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Sumário

DeZEMBRO 2014
revista oficial da NATIONAL GEOGRAPHIC SOCIETY ano 15 • No 177

COMIDA
Festa do paladar
A comida no centro da vida social.

Do Editor Paul Salopek está há dois anos


na estrada. Caminhando.
A mesa comunal

Conexão Haiti
Os novos imigrantes que buscam trabalho no Brasil.

Para Longe do Éden, parte 3


Paul Salopek atravessa a Terra Santa.
Primatas do frio
O incomum hábitat do macaco-de-gibraltar no Marrocos.

Caubóis da Patagônia
A lida com o gado mais indócil do planeta.

Seções
Visões Sua Foto Explore
Geladeiras

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Trauama de elefante No ar e no mar Gosto local

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Ouro do Egito Céus inóspitos O lixo do futuro

Explore Explore Instinto Selvagem


Natal sem guerra Revolução cadeirante
No Foco Próxima Edição

Capa
O garoto flutua agarrado a um “balão” de uvas, simbolizando
a alegria de comer. Ilustração de Javier Pérez

Copyright © 2014 National Geographic Society


Todos os direitos reservados. national geographic
e a moldura amarela da capa são Marcas Registradas®.
A revista national geographic brasil não se responsabiliza
por material editorial não solicitado.
Do Editor escreva para o editor

Paul Salopek no Vale do Cedron, na Cisjordânia.

A grande beleza
Em uma época de notícias que correm o globo de
modo quase instantâneo, é uma honra poder
desfrutar de reportagens angariadas à custa de
tanto preparo, espera, maturação – feito um bom
queijo, um azeite ou um vinho, iguarias que
remetem à alegria de comer da capa desta edição.
Foram longas e cheias de privações as jornadas
de nossos repórteres. Alexandra Fuller cavalgou
durante semanas para descrever, com tocante
sensibilidade, a rudeza dos vaqueiros da
Patagônia, que não hesitam em derramar o
próprio sangue para preservar o apego à terra
e a tradição da lida com o gado. Os jovens Kevin
Damasio e Giulio Paletta conquistaram a
confiança de haitianos que deixaram seu país
para tentar a sorte no Brasil e, assim, viajaram
com eles desde o Acre até o Centro de São Paulo.
O escritor Paul Salopek, por sua vez, segue
sendo o ícone do que ele próprio chama de
“jornalismo lento”. Se Paul não tem pressa,
sobram-lhe fé, coração e coragem para levar
adiante o projeto Para Longe do Éden. Seu
périplo de sete anos e 33 000 quilômetros refaz
a rota percorrida há 60 mil anos pelos primeiros
Homo sapiens, que partiram do que é hoje a
Etiópia e chegaram até a Terra do Fogo, na
extremidade da América do Sul, a derradeira
paragem ocupada por esses ancestrais. Pelo
caminho, Paul interage com refugiados de
conflitos, peregrinos em busca da salvação,
mercadores, nômades e deserdados de todo
tipo, em encontros que lhe permitem revisitar
a condição humana. Seu relato do último Natal
em meio aos fiéis da Terra Santa tem, não por
acaso, contornos bíblicos – um memorável
experimento narrativo para os nossos tempos
tão corrompidos pela ansiedade. “Durante a
árdua e improvável caminhada, sempre me
lembro”, conta ele, “do arrebatamento de Santo
Agostinho ao exclamar: ‘Como demorei para te
amar, ó beleza, tão antiga e tão nova’.”
Que essas belas histórias despertem a
imaginação e o paladar dos leitores e possam ser
debatidas alegremente ao redor de boa comida
e bebida nas festas que se aproximam para
celebrar o final de mais um ano.

Ronaldo Ribeiro,
Editor Sênior

John Stanmeyer
Visões

Japão
Jovem na entrada caleidoscópica do
toque
para ver shopping Tokyu Plaza Omotesando Harajuku,
a imagem
ampliada em Tóquio. Atrás dela, os espelhos refletem
as imagens “dos consumidores em um
dos bairros mais elegantes da cidade.
dina litovsky, polaris
Visões

Indonésia
Em Kertasura, cobras mortas são enroladas
toque
para ver antes de ser postas à venda como alimento
a imagem
ampliada ou remédio. Os répteis são caçados por aldeões
– o comércio de serpentes movimenta 1 bilhão
de dólares em todo o planeta.
nurcholis anhari lubis, getty images
Visões

Índia
Noivas pintadas com tintura de hena aguardam
toque
para ver o início do casamento coletivo. Em Mumbai,
a imagem
ampliada 35 casais se uniram nessa cerimônia, promovida
por uma organização islâmica para reduzir
os custos para as famílias pobres.
danish siddiqui, reuters
Visões Sua Foto

Concurso
Todos os meses escolhemos as melhores imagens enviadas pelos
leitores. Você também tem uma bacana? Participe. Os vencedores
têm suas fotos publicadas na revista e ganham um guia de
fotografia de national geographic.

Ana Paula Petronilho


Joinville, SC
Esta foto, publicada no site da revista e em um
jornal da cidade catarinense, causou comoção.
O andarilho seria o filho, desaparecido há
20 anos, de Neusa Francisca dos Santos,
de Curitiba, no Paraná. A família tenta se
reaproximar, aos poucos, do misterioso
personagem. “Quando soube da notícia,
entendi a força da fotografia”, diz Ana Paula.
Jefferson Allan
Campinas, SP
Para observar os detalhes da ponta de uma
caneta esferográfica, o leitor obteve esta foto
usando a técnica do “empilhamento de foco”,
no caso, o resultado de 35 exposições
combinadas com o Helicon Focus – um
aplicativo para edição que corrige erros de
foco. Ele postou a foto no grupo Caçadores
de Imagens, no Facebook. “Os comentários
superaram a minha expectativa”, conta.
explore
O futuro da comida

parteira E professora de ciências

Mostra-me tua
geladeira, e te
direi quem és
Mark Menjivar gosta de fuçar na cozinha alheia
– e apontar uma câmera. Para o projeto que
batizou de Geladeiras, o assistente social que
virou fotógrafo registra o conteúdo dos
refrigeradores de pessoas de todos os níveis
sociais. Ele tende a colocar legendas oblíquas
nas fotos. Por exemplo, “parteira que confessou
que come apenas produtos locais”. O barman
“vai dormir às 8 da manhã e acorda às 4 da
tarde” (sem tempo para consumir o que restou
da comida para viagem). Mostras das fotos em
tamanho real, conta Menjivar, geram discussões
“sobre o nosso relacionamento pessoal com
a comida, e também sobre a relação da
sociedade com os sistemas de produção
e circulação de alimentos”.
técnico de futebol e assistente social

barman
propagandista de rua
botânico
Engenheiro

universitários
Mark Menjivar
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Bichos

No Parque Amboseli, no Quênia, as famílias de elefantes


não foram submetidas a abates seletivos.

Trauma
de elefante
O abate seletivo pode ter consequências para os
elefantes. Graeme Shannon e Karen McComb,
da Universidade de Sussex, no Reino Unido,
constataram que a prática, que envolve a
matança de espécimes idosos e o deslocamento
dos mais jovens, tem efeito no comportamento
social dos animais sobreviventes.
As autoridades sul-africanas recorreram ao
abate seletivo para controlar a população de
paquidermes entre 1965 e 1995. Para avaliar
o efeito dessa política, Shannon e McComb
visitaram famílias de animais no Parque Nacional
Pilanesberg. E foram ao Parque Nacional
Amboseli, no Quênia, onde não ocorreu tal
seleção. Eles tocaram gravações com chamados
de elefantes que eram conhecidos e
desconhecidos uns para os outros, de várias
faixas etárias. Os elefantes do Amboseli reagiram
de modo previsível: agrupados e atentos quando
ouviam ameaças graves, mas descontraídos
quando os chamados indicavam ameaças
menores. Já os de Pilanesberg reagiram de modo
anormal, não se notando conexão evidente entre
o nível de ameaça e a reação dos animais.
Os ecologistas atribuem as reações anormais
tanto ao trauma inicial como à perda do papel
exemplar desempenhado pelos mais velhos
– um efeito danoso do abate seletivo. “Aspectos
fundamentais do complexo comportamento
social dos elefantes podem sofrer alterações
significativas no longo prazo”, diz o estudo.
E, como os elefantes transferem seus
conhecimentos, esse comportamento anormal
pode ser passado às gerações seguintes.
– Por Lindsay N. Smith

Nick Brandt
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Bichos

No ar e no mar
Desprovidas de ossos, musculosas e com
formato de torpedo, as lulas às vezes podem
voar. Elas se lançam adiante graças ao empuxo
da água expelida de uma concha interna
conhecida como “pena”. A força da água
permite que algumas espécies da família
Ommastrephidae irrompam acima da superfície
marinha.
No noroeste do Pacífico, esse comportamento
é mais do que um mero salto impulsionado pelo
jato d’água, dizem pesquisadores japoneses.
No ar, o bicho expele a água remanescente
e muda de postura para reduzir o arrasto e
manter a sustentação. Estima-se que, com
essa estratégia, as lulas consigam voar mais
de 30 metros em 3 segundos – escapando de
predadores como atuns e golfinhos – antes de
voltar a mergulhar.   – Por Alison Fromme

KOUTA MURAMATSU E UNIVERSIDADE DE HOKKAIDO. GRÁFICO DE LAWSON PARKER,


NGM STAFF; EMILY M. ENG. FONTE: JUN YAMAMOTO, UNIVERSIDADE DE HOKKAIDO
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O futuro da comida

AZEITE
Gosto local
BRASILEIRO
Uma iguaria importada que invadiu a mesa do
brasileiro agora já é produto agrícola nacional:
o azeite. Embora as cifras ainda estejam muito
aquém das dos principais olivicultores mundiais,
como Espanha (o maior produtor, com previsão
de 1,5 milhão de toneladas de azeitonas colhidas
em 2014), Grécia, Itália e Portugal, cada vez mais
as oliveiras fazem parte da paisagem serrana
de estados do Sul e do Sudeste. Nessas regiões,
com microclimas similares aos europeus,
o investimento em pesquisa tem gerado um
aumento na produção, com números que
dobraram nos últimos dois anos (gráfico).
Novas variedades de oliveiras estão sendo
desenvolvidas pela Epamig (Empresa de Pesquisa
Agropecuário de Minas Gerais) em Maria da Fé,
onde foi extraído o primeiro azeite extravirgem
brasileiro, em 2008.
Outra razão para o sucesso da nova cultura
é que as mesmas variedades existentes na Europa
se desenvolvem na metade do tempo por aqui.
“Devido à maior incidência de sol, ao regime
de chuvas e ao solo fértil, uma planta de 2 anos
na Espanha tem o porte de uma de 1 ano no
Brasil”, diz o agrônomo Tailor Luz Garcia.
– Por João Correia Filho

ALEXANDRE MACEDO; GRÁFICO DE MIGUEL VILELA


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Mundo antigo

Entre os artefatos, esta


lâmina de ouro mede 19,3
centímetros na borda plana.

Ouro do Egito
Quando Tutankhamon foi sepultado, por volta de
1322 a.C., em seu túmulo repleto de tesouros
também foram colocadas duas carruagens
douradas. Os veículos eram o equivalente das
atuais limusines, sendo usados em desfiles e
outras ocasiões especiais. Essas carruagens
foram postas em exibição no Museu Egípcio,
no Cairo, logo após o arqueólogo Howard Carter
ter achado, em 1922, o local em que o faraó
adolescente fora enterrado para seu descanso
eterno. Mas as lâminas de ouro ornamentadas
dos arreios de couro acabaram por ficar
guardadas em um depósito.
Os objetos estão afinal submetidos a um
projeto para seu estudo e restauração. Os
especialistas estão atentos a detalhes de ouro
e couro, com foco nas cenas entalhadas.
Esta peça (acima) – talvez a tampa da aljava
de um arqueiro – mostra um cão e um animal
alado atacando um íbex. “Não é um motivo
comum no Egito”, diz o perito Christian
Eckmann. Ele e seus colegas buscam pistas
da origem dessa arte – talvez a Síria, onde tais
desenhos eram comuns, ou mesmo o próprio
Egito, mas feita a partir de desenhos trazidos
do exterior. – Por A. R. Williams

CHRISTIAN ECKMANN, RÖMISCH-GERMANISCHES


ZENTRALMUSEUM, MAINZ, ALEMANHA
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Planeta Terra

Céus inóspitos
Em fevereiro deste ano, um voo da United
Airlines enfrentou uma zona de turbulência
tão forte que um bebê foi lançado ao ar
(felizmente não se machucou), a cabeça de
um dos passageiros amassou o teto da cabine
e cinco outros tiveram de ser encaminhados
a um hospital. Devido às mudanças climáticas,
os eventos que causam turbulência “vão se
tornar mais comuns ou mais intensos”,
segundo relatório da Agência de Proteção
Ambiental americana.
“Os planos de voo evitam as zonas de forte
turbulência, mas tais zonas se deslocam, e não
é fácil prever onde vão estar”, diz Sanjiva Lele,
do Centro de Pesquisa de Turbulência Stanford-
Nasa. No início do ano, uma companhia aérea
americana adotou detectores que usam radares
especiais para prever a intensidade e a
localização das zonas de turbulência nas rotas.
– Por Mark J. Miller

ILUSTRAÇÃO DE SAMANTHA WELKER; FONTE: SANJIVA LELE, UNIVERSIDADE STANFORD


explore
Planeta Terra

O lixo do futuro
Coisas estranhas estão surgindo na Praia Kamilo,
no Havaí. Embora pareçam ser lixo, são pedaços
de um novo tipo de rocha. Os “plastiglomerados”
se formam quando lixo plástico derrete no calor
de fogueiras de acampamentos e se mescla a
areia, fragmentos basálticos, madeira e outros
tipos de entulho. Para a especialista Patricia
Corcoran, no futuro registro geológico da Terra
essas pedras poderiam servir como marcadores
do momento em que os homens começaram
a usar (e a descartar) plásticos.
– Por Catherine Zuckerman

Rebecca Hale, NGM Staff


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Gente

Durante a trégua de Natal perto de Ploegsteert, na Bélgica,


alemães e britânicos posaram para fotos.

Natal
sem guerra
Em dezembro de 1914, as tropas alemãs e
as tropas aliadas se enfrentaram ao longo de um
campo de batalha que se estendia pela Bélgica
e pela França. Desde trincheiras inundadas,
os soldados disparavam uns contra os outros
através de uma faixa de terra, conhecida como
“terra de ninguém”, coalhada de companheiros
mortos ou feridos. Todavia, no dia 24 de
dezembro, em alguns pontos da Frente
Ocidental, os alemães colocaram árvores
iluminadas no parapeito das trincheiras,
e os aliados se juntaram a eles em uma paz
improvisada: a trégua de Natal da Primeira
Guerra, ocorrida há exatos 100 anos.
A trégua “borbulhou desde os postos mais
baixos”, diz o historiador Stanley Weintraub.
Na véspera do Natal, depois de gritarem
promessas – “Não atirem, e nós não atiramos” –,
os até então inimigos cantaram juntos canções
festivas e compartilharam cigarros. Muitos
estenderam a trégua pelo dia de Natal, para que
pudessem se ver mais uma vez e enterrar
os mortos. Cada lado ajudou o outro a cavar
sepulturas e fazer cerimônias fúnebres. Os
soldados dividiram comida e presentes enviados
por parentes e se divertiram jogando futebol.
“Ninguém ali queria seguir com a guerra”,
diz Weintraub. Mas os escalões superiores
ameaçaram punir os rebeldes amistosos.
No início do ano, ambos os lados “retomaram
o cruel enfrentamento”. Mas as boas lembranças
da trégua se refletiam nas cartas para casa
e nos diários: “Que surpresa maravilhosa”,
escreveu um soldado alemão, “e que estranho
foi isso.” – Por Patricia Edmonds

R.U.
BELGICA
Ploegsteert
Canal da Bruxelas
Mancha
Frente O c

FRAN¸CA
i de
nt
tal
0 km 50
Paris

Chronicle/Alamy. NGM MAPS


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Ciência

Revolução
cadeirante
Nos países em desenvolvimento, estima-se que
20 milhões de pessoas usem cadeiras de rodas.
Nem sempre elas são projetadas para enfrentar
caminhos pedregosos no campo ou o meio-fio
dos cruzamentos nas cidades. Por isso, uma
equipe do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, o MIT, criou a Cadeira Liberdade
Alavancada (LFC, na sigla em inglês), uma
mescla de cadeira de rodas e triciclo para todo
terreno. O sistema de propulsão é composto de
peças de bicicleta, baratas e substituíveis.
Os projetistas desejam vender as cadeiras para
fundações e ONGs, para que depois elas sejam
distribuídas. – Por Karen de Seve

Como funciona

Segurando a alavanca embaixo, aumenta a


velocidade angular, e a roda gira mais.

Segurando mais para cima, diminui


o esforço em terreno irregular.

GLOBAL RESEARCH INNOVATION AND TECHNOLOGY. NGM ART; FONTES: AMOS G.


WINTER, GRIT; SOCIEDADE AMERICANA DE ENGENHEIROS MECÂNICOS
festa  a mesa

O que existe no ato


de comer que tanto
nos aproxima?

Festa à
mesa
Durante as refeições, fazemos
amigos, encontramos amores e
celebramos as nossas dádivas.

Por Victoria Pope


festa  a mesa

A partilha do alimento sempre foi um elemento crucial da


existência humana.
A Gruta de Qesem, perto de Tel-Aviv, guarda indícios de
refeições preparadas em um fogão de 300 mil anos atrás, o
mais antigo já encontrado. Em meio às cinzas do Vesúvio,
foi achado um pão redondo no qual haviam sido feitas
marcas dos pedaços em que seria dividido. “Partilhar o
pão”, uma expressão tão antiga quanto a Bíblia, reflete a
importância de uma refeição em comum para reatar os
relacionamentos, dissipar a irritação, despertar o riso. As
crianças trocam lanches para conquistar amigos e imitam
os rituais alimentares dos adultos. Desde a época do pri-
meiro aniversário, estão acostumadas a celebrar com doces,
e esse vínculo entre comida e amor se mantém por toda a
vida – em algumas crenças religiosas, até depois da mor-
te. Mesmo em tempos difíceis, perdura a necessidade de
celebrar com alimentos. Na Antártica, em 1902, durante a
expedição de Robert Falcon Scott com o navio Discovery,
os tripulantes prepararam um banquete por ocasião do

Esta série especial investiga maneiras sustentáveis de


COMIDA alimentar todos os habitantes do planeta – e, nesta
reportagem, enaltece a alegria perene dos comensais.

1 2
solstício de inverno, o dia mais breve e a noite mais longa
do ano. Nada menos do que 55 carneiros vivos foram aba-
tidos e pendurados na cordoalha, congelados naturalmente
até que chegasse a hora dos festejos. O frio, a escuridão e
o isolamento foram esquecidos por um tempo. “Depois de
tal banquete”, escreveu Scott, “todos concordamos em que
até valia a pena viver nas regiões antárticas.”

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festa  a mesa

Fotos

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A MESA COMUNAL

A MESA
COMUNAL

Em Milpa Alta, no México, os fiéis


comem, rezam e comemoram
a plenitude da vida

POR Victoria Pope


FOTOS DE Carolyn Drake
A MESA COMUNAL

Todo ano, há muito tempo, os moradores de Milpa Alta, no


México, preparam um suntuoso banquete antes do Natal
– uma refeição cuja magnitude parece depender de um
milagre. Sessenta mil tamales (um tipo de pamonha) e
19 000 litros de chocolate quente são preparados em menos
de uma semana, e tais quantidades não podem exceder
nem faltar para as milhares de pessoas que vão à festa.
Alimentar essa multidão não é uma tarefa simples. “Há
uma infinidade de coisas a fazer”, diz com firmeza Virginia
Meza Torres, como se indicasse que não dispõe de muito
tempo para conversa. Vestindo uma blusa de piquê branco,
ela parece atenta e calma. O marido, Fermín Lara Jiménez,
está ao seu lado no pátio da casa em que moram, elegan-
te em sua camisa polo branca e seu paletó cinza. Virginia
e Fermín pertencem a uma confraria religiosa e foram
escolhidos a dedo para ser os “mordomos”, ou seja, os or-
ganizadores das atividades associadas à romaria anual até
o Santuário de Chalma, a 95 quilômetros dali. Durante
14 anos eles se prepararam para assumir essa tarefa sagra-
da. A festa é conhecida como La Rejunta, “A Reunião”, e
tem como finalidade intensificar a expectativa em relação à
peregrinação, durante a qual cerca de 20 mil homens, mu-
lheres e crianças de Milpa Alta vão seguir por caminhos
montanhosos até o antigo local de uma gruta sagrada, onde

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E S TA D O S U N I D O S

Golfo do
M´exico
M E X I C O
OCEANO
PACÍFICO Cidade do M´exico

Milpa Alta
0 km 500

há uma escurecida estátua em tamanho natural de Jesus,


El Señor de Chalma. Antes da conquista espanhola, ali eram
veneradas divindades indígenas dotadas de poderes mági-
cos. Mas depois vieram os missionários cristãos, apareceu a
estátua de Jesus Cristo, ocorreu um milagre – e Chalma vi-
rou um lugar religioso importante para os católicos de todo
o México. Os romeiros de Milpa Alta iniciam a caminhada
até Chalma no dia3 de janeiro, e a festa da Rejunta é uma
suntuosa recompensa para todos aqueles que contribuíram
com dinheiro, coisas ou trabalho para o evento.
Virginia está saindo para visitar as repartições públicas
locais, a fim de obter autorização para a procissão de íco-
nes religiosos que vai chegar à casa deles no domingo. Com
uma caminhonete preta, Fermín percorre a zona rural em
busca do milho indígena seco que é usado no preparo do
atole, uma bebida sazonal – à base de farinha de milho com
RETORNAR AO INÍCIO 2 9
chocolate, canela e baunilha – que desperta boas lembranças
na maioria dos mexicanos. Cada etapa de La Rejunta é um
ritual. Um ano antes da festa, os homens saem pelo campo a
fim de recolher a lenha que empilham ao lado da casa do res-
ponsável, de modo que seja adequadamente curada antes de
ser usada nas fogueiras ao ar livre. Os lavradores locais culti-
vam e produzem quase todo o milho, as carnes e os legumes
que serão empregados como ingredientes. Não se admite ali
nenhum produto industrializado ou outros atalhos culiná-
rios. A comida ocupa um espaço tão importante na vida dos
habitantes de Milpa Alta que é moeda de troca por trabalhos
efetuados, amores partilhados, fé renovada. Nesse vilarejo,
durante os dias dedicados a La Rejunta, os pobres se sentem
ricos, e nesse ambiente de abundância toda mágoa ou insulto
que receberam da vida cai no esquecimento.
Milpa Alta significa “milharal alto”, e sua identidade está
associada à agricultura desde a época pré-hispânica. O mi-
lho foi a principal cultura agrícola local até a década de 1930,
quando os lavradores passaram a cultivar uma planta mais
resistente à seca, o nopal, cacto que constitui um dos ele-
mentos básicos da culinária mexicana. Outro importante
negócio local é a produção de barbacoa, carne de carneiro
assada lentamente à maneira tradicional, na qual o carnei-
ro ou ovelha é colocado inteiro em um buraco recoberto
de telhas e revestido de folhas espinhosas do agave. Como
a cidadezinha está a apenas 27 quilômetros do centro da
Cidade do México, não faltam moradores na capital mexi-
cana dispostos a pagar um bom preço pela iguaria.
RETORNAR AO INÍCIO 3 9
O distrito de Milpa Alta, que abrange 12 vilarejos e cida-
dezinhas em uma área rural na periferia sudeste, é o mais
carente da Cidade do México, com quase metade dos mo-
radores vivendo abaixo da linha de pobreza. No entanto,
aqueles que ali nasceram e se criaram, como Juan Carlos
Loza Jurado, questionam o significado dessas estatísticas.
O que é pobreza, pergunta ele, quando todos os membros
de uma enorme família, tanto os empregados como os de-
sempregados, podem contar com uma refeição todos os
dias, assim como outras formas de apoio? O que é pobreza
em um vilarejo no qual se realizam inúmeras festividades
ao longo do ano? Loza, um acadêmico especializado em
problemas rurais, já estudou sua comunidade de uma pers-
pectiva tanto pessoal como profissional, e o que constatou
foi uma coesão social extraordinária. “A gente daqui tem seu
próprio jeito de ver o mundo. O ambiente, as relações so-
ciais, todas essas coisas tornam mais ricas as suas vidas. Não
é raro ouvir as pessoas dizendo que ‘aqui se vive melhor’.”
Esse sentimento se confirma pelo baixo nível de migra-
ção para os Estados Unidos. Entre os valores tradicionais
que servem de alicerce firme para a vida cotidiana está o
ato de comer junto.
“O que me diz a experiência é que há um vínculo que sur-
ge do tempo que passamos juntos à mesa”, comenta Josefina
García Jiménez, de uma família de criadores de ovelhas.
Enquanto prepara comida para os sobrinhos, ela comenta:
“Sinto como se estivesse transmitindo algo tradicional, e,
quando eles ficarem adultos, vão se lembrar do que fiz. Aqui
RETORNAR AO INÍCIO 4 9
temos tempo para cozinhar, tempo para pensar em quais
ingredientes são necessários, tempo para demonstrar aos
mais jovens, por meio da comida, quanto os amamos”.
Tal como muitos mexicanos, Josefina adora a sobremesa
– aquele momento depois da refeição em que toda a famí-
lia, sem exceção, continua à mesa conversando. Pode ser
um momento de confissões envergonhadas ou de risos e
fofocas. Quando pequeno, durante o jantar, Juan Carlos
Loza ouvia fascinado as histórias a respeito dos feiticeiros
conhecidos como nahuales; seus tios descreviam a capa-
cidade que tinham de se transformar em burro, peru ou
cão. A sobremesa era a hora em que se contavam histórias
de milagres e agouros, das romarias dos tempos passados,
quando os homens levavam os suprimentos até Chalma no
dorso dos cavalos. A mesa é o lugar em que se transmite a
história de Milpa Alta.

MARÍA ELEAZAR LABASTIDA ROSAS tem tranças ruivas en-


tremeadas com fitas de tom alfazema escuro. Ela está
mexendo um grande caldeirão de massa de tamale sob o
olhar atento e sério da cozinheira-mestra, Catalina Peña
Gómez. Dona Cata, como é conhecida, apura os sentidos
para captar as sutilezas do aroma de um molho, da con-
sistência de uma massa, e faz as correções com a confiança
de um general. Não tolera atitudes displicentes quando se
trata de cozinhar.
Dona Cata tem 68 anos, está tolhida pelas varizes, mas
cozinha dia e noite durante os derradeiros preparativos.
RETORNAR AO INÍCIO 5 9
“Sinto amor quando estou cozinhando”, diz. Embora man-
tenha a aparência durona, ela fala com a voz um pouco
embargada. “Sinto amor por Deus. Peço a Ele que ajude e
peço pelo bem-estar de todo o meu povo.” Ela criou quatro
filhos como mãe solteira, uma condição que pode não ser
bem-vista em uma pequena comunidade no México. Até
ser obrigada a se aposentar por causa das dores nas per-
nas, trabalhou como cozinheira. Agora sobrevive do que
ganha preparando comida para festas. Mas, seja qual for
sua posição social no mundo externo, aqui, como uma das
diretoras do espetáculo de La Rejunta, ela está investida de
uma autoridade incontestável e é muito respeitada.
Jovial e ativa, María Eleazar ignora o olhar feroz de Dona
Cata, que ela sabe ser sobretudo um blefe, e continua a taga-
relar com as outras mulheres, rindo do fato de que, embora
as mexicanas troquem receitas com as filhas e noras, ao mes-
mo tempo escondem dos outros os seus segredos culinários.
As mulheres contam histórias de catástrofes na cozinha, re-
sultantes de posturas mentais equivocadas. A raiva estraga a
comida, concordam todas. “Só dá para cozinhar com amor”,
afirma María, fazendo uma pausa para prender as tranças
uma na outra. “Tem mulheres que cozinham sem amor, mas
o resultado na verdade não é nada bom. Se estou preocupa-
da, digo a mim mesma, vamos pôr de lado um pouco esse
problema. E só aí consigo cozinhar com amor.”
Para algumas dessas mulheres, a comida também é uma
forma de acesso a uma força divina e tem a ver com um pla-
no traçado no céu. Quando Domitila Laguna Ortega, uma
RETORNAR AO INÍCIO 6 9
senhora idosa de cabelos brancos, derramou um tacho de
molho fervente que acabou escorrendo sobre suas pernas,
era impossível que não se queimasse. No entanto, quando
chegaram para socorrê-la, os bombeiros ficaram atônitos:
por que não havia marcas vermelhas em seu corpo? No caso
de Guillermina Suárez Meza, outra voluntária, ocorreu uma
misteriosa multiplicação da sopa de camarões que serviu
aos romeiros em Chalma. Ela preparou uma quantidade
grande, mas se convenceu de que não era suficiente. “Pedi
a Deus que a comida desse para todos. E ela não acabava
mais. Eu a distribuí com toda a minha alma e coração, e
sempre havia mais.” Com timidez, ela abaixa os olhos cor
de âmbar. “É verdade, acho que pode ter sido um milagre.”

NA SEXTA-FEIRA, FERMÍN é obrigado a usar um cinto de couro


largo e bem apertado para aliviar as dores na coluna. O pal-
etó agora está salpicado de lama. Os fogões estão em plena
atividade, e centenas de voluntários se mantêm ocupados.
Um dos milagres desse esforço coletivo é que, sem que
haja supervisão, todos parecem saber o que lhes cabe fazer.
E, ao se movimentarem, é como se realizassem uma gracio-
sa coreografia – ninguém tromba com os outros, mesmo
com os locais de trabalho lotados. Uma das assistentes de
Dona Cata anuncia com rispidez às mulheres encarregadas
do tamale que o molho chili está vazando. “Tomem mais
cuidado”, repreende.
A etapa de preparo da comida está quase encerrada, mas
Fermín refaz os cálculos. Será necessário fazer mais tamales.
RETORNAR AO INÍCIO 7 9
Os voluntários voltam a se reagrupar. Com fitas roxas no
cabelo ruivo, María Eleazar enfia o colherão na espessa
mistura de fubá, mexendo com rapidez a fim de aerar a
massa. Pouco a pouco somem os grumos, e a mistura vira
uma massa homogênea. Dona Cata prova um pouco. Mais
banha, diz sem hesitar. E mais sal. Então é como se cada
nova colherada fosse parte de um ritual que acrescenta um
pouco mais de graça, de devoção a Deus e às pessoas. As
mulheres envolvem a massa em folhas de milho e descem a
encosta, levando as caixas com tamales até os homens que
vão cozinhá-los em antigos barris de metal. Um talismã de
palha, com o formato de um homenzinho, é colocado em
cada latão. Os tamales são ainda respingados com tequila
ou outra bebida destilada para assegurar um bom resulta-
do final.
Ao amanhecer do domingo, as cozinheiras estão com
uma expressão abatida, mas ninguém vai admitir que se
sente cansada. Na verdade, elas se vangloriam de que a
fé lhes deu energia para ficar de pé a noite toda na labuta.
A responsável pela festa, Virginia, também garante que está
ótima, mas é óbvio que está exausta, com a camisa branca
amarfanhada, o rosto tenso e contraído enquanto coloca
achas de lenha no fogo em que vai cozinhar os tamales.
Quando afinal chega a hora de começar a servir, os homens

A revista agradece à The Rockefeller Foundation e aos leitores


de national geographic pelo apoio que possibilitou esta série
de reportagens.

RETORNAR AO INÍCIO 8 9
cozinheiros ficam de pé como sentinelas e anunciam um
número específico de tamales, calculado para correspon-
der à quantidade de dinheiro oferecida por cada doador.
O mesmo se faz com o atole, que Dona Cata ficou mexendo
a noite toda para evitar a formação de grumos. Agora está
como um veludo na língua. E, por mais exausta que esteja,
ela jamais deixa de participar da distribuição da comida
para as multidões que fazem fila ao longo do dia. “Por que
iria deixar alguém receber o crédito pelo que fiz?”
Enquanto despeja a bebida nos copos e as crianças gritam
de alegria, Dona Cata se permite um sorriso que até revela
seus dentes. Logo, porém, ela retoma a expressão impassí-
vel. Ainda restam milhares de copos a ser servidos. E daqui
a alguns dias será preciso encher as pinhatas com doces
para a celebração de Las Posadas, que se estende por nove
dias até a véspera do Natal. Outras lonas serão instaladas
no vilarejo, e os moradores de Milpa Alta vão de novo se
submeter ao poder da comida, da família e da fé. j

Victoria Pope já foi subeditora da revista. Carolyn Drake fez


fotos de povos como os uigures, da China, para a revista.

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Esforço coletivo (2:09)


Rechear os tamales, cozinhar imensos tachos de legumes
e celebrar o encontro da comunidade – tudo isso faz a alegria
de uma fiesta mexicana.
HAITIANOS

Conexão
Haiti
A jornada de sonhos e dramas
do mais novo e crescente grupo
de imigrantes do Brasil.

POR Kevin Damasio


FOTOS DE Giulio Paletta
HAITIANOS

Castin Serge está sentado em um corredor na Chácara


Aliança, abrigo de imigrantes em Rio Branco, capital do
Acre. Ele olha fixamente para a frente e para baixo. Parece
cansado. Com mãos inquietas e longas pausas, busca
palavras para tentar dimensionar, em seu inglês limitado,
a turbulenta travessia que venceu para chegar ao Brasil.
São os primeiros dias de uma nova vida para ele. Uma
vida ainda incerta. Tudo começou no início deste ano,
quando seu pai lhe perguntou se conseguiria em cinco
anos construir uma vida decente no país caribenho.
O jovem cursava ciência da computação, em uma condição
de ensino superior à da maioria de seus conterrâneos.
Por outro lado, ponderou já estar com 25 anos e desejar
constituir uma família. A resposta foi seca: “Não, pai.
Depois da universidade não sei se encontrarei emprego.
Para ajudá-lo, preciso deixar o Haiti”. As contas foram
feitas. Debilitado por um recente derrame, o pai vendeu sua
caminhonete e uma pequena propriedade. Comprou uma
passagem de avião para o Equador e fez um empréstimo de
500 dólares. Assim, Castin, o mais velho dos seis irmãos,
duas semanas depois de deixar a cidade de Gonaïves,
está ali, no meio da Amazônia, à espera de um golpe de
sorte do destino – a chance de regularizar sua situação e
procurar um emprego em cidades mais ricas do Sul e do
Sudeste do país.

1 12
Em dezembro de 2010, o Brasil abriu as portas para os
cidadãos do Haiti, vitimados pela pobreza que se agravou
depois do maior terremoto da história do país, em 12
de janeiro daquele ano. A tragédia afetou um terço da
população; 220 mil pessoas morreram e 1,5 milhão ficaram
desabrigadas. Um surto de cólera, em 2010, e dois furacões,
em 2012, agravaram o caos. O alto desemprego estimulou
os haitianos a partir em um fluxo desesperado em busca
de vagas no exterior. O Brasil virou um destino cobiçado:
além de seu amplo mercado de trabalho, mantém ótimas
relações diplomáticas – o Exército brasileiro lidera a Missão
das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah)
desde 2004.
Mas a burocracia para conseguir a documentação correta
de imigração no Haiti – no caso, um visto humanitário
– induziu muitos jovens a uma rota clandestina e cheia
de riscos, contando com o apoio de intermediários, os
“coiotes”. Eles viajam de avião até o Equador, muitas vezes
com escala na República Dominicana. Em seguida cruzam
o Peru ou a Bolívia por terra, até chegar à fronteira com o
Acre. Entram no país pela cidade de Brasileia ou de Assis
Brasil, de onde seguem para regularizar sua situação na
capital Rio Branco. “Encontrei problemas no caminho”,
conta Castin. “No Peru, há muitas pessoas... que querem...”
“Explorar?”, completo, ao perceber que ele não encontra a
palavra certa.
“Exatamente. Na fronteira do Equador com o Peru,
minha história de terror começou.”
rETORNAR AO INÍCIO 2 12
Os haitianos viajam para o Brasil sem saber dos perigos
dessa rota ilegal. Para instruir futuros imigrantes, o padre
Onac Axenat, de 35 anos , quer voltar ao Haiti. O mis-
sionário está no Brasil desde novembro de 2010. Estudou
português em Brasília por três meses e se mudou para Rio
Branco com o projeto de construir uma paróquia. Onac
acompanha o novo fluxo migratório desde o fim de 2011.
Os recém-chegados eram bem reservados, nada conta-
vam sobre a saída de seu país, mas aos poucos o religioso
descobriu que gastavam até 4 000 dólares na viagem – e
chegavam de mãos abanando à fronteira brasileira. Onac
denunciou a situação como tráfico de imigrantes. “Ligaram
para me ameaçar, mas fiz o que era preciso. Ouvi português,
espanhol, creole. É uma rede internacional de coiotes”, diz.
“Essa rota vai continuar a existir enquanto ocorrer ação
ostensiva desses intermediários”, alerta Nilson Mourão,
de 62 anos, secretário de Justiça e Direitos Humanos
do Acre. Para ele, desmontar a rota é uma operação que
requer estratégia de identificação e repreensão por parte de
todas as nações envolvidas – Haiti, República Dominicana,
Equador, Peru, Bolívia e Brasil. Além disso, diz ele, é preciso
facilitar a emissão do visto humanitário e de outros papéis
nas embaixadas brasileiras. “Os coiotes”, explica, “vendem a
ideia de que, pela rota ilegal, os haitianos serão logo docu-
mentados – o que é verdade. Por outro lado, é um processo
perigoso e demorado. Os viajantes gastam mais, levam até
15 dias para chegar e são humilhados e explorados.”
O volume de imigrantes vindos do país caribenho
rETORNAR AO INÍCIO 3 12
só aumenta. Em setembro, 700 estavam no abrigo em
Rio Branco – eram 175 em julho. Em 2013, o número de
haitianos no Brasil superou 20 mil, quase 25% em São Paulo.
Já para o final de 2014, a Organização Internacional para
as Migrações estima chegar a 50 mil.

Castin Serge escorregou em um trecho pedregoso na


trilha que leva à fronteira entre Equador e Peru. Cortou
o calcanhar esquerdo, abandonou os sapatos e acelerou o
passo para alcançar os dois senegaleses e o coiote peruano,
para quem havia dado parte do dinheiro que trouxera do
Haiti. Atravessaram um rio, ao encontro de motos-táxi que
os aguardavam no Peru para levá-los até um hotel. Nos dias
que se seguiram, Castin sofreu extorsão, furto, fome, sede.
Pouco dormiu em hotéis precários ou escondido em vans e
ônibus. “Os intermediários nos fazem acreditar que devemos
ter medo da polícia, pois senão vão nos prender e deportar”,
conta Castin, conformado, no abrigo em Rio Branco.
Na cidade peruana de Chiclayo, os imigrantes pagaram
o que haviam combinado. No entanto, a cada parada,
coiotes ou policiais corruptos exigiam mais dinheiro. Além
disso, a mochila do haitiano acabou confiscada em um
táxi contratado pelos coiotes, com laptop, roupas, sapatos
e artigos de higiene. Castin nunca mais a viu. Ficou apenas
com a maleta cheia de livros e documentos, também
saqueada dias depois.
Apesar dos percalços, os imigrantes seguiram para Lima
e depois para Cusco. Ali, os coiotes avisaram que, para
rETORNAR AO INÍCIO 4 12
continuar, queriam pelo menos mais 50 dólares. Castin
convenceu-os de que não tinha. Os peruanos, contudo,
permitiram que ele continuasse o percurso sem pagar – pois
o espanhol falado pelo haitiano, mesmo ruim, facilitava
o diálogo com o resto do grupo.
Em Puerto Maldonado, na Amazônia peruana, Castin
passou duas noites em um quarto de hotel barato, com-
partilhando uma tábua de madeira que servia de cama
com duas conterrâneas. O trio juntou 45 novos soles para
contratar um táxi capaz de levá-los à fronteira entre Peru e
Acre. Por instrução do taxista, passaram a noite em um hotel
em Iñapari, cidade fronteiriça e vizinha da acreana Assis
Brasil. De manhã, foram até Brasileia. Retiraram o protocolo
de refúgio na Polícia Federal e em seguida tomaram uma
lotação, ao preço de 25 dólares cada um. Duas horas e meia
de estrada depois, chegaram ao abrigo de imigrantes em
Rio Branco. Exaustos, famintos e quase sem dinheiro.

O refúgio de Brasileia, a primeira parada da maioria dos


imigrantes até meados deste ano, passou por grandes cri-
ses. A pior foi de março a abril de 2014, com a enchente
do Rio Madeira – 2 500 estrangeiros ficaram sitiados no
precário município de 20 mil habitantes. Aviões da Força
Aérea Brasileira levavam mantimentos ao Acre e seguiam
para Rondônia com imigrantes, que dali partiam para out-
ros destinos. Em julho, quando Castin chegou ao país,
o abrigo oficial acreano havia acabado de ser transferido
para a capital Rio Branco, na Aliança, uma chácara com
rETORNAR AO INÍCIO 5 12
capacidade para abrigar 250 pessoas.
As secretarias estaduais de Desenvolvimento Social
(Seds) e de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) alternam
a cada semana a coordenação do espaço. Os haitianos
dividem-se em dois blocos para homens e um para mulheres.
Há ainda um setor para imigrantes de outros países, em
grande parte senegaleses, e outro para mulheres grávidas
ou com crianças pequenas. A maioria dos estrangeiros fica
ali por no máximo 15 dias, o tempo de tirar CPF, carteira
de trabalho e se vacinar contra febre amarela, hepatite
e tétano. Acompanhantes de jovens e crianças, assim como
grávidas, hospedam-se por mais tempo. Café da manhã
(pão com manteiga e café com leite), almoço e jantar
são financiados pelo governo do Acre. As marmitas são
sopa ou refeições tradicionais no Haiti, com arroz e feijão
empapados, macarrão ao alho e óleo, legumes cozidos
e um tipo de carne, sobretudo frango ensopado.
Como era de esperar, um mercado surgiu no abrigo
para atender às demandas dos imigrantes – materiais
e emocionais. Na lan house local, meia hora de internet
custa 1 real. Negócios mais informais podem ser bem
promissores – no dia em que visito o lugar, o senegalês
Abdoulahat Lô permite que os imigrantes façam ligações
em seu laptop, em troca de 2 reais por minuto. Conheço
Charles Pierre Kenny, um haitiano de 27 anos que fala
português – aprendeu o idioma quando foi intérprete na
Minustah. O objetivo dele é o mesmo de todos: enviar
dinheiro à família. “No Haiti, se não gastar muito, dá para
rETORNAR AO INÍCIO 6 12
viver com 200 dólares por mês”, diz. Pai, mãe e irmão
ficaram em Porto Príncipe. No terremoto de 2010, a casa
deles foi abaixo. A família mora num barraco enquanto,
aos poucos, constrói outra casa.
As mulheres gestantes ou com crianças são geralmente
haitianas que vieram encontrar parentes já estabelecidos
no país. Gaelle Cesar, de 18 anos, grávida de oito meses,
insiste na ideia de ir de avião para Santa Catarina, ao
encontro da mãe. Precisaria de autorização médica, e por
isso Antonio Crispim, coordenador do abrigo, vai levá-la
para consulta no dia seguinte. Ela vem conversar comigo.
“Sou forte. Não tenho problema em viajar. Atravessei do
Equador ao Peru em muitos ônibus. Foram sete dias para
chegar até aqui. Sei que Deus vai me ajudar”, diz. Sua fé
em que tudo vai dar certo funciona. Depois da consulta,
ela é autorizada a viajar.
Os imigrantes têm três opções para continuar a viagem:
por conta própria, contratados por empresários ou com
os ônibus fretados pelo governo acreano para São Paulo.
Os destinos variam conforme as ofertas de emprego. Nos
dez dias que passo no abrigo, um abatedouro de aves de
Paranavaí, no Paraná, recruta 74 haitianos – entre eles,
Castin e Kenny – e um frigorífico de suínos de Estrela, no
Rio Grande do Sul, leva outros 30.
Um ônibus é confirmado para São Paulo. Um funcionário
anuncia a viagem no megafone, e todos correm para
entregar os passaportes. As 44 vagas são preenchidas em
15 minutos.
rETORNAR AO INÍCIO 7 12
O destino é a estação Barra Funda, na capital paulista.
Partimos às 7 da noite. O clima é de alegria e apreensão.
A viagem será longa, exaustiva. Nas 66 horas seguintes,
vamos encarar 3 800 quilômetros de estrada, com oito para-
das de meia hora para comer e usar o banheiro. Quase
todos vão para a Casa do Migrante, um projeto coordenado
por missionários cristãos que fazem um trabalho assisten-
cialista com os refugiados.
De madrugada, atravessamos de balsa o caudaloso Rio
Madeira, que separa Acre e Rondônia. Às 5 da madrugada,
chegamos a Porto Velho. Mudamos para um ônibus mais
apertado, porém em bom estado. Eu me acomodo em uma
poltrona no meio do veículo e caio no sono. Duas horas
depois, fazemos a primeira parada do dia. Na lanchonete,
os haitianos refestelam-se com fatias de pão caseiro com
manteiga derretida. Café com leite aquece do frio matinal.
De volta ao ônibus, os haitianos tentam descontrair
o clima, mas logo as gargalhadas dão lugar ao silêncio.
As incertezas são muitas. Onde arrumar emprego. Como
ganhar dinheiro suficiente para enviar ao Haiti. Ter moradia
razoável. Aprender português. Adaptar-se à nova cidade...
Por outro lado, a esperança, que os fez superar a tortuosa
rota na mão dos coiotes, reluz nas expressões de cada um.
Ainda não sabem como, mas estão perto de se estabelecer no
Brasil e poder ajudar os familiares a reconstruir suas vidas.
Mais 2 900 quilômetros de estrada nos aguardam.
Angeline Aimable ajeita-se a todo instante na poltrona,
sem achar posição confortável. O olhar expressivo reflete
rETORNAR AO INÍCIO 8 12
a coragem com que essa haitiana de 22 anos, grávida de seis
meses, vem viajando desde seu país. Por fim, ela resolve
esticar a blusa no chão do corredor e deita de barriga
para cima. Descansa assim por meia hora. De São Paulo,
Angeline ainda terá de encarar mais oito horas de ônibus
até Curitiba, no Paraná, ao encontro do primo.
No começo da noite, estamos na rodoviária de Vilhena,
na divisa com o Mato Grosso. Os problemas aparecem.
A maioria dos haitianos já não tem dinheiro para comer.
Alguns reclamam de fome, outros vão apenas ao banheiro
e voltam à plataforma de embarque. A cena persiste no dia
seguinte. Em Várzea Grande, dois haitianos perguntam o
preço do café com leite em um restaurante, mas não têm
os 2 reais. A fome gera, no fim do dia, uma cena de solidar-
iedade: seis grupos de quatro haitianos dividem marmitas.
Lembro-me do que muitos haviam me dito: “Somos do
mesmo país. Somos irmãos”.
Seguimos madrugada adentro. Atravessamos o Mato
Grosso do Sul e o interior paulista. A última parada antes
do destino final é em Ourinhos. Os imigrantes dominam
o banheiro, lavando o rosto e os cabelos com sabonete e
xampu na pia. A maioria não tem dinheiro para tomar café,
inclusive eu. Na passagem por Boituva, Tertulien Pressoir,
de 34 anos, pergunta se já chegamos a São Paulo. Abens
Alcy, na poltrona ao lado, quer saber onde estamos. A
cena se repete quando passamos por Barueri e por Osasco.
Estamos perto. A ansiedade fica clara no silêncio que agora
impera. A fome aperta. Abro um pacote de biscoito integral
rETORNAR AO INÍCIO 9 12
e divido com outros nove haitianos.
Às 2 da tarde, desembarcamos na estação Barra Funda.
O alívio por ter chegado ao destino dura pouco. Novos
problemas aparecem. Não há ninguém para receber e
orientar os imigrantes. Mal pego minha mala no bagageiro
e os haitianos se aglomeram ao meu redor com diversas
questões. Todos querem saber o que fazer a seguir.
Alguns, para seguir viagem – Campinas, Santa Catarina,
Curitiba, Goiânia –, precisam ligar para conhecidos e pedir
o número do bilhete de ônibus. Outros vão ficar em São
Paulo, em abrigos provisórios ou na casa de conterrâneos.
Uma vida nova está prestes a começar. Por fim, vamos todos
de metrô para o Centro da capital.

A Casa do Migrante pode abrigar 110 pessoas por noite. De


janeiro a setembro deste ano, passaram por ali 3 462 haitia-
nos – no total, em 2013, foram 2 272. Os viajantes recebem
alimentação, suporte jurídico, psicológico e de saúde, além
de aulas de português e inglês. Paolo Parise, de 47 anos,
padre italiano que coordena a Missão Paz, dirige-se aos
recém-chegados, acompanhado de um intérprete brasileiro
e outro haitiano. Explica que não há espaço para todos
dormirem ali, então muitos ficarão no abrigo da prefeitura,
do outro lado da rua. Em um salão, todos aguardam para
jantar – comida, finalmente.
Uma das maiores preocupações da Missão Paz é evitar
que os imigrantes acabem submetidos a empregos suspeitos
– não raro em condições análogas à escravidão. Contratantes
rETORNAR AO INÍCIO 10 12
assim, segundo Paolo Parise, espalham-se pelas portas das
estações de metrô na região central de São Paulo. Em agosto,
duas operações de fiscais do trabalho, com suporte da
polícia, resgataram um grupo de 19 bolivianos e 12 haitianos
reféns de tais situações em confecções clandestinas.
Para evitar o problema, a Missão Paz criou o Eixo
Trabalho, pelo qual quase 2 mil imigrantes já conseguiram
emprego. Em dois dias da semana, empresários vão ao
abrigo, onde são orientados sobre o processo de contratação.
A equipe da missão exige salários justos, expõe as condições
de trabalho e faz o cadastro das empresas. Enquanto isso,
os imigrantes assistem a palestras sobre direitos e deveres
trabalhistas e são informados sobre as vagas disponíveis.
Em seguida, contratantes e imigrantes encontram-se. Após
três meses, assistentes sociais visitam as empresas para
acompanhar a situação.
Foi assim que Jacson Casimir, de 24 anos, e outros
quatro conterrâneos conseguiram vagas em um restaurante
italiano de São Paulo. A firma contratante foi fiadora no
aluguel de uma casa de três quartos para os haitianos,
pagou o primeiro mês de aluguel e comprou para o grupo
roupa de cama, toalhas, artigos de higiene, uniformes e
sapatos. Os 60 empregados do restaurante doaram quase
2 000 reais, quantia que serviu para a primeira compra de
mercado dos imigrantes. Durante 15 dias, um funcionário
os acompanhou até o restaurante para ensinar a pegar
ônibus. “Sou muito grato por tudo isso”, diz Jacson, já em
bom português.
rETORNAR AO INÍCIO 11 12
Trabalho não é tudo. É preciso ter onde viver, e muitos
imigrantes já engrossam as fileiras por demandas habita-
cionais na cidade. Tertulien Pressoir, que veio no mesmo
ônibus que eu desde Rio Branco, alojou-se com sua prima,
Nacilia Nacius, em um prédio em frente à Praça da Sé –
uma ocupação praticamente só de haitianos, administrada
pelo grupo Luta por Moradia Digna. O apartamento tem
apenas um cômodo, que serve como quarto, sala e cozinha.
O banheiro comunitário fica no corredor.
Nacilia, de 32 anos, veio para o Brasil antes do marido,
pela rota ilegal, em janeiro de 2013. Rony Saincilien, de
35, chegou após quatro meses. Falar espanhol os ajudou a
aprender português e arrumar emprego – ele em construção
civil, ela em uma confeitaria. Recebem, juntos, 2 000 reais e
plano de saúde. Para morar na ocupação, pagam 300 reais
mensais, quase metade do que lhes custava o aluguel de um
apartamento no Cambuci. Os três filhos pequenos do casal
ficaram em Cap Haïtien, com os pais de Nacilia – que está
grávida de novo. As ligações semanais não são suficientes
para diminuir a tristeza, evidente no olhar distante dela ao
falar de Ronika, Carly e Hannah.
Saudade. Eis um drama elementar na vida dos imigrantes,
mesmo os que concretizam o sonho de se estabelecer no
Brasil. “Depois que meu filho nascer, vou ganhar documento”,
conta Nacilia, referindo-se ao visto permanente. “Meu
marido então vai poder buscar os outros no Haiti.” j

rETORNAR AO INÍCIO 12
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PRÍNCIPE A Porto
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Panam´a OCEANO
ATLANTICO

Quito
EQU. Manaus
Tabatinga

Assis Rio Branco


Brasil Brasileia BRASIL
PERU
Cobija
I˜napari

BOLÍVIA

OCEANO S˜ao Paulo


PACÍFICO

0 km 630

Desde 2010 haitianos chegam ao Brasil à procura


de emprego. A burocracia para obter visto
estimula rotas de entrada ilegais, na Amazônia.
A Organização Internacional para as Migrações
já contabiliza 50 mil deles no país.
LF MARTINI
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 DEN, PARTE 3

Bênção.
Maldição.
Cobiça
A travessia da Terra Santa

Por Paul Salopek


fotos de John Stanmeyer
PARA LONDE DO E
 DEN, PARTE 3

Jerusalém não é uma cidade de guerra. Avner Goren tei-


ma nessa questão. Caminhamos no Levante sob um céu
matinal sem nuvens, seguindo um rio de esgoto a céu aber-
to que vem espumejando de Jerusalém Oriental – 45 000
metros cúbicos por dia, Goren me informa – uma descar-
ga imunda que percorre 36 quilômetros até o Mar Morto.
Acompanhamos o esgoto como uma forma de peregrinação.
É como pensa Goren, um dos mais renomados arqueólogos
de Israel. “Houve 700 conflitos aqui desde que Jerusalém
foi fundada”, ele diz, olhando por cima do ombro, enquanto
abre caminho em meio aos turistas religiosos da Cidade
Velha. Mas também existiram longos períodos sem guerra.
E as pessoas viviam juntas em paz.
Somos três.
Goren: jerosolimita nativo, um intelectual de cabelos
revoltos e olhos azul-água de sonhador, judeu. Bassam
Almohor: um amigo palestino, fotógrafo, incansável guia
de caminhada vindo da Cisjordânia. Junto-me a eles depois
de andar por 381 dias desde que saí da África, do berço
biológico da humanidade no Grande Vale Rift, na Etiópia,
e entrei na região do advento da agricultura, da invenção
da linguagem escrita e da origem de deidades supremas,
o Crescente Fértil. Minha lenta jornada é parte de um
projeto intitulado Para Longe do Éden e tem por objetivo
percorrer, passo a passo, os caminhos dos ancestrais da

1 15
Idade da Pedra que descobriram nosso mundo. Pretendo
andar por sete anos até o último canto do planeta aonde
nossa espécie chegou: o extremo meridional da América
do Sul. Quando descrevo minha trajetória para Goren, ele
replica: “Sim. Você vem do sul, como Abraão”.
Nossa caminhada à margem do esgoto – grande ideia de
Goren – é tão fascinante quanto excêntrica: ele quer limpar
a sujeira (a Alemanha prometeu recursos para uma estação
de tratamento) e criar quilômetros de trilhas “verdes” por
um lendário vale onde 5 mil anos atrás Jerusalém foi fun-
dada. Essas trilhas partiriam do cerne espiritual da Cidade
Velha e passariam pelo deserto bíblico, onde a poluição
flui densa sob o sol amarelo. Como o efluente atravessa
a barreira que separa Israel da Cisjordânia, essa rota po-
ria em contato as vidas de palestinos e israelenses. O rio
purificado, coletando em sua árida bacia o sagrado e o
profano, ajudaria a forjar a paz entre os dois arqui-inimi-
gos do Oriente Médio. “Essa peregrinação será diferente
em muitos níveis”, diz Goren. “Ela segue um importan-
te corredor cultural e religioso, é verdade. Mas também
liga palestinos e israelenses de um modo muito concreto.
Estamos falando de água limpa.”
Começamos entre os santuários históricos das três fés
abraâmicas: o Domo da Rocha, as torres da Igreja do Santo
Sepulcro e os imponentes blocos do Muro das Lamentações,
eriçado de orações em papel. Percorremos, suando em bi-
cas, ruas sem sombras em bairros palestinos. Seguimos o
esgoto através de morros estéreis, onde ele contorna um
RETORNAR AO INÍCIO 2 15
mosteiro do século 6 como um fosso sinistro. O efluente
cruza um campo de tiro do Exército. Em desfiladeiros aba-
fados, respiramos pela boca para suportar o fedor. Dois dias
depois chegamos ao término: o mar salgado entre Israel e
a Jordânia. Mar Morto.
“O monoteísmo nasceu aqui”, Goren me diz no alto de
um penhasco defronte à faixa de água cor de ferro. “Assim
que inventamos a agricultura, não precisamos mais de nin-
fas em cada fonte. Os antigos deuses da natureza selvagem
tornaram-se desnecessários.”
Permaneceram apenas os mistérios supremos.
Parece tão impossível, tão inviável, tão ingênuo o sonho
de Goren. (Semanas depois eclodirá outra rodada de lutas
entre palestinos e israelenses. Foguetes arranharão o céu.
Israel invadirá a vizinha Gaza. “Por causa disso vou regredir
dois anos”, Goren lamentará. “Mas esperarei.”) Foi assim,
afinal, que provavelmente avançamos no início, na aurora
da humanidade. Contrariando probabilidades hilariantes.
Por 2 500 gerações de reveses, desesperança, golpes, crises
de fé.
Mas, sem dúvida, essa é a busca que importa.

ANDAMOS PARA O NORTE, Hamoudi Alweijah al Bedul e eu, des-

de a fronteira da Arábia Saudita. Subimos a Crista da Síria.


O que é a Crista da Síria?
Um baluarte de rocha: um colossal bloco de arenito que
se ergue do Hisma, a pálida planície fronteiriça do sul da
Jordânia. Os cartógrafos árabes da Idade Média desenharam
RETORNAR AO INÍCIO 3 15
essa barreira elevada como uma borda, um ponto fulcral,
uma divisa. Ao sul, os vastos desertos geométricos de
nômades árabes, um reduto de movimento feral, ventos
volúveis, espaço aberto, couro de sela – terra das bravias tri-
bos beduínas. Ao norte, os campos mais verdejantes e mais
cobiçados de povos sedentários, de civilizações muradas,
de camadas de fronteiras traçadas e apagadas – o coração
de muitas câmaras do Levante. Adentramos o Crescente
Fértil, a incubadora primordial da mudança humana. Uma
central de impérios. Um palimpsesto de rotas de comér-
cio. Um lugar de exílio e sacrifícios. De deuses ciumentos.
A mais antiga das terras prometidas.
Hamoudi, meu guia, sobe a encosta cantando. Conduz
uma mula de carga por uma corrente, curvado contra o ven-
to gelado. Seu kaffiyeh desbotado adeja como uma bandeira.
Vou na frente, puxando outra mula carregada. Hamoudi vai
me guiando também, como a um animal tolo, com gritos
em árabe. Em três dias, meu companheiro beduíno e eu pas-
samos por touros neolíticos em tamanho natural entalhados
em rocha no Wadi Rum, um fabuloso corredor de areia cor
de tangerina – uma válvula primordial de migração humana
que T.E. Lawrence chamou de “uma via processional maior
do que a imaginação”. Passamos os dedos sobre inscrições
de 2 000 anos gravadas por mercadores de incenso nabateus
e pastores nômades. Transpusemos entulhos de fortes roma-
nos. Acampamos ao lado de ruínas de igrejas em Bizâncio
– o império cristão no Oriente – com naves desmoronadas
que agora têm por teto o céu deserto marmoreado de cirros.
RETORNAR AO INÍCIO 4 15
Por toda parte vemos preces de peregrinos muçulmanos,
mortos há muito tempo, entalhadas quando rumavam para
o sul em direção a Meca.
A tempestade nos açoita na orla do Vale do Jordão. As
mulas gemem. Desvairado por relâmpagos, um came-
lo manco passa a galope, berrando como um presságio
zombeteiro, e desaparece na escuridão. Mulheres beduínas
recusam-se a nos dar abrigo. No crepúsculo violeta, elas
nos previnem de que devemos nos afastar, gritando obje-
ções do interior de suas tendas abauladas e chacoalhantes.
Cai a noite. Continuamos andando.
“Palestina”, diz Hamoudi a três pastores esquálidos, bar-
budos e imundos da tribo Sayadeen que finalmente nos
acolhem. É um destino tão bom quanto qualquer outro.
Os pastores remexem as brasas cor de cereja de sua fo-
gueira. Aceitam nosso café instantâneo adoçado com leite
condensado, bebericando em copos de plástico com o min-
dinho espetado como lordes. Perguntam polidamente sobre
nosso bem-estar. Louvam a Deus por estarmos satisfeitos.
Tenho os pés congelados. Hamoudi pisca e escancara um
sorriso. Dormirá com sua adaga sobre um tapete de areia.
Amanhã é Natal.

A HUMANIDADE ESTACOU a meio caminho enquanto perambu-


lava pelo Oriente Médio. Bandos de caçadores-coletores,
cansados de 200 mil anos de andanças, fixaram-se nos vales
áridos do Levante. Procuraram fontes permanentes de água
potável. Aprenderam a semear ervas silvestres – cevada,
RETORNAR AO INÍCIO 5 15
trigo, linho. Domesticaram touros selvagens de chifres
que atingiam 1,8 metro de envergadura. Caçar, o impera-
tivo nômade, ficou ultrapassado para sempre. Os povos
recém-assentados começaram a empilhar pedra sobre pe-
dra, erguendo as primeiras aldeias, vilas, cidades. Surgiu o
metal fundido. Vieram o comércio e os exércitos. Todo um
novo mundo, que ainda hoje habitamos. Essa “revolução
neolítica” ocorreu entre 9 mil e 11 mil anos atrás. Irrompeu,
independentemente, nas primeiras sociedades agrícolas da
China, Mesoamérica e Melanésia. Mas floresceu, antes de
tudo, nas amarrotadas colinas pardacentas e margens ver-
dejantes de rios ao longo da nossa rota para fora da África.
Hamoudi e eu avançamos penosamente para o norte por
480 quilômetros, através das sombras cor de lavanda da
Serra Transjordânica. Arrastamos nossas mulas teimosas
pelas trilhas de Petra, a lendária capital nabateia esculpida
em rochas vermelhas. Passamos por cemitérios da Idade
do Bronze que continham mortos tão antigos e abandona-
dos que quase já não pareciam humanos – Fayfa e Bad edh
Dhra, as necrópoles que alguns estudiosos bíblicos asso-
ciam às cidades destruídas no Gênesis, Sodoma e Gomorra.
O Wadi Faynan 16 não goza dessa notoriedade.
Descoberto em 1996, esse sítio arqueológico jaz no topo
de um remoto terraço de cascalho acima do árido vale do
Rio Jordão. Esse lugar obscuro é um enigma, um parado-
xo. Contraria todas as narrativas usuais sobre o progresso
humano. Habitações circulares, mós, ferramentas de pe-
dra – as relíquias de seu vilarejo remontam a 12 mil anos
RETORNAR AO INÍCIO 6 15
atrás, nos idos da nossa Idade da Pedra nômade. As pesso-
as que se fixaram ali não eram agricultoras. Caçavam. No
entanto, construíram um anfiteatro de barro, uma plata-
forma sulcada para escoar líquido – possivelmente sangue.
Elas vinham, parece, para assistir a algum ritual. Para orar.
Assim como Göbekli Tepe, na Turquia, outro monumento
relacionado a um culto, Faynan 16 sugere que a religião or-
ganizada – fome espiritual, e não estômagos vazios – pode
finalmente ter interrompido nossas andanças, despertado
nosso urbanismo e nos tornado modernos. “O anfiteatro
parece concebido para o culto comunal”, diz Mohammad
Dafalla, um guia arqueológico que ajudou a escavar a área.
“Algo antigo terminou aqui. Algo novo começou.”
Hamoudi junta gravetos para a fogueira. O Vale do
Jordão espraia-se abaixo em um caldo de luz amarela: um
vasto e estéril caminho percorrido por pés de profetas. Por
Abraão e Moisés. Por Jesus e João Batista. Os humanos
primevos passaram por aqui em sua emigração da África
há quase 2 milhões de anos, ou mais cedo. Hipopótamos,
agora extintos por aqui, pastavam nos pântanos desapa-
recidos do vale. Ontem desabaram as muralhas de Jericó.
Nem 1 centímetro dessa paisagem milenar escapou de ser
alvo de disputa, de ter sido amaldiçoado, abençoado, rei-
vindicado para uma divindade ou outra. É uma terra que
ficou lisa como uma moeda passada por incontáveis dedos.
Hamoudi prepara um bule de chá. Da primeira casa de
Deus, com os olhos cerrados contra o vento quente do de-
serto, contemplamos a ideia inovadora da Terra Santa: o lar.
RETORNAR AO INÍCIO 7 15
UMA MILAGROSA CHUVA NO DESERTO. Avançamos a duras penas,
pingando, até As Safi, na Jordânia. Puxamos as mulas en-
sopadas por ruas molhadas. Até o único lugar notável da
cidade: o “Museu no Lugar Mais Baixo da Terra”.
Essa construção caiada fica perto do Mar Morto, exa-
tamente 405 metros abaixo do nível do mar. No salão de
exposição, atrás de vidraças, em um laboratório bem ilu-
minado, uma equipe de restauradores trabalha em um
antigo piso bizantino: 37 metros quadrados de fragmentos
de pedra coletados no Mosteiro da Caverna de Ló. (Ló: no
Antigo Testamento, o refugiado de Sodoma.) O piso é do
século 5 e contém 300 mil tésseras em tons de vermelho,
marrom, amarelo, verde-oliva e branco, todas embara-
lhadas. Especialistas gregos, australianos e jordanianos
reúnem-se aqui para remontar os pequenos cubos de pe-
dra. Seu trabalho já dura 14 anos.
Stefania Chlouveraki, a chefe do projeto, está em pé
diante de uma mesa com as peças a ser montadas. Ela vira
e revira os fragmentos coloridos nas pontas dos dedos.
E encaixa cada um no seu lugar: um magnífico quadro
com leões, cruzes, romãzeiras. “É preciso pegar o jeito”, diz.
“Uma pecinha pode juntar toda uma seção.”
Stefania já recuperou antiguidades de todo o Oriente
Médio. Aqui há muita história – muito que precisa ser pre-
servado, documentado, recuperado. Ela sente um carinho
especial pelo país vizinho, a Síria. Tem muitos amigos na
antiga cidade de Hamah, um importante eixo cultural.
Preocupa-se com eles. Boa parte dessa cidade foi destruída
RETORNAR AO INÍCIO 8 15
na brutal guerra civil do país. Ela duvida que um dia possa
rever Hamah. Mas está enganada. Porque Hamah está ao
redor dela.
Centenas de milhares de sírios abrigam-se em barracas
da ONU na Jordânia. Nos campos irrigados de As Safi, es-
ses refugiados sobrevivem no limiar da miséria, colhendo
tomates por 11 dólares ao dia. Temos repousado com eles,
Hamoudi e eu, quase todas as noites. É impressionante.
São todos de Hamah. Uma metrópole inteira debandou,
fugiu do apocalipse, cruzou desfiladeiros nas montanhas
e se espalhou pelo Vale do Jordão. As mulheres trouxeram
delicados jogos de chá de porcelana que salvaram de casas
explodidas. Penduraram belos bordados sírios chamados
sarma no interior de suas barracas empoeiradas para se
lembrar do lar. Seus rostos, ao recordar seus mortos, ga-
nham uma luz triste.
Esse é o mosaico mais profundo do Levante. Aqui, mui-
to tempo atrás, inventamos as cidades. Aqui de novo nos
dispersamos pela guerra, como tésseras quebradas, de volta
ao nomadismo.

A TERRA SANTA É COBIÇADA. É murada. Poucos forasteiros per-


cebem em que grau.
Em Amã, às margens do Rio Jordão, entre a Jordânia e
a Cisjordânia ocupada pelos israelenses, o povo reúne-se
para a Epifania. É um rito de Ano-Novo dos fiéis cristãos
ortodoxos. Os devotos vêm ao rio sagrado para cantar hinos,
para ser rebatizados. Também trocam saudações aos gritos,
RETORNAR AO INÍCIO 9 15
a 5 metros de distância, cada um em uma margem da es-
corregadia água parda. “Como vai a titia?” “Mostre o bebê!”
“Diga a Mariam que vamos telefonar para ela hoje à noite!”
São famílias árabes cristãs divididas pela guerra de 1967
entre Israel e seus vizinhos árabes. Uma haste de metal pro-
jeta-se da água e demarca a fronteira. Soldados israelenses
de farda verde-oliva e policiais jordanianos de azul-ma-
rinho vigiam, prontos para impedir quem ouse cruzar o
rio andando. Poucos dias mais tarde, atravesso o Jordão
de ônibus: pedestres são estritamente proibidos na Ponte
Allenby. “Barreiras. Barreiras. Barreiras”, Bassam Almohor
reclama. “Temos barreiras em nossa mente. Não sabería-
mos o que fazer com liberdade de movimento.”
Almohor, contador de histórias de meia-idade, é anda-
rilho compulsivo, um palestino que espera o pior da vida
só para ser surpreendido – um cultivador da ironia. Em
dois escaldantes dias vagueando pela Cisjordânia, espre-
memo-nos por um matagal de fronteiras, cercas, muros,
limites, barreiras, zonas proibidas, ora visíveis, ora imagi-
nárias. Depois de um ano desfrutando das vistas oceânicas
da Arábia, da África, esse recorte da paisagem em incon-
táveis microterritórios me deixa tonto. Minha cabeça gira.
Apinhada com 2,7 milhões de pessoas, o coração de um
proposto futuro Estado palestino, a Cisjordânia ocupada
é dividida, pelos Acordos de Oslo, em zonas de contro-
le palestino e israelense: Áreas A, B e C. Cada zona tem
suas restrições, diretrizes e regulações. Um mapa políti-
co do território lembra um raio X: um coração doente,
RETORNAR AO INÍCIO 10 15
manchado, coagulado, esvaziado. Passamos lentamente
pelo Palácio de Hisham, em Jericó, pouco visitado tesou-
ro da arte islâmica do século 8 (Área A). Transpirando na
soalheira, escalamos a escarpa leste do Grande Vale Rift
local (Área B), contornando com cuidado os polêmicos as-
sentamentos israelenses cercados por arame farpado (Área
C). Caminhamos 42 quilômetros por uma reserva natural
e um campo de artilharia israelense (Área C novamente)
e desabamos exaustos em Belém (de novo Área A).
Uma fileira de relógios em nosso hotel barato mostra a
hora em Lagos, Bucareste, Kiev: as capitais de peregrinos
que vêm se ajoelhar na terra em que nasceu Cristo. O mun-
do inteiro se afunila pela porta da Igreja da Natividade. Na
manhã seguinte, com bolhas nos pés, Almohor e eu nos
juntamos a filas de argentinos, russos, americanos, franceses.
Em nuvens de incenso, eles encostam as palmas das mãos em
pedras recém-polidas onde o Ente Supremo tocou a Terra.
Uma igreja ortodoxa medieval controla o acesso à Gruta
da Manjedoura. Ao lado, uma catedral católica romana
nova improvisa com um buraco para espiar. Os católicos
veem através desse buraco a luz amarelada do local de nas-
cimento de Cristo. O buraco é grande o suficiente para
introduzir um lápis. Temos aqui um clássico arranjo da
Cisjordânia: um Acordo de Oslo celestial.

VEJA OS HOMENS DANÇANDO. Braços nos ombros uns dos


outros, sapateiam em círculo, balançam garrafas de vi-
nho. Polegares manchados de púrpura servem de rolha.
RETORNAR AO INÍCIO 11 15
O vinho pula e remexe dentro do vidro verde. Jogam a
cabeça para trás, os dançarinos. Riem para o céu. Estão
felizes. Percorrem trôpegos as ruas. Cambaleiam em meio
a carros e buzinadas. Nas calçadas andam seus filhos, em
trajes curiosos – um carnaval de soldados, ninjas, gueixas,
centuriões romanos pigmeus. “Tudo o que detestamos”,
explica um homem em um inglês capenga. Ele se refere ao
pecado. Rindo, prossegue na dança.
Ele é Haredi, membro de uma seita judaica conserva-
dora que rejeita a cultura secular moderna. Bene Beraq
– um satélite de Tel-Aviv de baixa renda e ultraortodoxo –
ferve na planície mediterrânea de Israel. Ainda assim, os
homens locais vestem-se como corvos: terno preto pesado,
chapéu preto de abas largas, os avós de suíças enormes e
os rapazes de peot, os cachinhos laterais dos devotos. As
mulheres, pálidas, fitam sob o sol. De saias lisas, sapatos
surrados. Lenço na cabeça. A folia de seus bebuns é cho-
cante. Uma festa de quacres. Uma patuscada de imãs. Um
bacanal de menonitas.
Essa gente piedosa – será que endoidou?
Não. É simples: depois de andar pelos imemoriais ho-
rizontes da nossa rota de saída da África, entrei em um
labirinto revolvido, uma encruzilhada emaranhada do
mundo em que a paisagem é interpretada como um sa-
cramento, um labirinto de fés ecoantes chamado Oriente
Médio. A estranha devoção em Bene Beraq é um festival da
alegria, da sobrevivência: Purim. Nele se comemora o sal-
vamento dos judeus de um genocídio pelos persas há quase
RETORNAR AO INÍCIO 12 15
2 500 anos. O massacre, tramado pelo cortesão Haman, foi
impedido por dois judeus corajosos, Ester e seu pai adotivo,
Mordechai. Todo dia 14 do Adar (o décimo segundo mês
de seu calendário), os judeus celebram a continuidade de
sua existência. Trocam presentes. Tratam de ficar “perfu-
mados de vinho”. Bebem até “não saber a diferença entre
‘Maldito seja Haman!’ e ‘Abençoado seja Mordechai!’” Uma
festa com a qual é fácil simpatizar. Entro nela. Desalinhado,
com roupas surradas, sapatos furados e pele curtida de sol,
minha fantasia é permanente: o viajante que vem de longe.
As crianças mascaradas riem. Pedem moedas.
Minha caminhada é uma dança.
O antropólogo Melvin Konner descreveu como os
mestres num do povo Kung San, os xamãs do Kalahari
– membros da que talvez seja a mais antiga população hu-
mana do planeta –, induzem um transe espiritual por meio
de horas de dança em volta da fogueira. Esses estafantes
rituais produzem até 60 mil solavancos rítmicos – o nú-
mero de passos em um longo dia de caminhada – na base
de seus crânios. O resultado, diz Konner, é um estado psi-
cológico que buscamos desde a aurora da nossa espécie,
“aquela sensação ‘oceânica’ de unidade com o mundo”.
Isso pode explicar a neurologia do êxtase. Mas por que
buscamos o êxtase?

DEIXAREI O CALDEIRÃOdo Levante pelo porto israelense de


Haifa. Compro passagem em um navio cargueiro no qual
contornarei o matadouro da Síria contemporânea e chegarei
RETORNAR AO INÍCIO 13 15
a Chipre. Dali seguirei para a Turquia.
A um dia de caminhada ao sul de Haifa se escancaram as
cavernas do Monte Carmelo. Elas contêm ossos de Homo
sapiens de 1 000 anos de idade. Esse famoso sítio arqueo-
lógico marca o limite da migração humana para longe da
África na metade da Idade da Pedra – a fronteira do que
conhecíamos do cosmo. Marcho para as cavernas sob uma
tempestade. O governo resolveu pôr manequins no interior
desses abrigos na rocha: um povo das cavernas de plásti-
co, vestido de pele. À luz cinzenta da borrasca, seus olhos
pintados fitam o Mediterrâneo – o mar cor de vinho de
Homero, o corredor para a modernidade. Mas, na memó-
ria, a verdadeira coda da minha caminhada pelo Oriente
Médio veio antes disso.
Meses antes eu tinha acampado na costa do Mar Morto
com uma família de beduínos.
O pai, Ali Salam, era pobre. Catava latas de alumínio à
beira da estrada. Sua mulher adolescente, Fatimah, uma
mocinha tímida e sorridente em um vestido imundo, balan-
çava seu bebê doente sob um encerado. Cozinhava tomates
surrupiados de plantações vizinhas. Comemos em uma pa-
nela suja de fuligem. Do outro lado do asfalto, a menos de
200 metros na noite, resplandecia um punhado de resorts
de luxo. Imaginei então outro casal por trás das janelas
de vidro laminado: taças de vinho do frigobar nas mãos,
talvez eles olhassem a noite lá fora. Será que viam nossa
fogueira? Ouviriam a tosse persistente da criança? É claro
que não. Tentei pensar mal deles. Mas não eram más, as
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pessoas naquele quarto bem iluminado. Certamente nem
piores nem melhores do que quaisquer outras em viagem
pela solitária estrada no deserto. Eis a única teologia da
caminhada. Os beduínos. As pessoas no hotel. A estrada
que os divide e os une. j

Paul Salopek, fellow da National Geographic Society, é ex-


redator e correspondente estrangeiro do Chicago Tribune. John
Stanmeyer, colaborador de longa data, está fotografando partes
da caminhada de Salopek para a revista.

RETORNAR AO INÍCIO 15
PARA LONDE DO E
 DEN, PARTE 3

Mapa
Solo ÁREA
AMPLIADA AMERICA
disputado EUROPA ASIA DO NORTE
Prevista
Concluída
AFRICA AMERICA
AUSTRALIA DO SUL

Por quase dois anos,Beiruteo projeto Para Longe


do Éden, que segue os passos dos primeiros
Rota LIBANO do Grande Damasco
humanos, levou Paul Salopek
concluída Nabatiye
Vale
Rift, na África,
ÁREAaté oetOriente
Tahta Médio, o S  Iberço
RIA
MarAMPLIADA
das cidades e da agricultura. NesseDivisa reivindicada
trecho
AM ERICA
EUROPA
Mediterrˆaneo ASIA Nazar´ e pelaDOSíria
NORTE
de sua jornada,Haifa Salopek percorreu a pé o
Prevista Mar da Galileia
milenar corredor
14 mar do vale do Rio Jordão até
2014
Concluída
Jord˜ao

Jerusalém e a Cisjordânia, umaIrbid


Samaria-Sebaste
AFRICA rota que AMEhá RICA
muito tempo é foco de
blusconquistas
Nablus
AUSTR ALIA e DO SUL
Tel Aviv-Yafo CISJORDANIA
conversões. Am˜a
Jerusal´em
Jeric´ o (Ariha)
FAIXA Bel´em Mar
DE GAZA Beirute Morto J O R D A N IA
El Arish Beersheba Al Karak
Rota LIBANO Damasco
I S RA EL As Safi
concluída Nabatiye
ALE RIFT

et Tahta S I R I A
Wadi Faynan
EGMar
ITO Divisa reivindicada
Mediterrˆaneo Nazar´e pela Síria
Haifa Petra Mar da Galileia
GRANDE V

14 mar 2014
Jord˜ao

Samaria-Sebaste Irbid
Al Aqabah Wadi Hafir
18 dezembro 2013 Nablus
blus
Tel Aviv-Yafo CISJORD
Wadi ARum
NIA
Am˜a
Golfo de
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Jerusal´em
Acaba Jeric´ o (Ariha)
MA

0 mi FAIXA 50 Bel´em Mar


0 El
DE GAZA
50
kmArish A RA BIAMorto S A UJ O
DRI TDAA N IA
Beersheba Al Karak
I S RA EL As Safi Tabuk
IFT
Wadi Faynan
EGITO

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Petra

GRANDE V
Al Aqabah Wadi Hafir
18 dezembro 2013
Wadi Rum
Golfo de

HIS
Acaba

MA
0 mi 50
0 km 50 A RA
 BIA SAUDITA

Tabuk
ryan morris, ngm staff
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 DEN, PARTE 3

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VÍdeo

“É tudo gente, só isso” (1:47)


Paul Salopek, prosseguindo em sua jornada pelo Oriente Médio,
fala sobre o que une as diversas culturas que vivem nessa região
conflituosa.
MACACO-DE-GIBRALTAR

Macacos
do frio
Brincalhão, mas contemplativo. Feroz, mas
tímido. Adorado, mas em extinção: eis o macaco-
de-gibraltar, um primata muito, muito distinto.

POR Rachel Hartigan Shea


FOTOS DE Francisco Mingorance
O macaco-de-gibraltar (Macaca sylvanus) é um animal
com traços peculiares. É o único primata, além dos
seres humanos, que vive ao norte do Saara, e também
o único membro do gênero Macaca encontrado fora da
Ásia. No passado, outros viviam desde o Leste Asiático
até o noroeste da África. Apenas o macaco-de-gibraltar,
contudo, se adaptou às condições ecológicas da África.
Não é só a geografia que faz sobressair esse primata.
Com espesso pelame acobreado e olhos inteligentes, do
tamanho de bebês humanos e desprovidos de cauda, há
muito eles são cobiçados – e capturados – por viajantes de
passagem. Vestígios de ossadas foram exumados nas cinzas
de Pompeia, nas profundezas de uma catacumba egípcia
e até mesmo no topo de uma colina irlandesa onde, na Era
do Bronze, os soberanos de Ulster tinham sua corte.
O âmbito do macaco-de-gibraltar está reduzido a
bolsões de mata no Marrocos, na Argélia e em Gibraltar.
É lamentável que os animais continuem a atrair a cobiça de
visitantes. Segundo estimativas de conservacionistas, todos
os anos contrabandistas retiram do Marrocos cerca de
300 filhotes, que acabam alimentando um crescente mercado
de bichos de estimação na Europa – uma retirada que
prejudica a sustentabilidade da espécie. Restam hoje apenas
6 mil indivíduos, dos quais algo entre 4 mil e 5 mil estão
no Marrocos. No país, o fotógrafo Francisco Mingorance

1 2
passou mais de um ano buscando imagens do Macaca
sylvanus na Cordilheira do Atlas. “O amor com que cuidam
dos filhotes é algo quase humano”, conta ele. “Vi uma mãe
segurar o filho morto nos braços durante quatro dias. Isso
me emocionou demais.”
Diferentemente da maioria dos primatas, “os machos
muitas vezes cuidam dos bebês”, explica Bonaventura
Majolo, criador em 2008 do Projeto Macaco-de-Gibraltar,
um estudo da espécie que prossegue até hoje. Os pes-
quisadores usam os filhotes para estabelecer relações
amistosas com outros machos. Majolo batizou a manobra
de “interação sanduíche”, pois o filhote serve de elo e se
posiciona entre dois adultos: com isso às vezes os machos
chegam até a cuidar um do outro, assim como do bebê.
“Os macacos temem as pessoas”, diz a zoóloga Siân
Waters. Porém, quando ela devolve um filhote perdido,
“os machos se aproximam. Ficam tão excitados ao ver
o bebê que perdem todo o medo”. j

RETORNAR AO INÍCIO 2
MACACO-DE-GIBRALTAR

Map
ÂMBITO DO
MACACO-
DE-
GIBRALTAR
OCEANO EUROPA
ATLANTICO GIBRALTAR
(R.U.) Mar Mediterra
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C
MARROCOS ARGELIA

S A A R A

SAARA
OCIDENTAL
(MARROCOS)
A
 F R I C A
0 km 600

Âmbito atual do macaco-de-gibraltar

Lauren e. james, NGM staff


FONTES: IUCN; bonaventura Majolo,
University of Lincoln, U.K.
MACACO-DE-GIBRALTAR

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CAUBO IS DA PATAGO NIA

Caubóis do
fim do mundo
Na Patagônia, o clima é imprevisível e as paisagens
são deslumbrantes. E ali peões enfrentam o gado
mais indócil do planeta.

POR Alexandra Fuller


FOTOS DE Tomás Munita
CAUBO IS DA PATAGO NIA

Esta é uma história de sangue, coragem e tradição.


E, como na maioria das narrativas desse tipo, ela tem
cavalos, homens de bravura e modéstia surpreendentes,
além, é claro, de risco de ferimentos e morte. Também
como na maioria das histórias similares, a paisagem
é selvagem, em parte por ser tão remota e quase im-
possível de acessar por meios usuais convenientes. Se
você souber onde procurar, encontrará Sutherland em
um mapa topográfico: um dedo de terra em território
chileno, espetado na Enseada Última Esperanza, no sul
da Patagônia. Ali não existem estradas próximas nem
povoações. Ao norte – também não acessível por meios
comuns – fica o Parque Nacional Torres del Paine, e
mais além os inóspitos e impenetráveis campos de gelo
setentrionais que separam a Patagônia chilena do res-
to do país. A oeste, incontáveis ilhotas compõem um
quebra-cabeça no sul do Pacífico. A leste está a ense-
ada, geralmente enfurecida pelos famigerados ventos
locais, portanto nem sempre segura para a navegação.
E por fim se chega a Puerto Natales, com suas lojas e
restaurantes para turistas.
Sebastián García Iglesias, de 26 anos, profissão en-
genheiro agrícola, mas vocação para vaqueiro, tem a
1 11
sabedoria calejada dos que foram criados em meio a
grandes animais. Seu célebre tio-avô Arturo Iglesias – di-
zem que Sebastián é assombrosamente parecido com ele
– nasceu em Puerto Natales em 1919. A família Iglesias
foi uma das primeiras a se instalar nessa área, em 1908, e
abriu um armazém para abastecer os pioneiros. Depois,
a família fundou a Estancia Mercedes em um pedaço de
terra pitoresco, aninhado à beira-mar e de costas para
a montanha. Em 1960 Arturo adquiriu a Estancia Ana
María, aonde só se chega de barco ou depois de 10 horas
a cavalo, para quem se dispuser a atravessar um pântano
com a montaria afundando até o ventre. E, como se Ana
María não fosse remota o bastante, Arturo fundou uma
povoação em Sutherland, área quase inatingível em ter-
ras remotas dentro da remota estância. No passado, um
peão foi morar com a mulher e dois filhos numa casinha
em Sutherland, mas a mulher – talvez desvairada pelo
isolamento – fugiu com um pescador, e por fim o peão
partiu com seus dois filhos sem mãe, levando seu gado
de volta para a civilização.
Animais desgarrados do rebanho de Arturo torna-
ram-se bravios e se reproduziram, e a seleção natural
dotou-os de maior porte e mais ferocidade. Todo ve-
rão Arturo os capturava, vindo da Estancia Ana María
com seus cães boiadeiros e seus cavalos de confiança.

RETORNAR AO INÍCIO 2 13
Às vezes ele mandava de barco o gado selvagem – ba-
guales, ou baguais, como são chamados esses animais,
que pertencem a espécies domésticas e não são me-
ramente “selvagens” – para ser vendido em Puerto
Natales. Vez ou outra ele resolvia tanger seu rebanho
por terra passando por penhascos estreitíssimos, atra-
vessando charcos e transpondo rochas escorregadias
– tudo isso cavalgando de cigarro enrolado a mão nos
lábios e levando a reboque um cavalo de carga e um
touro feral.
Mas eis que a família Iglesias – estamos falando de
toda a parentela, com tios e primos que têm pouca ou
nenhuma ligação emocional com o lugar – decide ven-
der Ana María, incluindo Sutherland, a um pecuarista
rico. O comprador autoriza Sebastián a capturar ba-
guais pela última vez. Sebastián procura os melhores
bagualeros de Puerto Natales para ajudá-lo e, talvez
porque espere um dia levar turistas para “bagualear”
e manter viva a tradição, nos permite ir junto.
Portanto, desde o início está claro: esta expedição
a Sutherland não será uma viagem normal. Para co-
meçar, o gado de Sutherland é composto de animais
que não veem uma corda há gerações. E só para chegar
a Sutherland cavalgaremos com Sebastián e três outros
peões, 20 cavalos e 30 cães por no mínimo dois dias

RETORNAR AO INÍCIO 3 13
no tipo de terreno que recompensa um passo em falso
com seja lá o que for que vem depois da vida.
Telefono para casa, desejando apoio moral. “Me
aconselharam a levar óculos de proteção”, comento com
meu pai. Faz-se um breve silêncio. “Óculos de proteção
são para invadir a Polônia, caramba, não para juntar
um punhado de vacas!”, papai responde. Ele é um fa-
zendeiro zambiano setentão nascido na Grã-Bretanha
e não vê nada de mais em entrar na escuridão do Vale
do Zambezi para espantar os elefantes de seu bananal
ou enxotar crocodilos dos tanques de peixes de ma-
mãe. “Qual é o objetivo do esforço?”, ele quer saber.
“Cinquenta baguais, se conseguirem pegá-los”, respon-
do (ou seja, dinheiro, obviamente, mas também outra
coisa difícil de definir).
Mamãe pega o telefone. Lembra-me de que, quando
eu era pequena, ela me levava junto para capturar va-
cas na fronteira com Moçambique durante a guerra de
independência da Rodésia. “Eu me lembro”, digo. “Eu
era bem corajosa!”
“Que nada”, retruca mamãe. “Você era uma medrosa.”
Ouço papai apartear ao fundo que, se eu sobreviver aos
touros, lá no tanque de peixes há dois crocodilos com
que posso me atracar, se quiser. Os óculos devem ser
úteis para isso, ele diz. E meus velhos se racham de rir.

RETORNAR AO INÍCIO 4 13
NÃO PUS OS ÓCULOS DE PROTEÇÃO NA BAGAGEM , mas, na hora
em que topo com um bagual em Sutherland, essa é a
menor das minhas preocupações. A folhagem estrondeia
diante de nós como que derrubada por um trator.
“Procure uma árvore”, tinham me ensinado. Porém, an-
tes que eu possa mover meu cavalo, o touro aparece
na disparada. Mesmo com 30 cães lhe mordendo as
orelhas e os calcanhares, rasgando a carne mole sob
a cauda, o animal parece indestrutível e decidido a fazer
estrago. Não há bagualeros à vista. O touro não recua;
seus flancos são foles à força máxima. Parece estar aval-
iando a situação. Os segundos que seguem duram uma
eternidade. Quem acha que é tolice atribuir emoções
a animais nunca olhou nos olhos de um touro feral.
Subo a cavalo por uma rampa, na direção de um ar-
voredo. Quando criança, eu passava horas nos galhos de
um robusto flamboyant e lá me sentia invisível e pode-
rosa. Mas já perdi esse pensamento mágico faz tempo,
e o touro me parece mais do que páreo para qualquer
árvore em que eu possa subir. “Os touros vão arremeter
contra você”, tinham me avisado. “Suba bem alto.”
Na noite passada, Abelino Torres de Azócar, um
caubói de 42 anos, habilidade inumana e dignidade
imperturbável, contou-nos uma história sobre uma ex-
pedição de muito tempo atrás. “Não sei se aquele touro

RETORNAR AO INÍCIO 5 13
era o demônio ou o quê”, disse Abelino. “Colocamos
armadilhas, atiramos nele, esfaqueamos, mas ele não
morria.” Uma noite o touro atacou os homens adorme-
cidos. “Ouvimos galhos quebrando, mas não tivemos
tempo de fugir. O touro destruiu a barraca com a gente
lá dentro. Ficamos cheios de cortes e machucados.”
Na hora, pensei que fosse só mais uma daquelas his-
tórias que se costuma contar ao pé da fogueira no sul
da África, para passar o tempo entre o jantar e o saco de
dormir. A sedução desses casos – o irmão de um missio-
nário pisoteado por um elefante, um caçador profissional
baleado por seu cliente – reside na sensação tranquili-
zadora de que o infortúnio não acontecerá conosco.
Só que agora a história parece prestes a acontecer
comigo. Fui criada por gente rija para não me queixar
e ser estoica, mas sem ser testada é difícil saber os li-
mites da coragem e da resistência.

SEBASTIÁN NOS GARANTIRA que viria uma balsa a Sutherland


para pegar os baguais, os cães, os cavalos e nós, mas o tra-
jeto está difícil. Em vez de um ou dois dias, levamos uma
semana. Parece que a vegetação voltou a crescer com ím-
peto dobrado desde o tempo de Arturo. A toda hora os
cavalos tentavam fazer meia-volta, derrapando no chão
escorregadio por causa da chuva. Por duas vezes um cava-
lo de carga perde o controle e rola da trilha até ser detido

RETORNAR AO INÍCIO 6 13
por uma árvore ou uma rocha. Cada vez que isso acontece,
perdemos horas para pôr tudo em ordem, os cães mor-
discando as pernas do animal, os homens puxando com
cordas. “Tudo está indo bem”, diz Sebastián à namorada
no último trecho com sinal telefônico que teremos por al-
gum tempo. Ela implora que ele resolva voltar antes que
seja tarde demais. “Não, não, está tudo perfeito”, ele replica.
Na terceira noite, com Sutherland ainda um nú-
mero incerto de dias à frente, a comida acaba. Passar
fome no caminho não é novidade para os bagualeros.
Normalmente viajam com carga mínima, para não
forçar os cavalos já tão exigidos. “Preste atenção nos
cachorros”, eles avisam. “Vão começar a comer nossas
coisas de couro.” Mas os cães, pelo jeito igualmente
experientes, eram ladinos. Quando pusemos roupas
molhadas para secar e tentamos nos aquecer em volta
da fogueira, os cães comeram as amarras das esporas
de Sebastián, a tampa de couro de um cantil e a cilha de
uma sela. “Amanhã encontraremos um bagual e então
comeremos”, diz Sebastián.
Na quarta manhã, o desjejum dos homens é de ci-
garros e mate – o chá que suprime o apetite e fornece
um surto de energia igual ao obtido com uma xícara
de café forte. Deixam o acampamento cedo para abrir
uma trilha. Eu fico, encarregada de manter as fogueiras
acesas e a cachorrada longe do couro e de impedir que
RETORNAR AO INÍCIO 7 13
os cavalos voltem para casa. Em três dias eu já perdi
peso – alguns quilos imperceptíveis no começo, depois
outros a contragosto, e então um frio incessante se ins-
tala sem descanso, primeiro nas extremidades, depois
nos ossos. Não há jeito de eu me aquecer.
Quando os bagualeros voltam para o acampamento,
horas depois, também estão ensopados. Todos têm as
mãos dilaceradas por espinhos e pelo cabo dos facões.
Revezam-se secando as roupas ao fogo. Abelino, sem
dizer uma palavra, cobre meus ombros com sua jaqueta
seca. “Uma bondade perene, instintiva”, eu diria mais
tarde, ao me perguntarem o que mais me impressionara
nos caubóis – o que só é surpreendente se pensarmos
na brutalidade direta do trabalho deles.

SE EXISTE ALGUM MODO FÁCIL de tirar o gado bravio de


Sutherland e levar para o mercado, todas as alternativas
me fogem da mente quando o touro surge desemb-
estado da floresta. No mercado da carne, em grande
parte do mundo, campos de engorda, caminhões de
transporte e abatedouros ocultam a violência entre os
consumidores e os consumidos. Aqui a balança pende
com maior justiça a favor do animal.
“Um bagualero é alguém que enfrenta mano a mano o
gado selvagem, usando habilidades humanas”, Sebastián

RETORNAR AO INÍCIO 8 13
já me explicara. “Com uma arma, levamos vantagem
demais. Mas no corpo a corpo podemos perder, arris-
camos a vida.” Em meados dos anos 1960, Arturo tinha
40 e poucos anos quando um bagual finalmente o en-
curralou numa turfeira, a mesma que atravessamos no
primeiro dia da nossa jornada para Sutherland.
Ele tinha desmontado do cavalo, por isso foi obriga-
do a enfrentar o touro sozinho e desarmado – corpo a
corpo, como diria Sebastián. “As coisas não foram bem
para o meu tio-avô”, conta Sebastián. O touro espati-
fou os dentes de Arturo e com uma chifrada rasgou
seus testículos. Depois disso, os compadres do peão
dispararam tiros para o alto, e o bicho recuou, deixan-
do Arturo ensanguentado. Ele pediu que o ajudassem
a montar e cavalgou até a estância da família Iglesias,
onde ficou aguardando um barco para levá-lo ao hos-
pital mais próximo.
Quando a equipe médica do hospital em Punta
Arenas viu Arturo, propôs castrá-lo ali mesmo a fim
de salvá-lo de uma morte quase certa por infecção. Mas
Arturo implorou que a enfermeira cobrisse suas partes
feridas com sal. Depois substituiu seus dentes quebra-
dos por dentadura. Deixou o hospital com a virilidade
intacta e um sorriso artificial, mas brilhante e certinho.
O episódio levanta a questão: “Isso vale a pena?”

RETORNAR AO INÍCIO 9 13
Naturalmente, a resposta a essa pergunta depende
do que é “isso” e de qual é o conjunto de valores que
pautam a vida. Em outras palavras, depende de valo-
rizar a sublimidade do sofrimento ou a trivialidade do
conforto. E depende de ser necessário ou não arriscar
a vida para sobreviver. “Uma pessoa sem ligação com
seus ancestrais e sua terra está condenada a tombar”,
Sebastián reflete. “Este, para nós, é um modo de vida,
e não só um modo de ganhar dinheiro.”
Ainda bem, pois estava evidente que não haveria
50 baguais para levar de balsa até Puerto Natales.
O mau tempo espantara a maioria dos animais para o
extremo oeste de Sutherland, aonde os cavalos e os cães
não aguentariam ir. Em vez de cinco reses por dia, seria
uma sorte se pegassem uma a cada dois ou três dias.
Na verdade, até essa modesta quantidade parecia uma
façanha implacavelmente difícil. Quando os bagualeros
conseguiam chegar até um touro e laçá-lo no matagal,
ainda precisavam remover os chifres e amarrá-lo a uma
árvore por alguns dias até que a exaustão lhe minasse as
forças o suficiente para que ele se deixasse ser amarrado
a um cavalo e tangido para dentro da balsa.

COMEÇO A DUVIDAR– infringindo a crença de Sebastián no


pensamento positivo – de que estarei inteira para ver o

RETORNAR AO INÍCIO 10 13
fim desta viagem. Afinal de contas, o primeiro touro que
encontro parece estar de olho em mim, e eu ainda não en-
contrei nenhuma árvore apropriada na qual me refugiar.
Eis que de repente aparecem os quatro bagualeros,
cavalgando em velocidade inimaginável através da
floresta, uma mão nas rédeas, a outra de prontidão so-
bre uma corda enrolada. Ao vê-los, o touro foge para
o meio das árvores, na direção do lago. Vou atrás, a
uma distância segura. Quando chega ao lago, o tou-
ro morre acidentalmente, estrangulado por uma das
cordas. Tentando reavivá-lo, alguém puxa a língua do
animal para fora da boca. Outro joga o peso do corpo
repetidas vezes sobre o ventre do morto – reanimação
cardiorrespiratória em grande escala e inútil. A vida
escoa de seus olhos, que de pretos assumem um tom
verde glacial. Abelino tira o chapéu e enxuga a tes-
ta. Vivo, aquele touro representava um mês de salário.
Morto, será apenas carne para nós e para os cães.
Nas duas semanas seguintes, os homens capturam
meia dúzia de vacas, vários touros e um bezerro. Um
touro afogou-se no lago; uma vaca pulou de um pe-
nhasco e se enforcou. Nosso acampamento exala um
ranço de animais e carne. Os homens sentem falta de
mulher e contam piadas que ninguém quer traduzir,
em consideração a mim. Mas fico sabendo que o bordel

RETORNAR AO INÍCIO 11 13
em Puerto Natales, do qual Arturo era cliente, foi ar-
rasado por um incêndio tempos atrás. “Talvez tenham
posto fogo só para ver as mulheres saírem correndo lá
de dentro”, alguém sugere, saudoso.
A balsa só poderá vir a Sutherland se o tempo con-
tinuar bom. “Vai estar”, diz Sebastián, contrariando
todos os indícios. A balsa vem mesmo, e os bagualeros
conseguem pôr a bordo todos os animais. A maioria
de nós sai arranhada, cheia de hematomas. O velho
cavalo de carga ficou manco de tanto cair nas trilhas.
Um cachorro foi prensado contra uma árvore por um
touro e, desorientado pelo trauma, fugiu de volta para
casa; outro sobreviveu, mas acabou sendo arrastado
pelas águas em uma cachoeira.
Enquanto a balsa manobra em direção a Puerto
Natales, eu me pergunto como serão as coisas agora
para a Estancia Ana María – a indústria do turismo
provavelmente dominará a área. Os baguais sem dú-
vida serão exterminados. A coragem extraordinária
e a brutalidade dos caubóis da Patagônia será apenas
um assunto de histórias ao pé da fogueira. O mistério
e a ferocidade do lugar serão decifrados e domados.
Sebastián ergue uma cerveja e faz um brinde à terra,
a seus ancestrais, a nós. “A esta vida!”, ele diz. Todos
bebemos, e Sutherland some de vista. j

RETORNAR AO INÍCIO 12 13
O mais recente livro de Alexandra Fuller, Cocktail Hour Under
the Tree of Forgetfulness, entrou para a lista de mais vendidos do
New York Times. O fotógrafo Tomás Munita vive em Santiago,
no Chile. É seu primeiro trabalho para national geographic.

RETORNAR AO INÍCIO 13
CAUBO IS DA PATAGO NIA

Mapa
PATAGÔNIA
ARGENTINA

CHILE

P
A
PARQUE

T
NACIONAL

A
TORRES
DEL PAINE
G
Estancia Puerto Río Gallegos
Ana María Natales
O
Estreito
Estancia OCEANO
N
Última
Esperanza Mercedes ATLANTICO
I
A

Punta
Arenas
Estreito de
Magalh˜aes TERRA
DO FOGO

OCEANO Ushuaia
PACÍFICO

Cabo Horn
AMERICA
DO NORTE
0 km 100
AMERICA
DO SUL
OCEANO
PACÍFICO
ÁREA
AMPLIADA

ngm staff; international mapping


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Os cães acuaram este touro feral, que depois foi laçado pelos peões.
Subjugar esses animais pode levar horas. O touro não pôde ser
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controlado e acabou sendo morto para alimentar os homens e os cães.
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Sebastián García descansa com seu cão depois de laçar um touro.
A inequívoca brutalidade de capturar gado feral é compensada pelo
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carinho entre homens e cães. “Sem eles não somos nada”, Sebastián diz.
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O trabalhar árduo gera companheirismo entre os peões. “É fácil confiar
em alguém que tem absoluta confiança em si mesmo”, diz Abelino de
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Azócar (o último, à direita).
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Darío Muñoz pega água na Terra do Fogo, Chile. Dizer que os bagualeros
têm uma vida simples e ligada à terra não reflete o trabalho árduo de
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quem vive em trânsito.
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Fernando Uribe volta para casa depois de um dia arrebanhando gado
feral nas proximidades da Estancia Ana María, na Patagônia. “Como
sobrevivo nesta solidão? Cães, yerba-maté e assobio”, ele diz.
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“Produzo meu próprio entretenimento.”
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Um touro feral avalia antes de arremeter contra seus perseguidores.
“Não podemos supor que iremos ganhar”, explica Abelino Torres.
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“Às vezes o touro escapa.”
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Outro touro se estrangulou acidentalmente e morreu no laço. Sem se
aborrecer, Sebastián García graceja com Jorge Vidal. O touro foi depois
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cortado e alimentou nove homens e 30 cães por três semanas.
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Darío Muñoz se apressa para impedir seus cães de matar um touro
acuado. Uma tarefa dificílima. Os animais ferais precisam ser tirados
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de lugares remotos para que possam ser vendidos com lucro.
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Bagualeros descansam enquanto seus companheiros procuram por
cavalos perdidos. A experiência de capturar animais ferais na Patagônia
combina brutalidade concentrada com intervalos bem-vindos. Entre
uma busca e outra, as conversas geralmente são esparsas e restritas
a caçoadas amigáveis ou preocupação com o bem-estar dos cães
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e dos cavalos.
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Cavalos e touros ferais são amarrados a árvores por dois ou três dias
até que a exaustão os torna dóceis e eles podem ser postos em balsas
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ou caminhões rumo ao mercado.
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Passados dois dias, uma potranca selvagem ainda resiste à captura.
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Pressões financeiras impeliram a família Iglesias a vender uma de suas
duas estâncias. “O turismo é nosso futuro”, diz um parente, Hernán
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García (no centro), cerrando os olhos por causa da fumaça da fogueira.
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A caminho de Sutherland, Jorge Vidal persuade os cavalos a percorrer
penhascos alcantilados. Uma queda é morte certa. “Se eu pudesse
14 DE 14
ficar em casa com minha família, obviamente preferiria”, ele diz.
CAUBO IS DA PATAGO NIA

VÍdeo

Resgatando a tradição (5:30)


Para Sebastián García Iglesias, seguir o caminho de seu tio-avô
é uma missão pessoal – e crucial para preservar o modo de vida
dos bagualeros.
Instinto Selvagem Uma investigação do amor
e do desejo no reino animal

Sapo-
corroboree-
meridional
HÁbitat
Regiões subalpinas
do Parque Nacional
Kosciuszko, na Austrália.

situação
Criticamente ameaçado.

Outros fatos
A pele do sapo secreta
alcaloides venenosos
para os predadores.
Atraídas pelas O sapo que
serenatas do
macho, fêmeas vira príncipe
se instalam no
Primeiro ele constrói um ninho de amor.
ninho que ele
Bem aconchegante. Depois a seduz com
construiu.
serenatas sem fim. E, uma vez que formam
uma família, ele é quem cuida dos filhotes.
O cara é tão bom que uma dama após a
outra se aproxima para brincarem juntos
de casinha.
Essa é uma ótima notícia – pois, quanto
mais o sapo-corroboree-meridional
(Pseudophryne corroboree) procria, maior
a chance de evitar a extinção de um dos
mais conhecidos anfíbios da Austrália.
No início da temporada de
acasalamento, o macho usa os membros
posteriores para esculpir no musgo uma
câmara junto à água. Daí passa a emitir
o chamado de corte até que uma fêmea
entra no ninho. Ali ela põe de 15 a 38 ovos,
sobre os quais ele deposita o esperma.
Ela vai embora, mas ele fica e continua
com os chamados, recebendo até uma
dezena de fêmeas e fertilizando ninhadas.
O macho cuida do ninho por seis a oito
semanas, até que ele é inundado pelas
chuvas de outono e inverno, quando
eclodem os ovos, liberando os girinos.
A falta de chuva pode ressecar os
ninhos, e incêndios reduzem o hábitat do
sapo, também ameaçado por fungos
causadores de uma infecção fatal, a
quitridiomicose. Restam apenas 50
espécimes na natureza, mas programas
em zoológicos de Melbourne e Sydney
O sapo tem colocaram centenas de ovos em áreas de
o tamanho de
ninhos ao longo de 2014, tentando manter
uma moeda de
25 centavos os machos cantando no futuro.
de real. – Por Patricia Edmonds

Joel Sartore
Visões No Foco

Bar aberto
Os jogadores de bilhar atraíram o interesse de
um inesperado espectador equino nesta foto
feita na década de 1920 em um camping perto da
cidade de Denver, o Overland Park. O camping
de 65 hectares visava a atender ao crescente
número de pessoas que usavam carros para con-
hecer o Oeste dos Estados Unidos. Além da sala
de bilhar e de um salão de baile com capacidade
para 500 dançarinos, o Overland Park dispunha
ainda de um “centro recreativo com 26 aposen-
tos, contendo banheiros, salas de descanso e de
leitura, barbearia e espaçosas varandas, de onde
se pode contemplar o crepúsculo em cadeiras de
balanço”, comentou a revista American Motorist
em sua edição de outubro de 1922. O texto
prosseguia: “E a Lua brilha no céu, ajudando os
arcos incandescentes a iluminar romanticamente
o caminho na hora de nos recolhermos
ao leito”. – Por Margaret G. Zackowitz

CONHEÇA Bill Bonner, arquivista


de national geographic

Denver Tourist Bureau/National Geographic Creative


Próxima Edição Janeiro 2015

O primeiro ano de vida


O cérebro de um bebê é uma máquina – e seu
desenvolvimento depende de cuidados amorosos.

Pioneiros americanos
Novos achados dão novas pistas para o enigma
da origem dos primeiros habitantes da América.

O berço da Amazônia
Na foz do Rio Tapajós, Santarém oculta sinais
da mais antiga ocupação da Floresta Amazônica.

O Universo oculto
O mapeamento de zonas misteriosas do Universo
incia uma nova era da astronomia.

A metrópole da África
Em Lagos, na Nigéria, um surto de prosperidade
econômica amplia o abismo entre ricos e pobres.

lynn johnson

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