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DeZEMBRO 2014
revista oficial da NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY ano 15 • No 177
COMIDA
Festa do paladar
A comida no centro da vida social.
Conexão Haiti
Os novos imigrantes que buscam trabalho no Brasil.
Caubóis da Patagônia
A lida com o gado mais indócil do planeta.
Seções
Visões Sua Foto Explore
Geladeiras
Capa
O garoto flutua agarrado a um “balão” de uvas, simbolizando
a alegria de comer. Ilustração de Javier Pérez
A grande beleza
Em uma época de notícias que correm o globo de
modo quase instantâneo, é uma honra poder
desfrutar de reportagens angariadas à custa de
tanto preparo, espera, maturação – feito um bom
queijo, um azeite ou um vinho, iguarias que
remetem à alegria de comer da capa desta edição.
Foram longas e cheias de privações as jornadas
de nossos repórteres. Alexandra Fuller cavalgou
durante semanas para descrever, com tocante
sensibilidade, a rudeza dos vaqueiros da
Patagônia, que não hesitam em derramar o
próprio sangue para preservar o apego à terra
e a tradição da lida com o gado. Os jovens Kevin
Damasio e Giulio Paletta conquistaram a
confiança de haitianos que deixaram seu país
para tentar a sorte no Brasil e, assim, viajaram
com eles desde o Acre até o Centro de São Paulo.
O escritor Paul Salopek, por sua vez, segue
sendo o ícone do que ele próprio chama de
“jornalismo lento”. Se Paul não tem pressa,
sobram-lhe fé, coração e coragem para levar
adiante o projeto Para Longe do Éden. Seu
périplo de sete anos e 33 000 quilômetros refaz
a rota percorrida há 60 mil anos pelos primeiros
Homo sapiens, que partiram do que é hoje a
Etiópia e chegaram até a Terra do Fogo, na
extremidade da América do Sul, a derradeira
paragem ocupada por esses ancestrais. Pelo
caminho, Paul interage com refugiados de
conflitos, peregrinos em busca da salvação,
mercadores, nômades e deserdados de todo
tipo, em encontros que lhe permitem revisitar
a condição humana. Seu relato do último Natal
em meio aos fiéis da Terra Santa tem, não por
acaso, contornos bíblicos – um memorável
experimento narrativo para os nossos tempos
tão corrompidos pela ansiedade. “Durante a
árdua e improvável caminhada, sempre me
lembro”, conta ele, “do arrebatamento de Santo
Agostinho ao exclamar: ‘Como demorei para te
amar, ó beleza, tão antiga e tão nova’.”
Que essas belas histórias despertem a
imaginação e o paladar dos leitores e possam ser
debatidas alegremente ao redor de boa comida
e bebida nas festas que se aproximam para
celebrar o final de mais um ano.
Ronaldo Ribeiro,
Editor Sênior
John Stanmeyer
Visões
Japão
Jovem na entrada caleidoscópica do
toque
para ver shopping Tokyu Plaza Omotesando Harajuku,
a imagem
ampliada em Tóquio. Atrás dela, os espelhos refletem
as imagens “dos consumidores em um
dos bairros mais elegantes da cidade.
dina litovsky, polaris
Visões
Indonésia
Em Kertasura, cobras mortas são enroladas
toque
para ver antes de ser postas à venda como alimento
a imagem
ampliada ou remédio. Os répteis são caçados por aldeões
– o comércio de serpentes movimenta 1 bilhão
de dólares em todo o planeta.
nurcholis anhari lubis, getty images
Visões
Índia
Noivas pintadas com tintura de hena aguardam
toque
para ver o início do casamento coletivo. Em Mumbai,
a imagem
ampliada 35 casais se uniram nessa cerimônia, promovida
por uma organização islâmica para reduzir
os custos para as famílias pobres.
danish siddiqui, reuters
Visões Sua Foto
Concurso
Todos os meses escolhemos as melhores imagens enviadas pelos
leitores. Você também tem uma bacana? Participe. Os vencedores
têm suas fotos publicadas na revista e ganham um guia de
fotografia de national geographic.
Mostra-me tua
geladeira, e te
direi quem és
Mark Menjivar gosta de fuçar na cozinha alheia
– e apontar uma câmera. Para o projeto que
batizou de Geladeiras, o assistente social que
virou fotógrafo registra o conteúdo dos
refrigeradores de pessoas de todos os níveis
sociais. Ele tende a colocar legendas oblíquas
nas fotos. Por exemplo, “parteira que confessou
que come apenas produtos locais”. O barman
“vai dormir às 8 da manhã e acorda às 4 da
tarde” (sem tempo para consumir o que restou
da comida para viagem). Mostras das fotos em
tamanho real, conta Menjivar, geram discussões
“sobre o nosso relacionamento pessoal com
a comida, e também sobre a relação da
sociedade com os sistemas de produção
e circulação de alimentos”.
técnico de futebol e assistente social
barman
propagandista de rua
botânico
Engenheiro
universitários
Mark Menjivar
explore
Bichos
Trauma
de elefante
O abate seletivo pode ter consequências para os
elefantes. Graeme Shannon e Karen McComb,
da Universidade de Sussex, no Reino Unido,
constataram que a prática, que envolve a
matança de espécimes idosos e o deslocamento
dos mais jovens, tem efeito no comportamento
social dos animais sobreviventes.
As autoridades sul-africanas recorreram ao
abate seletivo para controlar a população de
paquidermes entre 1965 e 1995. Para avaliar
o efeito dessa política, Shannon e McComb
visitaram famílias de animais no Parque Nacional
Pilanesberg. E foram ao Parque Nacional
Amboseli, no Quênia, onde não ocorreu tal
seleção. Eles tocaram gravações com chamados
de elefantes que eram conhecidos e
desconhecidos uns para os outros, de várias
faixas etárias. Os elefantes do Amboseli reagiram
de modo previsível: agrupados e atentos quando
ouviam ameaças graves, mas descontraídos
quando os chamados indicavam ameaças
menores. Já os de Pilanesberg reagiram de modo
anormal, não se notando conexão evidente entre
o nível de ameaça e a reação dos animais.
Os ecologistas atribuem as reações anormais
tanto ao trauma inicial como à perda do papel
exemplar desempenhado pelos mais velhos
– um efeito danoso do abate seletivo. “Aspectos
fundamentais do complexo comportamento
social dos elefantes podem sofrer alterações
significativas no longo prazo”, diz o estudo.
E, como os elefantes transferem seus
conhecimentos, esse comportamento anormal
pode ser passado às gerações seguintes.
– Por Lindsay N. Smith
Nick Brandt
explore
Bichos
No ar e no mar
Desprovidas de ossos, musculosas e com
formato de torpedo, as lulas às vezes podem
voar. Elas se lançam adiante graças ao empuxo
da água expelida de uma concha interna
conhecida como “pena”. A força da água
permite que algumas espécies da família
Ommastrephidae irrompam acima da superfície
marinha.
No noroeste do Pacífico, esse comportamento
é mais do que um mero salto impulsionado pelo
jato d’água, dizem pesquisadores japoneses.
No ar, o bicho expele a água remanescente
e muda de postura para reduzir o arrasto e
manter a sustentação. Estima-se que, com
essa estratégia, as lulas consigam voar mais
de 30 metros em 3 segundos – escapando de
predadores como atuns e golfinhos – antes de
voltar a mergulhar. – Por Alison Fromme
AZEITE
Gosto local
BRASILEIRO
Uma iguaria importada que invadiu a mesa do
brasileiro agora já é produto agrícola nacional:
o azeite. Embora as cifras ainda estejam muito
aquém das dos principais olivicultores mundiais,
como Espanha (o maior produtor, com previsão
de 1,5 milhão de toneladas de azeitonas colhidas
em 2014), Grécia, Itália e Portugal, cada vez mais
as oliveiras fazem parte da paisagem serrana
de estados do Sul e do Sudeste. Nessas regiões,
com microclimas similares aos europeus,
o investimento em pesquisa tem gerado um
aumento na produção, com números que
dobraram nos últimos dois anos (gráfico).
Novas variedades de oliveiras estão sendo
desenvolvidas pela Epamig (Empresa de Pesquisa
Agropecuário de Minas Gerais) em Maria da Fé,
onde foi extraído o primeiro azeite extravirgem
brasileiro, em 2008.
Outra razão para o sucesso da nova cultura
é que as mesmas variedades existentes na Europa
se desenvolvem na metade do tempo por aqui.
“Devido à maior incidência de sol, ao regime
de chuvas e ao solo fértil, uma planta de 2 anos
na Espanha tem o porte de uma de 1 ano no
Brasil”, diz o agrônomo Tailor Luz Garcia.
– Por João Correia Filho
Ouro do Egito
Quando Tutankhamon foi sepultado, por volta de
1322 a.C., em seu túmulo repleto de tesouros
também foram colocadas duas carruagens
douradas. Os veículos eram o equivalente das
atuais limusines, sendo usados em desfiles e
outras ocasiões especiais. Essas carruagens
foram postas em exibição no Museu Egípcio,
no Cairo, logo após o arqueólogo Howard Carter
ter achado, em 1922, o local em que o faraó
adolescente fora enterrado para seu descanso
eterno. Mas as lâminas de ouro ornamentadas
dos arreios de couro acabaram por ficar
guardadas em um depósito.
Os objetos estão afinal submetidos a um
projeto para seu estudo e restauração. Os
especialistas estão atentos a detalhes de ouro
e couro, com foco nas cenas entalhadas.
Esta peça (acima) – talvez a tampa da aljava
de um arqueiro – mostra um cão e um animal
alado atacando um íbex. “Não é um motivo
comum no Egito”, diz o perito Christian
Eckmann. Ele e seus colegas buscam pistas
da origem dessa arte – talvez a Síria, onde tais
desenhos eram comuns, ou mesmo o próprio
Egito, mas feita a partir de desenhos trazidos
do exterior. – Por A. R. Williams
Céus inóspitos
Em fevereiro deste ano, um voo da United
Airlines enfrentou uma zona de turbulência
tão forte que um bebê foi lançado ao ar
(felizmente não se machucou), a cabeça de
um dos passageiros amassou o teto da cabine
e cinco outros tiveram de ser encaminhados
a um hospital. Devido às mudanças climáticas,
os eventos que causam turbulência “vão se
tornar mais comuns ou mais intensos”,
segundo relatório da Agência de Proteção
Ambiental americana.
“Os planos de voo evitam as zonas de forte
turbulência, mas tais zonas se deslocam, e não
é fácil prever onde vão estar”, diz Sanjiva Lele,
do Centro de Pesquisa de Turbulência Stanford-
Nasa. No início do ano, uma companhia aérea
americana adotou detectores que usam radares
especiais para prever a intensidade e a
localização das zonas de turbulência nas rotas.
– Por Mark J. Miller
O lixo do futuro
Coisas estranhas estão surgindo na Praia Kamilo,
no Havaí. Embora pareçam ser lixo, são pedaços
de um novo tipo de rocha. Os “plastiglomerados”
se formam quando lixo plástico derrete no calor
de fogueiras de acampamentos e se mescla a
areia, fragmentos basálticos, madeira e outros
tipos de entulho. Para a especialista Patricia
Corcoran, no futuro registro geológico da Terra
essas pedras poderiam servir como marcadores
do momento em que os homens começaram
a usar (e a descartar) plásticos.
– Por Catherine Zuckerman
Natal
sem guerra
Em dezembro de 1914, as tropas alemãs e
as tropas aliadas se enfrentaram ao longo de um
campo de batalha que se estendia pela Bélgica
e pela França. Desde trincheiras inundadas,
os soldados disparavam uns contra os outros
através de uma faixa de terra, conhecida como
“terra de ninguém”, coalhada de companheiros
mortos ou feridos. Todavia, no dia 24 de
dezembro, em alguns pontos da Frente
Ocidental, os alemães colocaram árvores
iluminadas no parapeito das trincheiras,
e os aliados se juntaram a eles em uma paz
improvisada: a trégua de Natal da Primeira
Guerra, ocorrida há exatos 100 anos.
A trégua “borbulhou desde os postos mais
baixos”, diz o historiador Stanley Weintraub.
Na véspera do Natal, depois de gritarem
promessas – “Não atirem, e nós não atiramos” –,
os até então inimigos cantaram juntos canções
festivas e compartilharam cigarros. Muitos
estenderam a trégua pelo dia de Natal, para que
pudessem se ver mais uma vez e enterrar
os mortos. Cada lado ajudou o outro a cavar
sepulturas e fazer cerimônias fúnebres. Os
soldados dividiram comida e presentes enviados
por parentes e se divertiram jogando futebol.
“Ninguém ali queria seguir com a guerra”,
diz Weintraub. Mas os escalões superiores
ameaçaram punir os rebeldes amistosos.
No início do ano, ambos os lados “retomaram
o cruel enfrentamento”. Mas as boas lembranças
da trégua se refletiam nas cartas para casa
e nos diários: “Que surpresa maravilhosa”,
escreveu um soldado alemão, “e que estranho
foi isso.” – Por Patricia Edmonds
R.U.
BELGICA
Ploegsteert
Canal da Bruxelas
Mancha
Frente O c
FRAN¸CA
i de
nt
tal
0 km 50
Paris
Revolução
cadeirante
Nos países em desenvolvimento, estima-se que
20 milhões de pessoas usem cadeiras de rodas.
Nem sempre elas são projetadas para enfrentar
caminhos pedregosos no campo ou o meio-fio
dos cruzamentos nas cidades. Por isso, uma
equipe do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, o MIT, criou a Cadeira Liberdade
Alavancada (LFC, na sigla em inglês), uma
mescla de cadeira de rodas e triciclo para todo
terreno. O sistema de propulsão é composto de
peças de bicicleta, baratas e substituíveis.
Os projetistas desejam vender as cadeiras para
fundações e ONGs, para que depois elas sejam
distribuídas. – Por Karen de Seve
Como funciona
Festa à
mesa
Durante as refeições, fazemos
amigos, encontramos amores e
celebramos as nossas dádivas.
1 2
solstício de inverno, o dia mais breve e a noite mais longa
do ano. Nada menos do que 55 carneiros vivos foram aba-
tidos e pendurados na cordoalha, congelados naturalmente
até que chegasse a hora dos festejos. O frio, a escuridão e
o isolamento foram esquecidos por um tempo. “Depois de
tal banquete”, escreveu Scott, “todos concordamos em que
até valia a pena viver nas regiões antárticas.”
retorne ao início 2
festa a mesa
Fotos
A MESA
COMUNAL
1 9
E S TA D O S U N I D O S
Golfo do
M´exico
M E X I C O
OCEANO
PACÍFICO Cidade do M´exico
Milpa Alta
0 km 500
RETORNAR AO INÍCIO 8 9
cozinheiros ficam de pé como sentinelas e anunciam um
número específico de tamales, calculado para correspon-
der à quantidade de dinheiro oferecida por cada doador.
O mesmo se faz com o atole, que Dona Cata ficou mexendo
a noite toda para evitar a formação de grumos. Agora está
como um veludo na língua. E, por mais exausta que esteja,
ela jamais deixa de participar da distribuição da comida
para as multidões que fazem fila ao longo do dia. “Por que
iria deixar alguém receber o crédito pelo que fiz?”
Enquanto despeja a bebida nos copos e as crianças gritam
de alegria, Dona Cata se permite um sorriso que até revela
seus dentes. Logo, porém, ela retoma a expressão impassí-
vel. Ainda restam milhares de copos a ser servidos. E daqui
a alguns dias será preciso encher as pinhatas com doces
para a celebração de Las Posadas, que se estende por nove
dias até a véspera do Natal. Outras lonas serão instaladas
no vilarejo, e os moradores de Milpa Alta vão de novo se
submeter ao poder da comida, da família e da fé. j
RETORNAR AO INÍCIO 9
A MESA COMUNAL
Fotos
VÍdeo
Conexão
Haiti
A jornada de sonhos e dramas
do mais novo e crescente grupo
de imigrantes do Brasil.
1 12
Em dezembro de 2010, o Brasil abriu as portas para os
cidadãos do Haiti, vitimados pela pobreza que se agravou
depois do maior terremoto da história do país, em 12
de janeiro daquele ano. A tragédia afetou um terço da
população; 220 mil pessoas morreram e 1,5 milhão ficaram
desabrigadas. Um surto de cólera, em 2010, e dois furacões,
em 2012, agravaram o caos. O alto desemprego estimulou
os haitianos a partir em um fluxo desesperado em busca
de vagas no exterior. O Brasil virou um destino cobiçado:
além de seu amplo mercado de trabalho, mantém ótimas
relações diplomáticas – o Exército brasileiro lidera a Missão
das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah)
desde 2004.
Mas a burocracia para conseguir a documentação correta
de imigração no Haiti – no caso, um visto humanitário
– induziu muitos jovens a uma rota clandestina e cheia
de riscos, contando com o apoio de intermediários, os
“coiotes”. Eles viajam de avião até o Equador, muitas vezes
com escala na República Dominicana. Em seguida cruzam
o Peru ou a Bolívia por terra, até chegar à fronteira com o
Acre. Entram no país pela cidade de Brasileia ou de Assis
Brasil, de onde seguem para regularizar sua situação na
capital Rio Branco. “Encontrei problemas no caminho”,
conta Castin. “No Peru, há muitas pessoas... que querem...”
“Explorar?”, completo, ao perceber que ele não encontra a
palavra certa.
“Exatamente. Na fronteira do Equador com o Peru,
minha história de terror começou.”
rETORNAR AO INÍCIO 2 12
Os haitianos viajam para o Brasil sem saber dos perigos
dessa rota ilegal. Para instruir futuros imigrantes, o padre
Onac Axenat, de 35 anos , quer voltar ao Haiti. O mis-
sionário está no Brasil desde novembro de 2010. Estudou
português em Brasília por três meses e se mudou para Rio
Branco com o projeto de construir uma paróquia. Onac
acompanha o novo fluxo migratório desde o fim de 2011.
Os recém-chegados eram bem reservados, nada conta-
vam sobre a saída de seu país, mas aos poucos o religioso
descobriu que gastavam até 4 000 dólares na viagem – e
chegavam de mãos abanando à fronteira brasileira. Onac
denunciou a situação como tráfico de imigrantes. “Ligaram
para me ameaçar, mas fiz o que era preciso. Ouvi português,
espanhol, creole. É uma rede internacional de coiotes”, diz.
“Essa rota vai continuar a existir enquanto ocorrer ação
ostensiva desses intermediários”, alerta Nilson Mourão,
de 62 anos, secretário de Justiça e Direitos Humanos
do Acre. Para ele, desmontar a rota é uma operação que
requer estratégia de identificação e repreensão por parte de
todas as nações envolvidas – Haiti, República Dominicana,
Equador, Peru, Bolívia e Brasil. Além disso, diz ele, é preciso
facilitar a emissão do visto humanitário e de outros papéis
nas embaixadas brasileiras. “Os coiotes”, explica, “vendem a
ideia de que, pela rota ilegal, os haitianos serão logo docu-
mentados – o que é verdade. Por outro lado, é um processo
perigoso e demorado. Os viajantes gastam mais, levam até
15 dias para chegar e são humilhados e explorados.”
O volume de imigrantes vindos do país caribenho
rETORNAR AO INÍCIO 3 12
só aumenta. Em setembro, 700 estavam no abrigo em
Rio Branco – eram 175 em julho. Em 2013, o número de
haitianos no Brasil superou 20 mil, quase 25% em São Paulo.
Já para o final de 2014, a Organização Internacional para
as Migrações estima chegar a 50 mil.
rETORNAR AO INÍCIO 12
HAITIANOS
MapA
DE PORTO HAITI
REPUBLICA
DOMINICANA
PRÍNCIPE A Porto
Príncipe
Santo
Domingo
SÃO PAULO Mar do Caribe
PAN.
Cidade do
Panam´a OCEANO
ATLANTICO
Quito
EQU. Manaus
Tabatinga
BOLÍVIA
0 km 630
Fotos
Bênção.
Maldição.
Cobiça
A travessia da Terra Santa
1 15
Idade da Pedra que descobriram nosso mundo. Pretendo
andar por sete anos até o último canto do planeta aonde
nossa espécie chegou: o extremo meridional da América
do Sul. Quando descrevo minha trajetória para Goren, ele
replica: “Sim. Você vem do sul, como Abraão”.
Nossa caminhada à margem do esgoto – grande ideia de
Goren – é tão fascinante quanto excêntrica: ele quer limpar
a sujeira (a Alemanha prometeu recursos para uma estação
de tratamento) e criar quilômetros de trilhas “verdes” por
um lendário vale onde 5 mil anos atrás Jerusalém foi fun-
dada. Essas trilhas partiriam do cerne espiritual da Cidade
Velha e passariam pelo deserto bíblico, onde a poluição
flui densa sob o sol amarelo. Como o efluente atravessa
a barreira que separa Israel da Cisjordânia, essa rota po-
ria em contato as vidas de palestinos e israelenses. O rio
purificado, coletando em sua árida bacia o sagrado e o
profano, ajudaria a forjar a paz entre os dois arqui-inimi-
gos do Oriente Médio. “Essa peregrinação será diferente
em muitos níveis”, diz Goren. “Ela segue um importan-
te corredor cultural e religioso, é verdade. Mas também
liga palestinos e israelenses de um modo muito concreto.
Estamos falando de água limpa.”
Começamos entre os santuários históricos das três fés
abraâmicas: o Domo da Rocha, as torres da Igreja do Santo
Sepulcro e os imponentes blocos do Muro das Lamentações,
eriçado de orações em papel. Percorremos, suando em bi-
cas, ruas sem sombras em bairros palestinos. Seguimos o
esgoto através de morros estéreis, onde ele contorna um
RETORNAR AO INÍCIO 2 15
mosteiro do século 6 como um fosso sinistro. O efluente
cruza um campo de tiro do Exército. Em desfiladeiros aba-
fados, respiramos pela boca para suportar o fedor. Dois dias
depois chegamos ao término: o mar salgado entre Israel e
a Jordânia. Mar Morto.
“O monoteísmo nasceu aqui”, Goren me diz no alto de
um penhasco defronte à faixa de água cor de ferro. “Assim
que inventamos a agricultura, não precisamos mais de nin-
fas em cada fonte. Os antigos deuses da natureza selvagem
tornaram-se desnecessários.”
Permaneceram apenas os mistérios supremos.
Parece tão impossível, tão inviável, tão ingênuo o sonho
de Goren. (Semanas depois eclodirá outra rodada de lutas
entre palestinos e israelenses. Foguetes arranharão o céu.
Israel invadirá a vizinha Gaza. “Por causa disso vou regredir
dois anos”, Goren lamentará. “Mas esperarei.”) Foi assim,
afinal, que provavelmente avançamos no início, na aurora
da humanidade. Contrariando probabilidades hilariantes.
Por 2 500 gerações de reveses, desesperança, golpes, crises
de fé.
Mas, sem dúvida, essa é a busca que importa.
RETORNAR AO INÍCIO 15
PARA LONDE DO E
DEN, PARTE 3
Mapa
Solo ÁREA
AMPLIADA AMERICA
disputado EUROPA ASIA DO NORTE
Prevista
Concluída
AFRICA AMERICA
AUSTRALIA DO SUL
et Tahta S I R I A
Wadi Faynan
EGMar
ITO Divisa reivindicada
Mediterrˆaneo Nazar´e pela Síria
Haifa Petra Mar da Galileia
GRANDE V
14 mar 2014
Jord˜ao
Samaria-Sebaste Irbid
Al Aqabah Wadi Hafir
18 dezembro 2013 Nablus
blus
Tel Aviv-Yafo CISJORD
Wadi ARum
NIA
Am˜a
Golfo de
HIS
Jerusal´em
Acaba Jeric´ o (Ariha)
MA
ALE
Petra
GRANDE V
Al Aqabah Wadi Hafir
18 dezembro 2013
Wadi Rum
Golfo de
HIS
Acaba
MA
0 mi 50
0 km 50 A RA
BIA SAUDITA
Tabuk
ryan morris, ngm staff
PARA LONDE DO E
DEN, PARTE 3
Fotos
VÍdeo
Macacos
do frio
Brincalhão, mas contemplativo. Feroz, mas
tímido. Adorado, mas em extinção: eis o macaco-
de-gibraltar, um primata muito, muito distinto.
1 2
passou mais de um ano buscando imagens do Macaca
sylvanus na Cordilheira do Atlas. “O amor com que cuidam
dos filhotes é algo quase humano”, conta ele. “Vi uma mãe
segurar o filho morto nos braços durante quatro dias. Isso
me emocionou demais.”
Diferentemente da maioria dos primatas, “os machos
muitas vezes cuidam dos bebês”, explica Bonaventura
Majolo, criador em 2008 do Projeto Macaco-de-Gibraltar,
um estudo da espécie que prossegue até hoje. Os pes-
quisadores usam os filhotes para estabelecer relações
amistosas com outros machos. Majolo batizou a manobra
de “interação sanduíche”, pois o filhote serve de elo e se
posiciona entre dois adultos: com isso às vezes os machos
chegam até a cuidar um do outro, assim como do bebê.
“Os macacos temem as pessoas”, diz a zoóloga Siân
Waters. Porém, quando ela devolve um filhote perdido,
“os machos se aproximam. Ficam tão excitados ao ver
o bebê que perdem todo o medo”. j
RETORNAR AO INÍCIO 2
MACACO-DE-GIBRALTAR
Map
ÂMBITO DO
MACACO-
DE-
GIBRALTAR
OCEANO EUROPA
ATLANTICO GIBRALTAR
(R.U.) Mar Mediterra
ˆ ne
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A t las
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Atlas M´edio e i ra
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C
MARROCOS ARGELIA
S A A R A
SAARA
OCIDENTAL
(MARROCOS)
A
F R I C A
0 km 600
Fotos
Caubóis do
fim do mundo
Na Patagônia, o clima é imprevisível e as paisagens
são deslumbrantes. E ali peões enfrentam o gado
mais indócil do planeta.
RETORNAR AO INÍCIO 2 13
Às vezes ele mandava de barco o gado selvagem – ba-
guales, ou baguais, como são chamados esses animais,
que pertencem a espécies domésticas e não são me-
ramente “selvagens” – para ser vendido em Puerto
Natales. Vez ou outra ele resolvia tanger seu rebanho
por terra passando por penhascos estreitíssimos, atra-
vessando charcos e transpondo rochas escorregadias
– tudo isso cavalgando de cigarro enrolado a mão nos
lábios e levando a reboque um cavalo de carga e um
touro feral.
Mas eis que a família Iglesias – estamos falando de
toda a parentela, com tios e primos que têm pouca ou
nenhuma ligação emocional com o lugar – decide ven-
der Ana María, incluindo Sutherland, a um pecuarista
rico. O comprador autoriza Sebastián a capturar ba-
guais pela última vez. Sebastián procura os melhores
bagualeros de Puerto Natales para ajudá-lo e, talvez
porque espere um dia levar turistas para “bagualear”
e manter viva a tradição, nos permite ir junto.
Portanto, desde o início está claro: esta expedição
a Sutherland não será uma viagem normal. Para co-
meçar, o gado de Sutherland é composto de animais
que não veem uma corda há gerações. E só para chegar
a Sutherland cavalgaremos com Sebastián e três outros
peões, 20 cavalos e 30 cães por no mínimo dois dias
RETORNAR AO INÍCIO 3 13
no tipo de terreno que recompensa um passo em falso
com seja lá o que for que vem depois da vida.
Telefono para casa, desejando apoio moral. “Me
aconselharam a levar óculos de proteção”, comento com
meu pai. Faz-se um breve silêncio. “Óculos de proteção
são para invadir a Polônia, caramba, não para juntar
um punhado de vacas!”, papai responde. Ele é um fa-
zendeiro zambiano setentão nascido na Grã-Bretanha
e não vê nada de mais em entrar na escuridão do Vale
do Zambezi para espantar os elefantes de seu bananal
ou enxotar crocodilos dos tanques de peixes de ma-
mãe. “Qual é o objetivo do esforço?”, ele quer saber.
“Cinquenta baguais, se conseguirem pegá-los”, respon-
do (ou seja, dinheiro, obviamente, mas também outra
coisa difícil de definir).
Mamãe pega o telefone. Lembra-me de que, quando
eu era pequena, ela me levava junto para capturar va-
cas na fronteira com Moçambique durante a guerra de
independência da Rodésia. “Eu me lembro”, digo. “Eu
era bem corajosa!”
“Que nada”, retruca mamãe. “Você era uma medrosa.”
Ouço papai apartear ao fundo que, se eu sobreviver aos
touros, lá no tanque de peixes há dois crocodilos com
que posso me atracar, se quiser. Os óculos devem ser
úteis para isso, ele diz. E meus velhos se racham de rir.
RETORNAR AO INÍCIO 4 13
NÃO PUS OS ÓCULOS DE PROTEÇÃO NA BAGAGEM , mas, na hora
em que topo com um bagual em Sutherland, essa é a
menor das minhas preocupações. A folhagem estrondeia
diante de nós como que derrubada por um trator.
“Procure uma árvore”, tinham me ensinado. Porém, an-
tes que eu possa mover meu cavalo, o touro aparece
na disparada. Mesmo com 30 cães lhe mordendo as
orelhas e os calcanhares, rasgando a carne mole sob
a cauda, o animal parece indestrutível e decidido a fazer
estrago. Não há bagualeros à vista. O touro não recua;
seus flancos são foles à força máxima. Parece estar aval-
iando a situação. Os segundos que seguem duram uma
eternidade. Quem acha que é tolice atribuir emoções
a animais nunca olhou nos olhos de um touro feral.
Subo a cavalo por uma rampa, na direção de um ar-
voredo. Quando criança, eu passava horas nos galhos de
um robusto flamboyant e lá me sentia invisível e pode-
rosa. Mas já perdi esse pensamento mágico faz tempo,
e o touro me parece mais do que páreo para qualquer
árvore em que eu possa subir. “Os touros vão arremeter
contra você”, tinham me avisado. “Suba bem alto.”
Na noite passada, Abelino Torres de Azócar, um
caubói de 42 anos, habilidade inumana e dignidade
imperturbável, contou-nos uma história sobre uma ex-
pedição de muito tempo atrás. “Não sei se aquele touro
RETORNAR AO INÍCIO 5 13
era o demônio ou o quê”, disse Abelino. “Colocamos
armadilhas, atiramos nele, esfaqueamos, mas ele não
morria.” Uma noite o touro atacou os homens adorme-
cidos. “Ouvimos galhos quebrando, mas não tivemos
tempo de fugir. O touro destruiu a barraca com a gente
lá dentro. Ficamos cheios de cortes e machucados.”
Na hora, pensei que fosse só mais uma daquelas his-
tórias que se costuma contar ao pé da fogueira no sul
da África, para passar o tempo entre o jantar e o saco de
dormir. A sedução desses casos – o irmão de um missio-
nário pisoteado por um elefante, um caçador profissional
baleado por seu cliente – reside na sensação tranquili-
zadora de que o infortúnio não acontecerá conosco.
Só que agora a história parece prestes a acontecer
comigo. Fui criada por gente rija para não me queixar
e ser estoica, mas sem ser testada é difícil saber os li-
mites da coragem e da resistência.
RETORNAR AO INÍCIO 6 13
por uma árvore ou uma rocha. Cada vez que isso acontece,
perdemos horas para pôr tudo em ordem, os cães mor-
discando as pernas do animal, os homens puxando com
cordas. “Tudo está indo bem”, diz Sebastián à namorada
no último trecho com sinal telefônico que teremos por al-
gum tempo. Ela implora que ele resolva voltar antes que
seja tarde demais. “Não, não, está tudo perfeito”, ele replica.
Na terceira noite, com Sutherland ainda um nú-
mero incerto de dias à frente, a comida acaba. Passar
fome no caminho não é novidade para os bagualeros.
Normalmente viajam com carga mínima, para não
forçar os cavalos já tão exigidos. “Preste atenção nos
cachorros”, eles avisam. “Vão começar a comer nossas
coisas de couro.” Mas os cães, pelo jeito igualmente
experientes, eram ladinos. Quando pusemos roupas
molhadas para secar e tentamos nos aquecer em volta
da fogueira, os cães comeram as amarras das esporas
de Sebastián, a tampa de couro de um cantil e a cilha de
uma sela. “Amanhã encontraremos um bagual e então
comeremos”, diz Sebastián.
Na quarta manhã, o desjejum dos homens é de ci-
garros e mate – o chá que suprime o apetite e fornece
um surto de energia igual ao obtido com uma xícara
de café forte. Deixam o acampamento cedo para abrir
uma trilha. Eu fico, encarregada de manter as fogueiras
acesas e a cachorrada longe do couro e de impedir que
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os cavalos voltem para casa. Em três dias eu já perdi
peso – alguns quilos imperceptíveis no começo, depois
outros a contragosto, e então um frio incessante se ins-
tala sem descanso, primeiro nas extremidades, depois
nos ossos. Não há jeito de eu me aquecer.
Quando os bagualeros voltam para o acampamento,
horas depois, também estão ensopados. Todos têm as
mãos dilaceradas por espinhos e pelo cabo dos facões.
Revezam-se secando as roupas ao fogo. Abelino, sem
dizer uma palavra, cobre meus ombros com sua jaqueta
seca. “Uma bondade perene, instintiva”, eu diria mais
tarde, ao me perguntarem o que mais me impressionara
nos caubóis – o que só é surpreendente se pensarmos
na brutalidade direta do trabalho deles.
RETORNAR AO INÍCIO 8 13
já me explicara. “Com uma arma, levamos vantagem
demais. Mas no corpo a corpo podemos perder, arris-
camos a vida.” Em meados dos anos 1960, Arturo tinha
40 e poucos anos quando um bagual finalmente o en-
curralou numa turfeira, a mesma que atravessamos no
primeiro dia da nossa jornada para Sutherland.
Ele tinha desmontado do cavalo, por isso foi obriga-
do a enfrentar o touro sozinho e desarmado – corpo a
corpo, como diria Sebastián. “As coisas não foram bem
para o meu tio-avô”, conta Sebastián. O touro espati-
fou os dentes de Arturo e com uma chifrada rasgou
seus testículos. Depois disso, os compadres do peão
dispararam tiros para o alto, e o bicho recuou, deixan-
do Arturo ensanguentado. Ele pediu que o ajudassem
a montar e cavalgou até a estância da família Iglesias,
onde ficou aguardando um barco para levá-lo ao hos-
pital mais próximo.
Quando a equipe médica do hospital em Punta
Arenas viu Arturo, propôs castrá-lo ali mesmo a fim
de salvá-lo de uma morte quase certa por infecção. Mas
Arturo implorou que a enfermeira cobrisse suas partes
feridas com sal. Depois substituiu seus dentes quebra-
dos por dentadura. Deixou o hospital com a virilidade
intacta e um sorriso artificial, mas brilhante e certinho.
O episódio levanta a questão: “Isso vale a pena?”
RETORNAR AO INÍCIO 9 13
Naturalmente, a resposta a essa pergunta depende
do que é “isso” e de qual é o conjunto de valores que
pautam a vida. Em outras palavras, depende de valo-
rizar a sublimidade do sofrimento ou a trivialidade do
conforto. E depende de ser necessário ou não arriscar
a vida para sobreviver. “Uma pessoa sem ligação com
seus ancestrais e sua terra está condenada a tombar”,
Sebastián reflete. “Este, para nós, é um modo de vida,
e não só um modo de ganhar dinheiro.”
Ainda bem, pois estava evidente que não haveria
50 baguais para levar de balsa até Puerto Natales.
O mau tempo espantara a maioria dos animais para o
extremo oeste de Sutherland, aonde os cavalos e os cães
não aguentariam ir. Em vez de cinco reses por dia, seria
uma sorte se pegassem uma a cada dois ou três dias.
Na verdade, até essa modesta quantidade parecia uma
façanha implacavelmente difícil. Quando os bagualeros
conseguiam chegar até um touro e laçá-lo no matagal,
ainda precisavam remover os chifres e amarrá-lo a uma
árvore por alguns dias até que a exaustão lhe minasse as
forças o suficiente para que ele se deixasse ser amarrado
a um cavalo e tangido para dentro da balsa.
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fim desta viagem. Afinal de contas, o primeiro touro que
encontro parece estar de olho em mim, e eu ainda não en-
contrei nenhuma árvore apropriada na qual me refugiar.
Eis que de repente aparecem os quatro bagualeros,
cavalgando em velocidade inimaginável através da
floresta, uma mão nas rédeas, a outra de prontidão so-
bre uma corda enrolada. Ao vê-los, o touro foge para
o meio das árvores, na direção do lago. Vou atrás, a
uma distância segura. Quando chega ao lago, o tou-
ro morre acidentalmente, estrangulado por uma das
cordas. Tentando reavivá-lo, alguém puxa a língua do
animal para fora da boca. Outro joga o peso do corpo
repetidas vezes sobre o ventre do morto – reanimação
cardiorrespiratória em grande escala e inútil. A vida
escoa de seus olhos, que de pretos assumem um tom
verde glacial. Abelino tira o chapéu e enxuga a tes-
ta. Vivo, aquele touro representava um mês de salário.
Morto, será apenas carne para nós e para os cães.
Nas duas semanas seguintes, os homens capturam
meia dúzia de vacas, vários touros e um bezerro. Um
touro afogou-se no lago; uma vaca pulou de um pe-
nhasco e se enforcou. Nosso acampamento exala um
ranço de animais e carne. Os homens sentem falta de
mulher e contam piadas que ninguém quer traduzir,
em consideração a mim. Mas fico sabendo que o bordel
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em Puerto Natales, do qual Arturo era cliente, foi ar-
rasado por um incêndio tempos atrás. “Talvez tenham
posto fogo só para ver as mulheres saírem correndo lá
de dentro”, alguém sugere, saudoso.
A balsa só poderá vir a Sutherland se o tempo con-
tinuar bom. “Vai estar”, diz Sebastián, contrariando
todos os indícios. A balsa vem mesmo, e os bagualeros
conseguem pôr a bordo todos os animais. A maioria
de nós sai arranhada, cheia de hematomas. O velho
cavalo de carga ficou manco de tanto cair nas trilhas.
Um cachorro foi prensado contra uma árvore por um
touro e, desorientado pelo trauma, fugiu de volta para
casa; outro sobreviveu, mas acabou sendo arrastado
pelas águas em uma cachoeira.
Enquanto a balsa manobra em direção a Puerto
Natales, eu me pergunto como serão as coisas agora
para a Estancia Ana María – a indústria do turismo
provavelmente dominará a área. Os baguais sem dú-
vida serão exterminados. A coragem extraordinária
e a brutalidade dos caubóis da Patagônia será apenas
um assunto de histórias ao pé da fogueira. O mistério
e a ferocidade do lugar serão decifrados e domados.
Sebastián ergue uma cerveja e faz um brinde à terra,
a seus ancestrais, a nós. “A esta vida!”, ele diz. Todos
bebemos, e Sutherland some de vista. j
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O mais recente livro de Alexandra Fuller, Cocktail Hour Under
the Tree of Forgetfulness, entrou para a lista de mais vendidos do
New York Times. O fotógrafo Tomás Munita vive em Santiago,
no Chile. É seu primeiro trabalho para national geographic.
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CAUBO IS DA PATAGO NIA
Mapa
PATAGÔNIA
ARGENTINA
CHILE
P
A
PARQUE
T
NACIONAL
A
TORRES
DEL PAINE
G
Estancia Puerto Río Gallegos
Ana María Natales
O
Estreito
Estancia OCEANO
N
Última
Esperanza Mercedes ATLANTICO
I
A
Punta
Arenas
Estreito de
Magalh˜aes TERRA
DO FOGO
OCEANO Ushuaia
PACÍFICO
Cabo Horn
AMERICA
DO NORTE
0 km 100
AMERICA
DO SUL
OCEANO
PACÍFICO
ÁREA
AMPLIADA
Fotos
VÍdeo
Sapo-
corroboree-
meridional
HÁbitat
Regiões subalpinas
do Parque Nacional
Kosciuszko, na Austrália.
situação
Criticamente ameaçado.
Outros fatos
A pele do sapo secreta
alcaloides venenosos
para os predadores.
Atraídas pelas O sapo que
serenatas do
macho, fêmeas vira príncipe
se instalam no
Primeiro ele constrói um ninho de amor.
ninho que ele
Bem aconchegante. Depois a seduz com
construiu.
serenatas sem fim. E, uma vez que formam
uma família, ele é quem cuida dos filhotes.
O cara é tão bom que uma dama após a
outra se aproxima para brincarem juntos
de casinha.
Essa é uma ótima notícia – pois, quanto
mais o sapo-corroboree-meridional
(Pseudophryne corroboree) procria, maior
a chance de evitar a extinção de um dos
mais conhecidos anfíbios da Austrália.
No início da temporada de
acasalamento, o macho usa os membros
posteriores para esculpir no musgo uma
câmara junto à água. Daí passa a emitir
o chamado de corte até que uma fêmea
entra no ninho. Ali ela põe de 15 a 38 ovos,
sobre os quais ele deposita o esperma.
Ela vai embora, mas ele fica e continua
com os chamados, recebendo até uma
dezena de fêmeas e fertilizando ninhadas.
O macho cuida do ninho por seis a oito
semanas, até que ele é inundado pelas
chuvas de outono e inverno, quando
eclodem os ovos, liberando os girinos.
A falta de chuva pode ressecar os
ninhos, e incêndios reduzem o hábitat do
sapo, também ameaçado por fungos
causadores de uma infecção fatal, a
quitridiomicose. Restam apenas 50
espécimes na natureza, mas programas
em zoológicos de Melbourne e Sydney
O sapo tem colocaram centenas de ovos em áreas de
o tamanho de
ninhos ao longo de 2014, tentando manter
uma moeda de
25 centavos os machos cantando no futuro.
de real. – Por Patricia Edmonds
Joel Sartore
Visões No Foco
Bar aberto
Os jogadores de bilhar atraíram o interesse de
um inesperado espectador equino nesta foto
feita na década de 1920 em um camping perto da
cidade de Denver, o Overland Park. O camping
de 65 hectares visava a atender ao crescente
número de pessoas que usavam carros para con-
hecer o Oeste dos Estados Unidos. Além da sala
de bilhar e de um salão de baile com capacidade
para 500 dançarinos, o Overland Park dispunha
ainda de um “centro recreativo com 26 aposen-
tos, contendo banheiros, salas de descanso e de
leitura, barbearia e espaçosas varandas, de onde
se pode contemplar o crepúsculo em cadeiras de
balanço”, comentou a revista American Motorist
em sua edição de outubro de 1922. O texto
prosseguia: “E a Lua brilha no céu, ajudando os
arcos incandescentes a iluminar romanticamente
o caminho na hora de nos recolhermos
ao leito”. – Por Margaret G. Zackowitz
Pioneiros americanos
Novos achados dão novas pistas para o enigma
da origem dos primeiros habitantes da América.
O berço da Amazônia
Na foz do Rio Tapajós, Santarém oculta sinais
da mais antiga ocupação da Floresta Amazônica.
O Universo oculto
O mapeamento de zonas misteriosas do Universo
incia uma nova era da astronomia.
A metrópole da África
Em Lagos, na Nigéria, um surto de prosperidade
econômica amplia o abismo entre ricos e pobres.
lynn johnson