenvolvimento (Coronil, 1997: 61).

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Notas
* Universidad Central de Venezuela, Caracas.
1 Quero comeÁar agradecendo a meus estudantes no Doutorado de CiÍncias Sociais da Faculdade de CiÍncias EconÙmicas e
Sociais pelas frutÌferas discussıes que mantivemos sobre estes temas nos ˙ltimos dois anos.
2 Ver, por exemplo, os ensaios incluÌdos em Linda Christiansen-Ruffman (1998).
3 ìDe acordo com Max Weber, o cristianismo herdou do judaÌsmo sua hostilidade ao pensamento m·gico. Isto abriu o caminho para
importantes conquistas econÙmicas, j· que as idÈias m·gicas impıem severas limitaÁıes ‡ racionalizaÁ„o da vida econÙmica. Com
a chegada do ascetismo protestante, esta desmistificaÁ„o do mundo se completouî (Berting, 1993).
4 Dada a naturalizaÁ„o tanto das relaÁıes sociais quanto dos limites dos saberes modernos, inclusive a fundamental separaÁ„o
sujeito/objeto, acaba sendo difÌcil a compreens„o do car·ter histÛrico cultural especÌfico destas formas do saber sem recorrer a
outras perpectivas culturais, que nos permitem desfamiliarizar-nos e portanto desnaturalizar a objetividade universal destas formas
de conceber a realidade. Um texto particularmente iluminador neste sentido È o de Carlos Lenkersdorf, j· citado. Lenkersdorf estuda
a cosmovis„o dos tojolabais atravÈs de seu idioma. Caracteriza o que chama de uma lÌngua intersubjetiva na qual n„o h· separaÁ„o
entre objeto e sujeito, como express„o de uma forma de compreens„o do mundo que carece das m˙ltiplas separaÁıes
naturalizadas pela cultura ocidental.
5 Nas palavras de Tzvetan Todorov: ì[...] o descobrimento da AmÈrica È o que anuncia e funda nossa identidade presente; mesmo
que toda data que permite separar duas Èpocas seja arbitr·ria, n„o h· nenhuma que caia t„o bem para marcar o inÌcio da era
moderna como 1492, quando Colombo atravessa o Oceano Atl‚ntico. Todos somos descendentes de Colombo, como ele comeÁa
nossa genealogia ñna medida em que a palavra ëcomeÁoí tem sentidoî (1995: 15).
6 ìPor isso quero mencionar uma tendÍncia persistente e sistem·tica de localizar as referÍncias da antropologia num tempo
diferente do presente do produtor do discurso antropÛlogicoî (Fabian, 1983: 31).
7 ì[...] a histÛria universal n„o È o mero tribunal de sua forÁa, isto È, necessidade abstrata e irracional de um destino cego, e sim, ela
È raz„o em si (an sich) e para si e seu ser para-si no espÌrito È saber, nela È um desenvolvimento necess·rio, unicamente a partir do
conceito de sua liberdade, dos momentos da raz„o e assim de sua autoconsciÍncia e de sua liberdade, a explicitaÁ„o e realizaÁ„o
do espÌrito universalî (Hegel, 1976).
8 G. W. F. Hegel, Enzyklop‰die der philosophischen Wissenchaften (Werke) Vol. VI, 442, citado por Antonello Gerbi (1993: 535).
9 G. W. F. Hegel 1975 Lectures on the Philosophy of History (Cambridge University Press) 172 e 190-191, citado por Fernando
Coronil (1996: 58).
10 G. W. F. Hegel, Philosophie der Geschite (Lasson) Vol. I, 189-191, citado por Antonello Gerbi (1993: 538).
11 Para uma an·lise extraordinariamente rica deste processo, ver o texto de E. P. Thompson, j· citado.
12 … a passagem, por exemplo, da resistÍncia ‡ mecanizaÁ„o e ‡ disciplina laboral, ‡ luta pelo direito de sindicalizaÁ„o e pela
limitaÁ„o da jornada de trabalho. ìEnquanto o capitalismo (ou o ëmercadoí) refizeram a natureza humana e a necessidade humana, a
economia polÌtica e seu antagonista revolucion·rio assumiram que esse homem econÙmico era para sempreî (Thompson, 1993: 15).
13 Os problemas do eurocentrismo n„o se localizam apenas na distorÁ„o na compreens„o dos outros. Est· simetricamente
22
implicada igualmente a distorÁ„o na autocompreens„o europÈia, ao conceberem-se como centro, como sujeitos ˙nicos da histÛria
da modernidade. Ver mais abaixo a discuss„o de Fernando Coronil sobre este assunto crucial.
14 O estudo destes obst·culos culturais, sociais e institucionais ‡ modernizaÁ„o constituiu o eixo que orientou a vastÌssima
produÁ„o da sociologia e da antropologia da modernizaÁ„o nas dÈcadas de 50 e 60.
15 ìO ambivalente discurso latino-americano, em sua rejeiÁ„o ‡ dominaÁ„o europÈia, mas em sua internalizaÁ„o de sua miss„o
civilizadora, assumiu a forma de um processo de autocolonizaÁ„o, que assume distintas formas em diferentes contextos e perÌodos
histÛricosî (Coronil, 1997: 73).
16 Perry Anderson 1984 ìModernity and Revolutionî em New Left Review (Londres) N{ 144, marÁo-abril, citado por NÈstor
GarcÌa Canclini (1989: 69).
17 Estes trÍs textos, que foram publicados em inglÍs nos Estados Unidos, pertencem a Michel-Rolph Trouillot (1995), Arturo
Escobar (1995) e Fernando Coronil (1997).
18 ìO poder È constitutivo da histÛria. Rastreando o poder atravÈs de v·rios ëmomentosí simplesmente ajuda a enfatizar o car·ter
fundamentalmente procedimental da produÁ„o histÛrica, insistir no que a histÛria È importa menos que como trabalha a histÛria; que
o poder mesmo trabalha conjuntamente com a histÛria; e que as preferÍncias polÌticas declaradas dos historiadores tÍm pouca
influÍncia na maioria das pr·ticas reais do poderî (Trouillot, 1995: 28).
19 ìOs silÍncios s„o inerentes ‡ histÛria porque cada evento singular entra na histÛria carecendo de algumas de suas partes
constitutivas. Algo sempre se omite enquanto algo È registrado. Nunca h· um fechamento definitivo de nenhum evento. Assim,
aquilo que se converte em dado, f·-lo com ausÍncias inatas, especÌficas a sua produÁ„o como tal. Em outros termos, o mesmo
mecanismo que torna possÌvel qualquer registro histÛrico tambÈm assegura que nem todos os fatos histÛricos s„o criados iguais.
Eles refletem os meios de controle diferencial dos meios de produÁ„o histÛrica desde o primeiro registro que transforma um evento
num dadoî (Trouillot, 1995: 49).
20 ì[...] se muitos aspectos do colonialismo foram superados, as representaÁıes do Terceiro Mundo atravÈs do desenvolvimento n„o
s„o menos abarcantes e eficazes que suas contrapartes coloniaisî (Escobar, 1995: 15).
21 ìEm sÌntese, proponho-me a falar do desenvolvimento como uma experiÍncia histÛrica singular, a criaÁ„o de um domÌnio de
pensamento e aÁ„o pela via da an·lise das caracterÌsticas e inter-relaÁıes dos trÍs eixos que o definem. As formas do
conhecimento que se referem a ele e atravÈs das quais ele se constitui como tal e È elaborado na forma de objetos, conceitos,
teorias e similares; o sistema de poder que regula sua pr·tica; e as formas de subjetividade geradas por esse discurso, aquelas
atravÈs das quais um povo reconhece a si mesmo como desenvolvido ou subdesenvolvidoî (Escobar, 1995: 10).
22 Ao deixar a natureza fora do c·lculo econÙmico da produÁ„o de riqueza nas contas nacionais, o processo de criaÁ„o-destruiÁ„o
que sempre est· implicado na transformaÁ„o produtiva da natureza fica reduzido a uma de suas dimensıes. Seu ìlado escuroî, a
destruiÁ„o/consumo/esgotamento de recursos torna-se completamente invisÌvel.
23 Citado por Fernando Coronil (1997: 57).
24 ìA concepÁ„o estritamente social da criaÁ„o da exploraÁ„o em Marx busca evitar a fetichizaÁ„o do capital, do dinheiro e da terra
como fontes de valor. Mas termina excluindo a exploraÁ„o da natureza da an·lise da produÁ„o capitalista, e apaga seu papel na
formaÁ„o da riquezaî (Coronil, 1997: 59).
25 De acordo com Lefebvre, o modelo dual simplificado (capital/trabalho) n„o È capaz de dar conta da crescente import‚ncia da
natureza para a produÁ„o capitalista.
26 Ver Henry Lefebvre (1991: 325) citado por Fernando Coronil (1997: 57).
27 SÛ a partir destas exclusıes È possÌvel a concepÁ„o do ìeconÙmicoî como uma regi„o ontolÛgica separada tanto da natureza
quanto da polÌtica, tal como se apontou na parte II deste capÌtulo.

23
Europa, modernidade e eurocentrismo

Enrique Dussel*

I. Deslizamento sem‚ntico do conceito de ìEuropaî


Em primeiro lugar, desejamos ir indicando, com propÛsitos teÛricos, a mudanÁa de significado do conceito
de ìEuropaî. Em geral n„o se estuda esse deslizamento sem‚ntico e, por essa raz„o, È difÌcil discutir sobre o
tema.
1
Em primeiro lugar, a mitolÛgica Europa È filha de fenÌcios, logo, de um semita . Esta Europa vinda do
Oriente È algo cujo conte˙do È completamente distinto da Europa ìdefinitivaî (a Europa moderna). N„o h·
que confundir a GrÈcia com a futura Europa. Esta Europa futura situava-se ao Norte da MacedÙnia e ao
Norte da Magna GrÈcia na It·lia. O lugar da futura Europa (a ìmodernaî) era ocupado pelo ìb·rbaroî por
excelÍncia, de maneira que posteriormente, de certo modo, usurpar· um nome que n„o lhe pertence, porque
a ¡sia (que ser· provÌncia com esse nome no ImpÈrio Romano, mas apenas a atual Turquia) e a ¡frica (o
Egito) s„o as culturas mais desenvolvidas, e os gregos cl·ssicos tÍm clara consciÍncia disso. A ¡sia e a
2
¡frica n„o s„o ìb·rbarasî, ainda que n„o sejam plenamente humanas . O que ser· a Europa ìmodernaî (em
direÁ„o ao Norte e ao Oeste da GrÈcia) n„o È a GrÈcia origin·ria, est· fora de seu horizonte, e È
simplesmente o incivilizado, o n„o-humano. Com isso queremos deixar muito claro que a diacronia unilinear
GrÈcia-Roma-Europa (esquema 2) È um invento ideolÛgico de fins do sÈculo XVIII rom‚ntico alem„o; È ent„o
uma manipulaÁ„o conceitual posterior do ìmodelo arianoî, racista.
Em segundo lugar, o ìOcidentalî ser· o impÈrio romano que fala latim (cuja fronteira oriental situa-se
3
aproximadamente entre as atuais Cro·cia e SÈrvia) , que agora compreende a ¡frica do Norte. O ìOcidentalî
opıe-se ao ìOrientalî, o impÈrio helenista, que fala grego. No ìOrientalî est„o a GrÈcia e a ì¡siaî (a provÌncia
AnatÛlia), e os reinos helenistas atÈ as bordas do Indo, e tambÈm o Nilo ptolomaico. N„o h· um conceito
relevante do que se chamar· de Europa posteriormente.
Em terceiro lugar, Constantinopla, desde o sÈculo VII o ImpÈrio Romano Oriental crist„o, enfrenta o
mundo ·rabe-muÁulmano crescente. … importante lembrar que ìo grego cl·ssicoî ñAristÛteles, por exemploñ
4
È tanto crist„o-bizantino como ·rabe-muÁulmano .

Esquema 1
Seq¸Íncia histÛrica do mundo Grego
‡ Europa moderna

24
Esclarecimentos sobre as setas: a influÍncia grega n„o È direta na Europa latino-ocidental (passa pelas setas a e b). A
seq¸Íncia c da Europa moderna n„o entronca com a GrÈcia, nem tampouco diretamente com o grupo bizantino (seta d),
mas sim com todo o mundo latino romano ocidental cristianizado.

Em quarto lugar, a Europa latina medieval tambÈm enfrenta o mundo ·rabe-turco. Novamente AristÛteles,
por exemplo, È considerado mais um filÛsofo nas m„os dos ·rabes que dos crist„os. Abelardo, Alberto
Magno e Tom·s de Aquino, contra a tradiÁ„o e arriscando-se a condenaÁıes, utilizam o estagirita. De fato,
AristÛteles ser· usado e estudado como o grande metafÌsico e lÛgico em Bagd·, muito antes de que na
Espanha muÁulmana seja traduzido ao latim, e de Toledo chegue a Paris no final do sÈculo XII. A Europa
distingue-se agora da ¡frica, pela primeira vez (j· que esta È muÁulmana berbere; o Magrebe), e do mundo
oriental (principalmente do ImpÈrio Bizantino, e dos comerciantes do Mediterr‚neo Oriental, do Oriente
MÈdio). As Cruzadas representam a primeira tentativa da Europa latina de impor-se no Mediterr‚neo
Oriental. Fracassam, e com isso a Europa latina continua sendo uma cultura perifÈrica, secund·ria e isolada
pelo mundo turco muÁulmano, que domina politicamente do Marrocos atÈ o Egito, a Mesopot‚mia, o ImpÈrio
Mongol do Norte da Õndia, os reinos mercantis de M·laga, atÈ a ilha Mindanao, nas Filipinas, no sÈculo XIII. A
ìuniversalidadeî muÁulmana È a que chega do Atl‚ntico ao PacÌfico. A Europa latina È uma cultura perifÈrica
e nunca foi, atÈ este momento, ìcentroî da histÛria; nem mesmo com o ImpÈrio Romano (que por sua
localizaÁ„o extremamente ocidental, nunca foi centro nem mesmo da histÛria do continente euro-afro-
asi·tico). Se algum impÈrio foi o centro da histÛria regional euro-asi·tica antes do mundo muÁulmano, sÛ
podemos referir-nos aos impÈrios helenistas, desde os Seleusidas, Ptolomaicos, AntÌocos, etc. Mas, de
qualquer modo, o helenismo n„o È Europa, e n„o alcanÁou uma ìuniversalidadeî t„o ampla como a
muÁulmana no sÈculo XV.
Em quinto lugar, no Renascimento italiano (especialmente apÛs a queda de Constantinopla em 1453)
comeÁa uma fus„o que representa uma novidade; o Ocidental latino (seq¸Íncia c do esquema) une-se ao
grego Oriental (seta d), e enfrenta o mundo turco, o que, esquecendo-se da origem helenÌstico-bizantina
do mundo muÁulmano, permite a seguinte falsa equaÁ„o: Ocidental = HelenÌstico + Romano + Crist„o.
5
Nasce assim a ìideologiaî eurocÍntrica do romantismo alem„o seguinte:

Esquema 2
25
Seq¸Íncia ideolÛgica da GrÈcia ‡ Europa moderna

6
Esta seq¸Íncia È hoje a tradicional . NinguÈm pensa que se trata de uma ìinvenÁ„oî ideolÛgica (que
ìraptaî a cultura grega como exclusivamente ìeuropÈiaî e ìocidentalî) e que pretende que desde as Èpocas
grega e romana tais culturas foram o ìcentroî da histÛria mundial. Esta vis„o È duplamente falsa: em primeiro
lugar, porque, como veremos, faticamente ainda n„o h· uma histÛria mundial (mas histÛrias justapostas e
isoladas: a romana, persa, dos reinos hindus, de Si„o, da China, do mundo meso-americano ou inca na
AmÈrica, etc.). Em segundo lugar, porque o lugar geopolÌtico impede-o de ser o ìcentroî (o Mar Vermelho ou
Antioquia, lugar de tÈrmino do comÈrcio do Oriente, n„o s„o o ìcentroî, mas o limite ocidental do mercado
euro-afro-asi·tico).
Temos assim a Europa latina do sÈculo XV, sitiada pelo mundo muÁulmano, perifÈrica e secund·ria no
extremo ocidental do continente euro-afro-asi·tico.

Esquema 3
Grandes culturas e ·reas de contato em fins do sÈculo xv
(N„o h· empiricamente histÛria mundial)

Esclarecimento: a seta indica a procedÍncia do homo sapiens na AmÈrica e as influÍncias neolÌticas do PacÌfico; e nada
mais.

II. Dois conceitos de ìModernidadeî


Neste ponto da descriÁ„o entramos no cerne da discuss„o. Devemos opor-nos ‡ interpretaÁ„o hegemÙnica no
que se refere ‡ interpretaÁ„o da Europa moderna (‡ ìModernidadeî), e n„o como um tema alheio ‡ cultura latino-
americana, mas sim, contra a opini„o corrente, como problema fundamental na definiÁ„o da ìIdentidade latino-
26
americanaî ñpara usar os termos de Charles Taylor. Com efeito, h· dois conceitos de ìModernidadeî.
7
O primeiro deles È eurocÍntrico, provinciano, regional. A modernidade È uma emancipaÁ„o, uma ìsaÌdaî
da imaturidade por um esforÁo da raz„o como processo crÌtico, que proporciona ‡ humanidade um novo
desenvolvimento do ser humano. Este processo ocorreria na Europa, essencialmente no sÈculo XVIII. O
tempo e o espaÁo deste fenÙmeno s„o descritos por Hegel e comentados por Habermas (1988: 27) em sua
conhecida obra sobre o tema ñe s„o unanimemente aceitos por toda a tradiÁ„o europÈia atual:
Os acontecimentos histÛricos essenciais para a implantaÁ„o do princÌpio da subjetividade [moderna] s„o a
Reforma, a IlustraÁ„o e a RevoluÁ„o Francesa.
Como se pode observar, segue-se uma seq¸Íncia espacial-temporal: quase sempre se aceita tambÈm o
Renascimento Italiano, a Reforma e a IlustraÁ„o alem„s e a RevoluÁ„o Francesa. Num di·logo com Ricoeur
(Capone, 1992), propÙs-se acrescentarmos o Parlamento InglÍs ‡ lista. Ou seja: It·lia (sÈculo XV), Alemanha
(sÈculos XVI-XVIII), Inglaterra (sÈculo XVII) e FranÁa (sÈculo XVIII). Chamamos a esta vis„o de
ìeurocÍntricaî porque indica como pontos de partida da ìModernidadeî fenÙmenos intra-europeus, e seu
desenvolvimento posterior necessita unicamente da Europa para explicar o processo. Esta È
aproximadamente a vis„o provinciana e regional desde Max Weber ñcom sua an·lise sobre a
ìracionalizaÁ„oî e o ìdesencantamentoîñ atÈ Habermas. Para muitos, Galileu (condenado em 1616), Bacon
(Novum Organum, 1620) ou Descartes (O Discurso do MÈtodo, 1636) seriam os iniciadores do processo
moderno no sÈculo XVII.
Propomos uma segunda vis„o da ìModernidadeî, num sentido mundial, e consistiria em definir como
determinaÁ„o fundamental do mundo moderno o fato de ser (seus Estados, exÈrcitos, economia, filosofia,
etc.) ìcentroî da HistÛria Mundial. Ou seja, empiricamente nunca houve HistÛria Mundial atÈ 1492 (como data
8 9
de inÌcio da operaÁ„o do ìSistema-mundoî) . Antes dessa data, os impÈrios ou sistemas culturais coexistiam
entre si. Apenas com a expans„o portuguesa desde o sÈculo XV, que atinge o extremo oriente no sÈculo
XVI, e com o descobrimento da AmÈrica hisp‚nica, todo o planeta se torna o ìlugarî de ìuma sÛî HistÛria
Mundial (Magalh„es-Elcano realiza a circunavegaÁ„o da Terra em 1521).
A Espanha, como primeira naÁ„o ìmodernaî (com um Estado que unifica a penÌnsula, com a
InquisiÁ„o que cria de cima para baixo o consenso nacional, com um poder militar nacional ao conquistar
Granada, com a ediÁ„o da Gram·tica castelhana de Nebrija em 1492, com a Igreja dominada pelo
Estado graÁas ao Cardeal Cisneros, etc.) abre a primeira etapa ìModernaî: o mercantilismo mundial. As
minas de prata de Potosi e Zacatecas (descobertas em 1545-1546) permitem o ac˙mulo de riqueza
monet·ria suficiente para vencer os turcos em Lepanto vinte e cinco anos depois de tal descoberta
(1571). O Atl‚ntico suplanta o Mediterr‚neo. Para nÛs, a ìcentralidadeî da Europa Latina na HistÛria
Mundial È o determinante fundamental da Modernidade. Os demais determinantes v„o correndo em
torno dele (a subjetividade constituinte, a propriedade privada, a liberdade contratual, etc.) s„o o
resultado de um sÈculo e meio de ìModernidadeî: s„o efeito, e n„o ponto de partida. A Holanda (que se
emancipa da Espanha em 1610), a Inglaterra e a FranÁa continuar„o pelo caminho j· aberto.
A segunda etapa da ìModernidadeî, a da RevoluÁ„o Industrial do sÈculo XVIII e da IlustraÁ„o,
aprofundam e ampliam o horizonte cujo inÌcio est· no sÈculo XV. A Inglaterra substitui a Espanha como
potÍncia hegemÙnica atÈ 1945, e tem o comando da Europa Moderna e da HistÛria Mundial (em especial
desde o surgimento do Imperialismo, por volta de 1870).
Esta Europa Moderna, desde 1492, ìcentroî da HistÛria Mundial, constitui, pela primeira vez na histÛria, a
todas as outras culturas como sua ìperiferiaî.

Esquema 4
Estrutura centro-periferia do sistema mundial

27
Esclarecimentos: seta a: a primeira periferia; b: o escravismo em suas costas ocidentais; c: algumas colÙnias (como
Goa, etc.), mas sem ocupaÁ„o continental; d: emancipaÁ„o dos Estados Unidos; e: emancipaÁ„o hispano-
americana;

Na interpretaÁ„o habitual da Modernidade, deixa-se de lado tanto Portugal quanto a Espanha, e com isso
o sÈculo XVI hispano-americano, que na opini„o un‚nime dos especialistas nada tem a ver com a
ìModernidadeî ñe sim, talvez, com o fim da Idade MÈdia. Pois bem, desejamos opor-nos a estas falsas
unanimidades e propor uma completa e distinta conceitualizaÁ„o da ìModernidadeî, com um sentido mundial,
o que nos levar· a uma interpretaÁ„o da racionalidade moderna distinta dos que imaginam ìrealiz·-laî (como
Habermas) como dos que se opıem a ela (como os ìpÛs-modernosî).

III. Racionalidade e irracionalidade ou o mito da Modernidade


Se se entende que a ìModernidadeî da Europa ser· a operaÁ„o das possibilidades que se abrem por
sua ìcentralidadeî na HistÛria Mundial, e a constituiÁ„o de todas as outras culturas como sua ìperiferiaî,
poder-se-· compreender que, ainda que toda cultura seja etnocÍntrica, o etnocentrismo europeu moderno
È o ˙nico que pode pretender identificar-se com a ìuniversalidade-mundialidadeî. O ìeurocentrismoî da
10
Modernidade È exatamente a confus„o entre a universalidade abstrata com a mundialidade concreta
hegemonizada pela Europa como ìcentroî.
O ego cogito moderno foi antecedido em mais de um sÈculo pelo ego conquiro (eu conquisto) pr·tico do
luso-hispano que impÙs sua vontade (a primeira ìVontade-de-poderî moderna) sobre o Ìndio americano. A
conquista do MÈxico foi o primeiro ‚mbito do ego moderno. A Europa (Espanha) tinha evidente superioridade
11 12
sobre as culturas asteca, maia, inca, etc. , em especial por suas armas de ferro ñpresentes em todo o
horizonte euro-afro-asi·tico. A Europa moderna, desde 1492, usar· a conquista da AmÈrica Latina (j· que a
AmÈrica do Norte sÛ entra no jogo no sÈculo XVII) como trampolim para tirar uma ìvantagem comparativaî
determinante com relaÁ„o a suas antigas culturas antagÙnicas (turco-muÁulmana, etc.). Sua superioridade
ser·, em grande medida, fruto da acumulaÁ„o de riqueza, conhecimentos, experiÍncia, etc., que acumular·
13
desde a conquista da AmÈrica Latina .
A Modernidade, como novo ìparadigmaî de vida cotidiana, de compreens„o da histÛria, da ciÍncia, da
religi„o, surge ao final do sÈculo XV e com a conquista do Atl‚ntico. O sÈculo XVII j· È fruto do sÈculo XVI;
Holanda, FranÁa e Inglaterra representam o desenvolvimento posterior no horizonte aberto por Portugal e
Espanha. A AmÈrica Latina entra na Modernidade (muito antes que a AmÈrica do Norte) como a ìoutra faceî,
dominada, explorada, encoberta.

28
Se a Modernidade tem um n˙cleo racional ad intra forte, como ìsaÌdaî da humanidade de um estado de
imaturidade regional, provinciana, n„o planet·ria, essa mesma Modernidade, por outro lado, ad extra, realiza
um processo irracional que se oculta a seus prÛprios olhos. Ou seja, por seu conte˙do secund·rio e negativo
14
mÌtico , a ìModernidadeî È justificativa de uma pr·xis irracional de violÍncia. O mito poderia ser assim
descrito:
1. A civilizaÁ„o moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar
inconscientemente uma posiÁ„o eurocÍntrica).
2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, b·rbaros, rudes, como exigÍncia moral.
3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (È, de
fato, um desenvolvimento unilinear e ‡ europÈia o que determina, novamente de modo inconsciente, a
ìfal·cia desenvolvimentistaî).
4. Como o b·rbaro se opıe ao processo civilizador, a pr·xis moderna deve exercer em ˙ltimo caso a
violÍncia, se necess·rio for, para destruir os obst·culos dessa modernizaÁ„o (a guerra justa colonial).
5. Esta dominaÁ„o produz vÌtimas (de muitas e variadas maneiras), violÍncia que È interpretada como um
ato inevit·vel, e com o sentido quase-ritual de sacrifÌcio; o herÛi civilizador reveste a suas prÛprias vÌtimas
da condiÁ„o de serem holocaustos de um sacrifÌcio salvador (o Ìndio colonizado, o escravo africano, a
mulher, a destruiÁ„o ecolÛgica, etcetera).
15 16
6. Para o moderno, o b·rbaro tem uma ìculpaî (por opor-se ao processo civilizador) que permite ‡
ìModernidadeî apresentar-se n„o apenas como inocente mas como ìemancipadoraî dessa ìculpaî de
suas prÛprias vÌtimas.
7. Por ˙ltimo, e pelo car·ter ìcivilizatÛrioî da ìModernidadeî, interpretam-se como inevit·veis os sofrimentos ou
17
sacrifÌcios (os custos) da ìmodernizaÁ„oî dos outros povos ìatrasadosî (imaturos) , das outras raÁas
escraviz·veis, do outro sexo por ser fr·gil, etcetera.
Por tudo isso, se se pretende a superaÁ„o da ìModernidadeî, ser· necess·rio negar a negaÁ„o do mito da
Modernidade. Para tanto, a ìoutra-faceî negada e vitimada da ìModernidadeî deve primeiramente descobrir-se
ìinocenteî: È a ìvÌtima inocenteî do sacrifÌcio ritual, que ao descobrir-se inocente julga a ìModernidadeî como
culpada da violÍncia sacrificadora, conquistadora origin·ria, constitutiva, essencial. Ao negar a inocÍncia da
ìModernidadeî e ao afirmar a Alteridade do ìOutroî, negado antes como vÌtima culpada, permite ìdes-cobrirî pela
primeira vez a ìoutra-faceî oculta e essencial ‡ ìModernidadeî: o mundo perifÈrico colonial, o Ìndio sacrificado, o
negro escravizado, a mulher oprimida, a crianÁa e a cultura popular alienadas, etc. (as ìvÌtimasî da ìModernidadeî)
como vÌtimas de um ato irracional (como contradiÁ„o do ideal racional da prÛpria ìModernidadeî).
Apenas quando se nega o mito civilizatÛrio e da inocÍncia da violÍncia moderna se reconhece a injustiÁa
da pr·xis sacrificial fora da Europa (e mesmo na prÛpria Europa) e, ent„o, pode-se igualmente superar a
limitaÁ„o essencial da ìraz„o emancipadoraî. Supera-se a raz„o emancipadora como ìraz„o libertadoraî
quando se descobre o ìeurocentrismoî da raz„o ilustrada, quando se define a ìfal·cia desenvolvimentistaî do
processo de modernizaÁ„o hegemÙnico. Isto È possÌvel, mesmo para a raz„o da IlustraÁ„o, quando
eticamente se descobre a dignidade do Outro (da outra cultura, do outro sexo e gÍnero, etc.); quando se
declara inocente a vÌtima pela afirmaÁ„o de sua Alteridade como Identidade na Exterioridade como pessoas
que foram negadas pela Modernidade. Desta maneira, a raz„o moderna È transcendida (mas n„o como
negaÁ„o da raz„o enquanto tal, e sim da raz„o eurocÍntrica, violenta, desenvolvimentista, hegemÙnica).
Trata-se de uma ìTrans-Modernidadeî como projeto mundial de libertaÁ„o em que a Alteridade, que era co-
essencial ‡ Modernidade, igualmente se realize. A ìrealizaÁ„oî n„o se efetua na passagem da potÍncia da
Modernidade ‡ atualidade dessa Modernidade europÈia. A ìrealizaÁ„oî seria agora a passagem
transcendente, na qual a Modernidade e sua Alteridade negada (as vÌtimas) se co-realizariam por m˙tua
fecundidade criadora. O projeto transmoderno È uma co-realizaÁ„o do impossÌvel para a Modernidade; ou
seja, È co-realizaÁ„o de solidariedade, que chamamos de analÈptica, de: Centro/Periferia, Mulher/Homem,
diversas raÁas, diversas etnias, diversas classes, Humanidade/Terra, Cultura Ocidental/Culturas do mundo
18 19
perifÈrico ex-colonial, etc.; n„o por pura negaÁ„o, mas por incorporaÁ„o partindo da Alteridade .
De maneira que n„o se trata de um projeto prÈ-moderno, como afirmaÁ„o folclÛrica do passado, nem um
projeto antimoderno de grupos conservadores, de direita, de grupos nazistas ou fascistas ou populistas, nem
de um projeto pÛs-moderno como negaÁ„o da Modernidade como crÌtica de toda raz„o para cair num
irracionalismo niilista. Deve ser um projeto ìtrans-modernoî (e seria ent„o uma ìTrans-Modernidadeî) por
subsunÁ„o real do car·ter emancipador racional da Modernidade e de sua Alteridade negada (ìo Outroî) da
Modernidade, por negaÁ„o de seu car·ter mÌtico (que justifica a inocÍncia da Modernidade sobre suas
vÌtimas e que por isso se torna contraditoriamente irracional). Em certas cidades da Europa Medieval, nas
renascentistas do Quatrocento, cresceu formalmente a cultura que produzir· a Modernidade. Mas a
Modernidade realmente pÙde nascer quando se deram as condiÁıes histÛricas de sua origem efetiva: 1492 ñ
sua empÌrica mundializaÁ„o, a organizaÁ„o de um mundo colonial e o usufruto da vida de suas vÌtimas, num
nÌvel pragm·tico e econÙmico. A Modernidade nasce realmente em 1492: esta È nossa tese. Sua real
29
superaÁ„o (como subsuntion, e n„o meramente como Aufhebung hegeliana) È subsunÁ„o de seu car·ter
emancipador racional europeu transcendido como projeto mundial de libertaÁ„o de sua Alteridade negada: ìA
Trans-Modernidadeî (como novo projeto de libertaÁ„o polÌtico, econÙmico, ecolÛgico, erÛtico, pedagÛgico,
religioso, etcetera).
Propomos, ent„o, dois paradigmas contraditÛrios: o da mera ìModernidadeî eurocÍntrica, e o da Modernidade
subsumida de um horizonte mundial, no qual cumpriu uma funÁ„o ambÌgua (de um lado como emancipaÁ„o; e, de
outro, como mÌtica cultura da violÍncia). A realizaÁ„o do segundo paradigma È um processo de ìTrans-
Modernidadeî. SÛ o segundo paradigma inclui a ìModernidade/Alteridadeî mundial. Na obra de Tzvetan Todorov,
NÛs e os outros (1991), o ìnÛsî corresponde aos europeus, e ìos outrosî somos nÛs, os povos do mundo
perifÈrico. A Modernidade definiu-se como ìemancipaÁ„oî no que diz respeito ao ìnÛsî, mas n„o percebeu seu
car·ter mÌtico-sacrificial com relaÁ„o aos ìoutrosî. Montaigne (1967: 208) de algum modo percebeu-o quando
afirmou:
Assim, podemos cham·-los b·rbaros com relaÁ„o ‡s nossas regras da raz„o, mas n„o com relaÁ„o a nÛs
mesmos, que os superamos em todo gÍnero de barb·rie.

Esquema 5

Dois paradigmas de modernidade


(SimplificaÁ„o esquem·tica de alguns momentos que co-determinam a compreens„o de ambos os
paradigmas)
Leia-se diacronicamente de A atÈ G e de a atÈ i.

I) DeterminaÁıes mais relevantes


A: Europa no momento do ìdescobrimentoî (1492)
B: O presente europeu moderno
C: Projeto de ìrealizaÁ„oî (habermasiana) da ìModernidadeî
D: A ìinvas„oî do continente (e mais tarde da ¡frica e da ¡sia)
E: O presente ìperifÈricoî
F: Projeto dentro da ìNova Ordem Mundialî dependente
G: Projeto mundial de libertaÁ„o (ìTrans-Modernidadeî)
R: Mercantilismo hisp‚nico (Renascimento e Reforma)
K: Capitalismo industrial (A ìAufkl‰rungî)

II) RelaÁ„o com uma certa direÁ„o ou setas


a: HistÛria europÈia medieval (o prÈ-moderno europeu)
b: HistÛria ìmodernaî-europÈia
c: Pr·xis da realizaÁ„o de C
d: HistÛrias anteriores ‡ conquista europÈia (AmÈrica Latina, ¡frica e ¡sia)

30
e: HistÛria colonial e dependente-mercantilista
f: HistÛria do mundo perifÈrico ao capitalismo industrial
g: Pr·xis da realizaÁ„o de F (desenvolvimentismo)
h: Pr·xis de libertaÁ„o ou de realizaÁ„o de G
i: Pr·xis de solidariedade do Centro com a Periferia
1,2,3,n: Tipos histÛricos de dominaÁ„o (de A ó> D, etc.)

III) Os dois paradigmas de Modernidade


[ ]: Paradigma eurocÍntrico de ìModernidadeî: [R->K->B->C]
{ }: Paradigma mundial de ìModernidade/Alteridadeî (em direÁ„o a uma ìTrans-Modernidadeî): {A/D->B/E-
>G}
Aos 500 anos do comeÁo da Europa Moderna, lemos no RelatÛrio sobre o Desenvolvimento Humano
20
1992 (UNDP, 1992: 35) das NaÁıes Unidas que os 20% mais ricos da Humanidade (principalmente a
Europa Ocidental, os Estados Unidos e o Jap„o) consome 82% dos bens da Terra, enquanto os 60% mais
pobres (a ìperiferiaî histÛrica do ìSistema-Mundialî) consome 5,8% desses bens. Uma concentraÁ„o
jamais observada na histÛria da humanidade! Uma injustiÁa estrutural nunca imaginada em escala
mundial! E n„o È ela fruto da Modernidade ou do Sistema mundial que a Europa ocidental criou?

Bibliografia
Amin, Samir 1989 Eurocentrism (Nova Iorque: Monthly Review Press).
Bernal, Martin 1987 Black Athena. The Afroasiatic Roots of Classical Civilizations (Nova JÈrsei: Rutgers University
Press) Tomo I.
Capone, L. (ed.) 1992 Filosofia e Liberazione. La sfida del pensiero del Terzo Mondo (Lecce: Capone Editore).
Dussel, Enrique 1969 El humanismo semita (Buenos Aires: EUDEBA).
Dussel, Enrique 1977 FilosofÌa de la liberaciÛn (MÈxico: Edicol). [Usta, Bogot·, 1980; Queriniana, Brescia, 1992].
Dussel, Enrique 1992 1492: El encubrimiento del Otro. Hacia el origen del mito de la Modernidad (Madri: Nueva
UtopÌa). [Editions OuvriËres, Paris, 1992; La Piccola Editrice, Bescia, 1993; Patmos Verlag, D¸sseldorf, 1993].
Dussel, Enrique 1995 The Invention of the AmÈricas. Eclipse of ìthe Otherî and the Myth of Modernity (Nova
Iorque: Continuum Publishing).
Dussel, Enrique 1996 The Underside of Modernity. Ricoeur, Apel, Taylor and the Philosophy of Liberation (Nova
Iorque: Humanities Press).
Dussel, Enrique 1998 …tica de la LiberaciÛn en la Edad de la GlobalizaciÛn y la ExclusiÛn (MÈxico: Editorial Trotta/UAM
I/UNAM).
Habermas, J¸rgen 1988 Der philosophische Diskurs der Moderne (Franquefurte: Suhrkamp). [EdiÁ„o em portuguÍs:
1990 Discurso FilosÛfico da Modernidade (Lisboa: PublicaÁıes D. Quixote)]
Horkheimer, Max e Adorno, Theodor 1974 (1944) Dialektik der Aufkl‰rung (Franquefurte: Fischer). [EdiÁ„o em
portuguÍs: 1985 DialÈtica do esclarecimento (Rio de Janeiro: Jorge Zahar)].
Montaigne 1967 ìDes Cannibalesî em Oeuvres ComplËtes (Paris: Gallimard-PlÈiade).
Pfeiffer, Rudolf 1976 History of Classical Scholarship (Oxford: Clarendon).
Taylor, Charles 1989 Sources of the Self. The Making of Modern Identity (Cambridge: Harvard University Press).
Todorov, Tzvetan 1991 Nosotros y los otros (MÈxico: Siglo XXI Editores). [EdiÁ„o em portuguÍs: 1993 NÛs e os
Outros (Rio de Janeiro: Jorge Zahar)].
UNDP-United Nations Development Programe 1992 Human Development Report 1992 (Nova Iorque: Oxford
University Press).
Wallerstein, Immanuel 1974 The Modern World-System (San Diego/Nova Iorque: Academic Press) Tomo I.

31
Notas
* Universidad AutÛnoma Metropolitana Iztapalapa (UAM-I), MÈxico.
1 Veja-se minha obra El humanismo semita (1969), onde j· recuper·vamos a GrÈcia do rapto ìModernoî. Por sua vez, escreve
Martin Bernal (1987): ìHomer and Hesiod both referred to Europa, who was always seen as a sister or some other close relative to
Kadmos, as ëthe daughter of Phoinixí [...] Homer¥s frequent use of Phoinix in the sense of ëPhoenicianí, and the later universal
identification of Europa and Kadmos with Phoeniciaî.
2 AristÛteles n„o as considera humanas como os gregos (ìviventes que habitam a polisî) em sua PolÌtica, mas tampouco s„o
consideradas b·rbaras.
3 Isso explica, em parte, a afirmaÁ„o de que as lutas da desintegrada Iugosl·via desde 1991 tÍm ìlonga histÛriaî (a Cro·cia latina,
posteriormente catÛlica, contra a SÈrvia grega, que mais tarde ser· ortodoxa).
4 Muita raz„o tem Samir Amin (1989: 26) quando escreve: ìChristianity and Islam are thus both heirs of Hellenism, and remain, for
this reason, twin siblings, even if they have been, at certain moments, relentless adversariesî. Demonstra muito bem que a filosofia
helenÌstica serviu primeiro ao pensamento crist„o bizantino (do sÈculo III ao VIII), e posteriormente ao ·rabe-muÁulmano (cujo
esplendor comeÁa no sÈculo VIII e vai atÈ o sÈculo XII, de inspiraÁ„o aristotÈlica), e posteriormente o tempo cl·ssico escol·stico
latino, de fins do sÈculo XII (tambÈm aristotÈlico). O renascimento platÙnico na It·lia no sÈculo XV, por sua vez, ser· de origem
crist„-bizantina.
5 Um dos mÈritos das hipÛteses de Martin Bernal (1987: 189-280), È mostrar a import‚ncia do movimento que inaugura em 1801
Friedrich Schlegel (Ueber die Sprache und Weisheit der Indier, Heidelberg), de onde a Õndia, o indo-europeu, a decadÍncia da
centralidade do Egito (origem da cultura e da filosofia gregas desde HerÛdoto, Plat„o e AristÛteles atÈ o sÈculo XVIII), permite ‡
ìideologiaî prussiana unificar de maneira direta a cultura cl·ssica grega com a alem„: um pensamento racista, ariano, que
impulsionar· a ìinvenÁ„oî das histÛrias da filosofia, onde a GrÈcia (autopoiÈtica) e Roma passar„o primeiro ‡ Idade MÈdia, e depois
diretamente a Descartes e a Kant. ìA break was made with the Latin tradition of humanism and an entirely new humanism, a true
new Hellenism, grew up. Winckelmann was the initiator, Goethe the consummator, Wilhelm von Homboldt, in his linguistic, historical
and educational writings, the teorist. Finally, Humboldtís ideas were given practical effects when he became Prussian Minister of
Education and founded the new university of Berlin and the new humanistic Gymnasiumî (Pfeiffer, 1976). Tudo isso deve ser
profundamente reconstruÌdo e tirado do helenocentrismo e do eurocentrismo j· tradicionais.

6 Por exemplo, Charles Taylor (1989) fala de Plat„o, Agostinho, Descartes, etc. Ou seja, a seq¸Íncia greco-romana crist„ moderna
como sendo unilinear.
7 Ausgang para Kant (Was heiflt Aufkl‰rung?, A481).
8 Veja-se Dussel (1992).
9 Veja-se Immanuel Wallerstein (1974).
10 Universalidade concreta È o que pretende Kant, por exemplo, com seu princÌpio da moralidade. De fato, no entanto, identificou a
ìm·ximaî europÈia com a universaliz·vel.
11 N„o tinha essa mesma superioridade com relaÁ„o ‡s culturas turco-muÁulmanas, mongol, chinesa, etc.
12 O amerÌndio sÛ usava armas de madeira.
13 A China, presente desde o QuÍnia atÈ o Alasca, n„o teve nenhum interesse em ocupar uma AmÈrica inÛspita e sem nenhuma
complementaridade com sua economia. O contr·rio se observa com as potÍncias comerciais do Mediterr‚neo italiano (e a Espanha
representa, de certo modo, sua continuidade), daÌ que a equaÁ„o do desenvolvimento diacrÙnico da modernidade deveria ser:
Renascimento, Conquista da AmÈrica Latina, Reforma, Iluminismo, etcetera.
14 Sabe-se que Horkheimer e Adorno, 1971 (ver J¸rgen Habermas, 1988: 130 e ss.: ìDie Verschlingung von Mythos und
Aufkl‰rungî), define um certo nÌvel mÌtico da Modernidade, que Habermas n„o pode admitir. Nosso sentido de ìmitoî situa-se n„o
num nÌvel intra-europeu (como no caso de Horkheimer, Adorno ou Habermas), mas num nÌvel centro-periferia, Norte-Sul, ou seja,
num nÌvel mundial.
15 Kant, op. cit., fala-nos da imaturidade ìculp·velî (verschuldeten).
16 O prÛprio Francisco de VitÛria, professor de Salamanca, admite como ˙ltima raz„o para declarar a guerra o fato de os indÌgenas
oporem impedimentos ‡ predicaÁ„o da doutrina crist„. Apenas para destruir esses obst·culos se pode fazer a guerra.
17 Para Kant, unmundig: imaturo, rude, n„o-educado.
18 Traduzimos desta maneira a palavra subsuntion em Marx que, por sua etimologia latina, corresponde ‡ Aufhebung hegeliana.
19 Ver meu Philosophie der Befreiung (Dussel, 1977) com relaÁ„o ao ìmomento analÈticoî do movimento dialÈtico subsuntivo (5.3).
20 Em 1930 a diferenÁa entre os 20% mais ricos da humanidade e os 20% mais pobres era de 1 para 30, em 1990 era de 1 para 59
(quase o dobro em apenas 60 anos). Ver tambÈm sobre o tema, Dussel (1995; 1996; 1998).

32
A colonialidade de cabo a rabo:
o hemisfÈrio ocidental no horizonte conceitual da
modernidade

Walter D. Mignolo*

Before the Cold War, the closest the United States had ever come
to a permanent foreign police was in our relationship with the
nations of the Western Hemisphere. In 1823 the Monroe Doctrine
proclaimed our determinatios to insulate the Western Hemisphere
from the contests over the European balance of power, by force
if necessary. And for nearly a century afterward, the causes of
America¥s wars were to be found in the Western Hemisphere:
in the wars against Mexico and Spain, and in threats to use force
to end Napoleon III¥s effort to install an European dinasty in Mexico.

Years of Renewal
Henry Kissinger

I. Sobre o imagin·rio do mundo moderno/colonial


A tese que proponho e aqui defendo È a de que a emergÍncia da idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî deu lugar
a uma mudanÁa radical no imagin·rio e nas estruturas de poder do mundo moderno/colonial (Quijano e
Wallerstein, 1992). Essa mudanÁa n„o apenas produziu um enorme impacto em sua reestruturaÁ„o, mas
teve e tem importantes repercussıes nas relaÁıes Sul-Norte nas AmÈricas, para a configuraÁ„o atual da
ìLatinidadeî nos Estados Unidos, como tambÈm para a diversidade afro-americana no Norte, no Sul e no
Caribe.
Emprego o conceito de ìimagin·rioî no sentido em que o utiliza o intelectual e escritor martinicano
…douard Glissant (1997). Para Glissant ìo imagin·rioî È a construÁ„o simbÛlica mediante a qual uma
comunidade (racial, nacional, imperial, sexual, etc.) se define a si mesma. Em Glissant, o termo n„o tem
nem a acepÁ„o comum de uma imagem mental, nem o sentido mais tÈcnico que adquire no discurso
analÌtico contempor‚neo, no qual o imagin·rio forma uma estrutura de diferenciaÁ„o com o SimbÛlico e o
Real. Partindo de Glissant, dou ao termo um sentido geopolÌtico e o emprego na fundaÁ„o e formaÁ„o do
imagin·rio do sistema-mundo moderno colonial. A imagem que temos hoje da civilizaÁ„o ocidental È, por
um lado, um longo processo de construÁ„o do ìinteriorî desse imagin·rio, desde a transiÁ„o do
Mediterr‚neo, como centro, ‡ formaÁ„o do circuito comercial do Atl‚ntico, assim tambÈm como de sua
ìexterioridadeî. Isto È, no Ocidente a imagem ìinteriorî construÌda por letrados e letradas, viajantes,
estadistas de todo tipo, funcion·rios eclesi·sticos e pensadores crist„os, esteve sempre acompanhada de
um ìexterior internoî, ou seja, de uma ìexterioridadeî, mas n„o de um ìforaî. A cristandade europÈia, atÈ
fins do sÈculo XV, era uma cristandade marginal que se tinha identificado com JafÈ e o Ocidente,
distinguindo-se da ¡sia e da ¡frica. Esse Ocidente de JafÈ era tambÈm a Europa da mitologia grega. A
partir do sÈculo XVI, com o triplo fato da derrota dos mouros, da expuls„o dos judeus e da expans„o
atl‚ntica, mouros, judeus e amerÌndios (e com o tempo tambÈm os escravos africanos), todos eles
passaram a configurar, no imagin·rio ocidental crist„o, a diferenÁa (exterioridade) no interior do imagin·rio.
Por volta do fim do sÈculo XVI, as missıes jesuÌticas na China acrescentaram uma nova dimens„o de
ìexterioridadeî, o fora que est· dentro, porque contribui para a definiÁ„o da mesmidade. Os jesuÌtas
contribuÌram, nos extremos, ¡sia e AmÈrica, para construir o imagin·rio do circuito comercial do Atl‚ntico
que, com v·rias reconversıes histÛricas, chegou a conformar a imagem atual da civilizaÁ„o ocidental,
tema ao qual retornarei na seÁ„o IV. N„o obstante, o imagin·rio de que falo n„o È apenas constituÌdo no e
pelo discurso colonial, incluÌdas suas diferenÁas internas (por ex.: Las Casas e Sep˙lveda; ou o discurso
do Norte da Europa que a partir do sÈculo XVII traÁou a fronteira sul da Europa e estabeleceu a diferenÁa
imperial), mas È constituÌdo tambÈm pelas respostas (ou em certos momentos a falta delas) das
comunidades (impÈrios, religiıes, civilizaÁıes) que o imagin·rio ocidental envolveu em sua prÛpria
autodescriÁ„o. Apesar de este traÁo ser planet·rio, limitar-me-ei neste artigo a examinar as respostas das
AmÈricas ao discurso e ‡ polÌtica integradora e ao mesmo tempo diferenciadora, da Europa num primeiro
33
momento, do HemisfÈrio Ocidental mais tarde e finalmente do Atl‚ntico Norte.
Mas o que entendo por mundo moderno/colonial ou sistema mundo/moderno colonial? Tomo como ponto
de partida a met·fora sistema-mundo moderno proposta por Wallerstein (1974). A met·fora tem a vantagem
de convocar um quadro histÛrico e relacional de reflexıes que escapam ‡ ideologia nacional sob a qual foi
forjado o imagin·rio continental e subcontinental, tanto na Europa quanto nas AmÈricas, nos ˙ltimos
duzentos anos. N„o estou interessado em determinar quantos anos tem o sistema mundo, se quinhentos ou
cinco mil (Gunder Frank e Gills, 1993). Menos me interessa saber a idade da modernidade ou do capitalismo
(Arrighi, 1994). O que de fato me interessa È a emergÍncia do circuito comercial do Atl‚ntico, no sÈculo XVI,
que considero fundamental na histÛria do capitalismo e da modernidade/colonialidade. Tampouco me
interessa discutir se houve ou n„o comÈrcio antes da emergÍncia do circuito comercial do Atl‚ntico, antes do
sÈculo XVI, e sim o impacto que este momento teve na formaÁ„o do mundo moderno/colonial no qual
estamos vivendo e de cujas transformaÁıes planet·rias somos testemunhas. Apesar de tomar a idÈia de
sistema-mundo como ponto de partida, desvio-me dela ao introduzir o conceito de ìcolonialidadeî como o
outro lado (o lado escuro?) da modernidade. Com isso n„o quero dizer que a met·fora de sistema-mundo
moderno n„o tenha considerado o colonialismo. Pelo contr·rio. O que ora afirmo È que a met·fora de
sistema-mundo moderno n„o traz ‡ tona a colonialidade do poder (Quijano, 1997) e a diferenÁa colonial
(Mignolo, 1999; 2000). Conseq¸entemente, sÛ concebe o sistema mundo moderno do ponto de vista de seu
prÛprio imagin·rio, mas n„o do ponto de vista do imagin·rio conflitivo que surge com e da diferenÁa colonial.
As rebeliıes indÌgenas e a produÁ„o cultural amerÌndia, do sÈculo XVI em diante e a RevoluÁ„o Haitiana, no
inÌcio do sÈculo XIX, s„o momentos constitutivos do imagin·rio do mundo moderno/colonial e n„o meras
ocorrÍncias num mundo construÌdo do ponto de vista do discurso hisp‚nico (por exemplo, o debate
Sep˙lveda/Las Casas sobre a natureza do amerÌndio, no qual o amerÌndio n„o teve a oportunidade de dar
sua opini„o; ou a RevoluÁ„o Francesa, considerada por Wallerstein (1991a; 1991b; 1995) momento
fundacional da geocultura do sistema mundo moderno). Neste sentido, a contribuiÁ„o de AnÌbal Quijano, no
artigo escrito a quatro m„os com Wallerstein (Quijano e Wallerstein, 1992) representa um giro teÛrico
fundamental ao traÁar as condiÁıes sob as quais a colonialidade do poder (Quijano, 1997; 1998) foi e
continua sendo uma estratÈgia da ìmodernidadeî desde o momento da expans„o da cristandade para alÈm
do Mediterr‚neo (AmÈrica, ¡sia), que contribuiu para a autodefiniÁ„o da Europa, e foi parte indissoci·vel do
capitalismo, desde o sÈculo XVI. Este momento na construÁ„o do imagin·rio colonial, que ser· mais tarde
retomado e transformado pela Inglaterra e pela FranÁa no projeto da ìmiss„o civilizadoraî, n„o aparece na
histÛria do capitalismo contada por Arrighi (1994). Na reconstruÁ„o de Arrighi, a histÛria do capitalismo È vista
ìdentroî (na Europa), ou de dentro para fora (da Europa para as ColÙnias) e, por isso, a colonialidade do
poder È invisÌvel. A conseq¸Íncia È que o capitalismo, como a modernidade, aparece como um fenÙmeno
europeu e n„o planet·rio, do qual todo o mundo È partÌcipe, mas com distintas posiÁıes de poder. Isto È, a
colonialidade do poder È o eixo que organizou e continua organizando a diferenÁa colonial, a periferia como
natureza.
Sob esse panorama geral, interessa-me recordar um par·grafo de Quijano e Wallerstein (1992: 449) que
oferece um par‚metro para compreender-se a import‚ncia da idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî no imagin·rio do
mundo moderno/colonial a partir de princÌpios do sÈculo XIX:
The modern world-system was born in the long sixteenth century. The Americas as a geo-social construct
were born in the long sixteenth century. The creation of this geo-social entity, the Americas, was the
constitutive act of the modern world-system. The Americas were not incorporated into an already existing
capitalism world-economy. There could not have been a capitalism world-economy without the Americas.
Deixando de lado as conotaÁıes particularistas e triunfalistas que o par·grafo possa invocar, e a
discuss„o sobre a possibilidade de haver ou n„o economia mundial capitalista sem as riquezas das minas
e das plantaÁıes, o fato È que a economia capitalista mudou de rumo e acelerou seu processo com a
emergÍncia do circuito comercial do Atl‚ntico, a transformaÁ„o da concepÁ„o aristotÈlica da escravid„o
exigida tanto pelas novas condiÁıes histÛricas quanto pelo tipo humano (por ex.: negro, africano) que se
identificou a partir desse momento com a escravid„o e estabeleceu novas relaÁıes entre raÁa e trabalho. A
partir deste momento, do momento de emergÍncia e consolidaÁ„o do circuito comercial do Atl‚ntico, j· n„o
È possÌvel conceber a modernidade sem a colonialidade, o lado silenciado pela imagem reflexiva que a
modernidade (por ex.: os intelectuais, o discurso oficial do Estado) construiu de si mesma e que o discurso
pÛs-moderno criticou do interior da modernidade como auto-imagem do poder. A pÛs-modernidade,
autoconcebida na linha unilateral da histÛria do mundo moderno, continua ocultando a colonialidade, e
mantÈm a lÛgica universal e monotÛpica ñda esquerda e da direitañ da Europa (ou do Atl‚ntico Norte) para
fora. A diferenÁa colonial (imaginada no pag„o, no b·rbaro, no subdesenvolvido) È um lugar passivo nos
discursos pÛs-modernos. O que n„o significa que seja um lugar passivo na modernidade e no capitalismo.
A visibilidade da diferenÁa colonial, no mundo moderno, comeÁou a ser percebida com os movimentos de
descolonizaÁ„o (ou independÍncia) desde fins do sÈculo XVIII atÈ a segunda metade do sÈculo XX. A
emergÍncia da idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî foi um desses momentos.
Antes, porÈm, recordemos que a emergÍncia do circuito comercial do Atl‚ntico teve a particularidade (e

34
este aspecto È importante para a idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî) de conectar os circuitos comerciais j·
existentes na ¡sia, na ¡frica e na Europa (rede comercial na qual a Europa era o lugar mais marginal do
centro de atraÁ„o, que era a China, e que ia desde a Europa atÈ as ìÕndias Orientaisî) (Abu-Lughod, 1989;
Wolff, 1982), com An·huac e Tauantinsuiu, os dois grandes circuitos atÈ ent„o sem conex„o com os
anteriores; separados tanto pelo PacÌfico como pelo Atl‚ntico (Mignolo, 2000).

IlustraÁ„o 1
Alguns dos circuitos comerciais existentes entre 1330 e 1550, segundo Abu-Lughod (1989). AtÈ esta data,
existiam tambÈm outros no Norte da ¡frica, que ligavam o Cairo a Fez e a Timbuto.

IlustraÁ„o 2
A emergÍncia do circuito comercial do Atl‚ntico interligou os circuitos assinalados na ilustraÁ„o 1 com
pelo menos dois n„o interligados atÈ ent„o: o circuito comercial que tinha seu centro em Tenochtitl·n e se
1
estendia pelo An·huac; e o que tinha seu centro em Cusco e se estendia pelo Tawantinsuiu .

35
O imagin·rio moderno/colonial apresenta-se de modo muito distinto de acordo com o ponto de vista do qual
o olhamos: a histÛria das idÈias na Europa ou a diferenÁa colonial, as histÛrias forjadas pela colonialidade do
poder nas AmÈricas, na ¡sia ou na ¡frica, ou aquelas das cosmologias anteriores aos contatos com a Europa a
partir do sÈculo XVI, como na constituiÁ„o do mundo moderno colonial, no qual os Estados e as sociedades da
¡frica, da ¡sia e das AmÈricas tiveram que responder e responderam de distintas maneiras e de distintos
momentos histÛricos. A Europa ñatravÈs da Espanhañ deu as costas ao Norte da ¡frica e ao Isl„ a partir do
sÈculo XVI; a China e o Jap„o nunca estiveram sob o controle imperial ocidental, ainda que n„o tenham podido
deixar de responder a sua forÁa expansiva, sobretudo a partir do sÈculo XIX, quando o Isl„ renovou sua relaÁ„o
com a Europa (Lewis, 1997). O sul da ¡sia, a Õndia e diversos paÌses africanos ao sul do Saara foram o objetivo
dos colonialismos emergentes: Inglaterra, FranÁa, BÈlgica e Alemanha. A configuraÁ„o da modernidade na
Europa e da colonialidade no resto do mundo (com exceÁıes, por certo, como È o caso da Irlanda), foi a
imagem hegemÙnica sustentada na colonialidade do poder que torna difÌcil pensar que n„o pode haver
modernidade sem colonialidade; que a colonialidade È constitutiva da modernidade, e n„o derivativa.
As AmÈricas, sobretudo nas primeiras experiÍncias no Caribe, na MesoamÈrica e nos Andes, deram a pauta
do imagin·rio do circuito do Atl‚ntico. A partir desse momento, encontramos transformaÁıes e adaptaÁıes do
modelo de colonizaÁ„o e dos princÌpios religiosos-epistÍmicos que se impuseram desde ent„o. H· numerosos
exemplos que podem ser invocados aqui, a partir do sÈculo XVI, e fundamentalmente nos Andes e na
MesoamÈrica (Adorno, 1986; Gruzinski, 1988; Florescano, 1994; McCormack, 1991). Prefiro, no entanto,
recorrer a exemplos mais recentes, nos quais a modernidade/colonialidade persistem em sua duplicidade; tanto
na densidade do imagin·rio hegemÙnico atravÈs de suas transformaÁıes, mas tambÈm na coexistÍncia no
presente de articulaÁıes passadas, como nas constantes adaptaÁıes e transformaÁıes na da exterioridade
colonial planet·ria. Exterioridade que n„o È necessariamente fora do Ocidente (o que significaria uma total falta
de contato), que no entanto È exterioridade exterior e exterioridade interior (as formas de resistÍncia e de
oposiÁ„o traÁam a exterioridade interior do sistema). Esta duplicidade encaixa-se muito bem na maneira como,
por exemplo, tanto o Estado espanhol quanto diversos Estados das AmÈricas celebraram os quinhentos anos
de seu descobrimento frente aos movimentos e intelectuais indÌgenas que reescrevem a histÛria, que
protestaram contra a celebraÁ„o. A romancista de Laguna, Leslie Marmon Silko, incluiu um ìmapa dos
quinhentos anosî em seu romance Almanac of the Dead (1991), publicada um ano antes do quinto centen·rio.

IlustraÁ„o 3
As AmÈricas no espaÁo de 500 anos, segundo a romancista Leslie Marmon Silko (1991).

36
A primeira declaraÁ„o da Selva Lancadona, em 1993, comeÁa dizendo: ìSomos o produto de quinhentos
anos de lutaî. Rigoberta Mench˙, numa exposiÁ„o lida na conferÍncia sobre democracia e Estado multiÈtnico
na AmÈrica Latina, organizada pelo sociÛlogo Pablo Gonz·lez Casanova, tambÈm recorreu ‡ idÈia de
continuidade da opress„o ao longo de quinhentos anos:
a histÛria do povo guatemalteco pode ser interpretada como uma concretizaÁ„o da diversidade da AmÈrica, da luta
decidida, forjada pelas bases e que em muitas partes do continente ainda se mantÈm no esquecimento.
Esquecimento n„o porque assim se queira, mas porque se transformou numa tradiÁ„o na cultura da opress„o.
Esquecimento que obriga a uma luta e a uma resistÍncia de nossos povos, luta e resistÍncia que tÍm uma histÛria de
500 anos (Mench˙, 1996: 125).

Pois bem, este recorte dos 500 anos È o recorte do mundo moderno/colonial de distintas perspectivas de
seu imagin·rio, que n„o se reduz ao confronto entre espanhÛis e amerÌndios, mas estende-se ao criollo
(branco, negro e mestiÁo) surgido da importaÁ„o da escravos africanos como da populaÁ„o branca europÈia
transplantada por seus prÛprios interesses, na maioria dos casos ‡s AmÈricas. Que a etno-racialidade seja o
ponto de articulaÁ„o do imagin·rio construÌdo no ñe a partir doñ circuito comercial do Atl‚ntico, n„o exclui os
aspectos de classes, os quais estavam dados desde o comeÁo nas fases e na transformaÁ„o pela qual
passou a escravid„o, em relaÁ„o a como era conhecida no Mediterr‚neo, a partir de 1517, quando se
transportaram da ¡frica os primeiros quinze mil escravos. E tampouco nega os aspectos de gÍnero sexual e
de sexualidade que analisou Tressler recentemente. SÛ que a etno-racialidade transformou-se na
engrenagem da diferenÁa colonial configurada a partir da expuls„o dos mouros e dos judeus, dos debates
sobre o lugar dos amerÌndios na economia da cristandade e, por ˙ltimo, pela exploraÁ„o e silenciamento dos
escravos africanos. Foi com ñe a partir doñ circuito comercial do Atl‚ntico que a escravid„o se tornou
sinÙnimo de negritude.
O panorama que acabo de esboÁar n„o È uma descriÁ„o do colonialismo, mas da colonialidade, da
construÁ„o do mundo moderno no exercÌcio da colonialidade do poder. Mas tambÈm das respostas da
diferenÁa colonial ‡ coerÁ„o programada ou exercida pela colonialidade do poder. O imagin·rio do mundo
moderno/colonial surgiu da complexa articulaÁ„o de forÁas, de vozes escutadas ou apagadas, de memÛrias
37
compactas ou fraturadas, de histÛrias contadas de um sÛ lado, que suprimiram outras memÛrias, e de
histÛrias que se contaram e se contam levando-se em conta a duplicidade de consciÍncia que a consciÍncia
colonial gera. No sÈculo XVI, Sep˙lveda e Las Casas contribuÌram, de maneira distinta e em distintas
posiÁıes polÌticas, para construir a diferenÁa colonial. Guaman Poma ou Ixtlixochitl pensaram e escreveram
da diferenÁa colonial em que foram colocados pela colonialidade do poder. Em princÌpios do sÈculo XX, o
sociÛlogo e intelectual negro W. E. B. Du Bois introduziu o conceito de ìdupla consciÍnciaî que captura o
dilema de subjetividades formadas na diferenÁa colonial, experiÍncias de quem viveu e vive a modernidade
na colonialidade. Estranha sensaÁ„o nesta AmÈrica, diz Du Bois (1970), para quem n„o tem uma verdadeira
autoconsciÍncia, mas essa consciÍncia tem de formar-se e definir-se em relaÁ„o ao ìoutro mundoî. Isto È, a
consciÍncia vivida na diferenÁa colonial È dupla porque È subalterna. A subalternidade colonial gera a
diversidade de consciÍncias duplas, n„o sÛ a afro-americana, que È a experiÍncia de Du Bois, mas tambÈm
ìa consciÍncia que surgiu em Rigoberta Mench˙î (1982) ou ìa consciÍncia da Nova MestiÁaî em Gloria
Anzald˙a (1987). Citemos Du Bois:
It is a peculiar sensation, this double-consciousness, this sense of always looking at oneís self through the eyes of the
others, of measuring oneís soul by the tape of a world that looks on in amused contempt and pity. One ever feels his
two-ness ñan American, a Negro-; two souls, two thoughts, two unreconciled strivings; two warring ideals in one dark
body [...] The history of the American Negro is the history of his strife, ñthis longing to attain self-conscious manhood,
to merge his double self into a better and truer self (1970: 8-9).

O princÌpio da dupla consciÍncia È, em meu argumento, a caracterÌstica do imagin·rio do mundo


moderno-colonial nas margens dos impÈrios (nas AmÈricas, no Sudeste da ¡sia, no Norte da ¡frica e ao Sul
do Saara). Mas tambÈm, como se comprova hoje com as migraÁıes massivas aos Estados Unidos e ‡
Europa, no interior dos paÌses que foram ou que s„o potÍncias imperiais: os ìnegrosî (sejam africanos,
paquistaneses ou indianos) na Inglaterra; os magrebinos na FranÁa; os latinos nos Estados Unidos. A dupla
consciÍncia, em suma, È uma conseq¸Íncia da colonialidade do poder e a manifestaÁ„o de subjetividades
forjadas na diferenÁa colonial. As histÛrias locais variam, porque a prÛpria histÛria europÈia foi mudando no
processo de forjar-se a si mesma no movimento expansivo do Ocidente. Nas divisıes continentais e
subcontinentais estabelecidas pela cartografia simbÛlica crist„ (por exemplo, a tripartiÁ„o do mundo
continental conhecido atÈ ent„o: Europa, ¡frica e ¡sia), o horizonte colonial das AmÈricas È fundamental,
sen„o fundacional, do imagin·rio do mundo moderno. A emergÍncia do ìhemisfÈrio ocidentalî, como idÈia, foi
um momento de transformaÁ„o do imagin·rio surgido no ñe com oñ circuito comercial do Atl‚ntico. A
particularidade da imagem de ìhemisfÈrio ocidentalî foi a de marcar, de maneira forte, a inserÁ„o dos criollos
descendentes de europeus, em ambas as AmÈricas, no mundo moderno/colonial. Esta inserÁ„o representou,
ao mesmo tempo, a consolidaÁ„o da dupla consciÍncia criolla que se foi formando no prÛprio processo de
colonizaÁ„o.

II. Dupla consciÍncia criolla e hemisfÈrio ocidental


A idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî (que È mencionada cartograficamente pela primeira vez apenas no final
do sÈculo XVIII) estabelece j· uma posiÁ„o ambÌgua. A AmÈrica È a diferenÁa, mas ao mesmo tempo È a
mesmidade. … outro hemisfÈrio, mas È ocidental. … diferente da Europa (que por certo n„o È o Oriente), mas
est· ligada a ela. … diferente, no entanto, da ¡frica e da ¡sia, continentes e culturas que n„o formam parte da
definiÁ„o de hemisfÈrio ocidental. No entanto, quem define tal hemisfÈrio? Para quem È importante e
necess·rio definir um lugar de pertencimento e de diferenÁa? Para os que experimentaram a diferenÁa
colonial como criollos de ascendÍncia hisp‚nica (BolÌvar) e anglo-saxÙnica (Jefferson)?
O que cada um entendeu por ìhemisfÈrio ocidentalî (apesar de a express„o ter-se originado no inglÍs das
AmÈricas) difere, como era de se esperar. E difere, tambÈm como era de se esperar, de maneira n„o trivial.
Na ìCarta da Jamaicaî, que BolÌvar escreveu em 1815 e dirigiu a Henry Cullen, ìum cavalheiro desta ilhaî, o
inimigo era a Espanha. As referÍncias de BolÌvar ‡ ìEuropaî (ao Norte da Espanha) n„o eram referÍncias a
um inimigo, mas sim a express„o de certa surpresa diante do fato de que a ìEuropaî (que supostamente
nessa data BolÌvar localizaria na FranÁa, na Inglaterra e na Alemanha) se mostrasse indiferente ‡s lutas de
independÍncia que estavam ocorrendo nesses anos na AmÈrica hisp‚nica. Tendo em conta que, tambÈm
nesse perÌodo, a Inglaterra j· era um impÈrio em pleno desenvolvimento, com v·rias dÈcadas de colonizaÁ„o
da Õndia e inimigo da Espanha, È possÌvel que Mr. Cullen tenha recebido com interesse e tambÈm com prazer
as diatribes de BolÌvar contra os espanhÛis. A ìlenda negraî deixou sua marca no imagin·rio do mundo
moderno/colonial.
Por outro lado, o inimigo de Jefferson era a Inglaterra, apesar de, ao contr·rio de BolÌvar, Jefferson n„o
ter refletido sobre o fato de que a Espanha n„o se entusiasmasse com a independÍncia dos Estados Unidos
da AmÈrica do Norte. Com isto quero dizer que as referÍncias cruzadas, de Jefferson em direÁ„o ao Sul e de
BolÌvar em direÁ„o ao Norte, eram verdadeiramente referÍncias cruzadas. Enquanto BolÌvar imaginava, na
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carta a Cullen, a possÌvel organizaÁ„o polÌtica da AmÈrica (que em seu imagin·rio era a AmÈrica hisp‚nica) e
especulava a partir das sugestıes de um duvidoso escritor francÍs de duvidosa estirpe, o Abe de Pradt
(Bornholdt, 1944: 201-221), Jefferson olhava com entusiasmo os movimentos de independÍncia no sul, ainda
que tivesse desconfianÁa dos caminhos de seu futuro polÌtico. Numa carta ao bar„o Alexander von Humboldt,
fechada em dezembro de 1813, Jefferson lhe agradecia pelo envio de observaÁıes astronÙmicas depois da
viagem que Humboldt realizara pela AmÈrica do Sul e enfatizava a oportunidade da viagem no momento em
que ìesses paÌsesî estavam em processo de ìtornarem-se atores em seu palcoî. E acrescentava:
That they will throw off their European dependence I have no doubt; but in what kind of government their evolution will
end I am not so certain. History, I believe, furnishes no example of a priest-ridden people maintaining a free civil
government [...] But in whatever governments they end they will be ìAmericanî governments, no longer to be involved
in the never-ceasing broils of Europe (Jefferson, 1903-1904: 22).

Por sua vez, BolÌvar (1993: 25) expressava com veemÍncia:


Desejo mais que qualquer outro ver formar-se na AmÈrica a maior naÁ„o do mundo, menos por sua
extens„o e riqueza que por sua liberdade e glÛria. Apesar de que aspiro ‡ perfeiÁ„o do governo de minha
p·tria, n„o me posso convencer de que o Novo Mundo seja neste momento regido por uma grande
Rep˙blica.
Enquanto BolÌvar falava do ìhemisfÈrio de Colomboî, Jefferson falava do hemisfÈrio que ìa AmÈrica tem
para si mesmaî. Eram, na realidade, duas AmÈricas em que pensavam Jefferson e BolÌvar. E tambÈm o eram
geograficamente. A AmÈrica ibÈrica estendia-se atÈ onde hoje s„o os Estados da CalifÛrnia e do Colorado,
enquanto a AmÈrica sax„ n„o ia alÈm, para o Oeste, da Pensilv‚nia, Washington e Atlanta.

IlustraÁ„o 4
As possessıes hisp‚nicas e portuguesas, nas AmÈricas, atÈ princÌpios do sÈculo XIX segundo Eric Wolf
(1982).

39
O ponto no qual ambos concordavam era na maneira como se referiam ‡s respectivas metrÛpoles, Espanha
e Inglaterra. Ao referir-se ‡ conquista, BolÌvar sublinhava as ìbarbaridades dos espanhÛisî como ìbarbaridades
que o tempo presente rejeitou como fabulosas, pois parecem superiores ‡ perversidade humanaî (1993: 17).
Jefferson referia-se aos ingleses como exterminadores dos americanos nativos (ìextermination of this race in
OUR AmÈricaî, grifo nosso, WM), como um capÌtulo adicional ìin the English history of the same colored men in
Asia, and of the brethen of their own color in Ireland, and wherever else Anglo-mercantile cupidity can find a
two-penny interest in deluging the earth with human bloodyî (1903-1904: 24). Apesar de cruzadas as
referÍncias, havia o seguinte em comum entre Jefferson e BolÌvar: a idÈia do hemisfÈrio ocidental estava ligada
ao surgimento da consciÍncia criolla, anglo-sax„ ou hisp‚nica. A emergÍncia da consciÍncia criolla negra no
Haiti era diferente. Era uma quest„o limitada ao colonialismo francÍs e ‡ heranÁa africana, e o colonialismo
francÍs, assim como o inglÍs, no Caribe, n„o teve a forÁa da imigraÁ„o inglesa que esteve na base da fundaÁ„o
dos Estados Unidos, ou dos legados do forte colonialismo hisp‚nico. A consciÍncia criolla negra, contr·ria ‡
consciÍncia criolla branca (anglo-sax„ ou ibÈrica), n„o era a consciÍncia herdeira dos colonizadores e
emigrados, e sim a herdeira da escravid„o. Por isso a idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî, ou como dir· mais tarde
MartÌ, da ìnossa AmÈricaî, n„o era comum entre eles. Em suma, ìhemisfÈrio ocidentalî e ìnossa AmÈricaî s„o
figuras fundamentais do imagin·rio criollo (anglo-sax„o ou ibÈrico), mas n„o do imagin·rio amerÌndio (no Norte
e no Sul), ou do imagin·rio afro-americano (tanto na AmÈrica Latina quanto no Caribe e na AmÈrica do Norte).
Sabemos, por exemplo, o que pensava Jefferson da RevoluÁ„o Haitiana e de ìthat race of menî (Jefferson
citado por Trouillot, 1999). A consciÍncia criolla em sua relaÁ„o com a Europa forjou-se como consciÍncia
geopolÌtica mais que como consciÍncia racial. E a consciÍncia criolla, como consciÍncia racial, forjou-se

40
internamente na diferenÁa com a populaÁ„o amerÌndia e afro-americana. A diferenÁa colonial transformou-se e
reproduziu-se no perÌodo nacional, passando a ser chamada de ìcolonialismo internoî. O colonialismo interno È,
assim, a diferenÁa colonial exercida pelos lÌderes da construÁ„o nacional. Este aspecto da formaÁ„o da
consciÍncia criolla branca È o que transformou o imagin·rio do mundo moderno/colonial e estabeleceu as
bases do colonialismo interno que atravessou todo o perÌodo de formaÁ„o nacional, tanto na AmÈrica ibÈrica
como na AmÈrica anglo-sax„ (Nelson, 1998). As idÈias de ìAmÈricaî e de ìhemisfÈrio ocidentalî (n„o ìÕndias
Ocidentaisî, denominaÁ„o hisp‚nica da territorialidade colonial) foram imaginadas como o lugar de
pertencimento e do direito ‡ autodeterminaÁ„o. Apesar de BolÌvar pensar em sua naÁ„o de pertencimento e no
restante da AmÈrica (hisp‚nica), Jefferson pensava em algo mais indeterminado, ainda que o pensasse sobre a
memÛria da territorialidade colonial anglo-sax„ e sobre um territÛrio que n„o havia sido configurado pela idÈia
de ìÕndias Ocidentaisî. ìÕndias Ocidentaisî foi a marca distintiva do colonialismo hisp‚nico que tinha de
diferenciar suas possessıes na AmÈrica das asi·ticas (ilhas Filipinas, por exemplo), identificadas como ìÕndias
Orientaisî. Na formaÁ„o da Nova Inglaterra, por sua vez, ìÕndias Ocidentaisî era um conceito estranho. Quando
a express„o foi introduzida no inglÍs, ìWest Indiesî usou-se fundamentalmente para designar o Caribe inglÍs. O
que estava claro para ambos, BolÌvar e Jefferson, era a separaÁ„o geopolÌtica da Europa, de uma Europa que
num caso tinha seu centro na Espanha e, no outro, na Inglaterra. J· que as designaÁıes anteriores (Õndias
Ocidentais, AmÈrica) foram designaÁıes na formaÁ„o da consciÍncia castelhana e europÈia, ìhemisfÈrio
ocidentalî foi a necess·ria marca distintiva do imagin·rio da consciÍncia criolla (branca), pÛs-independÍncia. A
consciÍncia criolla, por certo, um fato novo, j· que sem consciÍncia nativa n„o teria havido independÍncia nem
no Norte nem no Sul. O novo e importante em Jefferson e em BolÌvar foi o momento de transformaÁ„o da
consciÍncia criolla colonial em consciÍncia criolla pÛs-colonial e nacional e a emergÍncia do colonialismo
interno face ‡ populaÁ„o amerÌndia e afro-americana.
Da perspectiva da consciÍncia nativa negra, tal como a descreve Du Bois, podemos dizer que a
consciÍncia criolla branca È uma dupla consciÍncia que n„o se reconheceu como tal. A negaÁ„o da Europa
n„o foi, nem na AmÈrica hisp‚nica nem na Anglo-saxÙnica, a negaÁ„o da ìEuropeidadeî, j· que em ambos
os casos, e em todo o impulso da consciÍncia criolla branca, tratava-se de serem americanos sem deixarem
de ser europeus; de serem americanos, mas diferentes dos amerÌndios e da populaÁ„o afro-americana. Se a
consciÍncia nativa definiu-se em relaÁ„o ‡ Europa em termos geopolÌticos, em termos raciais È que foi
definida sua relaÁ„o com a populaÁ„o criolla negra e com a populaÁ„o indÌgena. A consciÍncia criolla, que se
viveu (e ainda hoje se vive) como dupla, ainda que n„o se tenha reconhecido nem se reconheÁa como tal,
reconheceu-se na homogeneidade do imagin·rio nacional e, desde o inÌcio do sÈculo XX, na mestiÁagem,
como contraditÛria express„o da homogeneidade. A celebraÁ„o da pureza mestiÁa de sangue, por assim
dizer. A formaÁ„o do Estado-naÁ„o exigia a homogeneidade mais que a dissoluÁ„o, e portanto ou era
necess·rio ocultar ou era impens·vel a celebraÁ„o da heterogeneidade. Se assim n„o houvesse sido, se a
consciÍncia criolla branca se houvesse reconhecido como dupla, n„o terÌamos hoje nem nos Estados Unidos
nem no Caribe nem na AmÈrica hisp‚nica os problemas de identidade, de multiculturalismo e de
pluriculturalidade que temos. Diz Jefferson (1903-1904: 22):
The European nations constitute a separate division of the globe; their localities make them part of a
distinct system; They have a set of interests of their own in which it is our business never to engage
ourselves. America has a hemisphere to itself.
Jefferson negava a Europa, n„o a Europeidade. Os revolucion·rios haitianos, Toussaint L¥Ouverture e
Jean-Jacques Dessalines, por sua vez, negaram a Europa e a Europeidade (Dayan, 1998: 19-25). Direta ou
indiretamente, foi a di·spora africana e n„o o hemisfÈrio ocidental o que alimentou o imagin·rio dos
revolucion·rios haitianos. Por outro lado, a veemÍncia com que se colocava em Jefferson e em BolÌvar a
separaÁ„o com a Europa era, ao mesmo tempo, motivada por se saberem e se sentirem, em ˙ltima inst‚ncia,
europeus nas margens, europeus que n„o o eram mas que no fundo queriam sÍ-lo. Esta dupla consciÍncia
nativa branca, de intensidades distintas nos perÌodos colonial e nacional, foi a caracterÌstica da
intelectualidade independentista e seu legado ‡ consciÍncia nacional durante o sÈculo XIX. Repito que a
caracterÌstica dessa dupla consciÍncia n„o era racial, mas geopolÌtica, e se definia na relaÁ„o com a Europa.
A dupla consciÍncia n„o se manifestava, por certo, em relaÁ„o ao componente amerÌndio ou afro-americano.
Do ponto de vista criollo, o fato de ser criollo e Ìndio ou negro ao mesmo tempo n„o era um problema que se
tinha que resolver. Neste contexto ñem relaÁ„o ‡s comunidades amerÌndias e afro-americanasñ a
consciÍncia nativa branca definiu-se como homogÍnea e distinta. Se os nativos brancos n„o assumiram sua
dupla consciÍncia, isto se deveu, talvez, ao fato de que um dos traÁos da conceitualizaÁ„o do hemisfÈrio
ocidental foi a integraÁ„o da AmÈrica ao Ocidente. Isso n„o era possÌvel para a consciÍncia criolla negra. A
¡frica, apesar de sua localizaÁ„o geogr·fica, nunca foi parte do imagin·rio geopolÌtico ocidental. N„o se
permitia que Du Bois, como tampouco se permitiu que Guaman Poma de Ayala ou que Garcilaso de la Vega,
no sÈculo XVI, se sentissem parte da Europa ou de alguma forma marginalmente europeus. V·rias formas de
dupla consciÍncia, mas dupla consciÍncia no fim das contas, foram as conseq¸Íncias e s„o os legados do
mundo moderno/colonial.

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III. O hemisfÈrio ocidental e a geocultura do sistema-mundo moderno/colonial
Um dos traÁos que distingue o processo de descolonizaÁ„o das AmÈricas em fins do sÈculo XVIII e inÌcio
do sÈculo XIX È, como apontado por Klor de Alva (1992), o fato de que a descolonizaÁ„o estivesse nas m„os
dos ìcriollosî, e n„o dos ìnativosî, como ocorrer· mais tarde, no sÈculo XX, na ¡frica e na ¡sia. H·, no
entanto, outro elemento importante a ser levado em conta na primeira onda de descolonizaÁ„o acompanhada
da idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî e da transformaÁ„o do imagin·rio do mundo moderno/colonial que se
resumiu nesta imagem geopolÌtica.
Se a idÈia de hemisfÈrio ocidental encontrou seu momento de emergÍncia nas independÍncias dos
criollos, anglo-saxıes e latinos, em ambas as AmÈricas, seu momento de consolidaÁ„o ocorre quase um
sÈculo mais tarde, depois da guerra hispano-americana e durante a presidÍncia de Theodor Roosevelt, no
inÌcio do sÈculo XX. Se as histÛrias necessitam de um comeÁo, a histÛria da rearticulaÁ„o forte da idÈia de
hemisfÈrio ocidental no sÈculo XX teve seu comeÁo na Venezuela quando as forÁas armadas da Alemanha e
da Inglaterra iniciaram um bloqueio para pressionar pelo pagamento da dÌvida externa. A guerra hispano-
americana (1898) havia sido uma guerra pelo controle dos mares e do canal do Panam·, face ‡ ameaÁa de
paÌses imperiais fortes da Europa Ocidental, um perigo que se repetia com o bloqueio da Venezuela. A
intervenÁ„o da Alemanha e da Inglaterra foi um bom momento para reavivar a exigÍncia de autonomia do
ìhemisfÈrio ocidentalî, que perdera forÁa durante a guerra civil estadunidense e nos anos posteriores a ela. O
fato de que o bloqueio fosse dirigido ‡ Venezuela criou as condiÁıes para que a idÈia e a ideologia de
ìhemisfÈrio ocidentalî se reavivasse como uma quest„o que dissesse respeito n„o apenas aos Estados
Unidos, mas tambÈm aos paÌses latino-americanos. O diplomata argentino Luis MarÌa Drago, Ministro das
RelaÁıes Exteriores, deu o primeiro passo nesse sentido em dezembro de 1902 (Whitaker, 1954: 87-100).
Whitaker propıe, em grandes traÁos, uma interpretaÁ„o destes anos de polÌtica internacional que ajuda a
entender a mudanÁa radical no imagin·rio do sistema-mundo moderno/colonial que teve lugar em princÌpios do
sÈculo com a reinterpretaÁ„o roosveltiana da idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî. Segundo Whitaker, a proposta de
Luis MarÌa Drago, Ministro Argentino das RelaÁıes Exteriores, para solucionar o embargo ‡ Venezuela
(proposta que chegou a ser conhecida como a ìDoutrina Dragoî), foi na realidade uma espÈcie de ìcorol·rioî ‡
Doutrina Monroe de uma perspectiva multilateral que envolvia todos os Estados das AmÈricas. Whitaker sugere
que a posiÁ„o de Drago n„o foi bem recebida em Washington entre outras razıes porque nos Estados Unidos
se considerava a Doutrina Monroe como uma doutrina de polÌtica nacional e, indiretamente, unilateral, quando
se aplicava ‡s relaÁıes internacionais. Drago, por sua vez, tinha interpretado a Doutrina Monroe na Argentina
como um princÌpio multilateral v·lido para todo o hemisfÈrio ocidental, que podia ser posto em execuÁ„o de e
em qualquer parte das AmÈricas. A segunda das razıes, segundo Whitaker, era uma conseq¸Íncia da anterior.
Isto È, se verdadeiramente havia um ìcorol·rioî para estender a efetividade da Doutrina Monroe ‡s relaÁıes
internacionais, este ìcorol·rioî deveria surgir de e em Washington, e n„o na e da Argentina ou de qualquer
outra parte da AmÈrica Latina. Este foi, segundo Whitaker, o caminho seguido por Washington quando, em
dezembro de 1904, Roosevelt propÙs seu prÛprio ìcorol·rioî ‡ Doutrina Monroe. Apesar de semelhante ao
proposto por Drago, tinha importantes diferenÁas. Whitaker enumera as seguintes: a) ambos os corol·rios
destinavam-se a resolver o mesmo problema (a intervenÁ„o europÈia na AmÈrica) e baseavam-se nas mesmas
premissas (na Doutrina Monroe e na idÈia de hemisfÈrio ocidental); b) ambos os ìcorol·rios propunham-se a
resolver o problema atravÈs de uma exceÁ„o ‡ lei internacional em favor do hemisfÈrio ocidental e c) ambos
propunham-se a alcanÁar esta soluÁ„o mediante um ìAmerican policy pronoucement, not through a universally
agreed amendment to international lawî (Whitaker, 1954: 100). As diferenÁas, no entanto, foram o que
reorientou a configuraÁ„o da nova ordem mundial: a ìascens„oî de um paÌs neocolonial ou pÛs-colonial no
grupo dos Estados-naÁ„o imperiais. Uma mudanÁa de grande envergadura no imagin·rio e na estrutura do
mundo moderno/colonial. As diferenÁas entre Roosevelt e Drago residiam, segundo Whitaker, na maneira de
implementar a nova polÌtica internacional. Roosevelt propÙs fazÍ-lo unilateralmente por iniciativa dos Estados
Unidos, enquanto Drago propunha uma aÁ„o multilateral, democr·tica e interamericana. Os resultados foram
muito diferentes dos que poderiam ser imaginados se o ìcorol·rioî de Drago houvesse sido implementado. Por
outro lado, Roosevelt reclamou para os Estados Unidos o monopÛlio dos direitos de administraÁ„o da
autonomia e da democracia do hemisfÈrio ocidental (Whitaker, 1954: 100). A Doutrina Monroe rearticulada com
a idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî introduziu uma mudanÁa fundamental na configuraÁ„o do mundo
moderno/colonial e no imagin·rio da modernidade/colonialidade. A conclus„o de Whitaker a este capÌtulo do
mundo moderno/colonial È oportuna: ìAs a result ñda implementaÁ„o do ìcorol·rio Roosveltî em vez do
ìcorol·rio Dragoîñ the leaders in Washington and those in Western Europe came to understand each other
better and better as time went on. The same development, however, widened the already considerable gap
between Anglo-Saxon America and Latin Americaî (Whitaker, 1954: 107).

IlustraÁ„o 5

42
A AmÈrica Latina em 1976 segundo Henry Kissinger (1999)

O momento que acabo de narrar, baseado em Whitaker, sugerindo as conexıes da polÌtica internacional
com o imagin·rio do mundo moderno/colonial, È conhecido na histÛria da literatura latino-americana pela Ode
a Roosevelt do poeta nicarag¸ense e cosmopolita RubÈn DarÌo e pelo ensaio Ariel, do intelectual uruguaio
Enrique RodÛ. Interessa-me aqui voltar ao perÌodo que se estende desde a guerra hispano-americana (1898)
atÈ o ìtriunfoî do corol·rio de Roosevelt, para refletir sobre a geocultura e o imagin·rio do mundo
moderno/colonial e o impacto da idÈia de hemisfÈrio ocidental.
Respondendo ‡s crÌticas dirigidas ao forte perfil econÙmico do conceito de sistema-mundo moderno,
Immanuel Wallerstein (1991a) introduziu o conceito de geocultura. Wallerstein constrÛi o conceito
historicamente da RevoluÁ„o Francesa atÈ a crise de 1968 na FranÁa, e logicamente como a estrutura
cultural que ata geoculturalmente o sistema-mundo. A ìgeoculturaî do sistema-mundo moderno deveria
ser entendida como a imagem ideolÛgica (e hegemÙnica) sustentada e expandida pela classe
dominante, depois da RevoluÁ„o Francesa. A imagem hegemÙnica n„o È portanto equivalente ‡
estruturaÁ„o social, e sim a maneira pela qual um grupo, o que impıe a imagem, concebe a estruturaÁ„o
social. Dever-se-ia entender por ìimagin·rio do mundo moderno/colonialî as variadas e conflitivas
43
perspectivas econÙmicas, polÌticas, sociais, religiosas, etc., nas que se atualiza e transforma a
estruturaÁ„o social. Mas a inclui como o aspecto monotÛpico e hegemÙnico, localizado na segunda
modernidade, com a ascens„o da FranÁa, Inglaterra e Alemanha ‡ lideranÁa do mundo moderno/colonial
(Wallerstein, 1991a; 1991b; 1995). N„o h· d˙vidas de que o que Wallerstein chama de geocultura È o
componente do imagin·rio do mundo moderno/colonial que se universaliza, e o faz n„o apenas em
nome da miss„o civilizadora ao mundo n„o europeu, mas relega o sÈculo XVI ao passado, e com ele o
sul da Europa. O imagin·rio que emerge com o circuito comercial do Atl‚ntico que pıe amerÌndios,
peninsulares e escravos africanos em relaÁıes conflitivas n„o È para Wallerstein um componente da
geocultura. Ou seja, Wallerstein descreve como geocultura do sistema-mundo moderno o imagin·rio
hegemÙnico e deixa de lado tanto as contribuiÁıes da diferenÁa colonial como da diferenÁa imperial: a
emergÍncia do hemisfÈrio ocidental no horizonte colonial da modernidade. A geocultura de Wallerstein È,
assim, o imagin·rio hegemÙnico da segunda fase da modernidade, e È eurocÍntrico no sentido restrito
do termo, centrado na FranÁa, Inglaterra e Alemanha, da perspectiva histÛrica do imagin·rio nacional
francÍs. A RevoluÁ„o Francesa teve lugar precisamente num momento de ìinter imperiumî no qual se
consolidou a Europa das naÁıes de costas ‡ quest„o colonial. A independÍncia dos Estados Unidos
(que n„o sÛ antecipou a RevoluÁ„o Francesa, mas contribuiu para que ela fosse possÌvel) È alheia ou
marginal ao conceito de geocultura de Wallerstein, porque ñem minha interpretaÁ„oñ seu conceito de
sistema-mundo moderno È cego ‡ diferenÁa colonial, enquanto que as independÍncias nas AmÈricas, os
primeiros movimentos anti-sistÍmicos, foram movimentos realizados pela diferenÁa colonial. Estes
movimentos foram gerados pela e na diferenÁa colonial, ainda que ela se reproduzisse de outra maneira,
na formaÁ„o nacional, como mencionei acima. Wallerstein destacou no conceito de geocultura o
componente hegemÙnico do mundo moderno que acompanhou a revoluÁ„o burguesa na consolidaÁ„o
da Europa das naÁıes e que ao mesmo tempo relegou a acontecimentos ìperifÈricosî os primeiros
movimentos de descolonizaÁ„o de um mundo moderno mas tambÈm colonial. Tal cegueira foi not·vel no
caso da RevoluÁ„o Haitiana, como demonstrou Trouillot (1995) explicando as razıes pelas quais uma
revoluÁ„o de criollos negros com o apoio de escravos negros n„o tinha lugar em discursos libert·rios
sobre os direitos do homem e do cidad„o, que foram pensados num mundo onde a ìmatriz invisÌvelî era
branca, composta de cidad„os brancos fundamentalmente, e n„o de Ìndios e negros. Neste esquema,
as diferenÁas de gÍnero e de sexualidade foram subsumidas pelas classificaÁıes raciais. N„o era nem È
a mesma coisa ser mulher branca que negra ou de cor. A colonialidade È constitutiva da modernidade.
As relaÁıes assimÈtricas de poder, ao mesmo tempo que a participaÁ„o ativa da diferenÁa colonial na
expans„o do circuito comercial do Atl‚ntico constituÌdo atravÈs dos sÈculos como Ocidente ou
civilizaÁ„o ocidental, s„o o que justifica e torna necess·rio o conceito de ìcolonialidade do poderî
(Quijano, 1997) e de ìdiferenÁa colonialî (Mignolo, 2000) para corrigir as limitaÁıes histÛrico-geogr·ficas
e lÛgicas do conceito de geocultura em sua formulaÁ„o wallersteniana:
In the case of the modern world-system, it seems to me that its geo-culture emerged with the French Revolution
and then began to loose its widespread acceptance with the world revolution of 1968. The capitalist world-economy
has been operating since the long sixteenth century. It functioned for three centuries, however, without any firmly
established geo-culture. That is to say, from the sixteenth to the eighteenth century, no one set of values and basic
rules prevailed within the capitalist world-economy, actively endorsed the majority of the cadres and passively
accepted by the majority of the ordinary people. The French Revolution, lato senso, changed that. It established two
new principles: (1) the normality of political change and (2) the sovereignty of people [...]

The key point to note about these two principles is that they were, in and of themselves, quite revolutionary in
their implications for the world-system. Far from ensuring the legitimacy of the capitalist world-economy, they
threatened to delegitimize it in the long run. It is in this sense that I have argued elsewhere that ìthe French
Revolutionî represented the first of the anti-systemic revolution of the capitalist world-economy ñin a small part
a succes, in larger part a failure (Wallerstein, 1995: 1166).

A dificuldade de Wallerstein para reconhecer a constituiÁ„o do mundo moderno sem a participaÁ„o da


FranÁa e da Inglaterra ñe portanto negar a contribuiÁ„o de trÍs sÈculos de colonialismo espanhol e
portuguÍsñ È, sem d˙vida, uma conseq¸Íncia do que concebe como geocultura. O imagin·rio da Europa do
Norte, a partir da RevoluÁ„o Francesa, È um imagin·rio que se construiu paralelamente ao triunfo da
Inglaterra e da FranÁa sobre a Espanha e Portugal como novas potÍncias imperiais. A emergÍncia do
conceito de ìhemisfÈrio ocidentalî n„o permitia prever que marcava, desde o comeÁo, os limites do que
Wallerstein chama de geocultura. E o marca de duas maneiras: uma por rearticular a diferenÁa colonial; a
outra por ir absorvendo, ao longo de sua histÛria, o conceito de ìmiss„o civilizadoraî, conceito central na
geocultura de Wallerstein, e traduÁ„o da ìmiss„o cristianizadoraî, dominante do sÈculo XVI ao XVIII, mas que
Wallerstein n„o reconhece como geocultura.

44
IV. Do hemisfÈrio ocidental ao Atl‚ntico Norte
Samuel Huntington descreveu a nova ordem mundial, apÛs o fim da guerra fria, em nove civilizaÁıes.

IlustraÁ„o 6
As nove civilizaÁıes de Samuel Huntington e seus territÛrios apÛs o fim da Guerra Fria (Huntington,
1996).

S„o as seguintes as nove civilizaÁıes: AmÈrica Latina, ¡frica (mais especificamente a ¡frica ao sul do
Saara), Isl„, China, Hindu, Ortodoxa, Budista e Japonesa. Deixando de lado o fato de que a lÛgica
classificatÛria de Huntington se parece com a do imperador chinÍs mencionado por Jorge Luis Borges e
adotado por Michel Foucault no inÌcio de As palavras e as coisas (1967), me interessa aqui apenas refletir
sobre o fato de que a AmÈrica Latina È, para Huntington, uma civilizaÁ„o em si mesma, e n„o parte do
hemisfÈrio ocidental.
A AmÈrica Latina, para Huntington (1996: 46), tem uma identidade que a diferencia do Ocidente:
Alhtough an offspring of European civilization, Latin America has evolved along a very different path from
Europe and North America. It has a corporatist, authoritarian culture, which Europe has to a much lesser
degree and North America not at all.
Aparentemente, Huntington n„o percebe o fascismo e o nazismo como autorit·rios. Tampouco percebe o
fato de que o autoritarismo dos Estados Unidos, a partir de 1945, projetou-se no controle das relaÁıes
internacionais numa forma nova de colonialismo, um colonialismo sem territorialidade. Mas h· mais
caracterÌsticas invocadas por Huntington para apontar a diferenÁa latino-americana:
Europe and North America both felt the effects of the Reformation and have combined Catholic and Protestant
cultures. Historically, although this may be changing, Latin America has been only Catholic (Huntington, 1996: 46).

Nesta parte do argumento, a diferenÁa invocada È a diferenÁa imperial iniciada pela Reforma, que tomou
45
corpo a partir do sÈculo XVII no desenvolvimento da ciÍncia e da filosofia, no conceito de Raz„o que deu
coerÍncia ao discurso da segunda modernidade (ascens„o da Inglaterra, FranÁa e Alemanha sobre Portugal
e Espanha). AlÈm disso, terceiro elemento, um componente importante da AmÈrica Latina È, para Huntington,
ìthe indigenous cultures, which did not exist in Europe, were effectively wiped out in North America, and which
vary in importance from Mexico, Central America, Peru and BolÌvia, on the one hand, to Argentina and Chile,
on the otherî (1996: 46). Aqui, o argumento de Huntington passa da diferenÁa colonial ‡ diferenÁa imperial,
tanto em sua forma origin·ria, nos sÈculos XVI a XVIII, como em sua rearticulaÁ„o durante o perÌodo de
construÁ„o nacional, que È precisamente quando a diferenÁa entre BolÌvia e Argentina, por exemplo, se faz
mais evidente, quando o modelo imperial se impıe do Norte da Europa sobre a decadÍncia do impÈrio
hisp‚nico. Como conclus„o a estas observaÁıes, Huntington sustenta:
Latin AmÈrica could be considered either a subcivilization within Western civilization or a separate civilization closely
affiliated with the West. For an analysis focused on the international political implications of civilizations, including the
relations between Latin America, on the one hand, and North America and Europe, on the other, the latter is more
appropriate and useful designation [...]

The West, then, includes Europe, North America, plus the other European settler countries such as Australia and New
Zealand (Huntington, 1996: 47).

Em que pensa Huntington quando fala em ìother European settler countries such as Australia and New
Zealandî? Obviamente na colonizaÁ„o inglesa, na segunda modernidade, na diferenÁa imperial (o
colonialismo inglÍs que ìsuperouî o colonialismo ibÈrico) montada na diferenÁa colonial (determinadas
heranÁas coloniais pertencem ao Ocidente, outras n„o). Nas heranÁas coloniais que pertencem ao Ocidente,
o componente indÌgena È ignorado, e para Huntington a forÁa que est„o adquirindo os movimentos indÌgenas
na Nova Zel‚ndia e na Austr·lia n„o parece ser um problema. N„o obstante, o panorama È claro: o Ocidente
È a nova designaÁ„o, depois do fim da Guerra Fria, do ìprimeiro mundoî; o lugar da enunciaÁ„o que produziu
a produz a diferenÁa imperial e a diferenÁa colonial, os dois eixos sobre os quais giram a produÁ„o e
reproduÁ„o do mundo moderno/colonial. Apesar de que a emergÍncia da idÈia de ìhemisfÈrio ocidentalî
ofereceu a promessa de inscriÁ„o da diferenÁa colonial do ponto de vista da prÛpria diferenÁa colonial, o
ìcorol·rio Rooseveltî por sua vez restabeleceu a diferenÁa colonial do ponto de vista do Norte e sobre a
derrota definitiva da Espanha na guerra hispano-americana. O fato È que a AmÈrica Latina È hoje, na ordem
mundial, produto da diferenÁa colonial origin·ria e de sua rearticulaÁ„o sobre a diferenÁa imperial que se
gesta a partir do sÈculo XVII na Europa do Norte e se restitui na emergÍncia de um paÌs neo-colonial como
os Estados Unidos.
No entanto, qual È a import‚ncia que podem ter estas abstraÁıes geopolÌticas na reorganizaÁ„o da ordem
mundial numa ordem hier·rquica civilizatÛria, como È a que propıe Huntington? Apontemos pelo menos
duas. Por um lado as relaÁıes internacionais e a ordem econÙmica do futuro. Por outra, os movimentos
migratÛrios e as polÌticas p˙blicas dos paÌses que se vÍem ìinvadidosî por habitantes de ìcivilizaÁıesî n„o-
ocidentais. No primeiro caso, a quest„o È que manter, nos termos de Huntington, uma unidade como a
AmÈrica Latina significa outorgar-lhe um lugar nas alianÁas internacionais e na concentraÁ„o do poder
econÙmico. No segundo, afeta diretamente a crescente migraÁ„o latino-americana em direÁ„o aos Estados
Unidos, que por volta do ano 2000 ter· cerca de 30 milhıes de ìhisp‚nicosî. Vejamos em detalhe, ainda que
brevemente, estes dois aspectos.
O fim da Guerra Fria, tal como a conhecemos desde a dÈcada de 50, e a queda do mundo socialista,
exigiram novas teorias que previssem a ordem mundial do futuro, tanto no ‚mbito econÙmico quanto no
civilizatÛrio. A necessidade de Huntington de estabelecer uma ordem mundial baseada em civilizaÁıes
respondeu a sua tese fundamental, de acordo com a qual as guerras do futuro ser„o guerras entre
civilizaÁıes mais que guerras ideolÛgicas (como a Guerra Fria) ou econÙmicas (como a guerra do Golfo).
Immanuel Wallerstein (1995: 32-35) previu a nova ordem econÙmica entre 1990 e 2025-2050. No cen·rio de
Wallerstein, h· v·rias razıes para uma coaliz„o entre os Estados Unidos e o Jap„o. Neste caso, a Uni„o
EuropÈia seria um segundo grupo forte e distinto do primeiro. Nesse cen·rio, dois paÌses enormes em seus
recursos humanos e naturais ficam numa posiÁ„o incerta: China e R˙ssia. Wallertsein vaticinava que a China
passaria a formar parte da coaliz„o Estados Unidos-Jap„o e que a R˙ssia se aliaria com a Uni„o EuropÈia. A
possibilidade de que este cen·rio se concretizasse oferecia interessantes possibilidades para refletir sobre a
rearticulaÁ„o do imagin·rio do mundo moderno/colonial, isto È, sobre a rearticulaÁ„o da colonialidade do
poder e do novo colonialismo global. A possÌvel alianÁa entre os Estados Unidos de um lado e a China e o
Jap„o de outro teria significado um giro de trezentos e sessenta graus nos ˙ltimos seiscentos anos: a
emergÍncia do circuito do Atl‚ntico foi, no sÈculo XVI, uma das conseq¸Íncias da forte atraÁ„o que oferecia
a China (destino das margens comerciais da Europa). Ao final da consolidaÁ„o econÙmica, ideolÛgica e
cultural do Atl‚ntico, ocorreria um reencontro com a diferenÁa colonial, numa de suas localizaÁıes geo-
histÛricas (e como, por exemplo, os jesuÌtas na China; Spence, 1999). A reorganizaÁ„o e expans„o
produziria um encontro entre a civilizaÁ„o chinesa (no sentido amplo de Huntington (1996: 15), desde 1500

46
a.C. atÈ as atuais comunidades e paÌses do Sudeste asi·tico, como a CorÈia e o Vietname) e a civilizaÁ„o
ocidental, ou ao menos parte dela. Na verdade, um dos interesses do cen·rio de Wallerstein era o de supor
que a civilizaÁ„o ocidental se dividiria: parte dela estabeleceria alianÁas com as civilizaÁıes chinesa e
japonesa (ou dois aspectos de uma mesma civilizaÁ„o) e a outra (a Uni„o EuropÈia) com uma das margens
do Ocidente, ou com o que Huntigton (1996: 45) chama de ìa civilizaÁ„o russa ortodoxaî, distinta de seus
parentes prÛximos, as civilizaÁıes bizantina e ocidental. Cen·rio fascinante, na verdade, j· que permitia
prever que o imagin·rio do mundo moderno/colonial que acompanhou e justificou a histÛria do capitalismo
estava a ponto de sofrer transformaÁıes radicais. Ou seja, ou o capitalismo entraria numa fase em que o
imagin·rio inicial se desintegraria em outros imagin·rios ou o capitalismo È o imagin·rio e,
conseq¸entemente, as distintas civilizaÁıes de Huntington estariam destinadas a ser pulverizadas pela
marcha intransigente da exploraÁ„o do trabalho em nÌvel nacional e transnacional.
Seis anos apÛs os prognÛsticos de Wallerstein, o seman·rio Business Week (8 de fevereiro de 1999)
perguntava em grandes manchetes, ìWill it be the Atlantic century?î, em letras negras. E em letras menores e
vermelhas, na mesma capa, sugeria uma resposta: ìThe 21st century was supposed to belong to Asia. Now
the US and Europe are steadly converging to form a new Atlantic economy, with vast impact on global growth
and businessî. N„o h· nenhuma surpresa neste cen·rio. A diferenÁa colonial redefine-se nas formas globais
de colonialismo movidas pelas finanÁas e pelos mercados, mais que pela cristianizaÁ„o, pela miss„o
civilizadora, pelo destino manifesto ou pelo progresso e desenvolvimento. O surpreendente era o cen·rio de
Wallerstein. O ˙nico elemento a chamar a atenÁ„o È a pergunta ìWill it be the Atlantic century?î, referindo-se
ao sÈculo XXI. Chama a atenÁ„o porque... n„o teriam sido os ˙ltimos cinco sÈculos os sÈculos do Atl‚ntico?
Mas a Ínfase aqui n„o est· no Atl‚ntico, e sim no Atl‚ntico Norte, a nova designaÁ„o geopolÌtica que
substitui as diferenÁas entre a Europa e o HemisfÈrio Ocidental pela emergÍncia do Atl‚ntico Norte.
Certamente esse cen·rio foi percebido por Huntington quando, ao redefinir o Ocidente, afirmou: ìHistorically,
Western civilization is European civilization. In the modern era, Western civilization is Euroamerican or North
Atlantic civilization. Europe, America (com o que pretende dizer AmÈrica do Norte) and the North Atlantic can
be found on a map; the West cannotî (Huntington, 1996: 47). Com o desaparecimento do Ocidente,
desaparece tambÈm o hemisfÈrio ocidental, que sÛ È citado ñcomo se pode notar pelo par·grafo de Kissinger
no comeÁo deste artigoñ como uma quest„o ìinternaî da AmÈrica do Norte na rearticulaÁ„o da diferenÁa
colonial no perÌodo do colonialismo global.
A segunda conseq¸Íncia anunciada acima È o estatuto das migraÁıes, do Sul ao Norte, que est„o
causando a ìlatino-americanizaÁ„oî dos Estados Unidos. Se o ìcorol·rio Rooseveltî foi um triunfo da
consciÍncia e do poder anglo-americanos sobre a consciÍncia e o poder latino-americanos, as migraÁıes
massivas do Sul ao Norte n„o incluem apenas latinos brancos e mestiÁos, mas tambÈm uma numerosa
populaÁ„o indÌgena (Varese, 1996) que tem mais em comum com os indÌgenas dos Estados Unidos do que
com os brancos e mestiÁos da AmÈrica Latina. Por outro lado, devido ‡ polÌtica estadunidense no Caribe, em
seu momento de expans„o antes da Segunda Guerra Mundial, a imigraÁ„o afro-americana do Haiti e da
Jamaica complica o cen·rio ao mesmo tempo em que pıe em relevo uma dimens„o silenciada das relaÁıes
Norte-Sul nas m„os dos criollos brancos ou mestiÁos, apegados ‡ idÈia de hemisfÈrio ocidental. Para as
populaÁıes indÌgenas e afro-americanas, a imagem de hemisfÈrio ocidental n„o foi nem È significativa. Este
È um dos aspectos a que se referia Huntington ao afirmar:
Subjectively, Latin American themselves are divided in their self-identification. Some say, ìYes, we are part of the
Westî. Others claim, ìNo, we have our own unique cultureî (Huntington, 1996: 47).

Ambas as posiÁıes podem ser defendidas do ponto de vista da dupla consciÍncia criolla na AmÈrica
Latina. Seria mais difÌcil encontrar evidÍncias de que estas opiniıes tiveram origem na dupla consciÍncia
indÌgena ou afro-americana. Pois bem, esta distinÁ„o n„o È v·lida apenas para a AmÈrica Latina, mas para
os Estados Unidos tambÈm. Huntington atribui ‡ AmÈrica Latina uma ìrealidadeî que È v·lida para os
Estados Unidos, mas que talvez n„o seja perceptÌvel de Harvard, j· que ali, com as conexıes de cientistas
polÌticos e cientistas sociais com Washington, o olhar est· mais voltado ao leste (Londres, Berlim, Paris)
que ao Sudoeste e ao PacÌfico. EspaÁos residuais, espaÁos da diferenÁa colonial. No entanto, e ainda
estando em Harvard, o intelectual afro-americano W. E. B. Du Bois poderia olhar para o sul e compreender
que para os que est„o histÛrica e emocionalmente ligados ‡ escravid„o, a quest„o de serem ou n„o
ocidentais n„o se coloca (Du Bois, 1970). E se coloca-se, como no livro recente do caribenho-brit‚nico
Paul Gilroy (1993), o problema aparece num argumento de acordo com o qual o ìAtl‚ntico negroî emerge
como a memÛria esquecida e soterrada no ìAtl‚ntico Norteî de Huntington. Por outro lado, a leitura do
eminente intelectual e advogado indÌgena, da comunidade Osage, Vine Deloria Jr. (1993) revela que nem
as comunidades indÌgenas nos Estados Unidos foram totalmente eliminadas, como afirma Huntington, nem
que nos Estados Unidos n„o persista a diferenÁa colonial que emergiu com o imagin·rio do circuito
comercial do Atl‚ntico e que foi necess·ria para a fundaÁ„o histÛrica da civilizaÁ„o ocidental, de sua
fratura interna com a emergÍncia do hemisfÈrio ocidental. H· muito mais, nos argumentos de Deloria, que
a simples diferenÁa entre o cristianismo protestante e catÛlico que preocupa a Huntington. Deloria lembra,
para os que tÍm memÛria fraca, a persistÍncia de formas de memÛria que n„o sÛ oferecem religiıes
47
alternativas, mas mais importante ainda, alternativas ao conceito de religi„o que È fundamental na
arquitetura do imagin·rio da civilizaÁ„o ocidental. A transformaÁ„o do ìhemisfÈrio ocidentalî em ìAtl‚ntico
Norteî assegura, por um lado, a sobrevivÍncia do conceito de civilizaÁ„o ocidental. Por outro lado,
marginaliza definitivamente a AmÈrica Latina da civilizaÁ„o ocidental, e cria as condiÁıes para a
emergÍncia de forÁas que ficaram ocultas no imagin·rio criollo (latino e anglo-sax„o) de ìhemisfÈrio
ocidentalî, isto È, a rearticulaÁ„o de forÁas amerÌndias e afro-americanas alimentadas pelas migraÁıes
crescentes e pelo tecnoglobalismo. O surgimento zapatista, a forÁa do imagin·rio indÌgena e a
disseminaÁ„o planet·ria de seus discursos fazem-nos pensar em futuros possÌveis alÈm de todo
fundamentalismo civilizatÛrio, ideolÛgico ou religioso, cujos perfis atuais s„o o produto histÛrico da
ìexterioridade interiorî a que foram relegados (leia-se submetidos) pela autodefiniÁ„o da civilizaÁ„o
ocidental e do hemisfÈrio ocidental; o problema da ìocidentalizaÁ„oî do planeta È que todo o planeta, sem
exceÁ„o e nos ˙ltimos quinhentos anos, teve que responder de alguma maneira ‡ expans„o do Ocidente.
Portanto ìalÈm do hemisfÈrio ocidental e do Atl‚ntico Norteî n„o significa que exista algum ìlugar idealî
que È necess·rio defender, mas sim implica um ìalÈm da organizaÁ„o planet·ria baseada na exterioridade
interior contida no imagin·rio da civilizaÁ„o ocidental, do hemisfÈrio ocidental e do Atl‚ntico Norteî.

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Notas
* Professor de Literatura e LÌnguas Rom‚nicas e de Antropologia Cultural na Universidade de Duke.
1 Mapa original (W. M.), integrando Abu-Lughod, Wolf e integrando An·huac e Tawantinsuiu.

49
Natureza do pÛs-colonialismo:
do eurocentrismo ao globocentrismo1

Fernando Coronil*

… SURPREENDENTE, particularmente do ponto de vista da experiÍncia latino-americana, que o crescente


campo acadÍmico de estudos pÛs-coloniais nos centros metropolitanos se tenha destacado basicamente por
trabalhos sobre o colonialismo norte-europeu na ¡sia e na ¡frica. Apesar de a colonizaÁ„o europÈia nas
AmÈricas ter envolvido Espanha, Portugal, FranÁa, Holanda e Inglaterra e ter estabelecido par‚metros para sua
expans„o posterior na ¡sia e na ¡frica, sÛ se lhe dedica um espaÁo tangencial no campo de estudos pÛs-
coloniais. A AmÈrica Latina e o Caribe, como objetos de estudo e como fontes de conhecimento sobre o (pÛs)
colonialismo, est„o ausentes ou ocupam um lugar marginal em seus debates e textos centrais. Esta exclus„o
tambÈm conduziu a uma not·vel ausÍncia do imperialismo nos estudos pÛs-coloniais, assunto central para os
pensadores latino-americanos, que desde a independÍncia no sÈculo XIX prestaram atenÁ„o especial ‡s
formas persistentes de submiss„o imperial pÛs-colonial. Est„o relacionadas entre si estas duas ausÍncias, a
das AmÈricas e a do imperialismo? Ambos os silÍncios dizem muito sobre as polÌticas ocidentais do
conhecimento e convidam a explorar a maneira como a teoria se difunde e a discernir como se estabelecem
novas modalidades de colonizaÁ„o de conhecimento em diferentes regiıes e disciplinas acadÍmicas. Neste
artigo n„o quero explicar este silenciamento das AmÈricas, e sim desafi·-lo atravÈs de uma discuss„o sobre as
transformaÁıes do capitalismo no inÌcio de um novo milÍnio.
Em suas ìConfissıesî, Santo Agostinho sugeriu que È apenas no final da vida que se pode apreender seu
significado. O discurso de moda acerca do fim da histÛria, do socialismo, atÈ mesmo do capitalismo ñou ao
menos o anunciado desaparecimento de sua conhecida forma industrial e o nascimento de uma era pÛs-
industrial baseada na inform·tica e na desmaterializaÁ„o da produÁ„oñ sugere que o novo milÍnio esteja
gerando fantasias inspiradas numa crenÁa similar. Coincidindo com o fim do socialismo como alternativa real
de futuro, ou ao menos com o desaparecimento do socialismo realmente existente em muitos paÌses, a
ordem capitalista aparece no novo milÍnio como a ˙nica forma de sociedade vi·vel e, portanto, como o
horizonte possÌvel para sonhos de realizaÁ„o pessoal e esperanÁas de redenÁ„o coletivas.
De todas estas fantasias milenares, o discurso sobre a globalizaÁ„o das instituiÁıes financeiras e
corporaÁıes transnacionais evoca com uma forÁa particularmente sedutora o advento da nova era. Sua
imagem da globalizaÁ„o traz ‡ mente o sonho de uma humanidade n„o dividida entre Oriente e Ocidente,
Norte e Sul, Europa e seus outros, ricos e pobres. Como se estivesse animada por um desejo milenar de
apagar as cicatrizes de um passado conflitivo ou de fazer com que a histÛria atinja um fim harmonioso, este
discurso promove a crenÁa de que as diversas histÛrias, geografias e culturas que dividiram a humanidade
est„o-se unindo no c·lido abraÁo da globalizaÁ„o, entendido este como um processo progressivo de
2
integraÁ„o planet·ria .
Cabe dizer que os discursos da globalizaÁ„o s„o m˙ltiplos e est„o muito longe de serem homogÍneos.
Os relatos mais matizados desautorizam a imagem estereotipada da emergÍncia de uma aldeia global,
popularizada pelas corporaÁıes, pelos Estados metropolitanos e pelos meios de comunicaÁ„o. Essas
versıes alternativas sugerem que a globalizaÁ„o n„o È um fenÙmeno novo, mas sim a manifestaÁ„o
intensificada de um antigo processo de intensificaÁ„o do comÈrcio transcontinental, de expans„o capitalista,
colonizaÁ„o, migraÁıes mundiais e interc‚mbios transculturais. Do mesmo modo, sugerem que sua atual
modalidade neoliberal polariza, exclui e diferencia, mesmo quando gera algumas configuraÁıes de interaÁ„o
translocal e de homogenizaÁ„o cultural. Para seus crÌticos, a globalizaÁ„o neoliberal È implosiva ao invÈs de
expansiva, conecta centros poderosos a periferias subordinadas. Seu modo de integraÁ„o È fragment·rio ao
invÈs de total. ConstrÛi semelhanÁas sobre uma base de assimetrias. Em suma, unifica dividindo. Em vez da
reconfortante imagem da aldeia global, oferece, de diferentes perspectivas e com diferentes Ínfases, uma
3
vis„o inquietante de um mundo fraturado e dividido por novas formas de dominaÁ„o .
Mantendo um di·logo com estas fantasias milenares acerca de uma harmonia global, assim como com os
relatos que as enfrentam, quero sugerir que a atual fase de globalizaÁ„o implica uma reconfiguraÁ„o da
ordem mundial capitalista e uma reorganizaÁ„o concomitante da cartografia geopolÌtica e cultural da
modernidade. Apesar de eu tambÈm me sentir atraÌdo pelo desejo de oferecer uma interpretaÁ„o do
capitalismo de final do milÍnio, explorarei sua vida n„o tanto fazendo uma recapitulaÁ„o de sua biografia a
partir da perspectiva do presente, como sugere Santo Agostinho, e sim apontando sua atual configuraÁ„o e
especulando sobre seu futuro ‡ luz de seu escuro passado. Este breve rascunho ser· muito seletivo, para
pintar com pinceladas amplas uma imagem da din‚mica atual do capitalismo.
Para pintar esta imagem tal como aparece durante o inÌcio de um novo milÍnio, estabelecerei alguns

50
vÌnculos entre o passado colonial em que o capitalismo se desenvolveu e o presente imperial dentro do qual
a globalizaÁ„o pÙde estabelecer seu predomÌnio. Desnecess·rio dizer que assumo certos riscos ao falar do
capitalismo no singular, como se se tratasse de uma entidade homogÍnea e limitada, em vez de um processo
complexo que adquire diversas configuraÁıes em distintas ·reas. Diante do perigo de diluÌ-lo em sua
diversidade, prefiro correr o risco de oferecer o que talvez n„o passe de uma caricatura do capitalismo, com
a esperanÁa de que isso ao menos nos ajude a reconhecer suas caracterÌsticas essenciais e sua emergente
configuraÁ„o.
AtravÈs de uma discuss„o sobre a cambiante relaÁ„o do capitalismo com a natureza, quero oferecer o
argumento de que a globalizaÁ„o neoliberal implica uma redefiniÁ„o da relaÁ„o entre o Ocidente e seus
outros, o que leva a uma mudanÁa do eurocentrismo ao que aqui chamo de ìglobocentrismoî. Em outro
artigo, referi-me ao ìocidentalismoî como um ìconjunto de pr·ticas representacionais que participam da
produÁ„o de concepÁıes do mundo que 1) dividem os componentes do mundo em unidades isoladas; 2)
desagregam suas histÛrias de relaÁıes; 3) convertem a diferenÁa em hierarquia; 4) naturalizam essas
representaÁıes e 5) intervÍm, ainda que de forma inconsciente, na reproduÁ„o das atuais relaÁıes
assimÈtricas de poderî (Coronil, 1999: 214). Estas modalidades de representaÁ„o, estruturadas em termos
de oposiÁıes bin·rias, mascaram a m˙tua constituiÁ„o da ìEuropaî e suas colÙnias, e do ìOcidenteî e suas
pÛs-colÙnias. Ocultam a violÍncia do colonialismo e do imperialismo sob o manto embelezador das missıes
civilizatÛrias e planos de modernizaÁ„o. Em vez do eurocentrismo dos discursos ocidentalistas anteriores,
que opera atravÈs do estabelecimento de uma diferenÁa assimÈtrica entre o Ocidente e seus outros, o
ìglobocentrismoî dos discursos dominantes da globalizaÁ„o neoliberal esconde a presenÁa do Ocidente e
oculta a forma pela qual este continua dependendo da submiss„o tanto de seus outros quanto da natureza.
Neste artigo, meu esforÁo de explorar a relaÁ„o cambiante do capitalismo com a natureza tenta ajudar a
desmistificar as modalidades emergentes do domÌnio imperial que ocultam a persistente submiss„o e
exploraÁ„o dos seres humanos e da natureza.

I. A natureza e o ocidentalismo
Reconhecer o papel da natureza no capitalismo expande e modifica as referÍncias temporais e
geogr·ficas que delimitam as narrativas dominantes da modernidade. Marx afirmou que a relaÁ„o entre
capital/lucro, trabalho/sal·rio e terra/renda da terra ìengloba todos os segredos do processo social de
produÁ„oî (1971: 754). Como se desejasse evocar simultaneamente um mistÈrio celestial e sua soluÁ„o
terrenal, chamou esta relaÁ„o de ìfÛrmula trin·riaî. No entanto, poucos analistas, incluindo Marx,
aplicaram esta fÛrmula ‡ resoluÁ„o do enigma do papel da ìterraî no capitalismo. Vendo o capitalismo da
Europa, Lefebvre (1974) È excepcional ao levar em consideraÁ„o este esquecimento e especular acerca
do papel dos agentes sociais associados com a terra, incluindo o Estado, na apariÁ„o do capitalismo
4
europeu .
Uma vis„o do capitalismo de suas bordas permite enfrentar este esquecimento. Ao enfocar a relaÁ„o
constitutiva entre o capitalismo e o colonialismo, esta perspectiva ajuda a modificar a compreens„o
convencional da din‚mica e a histÛria do capitalismo em dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar,
oferece uma maior compreens„o do papel da natureza no processo da formaÁ„o de riqueza; em segundo,
amplia os agentes do capitalismo n„o somente dentro da Europa, mas em todo o mundo.
Incluir a terra na dialÈtica capital/trabalho permite-nos reconhecer que o processo da criaÁ„o de riqueza
envolve um interc‚mbio transformativo entre os seres humanos e o mundo natural do qual formam parte. A
partir desta perspectiva, pode-se apreciar mais amplamente o papel da natureza como uma forÁa geradora
de riqueza e de modernidade, sem reduzi-la, como faz a economia convencional, a um fator de produÁ„o.
Mesmo de uma perspectiva marxista existe a tendÍncia a desconsiderar o significado de sua materialidade
como fonte de riqueza, e vÍ-la apenas como uma condiÁ„o necess·ria para a existÍncia do capital, uma
5
limitaÁ„o para seu crescimento, ou uma fonte de entropia . O mesmo Marx, que reconhece o papel da
natureza na criaÁ„o da riqueza, n„o desenvolve cabalmente esta idÈia em suas an·lises da produÁ„o
capitalista e expressa certa ambivalÍncia a seu respeito. Por um lado, baseando-se em Petty, ele diz numa
parte de O Capital que pouca atenÁ„o recebeu, que a riqueza deve ser vista como a uni„o do trabalho, ìo
paiî, e a natureza, ìa m„eî (Marx, 1967: 43). No entanto, numa outra seÁ„o merecedora de muita atenÁ„o,
Marx sustenta que as propriedades fÌsicas das mercadorias ìn„o tÍm nada a ver com sua existÍncia como
mercadoriaî (1967: 72). No meu ponto de vista, a materialidade das mercadorias È insepar·vel de sua
capacidade para constituir e representar a riqueza. Como unidade de riqueza, a mercadoria encarna tanto
sua forma natural como sua forma de valor. Apesar de suas diferentes modalidades, a exploraÁ„o capitalista
implica a extraÁ„o do trabalho excedente (mais-valia) dos trabalhadores bem como das riquezas da terra
(Coronil, 1997: 56-66). A exploraÁ„o social È insepar·vel da exploraÁ„o natural, de sentido distinto mas de
fundamental relev‚ncia.
Como para Marx ìterraî significa ìnaturezaî em sua materialidade socializada em vez de em sua
existÍncia material independente, trazer a natureza ao centro da discuss„o ajuda a re-situar os atores sociais
51
diretamente associados a seus poderes. Em vez de restringir esses agentes a senhores feudais em vias de
desaparecer, ou a latinfundi·rios em decadÍncia (a Ínfase em O Capital), estes podem ser ampliados para
abarcar as populaÁıes e instituiÁıes que dependem da mercantilizaÁ„o do que chamei de bens ìintensivos
de naturezaî, incluindo os Estados que possuem recursos naturais ou que regulamentam sua
comercializaÁ„o. Esta vis„o mais ampla dificultaria reduzir o desenvolvimento do capitalismo a uma dialÈtica
bin·ria entre o capital e o trabalho que se realiza nos centros metropolitanos e que se estende ‡ atrasada
periferia. Reconhecer que a ìfÛrmula trin·riaî implica n„o uma dialÈtica bin·ria entre o trabalho e o capital e
sim uma dialÈtica tripla entre o trabalho, o capital, e a terra, situa o desenvolvimento do capitalismo dentro de
condiÁıes evidentemente globais desde o inÌcio. Da mesma maneira, torna mais visÌvel uma gama mais
ampla de relaÁıes econÙmicas e polÌticas e ajuda, alÈm do mais, a conceitualizar a divis„o internacional do
trabalho como uma divis„o simult‚nea da natureza.
Esta inclus„o dos distintos agentes mundiais envolvidos no desenvolvimento do capitalismo ajuda a
desenvolver uma narrativa descentralizada da histÛria. Desde tempos coloniais, a ìperiferiaî tem sido uma
fonte principal tanto de riquezas naturais como de trabalho barato. A quest„o agora È ver se esta situaÁ„o
deixou de existir como tal, ou se se manifesta atravÈs de condiÁıes distintas.
6
Uma vis„o ìaterrissadaî que complementa a reconhecida import‚ncia do trabalho com o descuidado mas
inescap·vel papel da natureza na formaÁ„o do capitalismo, ao ampliar seus agentes e tornar mais complexa
sua din‚mica, descentraliza as concepÁıes eurocÍntricas que identificam a modernidade com a Europa e
relegam a periferia a um primitivismo prÈ-moderno. Integrar a ìterraî ‡ relaÁ„o capital/trabalho ajuda a
compreender os processos que deram forma ‡ constituiÁ„o m˙tua da Europa e suas colÙnias. Em vez de
uma narrativa da histÛria construÌda em termos de uma oposiÁ„o entre uma Europa moderna que triunfou por
seu prÛprio esforÁo e uma periferia mergulhada em sua cultura atrasada, esta mudanÁa de perspectiva
permite-nos apreciar mais cabalmente o papel da natureza (neo) colonial e do trabalho na m˙tua formaÁ„o
transcultural das modernidades metropolitanas e subalternas (Coronil, 1995; 1997).
Este enfoque do papel da natureza na formaÁ„o do capitalismo converge com o esforÁo de interpretar sua
histÛria a partir das bordas, em vez de a partir de seus centros. Nesta perspectiva, o capitalismo parecer·
7
mais antigo e menos atraente . Poderemos situar seu ìnascimentoî e evoluÁ„o n„o na Europa, onde a
historiografia dominante o restringiu, mas nas j· globalizadas interaÁıes entre a Europa e seus outros
coloniais. Esta trajetÛria maior exige que se reescreva sua biografia para dar conta de sua din‚mica global e
sua violÍncia intrÌnseca. Como se se levantassem as camadas superpostas de um palimpsesto, recuperar
esta histÛria trar· ‡ superfÌcie as cicatrizes do passado, escondidas pela maquiagem das histÛrias seguintes,
e tornar· mais visÌveis tambÈm as feridas ocultas do presente.
Um enfoque que privilegia a relaÁ„o constitutiva entre o capitalismo e o colonialismo nos permite
reconhecer os papÈis fundamentais que o trabalho e a natureza colonial desempenharam na formaÁ„o do
mundo moderno. Desta perspectiva, o capitalismo aparece como o produto n„o sÛ da engenhosidade de
empres·rios e inventores europeus, da racionalidade dos Estados metropolitanos, ou do suor do proletariado
europeu, mas tambÈm da criatividade, do trabalho e da riqueza natural sob o controle dos europeus em seus
territÛrios de ultramar. Em vez de vÍ-lo como um fenÙmeno europeu autogerado que se difunde ao resto do
mundo ña histÛria comum de seu nascimento dentro das entranhas de uma sociedade feudal, seu
crescimento dentro dos limites da Europa, e sua expans„o no estrangeiroñ a modernidade capitalista
aparece como o resultado desde seus primÛrdios de transaÁıes transcontinentais cujo car·ter
verdadeiramente global sÛ comeÁou com a conquista e colonizaÁ„o das AmÈricas.
As colÙnias da Europa, primeiro na AmÈrica e mais tarde na ¡frica, forneceram-lhe m„o-de-obra, produtos
agrÌcolas e recursos minerais. Igualmente, apresentaram ‡ Europa uma variedade de culturas em
contraposiÁ„o ‡s quais a Europa concebeu a si mesma como o padr„o da humanidade ñcomo portadora de
uma religi„o, uma raz„o e uma civilizaÁ„o superiores encarnadas pelos europeus. ¿ medida que a noÁ„o
espanhola de ìpureza de sangueî deu lugar nas AmÈricas a distinÁıes entre raÁas superiores e inferiores,
esta superioridade se plasmou em distinÁıes biolÛgicas que foram fundamentais para a autodefiniÁ„o dos
8
europeus e que continuam presentes nos racismos contempor‚neos . Assim como as plantaÁıes das
AmÈricas, operadas por escravos africanos, funcionaram como f·bricas proto-industriais que precederam
aquelas estabelecidas em Manchester ou em Liverpool com m„o-de-obra europÈia assalariada (Mintz, 1985),
as colÙnias americanas prefiguraram as estabelecidas na ¡frica e ¡sia durante a era do alto imperialismo.
Nesta perspectiva, o colonialismo È o lado escuro do capitalismo europeu; n„o pode ser reduzido a uma
nota de rodapÈ em sua biografia. A ìacumulaÁ„o primitivaî colonial, longe de ser uma prÈ-condiÁ„o do
desenvolvimento capitalista, foi um elemento indispens·vel de sua din‚mica interna. O ìtrabalho assalariado
livreî na Europa constitui n„o a condiÁ„o essencial do capitalismo, mas sua modalidade produtiva dominante,
modalidade historicamente condicionada pelo trabalho ìn„o-livreî em suas colÙnias e em outros lugares, tal
como o atual trabalho produtivo dos trabalhadores assalariados depende do trabalho domÈstico, ìn„o-
produtivoî das mulheres no ‚mbito domÈstico. Em vez de perceber a natureza e o trabalho das mulheres
como ìpresentesî ao capital (ver uma crÌtica de Salleh, 1994: 113), devem ser vistos como confiscos do
capital, como parte de seus outros colonizados, como seu lado escuro. Qual È o lado escuro da
52
globalizaÁ„o?

II. A globalizaÁ„o e o ocidentalismo


Muita discuss„o tem havido acerca da globalizaÁ„o, suas origens, suas diferentes fases e suas
caracterÌsticas atuais. Parece existir um certo consenso de que o que diferencia a fase atual da globalizaÁ„o
n„o È o volume de comÈrcio transnacional e o fluxo de capital, j· que estes ocorreram em proporÁıes
similares em outros perÌodos, particularmente durante as trÍs dÈcadas anteriores ‡ Primeira Guerra Mundial
(Hoogvelt, 1997; Weiss, 1998). O que parece significativamente novo desde a dÈcada de 70 È que uma
mudanÁa na concentraÁ„o e no car·ter dos fluxos financeiros (possibilitados por novas tecnologias de
produÁ„o e comunicaÁ„o) levou a uma peculiar combinaÁ„o de novas formas de integraÁ„o global com uma
intensificada polarizaÁ„o social dentro das naÁıes e entre as mesmas.
Utilizarei dois relatÛrios excepcionais sobre a globalizaÁ„o como base para uma discuss„o destas
transformaÁıes. Escolhi-os porque s„o trabalhos dirigidos ao p˙blico baseados numa ampla documentaÁ„o
sobre as tendÍncias atuais da economia mundial, mas com conclusıes e objetivos contrastantes. Com
perspectivas claramente divergentes, esses documentos apontam uma imagem similar da atual fase da
globalizaÁ„o, com sete caracterÌsticas sobressalentes.
O primeiro È um relatÛrio recente (1997) da ConferÍncia das NaÁıes Unidas sobre ComÈrcio e
Desenvolvimento (UNCTAD), que registra o crescimento das desigualdades mundiais. O relatÛrio descreve
ìcaracterÌsticas problem·ticasî da economia global contempor‚nea e expressa preocupaÁ„o de que se
possam transformar numa ameaÁa sÈria de aÁ„o polÌtica violenta contra a globalizaÁ„o. Assinal·-las-ei
brevemente, sem resumir a evidÍncia que lhes serve de apoio:
- Õndices baixos de crescimento da economia global.
- A brecha entre paÌses desenvolvidos e os n„o desenvolvidos, assim como no interior de cada paÌs,
torna-se cada vez maior (como evidÍncia, o relatÛrio oferece estatÌsticas reveladoras: em 1965 o PIB
mÈdio per capita dos 20% mais ricos da populaÁ„o mundial era trinta vezes maior que o dos 20% mais
pobres; em 1990 esta diferenÁa tinha duplicado, passando a sessenta vezes).
- Os ricos ganharam em todos os lugares, e n„o sÛ em relaÁ„o aos setores mais pobres da sociedade,
mas tambÈm em relaÁ„o ‡ sacrossanta classe mÈdia.
- O setor financeiro ganhou uma supremacia sobre a ind˙stria, e os rentistas sobre os investidores.
- A participaÁ„o do capital na renda nacional aumentou em relaÁ„o ‡ parcela relativa ao trabalho.
- A inseguranÁa na renda e no trabalho estende-se a todo o mundo.
- A brecha crescente entre o trabalho especializado e o n„o especializado est·-se convertendo num
problema mundial.
O segundo documento, intitulado ìLa IV Guerra Mundial ha comenzadoî È um artigo escrito nas
montanhas de Chiapas, MÈxico, pelo Subcomandante Marcos (1997), lÌder do movimento zapatista
indigenista (EZLN, ExÈrcito Zapatista de LibertaÁ„o Nacional), publicado no Le Monde diplomatique.
Segundo Marcos, a globalizaÁ„o neoliberal deve ser reconhecida como uma ìnova guerra de conquista
de territÛriosî. Desta maneira, cria uma nova tipologia das guerras mundiais do sÈculo vinte que
descentraliza as concepÁıes metropolitanas da histÛria contempor‚nea. Marcos chama a Guerra Fria
de III Guerra Mundial, tanto no sentido de que foi uma Terceira Guerra Mundial quanto no de que se
lutou no Terceiro Mundo. Para o Terceiro Mundo, a Guerra Fria foi realmente uma guerra quente,
9
formada por 149 guerras localizadas que produziram 23 milhıes de mortes .
A IV Guerra Mundial È a atual globalizaÁ„o neoliberal que, segundo Marcos, est· ceifando as vidas de um
enorme n˙mero de pessoas submetidas a uma pobreza e a uma marginalizaÁ„o crescentes. Enquanto a III
Guerra Mundial foi travada entre o capitalismo e o socialismo com diferentes graus de intensidade em
territÛrios do Terceiro Mundo dispersos e localizados, a IV Guerra Mundial implica um conflito entre os
centros financeiros metropolitanos e as maiorias do mundo, e se leva a cabo com uma constante intensidade
em escala mundial em espaÁos difusos e cambiantes.
De acordo com Marcos, a IV Guerra Mundial fraturou o mundo em m˙ltiplos pedaÁos. Ele seleciona sete
desses pedaÁos de maneira a montar o que chama de ìquebra-cabeÁasî da globalizaÁ„o neoliberal. Farei
uma lista breve deles ñalguns dos tÌtulos explicam-se por si mesmosñ omitindo quase todos os dados que ele
oferece como apoio de suas afirmaÁıes.
1. ìConcentraÁ„o da riqueza e distribuiÁ„o da pobrezaî, que resume informaÁ„o bem conhecida sobre o
grau no qual a riqueza global se polarizou mundialmente.
2. ìA globalizaÁ„o da exploraÁ„oî, que se refere a como essa polarizaÁ„o anda de m„os dadas com o

53
crescente domÌnio do capital sobre o trabalho em ‚mbito mundial.
3. ìA migraÁ„o como um pesadelo erranteî, que revela n„o apenas a expans„o dos fluxos migratÛrios
impostos pelo desemprego no Terceiro Mundo, mas tambÈm pelas guerras locais que multiplicaram o
n˙mero de refugiados (de 2 milhıes em 1975 a mais de 27 milhıes em 1995, de acordo com cifras das
NaÁıes Unidas).
4. ìA globalizaÁ„o das finanÁas e a generalizaÁ„o do crimeî, que mostra a crescente cumplicidade entre
os megabancos, corrupÁ„o financeira e dinheiro sujo proveniente do tr·fico ilegal de drogas e armas.
5. ìA violÍncia legÌtima de um poder ilegÌtimo?î, que responde a esta pergunta com o argumento segundo
o qual o strip tease do Estado e a eliminaÁ„o de suas funÁıes de assistÍncia social reduziram-no em
muitos paÌses a um agente de repress„o social, transformando-o numa agÍncia ilegal de proteÁ„o a
serviÁo das megaempresas.
6. ìA megapolÌtica e os anıesî, que argumenta que as estratÈgias dirigidas ‡ eliminaÁ„o das fronteiras do
comÈrcio e ‡ unificaÁ„o das naÁıes conduzem ‡ multiplicaÁ„o das fronteiras sociais e ‡ fragmentaÁ„o
das naÁıes, transformando a polÌtica num conflito entre ìgigantesî e ìanıesî, ou seja, entre a megapolÌtica
dos impÈrios financeiros e a polÌtica nacional dos Estados fracos.
7. ìFocos de resistÍnciaî, que argumenta que, em resposta aos focos de riqueza e poder polÌtico
concentrados, est„o surgindo focos crescentes de resistÍncia cuja riqueza e forÁa residem, em contraste,
em sua diversidade e dispers„o.
Apesar de suas perspectivas contrastantes, ambos os relatos vÍem a globalizaÁ„o neoliberal como um
processo posto em marcha por forÁas do mercado crescentemente n„o reguladas e mÛveis, o qual polariza
as diferenÁas sociais tanto entre as naÁıes como dentro delas mesmas. Enquanto a brecha entre naÁıes
ricas e pobres, assim como entre os ricos e os pobres, se torna maior em todos os lugares, a riqueza global
se est· concentrando cada vez mais em menos m„os, incluindo as das elites subalternas. Nesta nova
paisagem global, nem os ìricosî podem ser identificados exclusivamente com as naÁıes metropolitanas, nem
os ìpobresî com o terceiro e segundo mundos. A maior interconex„o dos setores dominantes e a
marginalizaÁ„o das maiorias subordinadas erodiu a coes„o destas unidades geopolÌticas.
10
Apesar de tambÈm causar impacto nas naÁıes metropolitanas , tal eros„o de vÌnculos coletivos no
‚mbito nacional debilita mais severamente os paÌses do Terceiro Mundo, assim como os paÌses ex-
socialistas do moribundo Segundo Mundo (a China merecendo atenÁ„o ‡ parte). Especialmente nos paÌses
de menos recursos ou menos povoados, os efeitos polarizantes do neoliberalismo se agudizam por um
crescente processo de expatriaÁ„o do capital, desnacionalizaÁ„o das ind˙strias e serviÁos, fuga de cÈrebros
e intensificaÁ„o dos fluxos migratÛrios em todos os nÌveis. A privatizaÁ„o da economia e dos serviÁos
p˙blicos, ou o que Marcos denomina o strip tease do Estado, conduziu n„o apenas ‡ reduÁ„o da ineficiÍncia
burocr·tica e em alguns casos a um aumento na produtividade e competitividade, mas tambÈm ao
desaparecimento dos projetos de integraÁ„o nacional e ‡ eros„o ou, ao menos, ‡ redefiniÁ„o de vÌnculos
coletivos. As tensıes sociais resultantes destes processos com freq¸Íncia conduzem ‡ racializaÁ„o do
conflito social e ao surgimento de etnicidades (Amin, 1997).
Por exemplo, a repress„o na Venezuela durante os protestos de 1989 contra o alto custo de vida e de um
programa do FMI imposto pelo governo de Carlos AndrÈs PÈrez justificou-se em termos de um discurso
civilizatÛrio que pÙs em evidÍncia a presenÁa subjacente de preconceitos raciais num paÌs que se orgulha de
definir-se, ao menos no discurso das elites, como uma democracia racial (Coronil e Skurski, 1991). Desde
ent„o, o ideal de igualdade racial foi erodido por uma crescente segregaÁ„o e discriminaÁ„o, incluindo
incidentes aparentemente triviais que demonstram como as fronteiras raciais se est„o redefinindo, tais como
a exclus„o de pessoas de pele escura das discotecas de classe mÈdia ou alta. O mesmo processo com
expressıes similares se est· dando no Peru, onde a Corte Suprema recentemente legislou a favor dos
direitos de um clube que excluÌra peruanos de pele escura. Um segundo exemplo ilustra como a globalizaÁ„o
neoliberal pode promover ìcrescimento econÙmicoî e ao mesmo tempo corroer o sentido de pertencimento
nacional. Na Argentina, a privatizaÁ„o da companhia nacional de petrÛleo provocou demissıes massivas (a
folha de 5000 trabalhadores foi reduzida a 500 trabalhadores), assim como um aumento significativo nos
lucros (de um prejuÌzo de u$s 6 bilhıes entre 1982 e 1990 a um lucro de u$s 9 milhıes em 1996). Esta
combinaÁ„o de crescimento econÙmico em focos privatizados e de desemprego e marginalizaÁ„o,
transformou a maneira pela qual muitos argentinos se relacionam com seu paÌs. Um dos trabalhadores que
foi demitido da empresa de petrÛleo expressa esse sentimento de alienaÁ„o de uma naÁ„o que lhe oferece
poucas oportunidades: ìAntes ia acampar ou pescar; agora escuto que Ted Turner est· aqui, Rambo ali, o
Exterminador do futuro em outro lugar, e digo a mim mesmo: n„o, esta n„o È a minha Argentinaî (The New
York Times, janeiro de 1998).
Uma resposta comum dos setores subordinados ‡ sua marginalizaÁ„o do mercado globalizado È sua
crescente participaÁ„o numa economia local ìinformalî, a qual, em alguns aspectos, reproduz a din‚mica
especulativa que Susan Strange chama de casino capitalism (1986). A proliferaÁ„o de intrigas e estratagemas

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para fazer dinheiro com o dinheiro, bem como os esforÁos para transformar em mercadoria qualquer coisa que
possa ser vendida, converteram-se n„o sÛ em pr·ticas econÙmicas regulares, mas em estratÈgias agÙnicas de
sobrevivÍncia. Para muitos dos que se encontram ‡ mercÍ das forÁas de mercado e tÍm pouco a vender, o
ìmercadoî toma a modalidade de comÈrcio de drogas, contrabando, exploraÁ„o sexual, comÈrcio de
mercadorias roubadas e atÈ de de Ûrg„os humanos. Compreensivelmente, este capitalismo anÙmico È
freq¸entemente acompanhado de um discurso sobre a ìcriseî, o aumento de p‚nicos morais e a aÁ„o de meios
m·gicos para fazer dinheiro em economias ìocultasî (Comaroff e Comaroff, 1999; Verdery, 1996). Para estes
setores marginalizados, a aparentemente ilimitada mercantilizaÁ„o da vida social unida ‡s limitaÁıes estruturais
no mercado de trabalho faz com que o mundo pareÁa cada vez mais arriscado e ameaÁador.
Em contraste, para os setores empresariais cujo negÛcio È fazer dinheiro a partir dos riscos, a expans„o
n„o regulada do mercado converte o mundo numa ìpaisagem de oportunidadesî. Da perspectiva de uma
globalidade empresarial, alguns paÌses do mundo s„o vistos como fontes de trabalho barato e de recursos
naturais. O controle corporativo de tecnologias altamente sofisticadas permite ‡s companhias intensificar a
convers„o da natureza em mercadoria e capturar para o mercado novos elementos, tais como materiais
genÈticos ou plantas medicinais. Um exemplo chamativo ilustra como as novas tecnologias tornam possÌvel a
intensificaÁ„o da apropriaÁ„o da natureza em ·reas tropicais para um mercado cada vez mais exclusivo. No
Gab„o, por meio de uma mistura de dirigÌvel e balsa, utilizado para explorar as copas das ·rvores nas selvas
tropicais, Givaudan e Roure, uma das principais corporaÁıes do big business dos perfumes e sabores,
apropria-se dos aromas naturais e vende seus componentes a companhias como Balmain, Christian Dior e
Armani. ìNa medida em que a natureza em climas mais frios foi totalmente explorada, a busca por novas
11
molÈculas se transladou aos trÛpicosî (Simons, 1999: 59) . As tecnologias avanÁadas tambÈm podem ser
utilizadas n„o sÛ para descobrir produtos naturais, mas para criar outros novos, transformando a natureza no
que Escobar chama de ìtecnonaturezaî (1997). Ao mesmo tempo em que estes produtos naturais feitos pelo
homem apagam a distinÁ„o entre o natural e o cultural, tambÈm ampliam o significado da natureza como
fonte de mercado.
Para muitas naÁıes a integraÁ„o de suas economias ao livre mercado global conduziu a uma maior
dependÍncia da natureza e a uma eros„o dos projetos estatais de desenvolvimento nacional. A natureza, em
sua forma tradicional ou de novos recursos tecnonaturais, converteu-se na vantagem comparativa mais segura
para essas naÁıes. O aumento de formas de turismo que privilegiam ìo naturalî, assim como tambÈm a
explos„o do turismo sexual como fonte de interc‚mbio comercial e da prostituiÁ„o como estratÈgia de
sobrevivÍncia pessoal, expressam um vÌnculo entre a naturalizaÁ„o da racionalidade do mercado e a
mercantilizaÁ„o n„o regulada de corpos e poderes humanos e naturais. Mesmo nos casos em que os recursos
naturais se transformam no fundamento de um modelo de desenvolvimento neoliberal baseado na expans„o
das ind˙strias e serviÁos relacionados entre si, como o demonstra o ìÍxitoî do Chile, esta estratÈgia pode
produzir Ìndices relativamente altos de crescimento econÙmico, mas ao custo de uma aguda polarizaÁ„o social
e preocupante desnacionalizaÁ„o (Moulian, 1997).
Em alguns aspectos, poderÌamos ver este processo de reprimarizaÁ„o como uma regress„o ‡s formas de
controle coloniais baseadas na exploraÁ„o de produtos prim·rios e de forÁa de trabalho de baixo custo. No
entanto, este processo est·-se dando num contexto tecnolÛgico e geopolÌtico que transforma o modo de
exploraÁ„o da natureza e do trabalho. Se na globalizaÁ„o colonial se necessitou de um controle polÌtico
direto para organizar a produÁ„o de bens prim·rios e regular o comÈrcio dentro de mercados restritos, na
globalizaÁ„o neoliberal a produÁ„o n„o regulada e a livre circulaÁ„o de bens prim·rios num mercado aberto
exige o desmantelamento relativo do controle estatal; È necess·rio enfatizar que o striptease do Estado de
bem-estar anda junto com toda uma nova estrutura estatal orientada a apoiar o livre mercado. Anteriormente,
a exploraÁ„o de bens prim·rios se levou a cabo atravÈs da m„o visÌvel da polÌtica; agora est· organizada
pela aparentemente invisÌvel m„o do mercado, em combinaÁ„o com a menos destacada, mas n„o menos
necess·ria, ajuda do Estado (para um argumento relacionado com a centralidade do papel do Estado
atualmente ver Weiss, 1998).
Anteriormente a este perÌodo de globalizaÁ„o neoliberal, os Estados pÛs-coloniais procuraram
regulamentar a produÁ„o de bens prim·rios. Durante o perÌodo de crescimento econÙmico promovido pelo
Estado, posterior ‡ II Guerra Mundial (mais ou menos entre as dÈcadas de 40 e 70), muitas naÁıes do
Terceiro Mundo utilizaram o dinheiro obtido de seus bens prim·rios para diversificar suas estruturas
produtivas. A produÁ„o prim·ria, freq¸entemente definida como uma atividade nacional ìb·sicaî, foi
cuidadosamente regulada e colocada sob controle domÈstico. Entretanto, ‡ medida que o mercado se foi
transformando no princÌpio organizador dominante da vida econÙmica, este impÙs sua racionalidade ‡
sociedade, naturalizando a atividade econÙmica e convertendo as mercadorias em coisas estreitamente
definidas como ìeconÙmicasî, aparentemente despojadas de vÌnculos sociais e de significado polÌtico.

III. Riqueza e globalizaÁ„o neoliberal


Um sintoma revelador do crescente domÌnio da racionalidade do mercado È a tendÍncia n„o sÛ a tratar
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todas as formas de riqueza como capital na pr·tica, mas a conceitualiz·-las como tais em teoria. Por
exemplo, enquanto o Banco Mundial, seguindo uma pr·tica convencional, definiu ìpatrimÙnio produzidoî
(produced assets) como a ìmedida tradicional da riquezaî, agora sugere que incluamos tambÈm ìo capital
naturalî e ìos recursos humanosî como elementos constitutivos da riqueza. Em dois livros recentes, o
primeiro Monitoring Environmental Progress (The World Bank, 1995), e o segundo Expanding the Measures
of Wealth: Indicators of Environmentally Sustainable Development (The World Bank, 1997), o Banco Mundial
propıe que esta reconceitualizaÁ„o seja vista como uma mudanÁa paradigm·tica na mediÁ„o da riqueza das
naÁıes e na definiÁ„o dos objetivos de desenvolvimento. De acordo com o Banco Mundial, ampliar a
mediÁ„o da riqueza est· relacionado com um novo ìparadigma de desenvolvimento econÙmicoî. Agora os
objetivos de desenvolvimento devem ser atingidos mediante o gerenciamento pelo portfolio, cujos elementos
constitutivos s„o recursos naturais, patrimÙnio produzido e recursos humanos (The World Bank, 1995; 1997).
Ironicamente, na medida em que a natureza est· sendo privatizada e passa a um n˙mero menor de donos,
est· sendo redefinida como o ìcapital naturalî de naÁıes desnacionalizadas, governadas pela racionalidade
do mercado global.
Poder-se-ia argumentar que este novo ìparadigmaî somente reformula uma concepÁ„o mais antiga de
acordo com a qual a terra, o trabalho e o capital s„o fatores de produÁ„o. No meu ponto de vista, o que parece
significativamente novo È a intenÁ„o de homogeneizar estes fatores como distintas formas de capital, de
conceber os recursos naturais, patrimÙnio produzido e os recursos humanos diretamente como capital. Ao
omitir suas diferenÁas e incluÌ-los na categoria abstrata de ìcapitalî, estes recursos s„o tratados como
elementos equivalentes, constitutivos de um portfolio. Em determinado nÌvel, tratar as pessoas como capital
conduz a sua valorizaÁ„o como uma fonte de riqueza. De fato, a frase inicial do segundo relatÛrio coloca a
Ínfase nesse fato: ìOs recursos naturais contam, mas as pessoas contam ainda mais. Esta È a primeira liÁ„o
que se deve aprender dos novos c·lculos contidos neste relatÛrio, relativo ‡ riqueza das naÁıesî (The World
Bank, 1997: 1). Contudo, as pessoas podem ìcontar maisî ou ìmenosî que os recursos naturais apenas em
termos de uma perspectiva que os equipare; o valor das pessoas pode ser comparado ao valor das coisas
somente porque ambos foram reduzidos a capital. A definiÁ„o das pessoas como capital quer dizer que o
cuidado que se lhe dispensa È o mesmo que se d· ao capital.
A noÁ„o de portfolio j· implica a necessidade de maximizar os benefÌcios. Em vez de um processo
intrinsecamente polÌtico que se ocupe da contenda social acerca da definiÁ„o de valores coletivos, os
objetivos de desenvolvimento tÍm relaÁ„o com o ìgerenciamentoî de portfolios e de ìespecialistasî. A tÈcnica
do mercado substitui a polÌtica. O atual ìparadigmaî de desenvolvimento do Banco Mundial sugere que os
agentes de desenvolvimento sejam como corretores da bolsa, que o desenvolvimento seja uma espÈcie de
12
aposta num mercado arriscado, em vez de um imperativo fundamentalmente moral .
Essa redefiniÁ„o da riqueza como um portfolio de distintas formas de capital adquire novo significado no
contexto de um mercado global neoliberal. Num perspicaz livro que examina a evoluÁ„o conjunta do mercado
e do teatro na Inglaterra desde o sÈculo dezesseis atÈ o sÈculo dezoito, Jean C. Agnew (1986) argumenta
que o ìmercadoî durante este perÌodo deixou de ser um lugar para transformar-se num processo ñde lugares
fixos nos interstÌcios de uma sociedade feudal a um fluir de transaÁıes dispersas por todo o mundo. Nesta
transformaÁ„o de lugar para processo, o mercado permaneceu, no entanto, dentro dos limites de um espaÁo
geogr·fico familiar.
Analistas da globalizaÁ„o tÍm notado como suas formas contempor‚neas causam n„o a ampliaÁ„o do
mercado num espaÁo geogr·fico, mas sua concentraÁ„o num espaÁo social. Enquanto o capital internacional
se torna mais mÛvel e se separa de suas localizaÁıes institucionais anteriores, argumenta Hoogvelt (1997:
145), ìa relaÁ„o centro-periferia est·-se transformando numa relaÁ„o social, em vez de uma relaÁ„o
geogr·ficaî. Esta transformaÁ„o de um capitalismo em expans„o geogr·fica para um economicamente
implosivo est· sendo impulsionado por um ìaprofundamento financeiroî, isto È, pelo crescimento e tambÈm
pela concentraÁ„o das transaÁıes financeiras e seu domÌnio sobre o comÈrcio em bens materiais (Hoogvelt,
1997: 122).
Uma sÈrie de artigos do The New York Times sobre globalizaÁ„o em fevereiro de 1999 confirmam essa
an·lise e ressaltam o significado do distanciamento crescente das transaÁıes financeiras do comÈrcio de bens
verdadeiros: ìNum dia tÌpico, a quantidade total de dinheiro que muda de m„os somente no mercado
internacional È de u$s 1,5 trilh„o ñum aumento de oito vezes desde 1986ñ uma soma quase incompreensÌvel,
que equivale ao comÈrcio total mundial de quatro mesesî. Os autores citam um banqueiro de Hong Kong: ìJ·
n„o È a verdadeira economia que impulsiona os mercados financeiros, mas sim o mercado financeiro que
impulsiona a verdadeira economiaî. De acordo com eles, a quantidade de capital de investimento ìexplodiuî:
em 1995 os investidores institucionais controlavam u$s 20 trilhıes, dez vezes mais que em 1980. Como
resultado, ìa economia global j· n„o est· dominada pelo comÈrcio de carros nem de aÁo e trigo, mas pelo
comÈrcio de aÁıes, bÙnus e moedasî. ¿ medida que os capitais nacionais se fundem num mercado de capital
global, esta riqueza ignora mais e mais o Estado. … significativo que estes investimentos se canalizam atravÈs
de derivados, os quais tÍm crescido exponencialmente: em 1997 se comercializaram por um valor de u$s 360
trilhıes, cifra que equivale a doze vezes a totalidade da economia global (The New York Times, 15/2/1999, A1).

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No meu ponto de vista, o aprofundamento financeiro implica uma transformaÁ„o significativa do mercado:
n„o apenas sua concentraÁ„o num espaÁo social, mas tambÈm sua extens„o no tempo. Hoje em dia o
capital viaja alÈm das limitaÁıes das fronteiras geogr·ficas que definiram a cartografia da modernidade, em
direÁ„o ao ciberespaÁo, ou seja, em direÁ„o ao tempo. Esta expans„o temporal do mercado, ou se se
prefere, sua extens„o em direÁ„o ao ciberespaÁo ñtalvez um passo alÈm do que Harvey e outros descrevem
como a transformaÁ„o de tempo em espaÁoñ d· um novo significado ‡ redefiniÁ„o da natureza como capital.
Desta maneira, n„o se trata somente de que cada vez mais a riqueza est· em menos m„os, em grande parte
livre do controle p˙blico, e sim que nestas m„os a riqueza est· sendo transformada atravÈs de um processo
de crescente homogenizaÁ„o e abstraÁ„o.
Considero ˙til definir este processo como a ìtransmaterializaÁ„oî da riqueza. Com isto n„o quero dizer a
ìdesmaterializaÁ„o da produÁ„oî, ou seja, uma pretendida diminuiÁ„o na intensidade do uso de matÈria-
prima (Kouznetov, 1988: 70), e sim a transfiguraÁ„o da riqueza atravÈs da cada vez mais abstrata convers„o
em mercadoria de seus elementos no tempo e no espaÁo. Um artigo da revista Time (Ramo, 1998) sobre o
futuro do dinheiro ressalta a import‚ncia tanto das novas formas de riqueza como das novas maneiras de
pens·-las. A riqueza, segundo este artigo, est· sendo tratada pelos investidores cada vez menos como bens
tangÌveis, mas como riscos assumidos frente a eles, tais como os derivados. A ìMagna Cartaî desta nova
forma de conceituar a riqueza, sugere o autor, È um discurso de Charles Sanford em 1993, nesse momento
Diretor Executivo (CEO) do Bankers Trust.
Nesse impressionante documento, intitulado Financial Markets in 2020, Sanford reconhece a nova
complexidade da atual situaÁ„o. Ao mesmo tempo em que assinala que a realidade est· mudando mais
rapidamente que nossas categorias, proclama, muito seguro de si mesmo, que atravÈs de uma combinaÁ„o
de arte e ciÍncia o mundo corporativo, incluindo suas prÛprias universidades, produzir· teorias capazes de
explicar as mudanÁas que est„o atualmente redefinindo o mundo. Utiliza o ano de 2020 para expressar suas
expectativas de uma vis„o perfeita e como estimativa de quando ela ser· atingida. Apesar da imagem
embaÁada do presente, Sanford j· pode vislumbrar que essa vis„o perfeita implicar· uma mudanÁa radical
de perspectiva: ìEstamos comeÁando de um ponto de vista newtoniano que opera no ‚mbito de objetos
tangÌveis (resumidos por dimens„o e massa), em direÁ„o a uma perspectiva mais de acordo com o mundo
caÛtico e n„o-linear da fÌsica qu‚ntica e da biologia molecularî (Sanford, 1994: 6). Partindo desta analogia
com a fÌsica qu‚ntica e a biologia moderna, ele chama esta reconceitualizaÁ„o teÛrica de particle finance.
Estas ìfinanÁas de partÌculaî permitir„o ‡s instituiÁıes financeiras consolidar toda sua riqueza e
investimentos em ìcontas de riquezaî, e fragmentar estas contas em partÌculas de risco derivadas do
investimento original, as quais podem ser vendidas como pacotes numa rede global computarizada. Para
ajudar-nos a visualizar a natureza da mudanÁa, Sanford diz: ìSempre tivemos transporte ñas pessoas
caminhavam, eventualmente montaram em burrosñ mas o automÛvel foi uma ruptura com tudo o que o
precedeu. O gerenciamento de risco far· o mesmo com as finanÁas. … uma ruptura totalî (Ramo, 1998: 55).
Fazendo eco a Sanford, o autor do artigo da Time observa que os derivativos, uma das formas principais de
gerenciar o risco, ìmudaram as regras do jogo para sempreî (Ramo, 1998: 55). Para imaginarmos este novo
jogo, ele nos pede que ìimaginemos o mundo como uma paisagem de oportunidades ñtudo, desde os bens
de raiz em perigo do Jap„o, atÈ os valores futuros (futures) do petrÛleo russoñ È colocado no mercado e
viabilizado por bancos gigantes como Bankamerica, ou por companhias financeiras como Fidelity
Investments e o Vanguard Groupî (Ramo, 1998). O exemplo dos ìbens de raiz em perigo do Jap„oî e ìos
valores futuros do petrÛleo russoî s„o exemplos gerais, poderiam igualmente representar os valores futuros
dos aromas do Gab„o, o turismo de Cuba, a dÌvida externa da NigÈria, ou qualquer coisa ou fragmento de
coisa que possa ser transformada em mercadoria. Fazendo eco a Sanford, Ramo, da Time, afirma que ìo
dinheiro E-(letrÙnico), as contas de riqueza, e os derivativos dos consumidores far„o com que estas firmas
sejam t„o essenciais como o era antes a moedaî. Estas mudanÁas far„o com que tais empresas capitalistas
sejam t„o indispens·veis que se tornar„o eternas: ìse a imortalidade do mercado pode ser compradaî,
conclui o artigo, ìestas s„o as pessoas que verificar„o como atingir isso. E o estar„o fazendo com seu
dinheiroî (Ramo, 1998: 58).

IV. Globocentrismo
Ainda que talvez esta vis„o corporativa seja hiperbÛlica e reflita as mudanÁas que ela mesma deseja
produzir de uma perspectiva interessada, ajuda a visualizar as transformaÁıes na geopolÌtica do poder
mundial que discuti atÈ agora. Do meu ponto de vista, h· dois processos que est„o mudando os vÈrtices do
poder imperial, de um lugar central na ìEuropaî ou o ìOcidenteî a uma posiÁ„o menos identific·vel no
ìgloboî. Por um lado, a globalizaÁ„o neoliberal homogeneizou e fez abstratas e diversas formas de ìriquezaî,
incluindo a natureza, que se converteu para muitas naÁıes em sua vantagem comparativa mais segura e sua
fonte de renda; por outro lado, a desterritorializaÁ„o da ìEuropaî ou do Ocidente, conduziu a sua
reterritorializaÁ„o menos visÌvel na figura esquiva do mundo, a qual esconde as socialmente concentradas,
mas mais geograficamente difusas, redes transnacionais financeiras e polÌticas que integram as elites
metropolitanas e perifÈricas. Neste contexto, a ascens„o da ìEurol‚ndiaî n„o deve eclipsar sua articulaÁ„o e
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proximidade com a ìDolarl‚ndiaî. A ìtransparÍnciaî solicitada pelos propulsores do livre mercado n„o inclui
uma visibilidade p˙blica nem uma responsabilidade com relaÁ„o ‡s hierarquias de mando emergentes do
poder econÙmico e polÌtico global.
Estes dois processos inter-relacionados est„o vinculados a um grande n˙mero de transformaÁıes
culturais e polÌticas que articulam e representam as relaÁıes entre diferentes culturas, mercados, naÁıes e
populaÁıes. … obvio afirmar que estes processos afetam as naÁıes de diferentes maneiras. No entanto,
parece-me que implicam uma mudanÁa na maneira como a naÁ„o era considerada, como unidade
fundamental de identificaÁ„o polÌtica e cultural coletiva no mundo moderno. A imagem do globo prescinde da
noÁ„o de externalidade. Desloca o locus das diferenÁas culturais de outros povos altamente ocidentalizados,
localizados geograficamente longe dos centros metropolitanos, a populaÁıes difusas, dispersas por todo o
mundo, inclusive no interior do j· velho ìprimeiro mundoî. Este processo n„o deixa de ser contraditÛrio. As
naÁıes abriram-se ao fluxo de capital, mas se fecharam ao movimento dos pobres. Enquanto a grande
maioria da populaÁ„o pobre tem uma mobilidade social limitada ou inexistente, e estas pessoas s„o vistas
n„o tanto nos termos das unidades jurÌdicas ou polÌticas que formaram a cartografia da modernidade
(predominantemente Estados-naÁ„o agrupados em regiıes modernas e atrasadas), e sim em termos de
critÈrios Ètnicos, religiosos, ou de classe. Sem d˙vida, as naÁıes continuar„o sendo unidades polÌticas
fundamentais e fonte de imaginaÁıes comunais nos anos vindouros (particularmente as naÁıes
metropolitanas), mas os critÈrios ìculturaisî supranacionais e n„o-nacionais, do meu ponto de vista,
desempenhar„o um papel cada vez mais importante como definidores das identidades coletivas
(particularmente nas naÁıes do Segundo e Terceiro Mundo). O que est· em jogo n„o È o desaparecimento
do Estado-naÁ„o, e sim sua redefiniÁ„o. Os Estados que foram obrigados a fazer um striptease podem ser
levados a vestir roupa nova atravÈs da press„o de sujeitos descontentes ou da ameaÁa de um revÈs polÌtico.
A preocupaÁ„o crescente com os efeitos polÌticos da pobreza global no nÌvel mais alto do sistema
internacional, como ficou evidente nas recentes reuniıes do Banco Mundial, do FMI e do G7, pode conduzir a
uma reconceitualizaÁ„o do papel do mercado e dos Estados. Como escudo contra os efeitos negativos da
globalizaÁ„o, o nacionalismo poderia ainda adquirir uma nova vida.
Desde a conquista das AmÈricas, os projetos de cristianizaÁ„o, colonizaÁ„o, civilizaÁ„o, modernizaÁ„o e o
desenvolvimento configuraram as relaÁıes entre a Europa e suas colÙnias em termos de uma oposiÁ„o nÌtida
entre um Ocidente superior e seus outros inferiores. Em contraste, a globalizaÁ„o neoliberal evoca a imagem
de um processo indiferenciado, sem agentes geopolÌticos claramente demarcados ou populaÁıes definidas
como subordinadas por sua localizaÁ„o geogr·fica ou sua posiÁ„o cultural; oculta as fontes de poder
altamente concentradas das quais emerge e fragmenta as maiorias que atinge.
Como responder a esta aparente mudanÁa de ìEuropaî e ìOcidenteî ao ìgloboî, como o locus de poder e de
progresso? Em face desta mudanÁa, como desenvolver uma crÌtica ao eurocentrismo? Se o ocidentalismo se
refere de uma maneira mais ou menos ampla ‡s estratÈgias imperiais de representaÁ„o de diferenÁas culturais
estruturadas nos termos de uma oposiÁ„o entre o Ocidente superior e seus outros subordinados, a hegemonia
atual do discurso de globalizaÁ„o sugere que este constitui uma modalidade de representaÁ„o ocidentalista
particularmente perversa, cujo poder repousa, em contraste, em sua capacidade de ocultar a presenÁa do
Ocidente e de apagar as fronteiras que definem seus outros, definidos agora menos por sua alteridade que por
sua subalternidade.
Argumentei que a crÌtica ao ocidentalismo tenta iluminar a natureza relacional de representaÁıes de
coletividades sociais com o intuito de revelar sua gÍnese em relaÁıes de poder assimÈtricas, incluindo o
poder de ocultar sua origem na desigualdade, de apagar suas conexıes histÛricas e, dessa maneira,
apresentar, como atributos internos de entidades isoladas e separadas, o que de fato È o resultado da m˙tua
conformaÁ„o de entidades historicamente inter-relacionadas (Coronil, 1996; 1999). Dada a ampla influÍncia
do discurso da globalizaÁ„o, penso que È necess·rio estender a crÌtica do eurocentrismo ‡ crÌtica do
globocentrismo.
O globocentrismo, como modalidade do ocidentalismo, tambÈm se refere a pr·ticas de representaÁ„o
implicadas na submiss„o das populaÁıes n„o ocidentais, mas neste caso sua submiss„o (como a submiss„o
de setores subordinados dentro do Ocidente) aparece como um efeito do mercado, em vez de aparecer
como conseq¸Íncia de um projeto polÌtico (ocidental) deliberado. Em contraste com o eurocentrismo, o
globocentrismo expressa a persistente dominaÁ„o ocidental atravÈs de estratÈgias representacionais que
incluem: 1) a dissoluÁ„o do Ocidente no mercado e sua cristalizaÁ„o em nÛdulos de poder financeiro e
polÌtico menos visÌveis mas mais concentrados; 2) a atenuaÁ„o de conflitos culturais atravÈs da integraÁ„o de
culturas distantes num espaÁo global comum; e 3) uma mudanÁa da alteridade ‡ subalternidade como a
modalidade dominante de estabelecer diferenÁas culturais. Na medida em que o ìOcidenteî se dissolve no
mercado, funde-se e solidifica-se ao mesmo tempo; a diferenÁa cultural agora se baseia menos em fronteiras
territoriais que atravÈs de vÌnculos de identificaÁ„o e diferenciaÁ„o com a ordem ocidental tal como este
aparece difundido atravÈs do globo.
Dado que o mercado apresenta-se como uma estrutura de possibilidades e n„o como um regime de
dominaÁ„o, este cria a ilus„o de que a aÁ„o humana È livre e n„o limitada. Resultados como a marginalizaÁ„o,
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o desemprego e a pobreza aparecem como falhas individuais ou coletivas, e n„o como efeitos inevit·veis de
uma violÍncia estrutural. A crÌtica ao globocentrismo nasce do reconhecimento da conex„o entre a violÍncia
colonial e pÛs-colonial. Da mesma maneira que a globalizaÁ„o apresenta uma continuidade em relaÁ„o ao
colonialismo, a crÌtica ao globocentrismo se baseia na crÌtica ao eurocentrismo. As mesmas condiÁıes globais
que fazem com que a globalizaÁ„o seja um objeto de estudo criam a possibilidade de vincular um exame dos
colonialismos do norte de Europa, a preocupaÁ„o central dos estudos pÛs-coloniais nos centros metropolitanos,
com a an·lise do colonialismo e do neocolonialismo, um tema fundamental no pensamento latino-americano e
caribenho.
A globalizaÁ„o deve ser vista como um processo contraditÛrio que inclui novos campos de luta teÛrica e
pr·tica. Diferentemente de outras estratÈgias de representaÁ„o ocidentalistas que ressaltam a diferenÁa
entre o Ocidente e seus outros, a globalizaÁ„o neoliberal evoca a igualdade potencial e a uniformidade de
todas as pessoas e culturas. Na medida em que a globalizaÁ„o funciona reinscrevendo as hierarquias sociais
e padronizando as culturas e os h·bitos, esta funciona como uma modalidade particularmente perniciosa de
dominaÁ„o imperial. Mas, na medida em que descentraliza o Ocidente, apaga as diferenÁas entre os centros
e as periferias e postula, ao menos em princÌpio, a fundamental igualdade de todas as culturas, a
globalizaÁ„o promove a diversidade e representa uma forma de universalidade que pode prefigurar sua
realizaÁ„o mais plena. Da mesma maneira que a proclamaÁ„o da igualdade e da liberdade durante a
RevoluÁ„o Francesa foi tomada literalmente pelos escravos do Haiti e foi redefinida por suas aÁıes ao impor
a aboliÁ„o da escravid„o (Dubois, 1998), os ideais de igualdade e diversidade declarados no discurso da
globalizaÁ„o podem abrir espaÁos para lutas libertadoras (bem como podem produzir reaÁıes
conservadoras, como ocorreu na FranÁa e no Haiti).
Em espaÁos sociais dependentes de condiÁıes globais, as identidades coletivas est„o-se construindo de
formas inÈditas atravÈs de uma articulaÁ„o complexa de fontes de identificaÁ„o tais como a religi„o,
territorialidade, raÁa, classe, etnicidade, gÍnero e nacionalidade, mas agora esta articulaÁ„o est·
condicionada por discursos universais de direitos humanos, leis internacionais, ecologia, feminismo, direitos
culturais e outros meios de fazer respeitar as diferenÁas dentro da igualdade (Sassen, 1998; ¡lvarez,
Dagnino e Escobar, 1998).
O processo de globalizaÁ„o est· desestabilizando n„o sÛ as fronteiras geogr·ficas e polÌticas, mas
tambÈm os protocolos disciplinares e seus paradigmas teorÈticos. A globalizaÁ„o evidencia os limites da
divis„o entre a modernidade e a pÛs-modernidade, bem como as oposiÁıes entre o material e o discursivo, o
econÙmico e o cultural, a determinaÁ„o e a contingÍncia, o todo e os fragmentos que continuam
influenciando nossas pr·ticas disciplinares. Mais que nunca, assim como os fenÙmenos locais n„o podem
ser compreendidos fora das condiÁıes globais em que se desenvolvem, os fenÙmenos globais n„o podem
ser compreendidos sem explicar as forÁas locais que os sustentam. Com sorte, o esforÁo de dar sentido ‡
relaÁ„o entre o que, por falta de melhor express„o, chamamos de a dialÈtica entre localizaÁ„o e globalizaÁ„o
no contexto de condiÁıes de conhecimento e produÁ„o globalizadas, ao descentralizar as epistemologias do
Ocidente e ao reconhecer outras alternativas de vida, produzir· n„o sÛ imagens mais complexas do mundo,
mas tambÈm modos de conhecimento que permitam uma melhor compreens„o e representaÁ„o da prÛpria
vida.
A globalizaÁ„o neoliberal obriga a aprofundar e pÙr em dia a tentativa dos crÌticos pÛs-coloniais de
provincializar a Europa e de questionar sua universalidade. Ao mesmo tempo em que se une a essa tarefa, a
crÌtica ao globocentrismo dever· igualmente reconhecer a rica diferenciaÁ„o do mundo e mostrar a altamente
desigual distribuiÁ„o de poder que inibe sua imensa diversidade cultural. Uma crÌtica que desmitifique as
afirmaÁıes universalistas do discurso de globalizaÁ„o mas que reconheÁa seu potencial libertador, deveria
tornar menos toler·vel a destruiÁ„o da natureza e a degradaÁ„o das vidas humanas por parte do capitalismo.
Esta crÌtica ser· desenvolvida em di·logo com idÈias surgidas nos espaÁos nos quais se imaginam futuros
alternativos para a humanidade, seja em ìfocos de resistÍnciaî ao capital, em lugares ainda livres de sua
hegemonia, ou no seio de suas contradiÁıes internas.
A m·gica do imperialismo contempor‚neo reside em conjurar seu prÛprio desaparecimento fazendo com
que o mercado apareÁa como a personificaÁ„o da racionalidade humana e da felicidade. Os discursos
dominantes da globalizaÁ„o oferecem a ilus„o de um mundo homogÍneo que avanÁa constantemente em
direÁ„o ao progresso. Mas a globalizaÁ„o est· intensificando as divisıes da humanidade e acelerando a
destruiÁ„o da natureza. Os estudos pÛs-coloniais deveriam enfrentar as seduÁıes e promessas da
globalizaÁ„o neoliberal. Esta tarefa È insepar·vel da procura de uma construÁ„o alternativa do progresso
alentada pela esperanÁa de um futuro no qual todos os seres humanos possam ocupar um lugar digno num
planeta que todos compartilhamos provisoriamente.

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Notas
* Professor de antropologia e histÛria, Departamento de Antropologia, Universidade de Michigan.
1 Uma vers„o anterior deste trabalho foi apresentada no painel organizado por Edgardo Lander para o Congresso Internacional de
Sociologia de Montreal. Quero agradecer-lhe por animar-me a apresentar este trabalho e por ter a paciÍncia de permitir-me
transform·-lo. TambÈm gostaria de agradecer ao grupo de estudos sobre o colonialismo da Universidade de Nova Iorque em
Binghamton, onde apresentei uma vers„o deste trabalho. Meus profundos agradecimentos aos integrantes de meu semin·rio de
pÛs-graduaÁ„o, A GlobalizaÁ„o e o Ocidentalismo, inverno de 1999, por seus ˙teis coment·rios sobre este trabalho e pelas
interessantes discussıes durante todo o semestre. AgradeÁo enormemente pelos coment·rios detalhados de Genese Sodikoff,
Elizabeth Ferry e MarÌa Gonz·lez. Obrigado tambÈm a Julie Skurski por suas agudas observaÁıes.
2 Os meios de comunicaÁ„o tÍm servido como a principal via dos discursos celebratÛrios da globalizaÁ„o, desde os an˙ncios
publicit·rios atÈ as canÁıes. Esta tendÍncia ganhou adeptos com a expans„o das corporaÁıes multinacionais dos anos sessenta e
intensificou-se com a queda do mundo socialista e a conseq¸ente hegemonia do neoliberalismo.
3 … impossÌvel fazer uma lista da imensa e sempre crescente bibliografia sobre a globalizaÁ„o ou representar acertadamente suas
distintas matizes e perspectivas. Entre os autores que usei neste trabalho e que, de uma ou outra maneira, interpretaram a
globalizaÁ„o como um fenÙmeno complexo, mesmo que ‡s vezes n„o estejam de acordo com respeito ‡ sua novidade ou
61
caracterÌsticas, encontram-se os seguintes: Amin (1997; 1998), Arrighi (1994), Dussel (1995), Greider (1997), Harvey (1989),
Henwood (1997), Hirst e Thompson (1996), Hoogvelt (1997), LÛpez Segrera (1998), Massey (1998), Sassen (1998), Robertson
(1992) e Weiss (1998).
4 Alguns marxistas, no entanto, notaram a import‚ncia da renda da terra com relaÁ„o a certos aspectos do capitalismo, tais como
bens de raiz urbanos, mas poucos o utilizaram para conceitualizar seu desenvolvimento. Ao refletir sobre a teoria marxista da renda
da terra, Debeir, DÈlage e HÈmery notaram que a relaÁ„o ìsociedade/natureza era considerada apenas num contexto
exclusivamente de teoria econÙmica, o da renda da terraî (1991: xiii). Sua intenÁ„o est· dirigida a ver essa relaÁ„o nos termos de
uma conceitualizaÁ„o do uso de energia mais geral. Do meu ponto de vista, a relaÁ„o renda/terra (assim como trabalho/sal·rio e
capital/benefÌcio) n„o deve ser reduzida a ìuma teoria puramente econÙmicaî. Uma an·lise holÌstica da renda da terra revelaria suas
muitas dimensıes, que incluem as transformaÁıes dos atores envolvidos no uso cambiante de energia.
5 Para exposiÁıes representativas destes pontos de vista, ver a colet‚nea de artigos em OëConnor (1994).
6 O uso da palavra ìterrissadaî est· influenciado pela conferÍncia ìTocando a Terraî, organizada pelos estudantes do Programa de
Doutorado em Antropologia e HistÛria, Universidade de Michigan, abril, 1999. A conferÍncia tentava superar, como indica sua
declaraÁ„o de intenÁıes, um ìh·bito prÈ-existente de separar a an·lise cultural da econÙmica e a simbÛlica da material. A an·lise
textual e discursiva, mesmo quando suscita um contexto material para leituras de conte˙do cultural, tende a evitar dirigir-se
diretamente ao estudo e ‡ teorizaÁ„o de tal fenÙmeno como o trabalho, a estrutura e a pr·tica da dominaÁ„o polÌtica e da
exploraÁ„o econÙmica, e a organizaÁ„o do patriarcadoî (Doctoral Program in Anthropology and History, 1999).
7 Por exemplo, Mignolo (1995) e Quijano (1992).
8 Muitos teÛricos examinaram a relaÁ„o entre colonialismo e racializaÁ„o. Estes coment·rios baseiam-se fundamentalmente no
trabalho de Quijano (1992), Mignolo (1999) e Stoler (1995).
9 O ìTerceiro Mundoî como categoria emergiu do processo de descolonizaÁ„o que se seguiu ‡ Segunda Guerra Mundial; como
resultado, o Terceiro Mundo se transformou no campo de batalha militar e ideolÛgica entre o Primeiro Mundo capitalista e o Segundo
Mundo socialista. Agora que esse combate praticamente terminou, os paÌses do que era chamado de Terceiro Mundo j· n„o s„o os
objetos do desejo e da competiÁ„o dos poderes polÌticos, e sim atores que se acomodam com dificuldade num mercado mundial
competitivo. Para uma discuss„o esclarecedora do esquema dos trÍs mundos, ver Pletsch (1981).
10 Ambos os relatÛrios sobre a globalizaÁ„o que examinei aqui apresentam evidÍncias da existÍncia de uma brecha crescente entre
os ricos e os pobres nas naÁıes metropolitanas. Uma reveladora resposta a tal polarizaÁ„o È o trabalho The Work of Nations de
Robert Reich (1991), no qual defende a necessidade de integrar os setores internacionalizados e os domÈsticos da populaÁ„o dos
EUA.
11 Meu agradecimento a Genese Sodikoff por permitir-me o uso deste artigo.
12 AgradeÁo a Genese Sodikoff por estas formulaÁıes.

62
O lugar da natureza e a natureza do lugar:
globalizaÁ„o ou pÛs-desenvolvimento?1

Arturo Escobar*

I. IntroduÁ„o: Lugar e Cultura


Em anos recentes, o conceito de ìlugarî foi novamente abordado de v·rios pontos de vista, de sua relaÁ„o com
o entendimento b·sico de ser e conhecer, atÈ seu destino sob a globalizaÁ„o econÙmica e a medida em que
continua sendo uma ajuda ou um impedimento para pensar a cultura. Este questionamento n„o È, claro est·, uma
coincidÍncia: para alguns, a ausÍncia de lugar ñuma ìcondiÁ„o generalizada de desenraizamentoî, como alguns a
denominamñ se transformou no fator essencial da condiÁ„o moderna, uma condiÁ„o aguda e dolorosa em muitos
casos, como no dos exilados e refugiados. Seja para ser celebrado ou denunciado, o sentido de atopia parece
haver-se instalado. Isso parece ser certo na filosofia ocidental, na qual o lugar tem sido ignorado pela maioria dos
pensadores (Casey, 1993); as teorias sobre a globalizaÁ„o que produziram uma marginalizaÁ„o significativa do
lugar, ou debates em antropologia que lanÁaram um radical questionamento do lugar e da criaÁ„o do lugar.
Entretanto, o fato È que o lugar ñcomo experiÍncia de uma localidade especÌfica com algum grau de
enraizamento, com conex„o com a vida di·ria, mesmo que sua identidade seja construÌda e nunca fixañ continua
sendo importante na vida da maioria das pessoas, talvez para todas. Existe um sentimento de pertencimento que
È mais importante do que queremos admitir, o que faz com que se considere se a idÈia de ìregressar ao lugarî ñ
para usar a express„o de Caseyñ ou a defesa do lugar como projeto ñno caso de Dirlikñ n„o s„o, afinal de contas,
questıes t„o irrelevantes.
Claro, a crÌtica recente ao lugar por parte da antropologia, da geografia, das comunicaÁıes e dos estudos
culturais tem sido tanto essencial como importante, e continua sendo-o. As novas met·foras em termos de
mobilidade ña desterritorializaÁ„o, as mudanÁas, a di·spora, a migraÁ„o, as viagens, o cruzamento de
fronteiras, a nomadologia, etc.ñ tornaram-nos mais conscientes do fato de que a din‚mica principal da cultura e
da economia foram alteradas significativamente por processos globais inÈditos. Contudo, tem existido uma
certa assimetria nestes debates. Segundo Arif Dirlik (2000), esta assimetria È mais evidente nos discursos
sobre a globalizaÁ„o nos quais o global È igualado ao espaÁo, ao capital, ‡ historia e a sua agÍncia, e o local,
com o lugar, o trabalho e as tradiÁıes. O lugar, em outras palavras, desapareceu no ìfrenesi da globalizaÁ„oî
dos ˙ltimos anos, e este enfraquecimento do lugar tem conseq¸Íncias profundas em nossa compreens„o da
cultura, do conhecimento, da natureza, e da economia. Talvez seja o momento de reverter algumas destas
assimetrias ao enfocar novamente a constante import‚ncia do lugar e da criaÁ„o do lugar, para a cultura, a
2
natureza e a economia ñda perspectiva de lugar oferecida pelos prÛprios crÌticos.
Este È, de fato, um sentir crescente daqueles que trabalham na intersecÁ„o do ambiente e do
desenvolvimento, apesar de que a experiÍncia de desenvolvimento significou para a maioria das pessoas um
rompimento do lugar, mais profundo como jamais visto. Os eruditos e ativistas de estudos ambientalistas n„o sÛ
est„o sendo confrontados pelos movimentos sociais que mantÍm uma forte referÍncia ao lugar ñverdadeiros
movimentos de apego ecolÛgico e cultural a lugares e territÛriosñ mas que tambÈm confrontam a crescente
compreens„o de que qualquer saÌda alternativa deve levar em consideraÁ„o os modelos da natureza baseados
no lugar, assim como as pr·ticas e racionalidades culturais, ecolÛgicas e econÙmicas que as acompanham. Os
debates sobre o pÛs-desenvolvimento, o conhecimento local e os modelos culturais da natureza tiveram que
enfrentar esta problem·tica do lugar. De fato, e este È o argumento principal deste trabalho, as teorias do pÛs-
desenvolvimento e a ecologia polÌtica s„o espaÁos de esperanÁa para reintroduzir uma dimens„o baseada no
lugar, nas discussıes sobre a globalizaÁ„o, talvez atÈ para articular uma defesa do lugar. Reconcebida desta
forma, a ecologia e o pÛs-desenvolvimento facilitariam a incorporaÁ„o das pr·ticas econÙmicas, baseadas no
lugar, ao processo de delimitaÁ„o das ordens alternativas. Dito de outra maneira, uma reafirmaÁ„o do lugar, o
n„o-capitalismo, e a cultura local opostos ao domÌnio do espaÁo, o capital e a modernidade, os quais s„o centrais
no discurso da globalizaÁ„o, deve resultar em teorias que tornem vi·veis as possibilidades para reconceber e
reconstruir o mundo a partir de uma perspectiva de pr·ticas baseadas-no-lugar. Isto poderia ser de interesse para
a antropologia e os estudos culturais que viram na dÈcada de noventa uma forte crÌtica ‡s noÁıes convencionais
da cultura como algo discreto, limitado e integrado. Esta crÌtica veio acompanhada de uma sÈrie de investigaÁıes
inovadoras relativas ‡ relaÁ„o entre o espaÁo, a cultura e a identidade, do ponto de vista dos processos
transnacionalizados de produÁ„o cultural e econÙmica. Esta crÌtica tem suas raÌzes em desenvolvimentos
anteriores em economia polÌtica e na crÌtica da representaÁ„o, em especial durante a dÈcada de oitenta, e
produziu um momentum teÛrico importante, conformando o que sem d˙vida È hoje uma das inst‚ncias mais fortes
3
do debate e a inovaÁ„o na antropologia . Tomando como ponto de partida o car·ter problem·tico da relaÁ„o entre
lugar e cultura, estes trabalhos colocam a Ínfase no fato de que os lugares s„o criaÁıes histÛricas, que devem ser
explicados, n„o assumidos, e que esta explicaÁ„o deve levar em conta as maneiras pelas quais a circulaÁ„o
63
global do capital, o conhecimento e os meios configuram a experiÍncia da localidade. O foco, portanto, muda para
os vÌnculos m˙ltiplos entre identidade, lugar e poder ñentre a criaÁ„o do lugar e a criaÁ„o de genteñ sem
naturalizar ou construir lugares como fonte de identidades autÍnticas e essencializadas. Na medida em que as
mudanÁas na economia polÌtica global se voltem para concepÁıes distintas de lugar e identidade, a relaÁ„o
lugar/poder/identidade se torna mais complicada. Como reconceber a etnografia para alÈm dos lugares e culturas
limitadas espacialmente? Como explicar a produÁ„o de diferenÁas num mundo de espaÁos profundamente
interconectados?
Estas s„o perguntas valiosas e necess·rias. Mais ainda, sempre esteve claro para a crÌtica
antropolÛgica ñem contraste com as teorias de globalizaÁ„o brevemente mencionadas anteriormenteñ
que os lugares continuam sendo importantes tanto para a produÁ„o de cultura como para sua etnografia
(Gupta e Ferguson, 1992). No entanto, tem havido certo ñquiÁ· necess·rioñ excesso no argumento que
levou a desenfatizar o tema das bases, os limites, o significado e o apego aos lugares, que tambÈm
constitui parte da experiÍncia da criaÁ„o de gentes e lugares. … possÌvel regressar a algum destes
temas apÛs a crÌtica ao lugar? … possÌvel lanÁar uma defesa do lugar sem naturaliz·-lo, feminiz·-lo ou
fazÍ-lo essencial, uma defesa na qual o lugar n„o se converta na fonte trivial de processos ou forÁas
regressivas? Se se vai deslocar o tempo e o espaÁo do lugar central que ocuparam nas ciÍncias fÌsicas
e sociais modernas ñtalvez inclusive contando com as met·foras das novas ciÍncias que ressaltam as
redes, a complexidade, a autopoiese, etc., conceitos estes que n„o vinculam tanto o espaÁo e o tempoñ
È possÌvel fazer isso sem reificar a permanÍncia, a presenÁa, a ligaÁ„o, a corporeidade e similares?
Pode-se reinterpretar os lugares vinculando-se para constituir redes, espaÁos desterritorializados e,
inclusive, raÌzes? Lugares que permitem as viagens, a transposiÁ„o das fronteiras e as identidades
4
parciais sem descartar completamente as noÁıes de enraizamento, limites e pertencimento? .
Um aspecto final da persistente marginalizaÁ„o do lugar na teoria ocidental È o das conseq¸Íncias que
teve no pensar das realidades submetidas historicamente ao colonialismo ocidental. O domÌnio do espaÁo
sobre o lugar tem operado como um dispositivo epistemolÛgico profundo do eurocentrismo na construÁ„o da
teoria social. Ao retirar Ínfase da construÁ„o cultural do lugar a serviÁo do processo abstrato e
aparentemente universal da formaÁ„o do capital e do Estado, quase toda a teoria social convencional tornou
invisÌveis formas subalternas de pensar e modalidades locais e regionais de configurar o mundo. Esta
negaÁ„o do lugar tem m˙ltiplas conseq¸Íncias para a teoria ñdas teorias do imperialismo atÈ as da
resistÍncia, do desenvolvimento, etc.ñ que pudessem ser melhor exploradas no ‚mbito ecolÛgico. Neste
‚mbito, o desaparecimento do lugar est· claramente vinculado ‡ invisibilidade dos modelos culturalmente
especÌficos da natureza e da construÁ„o dos ecossistemas. Somente nos ˙ltimos anos È que percebemos
este fato.
No que segue, tratei de articular os rudimentos de uma defesa do lugar apoiando-me, em parte, nos
trabalhos da geografia pÛs-moderna e na economia polÌtica, pÛs-estruturalista e feminista que abordam
explicitamente a quest„o do lugar. Por outro lado, reinterpretei, a partir da perspectiva do lugar, as
tendÍncias recentes na ecologia antropolÛgica que descobrem os modelos culturais da natureza. Situo estes
trabalhos no contexto dos movimentos sociais, do pÛs-desenvolvimento e de racionalidades ecolÛgicas
alternativas. Omitiu-se muito do que teria de ser levado em conta para uma defesa mais consistente do lugar,
incluindo temas centrais como o impacto da tecnologia digital (particularmente a internet) nos lugares; lugar,
classe e gÍnero; a vinculaÁ„o de lugares a redes; e as implicaÁıes mais amplas da ìrepatriaÁ„oî do lugar por
parte da antropologia e da ecologia para os conceitos de cultura e natureza. Estas questıes sÛ podem ser
introduzidas no presente trabalho como objeto de desenvolvimento mais adiante.
Em ˙ltima inst‚ncia, o objetivo do presente trabalho È examinar a medida em que nossos marcos de
referÍncia nos permitem ou n„o visualizar maneiras presentes ou potenciais de reconceber e reconstruir o
mundo, plasmado em pr·ticas m˙ltiplas, baseadas no lugar. Quais novas formas do ìglobalî podem ser
imaginadas deste ponto de vista? Podemos elevar os imagin·rios ñincluindo modelos locais da naturezañ ‡
linguagem da teoria social, e projetar seu potencial a tipos novos de globalidade, de maneira que se erijam
como formas ìalternativasî de organizar a vida social? Em resumo, em que medida podemos reinventar tanto o
pensamento como o mundo, de acordo com a lÛgica de culturas baseadas no lugar? … possÌvel lanÁar uma
defesa do lugar com o lugar como um ponto de construÁ„o da teoria e da aÁ„o polÌtica? Quem fala em nome do
lugar? Quem o defende? … possÌvel encontrar nas pr·ticas baseadas no lugar uma crÌtica do poder e da
hegemonia sem ignorar seu arraigamento nos circuitos do capital e da modernidade?
A primeira parte deste trabalho repassa os estudos mais recentes relativos ao conhecimento local e aos
modelos da natureza levados a cabo na antropologia ecolÛgica e na antropologia do conhecimento; reli-os da
Ûtica do lugar. Com isto em mente, a segunda parte introduz um conjunto de estudos recentes, em especial
de geografia pÛs-moderna e feminista e de economia polÌtica, os quais articulam, muito expressamente, uma
defesa do lugar e das pr·ticas econÙmicas baseadas no lugar. Poder-se-ia discutir que ñapesar da
necessidade de revisar os conceitos e categorias convencionais do localñ o lugar e o conhecimento baseado
no lugar, continuam sendo essenciais para abordar a globalizaÁ„o, o pÛs-desenvolvimento e a
sustentabilidade ecolÛgica, de formas social e politicamente efetivas. Finalmente, a terceira parte re˙ne

64
ambas as seÁıes ao tentar fornecer algumas orientaÁıes baseadas no lugar, para uma defesa dos
ecossistemas locais e modelos sob o contexto da globalizaÁ„o e as mudanÁas r·pidas. O papel dos
movimentos sociais e da ecologia polÌtica na articulaÁ„o da defesa do lugar se resenha brevemente. A
conclus„o convida a visualizar novas esferas ecolÛgicas p˙blicas nas quais as racionalidades alternativas
5
possam ser articuladas e postas em marcha .

II. O Lugar da natureza: conhecimento local e modelos do natural

A quest„o do ìconhecimento localî ñem especial, do conhecimento dos sistemas naturaisñ tambÈm tem
sido abordada nos ˙ltimos anos de v·rias Ûticas (cognitiva, epistemolÛgica, etnobiolÛgica e, de maneira
mais geral, antropolÛgica) e em conex„o com uma variedade de temas, desde as taxonomias primitivas e
a conservaÁ„o da biodiversidade, atÈ a polÌtica de territorialidade e os movimentos sociais. Centrou-se a
atenÁ„o em aspectos tais como: os mecanismos atravÈs dos quais o conhecimento local opera, incluindo o
aspecto de se ìconhecimento localî È, em si, uma etiqueta apropriada para os mecanismos cognitivos e
experimentais que est„o em jogo nas relaÁıes das pessoas com os entornos n„o humanos; a existÍncia e
estruturaÁ„o de modelos culturais da natureza, nos quais o conhecimento local e os sistemas de
classificaÁ„o estariam imersos; e a relaÁ„o entre formas de conhecimento locais e formas modernas
especializadas, em ambientes concretos, ecolÛgicos e institucionais, por exemplo, no contexto dos
programas de desenvolvimento e conservaÁ„o, em especial nas ·reas de bosques tropicais. Pode-se
afirmar que a investigaÁ„o sobre o conhecimento local e os modelos culturais da natureza, que surgiu de
tendÍncias anteriores relativas ‡ etnobot‚nica, ‡ etnociÍncia e ‡ antropologia ecolÛgica, chegou ‡
maioridade. Este ressurgimento foi substituÌdo por recontagens cada vez mais sofisticadas sobre as
construÁıes da natureza elaboradas pelas pessoas, e talvez nos tenha oferecido a possibilidade de
desfazer-nos finalmente da relaÁ„o bin·ria entre a natureza e a cultura que tem sido t„o predominante e
prejudicial para a antropologia ecolÛgica e campos relacionados (Descola e P·lsson, 1996).
AntropÛlogos, geÛgrafos e ecologistas polÌticos demonstraram com crescente eloq¸Íncia que muitas
comunidades rurais do Terceiro Mundo ìconstrÛemî a natureza de formas impressionantemente diferentes
das formas modernas dominantes: eles designam, e portanto utilizam, os ambientes naturais de maneiras
muito particulares. Estudos etnogr·ficos dos cen·rios do Terceiro Mundo descobrem uma quantidade de
pr·ticas ñsignificativamente diferentesñ de pensar, relacionar-se, construir e experimentar o biolÛgico e o
natural. Este projeto foi formulado faz um tempo e alcanÁou um nÌvel de sofisticaÁ„o muito alto nos ˙ltimos
anos. Num artigo cl·ssico sobre o tema, Marilyn Strathern (1980: 174-175) afirma que n„o podemos
interpretar os mapas nativos (n„o modernos) do social e do biolÛgico nos termos de nossos conceitos da
natureza, da cultura e da sociedade. Para comeÁar, para muitos grupos indÌgenas e rurais, ìa ëculturaí n„o
fornece uma quantidade particular de objetos com os quais se possa manipular ëa naturezaí [...] a natureza
n„o se ëmanipulaíî. A ìnaturezaî e a ìculturaî devem ser analisadas, portanto, n„o como entes dados e prÈ-
sociais, e sim como construÁıes culturais, se È que desejamos determinar seu funcionamento como
dispositivos para a construÁ„o cultural, da sociedade humana, do gÍnero e da economia (MacCormack e
Strathern, 1980).
N„o existe, claro est·, uma vis„o unificada acerca do que caracteriza precisamente os modelos locais da
natureza, ainda que grande parte dos estudos etnogr·ficos compartilhem alguns pontos em comum, incluindo
os seguintes: um interesse pelas questıes epistemolÛgicas, que inclui a natureza dos dispositivos cognitivos
que se encontram em jogo nos modelos culturais do mundo natural e a comensurabilidade ou n„o dos
distintos modelos; os mecanismos gerais atravÈs dos quais a natureza È apreendida e construÌda, em
especial a existÍncia ou ausÍncia de esquemas gerais para a construÁ„o da natureza, sejam universais ou
n„o; e a natureza do conhecimento local, incluindo se este conhecimento est· plasmado e desenvolvido
atravÈs da pr·tica ou se È explÌcito e desenvolvido atravÈs de algum tipo de processo do pensamento. Talvez
a noÁ„o mais arraigada hoje em dia seja a de que os modelos locais da natureza n„o dependem da
dicotomia natureza/sociedade. AlÈm do mais, e a diferenÁa das construÁıes modernas com sua estrita
separaÁ„o entre o mundo biofÌsico, o humano e o supranatural, entende-se comumente que os modelos
locais, em muitos contextos n„o ocidentais, s„o concebidos como sustentados sobre vÌnculos de
continuidade entre as trÍs esferas. Esta continuidade ñque poderia no entanto, ser vivida como problem·tica
e incertañ est· culturalmente arraigada atravÈs de sÌmbolos, rituais e pr·ticas e est· plasmada em especial
em relaÁıes sociais que tambÈm se diferenciam do tipo moderno, capitalista. Desta forma, os seres vivos e
n„o vivos, e com freq¸Íncia supranaturais n„o s„o vistos como entes que constituem domÌnios distintos e
separados ñdefinitivamente n„o s„o vistos como esferas opostas da natureza e da culturañ e considera-se
que as relaÁıes sociais abarcam algo mais que aos seres humanos. Por exemplo, Descola (1996: 14) afirma
que ìem tais ësociedades da naturezaí, as plantas, os animais e outras entidades pertencem a uma
6
comunidade socioeconÙmica, submetida ‡s mesmas regras que os humanosî .
Um modelo local da natureza pode mostrar traÁos como os seguintes que podem ou n„o corresponder
aos par‚metros da natureza moderna, ou sÛ o fazer parcialmente: categorizaÁıes do ser humano, entidades
65
sociais e biolÛgicas (por exemplo, do que È humano e do que n„o o È, o que È semeado e o que n„o o È, o
domÈstico e o selvagem, o que È produzido pelos humanos e o que È produzido pelas florestas, o que È inato
ou o que emerge da aÁ„o humana, o que pertence aos espÌritos e o que È dos humanos, etc.); cen·rios de
limites (diferenciando, por exemplo, os humanos dos animais, a floresta do assentamento, os homens das
mulheres, ou entre distintas partes da floresta); uma classificaÁ„o sistem·tica dos animais, plantas e
espÌritos; etc. TambÈm pode conter mecanismos para manter a boa ordem e balanceamento dos circuitos
biofÌsico, humano e supranatural; ou pontos de vista circulares do tempo e da vida biolÛgica e social, no final
das contas validada pela ProvidÍncia, os deuses ou deusas; ou uma teoria de como todos os seres no
universo s„o ìcriadosî ou ìnutridosî com princÌpios similares, j· que em muitas culturas n„o modernas, o
universo inteiro È concebido como um ser vivente no qual n„o h· uma separaÁ„o estrita entre humanos e
7
natureza, indivÌduo e comunidade, comunidade e deuses .
Apesar de as fÛrmulas especÌficas para ordenar todos estes fatores variarem imensamente entre os
diferentes grupos, tendem a ter algumas caracterÌsticas em comum: revelam uma imagem complexa da vida
social que n„o est· necessariamente oposta ‡ natureza (em outras palavras, uma na qual o mundo natural
est· integrado ao mundo social), e que pode ser pensado em termos de uma lÛgica social e cultural, como o
parentesco, o parentesco estendido, e o gÍnero vern·culo ou analÛgico. Os modelos locais tambÈm
evidenciam um arraigamento especial a um territÛrio concebido como uma entidade multidimensional que
resulta dos muitos tipos de pr·ticas e relaÁıes; e tambÈm estabelecem vÌnculos entre os sistemas
simbÛlico/culturais e as relaÁıes produtivas que podem ser altamente complexas.
Duas perguntas que emergem destes estudos s„o a comensurabilidade ou n„o das construÁıes
locais, e com relaÁ„o a isto, a existÍncia ou n„o de mecanismos subjacentes em jogo em todas as
construÁıes. ìDevemos limitar-nos a descrever o melhor que possamos as concepÁıes especÌficas da
natureza que as diferentes culturas produziram em distintos momentos? ñpergunta Descola (1996: 84)ñ;
ou devemos buscar os princÌpios gerais de ordem que nos permitem comparar a aparentemente infinita,
empÌrica diversidade dos complexos da natureza/cultura?î. A pergunta, claro, se remonta aos debates
em etnobiologia (resumido em Berlin, 1992) relativos ‡ universalidade das estruturas taxonÙmicas de
ìum mapa da naturezaî subjacente. AntropÛlogos ecolÛgicos, orientados ao simbÛlico, responderam ao
reduzido interesse etnobiolÛgico nas taxonomias populares, deslocando a classificaÁ„o de seu lugar
privilegiado, afirmando que a classificaÁ„o È sÛ um aspecto do processo pelo qual os humanos dotam de
significado e propÛsito as caracterÌsticas do entorno natural. Numa tentativa de desloc·-la, no entanto, a
maioria dos antropÛlogos n„o est· disposta a renunciar ‡ existÍncia de mecanismos subjacentes que
organizam as relaÁıes entre os humanos e seu ambiente.
Para Descola, por exemplo, estes mecanismos ñou ìesquemas da pr·xisî (1996: 87)ñ consistem em
procedimentos estruturantes que combinam modos de identificaÁ„o, definindo limites entre o eu e o
outro nas interaÁıes humanas/n„o-humanas, modos de relaÁ„o (tais como a reciprocidade, a predaÁ„o
ou a proteÁ„o), e modos de classificaÁ„o (a sinalizaÁ„o ling¸Ìstica de categorias est·veis, reconhecidas
socialmente). Estes modos regulam a objetivizaÁ„o da natureza e constituem um conjunto finito de
8
possÌveis transformaÁıes . Da mesma maneira, para Ellen (1996), existem trÍs eixos ou dimensıes
cognitivos que subjazem a todos os modelos da natureza, os quais determinam a construÁ„o de coisas
ou tipos naturais, a maneira pela qual estas construÁıes se realizam no espaÁo, e a medida em que a
natureza È vista como possuidora de uma essÍncia para alÈm do controle humano. Estes padrıes
subjacentes ou mecanismos devem ser reconstruÌdos etnograficamente: emergem de processos
particulares, histÛricos, ling¸Ìsticos e culturais. Para Ellen e Descola, estes padrıes oferecem uma forma
de evitar um relativismo que faz com que as diferentes construÁıes sejam incomensur·veis, ao mesmo
tempo em que evitam o universalismo que reduziria as construÁıes n„o ocidentais a manifestaÁıes do
mesmo mapa da natureza que a etnobiologia pode discernir. Chega-se a estas construÁıes atravÈs de
mecanismos cognitivos que ainda est„o sendo discutidos (Bloch, 1996); isto È o que Ellen compreende
como ìpreensıes: aqueles processos que, atravÈs de distintos limites culturais e outros, d„o lugar a
9
classificaÁıes especiais, designaÁıes e representaÁıesî (1996: 119) .
Isto nos submerge no tema do conhecimento local. Parece haver uma certa convergÍncia nas colocaÁıes
antropolÛgicas mais recentes relacionadas com o conhecimento local ao tratar o conhecimento como ìuma
atividade pr·tica, situada, constituÌda por uma histÛria de pr·ticas passadas e em mudanÁaî, ou seja, ao
assumir que o conhecimento local funciona mais atravÈs de um conjunto de pr·ticas que dependendo de um
sistema formal de conhecimentos compartilhados, livres de contexto (Hobart, 1993b: 17-18; Ingold, 1996).
Isto se poderia chamar de uma vis„o do conhecimento local orientada para a pr·tica que tem sua origem
numa variedade de perspectivas teÛricas (de Bourdieu a Giddens). Uma tendÍncia similar pıe a Ínfase nos
aspectos corporizados do conhecimento local, neste caso apelando ‡s posturas filosÛficas delineadas por
Heidegger e tambÈm por Marx, Dewey e Merleau-Ponty. Ingold (1995; 1996), o mais eloq¸ente destes
expositores, sustenta que vivemos num mundo que n„o est· separado de nÛs, e nosso conhecimento do
mundo pode ser descrito como um processo de adestramento no contexto do envolver-se com o meio
ambiente. Os seres humanos, deste ponto de vista, est„o arraigados na natureza e imersos em atos pr·ticos,
localizados. Para o antropÛlogo Paul Richards, o conhecimento agrÌcola local deve ser visto como uma sÈrie
66
de capacidades de improvisaÁ„o, especÌficas de um contexto e de um tempo, e n„o como constitutivas de
um ìsistema indÌgena do conhecimentoî coerente, como foi sugerido em trabalhos anteriores. Deste ponto de
vista interpretativo do conhecimento, È mais correto falar de capacidades corporizadas que est„o em jogo na
execuÁ„o de tarefas e que ocorrem em contextos sociais, configurados por lÛgicas culturais especÌficas
(Richards, 1993).
Estas tendÍncias s„o bem-vindas, mas n„o resolvem todas as perguntas relacionadas com a natureza e os
modos de operaÁ„o do conhecimento local, no entanto, se colocam o antropÛlogo ecologicamente orientado, ou
ao ecÛlogo polÌtico, numa posiÁ„o de criticar as perspectivas convencionais e de vincular as novas perspectivas
ao tema do poder e ‡ racionalidade alternativa de produÁ„o (abaixo). Se todo o conhecimento est· corporizado ou
n„o; se o conhecimento corporizado pode ser visto como formal ou abstrato de alguma maneira; se opera e est·
organizado de maneiras contrastantes, ou se se assemelha ao discurso cientÌfico de alguma maneira, ou se existe
uma continuidade ou uma passagem espor·dica entre o conhecimento pr·tico e o conhecimento teÛrico/formal
10
que emerge de uma sintom·tica reflex„o sobre a experiÍncia, todas estas s„o perguntas abertas . E qual È a
relaÁ„o entre o conhecimento e a construÁ„o de modelos? Num trabalho excepcional, Gudeman e Rivera
sugeriram que os camponeses poderiam possuir um ìmodelo localî da terra, da economia e da produÁ„o
significativamente diferente dos modelos modernos, e que existe principalmente na pr·tica. Efetivamente, os
modelos locais s„o ìexperiÍncias de vidaî; ìdesenvolvem-se atravÈs do usoî na imbricaÁ„o das pr·ticas locais,
com processos e conversaÁıes mais amplos (Gudeman e Rivera, 1990: 14). PorÈm, esta proposta sugere que
podemos tratar o conhecimento corporizado, pr·tico, como constituindo ñapesar dissoñ um modelo de alguma
maneira compreensivo do mundo. … neste sentido que o termo modelo local È utilizado neste trabalho.
As conseq¸Íncias de repensar o conhecimento local e os modelos locais s„o enormes. Apesar de que existe o
perigo de reinscrever o conhecimento local deste tipo em formas de conhecimento de constelaÁıes hier·rquicas,
reafirmando novamente a desvalorizaÁ„o, estigmatizaÁ„o e subordinaÁ„o do conhecimento local que caracterizou
grande parte da discuss„o sobre o tema (incluindo os debates etnobiolÛgicos vinculados ‡ conservaÁ„o da
biodiversidade), o deslocamento produzido por este repensar orientado etnograficamente d·-nos esperanÁa de
outras maneiras. Talvez o mais importante de nossos objetivos seja que esta nova forma de pensar contribua para
desmontar a dicotomia entre natureza e cultura, que È fundamental para o domÌnio do conhecimento especializado
em consideraÁıes epistemolÛgicas e gerenciais. Se levamos a sÈrio as liÁıes da antropologia do conhecimento,
devemos aceitar que o ponto de vista comum dos domÌnios diferentes da natureza e da cultura que podem ser
11
conhecidos e manejados separadamente um do outro, j· n„o È sustent·vel .
Podem-se obter ensinamentos igualmente radicais da reinterpretaÁ„o do cognitivo de uma tendÍncia
relacionada que ainda n„o foi incorporada a estas discussıes, a saber, a biologia fenomenolÛgica de Humberto
Maturana, Francisco Varela e colaboradores. Brevemente, estes biÛlogos sugerem que a cogniÁ„o n„o È o
processo de construir representaÁıes de um mundo prefigurado, por uma mente prefigurada, externa a esse
mundo, como o apresenta a ciÍncia cognitiva convencional; eles sustentam que a cogniÁ„o sempre È experiÍncia
arraigada que se leva a cabo num pano de fundo histÛrico e que sempre se deve teorizar do ponto de vista da
ìininterrupta coincidÍncia de nossa existÍncia, nosso fazer e nosso saberî (Maturana e Varela, 1987: 25). No que
eles chamam de um enfoque enativo, a cogniÁ„o se converte na enaÁ„o de uma relaÁ„o entre a mente e um
mundo baseado na histÛria de sua interaÁ„o. ìAs mentes despertam num mundoî, comeÁam afirmando Varela e
seus colaboradores (Varela, Thompson e Rosch, 1991: 3) de maneira a sugerir nossa inelut·vel dupla
corporeidade ña do corpo como estrutura experimental vivida e como contexto da cogniÁ„o, um conceito que
tomam emprestado de Merleau-Pontyñ e assinalam o fato de que n„o estamos separados desse mundo; que
cada ato do conhecimento de fato, produz um mundo. Esta circularidade constitutiva da existÍncia que emerge da
corporeidade n„o deixa de ter conseq¸Íncias para a investigaÁ„o dos modelos locais da natureza, a ponto de que
nossa experiÍncia ña pr·xis de nosso viverñ est· acoplada a um mundo circundante que aparece cheio de
regularidades, que s„o em cada instante o resultado de nossas histÛrias biolÛgicas e sociaisÖ O pacote completo
de regularidades prÛprias ao vÌnculo de um grupo social È sua tradiÁ„o biolÛgica e cultural... (Nosso) patrimÙnio
biolÛgico comum È a base para o mundo que nÛs, os seres humanos, produzimos conjuntamente atravÈs de
distinÁıes congruentesÖ este patrimÙnio biolÛgico comum permite uma divergÍncia dos mundos culturais
produzidos pela constituiÁ„o do que se pode converter em tradiÁıes culturais amplamente diferentes (Maturana e
Varela, 1987: 241-244).
Ao rejeitar a separaÁ„o do conhecer e do fazer, e estas da existÍncia, estes biÛlogos nos oferecem uma
linguagem com a qual se pode questionar radicalmente as relaÁıes bin·rias e as assimetrias:
natureza/cultura, teoria/pr·tica; tambÈm corroboram as percepÁıes agudas daqueles que documentam
etnograficamente a continuidade entre a natureza e a cultura, e os aspectos corporizados do conhecimento,
como nas idÈias de desenvolvimento de habilidades e performatividade. A ecologia transforma-se em um
vÌnculo entre o conhecimento e a experiÍncia (a ecologia como a ciÍncia da experiÍncia transformativa,
baseada no reconhecimento da continuidade da mente, do corpo e do mundo), e isto, por sua vez, tem
conseq¸Íncias na maneira como estabelecemos os vÌnculos entre a natureza e a experiÍncia.
Estamos em posiÁ„o de resumir os diferentes enfoques sobre o tema do conhecimento local, antes de
introduzir nossa indagaÁ„o no que se refere ao lugar como seu contexto. Repassamos atÈ agora diferentes

67
conceitos que se referem a este tema: a performatividade (Richards), o adestramento (Ingold/P·lsson), a
pr·tica e os modelos baseados na pr·tica (Gudeman e Rivera) e na enaÁ„o (Varela et al.). De fato, este
conjunto de conceitos n„o esgota o domÌnio do ìconhecimento localî, e teriam que ser diferenciados ainda mais
e refinados analiticamente. No entanto, constituem uma base sÛlida sobre a qual podemos seguir adiante com
a antropologia do conhecimento, em especial no domÌnio ecolÛgico da aplicaÁ„o. TambÈm estabelecem
par‚metros alternativos para pensar a variedade de temas, desde a conservaÁ„o da biodiversidade atÈ a
globalizaÁ„o (Escobar, 1997a; 1997b).
Como considerar o lugar e sua relaÁ„o com os novos pontos de vista relacionados com o conhecimento
local e os modelos culturais j· descritos? Em termos gerais, o que È mais importante destes modelos do ponto
de vista do lugar, È que se poderia afirmar que constituem um conjunto de significados-uso que, apesar de
existir em contextos de poder que incluem cada vez mais as forÁas transnacionais, n„o pode ser reduzido ‡s
construÁıes modernas, nem ser explicado sem alguma referÍncia a um enraizamento, aos limites e ‡ cultura
local. Os modelos de cultura e conhecimento baseiam-se em processos histÛricos, ling¸Ìsticos e culturais, que,
apesar de que nunca est„o isolados das histÛrias mais amplas, porÈm retÍm certa especificidade de lugar.
Muitos dos aspectos do mundo natural s„o colocados em lugares. AlÈm do mais, muitos dos mecanismos e
pr·ticas em jogo nas construÁıes de natureza ñlimites, clarificaÁıes, representaÁıes, apreensıes cognitivas e
relaÁıes espaciaisñ s„o significativamente especÌficas de lugar. As noÁıes de performatividade, adestramento,
enaÁ„o e modelos de pr·tica tambÈm sugerem vÌnculos importantes com o lugar. Podem ser situados dentro da
antropologia das experiÍncias, para a qual ìo uso, n„o a lÛgica, condiciona as crenÁasî (Jackson, 1996: 12).
Talvez seja tempo de renovar nossa consciÍncia dos vÌnculos entre lugar, experiÍncia e a produÁ„o de
conhecimento.
Finalmente, a mesma dicotomia entre a natureza e a cultura emerge como uma das fontes de outros
dualismos predominantes, desde os que est„o entre mente e corpo, e teoria e pr·tica, atÈ os de lugar e espaÁo,
capital e trabalho, local e global. Que as pr·ticas baseadas no lugar sigam sendo socialmente significativas est·
talvez mais claramente afirmado por Gudeman e Rivera, cujos modelos de camponeses mantiveram um car·ter
baseado no lugar, apesar do fato de que s„o o resultado de ìconversaÁıesî e relaÁıes de longa data com os
mercados e as economias globalizantes. Em seu trabalho, encontramos uma vis„o n„o globocÍntrica da
globalizaÁ„o, isto È, da perspectiva do lugar e do local.

III. A natureza do lugar: repensar o local e o global


As mentes despertam num mundo, mas tambÈm em lugares concretos, e o conhecimento local È um modo de
consciÍncia baseado no lugar, uma maneira lugar-especÌfica de outorgar sentido ao mundo. Contudo, o fato È que
em nosso interesse, com a globalizaÁ„o, o lugar desapareceu. Um conjunto de trabalhos recentes tentam superar
este paradoxo ao resolver algumas das armadilhas epistemolÛgicas que impıem as teorias da globalizaÁ„o. Ao
mesmo tempo, oferecem elementos para pensar para alÈm do desenvolvimento, ou seja, para uma
conceitualizaÁ„o do pÛs-desenvolvimento que È mais favor·vel ‡ criaÁ„o de novos tipos de linguagens,
12
compreens„o e aÁ„o . Debates novos sobre a economia e o lugar parecem ser especialmente ˙teis neste
aspecto. Nestes trabalhos, o lugar afirma-se em oposiÁ„o ao domÌnio do espaÁo, e o n„o-capitalismo em oposiÁ„o
ao domÌnio do capitalismo como imagin·rio da vida social.
Comecemos com uma crÌtica esclarecedora do capitalcentrismo nos recentes discursos da globalizaÁ„o. Esta
crÌtica, que nasce de certas tendÍncias na geografia pÛs-estruturalista e feminista, nos permitir·, creio, liberar o
espaÁo para pensar acerca da potencialidade dos modelos locais da natureza. Para as geÛgrafas Julie Graham e
Catherine Gibson, a maioria das teorias acerca da globalizaÁ„o e o pÛs-desenvolvimento s„o capitalcÍntricas
porque situam o capitalismo ìno centro da narrativa do desenvolvimento, e portanto tendem a desvalorizar ou
marginalizar as possibilidades de um desenvolvimento n„o capitalistaî (Gibson e Graham, 1996: 41). De uma
maneira mais geral, estas autoras apresentam uma argumentaÁ„o poderosa contra a afirmaÁ„o, compartilhada
tanto pelas correntes dominantes como pelos teÛricos de esquerda, de acordo com a qual o capitalismo È a forma
atual hegemÙnica, talvez a ˙nica, da economia, e que o continuar· sendo no futuro previsÌvel. O capitalismo foi
investido de tal predomin‚ncia e hegemonia que se tornou impossÌvel pensar a realidade social de outra maneira,
muito menos imaginar a supress„o do capitalismo; todas as outras realidades (economias de subsistÍncia,
economias biodiversificadas, formas de resistÍncia do Terceiro Mundo, cooperativas e iniciativas locais menores)
s„o vistas como opostas, subordinadas ao capitalismo ou complementares a ele, nunca como fontes de uma
diferenÁa econÙmica significativa. Ao criticar o capitalcentrismo, estas autoras buscam liberar nossa capacidade
13
de ver sistemas n„o-capitalistas e de construir imagin·rios econÙmicos alternativos .
Esta reinterpretaÁ„o pıe em quest„o a inevitabilidade da ìpenetraÁ„oî capitalista que se assume em
grande parte da literatura da globalizaÁ„o:
No roteiro da globalizaÁ„o [Ö] somente o capitalismo tem a capacidade de estender-se e de invadir. O capitalismo
apresenta-se como inerentemente espacial e como naturalmente mais forte que as outras formas de economia
n„o-capitalista (economias tradicionais, economias do ëTerceiro Mundoí, economias socialistas, experiÍncias
68
comunais) devido a que se presume sua capacidade para universalizar o mercado para os bens capitalistas [Ö] A
globalizaÁ„o, de acordo com este roteiro, implica a violaÁ„o e eventual morte de ëoutrasí formas de economia n„o-
capitalista [Ö] Todas as formas n„o-capitalistas s„o prejudicadas, violadas, caem, subordinam-se ao capitalismo
[...] Como podemos desafiar a representaÁ„o similar da globalizaÁ„o como capaz de ëtomarí a vida dos lugares
n„o-capitalistas, em especial do ëTerceiro Mundoí? (Gibson e Graham, 1996: 125-130).

N„o se pode dizer que tudo o que emerge da globalizaÁ„o esteja adequado ao roteiro capitalista; de fato, a
globalizaÁ„o e o desenvolvimento poderiam propiciar uma variedade de vias para o desenvolvimento econÙmico,
que poderiam ser teorizadas nos termos do pÛs-desenvolvimento, de maneira que ìa naturalidade da identidade
do capitalismo como padr„o para toda a identidade econÙmica seja questionadaî (Gibson e Graham, 1996: 146).
PorÈm, sabemos o que est· aÌ ìno terrenoî apÛs sÈculos de capitalismo e cinco dÈcadas de desenvolvimento?
Sabemos, inclusive, como ver a realidade social de forma que possam permitir-nos detectar elementos diferentes,
n„o redutÌveis ‡s construÁıes do capitalismo e da modernidade e que, mais ainda, possam servir como n˙cleos
para a articulaÁ„o de pr·ticas sociais e econÙmicas alternativas? E finalmente, inclusive se pudÈssemos
comprometer-nos neste exercÌcio de uma vis„o alternativa, como se poderiam promover tais pr·ticas alternativas?
O papel da etnografia pode ser especialmente importante neste aspecto, e existem algumas
tendÍncias que apontam nesta direÁ„o. Na dÈcada de oitenta, um grupo de etnÛgrafos dedicou-se a
documentar as resistÍncias ao capitalismo e ‡ modernidade em ambientes diversos. Dessa maneira
iniciou-se a tarefa de tornar visÌveis as pr·ticas e os processos que revelavam que havia m˙ltiplas
14
formas de resistÍncia ativa ao prÛprio desenvolvimento . A prÛpria resistÍncia, porÈm, È sÛ uma
insinuaÁ„o do que estava ocorrendo em muitas comunidades, n„o chegando a mostrar como as pessoas
sempre criam ativamente e reconstrÛem seus mundos de vida e seus lugares. Trabalhos posteriores,
como vimos, caracterizaram os modelos locais da economia e o ambiente natural que foram mantidos
pelos camponeses e pelas comunidades indÌgenas, em parte arraigados no conhecimento e em pr·ticas
locais. A atenÁ„o que se deu, em especial na AmÈrica Latina, ‡ hibridizaÁ„o cultural, È outra tentativa de
tornar visÌvel o encontro din‚mico das pr·ticas que se originam em muitas matrizes culturais e
temporais, e a medida em que os grupos locais, longe de serem receptores passivos de condiÁıes
transnacionais, configuram ativamente o processo de construir identidades, relaÁıes sociais, e pr·ticas
15
econÙmicas . A pesquisa etnogr·fica deste tipo ñque definitivamente continuar· por muitos anosñ tem
sido importante para esclarecer os discursos das diferenÁas culturais, ecolÛgicas e econÙmicas entre as
comunidades do Terceiro Mundo em contextos de globalizaÁ„o e desenvolvimento.
Se o objetivo de Graham e Gibson foi oferecer uma linguagem alternativa ñuma nova linguagem de
classeñ para abordar o significado econÙmico das pr·ticas locais, e se o objetivo da literatura do pÛs-
desenvolvimento È, da mesma maneira, tornar visÌveis as pr·ticas das diferenÁas culturais e ecolÛgicas
que poderiam servir de base para alternativas, faz-se necess·rio reconhecer que estes objetivos est„o
indissoluvelmente vinculados a concepÁıes de localidade, de lugar e de uma consciÍncia baseada no
lugar. O lugar ñcomo a cultura localñ pode ser considerado ìo outroî da globalizaÁ„o, de maneira que uma
discuss„o do lugar deveria oferecer uma perspectiva importante para repensar a globalizaÁ„o e a quest„o
das alternativas ao capitalismo e ‡ modernidade.
Como assinalou Arf Dirlik (2000), o lugar e a consciÍncia baseada no lugar tÍm sido marginalizados
nos debates sobre o local e o global. Isto È duplamente lament·vel porque, por um lado, o lugar È central
no tema do desenvolvimento, da cultura e do meio ambiente, e È igualmente essencial, por outro lado,
para imaginar outros contextos para pensar acerca da construÁ„o da polÌtica, do conhecimento e da
identidade. O desaparecimento do lugar È um reflexo da assimetria existente entre o global e o local na
maior parte da literatura contempor‚nea sobre a globalizaÁ„o, na qual o global est· associado ao
espaÁo, ao capital, ‡ histÛria e ‡ aÁ„o humana, enquanto o local, contrariamente, È vinculado ao lugar, o
trabalho e as tradiÁıes, assim como sucede com as mulheres, as minorias, os pobres e poder-se-ia
16
acrescentar, ‡s culturas locais . Algumas geÛgrafas feministas tentaram corrigir esta assimetria
afirmando que o lugar tambÈm pode conduzir a articulaÁıes atravÈs do espaÁo, por exemplo, atravÈs de
redes de diferentes tipos. Nestes trabalhos, todavia, a relaÁ„o entre o lugar e a experiÍncia enraizada,
com algum tipo de limite, mesmo que poroso e intersectado com o global, est· insuficientemente
conceitualizada.
Talvez nas an·lises de Dirlik sejam mais fundamentais as conseq¸Íncias do abandono do lugar, por
categorias atuais da an·lise social tais como classe, gÍnero e raÁa (e deverÌamos acrescentar aqui o meio
ambiente), que fazem com que essas categorias sejam suscetÌveis de transformar-se em instrumentos de
hegemonia. Na medida em que foram significativamente separadas do lugar no ìfrenesi da globalizaÁ„oî
das ìidentidades desterritorializadasî ñe em muitos discursos isso privilegia as viagens, a mobilidade, o
deslocamento e a di·sporañ as noÁıes contempor‚neas da cultura n„o conseguem escapar deste aperto,
porque tendem a assumir a existÍncia de uma forÁa global ‡ qual o local est· necessariamente
subordinado. Sob estas condiÁıes, È possÌvel lanÁar uma defesa do lugar na qual o lugar e o local n„o

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derivem seu significado da justaposiÁ„o ao global? Quem fala pelo ìlugarî? Quem o defende? Como um
primeiro passo na resistÍncia ‡ marginalizaÁ„o do lugar, Dirlik convoca a distinÁ„o que faz Lefebvre entre
o espaÁo e o lugar (entre primeiro e segundo espaÁo, no trabalho de Lefebvre), em especial sua noÁ„o de
lugar como uma forma de espaÁo vivido e enraizado e cuja reapropriaÁ„o deve ser parte de qualquer
agenda polÌtica radical contra o capitalismo e a globalizaÁ„o sem tempo e sem espaÁo. A polÌtica, em
outras palavras, tambÈm est· situada no lugar, n„o sÛ nos supranÌveis do capital e do espaÁo. O lugar,
pode-se acrescentar, È a localizaÁ„o de uma multiplicidade de formas de polÌtica cultural, ou seja, do
cultural transformando-se em polÌtica, como se evidenciou nos movimentos sociais das florestas tropicais e
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outros movimentos ecolÛgicos .
Pode o lugar ser reconcebido como projeto? Para que isto ocorra, necessitamos de uma nova linguagem.
Regressando a Dirlik, ìo glocalî È uma primeira aproximaÁ„o que sugere uma atenÁ„o equ‚nime para a
localizaÁ„o do global e para a globalizaÁ„o do local. As formas concretas pelas quais este tr·fico em ambos
os sentidos se leva a cabo, n„o se conceituam facilmente. Mesmo o local dos movimentos sociais contra o
capitalismo e as naturezas modernas, est· de alguma maneira globalizado, por exemplo, na medida em que
os movimentos sociais tomam emprestados os discursos metropolitanos de identidade e ambiente (Brosius,
1997: 47-69). Por outro lado, muitas formas do local se oferecem para o consumo global, desde o parentesco
atÈ os ofÌcios e o ecoturismo. O ponto aqui È distinguir aquelas formas de globalizaÁ„o do local que se
convertem em forÁas polÌticas efetivas em defesa do lugar e das identidades baseadas no lugar, assim como
aquelas formas de localizaÁ„o do global que os locais podem utilizar para seu benefÌcio.
Construir o lugar como um projeto, transformar o imagin·rio baseado no lugar numa crÌtica radical do
poder, e alinhar a teoria social com uma crÌtica do poder pelo lugar, exige aventurar-se por outros terrenos.
Esta proposta ressoa com e se move um passo alÈm da idÈia de Jane Jacobs (1996: 158) de que ìao
atender o local, ao levar em sÈrio o local, È possÌvel ver como as grandiosas idÈias de impÈrio se convertem
em tecnologias de poder inst·veis, com alcances atravÈs do tempo e do espaÁoî. Certamente, o ìlugarî e ìo
conhecimento localî n„o s„o panacÈias que resolver„o os problemas do mundo. O conhecimento local n„o È
ìpuroî, nem livre de dominaÁ„o; os lugares podem ter suas prÛprias formas de opress„o e atÈ de terror; s„o
histÛricos e est„o conectados com o mundo atravÈs de relaÁıes de poder, e de muitas maneiras, est„o
determinados por elas. A defesa do conhecimento local que se propıe aqui È polÌtica e epistemolÛgica, e
surge do compromisso com um discurso anti-essencialista do diferente. Contra os que pensam que a defesa
do lugar e do conhecimento local È inegavelmente ìrom‚nticaî, poder-se-ia dizer, como Jacobs (1996: 161)
ìque È uma forma de nostalgia imperial, um desejo do ënativo intocadoí, que presume que tais encontros
(entre o local e o global) somente significam outra forma de imperialismoî. Ser· necess·rio, porÈm, estender
a investigaÁ„o ao lugar, para considerar questıes mais amplas, tais como a relaÁ„o do lugar com economias
regionais e transnacionais; o lugar e as relaÁıes sociais; o lugar e a identidade; o lugar e os limites e os
cruzamentos de fronteiras; o hÌbrido; e o impacto da tecnologia digital, particularmente a Internet, no lugar.
Quais s„o as mudanÁas que se d„o em lugares precisos como resultado da globalizaÁ„o? Por outro lado,
quais formas novas de pensar o mundo emergem de lugares como resultado de tal encontro? Como
podemos compreender as relaÁıes entre as dimensıes biofÌsicas, culturais e econÙmicas dos lugares?

IV. A defesa do lugar: algumas implicaÁıes para a ecologia polÌtica


Como j· foi mencionado, a defesa do lugar pode ser vinculada ‡ pr·tica de um grupo de atores, desde
ativistas de movimentos sociais atÈ arqueÛlogos histÛricos, antropÛlogos ecolÛgicos, psicÛlogos
ambientalistas, e ecÛlogos. Um estudo aprofundado destes vÌnculos est· alÈm do objetivo deste trabalho;
esta ˙ltima parte oferece algumas consideraÁıes gerais, em especial referentes ‡ investigaÁ„o futura. Para
comeÁar com os movimentos sociais, em particular os da populaÁ„o das florestas tropicais, invariavelmente
enfatizam quatro direitos fundamentais: a sua identidade, a seu territÛrio, ‡ autonomia polÌtica, e a sua
prÛpria vis„o de desenvolvimento. A maioria destes movimentos È concebida explicitamente em termos de
diferenÁas culturais, e da diferenÁa ecolÛgica que esta significa. Estes n„o s„o movimentos para o
desenvolvimento nem para a satisfaÁ„o de necessidades, apesar de que, logicamente, as melhoras
econÙmicas e materiais s„o importantes para eles. S„o movimentos originados numa vinculaÁ„o cultural e
ecolÛgica a um territÛrio. Para eles, o direito a existir È uma quest„o cultural, polÌtica e ecolÛgica. Est„o
obrigatoriamente abertos a certas formas de bens, comÈrcio, e ‡s tecnociÍncias (por exemplo, atravÈs de
uma relaÁ„o com as estratÈgias de conservaÁ„o da biodiversidade), ao mesmo tempo em que resistem ‡
completa valorizaÁ„o capitalista e cientÌfica da natureza. Dessa maneira pode-se considerar que adiantam,
por meio de sua estratÈgia polÌtica, umas t·ticas de racionalidade do pÛs-desenvolvimento e de uma
alternativa ecolÛgica, na medida em que eles expressam com forÁa e defendem discursos e pr·ticas das
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diferenÁas cultural, ecolÛgica e econÙmica .
Na ColÙmbia, os ativistas negros da floresta tropical da regi„o do PacÌfico tÍm articulado
progressivamente conceitos acerca do territÛrio e da biodiversidade em sua interaÁ„o com as comunidades
locais, o Estado, as ONGs e os setores acadÍmicos. Seu territÛrio È considerado um espaÁo fundamental e

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multidimensional para a criaÁ„o e recriaÁ„o dos valores sociais, econÙmicos e culturais das comunidades. A
relaÁ„o entre os significados e as pr·ticas ñe as relaÁıes sociais nas quais est„o arraigadasñ est· sendo
transformada hoje pela acometida do desenvolvimentismo que conduz ‡ perda de conhecimento e de
territÛrio, alÈm de transformar a natureza numa mercadoria. A demarcaÁ„o dos territÛrios coletivos
outorgados ‡s comunidades negras da regi„o pela nova ConstituiÁ„o do paÌs (1991) levou os ativistas a
desenvolver uma concepÁ„o do territÛrio que ressalta as articulaÁıes entre padrıes de assentamento, uso
dos espaÁos e pr·ticas do conjunto do significado-uso dos recursos. Esta concepÁ„o È validada pelos
estudos antropolÛgicos recentes que documentam os modelos culturais da natureza existentes entre as
comunidades negras dos rios (Restrepo e del Valle, 1996).
Os ativistas introduziram outras inovaÁıes conceituais importantes, algumas das quais apareceram no
processo das negociaÁıes com o pessoal de um projeto de conservaÁ„o da biodiversidade do governo,
com o qual vÍm mantendo uma relaÁ„o difÌcil e tensa, mas frutÌfera de muitas maneiras. A primeira È a
definiÁ„o de ìbiodiversidadeî como ìterritÛrio mais culturaî. Estreitamente relacionado a isto est· uma
vis„o do PacÌfico como um ìterritÛrio-regi„oî de grupos Ètnicos, uma unidade ecolÛgica e cultural, que È
um espaÁo laboriosamente construÌdo atravÈs de pr·ticas cotidianas culturais, ecolÛgicas e econÙmicas
das comunidades negras e indÌgenas. S„o precisamente estas din‚micas ecoculturais complexas as que
raramente s„o levadas em consideraÁ„o nos programas do Estado, os quais dividem o territÛrio de acordo
com seus princÌpios ñpor exemplo, a bacia do rio, dessa maneira passando por alto a complexa rede que
articula a atividade de v·rios riosñ e que fragmenta a espacialidade culturalmente construÌda de paisagens
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particulares, precisamente porque n„o vÍem a din‚mica sociocultural .
Poder-se-ia dizer que o territÛrio-regi„o È uma categoria administrativa de grupos Ètnicos que aponta
para a construÁ„o de modelos alternativos de vida e sociedade. O territÛrio-regi„o È uma unidade
conceitual e um projeto polÌtico. Carrega uma tentativa de explicar a diversidade biolÛgica a partir da
lÛgica cultural do PacÌfico. A demarcaÁ„o dos territÛrios coletivos encaixa-se neste contexto, inclusive se
as disposiÁıes do governo ñque dividem a regi„o do PacÌfico entre territÛrios coletivos, parques
naturais, ·reas de utilizaÁ„o e ainda em ·reas de sacrifÌcio onde ser„o construÌdos megaprojetosñ de
novo violam este contexto. O tema do territÛrio È considerado pelos ativistas do PCN como um desafio
ao desenvolvimento das economias locais e formas de governabilidade que podem servir de apoio a
uma defesa efetiva. O reforÁo e transformaÁ„o dos sistemas tradicionais de produÁ„o e de mercados e
economias locais; a necessidade de seguir adiante com o processo de outorgar de tÌtulos de
propriedade coletiva e o esforÁo de conseguir um fortalecimento organizacional e o desenvolvimento de
formas de governabilidade territorial, s„o todos componentes importantes de uma estratÈgia total
centrada na regi„o.
Est· claro que a ecologia polÌtica criada por estes movimentos sociais È portadora de uma defesa da
identidade, do lugar e da regi„o que n„o d· por est·ticos nem o lugar nem a identidade, mesmo se estiver
formulada como a defesa destes. Uma construÁ„o coletiva da identidade È, logicamente, crucial neste
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aspecto . De fato, chegou-se a esta polÌtica ecolÛgica no encontro com as forÁas e discursos nacionais e
transnacionais ñdesde as novas formas do capital mineiro, madeireiro e agroindustrial que se estabelece na
regi„o, atÈ as estratÈgias de conservaÁ„o da biodiversidade originalmente concebidas por ONGs ambientalistas
do Norte e organizaÁıes internacionaisñ e no contexto de um ìespaÁoî nacional que comeÁa a fazer ·gua por
todos os lados, que provoca lament·veis decomposiÁıes e recomposiÁıes de identidade e regiıes. Se se vai
considerar o territÛrio como ìo conjunto de projetos e representaÁıes nas que uma sÈrie de novas condutas e
investimentos podem emergir pragmaticamente, no tempo e no espaÁo social, cultural estÈtico e cognitivoî ñum
espaÁo existencial de auto-referÍncia no qual ìdissidÍncias subjetivasî podem emergir (Guattari)ñ ent„o est·
claro que os movimentos sociais do PacÌfico est„o impulsionando este projeto.
A vis„o de ecologia polÌtica dos movimentos sociais do PacÌfico ressoa com as propostas atuais de
repensar a produÁ„o como a articulaÁ„o de produtividades especÌficas de lugar, ecolÛgicas, e
tecnoeconÙmicas (Leff, 1992; 1995a: 58-64; 1995b). Leff, em particular, defende a incorporaÁ„o de critÈrios
culturais e tecnolÛgicos num paradigma alternativo de produÁ„o que vai muito alÈm da racionalidade
econÙmica dominante. Leff insiste que se È verdade que a sustentabilidade deve basear-se nas propriedades
estruturais e funcionais dos distintos ecossistemas, qualquer paradigma de produÁ„o alternativa conducente
a isso deve incorporar as atuais condiÁıes cultural e tecnologicamente especÌficas pelas quais atores locais
se apropriam da natureza. ìO desenvolvimento sustent·vel encontra suas raÌzes em condiÁıes de
diversidade cultural e ecolÛgica. Estes processos singulares e n„o redutÌveis dependem das estruturas
funcionais de ecossistemas que sustentam a produÁ„o de recursos biÛticos e serviÁos ambientais; da
eficiÍncia energÈtica dos processos tecnolÛgicos; dos processos simbÛlicos e formaÁıes ideolÛgicas que
subjazem na valorizaÁ„o cultural dos recursos naturais; e dos processos polÌticos que determinam a
apropriaÁ„o da naturezaî (Leff, 1995a: 61). Dito de outra maneira, a construÁ„o de paradigmas alternativos
de produÁ„o, ordens polÌticas e sustentabilidade s„o aspectos de um mesmo processo, e este processo È
impulsionado em parte pela polÌtica cultural dos movimentos sociais e das comunidades na defesa de seus
modos de natureza/cultura. … assim que o projeto de movimentos sociais constitui uma express„o concreta
da busca de ordens alternativas de produÁ„o e ambientais, prevista pelos ecÛlogos polÌticos.
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Pode-se dizer que esta noÁ„o de territÛrio que est„o pesquisando os ativistas de movimentos e
ecÛlogos polÌticos representa uma relaÁ„o entre lugar, cultura e natureza. Da mesma maneira, a
definiÁ„o dos ativistas da biodiversidade como ìterritÛrio mais culturaî È outro exemplo de uma
consciÍncia-baseada-no-lugar, mais ainda, da transformaÁ„o de lugar e cultura em fonte de fatos
polÌticos. Os modelos locais da natureza podem igualmente ser reinterpretados como constitutivos de
uma sÈrie de pr·ticas n„o-capitalistas, muitas, apesar de que n„o todas, ecolÛgicas. Pode-se
considerar, para os efeitos desta an·lise, que os conjuntos de usos-significados est„o dotados, ao
menos potencialmente, de um significado econÙmico n„o-capitalista. As economias das comunidades
baseiam-se no lugar (mesmo que n„o amarrados-ao-lugar, porque participam de mercados translocais),
e freq¸entemente mantÍm um espaÁo comum que consiste em terra, recursos materiais, conhecimento,
ancestrais, espÌritos, etcetera (Gudeman e Rivera, 1990; Gudeman, 1996).
As implicaÁıes da perspectiva do lugar para a antropologia ecolÛgica tambÈm s„o substanciais.
Etnograficamente, o enfoque estaria na documentaÁ„o dos significados-uso do natural como expressıes
concretas de conhecimento baseado-no-lugar. De uma multiplicidade de conjuntos de significados-uso, os
antropÛlogos ecolÛgicos puderam propor uma defesa do lugar formulada como a possibilidade de redefinir e
reconstruir o mundo a partir da perspectiva de uma lÛgica de lugar m˙ltiplo. Esta È uma quest„o que os
antropÛlogos ecologistas parecem evitar, mas que deve ser abordada diretamente de maneira a oferecer um
discurso da diferenÁa ecolÛgica. Os ativistas do movimento social e os ecÛlogos polÌticos, como pudemos
ver, j· est„o comprometidos nesta tarefa. Ao colocar a Ínfase no car·ter vivido, disputado, das paisagens do
passado e do presente, os arqueÛlogos histÛricos tambÈm desenvolveram uma perspectiva de lugar,
apoiando-se principalmente na fenomenologia e no marxismo cultural (Bender, 1993; 1998). Estes s„o
elementos de grande import‚ncia para a ecologia polÌtica erigida sobre a noÁ„o de racionalidades culturais,
ecolÛgicas e econÙmicas, baseadas-no-lugar.
Por ˙ltimo, os psicÛlogos ambientalistas comeÁaram mais claramente a desenvolver um manejo das
ferramentas do ecossistema sustentado no conceito de lugar. Ao irem alÈm da concepÁ„o instrumental
dominante de gest„o e invent·rios, estes estudiosos colocam a Ínfase nos significados culturais atravÈs dos
quais os lugares ñe de fato, os ecossistemasñ se constrÛem. Ao verem os ecossistemas como lugares
socialmente construÌdos, concluem que ìo centro do manejo dos ecossistemas È o de guiar as decisıes que
afetam um lugar usando um conhecimento abundante de sua histÛria natural e culturalî. Igualmente, ìas
decisıes sobre os recursos deveriam ser guiadas por uma compreens„o de todos os processos sociais que
definem, estruturam e alteram o significado das paisagensî (Williams e Patterson). Esta posiÁ„o dista das
opiniıes convencionais impulsionadas por um paradigma instrumental ou mercantil; constitui uma filosofia do
manejo dos recursos completamente diferente. A perspectiva de lugar tambÈm nos permite dar um conte˙do
etnogr·fico ‡ noÁ„o do ìecologismo dos pobresî (Guha, 1997; MartÌnez Alier, 1992), ou seja, a resistÍncia
cultural de fato de muitas comunidades pobres ‡ valorizaÁ„o capitalista estrita de seu ambiente. No fundo do
ecologismo dos pobres est· o conjunto de usos-significado que acabamos de discutir.
Ser· possÌvel, ent„o, aceitar que os lugares sempre est„o sendo defendidos, e que sempre surgem novas
economias? Que as pr·ticas ecolÛgicas alternativas n„o sÛ podem ser documentadas, mas que sempre s„o
objeto de disputa en muitas localidades? Atrever-se a considerar seriamente estas perguntas definitivamente
supıe uma polÌtica de leitura distinta, por parte de nÛs mesmos como analistas, com a necessidade
concomitante de contribuir com as polÌticas diferentes da representaÁ„o da realidade. TambÈm supıe que o
pÛs-desenvolvimento j· est· (e sempre esteve) sob uma constante reconstruÁ„o (Rahnema e Bawtree, 1997).
… no espÌrito do pÛs-desenvolvimento que podemos repensar a sustentabilidade e a conservaÁ„o como
aspectos-chave da polÌtica de lugar.
Resta um tema fundamental, e È o das condiÁıes que tornam possÌvel a defesa e o reforÁo do lugar.
AtravÈs de redes reais e virtuais de todo tipo; atravÈs de coalizıes de movimentos sociais; e atravÈs de
coalizıes heterogÍneas de diversos atores como acadÍmicos, ativistas, ONGs, etc. Esta claro que as
disputas baseadas-no-lugar comeÁam a criar efeitos e realidades supralugar. Como se podem conceituar
estas realidades? Quais s„o os efeitos reais sobre o local e o global? TÍm uma verdadeira oportunidade de
redefinir o poder, e em que nÌveis? Que coaliz„o em especial oferece mais possibilidades? As ˙ltimas
p·ginas deste trabalho estar„o dedicadas a esta pergunta candente.
No nÌvel do conhecimento, a quest„o È enganosamente clara: como transformar o conhecimento local em
poder, e este conhecimento-poder em projetos e programas concretos? Como podem as constelaÁıes de
conhecimento-poder construir pontes com formas especializadas de conhecimento quando for necess·rio ou
conveniente, e como podem ampliar seu espaÁo social de influÍncia quando s„o confrontadas, como È o
caso com freq¸Íncia, em condiÁıes locais, regionais, nacionais e transnacionais desfavor·veis? Numa vis„o
antropolÛgica da globalizaÁ„o se predicava acerca da necessidade de identificar os discursos socialmente
significativos sobre a diferenÁa (cultural, ecolÛgica, econÙmica, polÌtica), e as maneiras pelas quais podem
operar como discursos de articulaÁ„o de alternativas; examinaram-se as m˙ltiplas formas de construir a
cultura, a natureza e as identidades hoje em dia, assim como a produÁ„o de diferenÁas atravÈs de processos
histÛrico-espaciais que n„o s„o exclusivamente o produto de forÁas globais ñseja o capitalismo, sejam as

72
novas tecnologias, a integraÁ„o do mercado, ou o que forñ mas tambÈm vinculados aos lugares e a sua
defesa. … importante tornar visÌveis as m˙ltiplas lÛgicas locais de produÁ„o de culturas e identidades,
pr·ticas ecolÛgicas e econÙmicas que emergem sem cessar das comunidades de todo o mundo. Em que
medida estas pr·ticas colocam obst·culos importantes e talvez originais ao capitalismo e ‡s modernidades
eurocentradas?
Uma vez visÌveis, no entanto, quais seriam as condiÁıes que permitiriam pr·ticas baseadas-no-lugar para
criar estruturas alternativas que lhes oferecessem uma oportunidade de sobreviver, e de crescer e florescer?
Este ˙ltimo aspecto da ìquest„o das alternativasî permanece bastante insol˙vel. Para Dirlik, a sobrevivÍncia
das culturas baseadas-no-lugar estar· assegurada quando a globalizaÁ„o do local compense as localizaÁıes
do global, ou seja, quando a simetria entre o local e o global seja reintroduzida em termos sociais e
conceituais, e devemos acrescentar, quando o n„o-capitalismo e as diferentes culturas se transformem
igualmente em centros de an·lises e estratÈgias para a aÁ„o. Tal simetria requer um paralelo entre as
abstraÁıes modernas e a vida cotidiana, e as consideraÁıes de contexto, histÛria e estrutura. Em ˙ltima
inst‚ncia, contudo, a imaginaÁ„o e a realizaÁ„o de ordens significativamente diferentes exigem ìa projeÁ„o
de lugares para espaÁos procurando criar novas estruturas de poderÖ de maneira a incorporar os lugares a
sua prÛpria constituiÁ„oî (Dirlik, 2000: 39). TambÈm exige a liberaÁ„o de imagin·rios n„o-capitalistas para
que formem parte da constituiÁ„o de economias e estruturas econÙmicas, e defender as culturas locais frente
‡ normalizaÁ„o por culturas dominantes para que possam transformar-se em forÁas polÌticas e de vida
efetivas. Para que isto suceda, os lugares devem ìprojetar-se a espaÁos que s„o atualmente do domÌnio do
capital e da modernidadeî (Dirlik, 2000: 40). Alguns movimentos sociais est„o apontando nessa direÁ„o com
sua redefiniÁ„o da relaÁ„o entre a natureza e a sociedade, ou o cultural e o polÌtico.
Est· claro que os lugares est„o sendo progressivamente submetidos ‡s operaÁıes do capital global, de
modo ainda mais acentuado na era do neoliberalismo e da degradaÁ„o do Estado-naÁ„o. Contudo, isto sÛ
outorga car·ter mais urgente ‡ quest„o das regiıes e das localidades. Redes tais como as dos indÌgenas,
dos ambientalistas, das ONGs e outros movimentos sociais est„o tornando-se mais numerosas e adquirindo
maior influÍncia nos nÌveis locais, nacionais e transnacionais. Muitas destas redes podem ser vistas como
produtoras de identidades baseadas-no-lugar e ao mesmo tempo transnacionalizadas. TambÈm se podem
considerar como produtoras de ìglocalidadesî alternativas ‡quelas do capital, dos meios de comunicaÁ„o e
da cultura global. Todas as glocalidades s„o tanto locais como globais, mas n„o s„o globais e locais da
mesma maneira (Dirlik, 2000). … importante considerar aquelas que promovam uma polÌtica cultural em
defesa do lugar e da natureza. Estas glocalidades poderiam propiciar reorganizaÁıes visÌveis do lugar de
baixo para cima e a reconquista do espaÁo partindo do prÛprio lugar em que operam. A criaÁ„o de mundos
regionais ñregiıes completas, tais como ecossistemas particulares ou localidades interconectadasñ est·-se
transformando num processo cada vez mais sobressalente e disputado com a crescente globalizaÁ„o. Atores
emergentes, pr·ticas e identidades configuram o processo da criaÁ„o de mundos socioculturais e
socionaturais. E ainda que as redes da criaÁ„o de mundos sÛcioculturais e socionaturais estejam cada vez
mais atadas ‡s redes da economia e ‡s tecnociÍncias (Castells, 1996), os atores baseados-no-lugar s„o
21
cada dia mais capazes para negociar todo o processo da construÁ„o do mundo .
Deve-se enfatizar no fato que isto n„o implica de nenhuma maneira reificar os lugares, as culturas locais e
as formas de n„o-capitalismo como entes ìintocadosî ou fora da histÛria. Dar atenÁ„o ao lugar e ‡s culturas
locais È desestabilizar ìos espaÁos mais seguros de poder e diferenÁa, demarcados por perspectivas
geopolÌticas ou da economia polÌticaî (Jacobs, 1996: 15). Jacobs acrescenta, ìa dicotomia do autenticamente
local e do global que tudo se apropria tem sua peculiar nostalgia problem·tica. No melhor dos casos, a
categoria residual do local oferece uma esperanÁa de resistÍncia. No pior dos casos, o local È visto como
sucumbindo ao global, um espaÁo comprometido de negociaÁ„oî (1996: 36). Falar de ativar lugares,
naturezas e conhecimentos locais contra as tendÍncias imperiais do espaÁo, o capitalismo e a modernidade
n„o È uma operaÁ„o deus ex machina, mas uma maneira de ir alÈm do realismo crÙnico fomentado por
modos estabelecidos da an·lise. Sem d˙vida, os lugares e as localidades entram na polÌtica da
mercantilizaÁ„o de bens e a massificaÁ„o cultural, mas o conhecimento do lugar e da identidade podem
contribuir para produzir diferentes significados ñde economia, natureza e deles mesmosñ dentro das
condiÁıes do capitalismo e da modernidade que o rodeiam. As esferas ecolÛgicas p˙blicas alternativas
podem abrir-se desta maneira contra as ecologias imperialistas da natureza e da identidade da modernidade
capitalista.
Finalmente, È nesta interseÁ„o dos modelos da natureza baseados-no-lugar e na economia, por um lado, e
na teorizaÁ„o de racionalidades produtivas, por outro, onde poderemos encontrar um contexto de referÍncia
mais amplo no qual situar os debates sobre a sustentabilidade cultural e ecolÛgica. Este contexto de referÍncia
mais amplo necessita de maneiras novas de pensar acerca das interseÁıes globais/locais, tais como aquelas
fornecidas pelas teorias de lugar; visıes alternativas do conhecimento e inovaÁıes locais e sua relaÁ„o com o
conhecimento formal, global; uma reinterpretaÁ„o das afirmaÁıes polÌticas dos movimentos sociais em termos
da defesa dos modelos locais da natureza e dos territÛrios biolÛgicos com produtividades culturais-biolÛgicas
especÌficas (Varesse, 1996; Leff, 1995b); e noÁıes de formas de governo de base, sustentadas-no-
ecossistema, baseadas em etnicidades ecolÛgicas, na proteÁ„o das comunidades de certos aspectos do
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mercado e uma revitalizaÁ„o simult‚nea da ecologia e da democracia (Parajuli, 1997).

V. Conclus„o
Quais redefiniÁıes de significado e pr·ticas da economia, da natureza e das relaÁıes sociais s„o
necess·rias para adiantar um projeto que permita imaginar as alternativas ao desenvolvimento e ‡s pr·ticas
ecolÛgicas n„o sustent·veis e desiguais? Que tipo de pesquisa e quais pr·ticas polÌticas levadas a cabo por
intelectuais, movimentos sociais e comunidades se exigem para outorgar forÁa social a este projeto? A
antropÛloga da Mal·sia, Wazir Jahan Karim, expressou-se sem rodeios num trabalho inspirado sobre a
antropologia, o desenvolvimento e a globalizaÁ„o. A antropologia necessita ocupar-se de projetos de
transformaÁ„o social, para que n„o nos transformemos em, como afirma ela apropriadamente, ìdissociados
simbolicamente dos processos locais da reconstruÁ„o e da invenÁ„oî (Karim, 1996: 24). Agora podemos dar-
nos conta de que esta dissociaÁ„o est· vinculada ‡ traduÁ„o de lugar em espaÁo, das economias locais ‡s
linguagens n„o reformadas de economia polÌtica e da globalizaÁ„o, de modelos locais da natureza em
dicotomias natureza/cultura. Karim oferece uma alternativa a este tipo de traduÁ„o semelhante ‡ que
expusemos aqui. Para ela, ìo futuro do conhecimento local depende contextualmente de seu potencial
globalizante para gerar novas fontes de conhecimento a partir de dentroî (1996: 128), e os antropÛlogos tÍm
um papel a desempenhar neste processo que tambÈm exige de nÛs ìum conceito diferenciado de quem È
quem no global e no localî porque ìÈ importante a escolha das definiÁıes que se utilizamî (1996: 135). De
outra forma, a antropologia seguir· sendo uma conversaÁ„o basicamente irrelevante e provinciana entre
acadÍmicos na linguagem da teoria social.
Afirmar que a escolha das definiÁıes que se usam do global, do lugar, da natureza, da cultura e da
economia, È certamente crucial, È o argumento principal deste trabalho e de alguma literatura na qual se
baseia. A crÌtica do privilÈgio do espaÁo sobre o lugar, do capitalismo sobre o n„o-capitalismo, das culturas
globais e das naturezas sobre as locais, È uma crÌtica de nossa compreens„o do mundo tanto como das
teorias sociais nas quais nos apoiamos para obter tal compreens„o. Esta crÌtica tambÈm È uma tentativa de
alinhar a teoria social com os pontos de vista do mundo e das estratÈgias polÌticas daqueles que existem do
lado do lugar, o n„o-capitalismo e o conhecimento local, um esforÁo no que os antropÛlogos e os ecÛlogos
est„o usualmente comprometidos. Se È verdade que as formas do pÛs-desenvolvimento, do n„o-capitalismo
e de alter-natureza est„o sob construÁ„o constantemente, existe uma esperanÁa de que poderiam chegar a
constituir novas bases para a existÍncia e rearticulaÁıes significativas de subjetividade e alteridade em suas
dimensıes econÙmicas, culturais e ecolÛgicas. Em muitas partes do mundo, estamos sendo testemunhas de
movimentos histÛricos inauditos da vida econÙmica, cultural e biolÛgica. … necess·rio pensar acerca das
transformaÁıes econÙmicas que poderiam transformar esse movimento numa virada esperanÁosa dos fatos
na histÛria social das culturas, das economias e das ecologias.
Em ˙ltima inst‚ncia ñsugerida ao menos pela imaginaÁ„o utÛpica como a crÌtica das atuais
hegemoniasñ a pergunta È: Pode o mundo ser reconcebido e reconstruÌdo de acordo com a lÛgica das
pr·ticas da cultura, da natureza e da economia? Quais mundos regionais, e quais formas do ìglobalî
podem ser imaginadas de outras perspectivas m˙ltiplas, locais? Quais contra-estruturas podem ser
colocadas em seu lugar para fazÍ-las vi·veis e produtivas? Que noÁıes de ìpolÌticaî, ìdemocraciaî,
ìdesenvolvimentoî e ìeconomiaî s„o necess·rias para liberar a efetividade do local, em toda a sua
multiplicidade e suas contradiÁıes? Que papel ter„o que desempenhar os distintos atores sociais ñ
incluindo as novas e velhas tecnologiasñ, de maneira a criar redes sobre as quais as m˙ltiplas formas do
local possam depender em seu enfrentamento com as m˙ltiplas manifestaÁıes do global? … necess·rio
considerar seriamente algumas destas perguntas em nosso empenho para dar forma ‡ imaginaÁ„o de
alternativas ‡ ordem atual das coisas.

Bibliografia
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Notas
* Departamento de Antropologia, Universidade da Carolina do Norte.
1 O presente trabalho deve muito ao trabalho e ao di·logo com Arif Dirlik, a Julie Graham e ao ecÛlogo mexicano Enrique Leff, cujo
apoio e interesse aprecio enormemente. Devo tambÈm a Libia Grueso, Yellen Aguilar e Carlos Rosero, do PCN (Processo de
Comunidades Negras do PacÌfico), a quem agradeÁo por terem compartilhado comigo seu sofisticado conhecimento e sua
compreens„o da ecologia polÌtica do PCN, apresentada na ˙ltima parte do trabalho. [N. do T.: vers„o original em inglÍs, traduÁ„o ao
espanhol por Eleonora GarcÌa Sarralde].
2 Abordemos, por exemplo, o papel do lugar no primeiro volume de The Information Age, de Manuel Castells (1996), um livro magistral e em
muitos sentidos essencial para a compreens„o da economia e da sociedade atuais. Para Castells, o surgimento do novo paradigma
tecnolÛgico baseado na informaÁ„o, nas tecnologias eletrÙnicas e biolÛgicas, est· produzindo uma sociedade de redes na qual ìo espaÁo
dos fluxosî se impıe ao ìespaÁo do lugarî, e onde ìn„o existe lugar algum por si mesmo, dado que as posiÁıes s„o definidas pelos fluxos
[Ö] os lugares n„o desaparecem mas sua lÛgica e significado s„o absorvidos pela rede [Ö] o significado estrutural desaparece, subsumido
na lÛgica da meta-redeî (1996: 412). Nesta nova situaÁ„o, os lugares podem ser esquecidos, o que significa sua decadÍncia e deterioraÁ„o;
as pessoas e o trabalho s„o fragmentados no espaÁo dos lugares, na medida em que os lugares s„o desconectados entre si ìas elites s„o
cosmopolitas, o povo È localî (1996: 415). A cultura global impıe-se ‡s culturas locais, e no mundo resultante existe sÛ cultura e nada de
natureza; o que significa o verdadeiro inÌcio da HistÛria. Apesar de que Castells expressar certa nostalgia de lugares nos quais contam as
interaÁıes cara a cara e as aÁıes locais (como a Belville que o viu amadurecer como jovem intelectual), est· claro que o novo paradigma
chegou para ficar. Esta È uma de muitas inst‚ncias da assimetria no discurso de globalizaÁ„o de que Dirlik fala.
3 N„o se trata de repetir aqui esses debates. Alguns dos marcos da literatura antropolÛgica s„o: Hannerz (1989: 66-75), Appadurai
(1990: 1-24; 1991), Gupta e Ferguson (1992). Estes debates encontram-se em Gupta e Ferguson (1997), nos quais se baseiam os
coment·rios desta seÁ„o. Esta coleÁ„o constitui, atÈ agora, a intervenÁ„o coletiva mais importante nestes temas. O autor de cada
capÌtulo contribui com elementos importantes para repensar a cultura, o lugar e o poder, o que os editores destacam em sua introduÁ„o.
4 Em outras palavras, È possÌvel abordar os lugares a partir da direÁ„o oposta: n„o a partir de sua crÌtica mas a partir de sua
afirmaÁ„o; n„o do lado do global e sim do local. Isto È precisamente o que a ecologia nos permite ñna verdade nos obrigañ a fazer.
5 Um esquema refinado do conceito ìlugarî est· fora do alcance deste trabalho. Ver Casey (1993; 1997) para um ensaio dentro da
filosofia. Trato-o de uma maneira empÌrica e analÌtica, isto È, como uma categoria do pensar e como uma realidade construÌda.
6 Tenho em mente, particularmente, os seguintes volumes: MacCormack e Strathern (1980), Gudeman e Riviera (1990), Hobart
(1993), Milton (1993), Restrepo e del Valle (1996), Milton (1996) e Descola e P·lsson (1996). Este ˙ltimo volume È dedicado
exclusivamente ao exame dos modelos culturais da natureza e a desacreditar definitivamente a dicotomia natureza/cultura.
7 Esta formulaÁ„o particular est· no centro do trabalho de um grupo peruano, Proyecto Andino de TecnologÌa Campesina
(PRATEC). Ver Grillo (1991) e Appfel-Marglin e Valladolid (1995: 1-56).
8 Em quase toda a sua obra, Descola (1992; 1994; 1996) aparta-se significativamente do estruturalismo de LÈvi-Strauss, e contudo
se mantÈm apegado a ele em outros aspectos, por exemplo, em suas noÁıes de uma lÛgica de combinaÁ„o e de estruturas
subjacentes, ainda que estas n„o se vejam como estruturas universais da mente.
9 Os aspectos cognitivos das construÁıes da natureza n„o s„o discutidos de maneira significativa em nenhum de seus trabalhos
repassados nesta seÁ„o, ainda que esteja claro que desempenham um papel central neste processo. Ao revisar alguns dos debates
sobre o tema ñem especial o de Atran sobre a psicologia cognitivañ Bloch (1996: 3) apontou trÍs requisitos para as explicaÁıes das

77
construÁıes locais da natureza: ì1) limites que vÍm do mundo como È e como se apresenta, como oportunidade para a produÁ„o
humana, conjuntamente com 2) a histÛria cultural especial de grupos ou indivÌduos e 3) a natureza da psicologia humanaî. Bloch
acredita que os pesquisadores ñpsicÛlogos, etnobiÛlogos, antropÛlogosñ est„o longe de haver esclarecido a quest„o do cognitivo do
mundo natural, apesar dos avanÁos em direÁ„o a uma teoria satisfatÛria. Estes debates n„o ser„o abordados mais neste trabalho.
10 A diferenÁa entre formas de conhecimento nÙmades e fixas oferecida por Deleuze e Guattari (1987), e a diferenÁa que aponta
Marglin entre formas epistÍmicas e tÈcnicas (1990) oferecem elementos para resolver algumas destas perguntas, incluindo a da
apropriaÁ„o de uma parte pela outra, um tema proposto por Gudeman e Rivera (1990) em relaÁ„o aos modelos dominantes da
economia.
11 … necess·rio dizer que nem todas as pr·ticas locais da natureza s„o ambientalmente benignas, e que nem todas as relaÁıes
sociais que as articulam n„o s„o exploradoras? A medida na qual o conhecimento e as pr·ticas da natureza locais s„o
ìsustent·veisî ou n„o È uma quest„o empÌrica. Talvez tenha sido Dahl quem melhor resumiu este ponto: ìTodas as pessoas
necessariamente mantÍm idÈias acerca de, e atuam por necessidade, sobre seu meio ambiente natural. Isto n„o quer dizer
necessariamente que aqueles que vivem como produtores diretos tÍm uma grande compreens„o sistem·tica, ainda que em geral os
produtores que subsistem tenham um conhecimento detalhado do funcionamento de muitos pequenos aspectos de seu ambiente
biolÛgico. Grande parte deste conhecimento foi comprovado pela experiÍncia, alguns conhecimentos s„o errÙneos e
contraproducentes, e de alguma forma incorretos, e no entanto funcionam suficientemente bemî (Dahl, 1993: 6).
12 A noÁ„o de ìpÛs-desenvolvimentoî È uma ajuda para reaprender a ver e reavaliar a realidade das comunidades na ¡sia, ¡frica e
AmÈrica Latina. … possÌvel diminuir o domÌnio das representaÁıes do desenvolvimento quando abordamos esta realidade? O pÛs-
desenvolvimento È uma maneira de assinalar esta possibilidade, uma tentativa de limpar um espaÁo para pensar outros
pensamentos, ver outras coisas, escrever outras linguagens (Crush, 1995; Escobar, 1995).
13 O argumento È mais complexo do que o que foi apresentado aqui, e implica uma redefiniÁ„o de classe numa base antiessencialista
que se apÛia no trabalho de Althusser e no marxismo pÛs-estruturalista de Resnick e Wolff (1987). Brevemente, est· em jogo a
reinterpretaÁ„o das pr·ticas capitalistas como sobredeterminadas e a liberaÁ„o do campo discursivo da economia em relaÁ„o ao capital,
como princÌpio ˙nico de determinaÁ„o. Junto com a definiÁ„o transformada de classe que enfoca o processo de produzir, apropriar-se e
distribuir o trabalho excedente, esta reinterpretaÁ„o d· lugar a uma vis„o da economia como constituÌda por uma variedade de
processos de classe, capitalistas e n„o-capitalistas. Portanto, torna visÌvel uma variedade de pr·ticas n„o-capitalistas levadas a cabo
por mulheres, assalariados, camponeses, cooperativas, economias de subsistÍncia, etcetera.
14 Os mais importantes s„o os de Taussig (1980), Scott (1985), Ong (1987) e Camaroff e Camaroff (1991). Fox e Starn (1997)
foram alÈm das formas cotidianas de resistÍncia, chegando a considerar aquelas formas de mobilizaÁ„o e protesto que se d„o
ìentre a resistÍncia e a revoluÁ„oî. Para repassar algum destes trabalhos, ver Escobar (1995).
15 A literatura sobre a hibridizaÁ„o e sua relev‚ncia para o pÛs-desenvolvimento foi analisada em Escobar (1995).
16 Este È claramente o caso nos discursos ambientalistas, por exemplo, da conservaÁ„o da biodiversidade, em que as mulheres e
os indÌgenas s„o investidos com o conhecimento de ìsalvar a naturezaî. Massey j· denunciou a feminizaÁ„o do lugar e do local nas
teorias do espaÁo. Para um exemplo da assimetria de que fala Dirlik, ver as citaÁıes do livro de Castells acima (nota 2).
17 A distinÁ„o que faz Lefebvre foi retomada recentemente por Soja como uma maneira de ir alÈm do dualismo de grande parte da
teoria social e reinculcar na polÌtica consideraÁıes do lugar. Baseando-se no trabalho de Lefebvre e dos teÛricos feministas e pÛs-
coloniais, Soja sugere a noÁ„o do terceiro espaÁo que transcende o dualismo do primeiro espaÁo (espaÁo material) da ciÍncia
positivista (a geografia, o planejamento, etc.) e o segundo espaÁo (o espaÁo concebido da teoria e da elaboraÁ„o) das teorias
interpretativas. O terceiro espaÁo implica tanto o material como o simbÛlico; È o mais prÛximo ao ìespaÁo, vivido diretamente, com
toda sua insolubilidade intacta [Ö] o espaÁo de ëhabitantesí e ëusu·riosíî (Soja, 1996: 67). A ìtrialÈticaî dos espaÁos vividos,
percebidos e concebidos de Soja, pode ser vista como provedores do sustento para uma escolha polÌtica estratÈgica em defesa do
espaÁo vivido. Seria possÌvel pensar acerca da primeira, segunda e terceira ìnaturezaî de uma maneira similar (a primeira natureza
como uma realidade biofÌsica, a segunda como a dos teÛricos e gerentes, e a terceira natureza como a que È vivida pelas pessoas
em sua cotidianidade?).
18 Estes coment·rios baseiam-se principalmente em meu conhecimento do movimento das comunidades negras do PacÌfico
colombiano que emergiu em 1990, no contexto da reforma da constituiÁ„o nacional (que proporcionou direitos coletivos, culturais e
territoriais ‡s comunidades negras e indÌgenas da regi„o do PacÌfico), assim como da aceleraÁ„o nas atividades do capital e do
Estado. Na conformaÁ„o deste movimento, em especial desde 1993, È importante destacar a atenÁ„o nacional e internacional na
regi„o, dada sua rica biodiversidade e seus recursos biogenÈticos. N„o È minha intenÁ„o descrever e analisar este movimento em
profundidade neste trabalho. Somente quero apontar os aspectos mais relevantes do movimento para fundamentar meu argumento
acerca do lugar dos modelos culturais da natureza. Em outro trabalho, discuto as polÌticas culturais da biodiversidade (Escobar,
1997a), enfocando a regi„o do PacÌfico. O desenvolvimento do movimento negro est· registrado e analisado em Grueso, Rosero e
Escobar (1998). A ecologia polÌtica articulada pelo movimento, enquanto enfrentam temas de conservaÁ„o de biodiversidade e

78
desenvolvimento sustent·vel, apresenta-se em Escobar (1997b). Ver Escobar e Pedrosa (1996) para antecedentes do movimento e
da Costa PacÌfica em geral.
19 Esta apresentaÁ„o do quadro da ecologia polÌtica desenvolvida pelo Processo de Comunidades Negras (PCN) ñque foi elaborada
de uma maneira mais extensa por Escobar (1997b)ñ baseia-se principalmente em conversas e entrevistas exaustivas com ativistas
chave do PCN, no perÌodo compreendido entre 1994-1997, em especial Libia Grueso, Carlos Rosero e Yelen Aguilar.
20 Pode-se dizer que a construÁ„o de identidades coletivas realizadas pelo movimento est· adequada ‡ dualidade de identidade
que Hall encontra no caso caribenho e no afro-brit‚nico: considera-se a identidade como arraigada em pr·ticas culturais
compartilhadas, uma espÈcie de ser coletivo; mas tambÈm nos termos das diferenÁas criadas pela histÛria, isto È, em termos de
transformar-se em vez de ser, de posicionamento mais que de essÍncia, e de descontinuidade mais que de continuidade. A defesa
de certas pr·ticas culturais e ecolÛgicas das comunidades ribeirinhas È um passo estratÈgico por parte do conhecimento, ao ponto
de serem considerados a personificaÁ„o de uma resistÍncia ao capitalismo e ‡ modernidade e como fonte de racionalidades
alternativas. Apesar de que esta construÁ„o de identidade se baseia em ìredes submersasî de significados e pr·ticas das
comunidades ribeirinhas, tem a ver igualmente com o encontro com a modernidade (os Estados, o capital, a biodiversidade).
21 Analiso com certo detalhe a polÌtica das redes, em especial aquelas facilitadas pela Internet em outro trabalho cujo foco s„o as
redes de mulheres e as redes ecolÛgicas (Escobar, 1999).

79
CiÍncias sociais, violÍncia epistÍmica e o problema da
ìinvenÁ„o do outroî

Santiago Castro-GÛmez*

DURANTE AS ⁄LTIMAS DUAS D…CADAS do sÈculo XX, a filosofia pÛs-moderna e os estudos culturais
constituÌram-se em importantes correntes teÛricas que, dentro e fora dos recintos acadÍmicos, impulsionaram
uma forte crÌtica ‡s patologias da ocidentalizaÁ„o. Apesar de todas as suas diferenÁas, as duas correntes
coincidem em apontar que tais patologias se devem ao car·ter dualista e excludente que assumem as relaÁıes
modernas de poder. A modernidade È uma m·quina geradora de alteridades que, em nome da raz„o e do
humanismo, exclui de seu imagin·rio a hibridez, a multiplicidade, a ambig¸idade e a contingÍncia das formas
de vida concretas. A crise atual da modernidade È vista pela filosofia pÛs-moderna e os estudos culturais como
a grande oportunidade histÛrica para a emergÍncia dessas diferenÁas largamente reprimidas.
Abaixo mostrarei que o anunciado ìfimî da modernidade implica certamente a crise de um dispositivo de
poder que construÌa o ìoutroî mediante uma lÛgica bin·ria que reprimia as diferenÁas. Contudo, gostaria de
defender a tese de que esta crise n„o conduz ‡ debilitaÁ„o da estrutura mundial no interior da qual operava
tal dispositivo. O que aqui denominarei o ìfim da modernidadeî È apenas a crise de uma configuraÁ„o
histÛrica do poder no contexto do sistema-mundo capitalista, que no entanto assumiu outras formas em
tempos de globalizaÁ„o, sem que isso implique no desaparecimento desse mesmo sistema-mundo.
Argumentarei que a atual reorganizac„o global da economia capitalista se apÛia na produÁ„o das diferenÁas
e que, portanto, a afirmaÁ„o celebratÛria destas, longe de subverter o sistema, poderia contribuir para
consolid·-lo. Defenderei a tese de que o desafio atual para uma teoria crÌtica da sociedade È, precisamente,
mostrar em que consiste a crise do projeto moderno e quais s„o as novas configuraÁıes do poder global no
que Lyotard denominou a ìcondiÁ„o pÛs-modernaî.
Minha estratÈgia consistir· primeiro em interrogar o significado do que Habermas chamou de ìprojeto da
modernidadeî, buscando mostrar a gÍnese dos fenÙmenos sociais estreitamente relacionados: a formaÁ„o dos
estados nacionais e a consolidaÁ„o do colonialismo. Aqui coloquei a Ínfase no papel desempenhado pelo
conhecimento cientÌfico-tÈcnico, e em particular pelo conhecimento propiciado pelas ciÍncias sociais na
consolidaÁ„o destes fenÙmenos. Posteriormente mostrarei que o ìfim da modernidadeî n„o pode ser entendido
como o resultado da explos„o dos contextos normativos em que este projeto desempenhava taxonomicamente,
mas sim como uma nova configuraÁ„o das relaÁıes mundiais de poder, agora j· n„o baseada na repress„o e
sim na produÁ„o das diferenÁas. Finalizarei com uma breve reflex„o sobre o papel de uma teoria crÌtica da
sociedade em tempos de globalizaÁ„o.

I. O projeto da governamentalidade
O que queremos dizer quando falamos do ìprojeto da modernidadeî? Em primeiro lugar, e de maneira geral,
referimo-nos ‡ tentativa f·ustica de submeter a vida inteira ao controle absoluto do homem sob a direÁ„o segura
do conhecimento. O filÛsofo alem„o Hans Blumemberg (1997) mostrou que este projeto exigia, conceitualmente,
elevar o homem ao nÌvel de princÌpio ordenador de todas as coisas. J· n„o È a vontade inescrut·vel de Deus que
decide sobre os acontecimentos da vida individual e social, e sim o prÛprio homem que, servindo-se da raz„o, È
capaz de decifrar as leis inerentes ‡ natureza para coloc·-las a seu serviÁo. Esta reabilitaÁ„o do homem caminha
de m„os dadas com a idÈia do domÌnio sobre a natureza atravÈs da ciÍncia e da tÈcnica, cujo verdadeiro profeta
foi Bacon. De fato, a natureza È apresentada por Bacon como o grande ìadvers·rioî do homem, como o inimigo
que tem de ser vencido para domesticar as contingÍncias da vida e estabelecer o Regnum hominis na terra
(Bacon, 1984: 129). E a melhor t·tica para ganhar esta guerra È conhecer o interior do inimigo, perscrutar seus
segredos mais Ìntimos, para depois, com suas prÛprias armas, submetÍ-lo ‡ vontade humana. O papel da raz„o
cientÌfico-tÈcnica È precisamente acessar os segredos mais ocultos e remotos da natureza com o intuito de obrig·-
la a obedecer nossos imperativos de controle. A inseguranÁa ontolÛgica sÛ poder· ser eliminada na medida em
que se aumentem os mecanismos de controle sobre as forÁas m·gicas ou misteriosas da natureza e sobretudo
aquilo que n„o podemos reduzir ‡ calculabilidade. Max Weber falou neste sentido da racionalizaÁ„o do ocidente
como um processo de ìdesencantamentoî do mundo.
Gostaria de mostrar que quando falamos da modernidade como ìprojetoî, estamos referindo-nos tambÈm, e
principalmente, ‡ existÍncia de uma inst‚ncia central a partir da qual s„o dispensados e coordenados os
mecanismos de controle sobre o mundo natural e social. Essa inst‚ncia central È o Estado, que garante
organizaÁ„o racional da vida humana. ìOrganizaÁ„o racionalî significa, neste contexto, que os processos de

80
desencantamento e desmagicalizaÁ„o do mundo aos quais se referem Weber e Blumemberg comeÁam a ser
regulamentados pela aÁ„o diretiva do Estado. O Estado È entendido como a esfera em que todos os interesses
encontrados na sociedade podem chegar a uma ìsÌnteseî, isto È, como o locus capaz de formular metas
coletivas, v·lidas para todos. Para isso se exige a aplicaÁ„o estrita de ìcritÈrios racionaisî que permitam ao
Estado canalizar os desejos, os interesses e as emoÁıes dos cidad„os em direÁ„o ‡s metas definidas por ele
mesmo. Isto significa que o Estado moderno n„o somente adquire o monopÛlio da violÍncia, mas que usa dela
para ìdirigirî racionalmente as atividades dos cidad„os, de acordo com critÈrios estabelecidos cientificamente
de antem„o.
O filÛsofo social estadunidense Immanuel Wallerstein (1991) mostrou como as ciÍncias sociais se
transformaram numa peÁa fundamental para este projeto de organizaÁ„o e controle da vida humana. O
nascimento das ciÍncias sociais n„o È um fenÙmeno aditivo no contexto da organizaÁ„o polÌtica definido pelo
Estado-naÁ„o, e sim constitutivo dos mesmos. Era necess·rio gerar uma plataforma de observaÁ„o cientÌfica
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sobre o mundo social que se queria governar . Sem o concurso das ciÍncias sociais, o Estado moderno n„o
teria a capacidade de exercer controle sobre a vida das pessoas, definir metas coletivas de largo e de curto
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prazos, nem de construir e atribuir aos cidad„os uma ìidentidadeî cultural . N„o apenas a reestruturaÁ„o da
economia de acordo com as novas exigÍncias do capitalismo internacional, e tambÈm a redefiniÁ„o da
legitimidade polÌtica, e inclusive a identificaÁ„o do car·ter e dos valores peculiares de cada naÁ„o, exigiam uma
representaÁ„o cientificamente embasada sobre o modo como ìfuncionavaî a realidade social. Somente sobre
esta informaÁ„o era possÌvel realizar e executar programas governamentais.
As taxonomias elaboradas pelas ciÍncias sociais n„o se limitavam, assim, ‡ elaboraÁ„o de um sistema
abstrato de regras chamado ìciÍnciaî ñcomo ideologicamente pensavam os pais fundadores da sociologiañ, mas
tinham conseq¸Íncias pr·ticas na medida em que eram capazes de legitimar as polÌticas reguladoras do Estado.
A matriz pr·tica que dar· origem ao surgimento das ciÍncias sociais È a necessidade de ìajustarî a vida dos
homens ao sistema de produÁ„o. Todas as polÌticas e as instituiÁıes estatais (a escola, as constituiÁıes, o direito,
os hospitais, as prisıes, etc.) ser„o definidas pelo imperativo jurÌdico da ìmodernizaÁ„oî, ou seja, pela
necessidade de disciplinar as paixıes e orient·-las ao benefÌcio da coletividade atravÈs do trabalho. A quest„o era
ligar todos os cidad„os ao processo de produÁ„o mediante a submiss„o de seu tempo e de seu corpo a uma sÈrie
de normas que eram definidas e legitimadas pelo conhecimento. As ciÍncias sociais ensinam quais s„o as ìleisî
que governam a economia, a sociedade, a polÌtica e a histÛria. O Estado, por sua vez, define suas polÌticas
governamentais a partir desta normatividade cientificamente legitimada.
Pois bem, esta tentativa de criar perfis de subjetividade estatalmente coordenados conduz ao fenÙmeno
que aqui denominamos ìa invenÁ„o do outroî. Ao falar de ìinvenÁ„oî n„o nos referimos somente ao modo
como um certo grupo de pessoas se representa mentalmente a outras, mas nos referimos aos dispositivos de
saber/poder que servem de ponto de partida para a construÁ„o dessas representaÁıes. Mais que como o
ìocultamentoî de uma identidade cultural preexistente, o problema do ìoutroî deve ser teoricamente abordado
da perspectiva do processo de produÁ„o material e simbÛlica no qual se viram envolvidas as sociedades
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ocidentais a partir do sÈculo XVI . Gostaria de ilustrar este ponto recorrendo ‡s an·lises da pensadora
venezuelana Beatriz Gonz·lez Stephan, que estudou os dispositivos disciplinares de poder no contexto
latino-americano do sÈculo XIX e o modo como, a partir destes dispositivos, foi possÌvel a ìinvenÁ„o do
outroî.
Gonz·lez Stephan identifica trÍs pr·ticas disciplinares que contribuÌram para forjar os cidad„os latino-
americanos do sÈculo XIX: as constituiÁıes, os manuais de urbanidade e as gram·ticas do idioma. Seguindo
o teÛrico uruguaio ¡ngel Rama, Beatriz Gonz·lez Stephan constata que estas tecnologias de subjetivaÁ„o
possuem um denominador comum: sua legitimidade repousa na escrita. Escrever era um exercÌcio que, no
sÈculo XIX, respondia ‡ necessidade de ordenar e instaurar a lÛgica da ìcivilizaÁ„oî e que antecipava o
sonho modernizador das elites criollas. A palavra escrita constrÛi leis e identidades nacionais, planeja
programas modernizadores, organiza a compreens„o do mundo em termos de inclusıes e exclusıes. Por
isso o projeto fundacional da naÁ„o se leva a cabo mediante a implementaÁ„o de instituiÁıes legitimadas
pela letra (escolas, hospitais, oficinas, prisıes) e de discursos hegemÙnicos (mapas, gram·ticas,
constituiÁıes, manuais, tratados de higiene) que regulamentam a conduta dos atores sociais, estabelecem
fronteiras entre uns e outros e lhes transmitem a certeza de existir dentro ou fora dos limites definidos por
essa legalidade escritur·ria (Gonz·lez Stephan, 1996).
A formaÁ„o do cidad„o como ìsujeito de direitoî somente È possÌvel dentro do contexto e da escrita
disciplinar e, neste caso, dentro do espaÁo de legalidade definido pela constituiÁ„o. A funÁ„o jurÌdico-polÌtica
das constituiÁıes È, precisamente, inventar a cidadania, ou seja, criar um campo de identidades homogÍneas
que tornem vi·vel o projeto moderno da governamentabilidade. A constituiÁ„o venezuelana de 1839 declara,
por exemplo, que sÛ podem ser cidad„os os homens casados, maiores de 25 anos, que saibam ler e
escrever, que sejam propriet·rios de bens de raiz e que tenham uma profiss„o que gere rendas anuais n„o
inferiores a 400 pesos (Gonz·lez Stephan, 1996: 31). A aquisiÁ„o da cidadania È, ent„o, um funil pelo qual
sÛ passar„o aquelas pessoas cujo perfil se ajuste ao tipo de sujeito requerido pelo projeto da modernidade:
homem, branco, pai de famÌlia, catÛlico, propriet·rio, letrado e heterossexual. Os indivÌduos que n„o

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cumpram com estes requisitos (mulheres, empregados, loucos, analfabetos, negros, hereges, escravos,
Ìndios, homossexuais, dissidentes) ficar„o de fora da ìcidade letradaî, reclusos no ‚mbito da ilegalidade,
submetidos ao castigo e ‡ terapia por parte da mesma lei que os exclui.
Mas se a constituiÁ„o define formalmente um tipo desej·vel de subjetividade moderna, a pedagogia È a
grande artÌfice de sua materializaÁ„o. A escola transforma-se num espaÁo de internamento onde se forma
esse tipo de sujeito que os ìideais reguladoresî da constituiÁ„o estavam reclamando. O que se busca È
introjetar uma disciplina na mente e no corpo que capacite a pessoa para ser ì˙til ‡ p·triaî. O comportamento
da crianÁa dever· ser regulamentado e vigiado, submetido ‡ aquisiÁ„o de conhecimentos, capacidades,
h·bitos, valores, modelos culturais e estilos de vida que lhe permitam assumir um papel ìprodutivoî na
sociedade. Mas n„o È ‡ escola como ìinstituiÁ„o de seq¸estroî que Beatriz Gonz·lez Stephan dirige suas
reflexıes, e sim ‡ funÁ„o disciplinar de certas tecnologias pedagÛgicas como os manuais de urbanidade, e
em particular o muito conhecido de CarreÒo, publicado em 1854. O manual funciona dentro do campo de
autoridade aberto pelo livro, com sua tentativa de regulamentar a sujeiÁ„o dos instintos, o controle sobre os
movimentos do corpo, a domesticaÁ„o de todo tipo de sensibilidade considerada como ìb·rbaraî (Gonz·lez
Stephan, 1995). N„o se escreveram manuais de como ser um bom camponÍs, bom Ìndio, bom negro ou bom
ga˙cho, j· que todos estes tipos humanos eram vistos como pertencentes ao ‚mbito da barb·rie. Os
manuais foram escritos para ser-se ìbom cidad„oî; para formar parte da civitas, do espaÁo legal que habitam
os sujeitos epistemolÛgicos, morais e estÈticos de que necessita a modernidade. Por isso, o manual de
CarreÒo adverte que ìsem a observ‚ncia destas regras, mais ou menos perfeitas, segundo o grau de
civilizaÁ„o de cada paÌs [...] n„o haver· meio de cultivar a sociabilidade, que È o princÌpio da conservaÁ„o e
do progresso dos povos e da existÍncia de toda sociedade bem ordenadaî (Gonz·lez Stephan, 1995: 436).
Os manuais de urbanidade transformam-se na nova bÌblia que indicar· ao cidad„o qual deve ser seu
comportamento nas mais diversas situaÁıes da vida, pois da obediÍncia fiel a tais normas depender· seu
maior ou menor Íxito na civitas terrena, no reino material da civilizaÁ„o. A ìentradaî no banquete da
modernidade demandava o cumprimento de um receitu·rio normativo que servia para distinguir os
membros da nova classe urbana que comeÁava a emergir em toda a AmÈrica Latina durante a segunda
metade do sÈculo XIX. Esse ìnÛsî a que faz referÍncia o manual È, assim, o cidad„o burguÍs, o mesmo a
que se dirigem as constituiÁıes republicanas; o que sabe como falar, comer, utilizar os talheres, assoar o
nariz, tratar os empregados, comportar-se em sociedade. … o sujeito que conhece perfeitamente ìo teatro
da etiqueta, a rigidez da aparÍncia, a m·scara da contenÁ„oî (Gonz·lez Stephan, 1995: 439). Neste
sentido, as observaÁıes de Gonz·lez Stephan coincidem com as de Max Weber e Norbert Elias, para
quem a constituiÁ„o do sujeito moderno vem de m„os dadas com a exigÍncia do autocontrole e da
repress„o dos instintos, com o fim de tornar mais visÌvel a diferenÁa social. O ìprocesso da civilizaÁ„oî
arrasta consigo um crescimento dos espaÁos da vergonha, porque era necess·rio distinguir-se claramente
de todos aqueles estamentos sociais que n„o pertenciam ao ‚mbito da civitas que intelectuais latino-
americanos como Sarmiento vinham identificando como paradigma da modernidade. A ìurbanidadeî e a
ìeducaÁ„o cÌvicaî desempenharam o papel, assim, de taxonomia pedagÛgica que separava o fraque da
ralÈ, a limpeza da sujeira, a capital das provÌncias, a rep˙blica da colÙnia, a civilizaÁ„o da barb·rie.
Neste processo taxonÙmico desempenharam tambÈm um papel fundamental as gram·ticas da lÌngua.
Gonz·lez Stephan menciona em particular a Gram·tica de la Lengua Castellana destinada al uso de los
americanos, publicada por AndrÈs Bello em 1847. O projeto de construÁ„o da naÁ„o requeria a
estabilizaÁ„o ling¸Ìstica para uma adequada implementaÁ„o das leis e para facilitar, alÈm do mais, as
transaÁıes comerciais. Existe, pois, uma relaÁ„o direta entre lÌngua e cidadania, entre as gram·ticas e
os manuais de urbanidade: em todos estes casos, do que se trata È de criar ao homo economicus, ao
sujeito patriarcal encarregado de impulsionar e levar a cabo a modernizaÁ„o da rep˙blica. Da
normatividade da letra, as gram·ticas buscam gerar uma cultura do ìbem dizerî com o fim de evitar ìas
pr·ticas viciosas da fala popularî e os barbarismos grosseiros da plebe (Gonz·lez Stephan, 1996: 29).
Estamos, pois, frente a uma pr·tica disciplinar na qual se refletem as contradiÁıes que terminariam por
desgarrar o projeto da modernidade: estabelecer as condiÁıes para a ìliberdadeî e a ìordemî implicava
a submiss„o dos instintos, a supress„o da espontaneidade, o controle sobre as diferenÁas. Para serem
civilizados, para formarem parte da modernidade, para serem cidad„os colombianos, brasileiros ou
venezuelanos, os indivÌduos n„o sÛ deviam comportar-se corretamente e saber ler e escrever, mas
tambÈm adequar sua linguagem a uma sÈrie de normas. A submiss„o ‡ ordem e ‡ norma leva o
indivÌduo a substituir o fluxo heterogÍneo e espont‚neo do vital pela adoÁ„o de um continuum
arbitrariamente constituÌdo pela letra.
Fica claro, assim, que os dois processos assinalados por Gonz·lez Stephan, a invenÁ„o da cidadania e a
invenÁ„o do outro, se encontram geneticamente relacionados. Criar a identidade do cidad„o moderno na
AmÈrica Latina implicava gerar uma contraluz a partir da qual essa identidade pudesse ser medida e
afirmada como tal. A construÁ„o do imagin·rio da ìcivilizaÁ„oî exigia necessariamente a produÁ„o de sua
contraparte: o imagin·rio da ìbarb·rieî. Trata-se em ambos os casos de algo mais que representaÁıes
mentais. S„o imagin·rios que possuem uma materialidade concreta, no sentido de que se ancoram em
sistemas abstratos de car·ter disciplinar como a escola, a lei, o Estado, as prisıes, os hospitais e as ciÍncias
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sociais. … precisamente este vÌnculo entre conhecimento e disciplina o que nos permite falar, seguindo
Gayatri Spivak, do projeto da modernidade como o exercÌcio de uma ìviolÍncia epistÍmicaî.
Pois bem, apesar de que Beatriz Gonz·lez Stephan indicou que todos estes mecanismos
disciplinares buscavam criar o perfil do homo economicus na AmÈrica Latina, sua an·lise genealÛgica,
inspirada na microfÌsica do poder de Michel Foucault, n„o permite entender o modo pelo qual estes
processos se vinculam ‡ din‚mica da constituiÁ„o do capitalismo como sistema-mundo. Para conceituar
este problema faz-se necess·rio realizar um giro metodolÛgico: a genealogia do saber-poder, tal como È
realizada por Foucault, deve ser ampliada para o ‚mbito de macroestruturas de longa duraÁ„o
(Braudel/Wallerstein), de tal maneira que permita visualizar o problema da ìinvenÁ„o do outroî de uma
perspectiva geopolÌtica. Para este propÛsito, ser· muito ˙til examinar o modo como as teorias pÛs-
coloniais abordaram este problema.

2. A colonialidade do poder ou a ìoutra faceî do projeto da modernidade


Uma das contribuiÁıes mais importantes das teorias pÛs-coloniais ‡ atual reestruturaÁ„o das ciÍncias
sociais È haver sinalizado que o surgimento dos Estados nacionais na Europa e na AmÈrica durante os
sÈculos XVII a XIX n„o È um processo autÙnomo, mas possui uma contrapartida estrutural: a consolidaÁ„o
do colonialismo europeu no alÈm-mar. A persistente negaÁ„o deste vÌnculo entre modernidade e colonialismo
por parte das ciÍncias sociais tem sido, na realidade, um dos sinais mais claros de sua limitaÁ„o conceitual.
Impregnadas desde suas origens por um imagin·rio eurocÍntrico, as ciÍncias sociais projetaram a idÈia de
uma Europa ascÈtica e autogerada, formada historicamente sem contato algum com outras culturas (Blaut,
1993). A racionalizaÁ„o ñem sentido weberianoñ teria sido o resultado da aÁ„o qualidades inerentes ‡s
sociedades ocidentais (a ìpassagemî da tradiÁ„o ‡ modernidade), e n„o da interaÁ„o colonial da Europa com
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a AmÈrica, a ¡sia e a ¡frica a partir de 1492 . Deste ponto de vista, a experiÍncia do colonialismo resultaria
completamente irrelevante para entender o fenÙmeno da modernidade e o surgimento das ciÍncias sociais.
Isto significa que para os africanos, asi·ticos e latino-americanos, o colonialismo n„o significou
primariamente destruiÁ„o e espoliaÁ„o e sim, antes de mais nada, o comeÁo do tortuoso mas inevit·vel
caminho em direÁ„o ao desenvolvimento e ‡ modernizaÁ„o. Este È o imagin·rio colonial que tem sido
reproduzido tradicionalmente pelas ciÍncias sociais e pela filosofia em ambos os lados do Atl‚ntico.
As teorias pÛs-coloniais demonstraram, no entanto, que qualquer narrativa da modernidade que n„o leve
em conta o impacto da experiÍncia colonial na formaÁ„o das relaÁıes propriamente modernas de poder È
n„o apenas incompleto, mas tambÈm ideolÛgico. Pois foi precisamente a partir do colonialismo que se gerou
esse tipo de poder disciplinar que, segundo Foucault, caracteriza as sociedades e as instituiÁıes modernas.
Se, como vimos na seÁ„o anterior, o Estado-naÁ„o opera como uma maquinaria geradora de ìoutredadesî
que devem ser disciplinadas, isto se deve a que o surgimento dos Estados modernos se d· no ‚mbito do que
Walter Mignolo (2000: 3 e ss.) chamou de ìsistema-mundo moderno/colonialî. De acordo com teÛricos como
Mignolo, Dussel e Wallerstein, o Estado moderno n„o deve ser visto como uma unidade abstrata, separada
do sistema de relaÁıes mundiais que se configuram a partir de 1492, e sim como uma funÁ„o no interior
desse sistema internacional de poder.
Surge ent„o a pergunta: qual È o dispositivo de poder que gera o sistema-mundo moderno/colonial e que
È reproduzido estruturalmente no interior de cada um dos estados nacionais? Uma possÌvel resposta pode
ser encontrada no conceito de ìcolonialidade do poderî sugerido pelo sociÛlogo peruano AnÌbal Quijano
(1999: 99-109). Na opini„o de Quijano, a espoliaÁ„o colonial È legitimada por um imagin·rio que estabelece
diferenÁas incomensur·veis entre o colonizador e o colonizado. As noÁıes de ìraÁaî e de ìculturaî operam
aqui como um dispositivo taxonÙmico que gera identidades opostas. O colonizado aparece assim como o
ìoutro da raz„oî, o que justifica o exercÌcio de um poder disciplinar por parte do colonizador. A maldade, a
barb·rie e a incontinÍncia s„o marcas ìidentit·riasî do colonizado, enquanto que a bondade, a civilizaÁ„o e a
racionalidade s„o prÛprias do colonizador. Ambas as identidades se encontram em relaÁ„o de exterioridade
e se excluem mutuamente. A comunicaÁ„o entre elas n„o pode dar-se no ‚mbito da cultura ñpois seus
cÛdigos s„o impenetr·veisñ mas no ‚mbito da Realpolitik ditada pelo poder colonial. Uma polÌtica ìjustaî ser·
aquela que, mediante a implementaÁ„o de mecanismos jurÌdicos e disciplinares, tente civilizar o colonizado
atravÈs de sua completa ocidentalizaÁ„o.
O conceito da ìcolonialidade do poderî amplia e corrige o conceito foucaultiano de ìpoder disciplinarî, ao
mostrar que os dispositivos pan-Ûticos erigidos pelo Estado moderno inscrevem-se numa estrutura mais
ampla, de car·ter mundial, configurada pela relaÁ„o colonial entre centros e periferias devido ‡ expans„o
europÈia. Deste ponto de vista podemos dizer o seguinte: a modernidade È um ìprojetoî na medida em que
seus dispositivos disciplinares se vinculam a uma dupla governamentabilidade jurÌdica. De um lado, a
exercida para dentro pelos estados nacionais, em sua tentativa de criar identidades homogÍneas por meio de
polÌticas de subjetivaÁ„o; por outro lado, a governamentabilidade exercida para fora pelas potÍncias
hegemÙnicas do sistema-mundo moderno/colonial, em sua tentativa de assegurar o fluxo de matÈrias-primas
da periferia em direÁ„o ao centro. Ambos os processos formam parte de uma ˙nica din‚mica estrutural.
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Nossa tese È a de que as ciÍncias sociais se constituem neste espaÁo de poder moderno/colonial e nos
conhecimentos ideolÛgicos gerados por ele. Deste ponto de vista, as ciÍncias sociais n„o efetuaram jamais
uma ìruptura epistemolÛgicaî ñno sentido althusserianoñ face ‡ ideologia; o imagin·rio colonial impregnou
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desde suas origens a todo seu sistema conceitual . Assim, a maioria dos teÛricos sociais dos sÈculos XVII e
XVIII (Hobbes, Bossuet, Turgot, Condorcet) coincidiam na opini„o de que a ìespÈcie humanaî sai pouco a
pouco da ignor‚ncia e vai atravessando diferentes ìest·giosî de aperfeiÁoamento atÈ, finalmente, obter a
ìmaioridadeî a que chegaram as sociedades modernas europÈias (Meek, 1981). O referencial empÌrico utilizado
por este modelo heurÌstico para definir qual È o primeiro ìest·gioî, o mais baixo na escala de desenvolvimento
humano, È o das sociedades indÌgenas americanas tal como estas eram descritas por viajantes, cronistas e
navegantes europeus. A caracterÌstica deste primeiro est·gio È a selvageria, a barb·rie, a ausÍncia completa
de arte, ciÍncia e escrita. ìNo princÌpio, tudo era AmÈricaî, ou seja, tudo era superstiÁ„o, primitivismo, luta de
todos contra todos, ìestado de naturezaî. O ˙ltimo est·gio do progresso humano, aquele alcanÁado pelas
sociedades europÈias, È construÌdo, por sua vez, como ìo outroî absoluto do primeiro e ‡ sua contraluz. Ali
reina a civilidade, o Estado de direito, o cultivo da ciÍncia e das artes. O homem chegou ali a um estado de
ìilustraÁ„oî em que, no dizer de Kant, pode autolegislar-se e fazer uso autÙnomo de sua raz„o. A Europa
demarcou o caminho civilizatÛrio pelo qual dever„o transitar todas as naÁıes do planeta.
N„o È difÌcil ver como o aparelho conceitual com o qual nascem as ciÍncias sociais nos sÈculos XVII e XVIII
se sustenta por um imagin·rio colonial de car·ter ideolÛgico. Conceitos bin·rios tais como barb·rie e
civilizaÁ„o, tradiÁ„o e modernidade, comunidade e sociedade, mito e ciÍncia, inf‚ncia e maturidade,
solidariedade org‚nica e solidariedade mec‚nica, pobreza e desenvolvimento, entre tantos outros, permearam
completamente os modelos analÌticos das ciÍncias sociais. O imagin·rio do progresso, de acordo com a qual
todas as progridem no tempo de acordo com leis universais inerentes ‡ natureza ou ao espÌrito humano,
aparece assim como um produto ideolÛgico construÌdo do dispositivo de poder moderno/colonial. As ciÍncias
sociais funcionam estruturalmente como um ìaparelho ideolÛgicoî que, das portas para dentro, legitimava a
exclus„o e o disciplinamento daquelas pessoas que n„o se ajustavam aos perfis de subjetividade de que
necessitava o Estado para implementar suas polÌticas de modernizaÁ„o; das portas para fora, por outro lado, as
ciÍncias sociais legitimavam a divis„o internacional do trabalho e a desigualdade dos termos de troca e de
comÈrcio entre o centro e a periferia, ou seja, os grandes benefÌcios sociais e econÙmicos que as potÍncias
europÈias obtinham do domÌnio sobre suas colÙnias. A produÁ„o da alteridade para dentro e a produÁ„o da
alteridade para fora formavam parte de um mesmo dispositivo de poder. A colonialidade do poder e a
colonialidade do saber se localizadas numa mesma matriz genÈtica.

3. Do poder disciplinar ao poder libidinoso


Gostaria de finalizar este ensaio perguntando-me pelas transformaÁıes sofridas pelo capitalismo t„o logo
consolidado o projeto da modernidade, e pelas conseq¸Íncias que tais transformaÁıes podem trazer para as
ciÍncias sociais e para a teoria crÌtica da sociedade.
Conceituamos a modernidade como uma sÈrie de pr·ticas orientadas ao controle racional da vida humana,
entre as quais figuram a institucionalizaÁ„o das ciÍncias sociais, a organizaÁ„o capitalista da economia, a
expans„o colonial da Europa e, acima de tudo, a configuraÁ„o jurÌdico-territorial dos estados nacionais. TambÈm
vimos que a modernidade È um ìprojetoî porque esse controle racional sobre a vida humana È exercido para
dentro e para fora partindo de uma inst‚ncia central, que È o Estado-naÁ„o. Nesta ordem de idÈias vem ent„o a
pergunta: a que nos referimos quando falamos do final do projeto da modernidade? PoderÌamos comeÁar a
responder da seguinte forma: a modernidade deixa de ser operativa como ìprojetoî na medida em que o social
comeÁa a ser configurado por inst‚ncias que escapam ao controle do Estado nacional. O dito de outra forma: o
projeto da modernidade chega a seu ìfimî quando o Estado nacional perde a capacidade de organizar a vida
social e material das pessoas. …, ent„o, quando podemos falar propriamente da globalizaÁ„o.
Com efeito, ainda que o projeto da modernidade tenha tido sempre uma tendÍncia ‡ mundializac„o da aÁ„o
humana, acreditamos que o que hoje se chama ìglobalizaÁ„oî È um fenÙmeno sui generis, pois produz uma
mudanÁa qualitativa dos dispositivos mundiais de poder. Gostaria de ilustrar esta diferenÁa entre modernidade e
globalizaÁ„o utilizando as categorias de ìancoragemî e ìdesancoragemî desenvolvidas por Anthony Giddens:
enquanto a modernidade desancora as relaÁıes sociais de seus contextos tradicionais e as reancora em ‚mbitos
pÛs-tradicionais de aÁ„o coordenados pelo Estado, a globalizaÁ„o desancora as relaÁıes sociais de seus
contextos nacionais e os reancora em ‚mbitos pÛs-modernos de aÁ„o que j· n„o s„o coordenados por nenhuma
inst‚ncia em particular.
Deste ponto de vista, sustento a tese de que a globalizaÁ„o n„o È um ìprojetoî, porque a
governamentabilidade n„o necessita j· de um ìponto arquimedianoî, ou seja, de uma inst‚ncia central que
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regule os mecanismos de controle social . PoderÌamos falar inclusive de uma governamentabilidade sem
governo para indicar o car·ter espectral e nebuloso, ‡s vezes imperceptÌvel, mas por isso mesmo eficaz, que
toma o poder em tempos de globalizaÁ„o. A sujeiÁ„o ao sistema-mundo j· n„o assegura mediante o controle
sobre o tempo e sobre o corpo exercido por instituiÁıes como a f·brica ou o colÈgio, e sim pela produÁ„o de
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bens simbÛlicos e pela seduÁ„o irresistÌvel que estes exercem sobre o imagin·rio do consumidor. O poder
libidinoso da pÛs-modernidade pretende modelar a totalidade da psicologia dos indivÌduos, de tal maneira
que cada qual possa construir reflexivamente sua prÛpria subjetividade sem necessidade de opor-se ao
sistema. Pelo contr·rio, s„o os recursos oferecidos pelo prÛprio sistema os que permitem a construÁ„o
diferencial do ìSelbstî. Para qualquer estilo de vida que se escolha, para qualquer projeto de auto-invenÁ„o,
para qualquer exercÌcio de escrever a prÛpria biografia, sempre h· uma oferta no mercado e um ìsistema
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especialistaî que garante sua confiabilidade . Mais que reprimir as diferenÁas, como fazia o poder disciplinar
da modernidade, o poder libidinoso da pÛs-modernidade as estimula e as produz.
TÌnhamos dito tambÈm que no contexto do projeto moderno, as ciÍncias sociais desempenharam
basicamente mecanismos produtores de alteridades. Isto se deveu a que a acumulaÁ„o de capital tinha como
requisito a geraÁ„o de um perfil de ìsujeitoî que se adaptara facilmente ‡s exigÍncias da produÁ„o: branco,
homem, casado, heterossexual, disciplinado, trabalhador, dono de si mesmo. Tal como o demonstrou
Foucault, as ciÍncias humanas contribuÌram para criar este perfil na medida em que formaram seu objeto de
conhecimento a partir de pr·ticas institucionais de reclus„o e seq¸estro. Prisıes, hospitais, manicÙmios,
escolas, f·bricas e sociedades coloniais foram os laboratÛrios em que as ciÍncias sociais obtiveram ‡
contraluz aquela imagem de ìhomemî que devia promover e sustentar os processos de acumulaÁ„o de
capital. Esta imagem do ìhomem racionalî, dizÌamos, obteve-se contrafaticamente mediante o estudo do
ìoutro da raz„oî: o louco, o Ìndio, o negro, o desadaptado, o preso, o homossexual, o indigente. A construÁ„o
do perfil de subjetividade que requeria tal projeto moderno exigia ent„o a supress„o de todas estas
diferenÁas.
No entanto, e no caso de ser plausÌvel o que vim argumentando atÈ agora, no momento em que a
acumulaÁ„o de capital j· n„o demanda a supress„o, mas sim a produÁ„o de diferenÁas, tambÈm deve mudar
o vÌnculo estrutural entre as ciÍncias sociais e os novos dispositivos de poder. As ciÍncias sociais e as
humanidades vÍem-se obrigadas a realizar uma ìmudanÁa de paradigmaî que lhes permita ajustar-se ‡s
exigÍncias sistÍmicas do capital global. O caso de Lyotard parece-me sintom·tico. Afirma com lucidez que o
meta-relato da humanizaÁ„o da Humanidade entrou em crise, mas declara, ao mesmo tempo, o nascimento
de um novo relato legitimador: a coexistÍncia de diferentes ìjogos de linguagemî. Cada jogo de linguagem
define suas prÛprias regras, que j· n„o necessitam ser legitimadas por um tribunal superior da raz„o. Nem o
herÛi epistemolÛgico de Descartes nem o herÛi moral de Kant funcionam mais como inst‚ncias
transcendentais das quais se definem as regras universais que dever„o jogar todos os jogadores,
independentemente da diversidade de jogos dos quais participem. Para Lyotard, na ìcondiÁ„o pÛs-modernaî
s„o os prÛprios jogadores que constrÛem as regras do jogo que desejam jogar. N„o existem regras definidas
de antem„o (Lyotard, 1990).
O problema com Lyotard n„o È que tenha declarado o final de um projeto que, na opini„o de Habermas
(1990: 32-54), ainda se encontra ìinacabadoî. O problema reside, isto sim, no novo relato que propıe. Pois
afirmar que j· n„o existem regras definidas de antem„o equivale a invisibilizar ñquer dizer, mascararñ o
sistema-mundo que produz as diferenÁas com base em regras definidas para todos os jogadores do planeta.
Entendamo-nos: a morte dos metarrelatos de legitimaÁ„o do sistema-mundo n„o equivale ‡ morte do
sistema-mundo, equivale, a uma transformaÁ„o das relaÁıes de poder no interior do sistema-mundo, o que
gera novos relatos de legitimaÁ„o como o proposto por Lyotard. SÛ que a estratÈgia de legitimaÁ„o È
diferente: j· n„o se trata de metarrelatos que mostram o sistema, projetando-o ideologicamente num macro-
sujeito epistemolÛgico, histÛrico e moral, e sim de micro-relatos que o deixam de fora da representaÁ„o, ou
seja, que o invisibilizam.
Algo similar ocorre com os chamados estudos culturais, um dos paradigmas mais inovadores das
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humanidades e das ciÍncias sociais em fins do sÈculo XX . Certamente os estudos culturais construÌram
para flexibilizar as rÌgidas fronteiras disciplinares que fizeram de nossos departamentos de sociais e
humanidades um punhado de ìfeudos epistemolÛgicosî incomensur·veis. A vocaÁ„o transdisciplinar dos
estudos culturais tem sido altamente saud·vel para algumas instituiÁıes acadÍmicas que, pelo menos na
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AmÈrica Latina, se tinham acostumado a ìvigiar e administrarî o c‚none de cada uma das disciplinas . …
neste sentido que o relatÛrio da comiss„o Gulbenkian assinala como os estudos culturais iniciaram a abrir
pontes entre as trÍs grandes ilhas em que a modernidade tinha dividido o conhecimento cientÌfico
(Wallerstein et al., 1996: 64-66).
Contudo, o problema n„o est· tanto na inscriÁ„o dos estudos culturais no ‚mbito universit·rio, e nem
sequer no tipo de questıes teÛricas que abrem ou nas metodologias que utilizam, mas no uso que fazem
destas metodologias e nas respostas que d„o a essas perguntas. … evidente, por exemplo, que a
planetarizaÁ„o da ind˙stria cultural fragilizou a separaÁ„o entre alta cultura e cultura popular, a que ainda se
aferravam pensadores de tradiÁ„o ìcrÌticaî como Horkheimer e Adorno, para n„o falar de nossos grandes
ìletradosî latino-americanos, com sua tradiÁ„o conservadora e elitista. Mas neste interc‚mbio mass-midi·tico
entre o culto e o popular, nessa negociaÁ„o planet·ria de bens simbÛlicos, os estudos culturais viram nada
mais que uma explos„o libertadora das diferenÁas. A cultura urbana de massas e as novas formas de
percepÁ„o social geradas pelas tecnologias da informaÁ„o s„o vistas como espaÁos de emancipaÁ„o

85
democr·tica, e inclusive como um locus de hibridaÁ„o e resistÍncia face aos imperativos do mercado. Diante
deste diagnÛstico, surge a suspeita de que os estudos culturais talvez teriam hipotecado seu potencial crÌtico
‡ mercantilizaÁ„o fetichizante dos bens simbÛlicos.
Do mesmo modo que no caso de Lyotard, o sistema-mundo permanece como esse grande objeto
ausente da representaÁ„o que nos oferecem os estudos culturais. Como se o nomear a ìtotalidadeî se
houvesse transformado num tabu para as ciÍncias sociais e a filosofia contempor‚neas, do mesmo modo
que para a religi„o judia constituÌa um pecado nomear ou representar a Deus. Os temas ìpermitidosî ñe
que agora gozam de prestÌgio acadÍmicoñ s„o a fragmentaÁ„o do sujeito, a hibridizaÁ„o das formas de
vida, a articulaÁ„o das diferenÁas, o desencanto frente aos metarrelatos. Se alguÈm utiliza categorias
como ìclasseî, ìperiferiaî ou ìsistema-mundoî, que pretendem abarcar heuristicamente uma multiplicidade
de situaÁıes particulares de gÍnero, etnia, raÁa, procedÍncia ou orientaÁ„o sexual, È qualificado de
ìessencialistaî, de atuar de forma ìpoliticamente incorretaî, ou pelo menos de ter caÌdo na tentaÁ„o dos
metarrelatos. Tais reprovaÁıes n„o deixam de ser justificadas em muitos casos, mas talvez exista uma
alternativa.
Considero que o grande desafio para as ciÍncias sociais consiste em aprender a nomear a totalidade
sem cair no essencialismo e no universalismo dos metarrelatos. Isto conduz ‡ difÌcil tarefa de repensar a
tradiÁ„o da teoria crÌtica (aquela de Luk·cs, Bloch, Horkheimer, Adorno, Marcuse, Sartre e Althusser) ‡ luz
da teorizaÁ„o pÛs-moderna, mas, ao mesmo tempo, de repensar esta ˙ltima ‡ luz da primeira. N„o se
trata, assim, de comprar novos odres e descartar os velhos, nem de colocar o vinho novo em barris velhos;
trata-se, isso sim, de reconstruir os velhos barris para que possam conter o novo vinho. Este ìtrabalho
teÛricoî, como o denominou Althusser, j· foi iniciado em ambos os lados do Atl‚ntico, e de diferentes
perspectivas. Refiro-me aos trabalhos de Antonio Negri, Michael Hardt, Fredric Jameson, Slavoj Zizek,
Walter Mignolo, Enrique Dussel, Edward Said, Gayatri Spivak, Ulrich Beck, Boaventura de Souza Santos e
Arturo Escobar, entre muitos outros.
A tarefa de uma teoria crÌtica da sociedade È, ent„o, tornar visÌveis os novos mecanismos de produÁ„o
das diferenÁas em tempos de globalizaÁ„o. Para o caso latino-americano, o desafio maior reside numa
ìdescolonizaÁ„oî das ciÍncias sociais e da filosofia. E ainda que este n„o seja um programa novo entre nÛs,
do que se trata agora È de livar-nos de toda uma sÈrie de categorias bin·rias com as quais trabalharam no
passado: as teorias da dependÍncia e as filosofias da libertaÁ„o (colonizador versus colonizado, centro
versus periferia, Europa versus AmÈrica Latina, desenvolvimento versus subdesenvolvimento, opressor
versus oprimido, etc.), entendendo que j· n„o seja possÌvel conceitualizar as novas configuraÁıes do poder
10
com ajuda desse instrumental teÛrico . Deste ponto de vista, as novas agendas dos estudos pÛs-coloniais
poderiam contribuir para revitalizar a tradiÁ„o da teoria crÌtica em nosso meio (Castro-GÛmez et al., 1999).

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Notas
* Instituto de Estudios Sociales y Culturales PENSAR, Pontificia Universidad Javeriana, Bogot·.
1 As ciÍncias sociais s„o, como bem o demonstra Giddens, ìsistemas reflexivosî, pois sua funÁ„o È observar o mundo social do qual
elas mesmas s„o produzidas. Ver Giddens (1999: 23 e ss.).
2 Sobre este problema da identidade cultural como uma construÁ„o estatal, ver Castro-GÛmez (1999: 78-102).
3 Por isso preferimos usar a categoria ìinvenÁ„oî em lugar de ìencobrimentoî, como faz o filÛsofo argentino Enrique Dussel (1992).
4 Recordar a pergunta que se faz Max Weber no comeÁo de A Ètica protestante e que guiar· toda sua teoria da racionalizaÁ„o: ìQue
conjunto de circunst‚ncias determinaram que precisamente apenas no Ocidente tenham nascido certos fenÙmenos culturais que, ao
menos como costumamos representar-no-los, parecem apontar uma direÁ„o evolutiva de universal alcance e validade?î (Weber,
1984: 23).
5 Uma genealogia das ciÍncias sociais deveria mostrar que o imagin·rio ideolÛgico que mais tarde impregnaria as ciÍncias
sociais teve sua origem na primeira fase de consolidaÁ„o do sistema-mundo moderno/colonial, quer dizer, na Època da
hegemonia espanhola.
6 A materialidade da globalizaÁ„o j· n„o se constitui pelas instituiÁıes disciplinares do Estado nacional, e sim por sociedades
anÙnimas que desconhecem territÛrios e fronteiras. Isto implica a configuraÁ„o de um novo paradigma de legalidade, quer dizer, de
uma nova forma de exercÌcio do poder e da autoridade, assim como da produÁ„o de novos mecanismos punitivos ñuma polÌcia
globalñ que garantam a acumulaÁ„o de capital e a resoluÁ„o dos conflitos. As guerras do Golfo e de Kosovo s„o um bom exemplo
da ìnova ordem mundialî que emerge depois da guerra fria e em conseq¸Íncia do ìfimî do projeto da modernidade (Castro-GÛmez e
Mendieta, 1998: 5-30).
7 O conceito da confianÁa (trust) depositada em sistemas especialistas foi tomado diretamente de Giddens (1999: 84 e ss.).
8 Para uma introduÁ„o aos estudos culturais anglo-saxıes, ver Agger (1992). Para o caso dos estudos culturais na AmÈrica Latina,
a melhor introduÁ„o continua sendo o livro de Rowe e Schelling (1993).
9 … preciso estabelecer aqui uma distinÁ„o entre o significado polÌtico que tÍm tido os estudos culturais na universidade
estadunidense e latino-americana, respectivamente. Enquanto nos Estados Unidos os estudos culturais transformaram-se num
veÌculo apropriado para o r·pido ìcarreirismoî acadÍmico num ‚mbito estruturalmente flexÌvel, na AmÈrica Latina tÍm servido para
combater a desesperante ossificaÁ„o e o paroquialismo das estruturas universit·rias.
10 Para uma crÌtica das categorias bin·rias com as que trabalhou o pensamento latino-americano do sÈculo XX, ver Castro-GÛmez
(1996).

87
Superar a exclus„o, conquistar a equidade:
reformas, polÌticas e capacidades no ‚mbito social

Alejandro Moreno*

H· alguns anos n„o se falava de exclus„o e de excluÌdos, e sim de marginalizaÁ„o e de marginalidade.


Semelhantes conceitos s„o, em princÌpio, elaboraÁıes teÛricas mediante as quais se tenta definir, em termos
de conhecimento para a aÁ„o, a realidade social que enfrentamos na pr·tica do viver cotidiano. Supıem, de
partida, a aceitaÁ„o, como evidente ou comprovada, de uma divis„o cabal entre dois setores muito distintos
de uma sociedade; em nosso caso, a venezuelana.
O fato b·sico ineludÌvel È em primeiro lugar a divis„o da sociedade e a distinÁ„o entre dois grupos humanos
por pertencer cada um a uma situaÁ„o social prÛpria. A comparaÁ„o entre ambas situaÁıes obriga a comprovar
a divis„o. A divis„o È ao mesmo tempo separaÁ„o. Como toda conceitualizaÁ„o de uma realidade, esta
tambÈm homogeneÌza, dentro de cada grupo, o que n„o È homogÍneo. N„o representam a mesma coisa a
marginalizaÁ„o ou exclus„o dos habitantes de nossos bairros urbanos e a de nossos camponeses ou nossos
indÌgenas. E tampouco È a mesma coisa a inclus„o dos diversos setores do outro grupo.
N„o parece ter havido ao largo de toda a histÛria conhecida, pelo menos desde o neolÌtico, sociedades
n„o divididas ou em que n„o haja ocorrido uma separaÁ„o entre setores sociais, com a exceÁ„o de
pequenas comunidades como as tribos indÌgenas auto-suficientes, enquanto puderam permanecer isoladas.
Isto j· traz uma nota de ceticismo sobre os dois verbos do tÌtulo deste texto: superar e conquistar.
Quando esta separaÁ„o, j· em nossos tempos, se conceitualizava como marginalidade, se supunha que
entre um e outro grupo existia uma margem, uma fronteira. As fronteiras s„o super·veis, ainda que seja de
forma ilegal, e o outro territÛrio È conquist·vel. Marginalidade era um conceito de algum modo aberto ‡
esperanÁa. Talvez n„o diga muito da realidade, mas sim da atitude dos que a conheciam assim. Falava de
fronteira, mas tambÈm de proximidade e n„o apenas de possibilidade de superaÁ„o, alÈm de disposiÁ„o para
tanto. Falava, assim, que o processo de marginalizaÁ„o era pensado como reversÌvel e para isso se
encaminharam reformas, polÌticas e capacitaÁıes.
Se j· n„o se pode falar de marginalizaÁ„o, mas h· que se falar de exclus„o, deve ser porque aqueles
esforÁos fracassaram. O processo n„o sÛ n„o se reverteu como atingiu um novo est·gio mais radicalmente
separador.
Falar de exclus„o È falar de dist‚ncia e ao mesmo tempo de fechamento. J· n„o se trata de fronteira e
sim de muralha, de fora e de dentro. O que est· dentro constrÛi sua muralha e delimita e defende assim seu
territÛrio. … o que est· dentro que constrÛi a muralha, n„o o de fora.
N„o se trata, contudo, da separaÁ„o de territÛrios e sim da separaÁ„o de condiÁıes de vida. As muralhas
n„o s„o feitas de pedra. A exclus„o por si mesma n„o pressupıe necessariamente desigualdade, mas
somente quando, como em nosso caso, a exclus„o se exerce sobre condiÁıes de vida humana. Porque n„o
se trata somente de distintas condiÁıes de vida humana, mas de condiÁıes nas quais a vida humana tornar-
se possÌvel, e mesmo em abund‚ncia, e condiÁıes nas quais a vida humana dificulta-se, chegando a tornar-
se impossÌvel. … imagin·vel uma distinÁ„o em igualdade, e portanto em eq¸idade, no que se refere ‡
possibilidade de vida, mas entre nÛs a distinÁ„o se refere a superioridade e inferioridade, a desigualdade na
vida.
Falar de exclus„o supıe inevitavelmente falar tambÈm de inclus„o. No entanto, de que inclus„o e de que
exclus„o se trata? Em que se est· incluÌdo e do que se est· excluÌdo? Estou convencido de que no fundo se
trata propriamente de possibilidades de vida, mas nestes termos t„o crus n„o s„o colocadas as coisas,
exceto por parte dos que estamos eticamente comprometidos com os excluÌdos. Nosso discurso tem ranÁo,
para o restante das pessoas, de moralismo utÛpico. Entendo que, nos termos deste evento, trata-se de
mercado e de cidadania. Superar a exclus„o e conquistar a eq¸idadeî teria que ser entendido, portanto, em
relaÁ„o ao mercado e ‡ cidadania, uma cidadania, por outro lado, insepar·vel do mercado. Tratar-se-ia, pois,
de um discurso econÙmico e polÌtico, coerente com os objetivos estipulados para o mesmo, especialmente o
1
segundo . N„o vou dizer que estas s„o m·scaras que cobrem o verdadeiro problema nem centros de
atenÁ„o que desviam o foco do que verdadeiramente deveria iluminar porque talvez as possibilidades de vida
humana se colocam nestes momentos no mercado e na cidadania, pelo menos da perspectiva dos que se
colocam estes problemas.
A perspectiva mesma, no entanto, surge-me como problema. Quem fala de exclus„o? De onde se fala de
exclus„o? Parece-me claro que o discurso da exclus„o se pronuncia do lugar dos incluÌdos, e que o

88
pronunciam os incluÌdos.
Mercado e cidadania s„o sistemas de regras de funcionamento, de produÁ„o e de reproduÁ„o, fora das
quais nem um nem outra tÍm possibilidades de existÍncia. Quem est· incluÌdo no sistema se move no jogo
dessas mesmas regras. Como s„o sistemas com uma forte coerÍncia interna, tendem a absolutizar-se e a
conceber-se a si mesmos como os ˙nicos possÌveis e pens·veis, isto È, como as ˙nicas formas de vida
econÙmica e polÌtica postas ‡ disposiÁ„o dos humanos no momento atual da histÛria. Quem pensa a partir
deles n„o tem outras possibilidades de elaborar conhecimento sobre o que È externo e sim nos termos do
sistema. N„o pode ver o externo como externo, simplesmente outro, n„o relativo ao sistema, mas como
excluÌdo. Desta perspectiva, os excluÌdos do sistema s„o chamados ou ‡ inclus„o ou ao desaparecimento
lento ou acelerado, imediato ou tardio, n„o ‡ sobrevivÍncia como externos, como alteridade radical.
N„o creio que alguÈm hoje pense com seriedade que estes sistemas s„o naturais, produzidos pelo
mesmo ser do homem e por isso indiscutÌveis e imut·veis, destinados a permanecer exista homem no
mundo. Estou seguro de que todos est„o de acordo em que se trata de produtos histÛricos, situados no
tempo, no espaÁo, na cultura e num determinado contexto social. Muitos, entretanto, continuam pensando
que histÛrico quer dizer situado numa corrente contÌnua de progresso da humanidade que, partindo de
inÌcios ainda prÛximos ao animal, foi, ao princÌpio lentamente, e progressivamente de maneira mais
acelerada, superando est·gios sucessivos atÈ chegar, no momento presente, em alguns centros
privilegiados ñmais desenvolvidos, se dizñ a sua melhor express„o evolutiva. O histÛrico, assim, seria, em
˙ltima inst‚ncia, uma express„o do natural. A histÛria seria t„o inevit·vel como a natureza, pois n„o seria
nada alÈm da atualizaÁ„o no tempo das potencialidades, j· inscritas e projetadas para o futuro, do ser de
todo homem. N„o restaria outra opÁ„o exceto incluir-se na corrente da histÛria. Ou inclus„o ou morte.
Se se pensa, por outro lado, como tem apontado contundentemente a crÌtica dos ˙ltimos trinta anos,
que a histÛria n„o È contÌnua, e sim descontÌnua, n„o ˙nica, mas m˙ltipla, sua universalidade fica
reduzida ‡ particularidade de um ou de alguns grupos humanos, ‡ particularidade de suas culturas e de
sua prÛpria maneira de organizar-se como sociedade. A atÈ agora narrada como histÛria universal,
reduz-se ‡ histÛria particular do mundo ocidental. Que este tenha sido invasor, e continue sendo-o, e
tenha pretendido, e pretenda, incluir o universo em sua prÛpria histÛria, n„o nos fala da histÛria, mas da
maneira particular de fazer histÛria, sobre o exercÌcio do poder de dominaÁ„o cuja forma atual seria a
globalizaÁ„o, que atÈ agora caracterizou o Ocidente. E particulares s„o tambÈm seus sistemas de
regras.
N„o porque o interc‚mbio de bens tenha sido uma pr·tica presente em todos os tempos, lugares,
culturas e grupos humanos, a forma ocidental atual dessa pr·tica estruturada como mercado e este
mercado, tenha de ser ˙nica, global e inevit·vel para todos os homens.
Nem mesmo no Ocidente o interc‚mbio de bens na forma de mercado tem continuidade ao longo
de sua histÛria. As descontinuidades s„o claras e evidentes. O mercado, e esta forma de mercado,
tem seu momento germinal em plena Idade MÈdia com o aparecimento do primeiro burguÍs, que
comeÁa a praticar o interc‚mbio desta maneira, e o surgimento do indivÌduo como pr·tica burguesa
das relaÁıes entre pessoas. Mercado e indivÌduo autÙnomo nascem juntos, transformam-se ao longo
do tempo e chegam a sua express„o atual.
Precisamente sobre o indivÌduo autÙnomo Hinkelammert apÛia ñpara citar um intelectual latino-americano
comprometido com os excluÌdosñ a constituiÁ„o do mercado moderno. Diz Hinkelammert (1997: 20): ìO
determinismo histÛrico manejado na atualidade pela sociedade burguesa afirma que a prÛpria histÛria, pelos
efeitos n„o-intencionais da aÁ„o intencional, impıe a sociedade burguesa como a ˙nica possÌvel, porque
qualquer tentativa de super·-la resulta em algo pior do que esta sociedade oferece. Isto È: mercado mundial,
juÌzo finalî. Se È verdade que na ciÍncia, comeÁando pela prÛpria fÌsica, j· foi superado o cl·ssico
determinismo, basta ler qualquer economista ou analista e comentarista da economia nacional nos
momentos atuais, para tirar como conclus„o que ou se faz o que eles unanimemente dizem, e que coincide
com o que dizem os organismos internacionais, ou o que nos espera ser· muito pior.
Cito novamente a Hinkelammert fazendo um mosaico com alguns fragmentos de seu texto: ìDesde David
Hume aparece a convicÁ„o de que a aÁ„o humana È fragment·ria [...] Por isso a toda aÁ„o humana subjaz a
desordem. O elemento a explicar È, portanto, como È possÌvel uma ordem, se toda aÁ„o humana È a priori
fragment·ria [...] Primeiro se concebe a ordem emergente como uma ordem preestabelecida, mas, desde
Adam Smith, como um sistema que resulta do car·ter fragment·rio da aÁ„o humana mesma e como
resultado de seus efeitos n„o-intencionais [...] uma m„o invisÌvel que rege esta produÁ„o de ordem [...]
Partindo disto, o mercado È concebido como um mecanismo auto-regulado [...] Da aÁ„o dos indivÌduos
autÙnomos surgem de maneira n„o-intencional as leis que determinam a ordem econÙmico-socialî
(Hinkelammert, 1997: 21-23).
O mercado sustenta-se, assim, numa espÈcie de ser humano surgido num lugar e num tempo
histÛricos: o indivÌduo autÙnomo, respons·vel por si mesmo e pelos bens de que È propriet·rio (incluindo a
forÁa de trabalho) que se relaciona como indivÌduo propriet·rio com outros indivÌduos propriet·rios em
89
aÁıes fragment·rias, individuais, de interc‚mbio. N„o faz parte de suas intenÁıes a geraÁ„o de uma
ordem, de um sistema, mas somente sua prÛpria aÁ„o, mas, ao chocar entre si as distintas aÁıes, limitam-
se umas ‡s outras, compensam-se e regulam-se. Surge assim a ordem como efeito n„o-intencional das
aÁıes dos indivÌduos, surge o mercado como sistema. A ordem polÌtica deve limitar-se a pÙr as condiÁıes
para que surja esta ordem porque qualquer interferÍncia o distorce e n„o lhe permite aparecer e funcionar.
Se n„o se parte do indivÌduo autÙnomo, este sistema auto-regulado n„o se verifica. Pois bem, o indivÌduo
autÙnomo, mais que uma convicÁ„o dos pensadores e teÛricos, È uma pr·tica social histÛrica que se instala
no Ocidente num tempo determinado, tema por mim desenvolvido no livro El Aro y la Trama (Moreno, 1995)
onde e quando n„o se verificou ou n„o se verifica esta pr·tica do indivÌduo, n„o se verificou nem se verifica
este sistema de mercado. E enquanto e onde se verifique esta pr·tica do indivÌduo autÙnomo, verificar-se-·
este sistema.
ìJ· n„o È necess·rio explorar os trabalhadores; n„o necessitar deles j· È suficiente. A exploraÁ„o foi
substituÌda pela exclus„oî. Estas palavras de Jacquard (1995: 30) pıem o dedo na ferida: o desemprego
2
estrutural do mercado em seu momento atual, intitulado ìhorror econÙmicoî por Forrester (1996) , que aponta
para o que Dussel (1998) chamou de principium exclusionis, a exclus„o como princÌpio, que, para ele, vai
alÈm do mercado, atÈ a constituiÁ„o da Ètica da sociedade moderna e, portanto, tambÈm da polÌtica e da
cidadania.
Em nossos dias, este sistema È absolutamente vitorioso. Se nos remontamos a suas origens medievais e
percorremos sua histÛria atÈ o presente, haveremos de aceitar que esta tem sido uma histÛria de afirmaÁ„o e
expans„o progressiva e, ao mesmo tempo, de transformaÁ„o permanente. Se seguimos com alguma
atenÁ„o este processo de transformaÁıes, descobriremos nele uma oculta intenÁ„o intrÌnseca a sua prÛpria
estrutura que sÛ hoje, em sua maior afirmaÁ„o, se nos revela, mas que Marx j· vislumbrara: a libertaÁ„o
progressiva do capital-dinheiro de todas as amarras da produÁ„o material. A palavra intenÁ„o pode prestar-
se a confusıes. Uma È, contudo, a intenÁ„o subjetiva, produzida pela consciÍncia e pela vontade dos
sujeitos, que È a que ordinariamente entendemos como tal, e outra a que pertence por constituiÁ„o ao modo
de ser de um sistema, ñin-tentio, tendÍncia añ independente dos sujeitos aos quais inevitavelmente se impıe
e para os quais permanece oculta. Os sujeitos se iludem se acreditam que podem elaborar e executar sua
intenÁ„o subjetiva de maneira autÙnoma. Inevitavelmente se inscreve na intenÁ„o intrÌnseca do sistema.
Quando esta se afirma totalmente, nos momentos de triunfo, sai ‡ luz e È ent„o quando a dos sujeitos pode
coincidir conscientemente com ela. … o que sucede neste tempo. O capital-dinheiro, j· com intenÁ„o
consciente dos sujeitos, est· desprendido da produÁ„o ñpara os mais otimistas em cerca de setenta por
cento, enquanto muitos pensam que supera noventa por centoñ e gira sobre si mesmo num acelerado
movimento e numa reproduÁ„o totalmente isolada, por si mesmo.
Este sistema È produtor de crises. Crise, na verdade, È um eufemismo, pois n„o se trata de estados
transitÛrios de discernimento entre situaÁıes, entre passado e futuro, por exemplo, e sim de um futuro de
desastre para as grandes maiorias. O sistema, contudo, n„o se pıe de nenhuma maneira em d˙vida. … a
realidade mesma inevit·vel e desej·vel, È o prÛprio bem, aquilo que deve ser imposto em todo o mundo, o
projeto ˙nico para todos.
Que sentido tem falar, ent„o, de superar a exclus„o? Os excluÌdos hoje est„o em todas os lugares. AtÈ
nos prÛprios centros realizadores e promotores do sistema, ali onde se cumpriram todas as suas
exigÍncias e onde se obtiveram seus melhores frutos, a exclus„o de uma parte importante dos habitantes
se diz ser estrutural. Sucede que, por enquanto, neles a sociedade pıe em marcha mecanismos para
manter seus excluÌdos em condiÁıes prec·rias mas suficientes de vida. Por quanto tempo? A tendÍncia
n„o indica uma direÁ„o melhor. Fora desses centros, as possibilidades de vida se reduzem a setores
minorit·rios, muito minorit·rios, os benefici·rios do sistema, da grande populaÁ„o. … o nosso caso.
Desse lugar, desses grandes centros, vem-nos a mensagem que se supıe salvadora: n„o se trata de
mudar o sistema mas de capacitar a populaÁ„o para que se integre, se inclua nele. Deixam de lado, como se
de algo descart·vel se tratasse, o fato de que seus prÛprios excluÌdos est„o capacitados e, no entanto, n„o
superam a exclus„o? Ser· que os desempregados alem„es s„o analfabetos ou atrasados culturais? Sempre
a mesma coisa: o sistema È bom e capaz de produzir vida se È deixado livre de interferÍncias externas; s„o
as pessoas que n„o o aceitam ou ficam para tr·s por m˙ltiplas deficiÍncias que a elas compete superar:
preconceitos culturais, defeitos de car·ter, dependÍncia da tradiÁ„o, insuficiente capacitaÁ„o. N„o seriam
elas vÌtimas do sistema que por sua prÛpria estrutura as exclui? N„o se est· com isso culpando a vÌtima?
N„o seria que a culpabilizaÁ„o cumpre duas funÁıes essenciais para uma eficaz governabilidade: sacralizar
o sistema e submeter as vÌtimas, j· que quem se sente culpado n„o se rebela? N„o ser„o os programas de
capacitaÁ„o precisamente instrumentos elaborados n„o para superar a insuper·vel exclus„o, mas para
culpar? N„o È que seja essa a intenÁ„o subjetiva dos que os elaboram, mas, n„o È sua intenÁ„o intrÌnseca?
No dia 28 de janeiro de 1999 fui convidado, como comentarista, a um semin·rio sobre avaliaÁ„o do programa
3
de capacitaÁ„o de jovens excluÌdos do sistema educativo que promove o MinistÈrio da FamÌlia . Analisaram-
se importantes e sÈrias pesquisas a respeito do tema. Todas se encaminhavam a estudar as condiÁıes dos
excluÌdos; nenhuma as condiÁıes dos agentes de exclus„o. E isso, n„o obstante servir para constatar que
90
mesmo aqueles jovens j· capacitados dificilmente encontravam um modo de integrar-se no mercado de
trabalho. As conclusıes coincidiam em que se necessitava de maior e melhor capacitaÁ„o e, em todo caso,
aperfeiÁoamento do programa. A capacitaÁ„o transforma-se, assim, num processo infinito em que os jovens
jamais estar„o capacitados e sempre ser„o culpados por sua situaÁ„o.
N„o faltam, certamente, aqueles que, do ponto de vista das vÌtimas do sistema, o analisam criticamente.
Dussel, na obra j· citada (1998: 413), tomando a sociedade dominante atual em seu sentido mais amplo, isto È,
em sua Ètica estrutural, e analisando o mais avanÁado dela, a Ètica do discurso de Habermas e Apel, assinala
ìa impossibilidade empÌrica de n„o excluir alguÈmî mesmo no melhor dos casos imagin·vel. ìA n„o-
participaÁ„o f·tica de que falamos È um tipo de exclus„o n„o-intencional inevit·vel [...] sempre h· algum tipo de
afetado-excluÌdo. Este sempre È empÌrico, e sua inevitabilidade È apodÌtica: È impossÌvel faticamente que n„o
haja afetadosî. Na mesma linha est„o as an·lises de Hinkelammert, de Jacquard, de Vivianne Forrester e de
outros tantos. Alguns apontam para possÌveis soluÁıes. Muitas foram colocadas ao longo do tempo. A vitÛria do
mercado n„o tem sido pacÌfica.
Deixando de lado revoluÁıes m˙ltiplas e fracassadas, deter-me-ei sobre a proposta de Hinkelammert
porque me parece que acerta o alvo, apesar de ter contradiÁıes.
O problema, para ele, È que n„o h· a proclamada crise de paradigmas; muito pelo contr·rio, um sÛ
paradigma se impÙs vitoriosamente, no caso do mercado, que atua em nome da mais absoluta certeza com
valor universal. A resposta a esta unificaÁ„o universal ìtem que fazer da fragmentaÁ„o um projeto universalî
(Hinkelammert, 1997: 19). Uma multiplicidade de economias e de cidadanias, portanto. Cada comunidade
humana com seu direito a ser distinta. Mas È precisamente da fragmentaÁ„o da aÁ„o humana ñdo homem
entendido como indivÌduo autÙnomoñ de onde surge e surgiu o sistema unit·rio. Trata-se de que dentro de
cada comunidade a aÁ„o dos homens n„o seja fragment·ria, individual, e sim solid·ria, isto È, j· ordenada
desde o princÌpio pela solidariedade. Se j· se parte de uma ordem solid·ria, produzida livremente pelos
sujeitos, se torna desnecess·rio o surgimento de uma ordem auto-regulada e que se lhes impıe desde fora.
Desta maneira se mantÈm a possibilidade de que a economia esteja submetida ‡s decisıes livres dos
homens e n„o o contr·rio.
A proposta È engenhosa mas tem duas dificuldades intransponÌveis de fundo. A primeira È seu car·ter
utÛpico ña utopia por si n„o È um defeitoñ, irrealiz·vel por ser compartilhada por todos, pois se trata de uma
proposiÁ„o Ètica que chama a uma conduta moral dos indivÌduos. Como garantir que todos v„o aceitar
livremente uma proposta Ètica? E se todos n„o a aceitam, n„o haver· uma economia comunit·ria assim
concebida. A segunda È mais de fundo: Hinkelammert n„o renuncia ‡ concepÁ„o do homem como indivÌduo
autÙnomo, pois esta seria uma conquista positiva da modernidade. A fragmentaÁ„o da aÁ„o est· j· como
intenÁ„o intrÌnseca, n„o subjetiva, na prÛpria estrutura do indivÌduo. A aÁ„o solid·ria sÛ poderia ser uma
decis„o de conduta do indivÌduo sobre a base de uma decis„o Ètica tambÈm individual. A estrutura se impıe
sobre as decisıes subjetivas, pelo menos para a grande maioria, aceitando que alguns podem
independentizar-se dela. Mas a economia global n„o depende de alguns. Para que a proposta de
Hinkelammert seja realiz·vel, se necessita de outro homem, um homem no qual a solidariedade possa surgir
como emanaÁ„o de sua estrutura e n„o como um mandato moral. Existir· esse homem?
Tenho j· vinte anos de ìincluÌdoî num bairro de Petare, uma dessas comunidades que antes se
chamaram de ìmarginaisî e hoje se chamam de ìexcluÌdasî, quando s„o nomeadas desde fora delas
mesmas, pelos incluÌdos no sistema. De dentro, delas mesmas, nem se consideram marginais nem
excluÌdas, simplesmente porque essa quest„o n„o lhes pertence. De dentro se percebem como
comunidades ñpacÌficas ou conflitivasñ de conviventes. Dir-se-ia que cada bairro mais parece um
povoado tradicional que um setor da cidade. Esta semelhanÁa com o povoado È muito significativa. Da
estrutura polÌtica, econÙmica, social e cultural da cidade, os bairros s„o partes de uma unidade mais
ampla. De dentro, identificam-se como, e praticam, uma not·vel autonomia. Nem desprezam nem
rejeitam a cidade, mas tampouco a engrandecem. N„o percebem sua autonomia como marginalizaÁ„o
nem exclus„o, mas como uma maneira natural de praticar a convivÍncia.
Em que consiste sua maneira autÙnoma de viver? Meus vinte anos de bairro foram tambÈm vinte anos
de pesquisa, muitos dos quais compartilhados com uma equipe de jovens pesquisadores no Centro de
Investigaciones Populares. Se estas comeÁaram desde fora, isto È, de posiÁıes teÛricas e metodolÛgicas
prÛprias das ciÍncias sociais convencionais, pouco a pouco e passo a passo, se foram despojando de tudo
que È admitido pelos ìcientistasî da estrutura externa ñsob os golpes contundentes da realidade do bairroñ
e aterrissaram finalmente no interior da estrutura constitutiva da comunidade. Um processo longo e
complexo que aqui n„o tenho tempo nem espaÁo para detalhar. Foi necess·rio reinventar tudo: mÈtodos,
perspectivas e idÈias, para chegar a compreensıes articuladas que, n„o havendo partido de teorias,
4
tampouco desejam ser conhecidas como tais . A compreens„o fundamental a que chegamos È a de que a
vida de um bairro n„o È nem uma estrutura social nem uma anarquia desorganizada, mas algo externo a
toda possÌvel compreens„o nos termos da modernidade dominante e que se integra e coincide com o
modo de viver a vida, prÛprio do que, sem nos determos em divagaÁıes teÛricas, ñìleguleyismosî, diria
Ch·vezñ definimos como o povo venezuelano. Quando digo modo de viver a vida, me estou referindo ao
91
puro exercÌcio do viver, ‡ pura pr·tica que, com uma palavra inventada por mais din‚mica, chamei de
praticaÁ„o do viver. Um trabalho de compreens„o hermenÍutica a partir do que acontece cotidianamente
na comunidade, de suas produÁıes culturais, de suas praticaÁıes sociais e da histÛria-de-vida de seus
conviventes, levou-me a cair, como quem despenca num fundo inesperado, na praticaÁ„o primeira e
fundamental da vida por todos compartilhada em sua prÛpria origem como existentes e que d· sentido e
unifica num mundo-da-vida a todo o viver de nosso povo. Este fundo, esta praticaÁ„o primeira, fonte do
sentido popular, È a relaÁ„o convivencial como constitutivo do ser do venezuelano popular. N„o me posso
deter para caracteriz·-la e descrevÍ-la. O que importa aqui e agora È que o venezuelano popular n„o È
compreensÌvel como indivÌduo ñe pens·-lo e caracteriz·-lo como tal È uma ficÁ„o elaborada de forañ, e
sim como relaÁ„o presente, atual, real. O venezuelano popular seria ent„o um homo convivalis. Importa,
alÈm disso, distinguir brevemente o eu moderno do eu popular. O primeiro È um eu individual, o segundo
um eu relacional. O eu individual gera aÁıes individuais, fragment·rias, que entram em contato e de cujos
contatos se produz um sistema de relaÁıes extrÌnseco, auto-regulado, uma estrutura que se lhe impıe de
fora e que, no caso das aÁıes econÙmicas, È o mercado. O eu relacional gera aÁıes que j· em sua origem
s„o relacionais e se inscrevem numa ordem que elas mesmas geram e delas mesmas depende, que n„o
lhe È, portanto, extrÌnseco. No caso do interc‚mbio de bens, este È j· em origem relacional e, quando n„o
se desvia, ìnaturalmenteî solid·rio.
Sobre este ˙ltimo tema estou empenhado, junto com meus colaboradores, numa pesquisa que j· pode
apontar para alguns resultados, sempre provisÛrios, que, de uma maneira muito sintÈtica e esquem·tica,
resumo a seguir.
1. No povo d·-se um sistema de relaÁıes econÙmicas prÛprio fora das regras do mercado moderno e n„o
submetido a nenhuma regulaÁ„o, dependente das decisıes livres de seus agentes.
2. Este sistema tem caracterÌsticas, formas de aÁ„o, campos de aplicaÁ„o e funÁıes que correspondem ‡
particularidade do mundo-de-vida popular.
3. H· nele uma circulaÁ„o de dinheiro que nada tem a ver com o sistema banc·rio mas que cumpre as
finalidades que um sistema banc·rio de tipo ìpopularî poderia ou deveria cumprir. Todo um sistema de
emprÈstimos circula de pessoa para pessoa, ìde pana a panaî, que move com grande rapidez uma
enorme quantidade de dinheiro difÌcil de calcular porque n„o h· par‚metros para isso. Este sistema apÛia-
se na relaÁ„o pessoal, de tu a tu, sobre relaÁıes concretas e n„o sobre relaÁıes abstratas como s„o as
do mercado, e se baseia na confianÁa, uma confianÁa tambÈm distinta. N„o È a confianÁa no propriet·rio
que tem como respaldar o crÈdito que se lhe concede. N„o se empresta a alguÈm porque tem, mas
precisamente porque n„o tem e necessita, de onde a confianÁa se pıe diretamente na pessoa quando
re˙ne certas caracterÌsticas: pertence ‡ trama de relaÁıes j· estabelecidas na qual quem empresta e
quem recebe o emprÈstimo j· est„o incluÌdos, necessita do dinheiro, È confi·vel no sentido de que se
sabe que deseja pagar. ¿s vezes, inclusive, a confianÁa È mediada, isto È, o receptor n„o est· na mesma
trama de quem empresta mas est· garantido, n„o economicamente mas sempre pessoalmente, por outro
que pertence ‡ trama. O resultado n„o È estritamente econÙmico, pois o devedor com freq¸Íncia n„o
pode cumprir seu compromisso. De fato, se empresta j· com a disposiÁ„o, que vem do mesmo mundo-
de-vida, para o perd„o da dÌvida. O credor, desta maneira, perde se enxerga a situaÁ„o com os
par‚metros da economia de mercado, mas na realidade n„o perde porque n„o investiu em dinheiro e sim
em relaÁ„o e isto lhe abre as portas para ser devedor nas mesmas condiÁıes quando assim o necessite.
Desta maneira o dinheiro circula com grande rapidez e beneficia diretamente os que dele necessitam. Isto
n„o produz acumulaÁ„o individual e sim acumulaÁ„o comunit·ria que est· sempre distribuÌda.
4. Investe-se, pois, em relaÁ„o e de maneira relacional. Este tipo de investimento È material, t„o material
como o investimento em capital, mas material humano e cumpre a funÁ„o de permitir e facilitar a vida das
pessoas.
5. Neste contexto entram os jogos, as loterias populares que geram uma loteria ‡ margem da oficial mas
sobre a base dos n˙meros ganhadores da oficial e que move grande quantidade de dinheiro dentro da
comunidade, os terminais, etc. Toda uma economia ìilegalî para fora mas perfeitamente funcional, legal,
para dentro. Precisamente o fato de ser ilegal para fora, permite o abuso das autoridades, como a polÌcia.
Se se olha de fora, pareceria que o venezuelano È jogador. Entretanto, em nenhuma das muitas histÛrias-
de-vida que nÛs trabalhamos encontramos o jogo como algo importante. O jogo, de fora, pensa-se como
fator econÙmico em si mesmo, enquanto que o mundo-da-vida popular tem um sentido n„o econÙmico em
termos de mercado.
6. Por dÌvidas n„o temos notÌcia de violÍncia, por exemplo em meu bairro. … que o dinheiro pode n„o ser
recobrado, mas a relaÁ„o se fortalece. SÛ h· violÍncia por dÌvidas entre os que participam do mercado
externo, duplamente ilegal, como È o da droga. Este se rege por par‚metros externos ao mundo-da-vida
popular.
7. … uma economia que n„o se faz na base de perdas e ganhos. Os ganhos e as perdas s„o momentos
dessa economia e nada mais. De fato, geralmente perdem todos e todos ganham. AlguÈm pode meter-se,
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por exemplo, num negÛcio que j· se sabe que vai fracassar, se est„o outras pessoas no meio. O que o
empreende sabe que vai perder, mas que dele outros se beneficiar„o. Em outro momento ele mesmo
entrar· em outro negÛcio igual, mas desta vez como benefici·rio.
8. Parece ser uma economia estruturalmente solid·ria, porÈm n„o devido a um imperativo Ètico externo,
de uma exigÍncia moral de compartilhar ñn„o se exclui que em sua origem esteja latente um sentido
crist„o da vida enraizado no povo e tornado j· cultura, mas n„o aparece como decis„o conscienteñ mas
como emanaÁ„o ìnaturalî do constitutivo do mundo-da-vida popular. As aÁıes humanas, todas e n„o
apenas as econÙmicas, s„o desde o inicio n„o-individuais, mas relacionais.
9. … uma economia que tem seu espaÁo numa populaÁ„o marcada pela pobreza, mas n„o È assim
porque seus agentes sejam pobres, e sim porque os atores pertencem a um mundo-da-vida externo,
e neste sentido de externalidade ñque n„o significa necessariamente oposiÁ„o nem contradiÁ„oñ È
preciso entendÍ-lo como outro (outredad). A outredad entende-se aqui como uma realidade situada
fora dos par‚metros de outra realidade qualquer. Outredad, neste caso, n„o se confunde com
5
exclus„o, mas que sÛ È pens·vel fora da oposiÁ„o exclus„o-inclus„o, por exemplo .
Existe, assim, entre nÛs, um tipo de homem que n„o se concebe como indivÌduo autÙnomo mas como
relaÁ„o convivencial e que, por isso mesmo, produz aÁıes relacionais e uma forma de interc‚mbio fora
do sistema-mercado. … f·cil catalog·-lo como prÈ-moderno, e portanto destinado a desaparecer, quando
se concebe a histÛria como historia ˙nica e progressiva. Por que n„o externo ‡ modernidade? Nem prÈ-
moderno nem pÛs-moderno, nem primitivo nem prim·rio, mas outro em relaÁ„o ‡ modernidade. Isto
supıe j· a fragmentaÁ„o ñHinkelammertñ como um fato da realidade ñe n„o sÛ como uma exigÍncia
Èticañ que o mercado tende a suprimir subsumindo-o todo sob o ˙nico sistema.
Por enquanto, nosso povo n„o pode considerar-se nem marginal nem excluÌdo, mas simplesmente
externo, outro, com sua prÛpria outredad vivida como cotidianidade em seu mundo-da-vida.
Claro est· que esta outredad n„o est· isolada. Externalidade n„o È isolamento. Entra
constantemente em contato com o sistema de mercado, mas n„o se deixa eliminar por ele. Todos os
dias as pessoas saem de seu mundo-da-vida popular para entrar no mundo-da-vida do mercado e nesse
momento se submetem a suas regras, mas quando regressam a sua comunidade, saem dele. As
relaÁıes entre um e outro s„o complexas. … claro que a maioria dos recursos que se intercambiam no
povoado provÍm do mercado, mas n„o est· dito que o mundo-de-vida popular, se fosse deixado a seu
prÛprio modo de produzir, estaria incapacitado para fazÍ-lo. Por outro lado, n„o est· muito claro atÈ que
ponto o popular permeia e invade o mercado em seu prÛprio terreno e em seus prÛprios agentes. Talvez
esteja nisso a preocupaÁ„o por modernizar o venezuelano a todo custo. AlÈm das intervenÁıes do
Estado, t„o detestadas pelo mercado, n„o o distorcem tambÈm, de uma maneira mais sutil e encoberta,
as invasıes do popular? N„o anunciam estas, porÈm, possibilidades distintas n„o geradoras de
exclus„o? O sistema parece percebÍ-lo e por isso, talvez, tanto insiste na necessidade de mudanÁas
culturais, isto È, para transformar nosso povo de relacional em excluÌdo. Parece que o mercado n„o
pode viver e deixar viver ao mesmo tempo. Para viver ele, necessita excluir.
Em vez de conceber uma governabilidade sobre a premissa de uma populaÁ„o unificada num todo
impossÌvel de incluÌdos, n„o È melhor e mais factÌvel, e ao mesmo tempo mais respeitoso da vida de todos,
uma governabilidade concebida sobre a diversidade de mundos-da-vida n„o excludentes, mas conviventes?
O presidente Ch·vez disse em determinado momento algo que n„o pode ser entendido de outro modo
que n„o como uma autÍntica loucura: ìo modelo econÙmico ser· decidido pelo povoî. Como pode o povo
decidir sobre algo t„o complexo e t„o ìtÈcnicoî? Na economia atual n„o cabe por nenhum lado nem o
menor vislumbre de democracia. A economia n„o È propriedade do povo. Est· em sua prÛpria natureza
pertencer a outros e ser imposta ao povo de fora. De modo a conseguir que essa imposiÁ„o seja bem-
sucedida aparece a governabilidade. Se o povo resiste, È imperativo acabar com ele, isto È, com sua
outredad e sua distinÁ„o. Em ˙ltima inst‚ncia, para isso servem a capacitaÁ„o, a t„o proclamada educaÁ„o
em valores, as t„o exigidas mudanÁas culturais. Se n„o se deixa eliminar, anunciam-se-lhe males maiores,
o que n„o significa dizer que, se permitirem, se lhe assegurem maiores bens. De qualquer modo, o povo
resiste, mas n„o por uma decis„o consciente e subjetiva de seus membros, mas porque a estrutura de seu
mundo-da-vida resiste por si mesma, porque È imperme·vel ‡s exigÍncias da modernidade atual.
E, no entanto, o presidente tem toda a raz„o. Se o povo n„o decide em economia, n„o se pode falar de
democracia. Onde est· a cidadania, ent„o? E onde est· a eq¸idade? Mas o povo n„o pode decidir sobre a
economia dos que n„o s„o povo, este povo. E È fundamental fazer esta distinÁ„o. A sociedade est·
faticamente dividida, pelo menos na Venezuela: o povo por um lado e as elites ñdemos-lhes esse nome, para
que nos possamos entenderñ pelo outro. O conceito ilustrado de povo, o que se veio usando em polÌtica,
como o conjunto de toda a populaÁ„o constituÌda, em princÌpio, por iguais, j· est· claro que È uma ficÁ„o
elaborada pelos que necessitam apagar abstratamente, mas n„o no concreto, as distinÁıes.
Se se assume esta distinÁ„o como base para uma governabilidade efetiva e pacÌfica, poder-se-ia,

93
aceitar como v·lida a decis„o que o povo j· tem tomada desde sempre sobre seu prÛprio modelo
econÙmico e governar as relaÁıes entre ele e o mercado atual de modo que um n„o impeÁa o outro nem o
exclua. Que o povo viva segundo seu prÛprio mundo-da-vida, o que n„o quer dizer deix·-lo sÛ, mas
promover e facilitar seu prÛprio desenvolvimento do interior de seu prÛprio sentido, e que o mercado n„o
sÛ n„o submeta a sua obediÍncia, mas que forneÁa sua contribuiÁ„o sem pretender impor-se. Ent„o os
programas de capacitaÁ„o estariam encaminhados para facilitar o funcionamento harmÙnico destas
relaÁıes e n„o para a substituiÁ„o de um por outro. O peso da responsabilidade colocar-se-ia, assim, num
e em outro mundo. Isto significa pÙr o mercado de alguma maneira a serviÁo do povo e n„o acima dele. …
possÌvel pensar que se beneficiariam ambos. Mas isto n„o È pensar a loucura? E se n„o pensamos a
loucura, que outra coisa podemos pensar sen„o a exclus„o insuper·vel e a extinÁ„o da vida?

Bibliografia
Dussel, Enrique 1998 …tica de la liberaciÛn en la edad de la globalizaciÛn y de la exclusiÛn (Madri: Editorial Trotta).
Forrester, Vivianne 1996 LíHorreur …conomique (Paris: Fayard).
HeterotopÌa (Caracas: CIP).
Hinkelammert, Franz J. 1997 ìEl Hurac·n de la GlobalizaciÛnî em Pasos (S„o JosÈ de Costa Rica) N{ 69.
Jacquard, Albert 1996 Yo acuso a la economÌa triunfante (Barcelona: Editorial AndrÈs Bello).
Moreno, Alejandro 1994 øPadre y Madre? (Caracas: CIP).
Moreno, Alejandro 1995 El Aro y la Trama (Caracas: CIP).
Moreno, Alejandro 1998a Historia-de-vida de Felicia Valera (Caracas: CONICIT/CIP).
Moreno, Alejandro 1998b La Familia Popular Venezolana (Caracas: CIP/Centro Gumillas).
Santuc, Vicente 1997 ìDesde dÛnde mirar el ëHorror EconÛmicoí î em Xipe Totek (Guadalajara) Vol. VI, N{ 4.

Notas
* Centro de Investigaciones Populares (CIP), Caracas.
1 ìConcretizar possÌveis projetos de cooperaÁ„o e apoio m˙tuo diante dos desafios e oportunidades que a globalizaÁ„o, o
aprofundamento da democracia, a eq¸idade e a geraÁ„o de mercados competitivos e de ampla base social colocam diante de nÛs em
ambos os paÌses, os quais, por razıes diversas, demandam a conduÁ„o de profundos processos de reconstruÁ„o institucional e de
desenvolvimento de mais e melhores capacidades de governoî (Tirado dos objetivos fixados, impressos no programa entregue aos
participantes, para o semin·rio Um novo estado para um novo modelo de desenvolvimento, Universidad Central de Venezuela, Caracas,
fevereiro de 1999, em que foi apresentado este texto).
2 ìMinha meta foi desnudar a lÛgica interna, implac·vel, dessa economia de mercado em escala planet·ria, lÛgica que as
declaraÁıes sibilinas dos tecnocratas internacionais e os discursos demagÛgicos dos polÌticos de toda Ìndole nos impedem de
perceber [...] Meus estudos fizeram-me desembocar num verdadeiro pesadelo [...] Dezenas de milhıes de desempregados do
planeta n„o encontrar„o trabalho nunca mais, porque se transformaram desnecess·rios ‡ elite que dirige a economia mundial e que
tem o poderî (DeclaraÁıes de Viviane Forrester numa entrevista, citadas por Santuc, 1997: 238).
3 Semin·rio Desafios em polÌticas de capacitaÁ„o e emprego juvenil, promovido pelo MinistÈrio da FamÌlia (OCEP) e por outros
organismos no auditÛrio da FundaciÛn Polar, Caracas, 28 de janeiro de 1999.
4 Nossas publicaÁıes sobre a quest„o j· s„o um tanto numerosas. Na bibliografia apresentam-se algumas para informaÁ„o do
leitor.
5 Este sistema de economia d· uma resposta ‡ pergunta que, faz algum tempo, me fez um ilustre economista, Asdr˙bal Baptista: Se
nos atemos ñdizia eleñ aos Ìndices econÙmicos e ‡ deterioraÁ„o da renda que sofreram os setores populares, deverÌamos estar
vendo as pessoas morrer de fome pelas ruas de Caracas; a misÈria deveria ser espantosa. Tanto horror, n„o ocorreu. Por quÍ? De
fato o povo tem suas prÛprias formas de sobrevivÍncia baseadas em sua estrutura relacional que tem seu centro de condensaÁ„o
na famÌlia popular, que, por outro lado, possui caracterÌsticas muito prÛprias.

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Abrir, ìimpensarî e redimensionar as ciÍncias sociais
na AmÈrica Latina e Caribe
… possÌvel uma ciÍncia social n„o eurocÍntrica em nossa regi„o?

Francisco LÛpez Segrera*

O OBJETIVO ESSENCIAL deste ensaio È oferecer algumas reflexıes sobre as possibilidades de


desenvolvimento das ciÍncias sociais n„o eurocÍntricas em nossa regi„o. Para isso, resumirei o valioso legado
que recebemos das ciÍncias sociais e me referirei ‡ crescente autoctonia das ciÍncias sociais latino-americanas, a
seu legado, a seu futuro, seus principais axiomas e aos desafios que enfrenta ‡s vÈsperas do terceiro milÍnio.
A argumentaÁ„o que desenvolverei sinteticamente abaixo parte do modelo teÛrico que nos oferecem as
principais figuras das ciÍncias sÛcias (tambÈm das ciÍncias exatas e naturais) em nÌvel planet·rio e regional.
Levando em consideraÁ„o essas contribuiÁıes, tratarei expressar em que consiste, em nosso entendimento,
o principal legado das ciÍncias sociais em nÌvel mundial e regional, os desafios que enfrentamos e quais s„o
as perspectivas. Como afirma John Maddox no RelatÛrio Mundial da CiÍncia da UNESCO (1998), ìo
progresso das ciÍncias consiste, em parte, em colocar as velhas questıes de maneira mais l˙cida e
penetranteî. Refere-se ‡s perguntas sugestivas que souberam colocar muito bem Wallerstein, Prigogine,
Morin, um grupo representativo de cientistas sociais latino-americanos numa pesquisa de 1995 da Revista
Nueva Sociedad (AA.VV., 1995) e trabalhos como o de Ana MarÌa e Hebe Vesuri no mencionado RelatÛrio
Mundial da CiÍncia (UNESCO, 1998; 1999). A partir das questıes e an·lises contidas em tais textos, e de
nossa base de dados e reflexıes, elaboramos este trabalho.
T„o logo assumimos nossas funÁıes de Conselheiro Regional UNESCO de ciÍncias sociais e humanas
em marÁo de 1996, consideramos que era imprescindÌvel ñpara contribuir para a superaÁ„o da denominada
ìcrise de paradigmaî, e igualmente para impensar e ìabrirî as ciÍncias sociais na regi„o, reinventando-asñ
uma releitura de textos essenciais destas disciplinas na AmÈrica Latina e no Caribe.
Se o legado e o futuro das ciÍncias sociais hoje em nÌvel planet·rio podem ser expressos em trÍs
axiomas (legado) e seis desafios (futuro), esta releitura seguramente contribuir· de forma decisiva para a
valorizaÁ„o de aspetos essenciais da heranÁa que nos legaram as ciÍncias sociais desta regi„o e tambÈm
para encararmos os desafios especÌficos que enfrentam estas disciplinas na AmÈrica Latina e no Caribe. A
reflex„o sobre esse legado histÛrico È chave para criar novos paradigmas que nos permitam vislumbrar e
construir um futuro alternativo.
FaÁamos, em primeiro lugar, algumas reflexıes sintÈticas acerca das ciÍncias sociais em nÌvel planet·rio,
para depois nos referirmos a sua dimens„o latino-americana. … necess·rio n„o sÛ repensar as ciÍncias
sociais, mas sobretudo impens·-las. Isto È, pÙr em quest„o o legado do sÈculo dezenove e o deste sÈculo
atual nas ciÍncias sociais, ‡ maneira que Ilya Prigogine fez nas ciÍncias duras com a heranÁa da fÌsica
newtoniana e da teoria da relatividade. Esta necessidade de impens·-las obedece a que muitas de suas
suposiÁıes, em que pese seu car·ter falaz, permanecem arraigadas firmemente em nossa mentalidade.
Consideramos que impensar as ciÍncias sociais significa reconciliar o est·tico e o din‚mico, o sincrÙnico e o
diacrÙnico, analisando os sistemas histÛricos como sistemas complexos com autonomia, e limites temporais
e espaciais. Se decidimos, portanto, que a unidade de an·lise j· n„o È o Estado-naÁ„o, mas o sistema-
mundo (ou seja, que n„o podemos analisar nenhum Estado-naÁ„o dissociado do sistema-mundo) devemos
ademais acudir ‡ an·lise transdisciplinar eliminando a tradicional distinÁ„o entre o mÈtodo de an·lise
ideogr·fico prÛprio da histÛria e o nomotÈtico prÛprio da antropologia, economia, ciÍncia polÌtica e sociologia.
As ciÍncias sociais n„o devem ser nem mera recontagem dos fatos do passado (histÛria tradicional), nem
tampouco a simples busca de regularidades com uma vis„o a-histÛrica. As ciÍncias humanas como a
psicologia e a filosofia, entre outras, tambÈm devem ser levadas em conta na hora de elaborar esta sÌntese.
Penso que h· textos metodolÛgicos que devemos resgatar, como A imaginaÁ„o sociolÛgica de C. Wright
Mills, e outros que devemos relegar ao esquecimento ou reler sÛ por mera curiosidade, como O Sistema
Social de Talcott Parsons, bÌblia de uma sociologia a-histÛrica que exemplifica os defeitos da ìgrande teoriaî
e sua incapacidade para explicar os sistemas complexos. Esta ìgrande teoriaî, por um lado, e o empirismo
abstrato de estudos em detalhe, por outro, s„o os grandes perigos que ameaÁam as ciÍncias sociais de suas
origens e pelo que È necess·rio impens·-las e tambÈm abri-las (Wright Mills, 1964; Parsons, 1956). Abri-las
significa: desconstruir as barreiras disciplinares entre o ideogr·fico e o nomotÈtico; integrar as disciplinas
ideogr·ficas e nomotÈticas num mÈtodo transdisciplinar; promover o desenvolvimento de pesquisas
conjuntas, n„o apenas entre historiadores de um lado e antropÛlogos, economistas, politÛlogos e sociÛlogos
de outro, integrando equipes transdisciplinares em torno de um tema de investigaÁ„o, e alÈm do mais
95
integrar a cientistas das ciÍncias naturais e exatas em projetos conjuntos em que participem especialistas
das ciÍncias sociais e das ciÍncias duras, e onde portanto o transdisciplinar n„o se esgote na fus„o do
ideogr·fico e do nomotÈtico, e que alÈm do mais tambÈm inclua as ciÍncias duras. … isto o que nos ensinou o
legado de Marx, Durkheim e Weber.
As obras de Braudel, Wallerstein, Morin, Dos Santos, Gonz·lez Casanova, AnÌbal Quijano e Enrique Leff,
entre outros, constituem a nosso juÌzo um esforÁo not·vel neste sentido feito das ciÍncias sociais, e
igualmente a de Prigogine a partir do terreno das ciÍncias duras. Em resumo, para que as ciÍncias sociais
tenham verdadeira relev‚ncia hoje, È imprescindÌvel a reunificaÁ„o epistemolÛgica do mundo do
conhecimento, sem que isto implique a morte imediata de disciplinas com uma longa tradiÁ„o. Advogamos
pela integraÁ„o na an·lise dos fenÙmenos sociais do ideogr·fico e do nomotÈtico, e inclusive desta vis„o
com as ciÍncias duras, o que n„o quer dizer que neguemos o valioso legado das disciplinas autÙnomas, mas
sim sua menor relev‚ncia em an·lises desintegradas dos conhecimentos que podem oferecer-nos o conjunto
delas.
Antes de nos referirmos ‡ especificidade das ciÍncias sociais da AmÈrica Latina e do Caribe diante desta
problem·tica, enunciemos os principais axiomas que constituem o essencial do legado das ciÍncias sociais;
e igualmente os desafios que enfrentam as ciÍncias sociais em nÌvel mundial.
Axioma 1. Existem grupos sociais que tÍm estruturas explic·veis e racionais (Durkheim).
Axioma 2. Todos os grupos sociais contÍm subgrupos distribuÌdos hierarquicamente e em conflito uns
com os outros (Marx).
Axioma 3. Os grupos e/ou Estados mantÍm sua hegemonia e contÍm os conflitos potenciais, devido a que
os subgrupos de menor hierarquia concedem legitimidade ‡ autoridade que exercem os situados na parte
superior da hierarquia, na medida em que isto permite a sobrevivÍncia imediata e a longo prazo (Weber).
Estes axiomas constituem a heranÁa essencial da cultura sociolÛgica ocidental, da qual somos na regi„o
tribut·rios em mais de um sentido, sem que isto negue nossa especificidade. … um mÈrito de Anthony
Giddens ter sido um dos primeiros a discutir a obra de conjunto de Marx, Durkheim e Weber como trÍs
autores.
Poder-se-ia objetar que h· muitos outros autores que tambÈm legaram axiomas de relev‚ncia como,
por exemplo, Malthus (ensaio sobre a populaÁ„o), Tˆnnies (comunidade e sociedade), Sorokin
(diferenciaÁ„o das sociedades em grupos multivariados), Veblen (o Ûcio ostensivo), Mannheim
(sociologia do conhecimento, ideologia e utopia), Wright Mills (a elite do poder), Adorno (a personalidade
autorit·ria), Marcuse (a origem da civilizaÁ„o repressiva), Luk·cs (as raÌzes sociolÛgicas do assalto ‡
raz„o, sociologia da cultura), Habermas (sua teoria da aÁ„o comunicativa), sem esquecer as
contribuiÁıes dos fundadores (Comte e Spencer) e a l˙cida obra atual de Wallerstein, Giddens, Morin,
Dos Santos, Gorostiaga, Gonz·lez Casanova e Quijano, entre outros. Mas o que argumentou Wallerstein
ao resumir a ìcultura sociolÛgicaî, È que ela poderia ser sintetizada em trÍs axiomas ou proposiÁıes-
chave: a realidade dos fatos sociais (Durkheim), o car·ter perene e permanente do conflito social (Marx),
e a existÍncia de mecanismos de legitimaÁ„o que regulam e contÍm os conflitos (Weber).
Vejamos agora os desafios:
1. Seria verdade que existe uma racionalidade formal? (Freud).
2. Existe um desafio civilizatÛrio de envergadura ‡ vis„o moderna/ocidental do mundo que devamos
considerar seriamente? (Anouar Abdel-Malek).
3. Acaso a realidade de tempos sociais m˙ltiplos requer que reestruturemos nossas teorias e
metodologias? (Braudel).
4. Em que sentido os estudos sobre complexidade e o fim das certezas nos forÁam a reinventar o mÈtodo
cientÌfico? (Prigogine).
5. Podemos demonstrar que o feminismo, que o conceito de gÍnero, È uma vari·vel de presenÁa ubÌqua,
mesmo em zonas aparentemente remotas como a conceitualizaÁ„o matem·tica? (Evelyn Fox Keller,
Donna J. Haraway e Vandana Shiva).
6. Seria a modernidade uma decepÁ„o que desiludiu os cientistas sociais antes que ninguÈm? (Bruno
Latour).
A partir destes axiomas e desafios, Immanuel Wallerstein (1998d) propıe-nos as seguintes perspectivas
no sÈculo XXI para as ciÍncias sociais: a) a reunificaÁ„o epistemolÛgica das denominadas duas culturas, isto
È, a das ciÍncias e a das humanidades; b) a reunificaÁ„o organizacional das ciÍncias sociais; e c) a assunÁ„o
pelas ciÍncias sociais de um papel de centralidade (que n„o implica hegemonismos) no mundo do
conhecimento.
A obra de Immanuel Wallerstein ñdo mesmo modo que a de Prigogine (1996) no terreno da fÌsica e da
96
quÌmica, e a de Edgar Morin (1993; 1996) no que diz respeito ao pensamento complexoñ encontra-se na
vanguarda da reflex„o prospectiva sobre as ciÍncias sociais e constitui de forma mais ou menos explÌcita uma
crÌtica ao eurocentrismo e uma superaÁ„o de seus paradigmas. Os principais marcos metodolÛgicos desta
reflex„o s„o: Impensar las ciencias sociales (1998b); Abrir las ciencias sociales (1996a); ìSocial change?
Change is eternal. Nothing ever changesî (1996b); Cartas al Presidente (1994-1998) (1998a); ìPossible
Rationality: A Reply to Archerî (1998c); e, em especial, seu discurso como Presidente de ISA no XIV Congresso
Mundial de Sociologia (1998d).
Anthony Giddens (1998: 124), por sua vez, ao expressar os objetivos essenciais de seu trabalho de
pesquisa como sociÛlogo, formulou uma agenda relevante: reinterpretar o pensamento social cl·ssico,
analisar a natureza da modernidade, e estabelecer um novo enfoque metodolÛgico nas ciÍncias sociais.
Estes trÍs temas interconectados constituem a agenda de trabalho do mencionado autor.
Na ConferÍncia EuropÈia de CiÍncias Sociais (1992), o Diretor Geral da UNESCO, Federico Mayor,
formulou um conjunto de orientaÁıes de especial relev‚ncia para o trabalho de pesquisa em ciÍncias sociais
que tÍm hoje plena atualidade, e que coincidem, em grande medida, com o que foi colocado por Wallerstein
e Giddens:
1. Promover os enfoques interdisciplinares e os estudos comparados.
2. Estes enfoques devem apoiar-se em bases de dados quantitativas (estatÌsticas) e qualitativas de
excelente qualidade. Para as ciÍncias naturais a natureza e a vida s„o as fontes de suas bases de dados,
que se analisam em condiÁıes de laboratÛrio uma vez selecionadas. Para as ciÍncias sociais os dados se
tomam essencialmente de sÈries estatÌsticas, por isso devemos assegurar-nos do car·ter fidedigno de
nossas fontes e trabalhar, sempre que seja possÌvel, com fontes prim·rias.
3. … necess·rio levar a cabo transformaÁıes institucionais e organizativas que permitam o
desenvolvimento do trabalho interdisciplinar.
E concluÌa Federico Mayor dizendo que ìnenhum outro campo do conhecimento poderia contribuir t„o
decisivamente para construir uma ponte entre a reflex„o e a vis„o dos assuntos humanos, por um lado, e a
formulaÁ„o de polÌticas e a colocaÁ„o em marcha de aÁıes para melhorar a qualidade de vida dos seres
1
humanos, por outroî .
A import‚ncia da transdisciplinariedade foi tambÈm destacada por Federico Mayor em outro texto em que
afirma: ìH· quarenta anos o romancista C. P. Snow declarou que vivemos num mundo de duas culturas.
Uma delas, a cultura artÌstica, tem um amplo espaÁo nos jornais, no r·dio, na televis„o, enquanto a outra, a
cultura cientÌfica, deve contentar-se com um espaÁo extremadamente limitado. Por que essa diferenÁa?î
(Mayor e Forti, 1995: 161).
Em 1998, na Segunda ConferÍncia EuropÈia de CiÍncias Sociais, o Diretor Geral da UNESCO afirmou:
ìH· meio sÈculo, os fundadores da UNESCO recomendaram que as ciÍncias sociais ocuparassem uma
posiÁ„o importante no monitoramento da integraÁ„o social da humanidade. A dÈcada passada foi um perÌodo
importante do balanÁo no que se refere a nossas tradiÁıes herdadas do conhecimento socialî. E mais
adiante afirmava: ìDentro da UNESCO se prepararam novos terrenos para a transdisciplinariedade,
especialmente para melhorar a cooperaÁ„o entre as ciÍncias naturais e sociais, durante a 28 sess„o da
ConferÍncia Geral em 1995î (Mayor, 1998).
S„o inquestion·veis as contribuiÁıes positivas das ciÍncias (maior esperanÁa de vida, aumento da
produÁ„o agrÌcola, as possibilidades que para o conhecimento criam as novas tecnologias de informaÁ„o e
comunicaÁ„o), mas tambÈm È certa a brecha crescente entre paÌses industrializados e os eufemisticamente
chamados em vias de desenvolvimento, e o fato de que a exploraÁ„o inadequada dos logros cientÌficos
implicou a degradaÁ„o do meio ambiente e dado lugar o desequilÌbrio social e a exclus„o. Para que se possa
instaurar uma paz dur·vel, acorde com o espÌrito com o qual A AssemblÈia Geral das NaÁıes Unidas
proclamou o Ano 2000 ìAno Internacional da Cultura da Pazî, È necess·rio solucionar estas contradiÁıes.
… indispens·vel intensificar os esforÁos interdisciplinares associando os especialistas das ciÍncias exatas
e naturais aos das ciÍncias sociais, pois estas s„o chaves para suprimir as causas profundas dos conflitos:
desigualdades sociais, pobreza, ausÍncia de justiÁa e democracia, travas ‡ educaÁ„o para todos,
inadequados serviÁos de sa˙de, pen˙ria alimentar, degradaÁ„o do meio ambiente e outras. A pesquisa
cientÌfica no setor privado n„o pode substituir a pesquisa p˙blica, o que implica que o setor p˙blico outorgue
um financiamento adequado, em especial ‡quelas pesquisas cujos resultados sejam de especial utilidade
para a sociedade, o que n„o implica minimizar o importante papel da pesquisa fundamental (UNESCO, 1999;
LÛpez Segrera, 1998a).
Apesar de que estes textos nos oferecem, entre outros, uma valiosa b˙ssola, a especificidade de nossas
ciÍncias sociais tem seus prÛprios axiomas, desafios e perspectivas. … precisamente essa singularidade a
que revela uma releitura de seus principais textos. Vejamos, brevemente, em que consiste esse legado em
nossa regi„o ñassim como o papel da UNESCO em fortalecÍ-lo e contribuir para recri·-loñ para depois

97
propor-nos uma possÌvel Agenda de Trabalho e referir-nos a nossos axiomas, desafios e perspectivas
especÌficas, enxertando no tronco de nossas reflexıes autÛctones o melhor das ciÍncias sociais em nÌvel
planet·rio.
Concentrarei minhas reflexıes em sintÈticos vislumbres acerca da miss„o da UNESCO no processo de
desenvolvimento das ciÍncias sociais na regi„o e, em especial, em como contribuir para seu
redimensionamento futuro. N„o posso deixar de mencionar o papel-chave da UNESCO na fundaÁ„o e
desenvolvimento da Faculdade Latino-americana de CiÍncias Sociais (FLACSO) e sua permanente interaÁ„o
com sua Secretaria Geral e seus capÌtulos nacionais; e igualmente a duradoura e crescente colaboraÁ„o com
o Conselho Latino-americano de CiÍncias Sociais (CLACSO), com sua Secretaria Executiva e com seus
Grupos de Trabalho. Em torno da FLACSO e do CLACSO ñque sempre tiveram o apoio da UNESCOñ se
agrupou tradicionalmente o melhor das ciÍncias sociais da regi„o.
Em sÌntese, posso dizer que s„o redes como a FLACSO a o CLACSO ñe outras muitas que de forma
mais ou menos direta est„o associadas ao desenvolvimento das ciÍncias sociais nesta ·rea: ALAS, SELA,
CLAD, FIUC, PROGRAMA BOLÕVARñ e os cientistas sociais agrupados nelas em torno de universidades
e/ou grupos de trabalho, os que produziram o extraordin·rio desenvolvimento das ciÍncias sociais latino-
americanas ñvisualizadas por outros paÌses do sul como paradigmañ e os que garantem seu futuro, sem
que sua identidade se dissolva em paradigmas importados. As ciÍncias sociais latino-americanas
alcanÁaram sua plena identidade nos anos cinq¸enta, no momento em que surgiu a FLACSO, e È um mÈrito
desta rede ñe da UNESCOñ haver contribuÌdo para criaÁ„o de paradigmas autÛctones nas ciÍncias sociais
da AmÈrica Latina e do Caribe, tarefa que promove o CLACSO. Digamo-lo de uma vez, poder· haver crises
de paradigmas com relaÁ„o ‡ era da CEPAL ou da Escola da DependÍncia, mas n„o h· crises de
identidade. … clara, n„o obstante, desde os anos oitenta, a tendÍncia ‡ revers„o das valiosas tentativas de
repensar o continente de si mesmo. Esta tendÍncia, ‡ qual nos referiremos mais adiante, est· associada
aos paradigmas prÛprios do neoliberalismo e do pÛs-modernismo.
Vejamos agora, brevemente, os distintos paradigmas das ciÍncias sociais na regi„o desde fins da Segunda
2
Guerra Mundial atÈ a atualidade .
No final dos anos cinq¸enta o futuro da AmÈrica Latina era visualizado atravÈs dos paradigmas estrutural-
funcionalista, do marxismo tradicional (e mais tarde da nova vers„o que emergiu como resultado da
revoluÁ„o cubana) e do pensamento desenvolvimentista da CEPAL. Se a falha do funcionalismo foi
considerar que se poderia reproduzir na periferia o esquema cl·ssico de desenvolvimento capitalista do
centro ñtese validada pelo marxismo tradicional, que visualizava a AmÈrica Latina como uma sociedade
feudalñ e a da CEPAL pensar que sÛ com a substituiÁ„o de importaÁıes e um Estado e um setor p˙blico
fortes se obteria o desenvolvimento; a Escola da DependÍncia, em sua crÌtica ao denominado capitalismo
dependente latino-americano, n„o foi capaz de oferecer uma reflex„o com resultados vi·veis acerca de como
construir um modelo alternativo de sociedade.
O desenvolvimentismo cepalino de Ra˙l Prebisch foi considerado pelos teÛricos da dependÍncia como um
paradigma que, apesar de que colocava a necessidade de reformas estruturais modernizantes, na pr·xis era
incapaz de superar o reformismo. A crÌtica neoliberal do desenvolvimentismo centrou-se no excessivo
intervencionismo estatal, no estrangulamento da iniciativa privada e na destinaÁ„o irracional de recursos.
O defeito essencial da Teoria da DependÍncia foi n„o haver percebido que nenhum sistema pode ser
independente do sistema-histÛrico atual, da economia mundial. Esta realidade interdependente n„o implica,
contudo, validar o neoliberalismo e a suas polÌticas de ajuste estrutural ñque tendem a privilegiar a funÁ„o do
mercado em detrimento da sociedade civil e do Estadoñ como ˙nica receita v·lida, e muito menos como fim
da histÛria. Sobretudo quando hoje sabemos, apÛs mais de uma dÈcada perdida no econÙmico, que o ajuste
estrutural causou na regi„o uma profunda deterioramento das condiÁıes sociais e uma concentraÁ„o cada
vez maior da riqueza, junto com o crescimento da pobreza e da exclus„o social. Se hoje falamos de
Desenvolvimento Humano Sustent·vel (conceito enunciado pelo Bruntland Report em 1987), È porque o
outro desenvolvimento, na realidade tem sido um crescimento econÙmico perverso e desequilibrado que
atenta contra o homem e seu habitat (Cardoso, 1995; Dos Santos, 1996; 1998).
As duas influÍncias teÛricas que predominam nas ciÍncias sociais latino-americanas hoje ño
neoliberalismo e o pÛs-modernismoñ entranham certos perigos. O primeiro tende ‡ reafirmaÁ„o dogm·tica
das concepÁıes lineares de progresso universal e do imagin·rio do desenvolvimento e a segunda ‡ apoteose
do eurocentrismo. O fato de que os metarrelatos em voga no sÈculo XX tenham entrado em crise n„o quer
dizer que haja uma crise generalizada de todas as formas de pensar o futuro e muito menos deste (Lander,
1998).
Como axiomas e/ou contribuiÁıes chave das ciÍncias sociais latino-americanas e caribenhas na segunda
metade deste sÈculo podemos mencionar, entre outros, os seguintes:
1. O axioma do capitalismo colonial de Sergio Bag˙: ìO regime econÙmico luso-hisp‚nico do perÌodo
colonial n„o È feudalismo. … capitalismo colonial [...] que apresenta reiteradamente nos distintos

98
continentes certas manifestaÁıes externas que o assemelham ao feudalismo. … um regime que conserva
um perfil ambÌguo, sem alterar por isso sua inquestion·vel Ìndole capitalista. Longe de reviver o ciclo
feudal, a AmÈrica ingressou com surpreendente celeridade dentro do capitalismo comercial, j· inaugurado
na Europa [...] e contribuiu para dar a esse ciclo um vigor colossal, tornando possÌvel o surgimento do
capitalismo industrial anos mais tardeî (Bag˙, 1993: 253).
2. O axioma ìcentro-periferiaî de Ra˙l Prebisch: ìem outras palavras, enquanto os centros retiveram
integralmente o fruto do progresso tÈcnico de sua ind˙stria, os paÌses da periferia lhes entregaram uma
parte do fruto de seu prÛprio progresso tÈcnicoî (Prebisch, 1994: 238).
3. O axioma ìsubimperialismoî de Ruy Mauro Marini: ìPassou o tempo do modelo simples centro-periferia,
caracterizado pelo interc‚mbio de manufaturas por alimentos e matÈrias-primas [...] O resultado foi um
reescalonamento, uma hierarquizaÁ„o dos paÌses de forma piramidal e, por conseguinte, o surgimento de
centros medianos de acumulaÁ„o, que s„o tambÈm potÍncias capitalistas mÈdias ño que nos levou a falar
do surgimento de um subimperialismoî. Este conceito resulta equivalente ao de semiperiferia de
Wallerstein, pois se refere ao papel desempenhado por paÌses como o Brasil e os tigres asi·ticos na nova
divis„o internacional do trabalho (Marini, 1977: 21).
4. O axioma ìdependÍnciaî de TheotÙnio Dos Santos: a dependÍncia È ìuma situaÁ„o na qual a economia
de um certo grupo de paÌses est· condicionada pelo desenvolvimento e pela expans„o de outra
economia, a qual sua prÛpria economia est· atada; uma situaÁ„o histÛrica que configura a estrutura da
economia mundial de tal maneira que determinados paÌses acabam sendo favorecidos em detrimento de
outros, e que determina as possibilidades de desenvolvimento das economias internasî (Dos Santos,
1969: 184).
Os autores citados s„o especialmente emblem·ticos, e expressam amplos movimentos de reflex„o
na regi„o, dos quais s„o tribut·rios. Estes axiomas tÍm especial relev‚ncia, a nosso ver, para a
compreens„o do papel da AmÈrica Latina e do Caribe no atual sistema-mundo capitalista.
Outras contribuiÁıes relevantes das ciÍncias sociais em nossa AmÈrica, entre outras tantas, que
poderÌamos mencionar s„o:
a) Os estudos tiplÛgicos de Darcy Ribeiro sobre os povos e o processo civilizatÛrio.
b) A sociologia da fome de JosuÈ de Castro.
c) A metodologia Pesquisa-AÁ„o Participativa de Orlando Fals Borda.
d) Os conceitos de colonialidade do poder e reoriginalizaÁ„o cultural de AnÌbal Quijano.
e) A pedagogia do oprimido de Paulo Freire.
f)) As visıes crÌticas da globalizaÁ„o de Octavio Ianni, Celso Furtado, HÈctor Silva Michelena e Armando
CÛrdova, entre outros autores.
g) A crÌtica ‡ vis„o fundamentalista da integraÁ„o globalizada de Aldo Ferrer.
h) Os vislumbres sobre a Teologia da LibertaÁ„o de Gustavo GutiÈrrez, bem como de Leonardo e
Clodovil Boff.
i) A teoria da marginalidade de Gino Germani, enriquecida de um ‚ngulo diverso por contribuiÁıes a de
JosÈ Nun.
j) A vis„o da dependÍncia em Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, denominado ìenfoque da
dependÍnciaî para diferenci·-lo da ìteoria da dependÍnciaî de Marini, Dos Santos, Bambirra e Gunder
Frank.
k) As valiosas contribuiÁıes de Pablo Gonz·lez Casanova sobre o MÈxico marginal, e sua crÌtica ‡ ìnovo
ordem mundialî, sua vis„o de uma democracia n„o excludente, sua preocupaÁ„o por reconceitualizar
nossas ciÍncias sociais.
l) A valiosa reflex„o em torno da sociologia latino-americana de autores como Heinz Sonntag e Roberto
BriceÒo.
m) A l˙cida crÌtica de Edgardo Lander ao eurocentrismo e o colonialismo no pensamento latino-
americano.
n) A tese da colonialidade do poder de AnÌbal Quijano.
o) A crÌtica n„o-eurocÍntrica do eurocentrismo de Enrique Dussel, que traz implÌcita uma valiosa crÌtica ‡
construÁ„o da modernidade no pensamento pÛs-moderno.
p) O conceito de border thinking de Walter Mignolo.
q) A an·lise cultural da biodiversidade (sob o capitalismo e sob a autonomia cultural) de Arturo Escobar.
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r) A vis„o de Enrique Leff sobre as disjuntivas do desenvolvimento sustent·vel.
s) A crÌtica ao neoliberalismo latino-americano de Atilio Boron.
t) A tese de uma civilizaÁ„o geocultural alternativa emergente de Xabier Gorostiaga.
u) As teses sobre transiÁ„o, democracia, cidadania e Estado de Carlos Vilas, Emir Sader, Francisco
Delich, Manuel Antonio GarretÛn, Norbert Lechner e Guillermo OíDonnell, entre outros.
v) A tese das culturas hÌbridas de Nestor GarcÌa Canclini.
w) Os estudos da economia da coca de Hermes Tovar PinzÛn.
x) A sociologia do Caribe de Gerard Pierre Charles e Suzy Castor.
y) As contribuiÁıes teÛricas sobre a economia de plantaÁıes do Caribe de Ramiro Guerra, Eric Williams,
Manuel Moreno Fraginals e Juan PÈrez de la Riva.
z) A sociologia centro-americana de Edelberto Torres Rivas.
⁄ltima, mas n„o menos importante, È a obra de prÛceres cujas reflexıes tÍm um car·ter fundacional:
Sim„o BolÌvar, JosÈ MartÌ e JosÈ Carlos Mari·tegui.
Este incompleto invent·rio d· notÌcia indiscutÌvel da legitimidade e da autoctonia das ciÍncias sociais
latino-americanas, em que pese ‡ ameaÁa persistente e renovada dos af„s de dissolvÍ-la em paradigmas
eurocÍntricos.
Como desafios especÌficos que enfrentam as ciÍncias sociais na regi„o hoje podemos enumerar, entre
outros, os seguintes:
1. … possÌvel a integraÁ„o cultural? Ou acaso todo o discurso em torno da multiculturalidade, da
pluralidade cultural e dos problemas de homogenizaÁ„o e heterogeneidade n„o ultrapassar„o o ambiente
retÛrico-acadÍmico?
2. … possÌvel recriar um novo Estado distinto do caudilhista, populista, cepalino ou neoliberal, em que a
exclus„o social seja eliminada sem retornar ao autoritarismo e dando uma dimens„o n„o apenas polÌtica,
mas tambÈm social ‡ democracia? Ou seria que o Estado neoliberal, que legitima e viabiliza o modelo de
capitalismo dependente com rosto de democracia, È vi·vel no longo prazo?
3. … possÌvel aos Estados latino-americanos obter maiores margens de independÍncia e autonomia pela
via da integraÁ„o do subcontinente pese aos crescentes processos de globalizaÁ„o e
transnacionalizaÁ„o?
4. … possÌvel diminuir a brecha entre ìinfopobresî e ìinforicosî na regi„o democratizando o uso das novas
tecnologias de informaÁ„o e comunicaÁ„o? Ou sÛ servir„o estas para aumentar a pobreza, a
desigualdade e a exclus„o social?
5. … possÌvel a educaÁ„o para todos, o desenvolvimento sustent·vel, o novo car·ter das cidades, uma
nova Ètica e a construÁ„o de uma cultura de paz? Ou seria uma utopia inalcanÁ·vel construir naÁıes
democr·ticas, multiculturais e multi-raciais com nÌveis mÌnimos de desigualdade?
O futuro das ciÍncias sociais na regi„o depender·, em grande medida, das polÌticas e aÁıes que se
adotem com relaÁ„o a estes desafios.
Os problemas chave que preocupam a Wallerstein sobre as ciÍncias sociais em nÌvel mundial,
paradoxalmente, apesar de nosso ìatrasoî com relaÁ„o ao padr„o ocidental de desenvolvimento, n„o
tÍm entre nÛs a mesma dimens„o. Afortunadamente n„o tivemos um Talcott Parsons, ainda que
tenhamos tido alguns epÌgonos j· esquecidos. Podemos afirmar que o processo de impensar as ciÍncias
sociais teve inÌcio na Nossa AmÈrica (a do Rio Bravo ‡ PatagÙnia) nos anos cinq¸enta com a CEPAL e
que, pese ‡ ìcrise de paradigmasî dos anos oitentas, n„o se deteve. Temos n„o sÛ axiomas b·sicos,
mas uma sÈrie de conceitos, como apontou Pablo Gonz·lez Casanova ao falar das ciÍncias sociais na
regi„o. Por outro lado, apesar da perspectiva eurocentrista/anglo-sax„ com que se elaboraram os planos
de estudo das carreiras de ciÍncias sociais na regi„o, os melhores textos destas disciplinas tendem a
integrar o ideogr·fico e o nomotÈtico na an·lise. Isto se deve, por um lado, a que a heranÁa espanhola,
apesar de que nos legou o que em alguns casos È retÛrica vazia, tambÈm nos ofereceu uma rica
heranÁa ensaÌstica que funde o ideogr·fico e o nomotÈtico; e, por outro, a que a superespecializaÁ„o
n„o tem sido uma atitude cultural entre nÛs por diversas razıes. Por estas causas, entre outras, a
exortaÁ„o para impensar e abrir as ciÍncias sociais j· possui um longo trecho percorrido entre nÛs, sem
que por isso nos possamos dar o luxo arrogante da autocomplacÍncia que destrÛi a criatividade. … por
todos conhecida a influÍncia das ciÍncias sociais de nossa regi„o, n„o apenas nos paÌses do sul, mas
tambÈm em alguns dos principais cientistas sociais dos paÌses desenvolvidos do Ocidente e de outras
latitudes.

100
Com relaÁ„o ‡s perspectivas das ciÍncias sociais na AmÈrica Latina e no Caribe, deve-se reiterar que
muito avanÁamos na reunificaÁ„o epistemolÛgica das duas culturas, a das ciÍncias e a das humanidades.
Isto n„o quer dizer que possamos eliminar da agenda totalmente a necessidade de impensar e abrir as
ciÍncias sociais em nossa regi„o. Mas a quest„o È, sobretudo na Nossa AmÈrica, a de avanÁar na
reunificaÁ„o organizativa das ciÍncias sociais e que estas reassumam seu papel de centralidade no mundo
do conhecimento, debilitado nos anos oitenta e na primeira metade da dÈcada de noventa em
conseq¸Íncia da ìcrise de paradigmasî. Para isto È fundamental pensar a regi„o a partir de si mesma, sem
perigosos provincianismos; o melhor antÌdoto contra isto È o imprescindÌvel domÌnio, ou ao menos a
leitura, de trÍs ou quatro idiomas chave alÈm do espanhol e um estado de arte renovado
permanentemente em novas tecnologias da comunicaÁ„o e da informaÁ„o ñe sem assimilar de forma
acrÌtica agendas e paradigmas de outras latitudes.
… importante estabelecer um conjunto de prioridades compartilhadas por todos, que dÍem resposta
‡s urgÍncias da Nossa AmÈrica, de sua sociedade civil e de suas classes polÌticas, para
coordenadamente estabelecer uma nova agenda das pesquisas em ciÍncias sociais em nossa regi„o.
Se n„o somos capazes unidos de formular essa agenda, as ciÍncias sociais da regi„o perder„o uma
identidade conquistada a sangue e fogo, e presenciaremos n„o uma ìcrise de paradigmasî, mas a
recolonizaÁ„o de nossas ciÍncias sociais por paradigmas e agendas fixadas em funÁ„o dos interesses
do Norte desenvolvido.
Antes de fazer algumas sugestıes com relaÁ„o a tal Agenda, referir-me-ei brevemente a certos aspectos
de nosso trabalho como Conselheiro Regional de CiÍncias Sociais.
Nossa aÁ„o como Conselheiro Regional de CiÍncias Sociais para a AmÈrica Latina e o Caribe no
biÍnio 1996/97 e 98/99 se orientou pelo Plano a Prazo MÈdio (C4) e pelo acordo entre os estados
membros da UNESCO em suas ConferÍncias Gerais de 1995 e 1997 (C5). Em especial trata-se de
adequar ‡ regi„o as metas priorit·rias para a aÁ„o da C˙pula Mundial sobre Desenvolvimento Social
(Copenhague, marÁo de 1995): fomento da capacidade endÛgena; desenvolvimento das zonas rurais;
acompanhamento do Programa 21, para alcanÁar um desenvolvimento humano sustent·vel utilizando
racionalmente os recursos e preservando o meio-ambiente; ampliar as possibilidades de acesso ‡
informaÁ„o e ‡ comunicaÁ„o; e melhorar a capacidade endÛgena para formular polÌticas sociais, para
prever, gerir e avaliar as transformaÁıes sociais. Em resumo, nossa aÁ„o priorizou e prioriza:
1. A luta contra a pobreza conforme a DeclaraÁ„o do Diretor Geral da UNESCO de 15 de janeiro de 1996.
2. A preservaÁ„o da governabilidade, a democracia, os direitos humanos, e a toler‚ncia, por meio da
reforma do Estado e da gest„o p˙blica. Este objetivo, a construÁ„o de uma cultura de paz e da
justiÁa para a paz, orienta nossa aÁ„o para com o Estado e a sociedade civil, em especial apoiando
redes como o Conselho Latino-americano de CiÍncias Sociais (CLACSO) e a Faculdade Latino-
americana de CiÍncias Sociais (FLACSO). TambÈm nossos vÌnculos com a AssociaÁ„o Latino-
americana de Sociologia (ALAS), com a Secretaria Permanente do Sistema EconÙmico Latino-
americano (SELA), o Centro Latino-americano da AdministraÁ„o para o Desenvolvimento (CLAD) e o
Programa BolÌvar para o desenvolvimento das Pequenas e MÈdias Empresas, revestem-se de
especial import‚ncia; e igualmente com o Projeto UNESCO denominado DEMOS, que fez
importantes contribuiÁıes ao estudo da governabilidade na regi„o. De especial import‚ncia s„o
nossos vÌnculos com redes universit·rias como a UDUAL, a AIU, a OUI e a FIUC, entre outras.
Viemos executando e/ou preparando projetos com estas redes, e igualmente com: o Conselho
Internacional de CiÍncias Sociais da UNESCO (agenda para o milÍnio); CLACSO (semin·rios e
reflexıes para integrar as polÌticas econÙmicas e sociais); FLACSO (anu·rio de ciÍncias sociais,
prÍmio para jovens pesquisadores em ciÍncias sociais, erradicaÁ„o da pobreza, antologia de ciÍncias
sociais); SELA, CLAD, CEPAL (polÌticas econÙmicas e sociais, reforma do estado, gest„o p˙blica,
acompanhamento da C˙pula de Desenvolvimento Social); e com outras muitas redes e instituiÁıes de
car·ter regional ou inter-regional.
3. Desenvolver o ensino das ciÍncias sociais ñem especial dos estudos prospectivosñ atravÈs das
C·tedras UNESCO e de outras formas diversas. Promover a difus„o e a utilizaÁ„o das novas tecnologias,
da telem·tica, da Internet e das redes novas e tradicionais. Esta tarefa difusora tem como objetivo a
transferÍncia e o compartilhamento do conhecimento em ciÍncias sociais e seu sistem·tico
aggiornamento.
4. A Unidade Regional de CiÍncias Sociais, no conceito de uma Oficina Regional integrada como È
cada vez mais a UNESCO-Caracas, tem tambÈm uma importante participaÁ„o na rede UNITWIN de
C·tedras UNESCO na regi„o e em atividades prÛprias da educaÁ„o superior.
5. A UNESCO, cada vez mais, constrÛi passarelas da teoria para a aÁ„o. Com esse objetivo pÙs em marcha em
1994 um Programa Internacional em CiÍncias Sociais intitulado ìGest„o das transformaÁıes sociaisî (MOST).
Neste Programa identificaram-se inicialmente trÍs ·reas priorit·rias de pesquisa ñconfirmadas na Primeira
ConferÍncia Regional em Buenos Aires em marÁo de 1995ñ que s„o:
101
- O multiculturalismo e a multietnicidade na AmÈrica Latina e no Caribe.
- As cidades como cen·rio da transformaÁ„o social.
- As transformaÁıes econÙmicas, tecnolÛgicas e do meio ambiente em nÌvel local e regional.
Contudo, antes do MOST e durante o desenvolvimento deste programa, a UNESCO tinha respondido e
continua dando resposta ao pedido dos estados membros para assistÍncia em atividades de ciÍncias sociais.
Eis aqui alguns exemplos:
- NegociaÁıes de paz em El Salvador.
- EducaÁ„o para a democracia na ColÙmbia.
- Planejamento social na ColÙmbia, BolÌvia, Equador, Venezuela, tentando responder a perguntas como
as seguintes: que espÈcie de polÌticas podem proporcionar as mudanÁas sociais desejadas? Como podem
ser avaliadas estas polÌticas?
Com relaÁ„o ‡ proposta de uma nova agenda para o desenvolvimento das ciÍncias sociais na regi„o, devo
assinalar que em abril de 1997, a Unidade de CiÍncias Sociais sob minha direÁ„o coletou critÈrios da FLACSO, do
CLACSO e de diversos especialistas ñque em outros trabalhos expus ìin extensoîñ sobre os seguinte temas:
produÁ„o de conhecimento e de ensino de ciÍncias sociais; ciÍncias sociais e polÌticas de desenvolvimento social;
por uma cultura de paz; e cooperaÁ„o para o desenvolvimento social.
Se tivesse que resumir a Agenda das ciÍncias sociais na regi„o, eu o faria com trÍs propostas essenciais
que pudessem contribuir para ìimpensarî e ìabrirî ainda mais nossas ciÍncias sociais na regi„o e, sobretudo,
para atingir uma nova sÌntese teÛrico-metodolÛgica:
1. Organizar debates entre os cientistas sociais ideogr·ficos (historiadores) e nomotÈticos de nossa
regi„o, de que tambÈm participem representantes latino-americanos e caribenhos das ciÍncias
exatas e igualmente figuras de primeiro nÌvel de outras latitudes.
2. Fomentar a transdisciplinariedade mediante projetos de pesquisa em torno de problemas de suma
import‚ncia atual.
3. Revalorizar as grandes teorias explicativas evitando a ultra-especializaÁ„o.
Outra proposta que gostaria de fazer, neste caso referida ‡ UNESCO de forma mais especÌfica, È a
seguinte: que os fundos que destina a UNESCO para as ciÍncias exatas e naturais e ciÍncias humanas e
sociais por conta do programa ordin·rio e do programa de participaÁ„o se outorguem e direcionem de
maneira priorit·ria para aqueles projetos de Ìndole transdisciplinar apresentados pelos estados membros da
OrganizaÁ„o.
Gostaria de trazer a tÌtulo de exemplo o Projeto j· mencionado mais acima ìAgenda do MilÍnioî,
desenvolvido conjuntamente pela UNESCO, pelo Conselho Internacional de CiÍncias Sociais da UNESCO
(ISSC), e o Conjunto Universit·rio C‚ndido Mendes (EDUCAM). Nas palavras inaugurais do Semin·rio, que
teve como resultado o livro ReprÈsentation et complexitÈ, Jerome BindÈ, Diretor da Divis„o de An·lise e
Prospectiva da UNESCO e eminente futurÛlogo afirmou: ìComo abrir esta reuni„o sem saudar alguns dos
melhores pesquisadores e especialistas que nos mostram sua amizade participando deste encontro: os
professores Edgar Morin (sociÛlogo da contemporaneidade e iniciador do pensamento complexo), Ilya
Prigogine (PrÍmio Nobel de QuÌmica), Mihajlo Mesarovic (futurÛlogo), Arjun Appadurai (antropÛlogo), Helena
Knyzeva (fÌsica), Zaki Laidi (politÛlogo), Michel Maffesoli (sociÛlogo), Cristoph Wolf (antropÛlogo), Chih-Ming
Shih (arquiteto), Francisco LÛpez Segrera (historiador), Helio Jaguaribe (economista), Eduardo Portella
(filÛsofo, ensaÌsta), e todos aqueles que n„o posso citar esta manh„ mas que est„o presentes em meu
pensamentoî. Este grupo transdisciplinar, integrado por pesquisadores de distintas especialidades e
nacionalidades, constitui uma mostra interessante de reflex„o conjunta em torno de um tema atual ñ
RepresentaÁ„o e Complexidadeñ de distintos ‚ngulos e com uma perspectiva n„o eurocÍntrica (Mendes e
RodrÌguez Larreta, 1997).
Outro exemplo not·vel constitui a coleÁ„o El Mundo Actual: SituaciÛn y Alternativas ñidealizada e
conduzida por Pablo Gonz·lez Casanova em sua qualidade de Diretor do Centro de Investigaciones
Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidadesñ que difunde estudos sobre a globalidade e as caracterÌsticas
que nela mostram os paÌses e regiıes do mundo. A coleÁ„o publicou an·lises de car·ter transdisciplinar e
prospectivo sobre a sociedade, a economia, a polÌtica e a cultura, dando especial import‚ncia ‡ perspectiva
do Sul do mundo e formulando alternativas que pudessem ser aplicadas para superar, entre outros, os
problemas de desigualdade, pobreza, marginalizaÁ„o e exclus„o, e igualmente fornecer instrumentos para a
construÁ„o da paz e da democracia. Entre os pesquisadores com trabalhos publicados nesta coleÁ„o se
encontram: Immanuel Wallerstein, Samir Amin, Lin Chun, George Aseneiro, Ralph Miliband, Xabier
Gorostiaga, Arturo Escobar, FranÁois Houtart e Francisco LÛpez Segrera, entre outros autores (ver Gonz·lez
Casanova, 1995; 1998).

102
GostarÌamos, igualmente, de mencionar como outra mostra de esforÁo transdisciplinar o livro Los retos de
la globalizaciÛn, publicado em 1998 pela Unidade Regional da UNESCO de CiÍncias Sociais da AmÈrica
Latina e do Caribe (LÛpez Segrera, 1998c). Essa obra re˙ne um conjunto de autores que analisa o impacto
da globalizaÁ„o nos paÌses do Sul de ‚ngulos tais como: os novos paradigmas das ciÍncias sociais; paz,
democracia e ìnova ordem mundialî; dependÍncia e desenvolvimento; e cultura e conhecimento num mundo
virtual. Entre os autores que forneceram contribuiÁıes originais a esse livro se encontram: sociÛlogos (Dos
Santos, Marini); filÛsofos (Enrique Dussel); economistas (Samir Amin, Gunder Frank); politÛlogos (James
Petras, Mario TelÛ, Jorge Nieto, Anaisabel Prera); historiadores (Wallerstein); internacionalistas (Celso
Amorin); e especialistas em estudos globais e culturais (Bohadana, Dreifuss, Jes˙s GarcÌa-Ruiz, Angel G.
Quintero), entre outros tantos pesquisadores valiosos.
H· diversos exemplos na UNESCO de esforÁo transdisciplinar alÈm dos apontados. Os distintos relatÛrios
mundiais tendem, cada vez mais, a uma Ûtica transdisciplinar e igualmente ocorre, entre outros, com os livros
do Diretor Geral ñLa Nueva P·gina (Mayor, 1994), Ciencia y Poder (Mayor e Forti, 1995)ñ e de Albert Sasson,
cujo livro Biotechnology in Perspective (1998: vii), teve como objetivo ìdisseminar as reflexiones sobre as
implicaÁıes econÙmicas, sociais e culturais das inovaÁıes biotecnolÛgicas para os paÌses em
desenvolvimentoî.
O papel essencial dos cientistas sociais consiste em iluminar aqueles que tomam as decisıes com
relaÁ„o ‡s opÁıes possÌveis diante das alternativas histÛricas. Quando um sistema histÛrico vive sua etapa
de desenvolvimento normal, as opÁıes e alternativas para os atores sociais È bastante limitado. No entanto,
quando um sistema histÛrico se encontra em fase de desintegraÁ„o, o n˙mero de opÁıes possÌveis se amplia
e as possibilidades de mudanÁa s„o infinitamente maiores. Estou de acordo com Immanuel Wallerstein:
estamos num momento de desintegraÁ„o de um sistema histÛrico, que durar· de 20 a 50 anos. Se isto
ocorre num nÌvel planet·rio, ainda mais dr·stico ser· este processo na Nossa AmÈrica, onde as
desigualdades do sistema nunca foram absorvidas pelo Estado de Bem-estar social. O estado secular de
mal-estar em nossa regi„o oferece-nos uma oportunidade histÛrica ˙nica no fim deste milÍnio, para formular
com clareza cen·rios e alternativas que permitam construir um futuro alternativo sem destruiÁ„o ecolÛgica,
sem abismais desigualdades sociais, e que ponha fim ‡s guerras como via de soluÁ„o dos conflitos mediante
uma cultura de paz. Nesse novo sistema histÛrico desaparecer„o brechas tais como: passado/presente, o
que separou a histÛria (ideogr·fica) de disciplinas nomotÈticas como a economia, a ciÍncia polÌtica, e a
sociologia; civilizados/outros, antinomia que tem sido o fundamento da vis„o eurocentrista; e
mercado/estado/sociedade civil. Na realidade estes limites est„o hoje numa crise terminal. As disciplinas
tradicionais das ciÍncias sociais est„o deixando de representar campos de estudo restritos. A complexidade
atual sÛ pode apreender-se mediante a transdisciplinariedade. No ponto de saturaÁ„o alcanÁado por este
sistema histÛrico, somente novas alternativas poder„o desbloquear um modelo de acumulaÁ„o e de
sociedade esgotado. Cabe a nÛs imagin·-las e comeÁar a execut·-las.
Prigogine, em La fin des certitudes (1996: 224), revela-nos o novo recurso e discurso do mÈtodo na forma
de resumo: ìO que hoje emerge È, portanto, uma descriÁ„o mÈdia, situada entre duas representaÁıes
alienantes, a de um mundo determinista e aquela de um mundo arbitr·rio submetido unicamente ao acaso.
As leis fÌsicas correspondem a uma nova forma de inteligibilidade que expressam representaÁıes
probabilÌsticas irredutÌveis. Elas est„o associadas ‡ instabilidade e, seja no nÌvel microscÛpico ou
macroscÛpico, elas descrevem os acontecimentos possÌveis, sem reduzi-los a conseq¸Íncias dedutÌveis e
previsÌveis prÛprias das leis deterministasî.
O que existe, portanto, n„o È o desenvolvimento de uma idÈia universal rumo ao futuro, que se identifica
com o progresso, o que existe realmente s„o bifurcaÁıes que permitem construir v·rios futuros, quer dizer,
os ìfuturÌveisî ou futuros possÌveis.
A flecha do tempo ñafirma Wallersteinñ È inevit·vel e imprevisÌvel, sempre temos diante de nÛs
bifurcaÁıes cujo resultado È indeterminado. Mais ainda, apesar de haver uma ˙nica flecha do tempo,
existem m˙ltiplos tempos. N„o podemos permitir-nos ignorar nem a longa duraÁ„o estrutural nem
tampouco os ciclos do sistema histÛrico que estamos analisando. O tempo È muito mais que cronometria
e cronologia. O tempo È tambÈm duraÁ„o, ciclos e disjunÁ„o.
O fim das certezas de que nos fala Prigogine, significa que o que realmente existe s„o certezas parciais
que n„o prevalecem eternamente. Devemos formular nossas previsıes e hipÛteses tendo em mente esta
permanente incerteza.
Os cientistas sociais tÍm sido vistos tradicionalmente como parentes pobres pelas ciÍncias exatas e pelas
humanidades. Na AmÈrica Latina isto piorou ainda mais durante o auge neoliberal, em que todo conhecimento
que n„o tenha uso pr·tico imediato fica desvalorizado. Isto n„o deve levar-nos a ser indulgentes com nÛs
mesmos, e sim a reconhecer que muita retÛrica vazia se esconde atr·s de supostas grandes teorias
explicativas. Entretanto, a situaÁ„o est· mudando rapidamente em nÌvel mundial e regional. Os estudos sobre a
complexidade nas ciÍncias fÌsicas, de um lado, colocaram em quest„o a suposta exatid„o das ciÍncias duras e,
de outro, consideraram os sistemas sociais como os mais complexos de todos os sistemas. O auge dos

103
estudos culturais em humanidades enfatizou as raÌzes sociais do cultural. O resultado, portanto, dos estudos
sobre a complexidade e os estudos culturais foi aproximar as ciÍncias naturais e as humanidades do terreno
das ciÍncias sociais.
O conhecimento, diante das incertezas, implica tomar decisıes, decidir-se por opÁıes diversas e agir. O
conhecimento, unido aos valores e ‡ Ètica, e apesar da incerteza, permite-nos tomar as melhores decisıes ñ
no que È imprescindÌvel a colaboraÁ„o entre as diversos ramos do saberñ para construir um futuro
alternativo. A nova ciÍncia deve ser como um holograma, onde cada uma das partes representa o todo e
vice-versa. Num momento em que as ciÍncias sociais tÍm recuperado sua centralidade em nÌvel mundial e
regional ña crescente desigualdade fez com que os governos da regi„o e outras inst‚ncias solicitem cada
vez mais a participaÁ„o dos cientistas sociaisñ n„o podemos ser neutros face ‡ destruiÁ„o ecolÛgica, ‡
desigualdade e ao autoritarismo. Devemos optar pela construÁ„o de um futuro vivÌvel n„o regido pela lÛgica
dos mercados financeiros e sim por uma de uma cultura de paz.
Existem imensos obst·culos, tendo em conta, por um lado, que ìa pesquisa cientÌfica na AmÈrica Latina e
no Caribe apareceu no sÈculo XXî; e, por outro, que ìa falta de vis„o estratÈgica de que sofre a sociedade
latino-americana traduz-se em perdas imensas e absurdas de um bom n˙mero de seus melhores
pesquisadores, que emigram para os paÌses industrializados onde seu trabalho È apreciado e valorizado.
Estima-se que entre 40 e 60 % dos pesquisadores argentinos, colombianos, chilenos, e peruanos vivem e
trabalham fora de seu paÌsî (Cetto e Vesuri, 1998). Mesmo que esta an·lise se refira essencialmente ‡s
ciÍncias exatas e naturais, a situaÁ„o n„o È distinta nas ciÍncias sociais. Isto traz a necessidade de polÌticas
que invertam estas tendÍncias, e que invertam tambÈm a correlaÁ„o do investimento destinado a Pesquisa-
Desenvolvimento, sumamente alta nos paÌses desenvolvidos em comparaÁ„o com os paÌses do Sul.
Em resumo, as vanguardas do pensamento cientÌfico hoje, tanto nas ciÍncias sociais como nas naturais,
parecem estar de acordo quanto ‡ import‚ncia da transdisciplinariedade. … necess·rio eliminar as fronteiras
rÌgidas e artificiais n„o somente entre disciplinas prÛprias das ciÍncias sociais, histÛria, economia, direito...,
ou das ciÍncias duras, fÌsica, matem·tica, biotecnologia..., mas mesmo entre ciÍncias sociais e humanas e
as exatas e naturais. Isto n„o implica, em absoluto, renunciar ‡ especializaÁ„o prÛpria de cada disciplina.
Como j· apontamos, a obra de autores como Ilya Prigogine, Immanuel Wallerstein, Edgar Morin, Pablo
Gonz·lez Casanova, TheotÙnio Dos Santos, Enrique Leff, AnÌbal Quijano e Xabier Gorostiaga, entre outros,
ensina-nos o caminho. Para alcanÁ·-lo, È necess·rio constituir programas de estudos de car·ter
transdisciplinar em torno de um tema e problema de pesquisa dado e com a participaÁ„o de professores
convidados de outros paÌses. Seria necess·rio estabelecer estes programas de pesquisa de car·ter
interdepartamental com centros de excelÍncia da regi„o (cooperaÁ„o Sul-Sul) e de fora dela, que estejam no
estado da arte das disciplinas com que se aborda o tema de pesquisa dado.
Prigogine (1995) afirmou que ìa ciÍncia permite-nos ter a esperanÁa de ver aparecer um dia uma
civilizaÁ„o em que a violÍncia e a desigualdade social n„o sejam uma necessidadeî.
Walter Benjamin afirmou: ìa essÍncia de uma coisa aparece em sua verdade quando esta È ameaÁada de
desaparecerî (citado por BindÈ, 1997). Depende de nÛs transformar ìa crise de paradigmasî das ciÍncias
sociais na regi„o, (num momento de desintegraÁ„o do sistema-mundo em que se ampliam nossas opÁıes)
em conjuntura propÌcia para imaginar e construir um novo futuro, a partir de aggiornar as ciÍncias sociais
latino-americanas e caribenhas, elaborar sua nova agenda e, deste modo, abrir as ciÍncias sociais,
reestrutur·-las e construir seu futuro e o da regi„o conjuntamente.

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Notas

* Diretor da UNESCO-Caracas/IESALC e Conselheiro Regional de CiÍncias Sociais, Caracas.


1 Ver Federico Mayor (1992). Reproduzido novamente no N{ 157 de setembro de 1998 da mesma, no n˙mero dedicado ao
cinq¸enten·rio dela, p·gina 458.
2 Ver Francisco LÛpez Segrera (1998a; 1998b); Heinz R. Sonntag (1988; 1989); Roberto BriceÒo LeÛn e Heinz R. Sonntag (1998),

105
este livro contÈm monografias de: AnÌbal Quijano, Hebe Vesuri, Raquel Sosa, Francisco LÛpez Segrera, Paulo CÈsar Alves,
Rigoberto Lanz, Edgardo Lander, Orlando Albornoz, Emir Sader, Marcia Rivera e Pablo Gonz·lez Casanova; Glenn Sankatsing
(1990) e S. Villena (1998).

106
Colonialidade do poder, eurocentrismo e AmÈrica
Latina1

AnÌbal Quijano*

A globalizaÁ„o em curso È, em primeiro lugar, a culminaÁ„o de um processo que comeÁou com a constituiÁ„o
da AmÈrica e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padr„o de poder mundial. Um dos
eixos fundamentais desse padr„o de poder È a classificaÁ„o social da populaÁ„o mundial de acordo com a idÈia
de raÁa, uma construÁ„o mental que expressa a experiÍncia b·sica da dominaÁ„o colonial e que desde ent„o
permeia as dimensıes mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade especÌfica, o
eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e car·ter colonial, mas provou ser mais duradouro e est·vel que o
colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, conseq¸entemente, num elemento de colonialidade no
padr„o de poder hoje hegemÙnico. No texto abaixo, o propÛsito principal È o de colocar algumas das questıes
teoricamente necess·rias sobre as implicaÁıes dessa colonialidade do poder com relaÁ„o ‡ histÛria da AmÈrica
2
Latina .

I. A AmÈrica e o novo padr„o de poder mundial


A AmÈrica constitui-se como o primeiro espaÁo/tempo de um padr„o de poder de vocaÁ„o mundial e,
desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da modernidade. Dois processos histÛricos
convergiram e se associaram na produÁ„o do referido espaÁo/tempo e estabeleceram-se como os dois
eixos fundamentais do novo padr„o de poder. Por um lado, a codificaÁ„o das diferenÁas entre
conquistadores e conquistados na idÈia de raÁa, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biolÛgica
que situava a uns em situaÁ„o natural de inferioridade em relaÁ„o a outros. Essa idÈia foi assumida pelos
conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relaÁıes de dominaÁ„o que a
conquista exigia. Nessas bases, conseq¸entemente, foi classificada a populaÁ„o da AmÈrica, e mais tarde
do mundo, nesse novo padr„o de poder. Por outro lado, a articulaÁ„o de todas as formas histÛricas de
3
controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial .

RaÁa, uma categoria mental da modernidade


4
A idÈia de raÁa, em seu sentido moderno, n„o tem histÛria conhecida antes da AmÈrica . Talvez se tenha
originado como referÍncia ‡s diferenÁas fenotÌpicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa
È que desde muito cedo foi construÌda como referÍncia a supostas estruturas biolÛgicas diferenciais entre
esses grupos.
A formaÁ„o de relaÁıes sociais fundadas nessa idÈia, produziu na AmÈrica identidades sociais
historicamente novas: Ìndios, negros e mestiÁos, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e
portuguÍs, e mais tarde europeu, que atÈ ent„o indicavam apenas procedÍncia geogr·fica ou paÌs de
origem, desde ent„o adquiriram tambÈm, em relaÁ„o ‡s novas identidades, uma conotaÁ„o racial. E na
medida em que as relaÁıes sociais que se estavam configurando eram relaÁıes de dominaÁ„o, tais
identidades foram associadas ‡s hierarquias, lugares e papÈis sociais correspondentes, com
constitutivas delas, e, conseq¸entemente, ao padr„o de dominaÁ„o que se impunha. Em outras
palavras, raÁa e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificaÁ„o social b·sica
da populaÁ„o.
Com o tempo, os colonizadores codificaram como cor os traÁos fenotÌpicos dos colonizados e a
assumiram como a caracterÌstica emblem·tica da categoria racial. Essa codificaÁ„o foi inicialmente
estabelecida, provavelmente, na ·rea brit‚nico-americana. Os negros eram ali n„o apenas os explorados
mais importantes, j· que a parte principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo, a raÁa
colonizada mais importante, j· que os Ìndios n„o formavam parte dessa sociedade colonial. Em
5
conseq¸Íncia, os dominantes chamaram a si mesmos de brancos .
Na AmÈrica, a idÈia de raÁa foi uma maneira de outorgar legitimidade ‡s relaÁıes de dominaÁ„o
impostas pela conquista. A posterior constituiÁ„o da Europa como nova id-entidade depois da AmÈrica e a
expans„o do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram ‡ elaboraÁ„o da perspectiva
eurocÍntrica do conhecimento e com ela ‡ elaboraÁ„o teÛrica da idÈia de raÁa como naturalizaÁ„o dessas
relaÁıes coloniais de dominaÁ„o entre europeus e n„o-europeus. Historicamente, isso significou uma nova
maneira de legitimar as j· antigas idÈias e pr·ticas de relaÁıes de superioridade/inferioridade entre
dominantes e dominados. Desde ent„o demonstrou ser o mais eficaz e dur·vel instrumento de dominaÁ„o
107
social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o
intersexual ou de gÍnero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situaÁ„o natural de
inferioridade, e conseq¸entemente tambÈm seus traÁos fenotÌpicos, bem como suas descobertas mentais
6
e culturais . Desse modo, raÁa converteu-se no primeiro critÈrio fundamental para a distribuiÁ„o da
populaÁ„o mundial nos nÌveis, lugares e papÈis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras
palavras, no modo b·sico de classificaÁ„o social universal da populaÁ„o mundial.

O Capitalismo: a nova estrutura de controle do trabalho


Por outro lado, no processo de constituiÁ„o histÛrica da AmÈrica, todas as formas de controle e de
exploraÁ„o do trabalho e de controle da produÁ„o-apropriaÁ„o-distribuiÁ„o de produtos foram articuladas em
torno da relaÁ„o capital-sal·rio (de agora em diante capital) e do mercado mundial. IncluÌram-se a
escravid„o, a servid„o, a pequena produÁ„o mercantil, a reciprocidade e o sal·rio. Em tal contexto, cada
umas dessas formas de controle do trabalho n„o era uma mera extens„o de seus antecedentes histÛricos.
Todas eram histÛrica e sociologicamente novas. Em primeiro lugar, porque foram deliberadamente
estabelecidas e organizadas para produzir mercadorias para o mercado mundial. Em segundo lugar, porque
n„o existiam apenas de maneira simult‚nea no mesmo espaÁo/tempo, mas todas e cada uma articuladas
com o capital e com seu mercado, e por esse meio entre si. Configuraram assim um novo padr„o global de
controle do trabalho, por sua vez um novo elemento fundamental de um novo padr„o de poder, do qual eram
conjunta e individualmente dependentes histÛrico-estruturalmente. Isto È, n„o apenas por seu lugar e funÁ„o
como partes subordinadas de uma totalidade, mas tambÈm porque sem perder suas respectivas
caracterÌsticas e sem prejuÌzo das descontinuidades de suas relaÁıes com a ordem conjunta e consigo
mesmas, seu movimento histÛrico dependia desse momento em diante de seu pertencimento ao padr„o
global de poder. Em terceiro lugar, e como conseq¸Íncia, para preencher as novas funÁıes cada uma delas
desenvolveu novos traÁos e novas configuraÁıes histÛrico-estruturais.
Na medida em que aquela estrutura de controle do trabalho, de recursos e de produtos consistia na
articulaÁ„o conjunta de todas as respectivas formas historicamente conhecidas, estabelecia-se, pela primeira
vez na histÛria conhecida, um padr„o global de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. E
enquanto se constituÌa em torno de e em funÁ„o do capital, seu car·ter de conjunto tambÈm se estabelecia
com caracterÌstica capitalista. Desse modo, estabelecia-se uma nova, original e singular estrutura de
relaÁıes de produÁ„o na experiÍncia histÛrica do mundo: o capitalismo mundial.

Colonialidade do poder e capitalismo mundial


As novas identidades histÛricas produzidas sobre a idÈia de raÁa foram associadas ‡ natureza dos papÈis
e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raÁa e divis„o do
trabalho, foram estruturalmente associados e reforÁando-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois
era necessariamente dependente do outro para existir ou para transformar-se.
Desse modo, impÙs-se uma sistem·tica divis„o racial do trabalho. Na ·rea hisp‚nica, a Coroa de
Castela logo decidiu pelo fim da escravid„o dos Ìndios, para impedir seu total extermÌnio. Assim, foram
confinados na estrutura da servid„o. Aos que viviam em suas comunidades, foi-lhes permitida a pr·tica de
sua antiga reciprocidade ñisto È, o interc‚mbio de forÁa de trabalho e de trabalho sem mercadoñ como
uma forma de reproduzir sua forÁa de trabalho como servos. Em alguns casos, a nobreza indÌgena, uma
reduzida minoria, foi eximida da servid„o e recebeu um tratamento especial, devido a seus papÈis como
intermedi·ria com a raÁa dominante, e lhe foi tambÈm permitido participar de alguns dos ofÌcios nos quais
eram empregados os espanhÛis que n„o pertenciam ‡ nobreza. Por outro lado, os negros foram reduzidos
‡ escravid„o. Os espanhÛis e os portugueses, como raÁa dominante, podiam receber sal·rios, ser
comerciantes independentes, artes„os independentes ou agricultores independentes, em suma,
produtores independentes de mercadorias. N„o obstante, apenas os nobres podiam ocupar os mÈdios e
altos postos da administraÁ„o colonial, civil ou militar.
Desde o sÈculo XVIII, na AmÈrica hisp‚nica muito dos mestiÁos de espanhÛis ou mulheres Ìndias, j· um
estrato social extenso e importante na sociedade colonial, comeÁaram a ocupar os mesmos ofÌcios e
atividades que exerciam os ibÈricos que n„o eram nobres. Em menor medida ou sobretudo em atividades de
serviÁo ou que requeriam talentos ou habilidades especiais (m˙sica, por exemplo), tambÈm os mais
ìabrancadosî entre os mestiÁos de mulheres negras e ibÈricos (espanhÛis ou portugueses), mas demoraram
a ver legitimados seus novos papÈis, j· que suas m„es eram escravas. A distribuiÁ„o racista do trabalho no
interior do capitalismo colonial/moderno manteve-se ao longo de todo o perÌodo colonial.
No curso da expans„o mundial da dominaÁ„o colonial por parte da mesma raÁa dominante ños brancos
(ou do sÈculo XVIII em diante, os europeus)ñ foi imposto o mesmo critÈrio de classificaÁ„o social a toda a
populaÁ„o mundial em escala global. Conseq¸entemente, novas identidades histÛricas e sociais foram
produzidas: amarelos e azeitonados (ou oliv·ceos) somaram-se a brancos, Ìndios, negros e mestiÁos. Essa
108
distribuiÁ„o racista de novas identidades sociais foi combinada, tal como havia sido t„o exitosamente logrado
na AmÈrica, com uma distribuiÁ„o racista do trabalho e das formas de exploraÁ„o do capitalismo colonial.
Isso se expressou, sobretudo, numa quase exclusiva associaÁ„o da branquitude social com o sal·rio e
logicamente com os postos de mando da administraÁ„o colonial.
Assim, cada forma de controle do trabalho esteve articulada com uma raÁa particular. Conseq¸entemente,
o controle de uma forma especÌfica de trabalho podia ser ao mesmo tempo um controle de um grupo
especÌfico de gente dominada. Uma nova tecnologia de dominaÁ„o/exploraÁ„o, neste caso raÁa/trabalho,
articulou-se de maneira que aparecesse como naturalmente associada, o que, atÈ o momento, tem sido
excepcionalmente bem-sucedido.

Colonialidade e eurocentramento do capitalismo mundial


A privilegiada posiÁ„o ganhada com a AmÈrica pelo controle do ouro, da prata e de outras mercadorias
produzidas por meio do trabalho gratuito de Ìndios, negros e mestiÁos, e sua vantajosa localizaÁ„o na
vertente do Atl‚ntico por onde, necessariamente, tinha de ser realizado o tr·fico dessas mercadorias para o
mercado mundial, outorgou aos brancos uma vantagem decisiva para disputar o controle do comÈrcio
mundial. A progressiva monetarizaÁ„o do mercado mundial que os metais preciosos da AmÈrica estimulavam
e permitiam, bem como o controle de t„o abundantes recursos, possibilitou aos brancos o controle da vasta
rede prÈ-existente de interc‚mbio que incluÌa sobretudo China, Õndia, Ceil„o, Egito, SÌria, os futuros Orientes
MÈdio e Extremo. Isso tambÈm permitiu-lhes concentrar o controle do capital comercial, do trabalho e dos
recursos de produÁ„o no conjunto do mercado mundial. E tudo isso, foi, posteriormente, reforÁado e
consolidado atravÈs da expans„o e da dominaÁ„o colonial branca sobre as diversas populaÁıes mundiais.
Como se sabe, ou controle do tr·fico comercial mundial pelos grupos dominantes, novos ou n„o, nas
regiıes do Atl‚ntico onde tinham suas sedes, impulsionou um novo processo de urbanizaÁ„o nesses lugares,
a expans„o do tr·fico comercial entre eles, e desse modo a formaÁ„o de um mercado regional
crescentemente integrado e monetarizado graÁas ao fluxo de metais preciosos procedentes da AmÈrica.
Uma regi„o historicamente nova constituÌa-se como uma nova id-entidade geocultural: Europa, mais
7
especificamente Europa Ocidental . Essa nova id-entidade geocultural emergia como a sede central do
controle do mercado mundial. No mesmo movimento histÛrico produzia-se tambÈm o deslocamento de
hegemonia da costa do Mediterr‚neo e da costa ibÈrica para as do Atl‚ntico Norte-ocidental.
Essa condiÁ„o de sede central do novo mercado mundial n„o permite explicar por si mesma, ou por si sÛ,
por que a Europa se transformou tambÈm, atÈ o sÈculo XIX e virtualmente atÈ a crise mundial ocorrida em
meados de 1870, na sede central do processo de mercantilizaÁ„o da forÁa de trabalho, ou seja, do
desenvolvimento da relaÁ„o capital-sal·rio como forma especÌfica de controle do trabalho, de seus recursos
e de seus produtos. Em quanto isso, todas as demais regiıes e populaÁıes incorporadas ao novo mercado
mundial e colonizadas ou em curso de colonizaÁ„o sob domÌnio europeu permaneciam basicamente sob
relaÁıes n„o-salariais de trabalho, ainda que desde cedo esse trabalho, seus recursos e seus produtos se
tenham articulado numa cadeia de transferÍncia de valor e de benefÌcios cujo controle cabia ‡ Europa
Ocidental. Nas regiıes n„o-europÈias, o trabalho assalariado concentrava-se quase exclusivamente entre os
brancos.
N„o h· nada na relaÁ„o social mesma do capital, ou nos mecanismos do mercado mundial, em geral no
capitalismo, que implique a necessidade histÛrica da concentraÁ„o, n„o sÛ, mas sobretudo na Europa, do
trabalho assalariado e depois, precisamente sobre essa base, da concentraÁ„o da produÁ„o industrial
capitalista durante mais de dois sÈculos. Teria sido perfeitamente factÌvel, como o demonstra o fato de que
assim de fato ocorreu apÛs 1870, o controle europeu-ocidental do trabalho assalariado de qualquer setor da
populaÁ„o mundial. E provavelmente mais benÈfico para os europeus ocidentais. A explicaÁ„o deve ser,
pois, buscada em outra parte da histÛria. O fato È que j· desde o comeÁo da AmÈrica, os futuros europeus
associaram o trabalho n„o pago ou n„o-assalariado com as raÁas dominadas, porque eram raÁas inferiores.
O vasto genocÌdio dos Ìndios nas primeiras dÈcadas da colonizaÁ„o n„o foi causado principalmente pela
violÍncia da conquista, nem pelas enfermidades que os conquistadores trouxeram em seu corpo, mas porque
tais Ìndios foram usados como m„o de obra descart·vel, forÁados a trabalhar atÈ morrer. A eliminaÁ„o dessa
pr·tica colonial n„o termina, de fato, sen„o com a derrota dos encomendeiros, em meados do sÈculo XVI. A
reorganizaÁ„o polÌtica do colonialismo ibÈrico que se seguiu implicou uma nova polÌtica de reorganizaÁ„o
populacional dos Ìndios e de suas relaÁıes com os colonizadores. Mas nem por isso os Ìndios foram daÌ em
diante trabalhadores livres e assalariados. DaÌ em diante foram adscritos ‡ servid„o n„o remunerada. A
servid„o dos Ìndios na AmÈrica n„o pode ser, por outro lado, simplesmente equiparada ‡ servid„o no
feudalismo europeu, j· que n„o incluÌa a suposta proteÁ„o de nenhum senhor feudal, nem sempre, nem
necessariamente, a posse de uma porÁ„o de terra para cultivar, no lugar de sal·rio. Sobretudo antes da
IndependÍncia, a reproduÁ„o da forÁa de trabalho do servo Ìndio se fazia nas comunidades. Mas mesmo
mais de cem anos depois da IndependÍncia, uma parte ampla da servid„o indÌgena era obrigada a reproduzir
8
sua forÁa de trabalho por sua prÛpria conta . E a outra forma de trabalho n„o-assalariado, o n„o pago

109
simplesmente, o trabalho escravo, foi restrita, exclusivamente, ‡ populaÁ„o trazida da futura Africa e
chamada de negra.
A classificaÁ„o racial da populaÁ„o e a velha associaÁ„o das novas identidades raciais dos colonizados
com as formas de controle n„o pago, n„o assalariado, do trabalho, desenvolveu entre os europeus ou
brancos a especÌfica percepÁ„o de que o trabalho pago era privilÈgio dos brancos. A inferioridade racial dos
colonizados implicava que n„o eram dignos do pagamento de sal·rio. Estavam naturalmente obrigados a
trabalhar em benefÌcio de seus amos. N„o È muito difÌcil encontrar, ainda hoje, essa mesma atitude entre os
terratenentes brancos de qualquer lugar do mundo. E o menor sal·rio das raÁas inferiores pelo mesmo
trabalho dos brancos, nos atuais centros capitalistas, n„o poderia ser, tampouco, explicado sem recorrer-se ‡
classificaÁ„o social racista da populaÁ„o do mundo. Em outras palavras, separadamente da colonialidade do
poder capitalista mundial.
O controle do trabalho no novo padr„o de poder mundial constituiu-se, assim, articulando todas as formas
histÛricas de controle do trabalho em torno da relaÁ„o capital-trabalho assalariado, e desse modo sob o domÌnio
desta. Mas tal articulaÁ„o foi constitutivamente colonial, pois se baseou, primeiro, na adscriÁ„o de todas as formas
de trabalho n„o remunerado ‡s raÁas colonizadas, originalmente Ìndios, negros e de modo mais complexo, os
mestiÁos, na AmÈrica e mais tarde ‡s demais raÁas colonizadas no resto do mundo, oliv·ceos e amarelos. E,
segundo, na adscriÁ„o do trabalho pago, assalariado, ‡ raÁa colonizadora, os brancos.
Essa colonialidade do controle do trabalho determinou a distribuiÁ„o geogr·fica de cada uma das formas
integradas no capitalismo mundial. Em outras palavras, determinou a geografia social do capitalismo: o
capital, na relaÁ„o social de controle do trabalho assalariado, era o eixo em torno do qual se articulavam
todas as demais formas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Isso o tornava
dominante sobre todas elas e dava car·ter capitalista ao conjunto de tal estrutura de controle do trabalho.
Mas ao mesmo tempo, essa relaÁ„o social especÌfica foi geograficamente concentrada na Europa,
sobretudo, e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismo. E nessa medida e dessa
maneira, a Europa e o europeu se constituÌram no centro do mundo capitalista.
Quando Ra˙l Prebisch criou a cÈlebre imagem de ìCentro-Periferiaî (The American Economic Review,
1959; ECLA, 1960; Baer, 1962), para descrever a configuraÁ„o mundial do capitalismo depois da Segunda
Guerra Mundial, apontou, sabendo-o ou sem saber, o n˙cleo principal do car·ter histÛrico do padr„o de
controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, que formava parte central do novo padr„o
mundial de poder constituÌdo a partir da AmÈrica. O capitalismo mundial foi, desde o inÌcio, colonial/moderno
e eurocentrado. Sem relaÁ„o clara com essas especÌficas caracterÌsticas histÛricas do capitalismo, o prÛprio
conceito de ìmoderno sistema-mundoî desenvolvido, principalmente, por Immanuel Wallerstein (1974-1989;
Hopkins e Wallerstein, 1982) a partir de Prebisch e do conceito marxiano de capitalismo mundial, n„o poderia
ser apropriada e plenamente entendido.

Novo padr„o de poder mundial e nova inter-subjetividade mundial


J· em sua condiÁ„o de centro do capitalismo mundial, a Europa n„o somente tinha o controle do mercado
mundial, mas pÙde impor seu domÌnio colonial sobre todas as regiıes e populaÁıes do planeta,
incorporando-as ao ìsistema-mundoî que assim se constituÌa, e a seu padr„o especÌfico de poder. Para tais
regiıes e populaÁıes, isso implicou um processo de re-identificaÁ„o histÛrica, pois da Europa foram-lhes
atribuÌdas novas identidades geoculturais. Desse modo, depois da AmÈrica e da Europa, foram estabelecidas
¡frica, ¡sia e eventualmente Oceania. Na produÁ„o dessas novas identidades, a colonialidade do novo
padr„o de poder foi, sem d˙vida, uma das mais ativas determinaÁıes. Mas as formas e o nÌvel de
desenvolvimento polÌtico e cultural, mais especificamente intelectual, em cada caso, desempenharam
tambÈm um papel de primeiro plano. Sem esses fatores, a categoria Oriente n„o teria sido elaborada como a
˙nica com a dignidade suficiente para ser o Outro, ainda que por definiÁ„o inferior, de Ocidente, sem que
9
alguma equivalente fosse criada para Ìndios ou negros . Mas esta mesma omiss„o pıe a nu que esses
outros fatores atuaram tambÈm dentro do padr„o racista de classificaÁ„o social universal da populaÁ„o
mundial.
A incorporaÁ„o de t„o diversas e heterogÍneas histÛrias culturais a um ˙nico mundo dominado pela
Europa, significou para esse mundo uma configuraÁ„o cultural, intelectual, em suma intersubjetiva,
equivalente ‡ articulaÁ„o de todas as formas de controle do trabalho em torno do capital, para estabelecer
o capitalismo mundial. Com efeito, todas as experiÍncias, histÛrias, recursos e produtos culturais
terminaram tambÈm articulados numa sÛ ordem cultural global em torno da hegemonia europÈia ou
ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padr„o de poder mundial, a Europa tambÈm
concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e
em especial do conhecimento, da produÁ„o do conhecimento.
No processo que levou a esse resultado, os colonizadores exerceram diversas operaÁıes que d„o
conta das condiÁıes que levaram ‡ configuraÁ„o de um novo universo de relaÁıes intersubjetivas de
110
dominaÁ„o entre a Europa e o europeu e as demais regiıes e populaÁıes do mundo, ‡s quais estavam
sendo atribuÌdas, no mesmo processo, novas identidades geoculturais. Em primeiro lugar, expropriaram as
populaÁıes colonizadas ñentre seus descobrimentos culturaisñ aqueles que resultavam mais aptos para o
desenvolvimento do capitalismo e em benefÌcio do centro europeu. Em segundo lugar, reprimiram tanto
como puderam, ou seja, em vari·veis medidas de acordo com os casos, as formas de produÁ„o de
conhecimento dos colonizados, seus padrıes de produÁ„o de sentidos, seu universo simbÛlico, seus
padrıes de express„o e de objetivaÁ„o da subjetividade. A repress„o neste campo foi reconhecidamente
mais violenta, profunda e duradoura entre os Ìndios da AmÈrica ibÈrica, a que condenaram a ser uma
subcultura camponesa, iletrada, despojando-os de sua heranÁa intelectual objetivada. Algo equivalente
ocorreu na ¡frica. Sem d˙vida muito menor foi a repress„o no caso da ¡sia, onde portanto uma parte
importante da histÛria e da heranÁa intelectual, escrita, pÙde ser preservada. E foi isso, precisamente, o
que deu origem ‡ categoria de Oriente. Em terceiro lugar, forÁaram ñtambÈm em medidas vari·veis em
cada casoñ os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse ˙til para
a reproduÁ„o da dominaÁ„o, seja no campo da atividade material, tecnolÛgica, como da subjetiva,
especialmente religiosa. … este o caso da religiosidade judaico-crist„. Todo esse acidentado processo
implicou no longo prazo uma colonizaÁ„o das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar
sentido aos resultados da experiÍncia material ou intersubjetiva, do imagin·rio, do universo de relaÁıes
10
intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura .
Enfim, o Íxito da Europa Ocidental em transformar-se no centro do moderno sistema-mundo, segundo a
apta formulaÁ„o de Wallerstein, desenvolveu nos europeus um traÁo comum a todos os dominadores
coloniais e imperiais da histÛria, o etnocentrismo. Mas no caso europeu esse traÁo tinha um fundamento e
uma justificaÁ„o peculiar: a classificaÁ„o racial da populaÁ„o do mundo depois da AmÈrica. A associaÁ„o
entre ambos os fenÙmenos, o etnocentrismo colonial e a classificaÁ„o racial universal, ajudam a explicar por
que os europeus foram levados a sentir-se n„o sÛ superiores a todos os demais povos do mundo, mas, alÈm
disso, naturalmente superiores. Essa inst‚ncia histÛrica expressou-se numa operaÁ„o mental de fundamental
import‚ncia para todo o padr„o de poder mundial, sobretudo com respeito ‡s relaÁıes intersubjetivas que lhe
s„o hegemÙnicas e em especial de sua perspectiva de conhecimento: os europeus geraram uma nova
perspectiva temporal da histÛria e re-situaram os povos colonizados, bem como a suas respectivas histÛrias
e culturas, no passado de uma trajetÛria histÛrica cuja culminaÁ„o era a Europa (Mignolo, 1995; Blaut, 1993;
Lander, 1997). PorÈm, notavelmente, n„o numa mesma linha de continuidade com os europeus, mas em
outra categoria naturalmente diferente. Os povos colonizados eram raÁas inferiores e ñportantoñ anteriores
aos europeus.
De acordo com essa perspectiva, a modernidade e a racionalidade foram imaginadas como
experiÍncias e produtos exclusivamente europeus. Desse ponto de vista, as relaÁıes intersubjetivas e
culturais entre a Europa, ou, melhor dizendo, a Europa Ocidental, e o restante do mundo, foram
codificadas num jogo inteiro de novas categorias: Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, m·gico/mÌtico-
cientÌfico, irracional-racional, tradicional-moderno. Em suma, Europa e n„o-Europa. Mesmo assim, a ˙nica
categoria com a devida honra de ser reconhecida como o Outro da Europa ou ìOcidenteî, foi ìOrienteî.
N„o os ìÌndiosî da AmÈrica, tampouco os ìnegrosî da ¡frica. Estes eran simplesmente ìprimitivosî. Sob
11
essa codificaÁ„o das relaÁıes entre europeu/n„o-europeu, raÁa È, sem d˙vida, a categoria b·sica . Essa
perspectiva bin·ria, dualista, de conhecimento, peculiar ao eurocentrismo, impÙs-se como mundialmente
hegemÙnica no mesmo fluxo da expans„o do domÌnio colonial da Europa sobre o mundo. N„o seria
possÌvel explicar de outro modo, satisfatoriamente em todo caso, a elaboraÁ„o do eurocentrismo como
perspectiva hegemÙnica de conhecimento, da vers„o eurocÍntrica da modernidade e seus dois principais
mitos fundacionais: um, a idÈia-imagem da histÛria da civilizaÁ„o humana como uma trajetÛria que parte de
um estado de natureza e culmina na Europa. E dois, outorgar sentido ‡s diferenÁas entre Europa e n„o-
Europa como diferenÁas de natureza (racial) e n„o de histÛria do poder. Ambos os mitos podem ser
reconhecidos, inequivocamente, no fundamento do evolucionismo e do dualismo, dois dos elementos
nucleares do eurocentrismo.

A quest„o da modernidade
N„o me proponho aqui a entrar numa discuss„o detida da quest„o da modernidade e de sua vers„o
eurocÍntrica. Dediquei anteriormente outros estudos a esse tema e voltarei a ele depois. Em particular, n„o
prolongarei este trabalho com uma discuss„o acerca do debate modernidade-pÛs-modernidade e sua vasta
bibliografia. Mas È pertinente, para os fins deste trabalho, em especial da parte seguinte, insistir em algumas
questıes (Quijano, 1988b; 1992a; 1998a).
O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminaÁ„o de uma trajetÛria civilizatÛria desde
um estado de natureza, levou-os tambÈm a pensar-se como os modernos da humanidade e de sua histÛria,
isto È, como o novo e ao mesmo tempo o mais avanÁado da espÈcie. Mas j· que ao mesmo tempo atribuÌam
ao restante da espÈcie o pertencimento a uma categoria, por natureza, inferior e por isso anterior, isto È, o
passado no processo da espÈcie, os europeus imaginaram tambÈm serem n„o apenas os portadores
111
exclusivos de tal modernidade, mas igualmente seus exclusivos criadores e protagonistas. O not·vel disso
n„o È que os europeus se imaginaram e pensaram a si mesmos e ao restante da espÈcie desse modo ñisso
n„o È um privilÈgio dos europeusñ mas o fato de que foram capazes de difundir e de estabelecer essa
perspectiva histÛrica como hegemÙnica dentro do novo universo intersubjetivo do padr„o mundial do poder.
Desde logo, a resistÍncia intelectual a essa perspectiva histÛrica n„o tardou em emergir. Na AmÈrica Latina,
desde fins do sÈculo XIX, mas se afirmou sobretudo durante o sÈculo XX e em especial depois da Segunda
Guerra Mundial, vinculada com o debate sobre a quest„o do desenvolvimento-subdesenvolvimento. Como esse
12
debate foi dominado durante um bom tempo pela denominada teoria da modernizaÁ„o , em suas vertentes
opostas, para sustentar que a modernizaÁ„o n„o implica necessariamente a ocidentalizaÁ„o das sociedades e
das culturas n„o-europÈias, um dos argumentos mais usados foi o de que a modernidade È um fenÙmeno de
todas as culturas, n„o apenas da europÈia ou ocidental.
Se o conceito de modernidade refere-se ˙nica ou fundamentalmente ‡s idÈias de novidade, do avanÁado,
do racional-cientÌfico, laico, secular, que s„o as idÈias e experiÍncias normalmente associadas a esse
conceito, n„o cabe d˙vida de que È necess·rio admitir que È um fenÙmeno possÌvel em todas as culturas e
em todas as Èpocas histÛricas. Com todas as suas respectivas particularidades e diferenÁas, todas as
chamadas altas culturas (China, Õndia, Egito, GrÈcia, Maia-Asteca, Tauantinsuio) anteriores ao atual sistema-
mundo, mostram inequivocamente os sinais dessa modernidade, incluÌdo o racional cientÌfico, a
secularizaÁ„o do pensamento, etc. Na verdade, a estas alturas da pesquisa histÛrica seria quase ridÌculo
atribuir ‡s altas culturas n„o-europÈias uma mentalidade mÌtico-m·gica como traÁo definidor, por exemplo,
em oposiÁ„o ‡ racionalidade e ‡ ciÍncia como caracterÌsticas da Europa, pois alÈm dos possÌveis ou melhor
conjecturados conte˙dos simbÛlicos, as cidades, os templos e pal·cios, as pir‚mides, ou as cidades
monumentais, seja Machu Pichu ou Boro Budur, as irrigaÁıes, as grandes vias de transporte, as tecnologias
metalÌferas, agropecu·rias, as matem·ticas, os calend·rios, a escritura, a filosofia, as histÛrias, as armas e
as guerras, mostram o desenvolvimento cientÌfico e tecnolÛgico em cada uma de tais altas culturas, desde
muito antes da formaÁ„o da Europa como nova id-entidade. O mais que realmente se pode dizer È que, no
atual perÌodo, foi-se mais longe no desenvolvimento cientÌfico-tecnolÛgico e se realizaram maiores
descobrimentos e realizaÁıes, com o papel hegemÙnico da Europa e, em geral, do Ocidente.
Os defensores da patente europÈia da modernidade costumam apelar para histÛria cultural do antigo
mundo heleno-rom‚nico e ao mundo do Mediterr‚neo antes da AmÈrica, para legitimar sua defesa da
exclusividade dessa patente. O que È curioso desse argumento È que escamoteia, primeiro, o fato de que a
parte realmente avanÁada desse mundo do Mediterr‚neo, antes das AmÈrica, ·rea por ·rea dessa
modernidade, era isl‚mico-judaica. Segundo, que foi dentro desse mundo que se manteve a heranÁa cultural
greco-romana, as cidades, o comÈrcio, a agricultura comercial, a mineraÁ„o, os tÍxteis, a filosofia, a histÛria,
quando a futura Europa Ocidental estava dominada pelo feudalismo e seu obscurantismo cultural. Terceiro
que, muito provavelmente, a mercantilizaÁ„o da forÁa de trabalho, a relaÁ„o capital-sal·rio, emergiu,
precisamente, nessa ·rea e foi em seu desenvolvimento que se expandiu posteriormente em direÁ„o ao
norte da futura Europa. Quarto, que somente a partir da derrota do Isl„o e do posterior deslocamento da
hegemonia sobre o mercado mundial para o centro-norte da futura Europa, graÁas ‡ AmÈrica, comeÁa
tambÈm a deslocar-se ao centro da atividade cultural a essa nova regi„o. Por isso, a nova perspectiva
geogr·fica da histÛria e da cultura, que ali È elaborada e que se impıe como mundialmente hegemÙnica,
implica, obviamente, uma nova geografia do poder. A prÛpria idÈia de Ocidente-Oriente È tardia e parte da
hegemonia brit‚nica. Ou ainda È necess·rio recordar que o meridiano de Greenwich atravessa Londres e
13
n„o Sevilha ou Veneza? .
Nesse sentido, a pretens„o eurocÍntrica de ser a exclusiva produtora e protagonista da modernidade, e
de que toda modernizaÁ„o de populaÁıes n„o-europÈias È, portanto, uma europeizaÁ„o, È uma pretens„o
etnocentrista e alÈm de tudo provinciana. PorÈm, por outro lado, se se admite que o conceito de
modernidade se refere somente ‡ racionalidade, ‡ ciÍncia, ‡ tecnologia, etc., a quest„o que estarÌamos
colocando ‡ experiÍncia histÛrica n„o seria diferente da proposta pelo etnocentrismo europeu, o debate
consistiria apenas na disputa pela originalidade e pela exclusividade da propriedade do fenÙmeno assim
chamado modernidade, e, em conseq¸Íncia, movendo-se no mesmo terreno e com a mesma perspectiva do
eurocentrismo.
H·, contudo, um conjunto de elementos demonstr·veis que apontam para um conceito de modernidade
diferente, que d· conta de um processo histÛrico especÌfico ao atual sistema-mundo. Nesse conceito n„o
est„o, obviamente, ausentes suas referencias e seus traÁos anteriores. PorÈm mais enquanto formam parte
de um universo de relaÁıes sociais, materiais e intersubjetivas, cuja quest„o central È a libertaÁ„o humana
como interesse histÛrico da sociedade e tambÈm, em conseq¸Íncia, seu campo central de conflito. Nos
limites deste trabalho, restringir-me-ei somente a adiantar, de modo breve e esquem·tico, algumas
14
proposiÁıes .
Em primeiro lugar, o atual padr„o de poder mundial È o primeiro efetivamente global da histÛria
conhecida. Em v·rios sentidos especÌficos. Um, È o primeiro em que cada um dos ‚mbitos da existÍncia
social est„o articuladas todas as formas historicamente conhecidas de controle das relaÁıes sociais
112
correspondentes, configurando em cada ·rea um ˙nica estrutura com relaÁıes sistem·ticas entre seus
componentes e do mesmo modo em seu conjunto. Dois, È o primeiro em que cada uma dessas estruturas
de cada ‚mbito de existÍncia social, est· sob a hegemonia de uma instituiÁ„o produzida dentro do
processo de formaÁ„o e desenvolvimento deste mesmo padr„o de poder. Assim, no controle do trabalho,
de seus recursos e de seus produtos, est· a empresa capitalista; no controle do sexo, de seus recursos e
produtos, a famÌlia burguesa; no controle da autoridade, seus recursos e produtos, o Estado-naÁ„o; no
15
controle da intersubjetividade, o eurocentrismo . TrÍs, cada uma dessas instituiÁıes existe em relaÁıes
de interdependÍncia com cada uma das outras. Por isso o padr„o de poder est· configurado como um
16
sistema . Quatro, finalmente, este padr„o de poder mundial È o primeiro que cobre a totalidade da
populaÁ„o do planeta.
Nesse sentido especÌfico, a humanidade atual em seu conjunto constitui o primeiro sistema-mundo global
historicamente conhecido, n„o somente um mundo como o que talvez tenham sido o chinÍs, o hindu, o
egÌpcio, o helÍnico-romano, o maia-asteca ou o tauantinsuiano. Nenhum desses possÌveis mundos teve nada
em comum exceto um dominador colonial/imperial e, apesar de que assim se propıe da vis„o colonial
eurocÍntrica, n„o se sabe se todos os povos incorporados a um daqueles mundos tiveram tambÈm em
comum uma perspectiva b·sica a respeito das relaÁıes entre o humano e o restante do universo. Os
dominadores coloniais de cada um desses mundos n„o tinham as condiÁıes, nem provavelmente o
interesse, de homogeneizar as formas b·sicas de existÍncia social de todas as populaÁıes de seus
domÌnios. Por outro lado, o atual, o que comeÁou a formar-se com a AmÈrica, tem em comum trÍs elementos
centrais que afetam a vida cotidiana da totalidade da populaÁ„o mundial: a colonialidade do poder, o
capitalismo e o eurocentrismo. Claro que este padr„o de poder, nem nenhum outro, pode implicar que a
heterogeneidade histÛrico-estrutural tenha sido erradicada dentro de seus domÌnios. O que sua globalidade
implica È um piso b·sico de pr·ticas sociais comuns para todo o mundo, e uma esfera intersubjetiva que
existe e atua como esfera central de orientaÁ„o valorativa do conjunto. Por isso as instituiÁıes hegemÙnicas
de cada ‚mbito de existÍncia social, s„o universais para a populaÁ„o do mundo como modelos
intersubjetivos. Assim, o Estado-naÁ„o, a famÌlia burguesa, a empresa, a racionalidade eurocÍntrica.
Portanto, seja o que for a mentira contida no termo ìmodernidadeî, hoje envolve o conjunto da populaÁ„o
mundial e toda sua histÛria dos ˙ltimos 500 anos, e todos os mundos ou ex-mundos articulados no padr„o
global de poder, e cada um de seus segmentos diferenciados ou diferenci·veis, pois se constituiu junto com,
como parte da redefiniÁ„o ou reconstituiÁ„o histÛrica de cada um deles por sua incorporaÁ„o ao novo e
comum padr„o de poder mundial. Portanto, tambÈm como articulaÁ„o de muitas racionalidades. Em outras
palavras, j· que se trata de uma histÛria nova e diferente, com experiÍncias especÌficas, as questıes que
esta histÛria permite e obriga a abrir n„o podem ser indagadas, muito menos contestadas, com o conceito
eurocÍntrico de modernidade. Pela mesma raz„o, dizer que È um fenÙmeno puramente europeu ou que
ocorre em todas as culturas, teria hoje um impossÌvel sentido. Trata-se de algo novo e diferente, especÌfico
deste padr„o de poder mundial. Se h· que preservar o nome, deve tratar-se, de qualquer modo, de outra
modernidade.
A quest„o central que nos interessa aqui È a seguinte: o que È o realmente novo com relaÁ„o ‡ modernidade?
N„o somente o que desenvolve e redefine experiÍncias, tendÍncias e processos de outros mundos, mas o que foi
produzido na histÛria prÛpria do atual padr„o de poder mundial?
Dussel (1995) propÙs a categoria de transmodernidade como alternativa para a pretens„o eurocÍntrica de
que a Europa È a produtora original da modernidade. Segundo essa proposta, a constituiÁ„o do ego
individual diferenciado È a novidade que ocorre com a AmÈrica e È a marca da modernidade, mas tem lugar
n„o sÛ na Europa mas em todo o mundo que se configura a partir da AmÈrica. Dussel acerta no alvo ao
refutar um dos mitos prediletos do eurocentrismo. Mas È controverso que o ego individual diferenciado seja
um fenÙmeno exclusivamente pertencente ao perÌodo iniciado com a AmÈrica.
H·, claro, uma relaÁ„o umbilical entre os processos histÛricos que se geram a partir da AmÈrica e as
mudanÁas da subjetividade ou, melhor dito, da intersubjetividade de todos os povos que se v„o integrando no
novo padr„o de poder mundial. E essas transformaÁıes levam ‡ constituiÁ„o de uma nova subjetividade, n„o
sÛ individual, mas coletiva, de uma nova intersubjetividade. Esse È, portanto, um fenÙmeno novo que
ingressa na histÛria com a AmÈrica e nesse sentido faz parte da modernidade. Mas quaisquer que fossem,
essas mudanÁas n„o se constituem da subjetividade individual, nem coletiva, do mundo prÈ-existente,
voltada para si mesma, ou, para repetir a velha imagem, essas mudanÁas n„o nascem como Minerva, da
cabeÁa de Zeus, mas s„o a express„o subjetiva ou intersubjetiva do que os povos do mundo est„o fazendo
nesse momento.
Dessa perspectiva, È necess·rio admitir que a AmÈrica e suas conseq¸Íncias imediatas no mercado
mundial e na formaÁ„o de um novo padr„o de poder mundial, s„o uma mudanÁa histÛrica verdadeiramente
enorme e que n„o afeta somente a Europa, mas o conjunto do mundo. N„o se trata de mudanÁas dentro do
mundo conhecido, que n„o alteram sen„o alguns de seus traÁos. Trata-se da mudanÁa do mundo como tal.
Este È, sem d˙vida, o elemento b·sico da nova subjetividade: a percepÁ„o da mudanÁa histÛrica. … esse
elemento o que desencadeia o processo de constituiÁ„o de uma nova perspectiva sobre o tempo e sobre a
113
histÛria. A percepÁ„o da mudanÁa leva ‡ idÈia do futuro, j· que È o ˙nico territÛrio do tempo no qual podem
ocorrer as mudanÁas. O futuro È um territÛrio temporal aberto. O tempo pode ser novo, pois n„o È somente a
extens„o do passado. E, dessa maneira, a histÛria pode ser percebida j· n„o sÛ como algo que ocorre, seja
como algo natural ou produzido por decisıes divinas ou misteriosas como o destino, mas como algo que
pode ser produzido pela aÁ„o das pessoas, por seus c·lculos, suas intenÁıes, suas decisıes, portanto como
algo que pode ser projetado e, conseq¸entemente, ter sentido (Quijano, 1988b).
Com a AmÈrica inicia-se, assim, todo um universo de novas relaÁıes materiais e intersubjetivas. …
pertinente, por tudo isso, admitir que o conceito de modernidade n„o se refere somente ao que ocorre com a
subjetividade, n„o obstante toda a tremenda import‚ncia desse processo, seja pela emergÍncia do ego
individual, ou de um novo universo de relaÁıes intersubjetivas entre os indivÌduos e entre os povos
integrados ou que se integram no novo sistema-mundo e seu especÌfico padr„o de poder mundial. O conceito
de modernidade d· conta, do mesmo modo, das alteraÁıes na dimens„o material das relaÁıes sociais. Quer
dizer, as mudanÁas ocorrem em todos os ‚mbitos da existÍncia social dos povos, e portanto de seus
membros individuais, tanto na dimens„o material como na dimens„o subjetiva dessas relaÁıes. E como se
trata de processos que se iniciam com a constituiÁ„o da AmÈrica, de um novo padr„o de poder mundial e da
integraÁ„o dos povos de todo o mundo nesse processo, de todo um complexo sistema-mundo, È tambÈm
imprescindÌvel admitir que se trata de um perÌodo histÛrico inteiro. Em outras palavras, a partir da AmÈrica
um novo espaÁo/tempo se constitui, material e subjetivamente: essa È a mentira do conceito de
modernidade.
N„o obstante, foi decisivo para o processo de modernidade que o centro hegemÙnico desse mundo
estivesse localizado na zona centro-norte da Europa Ocidental. Isso ajuda a explicar por que o centro de
elaboraÁ„o intelectual desse processo se localizar· tambÈm ali, e por que essa vers„o foi a que ganhou a
hegemonia mundial. Ajuda igualmente a explicar por que a colonialidade do poder desempenhar· um papel
de primeira ordem nessa elaboraÁ„o eurocÍntrica da modernidade. Este ˙ltimo n„o È muito difÌcil de
perceber se se leva em consideraÁ„o o que j· foi demonstrado antes, o modo como a colonialidade do poder
est· vinculada com a concentraÁ„o na Europa do capital, dos assalariados, do mercado de capital, enfim, da
sociedade e da cultura associadas a essas determinaÁıes. Nesse sentido, a modernidade foi tambÈm
colonial desde seu ponto de partida. Mas ajuda tambÈm a entender por que foi na Europa muito mais direto e
imediato o impacto do processo mundial de modernizaÁ„o.
Com efeito, as novas pr·ticas sociais implicadas no padr„o de poder mundial, capitalista, a concentraÁ„o
do capital e dos assalariados, o novo mercado de capital, tudo isso associado ‡ nova perspectiva sobre o
tempo e sobre a histÛria, ‡ centralidade da quest„o da mudanÁa histÛrica nessa perspectiva, como
experiÍncia e como idÈia, requerem, necessariamente, a dessacralizaÁ„o das hierarquias e das autoridades,
tanto na dimens„o material das relaÁıes sociais como em sua intersubjetividade; a dessacralizaÁ„o, a
mudanÁa ou o desmantelamento das correspondentes estruturas e instituiÁıes. A individualizaÁ„o das
pessoas sÛ adquire seu sentido nesse contexto, a necessidade de um foro prÛprio para pensar, para duvidar,
para decidir; a liberdade individual, em suma, contra as adscriÁıes sociais fixadas e em conseq¸Íncia a
necessidade de igualdade social entre os indivÌduos.
As determinaÁıes capitalistas, contudo, exigiam tambÈm, e no mesmo movimento histÛrico, que esses
processos sociais, materiais e intersubjetivos, n„o tivessem lugar exceto dentro de relaÁıes sociais de
exploraÁ„o e de dominaÁ„o. Conseq¸entemente, como um campo de conflitos pela orientaÁ„o, isto È, os fins,
os meios e os limites desses processos. Para os controladores do poder, o controle do capital e do mercado
eram e s„o os que decidem os fins, os meios e os limites do processo. O mercado È o mÌnimo, mas tambÈm
o limite da possÌvel igualdade social entre as pessoas. Para os explorados do capital e em geral para os
dominados do padr„o de poder, a modernidade gerou um horizonte de libertaÁ„o das pessoas de toda
relaÁ„o, estrutura ou instituiÁ„o vinculada com a dominaÁ„o e a exploraÁ„o, mas tambÈm as condiÁıes
sociais para avanÁar em direÁ„o a esse horizonte. A modernidade È, assim, tambÈm uma quest„o de conflito
de interesses sociais. Um deles È a contÌnua democratizaÁ„o da existÍncia social das pessoas. Nesse
sentido, todo conceito de modernidade È necessariamente ambÌguo e contraditÛrio (Quijano, 1998a; 2000a).
… ali, precisamente, onde a histÛria desses processos diferencia t„o claramente a Europa Ocidental e o
resto do mundo, no caso a AmÈrica Latina. Na Europa Ocidental, a concentraÁ„o da relaÁ„o capital-sal·rio È
o eixo principal das tendÍncias das relaÁıes de classificaÁ„o social e da correspondente estrutura de poder.
Isso subjaz aos enfrentamentos com a antiga ordem, com o ImpÈrio, com o Papado, durante o perÌodo do
chamado capital competitivo. Esses enfrentamentos permitem aos setores n„o dominantes do capital ñbem
como aos exploradosñ melhores condiÁıes de negociar seu lugar no poder e a venda de sua forÁa de
trabalho. Por outro lado, abre tambÈm condiÁıes para uma secularizaÁ„o especificamente burguesa da
cultura e da subjetividade. O liberalismo È uma das claras expressıes desse contexto material e subjetivo da
sociedade na Europa Ocidental. J· no resto do mundo, na AmÈrica Latina em particular, as formas mais
estendidas de controle do trabalho s„o n„o-salariais, ainda que em benefÌcio global do capital, o que implica
que as relaÁıes de exploraÁ„o e de dominaÁ„o tÍm car·ter colonial. A independÍncia polÌtica, desde inÌcios
do sÈculo XIX, est· acompanhada na maioria dos novos paÌses pelo estancamento e retrocesso do capital e

114
fortalece o car·ter colonial da dominaÁ„o social e polÌtica sob Estados formalmente independentes. O
eurocentramento do capitalismo colonial/moderno, foi nesse sentido decisivo para o destino diferente do
processo da modernidade entre a Europa e o resto do mundo (Quijano, 1988b; 1994).

II. Colonialidade do poder e eurocentrismo


A elaboraÁ„o intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de conhecimento e um
modo de produzir conhecimento que demonstram o car·ter do padr„o mundial de poder: colonial/moderno,
capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto de produzir conhecimento se reconhecem
17
como eurocentrismo .
Eurocentrismo È, aqui, o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboraÁ„o sistem·tica
comeÁou na Europa Ocidental antes de mediados do sÈculo XVII, ainda que algumas de suas raÌzes s„o
sem d˙vida mais velhas, ou mesmo antigas, e que nos sÈculos seguintes se tornou mundialmente
hegemÙnica percorrendo o mesmo fluxo do domÌnio da Europa burguesa. Sua constituiÁ„o ocorreu
associada ‡ especÌfica secularizaÁ„o burguesa do pensamento europeu e ‡ experiÍncia e ‡s necessidades
do padr„o mundial de poder capitalista, colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da AmÈrica.
N„o se trata, em conseq¸Íncia, de uma categoria que implica toda a histÛria cognoscitiva em toda a
Europa, nem na Europa Ocidental em particular. Em outras palavras, n„o se refere a todos os modos de
conhecer de todos os europeus e em todas as Èpocas, mas a uma especÌfica racionalidade ou perspectiva
de conhecimento que se torna mundialmente hegemÙnica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais,
prÈvias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo. No
‚mbito deste trabalho, proponho-me a discutir algumas de suas questıes mais diretamente vinculadas com a
experiÍncia histÛrica da AmÈrica Latina, mas que, obviamente, n„o se referem somente a ela.

Capital e capitalismo
Antes que mais nada, a teoria de uma seq¸Íncia histÛrica unilinear e universalmente v·lida entre as
formas conhecidas de trabalho e de controle do trabalho, que foram tambÈm conceitualizadas como relaÁıes
ou modos de produÁ„o, especialmente entre capital e prÈ-capital, precisa ser, em todo caso com respeito ‡
AmÈrica, aberta de novo como quest„o maior do debate cientÌfico-social contempor‚neo.
Do ponto de vista eurocÍntrico, reciprocidade, escravid„o, servid„o e produÁ„o mercantil independente
s„o todas percebidas como uma seq¸Íncia histÛrica prÈvia ‡ mercantilizaÁ„o da forÁa de trabalho. S„o prÈ-
capital. E s„o consideradas n„o sÛ como diferentes mas como radicalmente incompatÌveis com o capital. O
fato È, contudo, que na AmÈrica elas n„o emergiram numa seq¸Íncia histÛrica unilinear; nenhuma delas foi
uma mera extens„o de antigas formas prÈ-capitalistas, nem foram tampouco incompatÌveis com o capital.
Na AmÈrica a escravid„o foi deliberadamente estabelecida e organizada como mercadoria para produzir
mercadorias para o mercado mundial e, desse modo, para servir aos propÛsitos e necessidades do
capitalismo. Do mesmo modo, a servid„o imposta aos Ìndios, inclusive a redefiniÁ„o das instituiÁıes da
reciprocidade, para servir os mesmos fins, isto È, para produzir mercadorias para o mercado mundial. E
enfim, a produÁ„o mercantil independente foi estabelecida e expandida para os mesmos propÛsitos.
Isso significa que todas essas formas de trabalho e de controle do trabalho na AmÈrica n„o sÛ atuavam
simultaneamente, mas foram articuladas em torno do eixo do capital e do mercado mundial.
Conseq¸entemente, foram parte de um novo padr„o de organizaÁ„o e de controle do trabalho em todas as
suas formas historicamente conhecidas, juntas e em torno do capital. Juntas configuraram um novo sistema:
o capitalismo.
O capital, como relaÁ„o social baseada na mercantilizaÁ„o da forÁa de trabalho, nasceu provavelmente
em algum momento por volta dos sÈculos XI-XII, em algum lugar na regi„o meridional das penÌnsulas ibÈrica
e/ou it·lica e conseq¸entemente, e por conhecidas razıes, no mundo isl‚mico. … pois bastante mais antigo
que a AmÈrica. Mas antes da emergÍncia da AmÈrica, n„o est· em nenhum lugar estruturalmente articulado
com todas as demais formas de organizaÁ„o e controle da forÁa de trabalho e do trabalho, nem tampouco
era ainda predominante em relaÁ„o a nenhuma delas. SÛ com a AmÈrica pÙde o capital consolidar-se e obter
predomin‚ncia mundial, tornando-se precisamente o eixo em torno do qual todas as demais formas foram
articuladas para os fins do mercado mundial. Somente desse modo o capital transformou-se no modo de
produÁ„o dominante. Assim, o capital existiu muito tempo antes que a AmÈrica. Contudo, o capitalismo como
sistema de relaÁıes de produÁ„o, isto È, a heterogÍnea engrenagem de todas as formas de controle do
trabalho e de seus produtos sob o domÌnio do capital, no que dali em diante consistiu a economia mundial e
seu mercado, constituiu-se na histÛria apenas com a emergÍncia da AmÈrica. A partir desse momento, o
capital sempre existiu e continua existindo hoje em dia sÛ como o eixo central do capitalismo, n„o de maneira
separada, muito menos isolada. Nunca foi predominante de outro modo, em escala mundial e global, e com

115
toda probabilidade n„o teria podido desenvolver-se de outro modo.

Evolucionismo e dualismo
Como no caso das relaÁıes entre capital e prÈ-capital, uma linha similar de idÈias foi elaborada acerca
das relaÁıes entre Europa e n„o-Europa. Como j· foi apontado, o mito fundacional da vers„o eurocÍntrica da
modernidade È a idÈia do estado de natureza como ponto de partida do curso civilizatÛrio cuja culminaÁ„o È
a civilizaÁ„o europÈia ou ocidental. Desse mito se origina a especificamente eurocÍntrica perspectiva
evolucionista, de movimento e de mudanÁa unilinear e unidirecional da histÛria humana. Tal mito foi
associado com a classificaÁ„o racial da populaÁ„o do mundo. Essa associaÁ„o produziu uma vis„o na qual
se amalgamam, paradoxalmente, evolucionismo e dualismo. Essa vis„o sÛ adquire sentido como express„o
do exacerbado etnocentrismo da recÈm constituÌda Europa, por seu lugar central e dominante no capitalismo
mundial colonial/moderno, da vigÍncia nova das idÈias mitificadas de humanidade e de progresso,
insepar·veis produtos da IlustraÁ„o, e da vigÍncia da idÈia de raÁa como critÈrio b·sico de classificaÁ„o
social universal da populaÁ„o do mundo.
A histÛria È, contudo, muito distinta. Por um lado, no momento em que os ibÈricos conquistaram,
nomearam e colonizaram a AmÈrica (cuja regi„o norte ou AmÈrica do Norte, colonizar„o os brit‚nicos um
sÈculo mais tarde), encontraram um grande n˙mero de diferentes povos, cada um com sua prÛpria histÛria,
linguagem, descobrimentos e produtos culturais, memÛria e identidade. S„o conhecidos os nomes dos mais
desenvolvidos e sofisticados deles: astecas, maias, chimus, aimar·s, incas, chibchas, etc. Trezentos anos
mais tarde todos eles reduziam-se a uma ˙nica identidade: Ìndios. Esta nova identidade era racial, colonial e
negativa. Assim tambÈm sucedeu com os povos trazidos forÁadamente da futura ¡frica como escravos:
achantes, iorub·s, zulus, congos, bacongos, etc. No lapso de trezentos anos, todos eles n„o eram outra
coisa alÈm de negros.
Esse resultado da histÛria do poder colonial teve duas implicaÁıes decisivas. A primeira È Ûbvia: todos
aqueles povos foram despojados de suas prÛprias e singulares identidades histÛricas. A segunda È, talvez,
menos Ûbvia, mas n„o È menos decisiva: sua nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo
de seu lugar na histÛria da produÁ„o cultural da humanidade. DaÌ em diante n„o seriam nada mais que raÁas
inferiores, capazes somente de produzir culturas inferiores. Implicava tambÈm sua relocalizaÁ„o no novo
tempo histÛrico constituÌdo com a AmÈrica primeiro e com a Europa depois: desse momento em diante
passaram a ser o passado. Em outras palavras, o padr„o de poder baseado na colonialidade implicava
tambÈm um padr„o cognitivo, uma nova perspectiva de conhecimento dentro da qual o n„o-europeu era o
passado e desse modo inferior, sempre primitivo.
Por outro lado, a primeira identidade geocultural moderna e mundial foi a AmÈrica. A Europa foi a
segunda e foi constituÌda como conseq¸Íncia da AmÈrica, n„o o inverso. A constituiÁ„o da Europa como
nova entidade/identidade histÛrica fez-se possÌvel, em primeiro lugar, com o trabalho gratuito dos Ìndios,
negros e mestiÁos da AmÈrica, com sua avanÁada tecnologia na mineraÁ„o e na agricultura, e com seus
respectivos produtos, o ouro, a prata, a batata, o tomate, o tabaco, etc., etc. (Viola e Margolis, 1991). Porque
foi sobre essa base que se configurou uma regi„o como sede do controle das rotas atl‚nticas, por sua vez
convertidas, precisamente sobre essa mesma base, nas rotas decisivas do mercado mundial. Essa regi„o
n„o tardou em emergir como Europa. AmÈrica e Europa produziram-se historicamente, assim, mutuamente,
como as duas primeiras novas identidades geoculturais do mundo moderno.
Contudo, os europeus persuadiram-se a si mesmos, desde meados do sÈculo XVII, mas sobretudo
durante o sÈculo XVIII, n„o sÛ de que de algum modo se tinham autoproduzido a si mesmos como
civilizaÁ„o, ‡ margem da histÛria iniciada com a AmÈrica, culminando uma linha independente que comeÁava
com a GrÈcia como ˙nica fonte original. TambÈm concluÌram que eram naturalmente (isto È, racialmente)
superiores a todos os demais, j· que tinham conquistado a todos e lhes tinham imposto seu domÌnio.
O confronto entre a experiÍncia histÛrica e a perspectiva eurocÍntrica de conhecimento permite
apontar alguns dos elementos mais importantes do eurocentrismo: a) uma articulaÁ„o peculiar entre um
dualismo (prÈ-capital-capital, n„o europeu-europeu, primitivo-civilizado, tradicional-moderno, etc.) e um
evolucionismo linear, unidirecional, de algum estado de natureza ‡ sociedade moderna europÈia; b) a
naturalizaÁ„o das diferenÁas culturais entre grupos humanos por meio de sua codificaÁ„o com a idÈia de
raÁa; e c) a distorcida relocalizaÁ„o temporal de todas essas diferenÁas, de modo que tudo aquilo que È
n„o-europeu È percebido como passado. Todas estas operaÁıes intelectuais s„o claramente
interdependentes. E n„o teriam podido ser cultivadas e desenvolvidas sem a colonialidade do poder.

Homogeneidade/continuidade e heterogeneidade/descontinuidade
Como È verific·vel agora, a perspectiva eurocÍntrica de conhecimento, devido a sua crise radical, È hoje
um campo pletÛrico de questıes. Aqui È pertinente ainda deixar registradas duas delas. Primeiro, uma idÈia
116
da mudanÁa histÛrica como um processo ou um momento no qual uma entidade ou unidade se transforma de
maneira continua, homogÍnea e completa em outra coisa e abandona de maneira absoluta a cena histÛrica.
Isto permite ‡ outra entidade equivalente ocupar o lugar, e tudo isto continua numa cadeia seq¸encial. De
outro modo n„o teria sentido, nem lugar, a idÈia da histÛria como uma evoluÁ„o unidirecional e unilinear.
Segundo, dali se desprende que cada unidade diferenciada, por exemplo uma ìeconomia/sociedadeî ou um
ìmodo de produÁ„oî no caso do controle do trabalho (capital ou escravid„o) ou uma ìraÁa/civilizaÁ„oî no
caso de grupos humanos, È uma entidade/identidade homogÍnea. S„o, cada uma, estruturas de elementos
homogÍneos relacionados de maneira contÌnua e sistÍmica (o que È distinto de sistem·tica).
A experiÍncia histÛrica demostra, contudo, que o capitalismo mundial est· longe de ser uma totalidade
homogÍnea e contÌnua. Ao contr·rio, como o demonstra a AmÈrica, o padr„o de poder mundial que se
conhece como capitalismo È, fundamentalmente, uma estrutura de elementos heterogÍneos, tanto em termos
das formas de controle do trabalho-recursos-produtos (ou relaÁıes de produÁ„o) ou em termos dos povos e
histÛrias articulados nele. Em conseq¸Íncia, tais elementos se relacionam entre si e com o conjunto de
maneira tambÈm heterogÍnea e descontÌnua, ou mesmo conflitiva. E s„o eles mesmos, cada um deles,
configurados da mesma maneira.
Assim, cada uma dessas relaÁıes de produÁ„o È em si mesma uma estrutura heterogÍnea.
Especialmente o capital, desde que todos os est·gios e formas histÛricas de produÁ„o de valor e de
apropriaÁ„o de mais-valia (por exemplo, acumulaÁ„o primitiva, mais-valia absoluta e relativa, extensiva ou
intensiva, ou em outra nomenclatura, manufatura, capital competitivo, capital monopÛlico, capital
transnacional ou global, ou prÈ-fordista, fordista, de m„o de obra intensiva, de capital intensivo, de
informaÁ„o intensiva, etc., etc.) est„o simultaneamente em atividade e trabalham juntos numa complexa
rede de transferÍncia de valor e de mais-valia. Isto È igualmente v·lido com relaÁ„o ‡s raÁas, j· que tantos
povos diversos e heterogÍneos, com heterogÍneas histÛrias e tendÍncias histÛricas de movimento e de
mudanÁa foram reunidos sob uma ˙nica classificaÁ„o racial, Ìndio ou negro, por exemplo.
Esta heterogeneidade n„o È simplesmente estrutural, baseada nas relaÁıes entre elementos das mesmas
Època e idade. J· que histÛrias diversas e heterogÍneas deste tipo foram articuladas numa ˙nica estrutura de
poder, È pertinente admitir o car·ter histÛrico-estrutural dessa heterogeneidade. Conseq¸entemente, o
processo de mudanÁa dessa totalidade capitalista n„o pode, de nenhum modo, ser uma transformaÁ„o
homogÍnea e contÌnua do sistema inteiro, nem tampouco de cada um de seus componentes maiores.
Tampouco poderia essa totalidade desvanecer-se completa e homogeneamente da cena histÛrica e ser
substituÌda por outra equivalente. A mudanÁa histÛrica n„o pode ser unilinear, unidirecional, seq¸encial ou
total. O sistema, ou o padr„o especÌfico de articulaÁ„o estrutural, poderia ser desmantelado. Mas mesmo
assim cada um ou alguns de seus elementos pode e haver· de rearticular-se em algum outro padr„o
estrutural, como ocorreu, obviamente, com os componentes do padr„o de poder prÈ-colonial, digamos, no
18
Tauantinsuiu .

O novo dualismo
Finalmente, pelo momento e para nossos propÛsitos aqui, È pertinente abrir a quest„o das relaÁıes
entre o corpo e o n„o-corpo na perspectiva eurocÍntrica, tanto por sua gravitaÁ„o no modo eurocÍntrico
de produzir conhecimento, como devido a que em nossa experiÍncia tem uma estreita relaÁ„o com as de
raÁa e de gÍnero.
A idÈia de diferenciaÁ„o entre o ìcorpoî e o ìn„o-corpoî na experiÍncia humana È virtualmente
universal ‡ histÛria da humanidade, comum a todas as ìculturasî ou ìcivilizaÁıesî historicamente
conhecidas. Mas È tambÈm comum a todas ñatÈ o aparecimento do eurocentrismoñ a permanente co-
presenÁa dos dois elementos como duas dimensıes n„o separ·veis do ser humano, em qualquer
aspecto, inst‚ncia ou comportamento.
O processo de separaÁ„o destes elementos do ser humano È parte de uma longa histÛria do mundo
crist„o sobre a base da idÈia da primazia da ìalmaî sobre o ìcorpoî. PorÈm, esta histÛria mostra tambÈm
uma longa e n„o resolvida ambivalÍncia da teologia crist„ sobre este ponto em particular. Certamente, È
a ìalmaî o objeto privilegiado de salvaÁ„o. Mas no final das contas, È o ìcorpoî o ressuscitado, como
culminaÁ„o da salvaÁ„o.
Certamente, tambÈm, foi durante a cultura repressiva do cristianismo, como resultado dos conflitos
com muÁulmanos e judeus, sobretudo entre os sÈculos XV e XVI, em plena InquisiÁ„o, que a primazia
da ìalmaî foi enfatizada, talvez exasperada. E porque o ìcorpoî foi o objeto b·sico da repress„o, a
ìalmaî pÙde aparecer quase separada das relaÁıes intersubjetivas no interior do mundo crist„o. Mas isto
n„o foi teorizado, ou seja, n„o foi sistematicamente discutido e elaborado atÈ Descartes, culminando no
19
processo da secularizaÁ„o burguesa do pensamento crist„o .
20
Com Descartes o que sucede È a mutaÁ„o da antiga abordagem dualista sobre o ìcorpoî e o ìn„o-
corpoî. O que era uma co-presenÁa permanente de ambos os elementos em cada etapa do ser humano,
117
em Descartes se converte numa radical separaÁ„o entre ìraz„o/sujeitoî e ìcorpoî. A raz„o n„o È somente
uma secularizaÁ„o da idÈia de ìalmaî no sentido teolÛgico, mas uma mutaÁ„o numa nova id-entidade, a
ìraz„o/sujeitoî, a ˙nica entidade capaz de conhecimento ìracionalî, em relaÁ„o ‡ qual o ìcorpoî È e n„o
pode ser outra coisa alÈm de ìobjetoî de conhecimento. Desse ponto de vista o ser humano È, por
excelÍncia, um ser dotado de ìraz„oî, e esse dom se concebe como localizado exclusivamente na alma.
Assim o ìcorpoî, por definiÁ„o incapaz de raciocinar, n„o tem nada a ver com a raz„o/sujeito. Produzida
essa separaÁ„o radical entre ìraz„o/sujeitoî e ìcorpoî, as relaÁıes entre ambos devem ser vistas
unicamente como relaÁıes entre a raz„o/sujeito humana e o corpo/natureza humana, ou entre ìespÌritoî e
ìnaturezaî. Deste modo, na racionalidade eurocÍntrica o ìcorpoî foi fixado como ìobjetoî de conhecimento,
fora do entorno do ìsujeito/raz„oî.
Sem essa ìobjetivizaÁ„oî do ìcorpoî como ìnaturezaî, de sua expuls„o do ‚mbito do ìespÌritoî,
dificilmente teria sido possÌvel tentar a teorizaÁ„o ìcientÌficaî do problema da raÁa, como foi o caso do
.
Conde de Gobineau (1853-1857) durante o sÈculo XIX. Dessa perspectiva eurocÍntrica, certas raÁas
s„o condenadas como ìinferioresî por n„o serem sujeitos ìracionaisî. S„o objetos de estudo, ìcorpoî em
conseq¸Íncia, mais prÛximos da ìnaturezaî. Em certo sentido, isto os converte em domin·veis e
explor·veis. De acordo com o mito do estado de natureza e da cadeia do processo civilizatÛrio que
culmina na civilizaÁ„o europÈia, algumas raÁas ñnegros (ou africanos), Ìndios, oliv·ceos, amarelos (ou
21
asi·ticos) e nessa seq¸Ínciañ est„o mais prÛximas da ìnaturezaî que os brancos . Somente desta
perspectiva peculiar foi possÌvel que os povos n„o-europeus fossem considerados, virtualmente atÈ a
Segunda Guerra Mundial, antes de tudo como objeto de conhecimento e de dominaÁ„o/exploraÁ„o pelos
europeus.
Esse novo e radical dualismo n„o afetou somente as relaÁıes raciais de dominaÁ„o, mas tambÈm a mais
antiga, as relaÁıes sexuais de dominaÁ„o. DaÌ em diante, o lugar das mulheres, muito em especial o das
mulheres das raÁas inferiores, ficou estereotipado junto com o resto dos corpos, e quanto mais inferiores
fossem suas raÁas, mais perto da natureza ou diretamente, como no caso das escravas negras, dentro da
natureza. … prov·vel, ainda que a quest„o fique por indagar, que a idÈia de gÍnero se tenha elaborado
depois do novo e radical dualismo como parte da perspectiva cognitiva eurocentrista.
Durante o sÈculo XVIII, esse novo dualismo radical foi amalgamado com as idÈias mitificadas de
ìprogressoî e de um estado de natureza na trajetÛria humana, os mitos fundacionais da vers„o
eurocentrista da modernidade. Isto deu vaz„o ‡ peculiar perspectiva histÛrica dualista/evolucionista.
Assim todos os n„o-europeus puderam ser considerados, de um lado, como prÈ-europeus e ao mesmo
tempo dispostos em certa seq¸Íncia histÛrica e contÌnua do primitivo ao civilizado, do irracional ao
racional, do tradicional ao moderno, do m·gico-mÌtico ao cientÌfico. Em outras palavras, do n„o-
europeu/prÈ-europeu a algo que com o tempo se europeizar· ou ìmodernizar·î.
Sem considerar a experiÍncia inteira do colonialismo e da colonialidade, essa marca intelectual seria
dificilmente explic·vel, bem como a duradoura hegemonia mundial do eurocentrismo. Somente as
necessidades do capital como tal, n„o esgotam, n„o poderiam esgotar, a explicaÁ„o do car·ter e da trajetÛria
dessa perspectiva de conhecimento.

III. Eurocentrismo e experiÍncia histÛrica na AmÈrica Latina


Aplicada de maneira especÌfica ‡ experiÍncia histÛrica latino-americana, a perspectiva eurocÍntrica de
conhecimento opera como um espelho que distorce o que reflete. Quer dizer, a imagem que encontramos
nesse espelho n„o È de todo quimÈrica, j· que possuÌmos tantos e t„o importantes traÁos histÛricos
europeus em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas, ao mesmo tempo, somos t„o profundamente
distintos. DaÌ que quando olhamos nosso espelho eurocÍntrico, a imagem que vemos seja necessariamente
parcial e distorcida.
Aqui a tragÈdia È que todos fomos conduzidos, sabendo ou n„o, querendo ou n„o, a ver e aceitar aquela
imagem como nossa e como pertencente unicamente a nÛs. Dessa maneira seguimos sendo o que n„o
somos. E como resultado n„o podemos nunca identificar nossos verdadeiros problemas, muito menos
resolvÍ-los, a n„o ser de uma maneira parcial e distorcida.

O eurocentrismo e a ìquest„o nacionalî: o Estado-naÁ„o


Um dos exemplos mais claros desta tragÈdia de equÌvocos na AmÈrica Latina È a histÛria da chamada
quest„o nacional. Dito de outro modo, do problema do moderno Estado-naÁ„o na AmÈrica Latina.
NaÁıes e Estados s„o um velho fenÙmeno. Todavia, aquilo que chamamos de moderno Estado-naÁ„o È
uma experiÍncia muito especÌfica. Trata-se de uma sociedade nacionalizada e por isso politicamente
organizada como um Estado-naÁ„o. Implica as instituiÁıes modernas de cidadania e democracia polÌtica. Ou

118
seja, implica uma certa democracia, dado que cada processo conhecido de nacionalizaÁ„o da sociedade nos
tempos modernos ocorreu somente atravÈs de uma relativa (ou seja, dentro dos limites do capitalismo) mas
importante e real democratizaÁ„o do controle do trabalho, dos recursos produtivos e do controle da geraÁ„o e
gest„o das instituiÁıes polÌticas. Deste modo, a cidadania pode chegar a servir como igualdade legal, civil e
polÌtica para pessoas socialmente desiguais (Quijano, 1998a).
Um Estado-naÁ„o È uma espÈcie de sociedade individualizada entre as demais. Por isso, entre seus
membros pode ser sentida como identidade. PorÈm, toda sociedade È uma estrutura de poder. … o poder
aquilo que articula formas de existÍncia social dispersas e diversas numa totalidade ˙nica, uma sociedade.
Toda estrutura de poder È sempre, parcial ou totalmente, a imposiÁ„o de alguns, freq¸entemente certo grupo,
sobre os demais. Conseq¸entemente, todo Estado-naÁ„o possÌvel È uma estrutura de poder, do mesmo
modo que È produto do poder. Em outros termos, do modo como foram configuradas as disputas pelo
controle do trabalho, seus recursos e produtos; do sexo, seus recursos e produtos; da autoridade e de sua
violÍncia especÌfica; da intersubjetividade e do conhecimento.
N„o obstante, se um Estado-naÁ„o moderno pode expressar-se em seus membros como uma identidade,
22
n„o È somente devido a que pode ser imaginado como uma comunidade . Os membros precisam ter em
comum algo real, n„o sÛ imaginado, algo que compartilhar. E isso, em todos os reais Estados-naÁ„o
modernos, È uma participaÁ„o mais ou menos democr·tica na distribuiÁ„o do controle do poder. Esta È a
maneira especÌfica de homogeneizaÁ„o das pessoas num Estado-naÁ„o moderno. Toda homogeneizaÁ„o da
populaÁ„o de um Estado-naÁ„o moderno È desde logo parcial e temporal e consiste na comum participaÁ„o
democr·tica no controle da geraÁ„o e da gest„o das instituiÁıes de autoridade p˙blica e de seus especÌficos
mecanismos de violÍncia. Isto È, exerce-se, no fundamental, em todo o ‚mbito da existÍncia social vinculado
ao Estado e que por isso se assume como o explicitamente polÌtico. Mas tal ‚mbito n„o poderia ser
democr·tico, isto È, implicar cidadania como igualdade jurÌdica e civil de pessoas desigualmente situadas nas
relaÁıes de poder, se as relaÁıes sociais em todos os outros ‚mbitos da existÍncia social fossem
23
radicalmente n„o democr·ticas ou antidemocr·ticas .
J· que todo Estado-naÁ„o È uma estrutura de poder, isso implica que se trata de um poder que se
configura nesse sentido. O processo comeÁa sempre com um poder polÌtico central sobre um territÛrio e sua
populaÁ„o, porque qualquer processo de nacionalizaÁ„o possÌvel sÛ pode ocorrer num espaÁo dado, ao
longo de um prolongado perÌodo de tempo. Esse espaÁo precisa ser mais ou menos est·vel por um longo
perÌodo. Conseq¸entemente, precisa-se de um poder polÌtico est·vel e centralizado. Este espaÁo È, nesse
sentido, necessariamente um espaÁo de dominaÁ„o disputado e conquistado a outros rivais.
Na Europa o processo que levou ‡ formaÁ„o de estruturas de poder configuradas como Estado-naÁ„o,
iniciou-se com a emergÍncia de alguns poucos n˙cleos polÌticos que conquistaram seu espaÁo de dominaÁ„o
e se impuseram aos diversos e heterogÍneos povos e identidades que o habitavam. Deste modo o Estado-
naÁ„o iniciou-se como um processo de colonizaÁ„o de alguns povos sobre outros que, nesse sentido, eram
povos estrangeiros. Em alguns casos particulares, como na Espanha que se constituÌa sobre a base da
AmÈrica e de seus enormes e gratuitos recursos, o processo incluiu a expuls„o de alguns grupos, como os
muÁulmanos e judeus, considerados como estrangeiros indesej·veis. Esta foi a primeira experiÍncia de
limpeza Ètnica no perÌodo moderno, seguida pela imposiÁ„o dessa peculiar instituiÁ„o chamada ìcertificado
24
de limpeza de sangueî .
Por outro lado, o processo de centralizaÁ„o estatal que antecedeu na Europa Ocidental a formaÁ„o de
Estados-naÁ„o, foi paralelo ‡ imposiÁ„o da dominaÁ„o colonial que comeÁou com a AmÈrica. Quer dizer,
simultaneamente com a formaÁ„o dos impÈrios coloniais desses primeiros Estados centrais europeus. O
processo tem, pois, um duplo movimento histÛrico. ComeÁou como uma colonizaÁ„o interna de povos com
identidades diferentes, mas que habitavam os mesmos territÛrios transformados em espaÁos de dominaÁ„o
interna, ou seja, nos prÛprios territÛrios dos futuros Estados-naÁ„o. E continuou paralelamente ‡ colonizaÁ„o
imperial ou externa de povos que n„o sÛ tinham identidades diferentes das dos colonizadores, mas que
habitavam territÛrios que n„o eram considerados como os espaÁos de dominaÁ„o interna dos colonizadores,
quer dizer, n„o eram os mesmos territÛrios dos futuros Estados-naÁ„o dos colonizadores.
Se indagamos a partir de nossa atual perspectiva histÛrica aquilo que sucedeu com os primeiros Estados
centrais europeus, seus espaÁos de dominaÁ„o (populaÁıes e territÛrios) e seus respectivos processos de
nacionalizaÁ„o, observa-se que as diferenÁas s„o muito visÌveis. A existÍncia de um forte Estado central n„o
È suficiente para produzir um processo de relativa homogeneizaÁ„o de uma populaÁ„o previamente diversa e
heterogÍnea, para produzir assim uma identidade comum e uma forte e duradoura lealdade a tal identidade.
Entre esses casos, a FranÁa È provavelmente a experiÍncia mais bem-sucedida, bem como a Espanha È a
menos bem-sucedida.
Por que a FranÁa sim e a Espanha n„o? A Espanha era em seus primÛrdios muito mais rica e poderosa
que seus pares. PorÈm, apÛs a expuls„o dos muÁulmanos e judeus deixou de ser produtiva e prÛspera para
transformar-se em correia de transmiss„o dos recursos da AmÈrica aos centros emergentes do capital
financeiro mercantil. Ao mesmo tempo, apÛs o violento e bem-sucedido ataque contra a autonomia das

119
comunidades camponesas e das cidades e burgos, viu-se presa numa estrutura senhorial de poder e sob a
autoridade de uma monarquia e de uma igreja repressivas e corruptas. A Monarquia da Espanha dedicou-se,
ademais, a uma polÌtica bÈlica em busca da expans„o de seu poder senhorial na Europa, em lugar de uma
hegemonia sobre o mercado mundial e o capital comercial e financeiro como fizeram mais tarde a Inglaterra
ou a FranÁa. Todas as lutas para forÁar os controladores do poder a admitir ou negociar alguma
democratizaÁ„o da sociedade e do Estado foram derrotadas, em especial a revoluÁ„o liberal de 1810-12.
Deste modo, o colonialismo interno e os padrıes senhoriais de poder polÌtico e social, combinados,
demonstraram ser fatais para a nacionalizaÁ„o da sociedade e do Estado espanhÛis, na medida em que esse
tipo de poder n„o sÛ provou ser incapaz de sustentar qualquer vantagem proveniente desse rico e vasto
colonialismo imperial ou externo: provou igualmente que constituÌa um muito poderosos obst·culo a todo
processo democratizador das relaÁıes sociais e polÌticas e n„o sÛ dentro do espaÁo prÛprio de dominaÁ„o.
Pelo outro lado, na FranÁa, atravÈs da democratizaÁ„o radical das relaÁıes sociais e polÌticas com a
RevoluÁ„o Francesa, o prÈvio colonialismo interno evoluiu para uma ìafrancesamentoî efetivo, ainda que n„o
total, dos povos que habitavam o territÛrio da FranÁa, originalmente t„o diversos e histÛrico-estruturalmente
heterogÍneos como no espaÁo de dominaÁ„o que se chamaria Espanha. Os bascos franceses, por exemplo,
s„o, em primeiro lugar, franceses, como os occitanos ou os navarros. N„o È o caso da Espanha.
Em cada um dos casos de nacionalizaÁ„o bem-sucedida de sociedades e Estados na Europa, a experiÍncia
È a mesma: um importante processo de democratizaÁ„o da sociedade È a condiÁ„o b·sica para a
nacionalizaÁ„o dessa sociedade e de sua organizaÁ„o polÌtica num Estado-naÁ„o moderno. N„o h·, na
verdade, exceÁ„o conhecida a essa trajetÛria histÛrica do processo que conduz ‡ formaÁ„o do Estado-naÁ„o.

O Estado-naÁ„o na AmÈrica: os Estados Unidos


Se examinarmos a experiÍncia da AmÈrica, seja em suas ·reas hisp‚nica ou brit‚nica, podemos
reconhecer diferenÁas e fatores b·sicos equivalentes. Na ·rea brit‚nico-americana, a ocupaÁ„o do territÛrio
foi desde o comeÁo violenta. Mas antes da IndependÍncia, conhecida nos Estados Unidos como a RevoluÁ„o
Americana, o territÛrio ocupado era muito pequeno. Por isso os Ìndios n„o foram habitantes do territÛrio
ocupado, n„o estavam colonizados. Por isso, os diversos povos indÌgenas foram formalmente reconhecidos
como naÁıes e com eles se praticaram relaÁıes comerciais inter-naÁıes, inclusive se formaram alianÁas
militares nas guerras entre colonialistas ingleses e franceses, sobretudo. Os Ìndios n„o eram parte da
populaÁ„o incorporada ao espaÁo de dominaÁ„o colonial brit‚nico-americana. Por isso mesmo, quando se
inicia a histÛria do novo Estado-naÁ„o chamado Estados Unidos da AmÈrica do Norte, os Ìndios foram
excluÌdos dessa nova sociedade. Foram considerados estrangeiros. Mas posteriormente suas terras foram
conquistadas e eles quase exterminados. SÛ ent„o os sobreviventes foram encerrados na sociedade
estadunidense como raÁa colonizada. No inÌcio, portanto, relaÁıes colonial/raciais existiram somente entre
brancos e negros. Este ˙ltimo grupo era fundamental para a economia da sociedade colonial, como durante
um primeiro longo momento para a economia da nova naÁ„o. Todavia, demograficamente os negros eram
uma relativamente reduzida minoria, enquanto os brancos compunham a grande maioria.
Quando da fundaÁ„o dos Estados Unidos como paÌs independente, o processo de constituiÁ„o do novo
padr„o de poder levou desde o comeÁo ‡ configuraÁ„o de um Estado-naÁ„o. Em primeiro lugar, apesar da
relaÁ„o colonial de dominaÁ„o entre brancos e negros e do extermÌnio colonialista da populaÁ„o Ìndia, dada
a condiÁ„o avassaladoramente majorit·ria dos brancos, È inevit·vel admitir que esse novo Estado-naÁ„o era
genuinamente representativo da maioria da populaÁ„o. Essa branquitude social da sociedade estadunidense
foi inclusive aprofundada com a imigraÁ„o de milhıes de europeus durante o sÈculo XIX. Em segundo lugar,
a conquista dos territÛrios indÌgenas resultou na abund‚ncia da oferta de um recurso b·sico de produÁ„o, a
terra. Este pÙde ser, por conseq¸Íncia, apropriado e distribuÌdo de maneira n„o unicamente concentrada sob
o controle de pouquÌssimas pessoas, mas pelo contr·rio pÙde ser, ao mesmo tempo, parcialmente
concentrado em grandes latif˙ndios e tambÈm apropriado ou distribuÌdo numa vasta proporÁ„o de mÈdia e
pequenas propriedades. Equivalente, pois, a uma distribuiÁ„o democr·tica de recursos. Isso fundou para os
brancos uma participaÁ„o notavelmente democr·tica no controle da geraÁ„o e da gest„o da autoridade
p˙blica. A colonialidade do novo padr„o de poder n„o foi anulada, no entanto, j· que negros e Ìndios n„o
podiam ter lugar, em absoluto, no controle dos recursos de produÁ„o, nem das instituiÁıes e mecanismos da
autoridade p˙blica.
Em meados do sÈculo XIX, Tocqueville (1835: cap. XVI e XVII) observou que nos Estados Unidos da
AmÈrica, gente de origens t„o diversos cultural, Ètnica e mesmo nacionalmente, eram incorporados todos em
algo parecido a uma m·quina de re-identificaÁ„o nacional; rapidamente se transformavam em cidad„os
estadunidenses e adquiriam uma nova identidade nacional, preservando por algum tempo suas identidades
originais. Tocqueville afirmou ent„o que o mecanismo b·sico desse processo de nacionalizaÁ„o era a
abertura da participaÁ„o democr·tica na vida polÌtica para todos os recÈm-chegados. Todos eles eram
atraÌdos a uma intensa participaÁ„o polÌtica e com a liberdade de decis„o de participar ou n„o. Mas viu
tambÈm que dois grupos especÌficos n„o estavam autorizados a participar da vida polÌtica. Estes eram,

120
evidentemente, negros e Ìndios. Essa discriminaÁ„o era, pois, o limite desse impressionante e massivo
processo de formaÁ„o do Estado-naÁ„o moderno na jovem rep˙blica dos Estados Unidos da AmÈrica.
Tocqueville n„o deixou de advertir que a menos que essa discriminaÁ„o social e polÌtica fosse eliminada, o
processo de construÁ„o nacional se veria limitado. Um sÈculo mais tarde, outro europeu, Gunnar Myrdall
(1944), observou essas mesmas limitaÁıes no processo nacional dos Estados Unidos. Viu tambÈm que
devido ao fato de que os novos imigrantes eram n„o-brancos (provinham da AmÈrica Latina e da ¡sia, em
sua maioria), as relaÁıes coloniais dos brancos com esses outros povos poderiam ser um sÈrio risco para a
reproduÁ„o dessa naÁ„o. Sem d˙vida esses riscos vÍm aumentando hoje em dia, na medida em que o velho
mito do melting pot foi abandonado ‡ forÁa e o racismo tende a ser de novo agudo e violento.
Em suma, a colonialidade das relaÁıes de dominaÁ„o/exploraÁ„o/conflito entre brancos e n„o-brancos,
n„o obstante sua intensa vigÍncia, dada a condiÁ„o vastamente majorit·ria dos primeiros n„o foi forte o
suficiente para impedir a relativa, mas real e importante, democratizaÁ„o do controle de recursos de
produÁ„o e do Estado, entre brancos, È verdade, mas com o vigor necess·rio para que pudesse ser
reclamada mais tarde tambÈm pelos n„o-brancos. O poder pÙde ser configurado na trajetÛria e na orientaÁ„o
de um Estado-naÁ„o. … a isso que se refere, sem d˙vida, a idÈia da RevoluÁ„o Americana.

AmÈrica Latina: Cone Sul e maioria branca


¿ primeira vista, a situaÁ„o nos paÌses do chamado Cone Sul da AmÈrica Latina (Argentina, Chile e
Uruguai) foi similar ‡ ocorrida nos Estados Unidos. Os Ìndios, em sua maioria, tampouco foram integrados ‡
sociedade colonial, na medida em que eram povos de mais ou menos a mesma estrutura daqueles da
AmÈrica do Norte, sem disponibilidade para transformar-se em trabalhadores explorados, n„o conden·veis a
trabalhar forÁadamente e de maneira disciplinada para os colonos. Nesses trÍs paÌses, tambÈm a populaÁ„o
negra foi uma minoria durante o perÌodo colonial, em comparaÁ„o com outras regiıes dominadas por
espanhÛis ou portugueses. E os dominantes dos novos paÌses do Cone Sul consideraram, como no caso dos
Estados Unidos, necess·ria a conquista do territÛrio que os Ìndios povoavam e o extermÌnio destes como
forma r·pida de homogeneizar a populaÁ„o nacional e, desse modo, facilitar o processo de constituiÁ„o de
um Estado-naÁ„o moderno, ‡ europÈia. Na Argentina e no Uruguai isso foi feito no sÈculo XIX. E no Chile
durante as trÍs primeiras dÈcadas do sÈculo XX. Estes paÌses atraÌram tambÈm milhıes de imigrantes
europeus, consolidando em aparÍncia a branquitude das sociedades da Argentina, do Chile e do Uruguai.
Em determinado sentido, isto tambÈm consolidou em aparÍncia o processo de homogenizaÁ„o em tais
paÌses.
Um elemento crucial introduziu, contudo, uma diferenÁa b·sica nesses paÌses em comparaÁ„o com o
caso estadunidense, muito em especial na Argentina. Enquanto nos Estados Unidos a distribuiÁ„o da terra
produziu-se de uma maneira menos concentrada durante um importante perÌodo, na Argentina a apropriaÁ„o
da terra ocorreu de uma maneira completamente distinta. A extrema concentraÁ„o da propriedade da terra,
em particular das terras conquistadas aos Ìndios, tornou impossÌvel qualquer tipo de relaÁıes sociais
democr·ticas entre os prÛprios brancos e em conseq¸Íncia de toda relaÁ„o polÌtica democr·tica. Sobre essa
base, em lugar de uma sociedade democr·tica, capaz de representar-se e organizar-se politicamente num
Estado democr·tico, o que se constituiu foi uma sociedade e um Estado olig·rquicos, sÛ parcialmente
desmantelados desde a Segunda Guerra Mundial. Sem d˙vida, essas determinaÁıes se associaram ao fato
de que a sociedade colonial nesse territÛrio, sobretudo na costa atl‚ntica que se tornou hegemÙnica sobre o
resto, foi pouco desenvolvida e por isso seu reconhecimento como sede de um Vice-reino foi tardio (segunda
metade do sÈculo XVIII). Sua emergÍncia como uma das ·reas prÛsperas do mercado mundial foi r·pida
desde o ˙ltimo quarto do sÈculo XVIII, o que impulsionou no sÈculo seguinte uma massiva migraÁ„o do sul,
do centro e do leste da Europa. Mas essa vasta populaÁ„o migratÛria n„o encontrou uma sociedade com
estrutura, histÛria e identidade suficientemente densas e est·veis, para incorporar-se a ela e com ela
identificar-se, como ocorreu no caso dos Estados Unidos e sem d˙vida no Chile e no Uruguai. Em fins do
sÈculo XIX a populaÁ„o de Buenos Aires compunha-se em mais de 80% por imigrantes de origem europÈia.
Levou tempo, por isso provavelmente, para que se considerassem com identidade nacional e cultural
prÛprias diferentes da europÈia, enquanto rejeitavam explicitamente a identidade associada ‡ heranÁa
25
histÛrica latino-americana e, em particular, qualquer parentesco com a populaÁ„o indÌgena .
A concentraÁ„o da terra foi igualmente forte no Chile, e um pouco menor no Uruguai. De qualquer modo,
diferentemente da Argentina, os imigrantes europeus encontraram nesses paÌses uma sociedade, um
Estado, uma identidade j· suficientemente densos e constituÌdos, aos quais se incorporaram e com os quais
se identificaram mais pronta e completamente que no outro caso. No caso do Chile, por outra lado, a
expans„o territorial ‡s custas da BolÌvia e do Peru permitia ‡ burguesia chilena o controle de recursos cuja
import‚ncia marcou desde ent„o a histÛria do paÌs: salitre primeiro, e cobre pouco depois. Nas pampas
salitreiras formou-se o primeiro grande contingente de assalariados oper·rios da AmÈrica Latina, desde
mediados do sÈculo XIX, e mais tarde foi no cobre que se formou a coluna vertebral das organizaÁıes sociais
e polÌticas dos oper·rios chilenos da velha rep˙blica. Os benefÌcios, distribuÌdos entre a burguesia brit‚nica e
a chilena, permitiram o impulso da agricultura comercial e da economia comercial urbana. Formaram-se
121
novas camadas de assalariados urbanos e novas camadas mÈdias relativamente amplas, junto com a
modernizaÁ„o de uma parte importante da burguesia senhorial. Foram essas condiÁıes as que tornaram
possÌvel que os trabalhadores e as classes mÈdias pudessem negociar com algum Íxito, desde 1930-35, as
condiÁıes da dominaÁ„o/exploraÁ„o/conflito. Isto È, da democracia nas condiÁıes do capitalismo. Desse
modo, pÙde ser estabelecido um poder configurado como Estado-naÁ„o de brancos, logicamente. Os Ìndios,
exÌgua minoria de sobreviventes habitando as terras mais pobres e inÛspitas do paÌs, foram excluÌdos desse
Estado-naÁ„o. AtÈ h· pouco eram sociologicamente invisÌveis. Agora n„o o s„o tanto, comeÁam a mobilizar-
se em defesa dessas mesmas terras que tambÈm arriscam perder face ao capital global.
O processo de homogenizaÁ„o dos membros da sociedade imaginada de uma perspectiva eurocÍntrica
como caracterÌstica e condiÁ„o dos Estados-naÁ„o modernos, foi levado a cabo nos paÌses do Cone Sul
latino-americano n„o por meio da descolonizaÁ„o das relaÁıes sociais e polÌticas entre os diversos
componentes da populaÁ„o, mas pela eliminaÁ„o massiva de alguns deles (Ìndios, negros e mestiÁos). Ou
seja, n„o por meio da democratizaÁ„o fundamental das relaÁıes sociais e polÌticas, mas pela exclus„o de
uma parte da populaÁ„o. Dadas essas condiÁıes originais, a democracia alcanÁada e o Estado-naÁ„o
constituÌdo n„o podiam ser afirmados e est·veis. A histÛria polÌtica desses paÌses, muito especialmente
26
desde fins da dÈcada de 60 atÈ o presente, n„o poderia ser explicada ‡ margem dessas determinaÁıes .

Maioria indÌgena, negra e mestiÁa: o impossÌvel ìmoderno Estado-naÁ„oî


No restante dos paÌses latino-americanos, essa trajetÛria eurocÍntrica em direÁ„o ao Estado-naÁ„o se
demonstrou atÈ agora impossÌvel de chegar a termo. ApÛs a derrota de Tupac Amaru e do Haiti, sÛ nos
casos do MÈxico e da BolÌvia chegou-se t„o longe quanto possÌvel no caminho da descolonizaÁ„o social,
atravÈs de um processo revolucion·rio mais ou menos radical, durante o qual a descolonizaÁ„o do poder
pÙde percorrer um trecho importante antes de ser contida e derrotada. Nesses paÌses, ao comeÁar a
IndependÍncia, principalmente aqueles que foram demogr·fica e territorialmente extensos em princÌpios do
sÈculo XIX, aproximadamente um pouco mais de 90% do total da populaÁ„o era de negros, Ìndios e
mestiÁos. Contudo, em todos estes paÌses, durante o processo de organizaÁ„o dos novos Estados, a tais
raÁas foi negada toda possÌvel participaÁ„o nas decisıes sobre a organizaÁ„o social e polÌtica. A pequena
minoria branca que assumiu o controle desses Estados viu-se inclusive com a vantagem de estar livre das
restriÁıes da legislaÁ„o da Coroa Espanhola, que se dirigiam formalmente ‡ proteÁ„o das raÁas colonizadas.
A partir daÌ chegaram inclusive a impor novos tributos coloniais aos Ìndios, sem prejuÌzo de manter a
escravid„o dos negros por muitas dÈcadas. Claro que esta minoria dominante se encontrava agora livre para
expandir sua propriedade da terra ‡s custas dos territÛrios reservados aos Ìndios pela regulamentaÁ„o da
Coroa Espanhola. No caso do Brasil, os negros n„o eram nada alÈm de escravos e a maioria dos Ìndios
constituÌa-se de povos da AmazÙnia, sendo desta maneira estrangeiros para o novo Estado.
O Haiti foi um caso excepcional onde se produziu, no mesmo movimento histÛrico, uma revoluÁ„o
nacional, social e racial. Quer dizer, uma descolonizaÁ„o real e global do poder. Sua derrota produziu-se
pelas repetidas intervenÁıes militares por parte dos Estados Unidos. O outro processo nacional na AmÈrica
Latina, no Vice-reino do Peru, liderado por Tupac Amaru II em 1780, foi derrotado cedo. Desde ent„o, em
todas as demais colÙnias ibÈricas os grupos dominantes tiveram Íxito precisamente em evitar a
descolonizaÁ„o da sociedade enquanto lutavam por Estados independentes.
Esses novos Estados n„o poderiam ser considerados de modo algum como nacionais, salvo que se admita
que essa exÌgua minoria de colonizadores no controle fosse genuinamente representante do conjunto da
populaÁ„o colonizada. As respectivas sociedades, baseadas na dominaÁ„o colonial de Ìndios, negros e
mestiÁos, n„o poderiam tampouco ser consideradas nacionais, e muito menos democr·ticas. Isto coloca uma
27
situaÁ„o aparentemente paradoxal: Estados independentes e sociedades coloniais . O paradoxo È somente
parcial ou superficial, se observamos com mais cuidado os interesses sociais dos grupos dominantes daquelas
sociedades coloniais e de seus Estados independentes.
Na sociedade colonial brit‚nico-americana, j· que os Ìndios constituÌam um povo estrangeiro, vivendo
alÈm dos confins da sociedade colonial, a servid„o n„o esteve t„o estendida como na sociedade colonial da
AmÈrica IbÈrica. Os servos (indentured servants) trazidos da Gr„-Bretanha n„o eram legalmente servos, e
apÛs a IndependÍncia n„o o foram por muito tempo. Os escravos negros foram de import‚ncia b·sica para a
economia, mas demograficamente eram minoria. E desde o comeÁo, depois da IndependÍncia, a produÁ„o
foi feita em grande medida por trabalhadores assalariados e produtores independentes. No Chile, durante o
perÌodo colonial, a servid„o indÌgena foi restringida, j· que os servos Ìndios locais eram uma pequena
minoria. E os escravos negros, apesar de serem mais importantes para a economia, eram tambÈm uma
pequena minoria. Deste modo, essas raÁas n„o eram uma grande fonte de trabalho gratuito como no caso
dos demais paÌses ibÈricos. Conseq¸entemente, desde o inÌcio da IndependÍncia uma crescente proporÁ„o
da produÁ„o local esteve baseada nos sal·rios e no capital, e por essa raz„o o mercado interno foi vital para
a burguesia prÈ-monopÛlica. Assim, para as classes dominantes de ambos os paÌses ñtoutes distances
gardÈesñ o trabalho assalariado local, a produÁ„o e o mercado interno foram preservados e protegidos da

122
concorrÍncia externa como a ˙nica e a mais importante fonte de benefÌcio capitalista. Mais ainda, o mercado
interno teve que ser expandido e protegido. Nesse sentido, havia algumas ·reas de interesses comuns entre
os trabalhadores assalariados, os produtores independentes e a burguesia local. Isto, em conseq¸Íncia, com
as limitaÁıes derivadas da exclus„o de negros e mestiÁos, era um interesse nacional para a grande maioria
da populaÁ„o do novo Estado-naÁ„o.

Estado independente e sociedade colonial: dependÍncia histÛrico-estrutural


Por outro lado, nas outras sociedades ibero-americanas, a pequena minoria branca no controle dos
Estados independentes e das sociedades coloniais n„o podia ter tido nem sentido nenhum interesse social
comum com os Ìndios, negros e mestiÁos. Ao contr·rio, seus interesses sociais eram explicitamente
antagÙnicos com relaÁ„o aos dos servos Ìndios e os escravos negros, dado que seus privilÈgios
compunham-se precisamente do domÌnio/exploraÁ„o dessas gentes. De modo que n„o havia nenhum
terreno de interesses comuns entre brancos e n„o brancos, e, conseq¸entemente, nenhum interesse
nacional comum a todos eles. Por isso, do ponto de vista dos dominadores, seus interesses sociais estiveram
muito mais prÛximos dos interesses de seus pares europeus, e por isso estiveram sempre inclinados a seguir
os interesses da burguesia europÈia. Eram, pois, dependentes.
Eram dependentes dessa maneira especÌfica, n„o porque estivessem subordinados por um poder
econÙmico ou polÌtico maior. De quem? Espanha ou Portugal eram ent„o demasiadamente fracos,
subdesenvolviam-se, n„o podiam exercer nenhum neocolonialismo como ingleses ou franceses em certos
paÌses da ¡frica depois da independÍncia polÌtica desses paÌses. Os Estados Unidos encontravam-se
absorvidos na conquista das terras dos Ìndios e no extermÌnio dessa populaÁ„o, iniciando sua expans„o
imperial sobre parte do Caribe, ainda sem capacidade de expandir seu domÌnio econÙmico ou polÌtico. A
Inglaterra tentou ocupar Buenos Aires e foi derrotada.
Os senhores brancos latino-americanos, donos do poder polÌtico e de servos e de escravos, n„o tinham
interesses comuns, e sim exatamente antagÙnicos aos desses trabalhadores, que eram a avassaladora
maioria da populaÁ„o dos novos Estados. E enquanto na Europa e nos Estados Unidos a burguesia branca
expandia a relaÁ„o social chamada capital como eixo de articulaÁ„o da economia e da sociedade, os
senhores latino-americanos n„o podiam acumular seus muitos benefÌcios comerciais comprando forÁa de
trabalho assalariada, precisamente porque isso ia contra a reproduÁ„o de sua condiÁ„o de senhores. E
destinavam esses benefÌcios comerciais ao consumo ostentoso das mercadorias produzidas, sobretudo, na
Europa.
A dependÍncia dos capitalistas senhoriais desses paÌses tinha como conseq¸Íncia uma fonte
inescap·vel: a colonialidade de seu poder levava-os a perceber seus interesses sociais como iguais aos
dos outros brancos dominantes, na Europa e nos Estados Unidos. Essa mesma colonialidade do poder
impedia-os, no entanto, de desenvolver realmente seus interesses sociais na mesma direÁ„o que os de
seus pares europeus, isto È, transformar capital comercial (benefÌcio igualmente produzido na
escravid„o, na servid„o, ou na reciprocidade) em capital industrial, j· que isso implicava libertar Ìndios
servos e escravos negros e transform·-los em trabalhadores assalariados. Por Ûbvias razıes, os
dominadores coloniais dos novos Estados independentes, em especial na AmÈrica do Sul depois da
crise de fins do sÈculo XVIII, n„o podiam ser nada alÈm de sÛcios menores da burguesia europÈia.
Quando muito mais tarde foi necess·rio libertar os escravos, n„o foi para assalari·-los, mas para
substituÌ-los por trabalhadores imigrantes de outros paÌses, europeus e asi·ticos. A eliminaÁ„o da
servid„o dos Ìndios È recente. N„o havia nenhum interesse social comum, nenhum mercado prÛprio a
defender, o que teria incluÌdo o assalariado, j· que nenhum mercado local era de interesse dos
dominadores. N„o havia, simplesmente, nenhum interesse nacional.
A dependÍncia dos senhores capitalistas n„o provinha da subordinaÁ„o nacional. Esta foi, pelo
contr·rio, a conseq¸Íncia da comunidade de interesses raciais. Estamos lidando aqui com o conceito da
dependÍncia histÛrico-estrutural, que È muito diferente das propostas nacionalistas da dependÍncia
externa ou estrutural (Quijano, 1967). A subordinaÁ„o veio mais adiante, precisamente devido ‡
dependÍncia e n„o o contr·rio: durante a crise econÙmica mundial dos anos 30, a burguesia com mais
capital comercial da AmÈrica Latina (Argentina, Brasil, MÈxico, Chile, Uruguai e atÈ certo ponto a
ColÙmbia) foi forÁada a produzir localmente os bens que serviam para seu consumo ostentador e que
antes tinham que importar. Este foi o inÌcio do peculiar caminho latino-americano de industrializaÁ„o
dependente: a substituiÁ„o dos bens importados para o consumo ostentador dos senhores e dos
pequenos grupos mÈdios associados a eles, por produtos locais destinados a esse consumo. Para tal
finalidade n„o era necess·rio reorganizar globalmente as economias locais, assalariar massivamente
servos, nem produzir tecnologia prÛpria. A industrializaÁ„o atravÈs da substituiÁ„o de importaÁıes È, na
28
AmÈrica Latina, um caso revelador das implicaÁıes da colonialidade do poder .
Neste sentido, o processo de independÍncia dos Estados na AmÈrica Latina sem a descolonizaÁ„o da
sociedade n„o pÙde ser, n„o foi, um processo em direÁ„o ao desenvolvimento dos Estados-naÁ„o
123
modernos, mas uma rearticulaÁ„o da colonialidade do poder sobre novas bases institucionais. Desde ent„o,
durante quase 200 anos, estivemos ocupados na tentativa de avanÁar no caminho da nacionalizaÁ„o de
nossas sociedades e nossos Estados. Mas ainda em nenhum paÌs latino-americano È possÌvel encontrar
uma sociedade plenamente nacionalizada nem tampouco um genuÌno Estado-naÁ„o. A homogenizaÁ„o
nacional da populaÁ„o, segundo o modelo eurocÍntrico de naÁ„o, sÛ teria podido ser alcanÁada atravÈs de
um processo radical e global de democratizaÁ„o da sociedade e do Estado. Antes de mais nada, essa
democratizaÁ„o teria implicado, e ainda deve implicar, o processo da descolonizaÁ„o das relaÁıes sociais,
polÌticas e culturais entre as raÁas, ou mais propriamente entre grupos e elementos de existÍncia social
europeus e n„o europeus. N„o obstante, a estrutura de poder foi e ainda segue estando organizada sobre e
ao redor do eixo colonial. A construÁ„o da naÁ„o e sobretudo do Estado-naÁ„o foram conceitualizadas e
trabalhadas contra a maioria da populaÁ„o, neste caso representada pelos Ìndios, negros e mestiÁos. A
colonialidade do poder ainda exerce seu domÌnio, na maior parte da AmÈrica Latina, contra a democracia, a
cidadania, a naÁ„o e o Estado-naÁ„o moderno.
Atualmente podem-se distinguir quatro trajetÛrias histÛricas e linhas ideolÛgicas acerca do problema do
Estado-naÁ„o:
1. Um limitado mas real processo de descolonizaÁ„o/democratizaÁ„o atravÈs de revoluÁıes radicais como
no MÈxico e na BolÌvia, depois das derrotas do Haiti e de Tupac Amaru. No MÈxico, o processo de
descolonizaÁ„o do poder comeÁou a ver-se paulatinamente limitado desde os anos 60 atÈ entrar
finalmente num perÌodo de crise no final dos anos 70. Na BolÌvia a revoluÁ„o foi derrotada em 1965.
2. Um limitado mas real processo de homogeneizaÁ„o colonial (racial), como no Cone Sul (Chile, Uruguai,
Argentina), por meio de um genocÌdio massivo da populaÁ„o aborÌgene. Uma variante dessa linha È a
ColÙmbia, onde a populaÁ„o original foi quase exterminada durante a colÙnia e substituÌda pelos negros.
3. Uma sempre frustrada tentativa de homogeneizaÁ„o cultural atravÈs do genocÌdio cultural dos Ìndios,
negros e mestiÁos, como no MÈxico, Peru, Equador, Guatemala-AmÈrica Central e BolÌvia.
4. A imposiÁ„o de uma ideologia de ìdemocracia racialî que mascara a verdadeira discriminaÁ„o e a
dominaÁ„o colonial dos negros, como no Brasil, na ColÙmbia e na Venezuela. Dificilmente alguÈm pode
reconhecer com seriedade uma verdadeira cidadania da populaÁ„o de origem africana nesses paÌses,
ainda que as tensıes e conflitos raciais n„o sejam t„o violentos e explÌcitos como na ¡frica do Sul ou no
sul dos Estados Unidos.
O que estas comprovaÁıes indicam È que h·, sem d˙vida, um elemento que impede radicalmente o
desenvolvimento e a culminaÁ„o da nacionalizaÁ„o da sociedade e do Estado, na mesma medida em que
impede sua democratizaÁ„o, j· que n„o se encontra nenhum exemplo histÛrico de modernos Estado-naÁ„o
que n„o sejam o resultado dessa democratizaÁ„o social e polÌtica. Qual È ou pode ser esse elemento?
No mundo europeu, e por isso na perspectiva eurocÍntrica, a formaÁ„o de Estados-naÁ„o foi
teorizada, imaginada na verdade, como express„o da homogeneizaÁ„o da populaÁ„o em termos de
experiÍncias histÛricas comuns. E ‡ primeira vista, os casos exitosos de nacionalizaÁ„o de sociedades e
Estados na Europa parece dar raz„o a esse enfoque. O que encontramos na histÛria conhecida È, desde
logo, que essa homogeneizaÁ„o consiste na formaÁ„o de um espaÁo comum de identidade e de sentido
para a populaÁ„o de um espaÁo de dominaÁ„o. E isso, em todos os casos, È o resultado da
democratizaÁ„o da sociedade, que desse modo pode organizar-se e expressar-se num Estado
democr·tico. A pergunta pertinente, a estas alturas do debate, È: por que isso foi possÌvel na Europa
Ocidental, e com as limitaÁıes conhecidas, em todo o mundo de identidade europÈia (Canad·, EUA,
Austr·lia, Nova Zel‚ndia, por exemplo)? Por que n„o foi possÌvel, atÈ hoje, sen„o de modo parcial e
prec·rio, na AmÈrica Latina?
Para comeÁar, teria sido possÌvel na FranÁa, o caso cl·ssico de Estado-naÁ„o moderno, essa
democratizaÁ„o social e radical se o fator racial tivesse estado presente? … muito pouco prov·vel. Hoje em
dia È f·cil observar na FranÁa o problema nacional e o debate produzido pela presenÁa de populaÁ„o n„o-
branca, origin·ria das ex-colÙnias francesas. Obviamente n„o È um assunto de etnicidade nem de crenÁas
religiosas. Novamente basta recordar que h· um sÈculo o Caso Dreyfus demonstrou a capacidade de
discriminaÁ„o dos franceses, mas seu final tambÈm demonstrou que para muitos deles a identidade de
origem n„o era requisito determinante para ser membro da naÁ„o francesa, desde que a cor fosse
francesa. Os judeus franceses s„o hoje mais franceses que os filhos de africanos, ·rabes e latino-
americanos nascidos na FranÁa. Isto para n„o mencionar o sucedido com os imigrantes russos e
espanhÛis cujos filhos, por terem nascido na FranÁa, s„o franceses.
Isto quer dizer que a colonialidade do poder baseada na imposiÁ„o da idÈia de raÁa como instrumento de
dominaÁ„o foi sempre um fator limitante destes processos de construÁ„o do Estado-naÁ„o baseados no
modelo eurocÍntrico, seja em menor medida como no caso estadunidense ou de modo decisivo como na
AmÈrica Latina. O grau atual de limitaÁ„o depende, como foi demonstrado, da proporÁ„o das raÁas
colonizadas dentro da populaÁ„o total e da densidade de suas instituiÁıes sociais e culturais.

124
Por tudo isso, a colonialidade do poder estabelecida sobre a idÈia de raÁa deve ser admitida como um
fator b·sico na quest„o nacional e do Estado-naÁ„o. O problema È, contudo, que na AmÈrica Latina a
perspectiva eurocÍntrica foi adotada pelos grupos dominantes como prÛpria e levou-os a impor o modelo
europeu de formaÁ„o do Estado-naÁ„o para estruturas de poder organizadas em torno de relaÁıes coloniais.
Assim, ainda nos encontramos hoje num labirinto em que o Minotauro È sempre visÌvel, mas sem nenhuma
Ariadne para mostrar-nos a ansiada saÌda.

Eurocentrismo e revoluÁ„o na AmÈrica Latina


Outro caso claro desse tr·gico desencontro entre nossa experiÍncia e nossa perspectiva de
conhecimento È o debate e a pr·tica de projetos revolucion·rios. No sÈculo XX a avassaladora maioria da
esquerda latino-americana, adepta do Materialismo HistÛrico, manteve o debate basicamente em torno de
dois tipos de revoluÁıes: democr·tico-burguesa e socialista. Rivalizando com essa esquerda, o movimento
denominado aprista ño APRA (AlianÁa Popular Revolucion·ria Anti-imperialista) no Peru, a AD (AÁ„o
Democr·tica na Venezuela), o MNR (Movimento Nacionalista Revolucion·rio) na BolÌvia, o MLN (Movimento
de LibertaÁ„o Nacional) na Costa Rica, o Movimento Revolucion·rio AutÍntico e os Ortodoxos em Cuba entre
os mais importantesñ pela boca de seu maior teÛrico, o peruano Haya de la Torre, propÙs originalmente,
entre 1925-1935, a chamada RevoluÁ„o Anti-imperialista, como um processo de depuraÁ„o do car·ter
capitalista da economia e da sociedade latino-americanas, sobre a base do controle nacional-estatal dos
principais recursos de produÁ„o, como uma transiÁ„o em direÁ„o a uma revoluÁ„o socialista. Desde o fim da
29
Segunda Guerra Mundial, esse projeto transitou definitivamente para uma espÈcie de social-liberalismo , e
se vai esgotando desse modo.
De maneira breve e esquem·tica, mas n„o arbitr·ria, pode-se apresentar o debate latino-americano sobre
a revoluÁ„o democr·tico-burguesa como um projeto no qual a burguesia organiza a classe oper·ria, os
camponeses e outros grupos dominados para arrancar dos senhores feudais o controle do Estado e para
reorganizar a sociedade e o Estado nos termos do capital e da burguesia. A suposiÁ„o central desse projeto
È que a sociedade na AmÈrica Latina È fundamentalmente feudal, ou semifeudal na melhor das hipÛteses, j·
que o capitalismo È ainda incipiente, marginal e subordinado. A revoluÁ„o socialista, por sua vez, concebe-se
como a erradicaÁ„o da burguesia do controle do Estado pela classe oper·ria, a classe trabalhadora por
excelÍncia, ‡ frente de uma coaliz„o das classes exploradas e dominadas, para impor o controle estatal dos
meios de produÁ„o, e construir a nova sociedade por meio do Estado. A tese dessa proposta È, obviamente,
a de que a economia e portanto a sociedade e o Estado na AmÈrica Latina s„o basicamente capitalistas. Em
sua linguagem, isso implica que o capital como relaÁ„o social de produÁ„o È dominante, e que
conseq¸entemente o burguÍs È tambÈm dominante na sociedade e no Estado. Admite que h· resÌduos
feudais, e portanto tarefas democr·tico-burguesas no trajeto da revoluÁ„o socialista.
De fato, o debate polÌtico do ˙ltimo meio sÈculo na AmÈrica Latina tem estado ancorado na quest„o da
pretensa feudalidade/semifeudalidade da economia, da sociedade e do Estado, ou se seriam capitalistas. A
maioria da esquerda latino-americana, atÈ h· poucos anos, aderia ‡ proposta democr·tico-burguesa,
seguindo antes de tudo os alinhamentos centrais do socialismo real ou do campo socialista, seja com sede
em Moscou ou em Pequim.
Para acreditar que na AmÈrica Latina uma revoluÁ„o democr·tico-burguesa baseada no modelo europeu
È n„o sÛ possÌvel, mas necess·ria, primeiro È preciso admitir na AmÈrica, e mais precisamente na AmÈrica
Latina: 1) a relaÁ„o seq¸encial entre feudalismo e capitalismo; 2) a existÍncia histÛrica do feudalismo e
conseq¸entemente o conflito histÛrico antagÙnico entre a aristocracia feudal e a burguesia; e 3) uma
burguesia interessada em levar a cabo semelhante empreendimento revolucion·rio. Sabemos que na China
no inÌcio dos anos 30, Mao propÙs a idÈia da revoluÁ„o democr·tica de novo tipo, porque a burguesia j· n„o
est· interessada nessa sua miss„o histÛrica, e tampouco È capaz de lev·-la a cabo. Neste caso, uma
coaliz„o de classes exploradas/dominadas, sob a lideranÁa da classe trabalhadora, deve substituir a
burguesia e empreender a nova revoluÁ„o democr·tica.
Na AmÈrica, contudo, como em escala mundial desde 500 anos atr·s, o capital existe apenas como o eixo
dominante da articulaÁ„o conjunta de todas as formas historicamente conhecidas de controle e exploraÁ„o
do trabalho, configurando assim um ˙nico padr„o de poder, histÛrico-estruturalmente heterogÍneo, com
relaÁıes descontÌnuas e conflitivas entre seus componentes. Nenhuma seq¸Íncia evolucionista entre os
modos de produÁ„o, nenhum feudalismo anterior, separado do capital e a ele antagÙnico, nenhum senhorio
feudal no controle do Estado, ao qual uma burguesia sedenta de poder tivesse que desalojar por meios
revolucion·rios. Se seq¸Íncia houvera, È sem d˙vida surpreendente que o movimento seguidor do
Materialismo HistÛrico n„o haja lutado por uma revoluÁ„o anti-escravista, prÈvia ‡ revoluÁ„o antifeudal,
prÈvia por sua ‡ revoluÁ„o anticapitalista. Porque na maior parte deste continente (EUA, todo o Caribe,
incluindo Venezuela, ColÙmbia, o litoral do Equador e do Peru, Brasil), o escravismo foi mais generalizado e
mais poderoso. Mas, È claro, a escravid„o terminou antes do sÈculo XX. E foram os senhores feudais os que
herdaram o poder. N„o È verdade?

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Uma revoluÁ„o antifeudal, portanto democr·tico-burguesa, no sentido eurocÍntrico sempre foi, portanto,
uma impossibilidade histÛrica. As ˙nicas revoluÁıes democr·ticas realmente ocorridas na AmÈrica (alÈm da
RevoluÁ„o Americana) foram as do MÈxico e da BolÌvia, como revoluÁıes populares, nacionalistas-anti-
imperialistas, anticoloniais, isto È, contra a colonialidade do poder, e anti-olig·rquicas, isto È, contra o controle
do Estado pela burguesia senhorial sob a proteÁ„o da burguesia imperial. Na maioria dos outros paÌses, o
processo foi um processo de depuraÁ„o gradual e desigual do car·ter social, capitalista, da sociedade e do
Estado. Logo, o processo foi sempre muito lento, irregular e parcial.
Poderia ter sido de outra maneira? Toda democratizaÁ„o possÌvel da sociedade na AmÈrica Latina deve
ocorrer na maioria destes paÌses, ao mesmo tempo e no mesmo movimento histÛrico como uma
descolonizaÁ„o e como uma redistribuiÁ„o do poder. Em outras palavras, como uma redistribuiÁ„o radical do
poder. Isto se deve, primeiro, a que as ìclasses sociaisî, na AmÈrica Latina, tÍm ìcorî, qualquer ìcorî que se
possa encontrar em qualquer paÌs, em qualquer momento. Isso quer dizer, definitivamente, que a
classificaÁ„o das pessoas n„o se realiza somente num ‚mbito do poder, a economia, por exemplo, mas em
todos e em cada um dos ‚mbitos. A dominaÁ„o È o requisito da exploraÁ„o, e a raÁa È o mais eficaz
instrumento de dominaÁ„o que, associado ‡ exploraÁ„o, serve como o classificador universal no atual padr„o
mundial de poder capitalista. Nos termos da quest„o nacional, sÛ atravÈs desse processo de democratizaÁ„o
da sociedade pode ser possÌvel e finalmente exitosa a construÁ„o de um Estado-naÁ„o moderno, com todas
as suas implicaÁıes, incluindo a cidadania e a representaÁ„o polÌtica.
Quanto ‡ miragem eurocÍntrica acerca das revoluÁıes ìsocialistasî, como controle do Estado e como
estatizaÁ„o do controle do trabalho/recursos/produtos, da subjetividade/recursos/produtos, do
sexo/recursos/produtos, essa perspectiva funda-se em duas suposiÁıes teÛricas radicalmente falsas.
Primeiro, a idÈia de uma sociedade capitalista homogÍnea, no sentido de que sÛ o capital como relaÁ„o
social existe e portanto a classe oper·ria industrial assalariada È a parte majorit·ria da populaÁ„o. Mas j·
vimos que n„o foi assim nunca, nem na AmÈrica Latina nem no restante do mundo, e que quase
seguramente n„o ocorrer· assim nunca. Segundo, a idÈia de que o socialismo consiste na estatizaÁ„o de
todos e cada um dos ‚mbitos do poder e da existÍncia social, comeÁando com o controle do trabalho, porque
do Estado se pode construir a nova sociedade. Essa suposiÁ„o coloca toda a histÛria, de novo, sobre sua
cabeÁa. Inclusive nos toscos termos do Materialismo HistÛrico, faz de uma superestrutura, o Estado, a base
da sociedade. E escamoteia o fato de uma total reconcentraÁ„o do controle do poder, o que leva
necessariamente ao total despotismo dos controladores, fazendo-a aparecer como se fosse uma socializaÁ„o
do poder, isto È, a redistribuiÁ„o radical do controle do poder. Mas, precisamente, o socialismo n„o pode ser
outra coisa que a trajetÛria de uma radical devoluÁ„o do controle sobre o trabalho/recursos/produtos, sobre o
sexo/recursos/produtos, sobre a autoridade/instituiÁıes/violÍncia, e sobre a
intersubjetividade/conhecimento/comunicaÁ„o, ‡ vida cotidiana das pessoas. Isso È o que proponho, desde
1972, como socializaÁ„o do poder (Quijano, 1972; 1981).
Solitariamente, em 1928, JosÈ Carlos Mari·tegui foi sem d˙vida o primeiro a vislumbrar, n„o sÛ na
AmÈrica Latina, que neste espaÁo/tempo as relaÁıes sociais de poder, qualquer que fosse seu car·ter
prÈvio, existiam e atuavam simult‚nea e articuladamente, numa ˙nica e conjunta estrutura de poder; que
esta n„o podia ser uma unidade homogÍnea, com relaÁıes contÌnuas entre seus elementos, movendo-se
na histÛria contÌnua e sistemicamente. Portanto, que a idÈia de uma revoluÁ„o socialista tinha que ser, por
necessidade histÛrica, dirigida contra o conjunto desse poder e que longe de consistir numa nova
reconcentraÁ„o burocr·tica do poder, sÛ podia ter sentido como redistribuiÁ„o entre as pessoas, em sua
30
vida cotidiana, do controle sobre as condiÁıes de sua existÍncia social . O debate n„o ser· retomado na
AmÈrica Latina sen„o a partir dos anos 60 do sÈculo h· pouco terminado, e no resto do mundo a partir da
derrota mundial do campo socialista.
Na realidade, cada categoria usada para caracterizar o processo polÌtico latino-americano tem sido
sempre um modo parcial e distorcido de olhar esta realidade. Essa È uma conseq¸Íncia inevit·vel da
perspectiva eurocÍntrica, na qual um evolucionismo unilinear e unidirecional se amalgama contraditoriamente
com a vis„o dualista da histÛria; um dualismo novo e radical que separa a natureza da sociedade, o corpo da
raz„o; que n„o sabe o que fazer com a quest„o da totalidade, negando-a simplesmente, como o velho
empirismo ou o novo pÛs-modernismo, ou entendendo-a sÛ de modo organicista ou sistÍmico, convertendo-a
assim numa perspectiva distorcedora, impossÌvel de ser usada salvo para o erro.
N„o È, pois, um acidente que tenhamos sido, por enquanto, derrotados em ambos os projetos
revolucion·rios, na AmÈrica e em todo o mundo. O que pudemos avanÁar e conquistar em termos de direitos
polÌticos e civis, numa necess·ria redistribuiÁ„o do poder, da qual a descolonizaÁ„o da sociedade È a
pressuposiÁ„o e ponto de partida, est· agora sendo arrasado no processo de reconcentraÁ„o do controle do
poder no capitalismo mundial e com a gest„o dos mesmos respons·veis pela colonialidade do poder.
Conseq¸entemente, È tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocÍntrico onde nossa imagem È
sempre, necessariamente, distorcida. … tempo, enfim, de deixar de ser o que n„o somos.

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Rabasa, JosÈ 1993 Inventing America. Spanish Historiography and the Formation of Eurocentrism (Norman: Oklahoma University
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Young, Robert C. 1995 Colonial Desire. Hybridity in Theory, Culture and Race (Londres: Routledge).

Notas
* Centro de Investigaciones Sociales (CIES), Lima.
1 Quero agradecer, principalmente, a Edgardo Lander e a Walter Mignolo, por sua ajuda na revis„o deste artigo. E a um
comentarista, cujo nome ignoro, por suas valiosas crÌticas a uma vers„o anterior. Desnecess·rio afirmar que eles n„o s„o
respons·veis pelos erros e limitaÁıes do texto.
2 Sobre o conceito de colonialidade do poder, ver AnÌbal Quijano (1992a).
3 Ver Quijano e Wallerstein (1992) e Quijano (1991). Sobre o conceito de espaÁo/tempo, ver Wallerstein (1997).
4 Sobre esta quest„o e sobre os possÌveis antecedentes da idÈia de raÁa antes da AmÈrica, remeto a Quijano (1992b).
5 A invenÁ„o da categoria de cor ñprimeiro como a mais visÌvel indicaÁ„o de raÁa, mais tarde simplesmente como o equivalente
delañ, tanto como a invenÁ„o da particular categoria de branco, exigem ainda uma pesquisa histÛrica mais exaustiva. Em todo caso,
muito provavelmente foram invenÁıes brit‚nico-americanas, j· que n„o h· rastros dessas categorias nas crÙnicas e em outros
documentos dos primeiros cem anos de colonialismo ibÈrico na AmÈrica. Para o caso brit‚nico-americano existe uma extensa
bibliografia (Theodore W. Allen, 1994 e Mathew Frye Jacobson, 1998, entre os mais importantes). O problema È que esta ignora o
sucedido na AmÈrica IbÈrica. Devido a isso, para esta regi„o ainda carecemos de informaÁ„o suficiente sobre este aspecto
especÌfico. Por isso esta segue sendo uma quest„o aberta. … muito interessante que apesar de que os que haveriam de ser
europeus no futuro, conheciam os futuros africanos desde a Època do impÈrio romano, inclusive os ibÈricos, que eram mais ou
menos familiares com eles muito antes da Conquista, nunca se pensou neles em termos raciais antes da apariÁ„o da AmÈrica. De
fato, raÁa È uma categoria aplicada pela primeira vez aos ìÌndiosî, n„o aos ìnegrosî. Deste modo, raÁa apareceu muito antes que
cor na histÛria da classificaÁ„o social da populaÁ„o mundial.
6 A idÈia de raÁa È, literalmente, uma invenÁ„o. N„o tem nada a ver com a estrutura biolÛgica da espÈcie humana. Quanto aos
traÁos fenotÌpicos, estes se encontram obviamente no cÛdigo genÈtico dos indivÌduos e grupos e nesse sentido especÌfico s„o
biolÛgicos. Contudo, n„o tÍm nenhuma relaÁ„o com nenhum dos subsistemas e processos biolÛgicos do organismo humano,
incluindo por certo aqueles implicados nos subsistemas neurolÛgicos e mentais e suas funÁıes. Ver Jonathan Mark (1994) e
AnÌbal Quijano (1999b).
7 Fernando Coronil (1996) discutiu a construÁ„o da categoria Ocidente como parte da formaÁ„o de um poder global.
8 Isso foi o que, segundo um relato pessoal, encontrou Alfred Metraux, o conhecido antropÛlogo francÍs, em fins dos anos 50 no Sul

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do Peru, e o mesmo que tambÈm encontrei em 1963, em Cusco: um trabalhador braÁal Ìndio obrigado a viajar de sua aldeia, em La
ConvenciÛn, atÈ a cidade, para cumprir seu turno de servir durante uma semana a seus patrıes. Mas estes n„o lhe proporcionavam
moradia, nem alimento, nem, desde logo, sal·rio. Metraux propunha que essa situaÁ„o estava mais prÛxima do colonato romano do
sÈculo IV d.C. que do feudalismo europeu.
9 Sobre o processo de produÁ„o de novas identidades histÛrico-geoculturais ver de Edmundo OíGorman (1954), JosÈ Rabasa
(1993), Enrique Dussel (1995), V. Y. Mudimbe (1988), Charles Tilly (1990), Edward Said (1979) e Fernando Coronil (1996).
10 Acerca dessas questıes, ver George W. Stocking Jr. (1968), Robert. C. Young (1995), AnÌbal Quijano (1992a; 1992c; 1997) e
Serge Gruzinski (1988).
11 Acerca das categorias produzidas durante o domÌnio colonial europeu do mundo, existe um bom n˙mero de linhas de debate:
ìestudos da subalternidadeî, ìestudos pÛs-coloniaisî, ìestudos culturaisî, ìmulticulturalismoî, entre os atuais. TambÈm uma
florescente bibliografia demasiado extensa para ser aqui citada e com nomes famosos entre eles, como Guha, Spivak, Said,
Bhabha, Hall.
12 H· uma vasta literatura em torno desse debate. Um sum·rio pode ser encontrado em meu texto ìEl fantasma del desarrollo en
AmÈrica Latinaî (Quijano, 2000a).
13 Sobre este tema ver as agudas observaÁıes de Robert C. Young (1995).
14 Um debate mais detido em Quijano (2000b).
15 Acerca das proposiÁıes teÛricas desta concepÁ„o do poder, ver Quijano (1999a).
16 No sentido de que as relaÁıes entre as partes e a totalidade n„o s„o arbitr·rias e a ˙ltima tem hegemonia sobre as partes na
orientaÁ„o do movimento do conjunto. N„o no sentido sistÍmico, quer dizer, em que as relaÁıes das partes entre si e com o
conjunto s„o lÛgico-funcionais. Isto n„o ocorre sen„o nas m·quinas e nos organismos. Nunca nas relaÁıes sociais.
17 A literatura do debate sobre o eurocentrismo cresce rapidamente. Uma posiÁ„o diferente da que orienta este artigo, ainda que
dela aparentada, È a de Samir Amin (1989).
18 Sobre a origem da categoria de heterogeneidade histÛrico-estrutural, ver meu ìNotas sobre el concepto de marginalidad
social, CEPALî, incorporado depois ao volume Imperialismo y Marginalidad en AmÈrica Latina (Quijano, 1977). Pode-se ver
tambÈm Quijano (1988a).
19 Sempre me perguntei pela origem de uma das mais caras propostas do Liberalismo: as idÈias devem ser respeitadas. O corpo,
por sua vez, pode ser torturado, triturado e morto. NÛs os latino-americanos acostumamos citar com admiraÁ„o a desafiante frase de
um m·rtir das lutas anticoloniais, no prÛprio momento de ser degolado: ìB·rbaros, as idÈias n„o se degolam!î. Sugiro agora que sua
origem deve ser buscada nesse novo dualismo cartesiano, que transformou o ìcorpoî em mera ìnaturezaî.
20 Ver Discours de la mÈthode, MÈditations e Description du corps humain (Descartes, 1963-1967). Paul BousquiÈ (1994) acerta
neste ponto: o cartesianismo È um novo dualismo radical.
21 Acerca desses processos na subjetividade eurocentrada, revela muito que a ˙nica categoria alternativa ao Ocidente era, e ainda
o È, o Oriente, enquanto que os negros (¡frica) ou os Ìndios (AmÈrica antes dos Estados Unidos) n„o tinham a honra de ser o Outro
da Europa ou Ocidente.
22 Como sugere Benedict Anderson (1991). Uma discuss„o mais extensa sobre este ponto em Quijano (1998a).
23 Uma discuss„o mais ampla sobre os limites e as condiÁıes da democracia numa estrutura de poder capitalista, em Quijano
(1998a; 2000a).
24 Provavelmente o antecedente mais prÛximo da idÈia de raÁa produzida pelos castelhanos na AmÈrica. Ver Quijano (1992b).
25 Ainda nos anos 20 em pleno sÈculo XX, H. Murena, um membro importante da inteligÍncia argentina, n„o hesitava em proclamar:
ìSomos europeus exilados nestas pampas selvagensî. Ver Eugenio Imaz (1964). E t„o tardiamente como nos anos 60, nas lutas
sociais, culturais e polÌticas da Argentina, ìcabecita negraî era o mote pejorativo da discriminaÁ„o especificamente racial.
26 A homogeneizaÁ„o È um elemento b·sico da perspectiva eurocentrista da nacionalizaÁ„o. Se assim n„o fosse, n„o se poderia
explicar, nem entender, os conflitos nacionais nos paÌses europeus cada vez que se coloca o problema das diferenÁas Ètnico-raciais
dentro da populaÁ„o. N„o se poderia entender tampouco, de outro modo, a polÌtica eurocÍntrica de povoamento favorecida pelos
liberais do Cone Sul da AmÈrica Latina, nem a origem e o sentido do assim chamado ìproblema indÌgenaî em toda a AmÈrica Latina.
Se os fazendeiros peruanos do sÈculo XIX importaram chineses, foi precisamente porque a quest„o nacional n„o estava em jogo
para eles, e sim o puro interesse social. Foi por essa perspectiva eurocentrista, fundada na colonialidade do poder, que a burguesia
senhorial latino-americana tem sido inimiga da democratizaÁ„o social e polÌtica como condiÁ„o de nacionalizaÁ„o da sociedade e do
Estado.
27 Nos anos 60 e 70 muitos cientistas sociais dentro e fora da AmÈrica Latina, entre os quais me incluo, usamos o conceito de
ìcolonialismo internoî para caracterizar a aparente relaÁ„o paradoxal dos Estados independentes com relaÁ„o a suas populaÁıes
colonizadas. Na AmÈrica Latina, Pablo Gonz·lez Casanova (1965) e Rodolfo Stavenhagen (1965) foram seguramente os mais
importantes entre os que trataram de teorizar o problema de maneira sistem·tica. Agora sabemos que esses s„o problemas acerca

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da colonialidade que v„o muito alÈm da trama institucional do Estado-naÁ„o.
28 Sobre estas questıes adiantei algumas propostas de debate em Quijano (1993).
29 A miopia eurocÍntrica, n„o apenas de estudiosos da Europa ou dos Estados Unidos mas tambÈm dos da AmÈrica Latina,
difundiu e quase impÙs universalmente o nome de populismo para esses movimentos e projetos que, contudo, tÍm pouco em
comum com o movimento dos narodnÌkis russos do sÈculo XIX ou do populismo estadunidense posterior. Uma discuss„o destas
questıes em Quijano (1998b).
30 Essa descoberta È, sem d˙vida, o que outorga a Mari·tegui seu maior valor e sua continuada vigÍncia, derrotados os socialismos
e seu materialismo histÛrico. Ver, sobretudo, a passagem final do primeiro de seus 7 Ensayos de InterpretaciÛn de la realidad
peruana (1928b), numerosamente reimpresso; ìPunto de Vista Antiimperialistaî apresentado ‡ Primeira ConferÍncia Comunista
Latino-americana, Buenos Aires (1929); e o cÈlebre ìAniversario y balanceî, editorial da revista Amauta (1928a).

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