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Linguagem É Pensamento
Linguagem É Pensamento
Pensamento
Linguagem e Pensamento
Claudia Rosa Riolfi
Linguagem e
Pensamento
Claudia Rosa Riolfi
Linguagem e
Pensamento
2.ª edição
2009
Claudia Rosa Riolfi
Significado da palavra:
lugar de junção do pensamento e da linguagem......... 79
No início, era o corpo................................................................................................................ 79
O conceito de pensamento verbal em Vygotsky.............................................................. 81
A dupla função organizadora da palavra.......................................................................... 83
Gabarito......................................................................................153
Referências.................................................................................161
Apresentação
Prezado aluno
O material que agora lhe chega em mãos é um desdobramento de quase
20 anos de meu trabalho de pesquisa sobre a escrita. Por meio dele, tenho ten-
tado circunscrever uma questão que me intriga desde que sou muito pequena:
por que em nossos dias não surge um pensador revolucionário que formule uma
ideia que altere tudo o que hoje sabemos sobre o mundo?
Você deve estar entendendo que meu interesse sobre o tema pensamento
e linguagem não consiste em uma questão abstrata, muito pelo contrário. Se um
dia desejei estudar esse assunto foi porque conclui que conhecê-lo me ajudaria
a refletir sobre o advento de uma passagem que vem se tornando cada vez mais
rara: o momento em que um sujeito abandona sua dificuldade para escrever e se
autoriza a pensar com a sua própria cabeça e, posteriormente, a tornar públicos
os resultados de sua reflexão.
Ao pensar sobre essa dificuldade, muito se fala que o jovem de hoje não
tem muita coisa para dizer, mas pouco se diz que seu silenciamento foi causado
por ruídos que ele não produziu... Diante dessa ironia, convoco você, meu colega
professor, a assumir comigo a responsabilidade de se indagar a respeito de que
respostas a nossa geração de adultos poderá deixar para as crianças que – muitas
vezes tendo perdido a esperança de construir para si um futuro melhor – se inter-
rogam sobre o sentido de ler e escrever na escola.
Tentei tornar o seu caminho o menos árduo possível e, para isso, tive que
trabalhar muito. Espero que, honrando o meu esforço, você se engaje no percurso
que ora se inicia e que goste do trabalho.
É claro para todos que um ser humano não so- Você já imaginou
brevive muito tempo se for privado de água e de como seria sua vida
alimento. Recentemente, tem se tornado evidente se fosse impedido
que, para além dessas necessidades classicamente de verbalizar seus
reconhecidas como sendo as básicas, dificilmente gostos e opiniões?
qualquer um de nós teria sobrevivido aos primei-
ros anos da infância sem receber ao menos um pouquinho de amor da-
queles que cuidaram de nós. Mesmo agora, quando somos adultos, você
pode imaginar quanto tempo aguentaria, por exemplo, sem ouvir a voz de
seus familiares, sem poder contar como você está se sentindo para alguém
em quem confia – em suma, sem falar e sem ouvir palavras?
Por que isso acontece? Porque não poder falar é uma das maiores agres-
sões que podem ser imputadas ao ser humano, uma vez que o leva a agir
contra a sua natureza, a de ser um “ser de linguagem”. Compreender esse
traço de nossa essência, ou seja, a extensão do poder que a linguagem
tem sobre nós, é de suma importância para refletir sobre a construção e
a manutenção de nossa cultura em geral e, muito particularmente, tem
toda relevância para refletir sobre os sucessos e os impasses da educação
dos alunos que nos foram confiados.
Linguagem e Pensamento
Ou seja, aquele que pensa desse modo acredita que nós temos um cérebro
apenas para servir como uma espécie de quadro-negro onde escrevemos, como
se fossem nossas, as ideias que recebemos dos outros, sem qualquer mediação
de uma reflexão mais elaborada. Você acredita mesmo que somos assim tão
idiotas? Com certeza não!
Esse modo de ver as coisas, além de depreciativo com relação às nossas quali-
dades e potencialidades, tem consequências nefastas para a nossa vida em socie-
dade. Se for legítimo crer que para todo efeito manifesto no mundo será possível
encontrar uma causa lógica, acabaremos por funcionar na crença que foi aquela
dos nossos antepassados macacos, segundo a qual uma reação “natural” de um
sujeito que tivesse acabado de levar um empurrão seria, nada mais nada menos,
do que uma bofetada... Não seria muito difícil imaginar até que ponto de destrui-
ção a sociedade humana teria ido se todos nós tivéssemos mantido o modo de
ver as coisas de nossos primitivos antepassados. Com certeza, sequer estaríamos
aqui para estudar e contar a história de nossa vida de homens e de mulheres.
Por esse motivo, antes de avançarmos nesta reflexão sobre as relações entre
pensamento e linguagem, é importante fazer a crítica de todos os resquícios
desse modo de pensar que, para além do senso comum, ainda permanece em
nossa cultura, disfarçado de ciência.
1
Dentre inúmeros sites que contêm dados sobre a bibliografia de Skinner, pela concisão e objetividade, destaca-se o seguinte endereço, do qual
retiramos alguns dados a respeito da vida do autor: <www.cobra.pages.nom.br/ecp-skinner.html>.
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Linguagem e Pensamento
IESDE Brasil S. A.
A principal descoberta do russo ficou conhecida como condicionamento pa-
vloviano, modalidade de manifestação comportamental que ele percebeu por
meio de estudos que realizava sobre a atividade digestiva de cães. Com experi-
mentação sistemática, ele acabou percebendo que apenas o som de seus passos
no laboratório, após sucessivos pareamentos com um bolo de carne que sempre
era apresentado aos seus animais, dava origem à resposta de salivação dos cães,
que associavam o som com o gosto da carne.
Dentro dessa tradição de pesquisa empirista e coerente com sua postura pes-
soal de materialista e ateu, Skinner acreditava que, a exemplo do que Pavlov havia
demonstrado acontecer com os animais, todos os comportamentos humanos são
moldados pela nossa experiência de punição e recompensa e não por instâncias
mais “subjetivas”, tais como a moral, a força da vontade e assim por diante. Conse-
quentemente, Skinner costumava afirmar que o homem bom só faz o bem porque
o bem é recompensado, e não porque, dados alguns traços de seu caráter, ele teria,
ao menos, um relativo livre-arbítrio para agir deste ou daquele modo.
Ressalte-se que essa maneira de conceber o ser humano como se fosse total-
mente passível de ser controlado pelos estímulos recebidos do meio impeliu o
autor a chegar ao absurdo de conceber uma comunidade utópica – criada e de-
senvolvida de acordo com os princípios behavioristas – em que, se assim pode-
mos dizer, o homem estaria livre do desconforto de ser possuidor da faculdade
do pensamento, uma vez que todos os seus atos seriam geridos por terceiros.
Um exemplo do que vem sendo chamado de “sociedade de controle” está descri-
to na obra de ficção Walden II (SKINNER, 1977).
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Linguagem e Pensamento
são “maus”? Como ele faria para ter certeza de uma certa neutralidade e isenção
para formar os parâmetros adotados para diferenciar o bem do mal?
Uma olhada mais objetiva na história da humanidade logo nos mostra para
onde caminhamos todas as vezes que um poder totalitário foi implementado: para
uma pasteurização da linguagem em uso e para um embotamento do pensamen-
to. E antes que você, prezado leitor, pense que estamos nos desviando aqui de
nosso assunto principal para discutir política, é importante ressaltar que o assunto
que se segue só nos interessa à medida que nos oferece uma interessante abertu-
ra para refletir sobre a linguagem humana e suas relações com o pensamento.
Sabe-se que essa novela foi inspirada na opressão dos regimes totalitários das
décadas de 1930 e 1940, mas não se resume a uma crítica contra o stalinismo e o
nazismo. Ao contrário, trata-se de uma metáfora atualíssima que nos alerta contra os
perigos da pasteurização da sociedade pela redução do indivíduo em peça para
servir ao Estado ou ao mercado por meio do controle total, incluindo o pensamento.
Neste ponto, uma interessante questão se coloca para nós. Se, em certa
medida, é verdade que “cada cabeça é uma sentença”, dito popular que aponta
para uma relativa impossibilidade de mandar nos modos de pensar de alguém,
como seria possível controlar o pensamento humano?
Para nos mostrar isso, o autor cria uma imagem de cientista de aluguel, uma
espécie de linguista contratado pelo onipotente Partido Ingsok para, juntamen-
te com outros colegas, inventar uma língua artificial para substituir a natural: a
novilíngua. No contexto da novela, trata-se de um idioma fictício desenvolvido
não pela criação de novas palavras, como aparenta ser o caso dos tempos con-
temporâneos nos quais, todos os dias, surgem palavras novas na mídia, mas pela
condensação e a remoção delas. A ideia que guiava os “intelectuais” do partido
era a de que, uma vez que as pessoas não pudessem concretamente se referir
a algo, já que é bastante difícil remeter-se a um objeto cujo nome ignoramos,
aquele algo passaria a não existir.
Para nós, são especialmente preciosas as três últimas linhas do extrato que
você acabou de ler, pois elas contêm uma ideia que nos é bastante cara: a de
que, em sua dimensão crítica e criativa, o pensamento humano é fruto dos efei-
tos da linguagem sobre um sujeito, efeitos esses que o criam. Por esse motivo,
se, nos dias de hoje, desejamos viver em um mundo diferente do horror retrata-
do por Orwell, compreendê-los adquire uma urgência ímpar.
Por acaso, esse modo de agir faz você lembrar do Partido do livro de Orwell?
Se estivermos nos entendendo, provavelmente você notou que, reduzindo o
ser humano ao estatuto de um cérebro reprogramável, os idealizadores das TCC
acabam por incidir em uma tentativa de controle do pensamento, do que quere-
mos nos afastar completamente.
2
Não deixa de ser curioso notar que, em sua origem, o cognitivo e o comportamental se inscreviam, quanto a sua fundamentação, em concepções
teóricas opostas, tendo origens, tradições, precursores e problemáticas totalmente diferentes. Se para um comportamentalista “histórico” o que
interessa são os inputs (entradas) e os outputs (saídas), interesse esse que o leva a abstrair a “mente”, para um cognitivista “histórico” o que interessa
são os processamentos, o modo de funcionar da “mente” em si. Ou seja: a aliança entre as duas correntes implicou, pelo menos quanto à psicologia
cognitiva, um empobrecimento teórico brutal.
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A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento
Por esse motivo, é importante frisar que, atualmente, a conduta profissional ins-
pirada nas TCC consiste em um fenômeno mundial que se expressa, de maneira
maciça e extravagante, na formação médica e psicológica, nas revistas científicas,
nos hospitais, na terapia oferecida na rede pública e nos consultórios privados e, o
que mais nos interessa, nas universidades e, paulatinamente, na educação básica.3
Antes que o leitor se deixe contaminar por um certo tom cinzento presente
nessa denúncia do que vem ocorrendo na sociedade contemporânea no que
se refere ao controle do pensamento, é importante salientar que não estamos
assistindo passivamente aos acontecimentos.
Com o advir do século XXI, no momento mesmo em que essa conduta ganha-
va hegemonia, iniciou-se na França um grande movimento de denúncia contra
as TCC (tendo adesão, inclusive, do ministro francês Blazy e, posteriormente,
disseminando-se entre os clínicos franceses) que, recentemente, recebeu adesão
de muitos intelectuais brasileiros.
3
Seguindo o padrão mundial, no Brasil, a presença das TCC é uma realidade incontestável. Uma pesquisa utilizando uma ferramenta de busca na
internet – no caso, o Google, cujo acesso se faz no endereço <www.google.com.br> – mostra que havia, no fim de abril de 2005, 650 páginas que
as veiculam no país. Uma breve leitura de seus conteúdos mostra que é vasto o menu de distúrbios que, segundo seus responsáveis, podem ser
eficazes e comprovadamente superados por meio das TCC.
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Linguagem e Pensamento
Texto complementar
A novilíngua
(GUERRANTE, 1999)
Não faz muito tempo, recebi um recado grosseiro para ligar para um ci-
dadão que desconheço. Liguei. A moça atendeu e tascou: “Quem gostaria?”
Tive um momento de indecisão, mas estava certo de que não me movia qual-
quer prazer na chamada. “Ele, naturalmente”, respondi. Ela ficou muda. Não
entendeu nada. Ora, se o cidadão pediu que eu ligasse, e eu não o conheço,
o possível prazer só pode ser dele. Desliguei. Ele, que pensei inicialmente
andasse à procura desse prazer em falar comigo, não voltou a ligar.
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A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento
Eu já estava até suportando essa palavra quando li num texto que me envia-
ram para revisão: “as ações serão suportadas”. Não dá! De algum tempo para cá
venho notando uma substituição eufemística de algumas palavras por outras
supostamente mais sofisticadas. Morrer tornou-se falecer, ter virou possuir, pa-
rentes foi substituída por familiares, aliás foi trocada por inclusive, vender foi
vencida por comercializar, definir ocupou o lugar de decidir, pôr virou colocar
(exceto para o sol que se põe e para as galinhas poedeiras, felizmente). Todas
foram mudanças impróprias. Mas estão aí, impulsionadas pela mídia.
Atividades
1. Quais as vantagens de compreender a extensão do poder que a linguagem
tem sobre os seres humanos?
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Linguagem e Pensamento
Dicas de estudo
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Porto Alegre: Editora Globo, 1981.
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A linguagem humana e seus efeitos sobre o pensamento
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O imprevisível animal humano
Quem tem contato com filhos ou sobrinhos sabe que, com as crianças, a
coisa é muito diferente. Quando uma delas decide nos pedir um presente, não
se trata de um presente qualquer, mas, pelo contrário, de uma demanda que
vem repleta de especificações. Não nos dizem simplesmente “Eu quero um brin-
quedo!”, mas “Eu quero uma boneca Polly, com o cabelo loiro, que venha com
cinco roupas para trocar e não pode ser igual àquela que você me deu no ano
passado!”. E ai de você se não achar o modelo exato!
Em suma, por meio desses exemplos iniciais, estamos tentando mostrar que,
enquanto um animal é bastante previsível, uma vez que se acha mergulhado no
“mundo real” e premido por suas necessidades instintuais, nós, humanos, somos
imprevisíveis. Como somos seres de linguagem, aquilo que compreendemos
serem as nossas necessidades básicas não é plenamente dominado pelo bom
senso da sobrevivência da espécie, mas grandemente determinado pela discur-
sividade de nosso tempo.
Têm uma organização grupal bastante rígida Podem encontrar seu “lugar social” dentro da
e limitada, não conseguindo inovar em sua organização grupal na qual estão inseridos e,
“vida social”. se assim o desejarem, alterá-lo.
Não podem “comunicar-se” para além do re- Podem utilizar a linguagem não apenas para
gistro limitado de suas necessidades básicas. comunicar suas necessidades imediatas mas
também para criar, emocionar, alterar a pró-
pria realidade etc.
São muitíssimo previsíveis no que se refere Têm seus modos de evolução grandemente
aos seus padrões de evolução. variáveis.
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O imprevisível animal humano
Nós que nos preocupamos com a educação e com a formação das novas ge-
rações precisamos ir um pouco além disso. Precisamos, para poder nos apro-
ximar do padrão de pensamento de nossos alunos, compreender que, como
consequência do fato de falarmos, as relações entre nós não são nem tão homo-
gêneas nem tão estáveis como parecem. Onde quer que olhemos mais de perto,
há equívoco, e ele tem consequências. Passemos então a esse tópico.
IESDE Brasil S. A.
Felizmente para os bebês, suas mães ignoram esse fato e tratam suas produções
rudimentares, frágeis e imperfeitas como se fossem análogas àquelas que saem de
nossas bocas. Isso significa que, na sua imensa sabedoria, essas mamães podem en-
trever no jovem humano uma inteligência igual à sua, embora ele ainda não tenha
tido tempo de vida para se traduzir por meio de palavras articuladas.
Supomos quais sejam essas palavras e nos dirigimos aos nossos filhos muito
jovens como se eles pudessem entender o que estamos falando. A informação
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Linguagem e Pensamento
que se segue fica entre nós para que não corramos o risco de levar uma mamãe
a parar de fazer o que é tão importante que elas façam: eles não entendem nada!
Somos nós, os adultos, que, por meio de alguns indícios (pequenos ruídos, gestos e
olhares), interpretamos o que os nossos filhos “dizem” como se fosse linguagem.
Como nossas palavras são escorregadias, nosso jovem amigo, ao ouvir uma ex-
pressão idiomática que ignorava – no caso, “trazer a mala e cuia” – interpretou-a
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O imprevisível animal humano
como pôde, entendendo que sua mãe havia pedido a sua avó que, ao vir para a
sua festa, trouxesse também a Má Licuia! Prosseguindo com nossa reflexão, en-
tretanto, você talvez não ache tão engraçado passar a imaginar que, dado que
a homofonia é um fato concreto, todos os dias centenas de Licuias nasçam em
nossas salas de aula sem que sequer sejamos comunicadas ou comunicados de
seu aparecimento no mundo. Nós as desconhecemos, mas elas estão por aí, im-
pondo sua presença no curso dos pensamentos de nossos alunos e fazendo com
que, ao contrário do que costumeiramente esperamos, eles pensem de modos
que sequer podemos imaginar.
Para concluir esta parte de nosso estudo, convido o leitor para refletir sobre
um fragmento do importantíssimo trabalho em que Milton Santos versa sobre a
precariedade da percepção que podemos ter sobre as coisas.
As abordagens fundamentadas na percepção individual têm seu ponto de partida no processo
do conhecimento. Este é o resultado da apreensão da realidade contida em um objeto. Devido
ao fato de que o principal interessado neste mecanismo, ou seja, o sujeito, é ao mesmo
tempo um ser objetivo e um microcosmo, o encontro entre objetividade da coisa (ou a coisa
objetificada) e a subjetividade de seu decifrador permite uma variedade de percepções. A coisa
permanece una, total, intacta, mas as modalidades de sua percepção são diversas, parcelares,
frequentemente deformantes. (SANTOS, 2002, p. 92-93)
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O imprevisível animal humano
O professor-detetive ou,
simplesmente, o bom professor
Se entendermos que o pensamento humano está longe de se desenvolver
de forma linear, compreendemos que, para sermos eficazes em nosso ato peda-
gógico, não devemos pensar que nossos alunos são completamente previsíveis.
Pelo contrário, será bastante saudável ter em mente a necessidade de “realizar
um trabalho de detetive” para elucidar o modo pelo qual cada um aprende.
Para ilustrar que tipo de trabalho estamos nomeando por meio da metáfora
do detetive, vamos, desta vez, trazer como exemplo a literatura de mistério, cujo
precursor básico é Edgar Allan Poe.
Poe escreveu uma obra tão extensa quanto famosa, sem dúvida, digna de
comentários. Nesse momento, interessa-nos, em especial, relembrar um de seus
personagens mais célebres: Auguste Dupin.
Dupin não ficava trancado em sua mansão fantasiando como os crimes teriam
ocorrido: ele trabalhava em uma dupla vertente: levava em conta o caráter particu-
lar de cada um dos suspeitos, buscando sistematizar qual modo de agir era ou não
condizente com a linha de conduta em geral; e examinava atentamente os indícios
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Linguagem e Pensamento
Texto complementar
Passeávamos, certa noite, por uma comprida e suja rua, nas vizinhanças
do Palais Royal. Estando, aparentemente ambos nós ocupados com os pró-
prios pensamentos, havia já uns 15 minutos que nenhum de nós dizia uma
só sílaba. Subitamente, Dupin pronunciou as seguintes palavras:
— ...em Chantilly? – disse ele. – Por que parou? Não estava você, justa-
mente, a pensar que o tamanho diminuto dele não se adequava à represen-
tação de tragédias?
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O imprevisível animal humano
— Vou explicar – disse ele – e, para que você possa primeiro compreen-
der tudo claramente, vamos primeiro retroceder, seguindo o curso de suas
meditações, desde o momento em que lhe falei, até o do encontrão com o
tal fruteiro. Os elos mais importantes de cadeia são estes: Chantilly, Órion, Dr.
Nichols, Epicuro, a estereotomia, as pedras da rua, o fruteiro.
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Linguagem e Pensamento
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O imprevisível animal humano
Atividades
1. Qual o principal motivo para que o professor precise estar constantemente
atento para o quanto os seus alunos estão compreendendo de suas palavras?
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Linguagem e Pensamento
Dicas de estudo
RIOLFI, Claudia Rosa. Equívoco e singularidade: subjetividade na fala de uma
criança. In: LIMA, Regina Célia de Carvalho Paschoal (Org.). Leitura: múltiplos
olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2005, p. 219-233.
— Não.
— Qué danoninho?
Gostou? Então leia o livro para entender por que a fonologia é um importan-
te recurso na concepção dessa piada, bem como no desvelamento dos modos
pelos quais ela nos faz rir.
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O imprevisível animal humano
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Concepção do homem
como ser de linguagem
Você já parou para pensar em quantas pequenas mentiras inocentes
estamos prontos a contar ao longo do dia em nome da manutenção de
nossa boa convivência social? Estamos tão acostumados com esse tipo de
procedimento que sequer chamamos essas pequenas omissões de menti-
ra. Por exemplo, se o seu superior hierárquico chega bravo, perguntando
“Por que você não começou a tarefa que eu lhe pedi ainda?”, parece-nos
perfeitamente normal responder algo como “Hoje o dia foi muito corrido!”
quando a resposta verdadeira seria: “Estou morta de preguiça!”.
Não pense você que nascemos sabendo nos Que efeito tem
utilizar desses dispositivos retóricos em nome da sobre você um
diplomacia. Quando somos muito pequenos, ainda adulto que fala
inocentes, costumamos responder tudo o que nos tudo o que pensa,
vem à cabeça, mesmo quando uma pergunta em- doa a quem doer?
baraçosa é feita. Todo mundo já deve ter presencia-
do uma resposta do tipo “Porque não fui com sua cara!” quando um adulto
imprudente perguntou a um molequinho “Por que você não me deu um
beijo?”.
uma forma polida de não contrariar a dama, se formos escrupulosos, sem exata-
mente mentir, dizendo algo como “De fato, você mudou bastante!”.
Ou seja, mais tarde, aprendemos que a vida social tem muito mais detalhes
do que podíamos alcançar em nossa inexperiência. Quando adultos, usamos as
palavras para lisonjear, convencer, seduzir, virar determinada situação a nosso
favor, acalmar-nos e muitas outras funções que, legitimamente, não podem ser
chamadas de comunicação. Às vezes, precisamos, inclusive, saber utilizar as pa-
lavras sem comunicar absolutamente nada, pois é de nosso interesse manter as
informações que possuímos no mais absoluto sigilo.
Por um motivo ou por outro, que uma coisa fique clara: é o exercício da lin-
guagem, ou na argumentação ou na tentativa de manter nossa privacidade in-
tocada, que nos ajuda a perceber nossa identidade, nosso direito a um espaço
próprio, cuja conquista deve se renovar todos os dias, na luta intransigente
contra os fofoqueiros, os intrometidos, as pessoas que gostam de se aproveitar
dos outros e assim por diante.
Por esse motivo, o objetivo deste capítulo é convidá-lo para se aproximar do con-
ceito de linguagem tal como é visto no interior dos estudos linguísticos. Trata-se da
ideia de que a linguagem é um sistema articulado que, consistindo em uma faculda-
de específica do ser humano, fornece-lhe sua essência de ser de linguagem.
41
Linguagem e Pensamento
Por um momento, teve sua certeza abalada ao considerar que, como tudo
parecia indicar, as abelhas tinham um modo muito eficaz de se comunicarem
entre si, a saber:
Uma abelha operária colhedora, encontrando, por exemplo, durante o voo uma solução
açucarada por meio da qual cai numa armadilha, imediatamente se alimenta. Enquanto se
alimenta, o experimentador cuida em marcá-la. A abelha volta depois à sua colmeia. Alguns
instantes mais tarde, vê-se chegar ao mesmo lugar um grupo de abelhas entre as quais não
se encontra a abelha marcada e que vêm todas da mesma colmeia. Esta deve haver prevenido
as companheiras. É realmente necessário que estas hajam sido informadas com precisão, pois
chegam sem guia ao local que se encontra, frequentemente, a grande distância da colmeia
e sempre fora de sua vista. Não há erro nem excitação na localização: se a primeira escolheu
uma flor entre outras que poderiam igualmente atraí-la, as abelhas que vêm após a sua volta
se atirarão a essa e abandonarão as outras. Aparentemente, a abelha exploradora indicou às
companheiras o lugar de onde veio. (BENVENISTE, 1988, p. 61)
Só ocorre em condições que permitem a per- Não sofre os limites da percepção visual.
cepção visual.
Sua mensagem não provoca qualquer tipo de Falamos com aqueles que nos falam, ou seja,
resposta no ambiente, não há diálogo. sempre provocamos algum tipo de resposta
no ambiente.
Não é possível analisar a mensagem das abe- Caracteriza-se pela capacidade de ser poten-
lhas: podemos ver apenas seu conteúdo global. cialmente infinita, uma vez que, cada enun-
ciado permite análise e rearranjo de suas par-
tes com as de outros enunciados.
Essa visão da linguagem, como uma espécie de coleção de palavras, foi su-
perada quando, de 1907 a 1911, Ferdinand de Saussure ofereceu na Universida-
de de Genebra três cursos nos quais transmitiu oralmente os fundamentos da
linguística moderna. Combatendo a visão do leigo, ele substituiu o conceito de
palavra pelo de signo linguístico, ou seja, a menor unidade completa que tem um
significado.
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Linguagem e Pensamento
Significante
Signo Linguístico:
Significado
uma ordem maior que organiza as palavras e faz com que, mesmo não falando a
mesma língua, possamos fazer algum tipo de troca de ideias: a linguagem como
um sistema.
Saussure explica essa noção por meio de uma bela metáfora: a do jogo de
xadrez. Comparando uma palavra a uma peça do jogo (no caso, o cavalo), o
autor nos explica que, para que o jogo funcione, pouco importa a peça em si,
mas o fato de que os dois jogadores tenham pactuado de que se trata de uma
peça legítima. Em benefício da clareza, transcrevemos um trecho do autor:
Tomemos um cavalo; será por si só um elemento do jogo? Certamente que não, pois, na sua
materialidade pura, fora de sua casa e das outras condições do jogo, não representa nada para
o jogador e não se toma elemento real e concreto senão quando revestido de seu valor e
fazendo corpo com ele. Suponhamos que, no decorrer de uma partida, essa peça venha a ser
destruída ou extraviada: pode-se substituí-la por outra equivalente? Decerto: não somente um
cavalo, mas uma figura desprovida de qualquer parecença com ele será declarada idêntica,
contanto que se lhe atribua o mesmo valor. Vê-se, pois, que nos sistemas semiológicos, como
a língua, nos quais os elementos se mantêm reciprocamente em equilíbrio de acordo com
regras determinadas, a noção de identidade se confunde com a de valor, e reciprocamente.
Eis porque, em definitivo, a noção de valor recobre as de unidade, de entidade concreta e de
realidade. (SAUSSURE, 1962, p. 128)
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Linguagem e Pensamento
IESDE Brasil S. A.
Texto complementar
Teoria do medalhão
(ASSIS, 1994)
— Não, senhor.
— Onze.
— Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peral-
ta, chegaste aos teus 21 anos. [...] Não te ponhas com denguices, e falemos
como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importan-
tes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma,
podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na
indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de
ti. [...]. Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que
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Concepção do homem como ser de linguagem
— Sim, senhor.
— Entendo.
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Linguagem e Pensamento
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Concepção do homem como ser de linguagem
— Vamos a ele.
— Percebi. [...] Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.
— Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos,
paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! [...]
— Nenhuma filosofia?
49
Linguagem e Pensamento
as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originali-
dade etc. etc.
— Também ao riso?
— Como ao riso?
— Diga...
— Meia-noite.
Atividades
1. Por que, quando se trata do humano, a linguagem não pode ser reduzida ao
seu aspecto comunicativo?
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Concepção do homem como ser de linguagem
Dicas de estudo
DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário Enciclopédico das Ciências
da Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1988.
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Analisar os modos de falar e de pensar:
exclusividade do ser humano
Geralmente, se uma pessoa fala sem pensar, logo aparece algum conhe-
cido pronto para diagnosticá-la: “Fulano parece uma criança!”. Maldade à
parte, essa pessoa que fez a crítica tem certa razão naquilo que diz, uma vez
que demora muito para conquistarmos a capacidade de nos distanciar de
nossa própria fala e analisar nossos modos de expressão e de pensamento.
Quando muito pequeno, o ser humano pode falar, mas não pode escu-
tar de forma crítica e distanciada o que ele mesmo diz. É justamente por
essa razão que, em toda parte, circulam piadinhas sobre o caráter extrava-
gante do raciocínio das crianças. Essas piadas podem ser muito divertidas,
mas em si não nos ajudam muito a transcender a denúncia da ingenuida-
de dos pequenos em nossas conversas em diversos âmbitos.
Eles foram recortados da comunidade virtual Criança Diz cada Uma, que
consiste em um ponto de encontro virtual baseado “na coluna que o faleci-
do jornalista e dramaturgo Pedro Bloch escrevia na extinta revista Manche-
te, contando histórias engraçadas e inusitadas acontecidas com crianças”.
A página de abertura convida os seus participantes a darem depoimento
Linguagem e Pensamento
sobre o que merece ser registrado do que seus filhos andam falando. Está hospe-
dada no site de relacionamentos pessoais Orkut.1
Cara, quando eu era criança eu pensava que cheque sem fundo era algum
Andréa tipo de cheque sem nada no fundo, com um buraco...
Uma amiga da minha mãe disse braba, enquanto esperávamos para atra-
vessar a rua: “tem que morrer um para eles colocarem uma sinaleira”. Toda
Ana Selene vez que eu via um sinal de trânsito, eu ficava com pena da pessoa que tinha
morrido naquele lugar.
Eu achava que “Grande Elenco” era um ator muito famoso, como o Grande
Otelo. Só que eu nunca o tinha visto ainda porque ele era um ator de teatro,
Camila sempre citado junto com os melhores atores: Fernanda Montenegro, Paulo
Autran, e Grande Elenco!
Esperamos que os exemplos acima, muito saborosos, tenham lhe causado riso!
Agora, perceba que, em todos eles, nosso riso foi causado por um mesmo motivo:
trata-se de um equívoco por parte da criança, que toma algumas expressões, se assim
podemos dizer, ao pé da letra, ou seja, do modo como chegam aos seus ouvidos.
54
Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano
O que esses exemplos nos mostram? Esses exemplos nos mostram que, como
a linguagem humana é, por assim dizer, escorregadia quando ainda não temos a
vivência cultural de um adulto, não conseguimos analisar convenientemente os
segmentos que compõem os enunciados e, por esse motivo, não nos é possível
nem delimitar convenientemente seus segmentos nem articulá-los de modo
adequado com os demais segmentos que compõem o enunciado.
É importante ressaltar que, por esse motivo, enquanto não nos é possível
manter um certo distanciamento das palavras que falamos, nosso pensamento
tende a ser, ao mesmo tempo, limitado e limitante, uma vez que, para poder
criar, é necessário, antes de tudo, interrogar a realidade que nos circunda.
Para aprofundar um pouco mais essa ideia, vamos agora explorar o trabalho de
Blikstein (1990, p. 86), que escreveu um livro visando cutucar um pouco a nossa
inércia e levar-nos a uma interrogação sobre nossa “confortável ilusão referencial”.
Para fazê-lo, o autor partiu das seguintes perguntas que vêm sendo repetidas
há muitos séculos: “Até que ponto o universo dos signos linguísticos coincide com
a realidade extralinguística: como é possível conhecer a realidade por meio de
signos linguísticos? Qual o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?”
55
Linguagem e Pensamento
(BLIKSTEIN, 1990, p. 71). Retomar aqui essas questões antigas se justifica porque
elas vêm nos mostrando que, no processo da cognição, há uma insuficiência da
relação entre signo e coisas.
Referência ou
pensamento
Quando surgiu, esse modelo despertou bastante interesse, uma vez que mos-
trava claramente a existência de uma separação entre três instâncias:
o mundo real;
56
Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano
Se, no primeiro dos casos, o locutor tem como tema específico de sua enun-
ciação o seu gosto particular no que tange à água, no segundo, ao contrário,
nada sabemos sobre suas preferências. No segundo caso, sabemos que, após ter
realizado exames apropriados em uma amostra de água qualquer, um investiga-
dor pôde referir-se à sua composição estrutural.
Trazer esse exemplo para o contexto específico de nossa discussão deve aju-
dar-nos a sermos mais claros. Comparem, agora, os próximos enunciados.
58
Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano
Terminamos, então, com uma pequena história verídica, vivenciada por uma
garota de quase oito anos e alguns de seus familiares. Ao lê-la, esperamos que
o leitor se sinta convocado a, em seu dia-a-dia, fazer o mesmo tipo de trabalho
linguístico que foi feito pela menina e, desse modo, criar novas realidades.
Aos sete anos e seis meses, já pronta para um passeio familiar, L. brinca en-
tusiasmadamente com seu irmão menor. Pouco antes de sair, sua maria-chiqui-
nha despenca declaradamente. Afeita a pentear o cabelo em inversa proporção
a que é à pilhéria espirituosa, L. não chama sua mãe para refazer o penteado.
Ao notar o desastre, impaciente e já com pressa, seu pai lhe dirige abrupta-
mente a palavra:
2
Confira trabalho anterior deste autor (Riolfi, 2005) para uma exploração mais aprofundada desta historieta.
59
Linguagem e Pensamento
— L., você vai sair com este cabelo mexido? Desmanchou tudo!
Texto complementar
Com o tempo aprende a falar. Mas mesmo a linguagem não lhe permite
capturar esse estranho mundo em que vivem as pessoas. [...] A paisagem em
que Kaspar Hauser foi colocado, apesar de explicada pela linguagem, pelas
palavras, por signos linguísticos, permanece, para ele, indecifrável. Muitas
vezes, pedia para contar histórias que imaginava, mas não conseguia ver-
balizar o conteúdo pensado. Conhecer o mundo pela linguagem, por signos
linguísticos, parece não ser suficiente para Kaspar Hauser [...]. Nesse senti-
do, também Vygotsky insiste que o pensamento e a linguagem se originam
independentemente, fundindo-se mais tarde no tipo de linguagem interna
que constitui a maior parte do pensamento maduro.
Kaspar Hauser parece não entender as explicações que lhe dão. As pessoas
impõem todos os tipos de signos a ele, na certeza de que compreenderá o
insólito ambiente que o cerca. Como Kaspar Hauser poderia compreender o
significado das palavras e que elas representam coisas se não passou por um
processo de aprendizado e socialização necessários para que compreendes-
se a representatividade dos signos? Blikstein diz que a educação não passa
de uma construção semiológica que nos dá a ilusão da realidade; ou seja, a
educação vai estimulando na criança um processo de abstração. É justamen-
te esse processo que Kaspar Hauser não vivenciou. [...]
Os objetos não eram percebidos por Kaspar Hauser da forma como a prá-
tica social definia previamente, ou seja, Kaspar Hauser estava despido dos “fil-
tros” e estereótipos culturais que condicionam a percepção e o conhecimento.
61
Linguagem e Pensamento
Tais “filtros” ou estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela
linguagem. Assim, o processo de conhecimento da realidade é regulado por
uma contínua interação de práticas culturais, percepção e linguagem.
Podemos concluir que, como Kaspar Hauser não passou por um proces-
so de socialização, onde exercitaria a compreensão através da prática social,
não consegue atribuir significado às coisas, mesmo tendo adquirido a lin-
guagem. Assim, analisando o caso de Kaspar Hauser, somos levados a pensar
que não apenas o sistema perceptual, mas as estruturas mentais e a própria
linguagem são resultantes da prática social, ou seja, as práticas culturais “mo-
delam” a percepção da realidade e o conhecimento por parte do sujeito.
Vygotsky, citado por Oliveira, diz que a relação do homem com o mundo
não é uma relação direta, mas uma relação mediada, sendo que os siste-
mas simbólicos são os elementos intermediários entre o sujeito e o mundo;
62
Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano
porém, tendo vivido no isolamento, Kaspar Hauser não aprendeu nem in-
ternalizou este sistema simbólico que, para ele, não fazia sentido. Somen-
te depois de muito tempo convivendo com a comunidade de Nuremberg
é que Kaspar Hauser começa a entender a relação simbólica e a relação de
representatividade entre os signos e as coisas concretas. [...]
O caso de Kaspar Hauser serve para ilustrar o erro básico de uma organi-
zação social fundada sobre os princípios do racionalismo positivista. Mostra-
-nos que a “humanização” do homem, entendida como socialização, não é
uma decorrência biológica da espécie, mas consequência de um longo pro-
cesso de aprendizado com o grupo social.
Atividades
1. Por que motivo é necessário levar o jovem humano a refletir a respeito da
linguagem para incidir sobre o seu desenvolvimento intelectual?
63
Linguagem e Pensamento
Dicas de estudo
Você gosta de cinema? Se você respondeu afirmativamente, está com sorte,
pois, dessa vez, sugerimos que você assista ao filme que está pressuposto ao
longo deste capítulo!
O ENIGMA de Kaspar Hauser (Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle). Direção de
Werner Herzog. Alemanha, 1974. 1 filme (109 min).
64
Analisar os modos de falar e de pensar: exclusividade do ser humano
Para animar você, já adiantamos que esse belíssimo filme se baseia na história
verídica e obscura de Kaspar Hauser, um homem doce, generoso e, ao mesmo
tempo, melancólico. Ele foi encontrado numa praça de Nuremberg, em 1829,
com, presumivelmente, 18 anos. Ao que tudo indica, cresceu num calabouço,
acorrentado até o dia em que foi levado por um guarda a uma praça e aí aban-
donado. Um cidadão o encontrou e o levou para a casa do capitão de cavalaria
que o entregou às autoridades. Kaspar passou, então, um tempo de pesadelo,
durante o qual foi exposto em uma feira de curiosidades.
Um dia, ele conseguiu fugir com alguns companheiros, tendo sido acolhido
por um protetor mais humano. Dois anos depois, Kaspar tinha aprendido a falar
e a escrever, mas, surpreendentemente, até o dia em que foi enigmaticamente
assassinado, o pobre rapaz ainda pensava de modo completamente diferente
do modo como faziam os outros seres humanos de sua época.
65
A perspectiva histórica do
desenvolvimento do pensamento humano
Neste capítulo, temos como objetivo primordial tematizar o surgimen-
to do pensamento na espécie humana. Convém ressaltar que, como nin-
guém entre nós tem máquina do tempo, trata-se de um empreendimento
bastante ousado e exploratório, demandando a utilização de nossa capa-
cidade de abstração.
Para nos mostrar esse “ancestral da linguagem”, que estava a meio caminho
entre a comunicação animal e a linguagem humana tal qual a conhecemos hoje,
o realizador da obra, em vez de fazer somente uma sonoplastia sem sentido sair
da boca dos personagens, contou com o trabalho especializado de Anthony Bur-
gess1, que assinou o roteiro e – a partir de um detalhadíssimo estudo das línguas
antigas – escreveu as “falas” dos personagens (na verdade, gritos, gemidos, gru-
nhidos, rudimentos de palavras articuladas).
1
Anthony Burgess (1916-1993), foneticista e escritor britânico, célebre por seu romance A Laranja Mecânica (1962), levado ao cinema por Stanley
Kubrick em 1971. Burgess também escreveu O Homem de Nazaré (1979) e Poderes Terrenos (1980).
68
A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano
desenvolver uma habilidade reflexiva que sequer podiam imaginar que tinham.
Na visão do filme, a cada novo esforço conjunto para superar um obstáculo, eles
acabam ganhando ao menos um rudimento de linguagem e de pensamento.
Assim, teve vontade de que sua grama fosse tão verde como a de seu vizinho,
para continuar nossa linha de metáforas... Hipótese curiosa esta: o pensamen-
to adveio da inveja saudável dos seus semelhantes! Curiosa, sem dúvida, mas
será tão inverossímil assim? Não sabemos. Mas sabemos que, ao descobrir usos
cada vez mais sofisticados para os instrumentos, os homens logo trataram de
compartilhá-los com seus semelhantes e preservá-los para seus descendentes.
Pronto: estava fundada a família e a vida em sociedade.
69
Linguagem e Pensamento
Por causa de sua pertinência e clareza, optaremos, aqui, por iniciar esta intro-
dução à obra de Vygotsky utilizando-nos de um parágrafo escrito pelo professor
James V. Wertsch para apresentar um de seus livros.
A perspectiva teórica delineada por Lev Semenovich Vygosky pode ser compreendida em
termos de três temas gerais que estão presentes em todas as suas obras: a) o uso de um
método genético, ou de desenvolvimento; b) a afirmação de que o funcionamento mental
superior no indivíduo provém de processos sociais; e c) a afirmação de que os processos sociais
e psicológicos humanos são moldados fundamentalmente por ferramentas sociais, ou formas
de mediação. (WERTSCH apud VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 9)
A perspectiva histórico-cultural
do desenvolvimento humano
Para entender as relações entre a história e a cultura no desenvolvimento
humano, vamos recorrer a um outro exemplo, o trabalho de um dos maiores his-
toriadores contemporâneos: Carlo Ginzburg. Em especial, interessa-nos seu tra-
balho que reconstituiu, a partir de um exame minucioso de documentos da Igreja
Católica, os modos de pensar dos praticantes de um culto da fertilidade que vive-
ram entre o final do século XVI e a primeira metade do século XVII, na Itália.
Sem compreender muita coisa das crenças bizarras dos camponeses (que sim-
plesmente buscavam, com meios “mágicos” – muito parecidos com as simpatias
71
Linguagem e Pensamento
Você já parou para pensar que ainda hoje persistem entre nós – fazer com
por que os padres da Idade que suas colheitas fossem bem sucedidas), a Igreja
Média localizavam tantas da época tomou-os como sendo participantes
bruxas no mundo? de um culto demoníaco, coisa que estavam bem
longe de ser. Por meio da tortura, essa mesma
Igreja buscou fazer com que confessassem seu “pacto com o diabo”, confissão essa
que os pobres coitados faziam sem sequer entender as consequências.
Todo mundo que conhece a história da Idade Média sabe que, na prática,
esse conflito terminou muito mal. Incapazes de compreender uma lógica outra,
que, por ser tão diferente, escapava-lhes completamente, os inquisidores não
duvidavam: fogueira para eles! Por sua vez, incapazes de entender a lógica dos
inquisidores, esses pobres camponeses (em especial as mulheres, mais frequen-
temente acusadas de serem bruxas) eram completamente incapazes de defesa
própria, pois não conheciam o que poderia ser utilizado como um argumento
plausível do raciocínio do outro grupo. Tudo o que diziam, para se defender, era
logo transformado em mais um argumento de acusação.
72
A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano
O que foi que eles aprenderam, então? Aprenderam que, para se manterem
vivos, havia um “discurso certo” a fazer, que poderia ser proferido aberta e publi-
camente, e algumas práticas nas quais acreditavam para esconder, para serem
feitas na calada da noite e negadas a todo e qualquer preço. O que começou a
ser praticado de forma “inocente” passou então a ser feito de forma “maliciosa” e
“pecaminosa”, pois, devido ao contato com os inquisidores, os camponeses agre-
garam às suas práticas uma carga “maléfica” que anteriormente não estava lá.
Texto complementar
1
Fragmento da tradução realizada por Claudia Rosa Riolfi para o texto “Erótica y hermenéutica, o el arte de amar el cuerpo de las palabras”.
2
Docente da Universidade de Barcelona, Espanha.
73
Linguagem e Pensamento
nem pelo uso, nem pela vontade de apropriação. Também, talvez essencial-
mente, Nietzsche nos convidava para sermos amante-amigo-apaixonado do
corpo das palavras. [...] O corpo das palavras opera como simples portador de
seu sentido, como representante ou vicário, ou lugar-tenente de seu sentido,
como o lugar que tem e contém o sentido. Desse ponto de vista, a compreen-
são consiste em obter esse sentido arrancando-o do corpo e abandonando
depois o cadáver como letra morta, inanimada. Uma palavra sem sentido é só
um corpo, uma palavra que não expressa nada, que não diz nada. [...]
[...]
74
A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano
oriundas do fato de que falamos de um corpo que não está presente em si mesmo – e é
o corpo de uma palavra o que me interessa no sentido de que não pertence ao discurso.
Assim que estou realmente apaixonado pelas palavras, as trato sempre como corpos que
contêm sua própria perversidade – sua própria desordem regulada. Enquanto isto ocorre,
a linguagem se abre às artes não-verbais... Quando as palavras começam a enlouquecer
desta maneira e deixam de comportar-se com respeito ao discurso é quando têm mais
relação com as demais artes.3
[...]
Amar o corpo das palavras não é, então, nem conhecê-las nem usá-las,
mas senti-las: senti-las no que têm de perverso, em seu poder para subver-
ter a normalidade própria do discursivo, e senti-las também no que têm de
inapreensíveis, de incompreensíveis, de ilegíveis, de ininteligíveis. Assim, o
corpo das palavras, como o corpo da amante, se nos oferece plenamente e
sem reservas e, ao mesmo tempo, retira-se de nós escapando de qualquer
apropriação, de qualquer captura apropriadora. O que o corpo das palavras
revela é, justamente, a alteridade constitutiva da linguagem, sua distância e
sua ausência de respeito para consigo própria. Por isso, no corpo das pala-
vras, o que amamos é, precisamente, aquilo de que nós não podemos nos
apropriar, aquilo que nós nunca poderemos tornar nosso, aquilo que, inevi-
tavelmente, escorre e se extravia de nós.
3
BRUNETTE, Peter; WILLS, David. Las artes espaciales. Una entrevista con Jacques Derrida. Disponível em: <http ://aleph-arts.org/accpar/
numero1/derrida1/htm>.
75
Linguagem e Pensamento
Como se o corpo das palavras fosse lugar de sua liberdade, dado que revela
que as palavras são sempre outra coisa além de servidoras do desejo de sentido
que determina o bom funcionamento da ordem do discursivo. Amar o corpo
das palavras, portanto, significa nem iludir nem recalcar, mas sim assumir e pre-
servar o perigo de não haver sentido, porque o corpo das palavras é o que, em
todo discurso, pode abrir-se à perda do sentido, ao não-sentido.
Atividades
1. Levando-se em conta os estudos de Vygotsky, por que motivo não é correto
pensar que quem fala mal pensa mal?
2. Por que motivo não é correto pensar que quem fala sempre transmite seus
pensamentos?
76
A perspectiva histórica do desenvolvimento do pensamento humano
Dicas de estudo
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do
Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
77
Significado da palavra: lugar de junção
do pensamento e da linguagem
Para introduzir este capítulo, que tem como tema específico os modos
de enganchamento entre pensamento e linguagem, vamos propor a você
um exercício pequeno, mas nada simples. Ele vai exigir muita imagina-
ção e capacidade de desprendimento, pois seu objetivo é levá-lo para
um tempo anterior ao advento de seu pensamento e de sua inscrição na
linguagem. Tempo de susto e de perplexidade, quando todas as palavras
estavam do lado do outro.
Com sorte, alguém mais apostou nessa hipótese e lhe colocou sobre um
ventre macio – do lado de fora, evidentemente. Há um cheiro lá. Seu instinto
falou mais forte e você achou um mamilo que, curiosamente, encaixava-se
perfeitamente em sua boca. Sua língua se mexeu e você sugou e, então, eis
que, pela primeira vez, o gosto do leite inundou o céu de sua boca. Como é
bom, Santo Deus, até que valeu a pena todo aquele empurra-empurra.
Linguagem e Pensamento
Se você conseguiu fazer o exercício proposto, pôde perceber que, ainda na pri-
meira hora de vida de uma criança nascida em condições normais, os órgãos dos
sentidos entram em ação: audição, visão, olfato, tato e paladar são convocados e, de
algum modo, começam a ligar o bebê ao mundo, dando-lhe motivos para viver.
80
Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem
Você já se deu conta de quanto tempo demora para que a educação (familiar
ou institucional) tire o bebê desse funcionamento mínimo e o faça interagir com
o mundo de maneira refletida? No melhor dos casos, não menos de um ano, pois
é apenas quando pode dispor de rudimentos de palavras que o humano começa
a organizar um pensamento elaborado que o difere daquilo que um chimpanzé,
animal bastante inteligente, também consegue construir.
Ou seja, estamos aqui afirmando mais uma vez que a linguagem tem uma
função primordial na organização de nossas complexas formas de pensar e,
dada a reiteração dessa tese principal, é chegada a hora de, com Vygotsky, inter-
rogarmos mais aprofundadamente as relações entre pensamento e linguagem.
Embora foque na análise dos significados das palavras, o autor não ignora
que elas só funcionam na presença de um sistema de signos que lhes dá
81
Linguagem e Pensamento
Não temos contato direto com o mundo, mas incidimos parcialmente sobre
ele na forma de nossos juízos (Ex.: “Que mulher feia!”), de nossos conceitos (Ex.:
“Uma mulher feia é aquela em que as partes do corpo não combinam entre si”),
ou de nossas deduções (Ex.: “Fulana, que dá muita importância à aparência física,
está muito reticente sobre a nova namorada do filho: ela deve ser feia”).
O que isso significa? Que ninguém tem acesso direto aos objetos que são
alvo do pensamento do outro. No máximo, temos acesso às palavras escolhidas
por ele para descrevê-los para nós. Dada essa compreensão, é importante notar
que, para construir sua teoria sobre as relações entre pensamento e linguagem,
Vygotsky (1998) afastou-se de duas tradições de pesquisa que circulavam em
sua época, quais sejam:
82
Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem
Significado
Linguagem Pensamento
da palavra
83
Linguagem e Pensamento
IESDE Brasil S. A.
Ser uma unidade interna do Ser uma unidade do intercâmbio social.
pensamento generalizante.
84
Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem
trago aqui um testemunho escrito por um pai de uma menina brasileira que, na
ocasião em que os fatos relatados ocorreram, estava com 18 meses.1
Observe que o narrador, que na ocasião estava fazendo parte de seu doutora-
do em linguística em Paris, mostra-se encantado com as inegáveis mostras de refi-
namento conceitual de sua pequena filha e, por esse motivo, gasta algum espaço
de uma longa carta escrita para seu orientador no Brasil visando partilhar a experi-
ência que vivia naquele momento narrando uma parte de sua vida familiar.
Laura adora museus. Quando a gente entra, ela já sabe onde está e vibra.
Ela já desenvolveu até um balanço de corpo específico para fazer quem es-
tiver com ela no colo ir para o quadro seguinte. Depois, ela faz voltar várias
vezes naquele que ela mais gostou. A cada vez, ela vai descobrindo coisas
menores nos quadros. Nas igrejas, é a mesma coisa. Em geral, ela vê primeiro
os bida (umbigo), os nalijo (nariz) e os pé dos anjos!
1
Agradeço a Valdir Heitor Barzotto a gentileza de autorizar a divulgação deste encantador parágrafo de uma carta escrita por ele para João Wan-
derley Geraldi, em 20 de janeiro de 1997.
85
Linguagem e Pensamento
Sua língua é, sem dúvida, o português. No começo, ela ria quando a gente
falava francês com ela, achava que era brincadeira. Agora, ela já sabe que muita
gente fala francês e até fala alguma coisa como boju (bon jour), ovoá (au revoir),
maintnant, vavá (ça va?), tô (manteau). E canta uma musiquinha que tem um
longínquo parentesco com a nossa A barquinha virou, é: batô, batô, batô.
Texto complementar
Dialogismo:
a linguagem verbal como exercício do social
(LUKIANCHUKI, 2005)
86
Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem
princípio constitutivo da linguagem, o que quer dizer que toda a vida da lin-
guagem, em qualquer campo, está impregnada de relações dialógicas. A con-
cepção dialógica contém a ideia de relatividade da autoria individual e conse-
quentemente o destaque do caráter coletivo, social da produção de ideias e
textos. O próprio humano é um intertexto, não existe isolado, sua experiência
de vida se tece, entrecruza-se e interpenetra com o outro. Pensar em relação
dialógica é remeter a um outro princípio – a não-autonomia do discurso. As
palavras de um falante estão sempre e inevitavelmente atravessadas pelas
palavras do outro: o discurso elaborado pelo falante se constitui também do
discurso do outro que o atravessa, condicionando o discurso do eu. Em lingua-
gem bakhtiniana, a noção do eu nunca é individual, mas social. Nos seus escri-
tos, Bakhtin aborda os processos de formação do eu através de três categorias:
o eu-para-mim, o eu-para-os-outros, o outro-para-mim. Da formulação dessa
tríade, pode-se entrever sua inquietude frente a algumas questões: Como o eu
estabelece sua relação com o mundo? Existe uma oposição entre o sujeito e o
objeto? De acordo com Maria Teresa de Assunção Freitas, “Para ele, não há um
mundo dado ao qual o sujeito possa se opor. É o próprio mundo externo que
se torna determinado e concreto para o sujeito que com ele se relaciona.”
87
Linguagem e Pensamento
[...] Por todas essas considerações, pode-se perceber por que o dialogismo
é vital para a compreensão dos estudos de Bakhtin e das questões referen-
tes à linguagem como constitutiva da experiência humana e seu papel ativo
no pensamento e no conhecimento. Do ponto de vista comunicacional, a
importância desse conceito reside, inclusive, no fato de ratificar o conceito
88
Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem
Atividades
1. Em que medida falar com o bebê pequeno é importante para a estruturação
do pensamento do humano?
89
Linguagem e Pensamento
Dicas de estudo
LURIA, Alexander Romanovich. Pensamento e Linguagem: as últimas conferên-
cias de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
Essa obra trata de diversos temas articulados entre si: a relação entre a lin-
guagem e a consciência; a palavra e a estrutura semântica; o desenvolvimento
das palavras; campos semânticos; a linguagem interior; a linguagem oral e a or-
ganização cerebral. Dentre essas tantas contribuições, destaca-se o conceito de
comunicação verbal desdobrada, que, por sua vez, refere-se ao processo psíquico
interno (para o autor, projeto de alocução) que precede um determinado ato de
fala. Estudar o projeto de alocução é, portanto, uma tentativa de estudar o pen-
samento propriamente dito ou, melhor dizendo, a parte deste que é possível
conhecer, uma vez que ele não se deixa apreender totalmente pela linguagem.
90
Significado da palavra: lugar de junção do pensamento e da linguagem
91
O papel da linguagem no desenvolvimento
intelectual de uma criança
Você já parou para pensar que, em nossa cultura, não existe consenso sobre
as possibilidades e limitações da educação na formação de uma criança?
os filhos dos vizinhos aí pertinho da sua casa, em que grupo ele estaria? Você disse
que estaria no grupo dos que acreditam na necessidade de “torcer o pepino”?
Muito bem! Essa resposta indica que você está pronto para compreender o papel
que a linguagem exerce no desenvolvimento intelectual de uma criança.
Neste ponto, é importante ressaltar que Vygotsky não imaginava que o pai e
a mãe de um bebê deveriam se portar como uma espécie de professores anteci-
pados na educação de seus filhos. Quando ele defendia a importância do papel
dos adultos no desenvolvimento dos pequenos, não se tratava de uma posição
de douto conferencista, mas simplesmente do fato de poder portar condigna-
mente os significados sociais e históricos das coisas e palavras com as quais o
bebê toma contato.
nossa espécie, ou seja, fruto de nossa organização social. Até o presente mo-
mento, entretanto, estivemos discorrendo sobre o papel do adulto no desen-
volvimento intelectual infantil, mas nada falamos sobre o que ocorre do lado do
bebê. É chegada a hora, portanto, de discorrer sobre o que ocorre com a criança
a partir da disponibilização desse cabedal de informações.
Pode-se dizer, portanto, que o signo funciona como elo entre nós e o mundo.
Ele cumpre a importante função de fazer com que os elementos que nossa per-
cepção capta façam sentido para nós. Esse processo tem extrema importância
para o processo do desenvolvimento humano, pois dificilmente, ao escutar uma
palavra cujo significado nos escapa ou ao encontrar um objeto cujo uso desco-
nhecemos, vamos tentar utilizar uma coisa ou outra, o que limita nosso campo
de experiência. Isso ocorre porque o homem é um animal que precisa que as
coisas “façam sentido” para que ele se autorize a incidir sobre elas.
Você já notou que nós temos Ressalte-se, neste ponto, portanto, que os
medo de pegar objetos cuja signos têm a importante propriedade de exer-
forma não “entendemos”? cer uma ação, não só sobre o ambiente externo
mas também, em primeiro lugar, sobre o indi-
víduo, oferecendo-lhe não só um campo maior de objetos nos quais ele se autoriza
a incidir como igualmente formas de operações psicológicas novas e superiores.
96
O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança
Dada essa sinopse, é necessário nos interrogar como uma fase dá lugar à outra.
Para responder a essa interrogação, o autor parte da premissa de que a troca de
palavras em meio social possibilita ao sujeito a apropriação de conhecimentos
que circulam no lugar onde vive por meio de uma internalização das atividades
socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas. Nas suas palavras, “a in-
ternalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvi-
das constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto qua-
litativo da psicologia animal para a psicologia humana” (VYGOTSKY, 1988, p. 65).
Para ele, todo processo de aprendizagem se inicia por uma atividade externa.
Na vida cotidiana, percebemos, por exemplo, que a criança não fica indiferente
às atividades dos adultos. Quando vê os outros fazendo algo que ela não conhe-
ce, a criança não só costuma observar atentamente como interroga o praticante
sobre diversos aspectos de seu interesse. A partir de sua curiosidade, portanto,
num primeiro tempo se estabelece um processo que é interpessoal.
Num segundo momento, esse processo torna-se intrapessoal. A criança, por assim
dizer, fala consigo como o adulto fez durante o primeiro momento. Observando-a
97
Linguagem e Pensamento
mais detidamente, podemos escutar, inclusive, que ela censura: “Você não está fa-
zendo isso direito”, dá recomendações para si mesma: “Faça isso com mais calma”,
relembra-se do próximo passo a ser seguido: “Agora tem que fechar a perna do o...”
Ela incorpora, portanto, a voz do outro que previamente lhe ensinou.
Examinando os dois níveis que acabam de ser descritos, o leitor poderá con-
cluir que entre um e outro existe uma zona a ser preenchida. Ela é chamada por
Vygotsky de zona de desenvolvimento proximal e compreende, portanto, a distância
entre o conhecimento real e o potencial, uma vez que comporta as funções psico-
lógicas ainda não consolidadas, mas que já estão presentes na criança em estado
embrionário. Ela caracteriza prospectivamente o desenvolvimento mental.
98
O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança
99
Linguagem e Pensamento
O que essa história nos ensina? Antes de tudo, a fábula do desenho animado
nos mostra que é por meio da intervenção da geração precedente que a nova
geração assume suas responsabilidades sociais. Mostra-nos que, no caso especí-
fico do professor, cabe a ele mostrar ao aluno que este vai à escola para aprender
os valores acumulados durante séculos pela cultura. Cabe ao professor auxiliar o
jovem a encontrar uma direção na vida, que, no mundo moderno, o da crise e o
do desemprego, parece tão incerta. É pena quando os professores são levados a
abrir mão também da sua função de adultos...
Finalmente, cumpre ainda dizer que aqueles que aderem à teoria sócio-histó-
rico-cultural de Vygotsky assumem, portanto, um importante desafio: conhecer
cada um dos seus alunos ao iniciarem suas atividades em sala, respeitando e
compreendendo que o conhecimento adquirido no seu meio e as especificida-
des dos modos de pensar de seu grupo cultural interferem na aprendizagem
e no desenvolvimento do estudante e são instrumentos importantíssimos para
serem utilizados a seu favor.
Texto complementar
Aula particular
(NUNES, 1988, p. 51-60)
— Mas antes você me diz se esses números são divisíveis por três, por dez
e por mil.
Antes? Antes por quê? O que é que ela tinha falado primeiro? Será que
tinha explicado muita coisa?
101
Linguagem e Pensamento
Dona Eunice tirou um fiapo que estava preso na saia e botou ele dentro
de um pratinho.
— É.
Maria fez força pra pensar. Dona Eunice levantou a mão, sacudiu o braço,
e tudo quanto é pulseira foi pro cotovelo, uma esbarrando na outra. Quando
Dona Eunice sacudia o braço daquele jeito é porque estava meio sem paci-
ência, era melhor escrever logo uma coisa, mas o quê?
Uma coisa qualquer, depressa, correndo. Escreveu. Vai ver estava tudo
errado. Dona Eunice foi dizendo:
— Não risca, Maria! Eu já disse que não se risca caderno. Fica uma coisa
feia, suja. E não tem nada pior do que a sujeira. Usa a borracha.
— E então, Maria?
102
O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança
— Acorda, Maria!
— Hmm?
— Você não fez errado? Não apagou? Então? Faz direito! Mas vamos de
uma vez, você tá mole demais.
Maria começou a escrever. [...] O que é mesmo que ela tinha que escrever?
Ah! Antes ela tinha feito errado, bom, se antes tava errado, o jeito era fazer ao
contrário. Mas será que ele tinha engolido mesmo a borracha? Firmou o olho
no caderno e acabou de escrever.
Dona Eunice suspirou “até que enfim” e começou a explicar matéria nova.
Maria ficou olhando pra ela. Só quando Dona Eunice olhava pro livro é que Maria
olhava pro chão. O cachorro não se mexia [...] vai ver engasgo de borracha não
fazia barulho! E se o cachorro tinha se engasgado baixinho? E morrido bem
baixinho? Dona Eunice falava, escrevia, a dormência do pé foi subindo, subin-
do, Maria já não sentia a perna direito, por que que a Dona Eunice tinha virado
o caderno pra ela?
— MMC? (Ai, como a perna tava esquisita! Como ia ser bom sacudir ela bem.)
— E o MDC?
103
Linguagem e Pensamento
— É.
A aula continuou.
Mas Maria não conseguia mais se lembrar do que ela tinha que fazer com
o menor múltiplo. Desatou a morder o lápis. A unha de Dona Eunice come-
çou a puxar de novo a pelezinha do polegar. Maria olhou pro relógio em
cima da cristaleira (era relógio-despertador, tocava na hora da aula acabar).
[...] Dona Eunice suspirou. O cachorro voltou para baixo da mesa e o canário
cantou. Maria sentou na mesma posição que estava antes. A aula continuou.
— Um o quê?
— Segmento.
— Não.
— Só reta.
104
O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança
— O quê?...
Atividades
1. Qual a função das palavras da mãe na estruturação do pensamento do bebê
de acordo com a teoria de Vygotsky?
105
Linguagem e Pensamento
Dicas de estudo
RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus, 1982.
Nesse livro, que traz numerosas sugestões práticas de atividades que podem
ser reproduzidas ou adaptadas pelos professores das séries iniciais, Gianni Rodari
propõe uma série de expedientes para que os educadores consigam manter um
contato prazeroso e afetivo com seus alunos; para que, por meio de atividades muito
ricas e divertidas, consigam trabalhar o desenvolvimento da linguagem, da lógica,
da estética; e que, por meio do exercício pleno da sua fantasia, consigam o fortaleci-
mento da imaginação e a construção da criatividade, compreendida não como um
dom concedido a poucos, mas como sendo parte da essência do humano.
106
O papel da linguagem no desenvolvimento intelectual de uma criança
107
A influência do aprendizado escolar
no desenvolvimento da criança
Qual é a hora certa para ensinar alguma coisa? Será que essa “hora
certa” chega ao mesmo tempo para todos? Ela chega como fruto de um
trabalho ou é consequência do desenvolvimento natural de uma crian-
ça? Enfim, são muitas as perguntas que um professor se coloca quando
o assunto em questão é a introdução, aprofundamento e progressão de
conteúdos. Essas interrogações costumam ser desconfortáveis, já que, na
maioria das vezes, geram insegurança quanto ao melhor ritmo para o de-
senvolvimento de seu trabalho.
concluiu estas últimas formações, mas nelas encontrou os subsídios que pre-
cisava para desenvolver os estudos na área de psicologia. A partir de 1917,
iniciou uma carreira extremamente rica em produções. Ainda na cidade de
Gomel, onde esteve até 1923, fundou uma editora, criou uma revista lite-
rária, estruturou um laboratório de psicologia, dirigiu a seção de teatro do
departamento de educação e ainda proferiu várias palestras cujas temáticas
centrais eram a ciência, a literatura e a psicologia. Morreu de tuberculose em
1934, mas sua obra não terminou junto com ele. Teve continuidade a partir
do trabalho de dois pesquisadores que colaboravam e participavam de seus
projetos: Alexei Leontiev e Alexander Luria.
(Disponível em: <http://www.planetaeducacao.com.br/new/colunas2.asp?id=431, 2005>.)
O papel da escola no
desenvolvimento intelectual
Desde o início do capítulo, frisamos a importância de ensinar uma criança
para que ela possa se desenvolver na plena potencialidade como os demais
membros de sua espécie.
Você já ouviu falar Isso significa que, segundo essa perspectiva, a função
que “uma andorinha da escola é a de soterrar as crianças com o maior número
não faz verão”? de conteúdos possíveis? De forma alguma! Aprender,
nessa visada, não é sinônimo de tomar contato com uma
lista de pontos registrada no currículo escolar, mas forçar uma passagem: trans-
formar os conceitos espontâneos (aqueles que desenvolvemos na convivência
social) em conceitos científicos (aqueles que são formalizados de acordo com as
regras da cultura elaborada). Vejamos na citação a seguir o argumento utilizado
pelos autores para defender a necessidade da intervenção do adulto no desen-
volvimento intelectual da criança:
110
A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança
[...] a criança não consegue pensar de maneira suficientemente lógica e consistente para perceber
que conceitos associados ao mundo exterior podem ser colocados em vários níveis e que um objeto
pode pertencer ao mesmo tempo a uma classe mais estreita e outra mais ampla [...] pode-se dizer
que o pensamento da criança é sempre concreto e absoluto. (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 149)
Por que elas fazem isso? De acordo com a perspectiva aqui exposta, elas o
fazem porque têm indiferença pelas contradições e, por esse motivo, não con-
seguem, por exemplo, alcançar soluções para problemas lógicos cujas soluções
não podem ser inferidas por meio da observação direta do mundo real. Para tal
fim, elas precisam ser inseridas na lógica da cultura.
111
Linguagem e Pensamento
Tendo aqui concluído nossa exploração sobre o que Vygotsky e Luria chamam
de desenvolvimento de uma estrutura social, é hora de nos interrogarmos sobre o
que os autores chamam de tecnologia. Para tal fim, daremos privilégio à formu-
lação que foi feita em suas próprias palavras:
A tecnologia avançada resulta na separação entre as leis da natureza e as leis do pensamento
[...] paralelamente a um nível superior de controle sobre a natureza, a vida social do homem
e sua atividade de trabalho começam a exigir requisitos ainda mais elevados para o controle
do próprio comportamento. Desenvolve-se a linguagem, o cálculo, a escrita e outros recursos
técnicos da cultura. Com a ajuda desses meios, o comportamento do homem ascende a um
nível superior. (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 149, grifo nosso)
Que se frise, portanto, neste momento: não se pode esperar o aluno escrever
por si só – é preciso instigá-lo e desafiá-lo para que tenha vontade de fazê-lo. Se
você nos permite uma expressão muito popular que bem qualifica este ponto da
reflexão, devo dizer que “é aí que a porca torce o rabo”!
112
A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança
Nós podemos contribuir para maior afirmação social de grupos minoritários, mas ao mes-
mo tempo podemos, quando eles se assumem com uma identidade e têm consciência
dela, acentuar o exotismo das diferenças, tornando a questão bizarra.
Podemos também contribuir com algo que para mim é muito claro, que é o caráter lúdico,
a alegria do processo da aprendizagem. É preciso que as escolas deixem de ser chatas, de
ser soturnas, que haja alegria na aprendizagem, mas é preciso que isso não seja pago com
o preço de as pessoas aprenderem menos. Pode-se aprender bem e contente, bem e feliz,
isso acontece quando as pessoas percebem por que estão aprendendo, qual o significado
e para que serve o aprendizado.
Aluno:
113
Linguagem e Pensamento
Supervisor:
Aluno:
Supervisor:
Aluno:
— Um negócio.
Supervisor:
— Ué, negócio é negócio, meu fio. Vem cá. Vem cá. Que conteceu?
Aluno:
Supervisor:
Aluno:
— Ahn?
Supervisor:
Aluno:
Supervisor:
Supervisor:
Aluno:
— É.
114
A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança
Supervisor:
Afirmando que esse nível de exploração é bastante superficial e não nos leva
a compreender de fato o impasse que está em jogo na relação desse adulto com
a criança, Barzotto também aponta para a possibilidade de abordar o excerto
a partir da pergunta “as falas dos personagens estão em conformidade com as
regras da gramática normativa da língua portuguesa?”. No entanto, para ele, essa
pergunta teria utilidade apenas na medida em que a variedade de língua utiliza-
da pelos dois falantes servisse de indício para se especular sobre a classe social a
que podem pertencer os envolvidos no diálogo, dado que, em si, não nos ajuda
a aprofundar a reflexão sobre o cotidiano escolar.
Por esse motivo, o autor nos propõe um terceiro nível de exploração: refletir
sobre a escolha dos enunciados realizada por cada um dos falantes. Defende que
a pergunta proposta por Foucault (1987) como fundamental para a análise do dis-
curso – “Por que apareceu o enunciado X e não outro possível?” – tornaria a análise
mais produtiva. Para explorar essa vertente da análise, o autor salienta que é inte-
ressante notar, por exemplo, que na primeira vez que o supervisor fala, ao invés de
responder à pergunta que lhe foi feita, ele interpela o aluno com uma outra per-
gunta, quebrando, ao mesmo tempo, as regras do diálogo e da etiqueta social.
estava instalada. Assim sendo, a criança também se deu o direito de não respon-
der, embora tenha feito semblante de quem dá uma resposta. Ela é evasiva, escon-
de o jogo, dizendo simplesmente “Falá um negócio pr’ela”, mantendo sua posição
de esquiva quando nova pergunta é feita de novo, ela diz apenas “Um negócio”.
Ou seja, Barzotto nos mostra que a criança disputa o poder com o supervisor.
Já que este tomou de volta o direito de perguntar (e o poder que tal ato confere),
a criança lhe nega o direito de obter resposta e resiste o quanto pode. É como
se ela fizesse questão de deixar claro o seguinte: “não é com você que eu quero
falar, não é a você que eu confio minhas dificuldades”.
troca com outros sujeitos, os conhecimentos, seus papéis e suas funções sociais
sejam internalizados.
Para concluir, gostaríamos agora de retomar a questão com a qual esta nossa
discussão foi aberta “Qual é a hora certa para ensinar alguma coisa e tentar subs-
tituí-la por outra que nos parece mais produtiva?”, “Será que nossa relação com
nossos alunos e a relação deles entre si está organizada de modo que seja possível
aprender alguma coisa?”. Em caso afirmativo, a boa hora chega, com certeza!
Texto complementar
Todos nós nascemos com muito mais sinapses do que precisamos. Aque-
les que crescem em ambientes seguros e tranquilos vão perdendo essas
sinapses, que acabam não se conectando entre si, fenômeno chamado de
regressão sináptica.
Portanto, toda criança nasce com inteligência, mas aquelas que não a
usam vão perdendo-a com o tempo. Por isso, o menino de rua é mais esperto
do que filho de classe média que fica tranquilamente assistindo às aulas de
um professor. Estimular o cérebro da criança desde cedo é uma das tarefas
mais importantes de toda mãe e todo pai modernos.
Sempre fui a favor de videogames, considerados uma praga pela maioria dos
educadores e pedagogos. Só que bons videogames impedem a regressão si-
náptica, porque enganam o cérebro fazendo-o achar que seus filhos nasceram
num ambiente hostil e perigoso, sinal de que vão precisar de todas as sinapses
disponíveis. O truque é encontrar bons jogos, mas não é tarefa impossível.
O primeiro videogame que comprei para meus filhos foi o famoso SimCi-
ty, um jogo em que você é o prefeito de uma pequena vila e, dependendo
de suas decisões, ela pode se tornar uma megalópole ou não. Se você for
117
Linguagem e Pensamento
A lição que me deram com o famoso videogame Mario Brothers foi ainda
melhor. Não tendo a paciência de meus filhos, eu vivia cortando caminho pelos
vários atalhos existentes no jogo, quando novamente me deram o seguinte
conselho: “Não se podem queimar etapas, senão você não adquire a experiên-
cia e a competência necessárias para as situações difíceis que ainda estão por
vir.” A frase não foi exatamente essa, mas foi o suficiente para me deixar com
os cabelos em pé. Dois garotos estavam me ensinando que cada etapa da sua
vida tem seu tempo e aprendizado, e nela não se pode sair apressado.
118
A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança
Atividades
1. Por que o professor que segue a perspectiva vygotskyana não se preocupa
tanto com aspectos como prontidão ou maturação?
119
Linguagem e Pensamento
Dicas de estudo
CERTEAU, Michel de. A economia escriturística. In: _____. A Invenção do Coti-
diano. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 221-246.
120
A influência do aprendizado escolar no desenvolvimento da criança
121
O desafio de ensinar
a escrever bem nos dias de hoje
Você já parou para se perguntar por que o ato de escrever é uma dificul-
dade bastante acentuada para tanta gente? Se não o fez ainda, com certe-
za pelo menos assistiu a algum filme ou novela que representa a seguinte
cena clássica: a pilha de papéis amassados na cesta de lixo ao lado do escri-
tor vai crescendo assustadoramente e o pobre infeliz vai ficando cada vez
mais entristecido, pois, apesar de tanto trabalho, ele nada produz...
A invenção da escrita
Sabemos que a potência transformadora da escrita demorou a se ins-
talar na humanidade. A escrita surgiu em lugares diferentes, com fun-
ções diferentes. Para alguns povos, tinha função predominantemente
religiosa. Para outros, de acordo com Manguel (1998), a escrita foi desen-
volvida por uma necessidade econômica: a de registrar quantidades de
terras e de animais, bem como a de delimitar regiões geográficas. Para
tais fins pragmáticos, os sumérios desenvolveram uma tecnologia apro-
priada para suas necessidades específicas – a escrita cuneiforme. Manguel
mostra que, ao se apropriar dessa escrita rudimentar para fins diferentes
Linguagem e Pensamento
Domínio público.
dendo ser utilizado para atingir um grande
número de pessoas com uma única emissão
(como é o caso, por exemplo, dos outdoors) e
oferecendo uma fixidez maior que a da fala,
essa tecnologia foi, pouco a pouco, tornan-
do-se central na organização e na manuten-
ção de nossa cultura. Registrando normas
e procedimentos, compartilhando ideias e
Escrita cuneiforme.
checando a aprendizagem, a escrita é o ins-
trumento que pode proporcionar uma coerência de princípios filosóficos e ope-
racionais nas várias instâncias, pois, para além da fala, que pode ser negada ou
omitida, a escrita tem força de lei.
Com certeza há, entre os meus leitores, pessoas que compartilham dessa he-
rança cultural, mas isso não é verdade para um grande número de pessoas que
estão na ativa como professores hoje, e ainda menos verdade para os alunos
que, atualmente, povoam as carteiras das escolas básicas. Hoje em dia, o laço
cultural que organiza nossas trocas sociais é outro. Cada um vale mais ou por
1
Nesta parte do texto, em decorrência da natureza bastante singular da argumentação que fiz no texto que lhe serve de base (RIOLFI, 2004), aqui
apresentado de maneira adaptada, peço licença ao leitor para usar a primeira pessoa do singular.
124
O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje
sua (boa) aparência ou pelo que tem do que pelo que é. Ou seja: nos últimos
40 anos, o discurso capitalista se impôs como uma realidade indiscutível, sendo
poucos os redutos nos quais não é ele quem dá as cartas e dita as regras do jogo.
Seu centro é o objeto, ou seja, aquilo que pode ser comprado por via do dinheiro,
usufruído para um prazer ou resultado imediato e, de preferência, rapidamen-
te trocado por um objeto mais novo, mais moderno. Corremos como baratas
tontas atrás das novidades, alimentando um mercado que demanda sempre
mais dinheiro, enriquece sempre alguém.
Os psicanalistas têm explicado essa diluição nos seguintes termos: eles dizem
que rompemos com a lógica de uma cultura centrada no pai, caracterizada por
um certo pensamento monotemático, por uma unidade de pensamento e de
orientação. É isso que tenho em mente quando me lembro dos meus quase 40
anos. Quando fui educada, os pais tinham poucas dúvidas sobre a direção na
qual deveriam encaminhar seus filhos e filhas. Na cabeça do meu pai, fã dos
ditos populares, o que valia no exercício de uma profissão era a seguinte frase:
“Você pode até ser um coveiro, mas seja um bom coveiro.”
Resumindo: o que estou querendo mostrar é que, para essas pessoas “anti-
gas”, a letra tinha muito peso na tradição cultural, tendo quase um valor de feti-
che. Aprendíamos a cultuar o bem escrever e a admirar os bons autores. Na cor-
rida matrimonial, ganhava pontos como parceiro quem soubesse escrever uma
poesia ou, ao menos, uma bela carta de amor ressaltando nossas qualidades.
Valia até copiar uma poesia do outro, mas que fosse bela, transcrita sem erros!
Se, por um lado, tratava-se de um tempo em que havia muitos analfabetos, por
outro, a letra estava no centro da cultura, e mesmo os analfabetos não lhe ne-
gavam o valor. Se verificarmos a história de nossas famílias, com certeza muitos
de nós nos depararemos com grandes sacrifícios feitos por algum antepassado
125
Linguagem e Pensamento
analfabeto para educar seus filhos, pois havia um certo consenso no fato de que
deveria ser preparado um melhor destino para as crianças e que este se obteria
por via da introdução dos descendentes na cultura letrada.
O que estou querendo mostrar com esse recuo até a instalação do monote-
ísmo é que o estudo da história da escrita nos mostra, antes de tudo, como seu
advento e seus usos estão completamente ligados com o laço maior da cultura.
Portanto, não é possível estudar os fenômenos ligados ao uso, ao ensino e à
conservação da letra como prática social sem nos remetermos ao laço social de
forma mais ampla. É diferente considerarmos a letra como um fragmento do
sagrado, exigindo cuidado, conservação e transmissão sistemática, e a conside-
rarmos como uma tecnologia entre tantas outras possíveis. Manter a letra em
seu pleno funcionamento, persistindo no difícil esforço de bem articulá-la no
texto, demanda, pelo menos em algum grau, a insistência na manutenção de
uma sociedade na qual as regras são claras, e que, antes de tudo, é claro o fato
de que há regras a serem cumpridas e ensinadas para as crianças.
Isso que acabo de afirmar no parágrafo precedente equivale a dizer que, para
aquelas pessoas que são fruto de uma tradição cultural contemporânea, na qual
um pai não vale por sua mera condição de pai, mas pelo que pode ofertar em
termos de conforto material para sua mulher e filhos, a letra deixou de ter um
valor central. Estamos em face de um estranho paradoxo: no momento em que
caminhamos para “o extermínio” do analfabetismo, uma vez que, como nunca,
temos pessoas consideradas alfabetizadas, a letra foi esvaziada do seu valor.
Perdemos o amor pela escrita como um fator social generalizado, mantendo-o,
apenas, como um fenômeno isolado e pontual. O que temos hoje é uma insis-
tência no uso da letra como uma tecnologia instrumental.
Escrever para conseguir emprego, redigir para ser secretária e dissertar para
passar no concurso público são ações solidárias com a lógica da cultura capitalista,
126
O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje
ou seja, quanto mais “funcionarmos” dentro de uma lógica utilitarista, mais fare-
mos com que a letra perca seu poder, uma vez que a transformamos num objeto
como outro qualquer. Nossa cultura contemporânea é caracterizada pelo fato
de ser plural. Em seu seio, praticamente não há predomínio de uma opção em
detrimento das outras: quase tudo se pode escolher.
O papel do professor no
processo de aprender a escrever
Dadas as considerações de cunho cultural que acabamos de fazer no item
precedente, convidamos o professor para “deixar de chorar o leite derramado” e
olhar de frente a crise em que nossa geração se encontra. Para sermos eficazes
no ato de ensinar a ler e a escrever, é necessário abdicar completamente das vãs
esperanças de fazer com que nossos alunos vejam o mundo com os olhos de 50
anos atrás, porque, muito evidentemente, mesmo o professor mais competente
não tem uma máquina do tempo.
Entretanto, ela é positiva para todo aquele que, não temendo aprender com
as lições do passado, olhe de frente para as mazelas do presente e, incluindo-
-se nelas, reflita sobre sua eventual responsabilidade e participação no estado
atual das coisas e ouse criar para si um novo modo de viver e para seus alunos
um novo modo de aprender. Tracemos, portanto, outros modos para trabalhar
127
Linguagem e Pensamento
Todos sabemos como é desagradável criticar nossos colegas, mas, neste mo-
mento, convidamos você a fazer uma reflexão sincera: se entendermos que o tra-
balho do professor como mediador é, em primeiro lugar, fazer com que as crian-
ças entendam a função dos conhecimentos que devem aprender para, apenas
em um segundo tempo, introduzi-los, nós poderemos dizer que essa professora
sabia o que estava fazendo em sua sala de aula?
Se você entendeu o que estivemos discutindo até aqui, com certeza respon-
deu que não. Embora ela tenha se agitado muito, andado por todos os lados na
sala de aula, olhado os cadernos etc., somos obrigados a admitir que ela não
ajudou em absolutamente nada para que seus alunos pudessem se apropriar
do alfabeto fonético como um instrumento e, a partir dessa apropriação, desen-
volvessem padrões de pensamento que pudessem proporcionar a instalação do
complexo trabalho da escrita propriamente dito.
Para concluir esta parte da reflexão, gostaríamos de registrar, ainda, que caso
tivéssemos tido a oportunidade de dar apenas um conselho para a professora que
serviu de informante para a pesquisa de Smolka, esse conselho seria ao mesmo
tempo simples de ser enunciado e bastante complexo de ser cumprido. Ele se
resumiria na seguinte frase: não negue conhecimento aos seus alunos.
Nossa equipe de pesquisa esteve um tempo muito curiosa para entender por
que escrever bem parece ser tão difícil para um grande número de pessoas e,
de fato, gastamos bastante tempo para explicar isso. A partir de um cuidadoso
trabalho de pesquisa, chegamos à conclusão de que a instalação do “trabalho
da escrita” (isto é, das operações que nos levam a escrever direito) depende da
relação que o sujeito tem com o seu outro, para quem escreve. Traduzindo em
miúdos: se o indivíduo é um leitor sofrível, aí estará um escritor medíocre...
Por que isso acontece? Porque, se for um bom leitor, o professor sabe onde
incidir para levar o seu aluno a aprender a ler criticamente o que ele mesmo
escreveu. Não é possível produzir um bom texto apenas andando para frente: é
preciso aprender olhar para trás, analisar o que está escrito e deixar que o pró-
prio texto, por assim dizer, diga-nos como melhorá-lo. Quando o ato de escrever
deixa de ser uma tarefa chata e se transforma em um importante ganho cultural,
o aluno entra em contato com um tipo bastante específico de trabalho de retro-
ação que pode alterar sua relação com sua palavra, sua história, sua vida.
O que é necessário para escrever um texto assim? Ora, essa complexa tarefa
demanda duas pré-condições no que se refere à relação com o leitor:
130
O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje
modo precário a partir dos indícios que pode obter do seu professor, argumento
esse que só reforça a importância da função do professor como mediador.
Texto complementar
Prefácio1
(POMMIER, 1993, p. 5-14)
131
Linguagem e Pensamento
132
O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje
Eis, então, o que este livro deseja explorar: os primeiros desenhos apre-
sentam os fantasmas que estarão sujeitos ao recalcamento até o ponto em
que o retorno do recalcado se escreve na letra. Entre o espaço do desenho
133
Linguagem e Pensamento
A cada vez que escrevo uma palavra nova, em que me assemelho ao es-
criba, ao mandarim ou à criança? Como os corpos dormindo à noite, dis-
solvidos na obscuridade, ligam-se ao fio de suas vidas graças à escrita tenaz
134
O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje
de seus sonhos? Como aqueles em vigília bem tarde, quase até a manhã,
debruçados sobre o papel branco: as letras que eles traçam não guardariam
seus semelhantes, os adormecidos, e elas não lhes permitiriam repousar em
paz? Espécies de sentinelas, irmãs do hieróglifo onírico, elas tecem sobre a
cidade a rede que impede os sonhadores de se perderem em suas canções,
elas os acompanham até o despertar e lhes chamam para o dia. Como foram
traçados os primeiros signos capazes de falar por nós em nossa ausência?
Aprenderemos a traçá-los sempre em nós para além de nossa aparência?
Atividades
1. Em que medida a escrita influencia na organização social do ser humano?
135
Linguagem e Pensamento
Dicas de estudo
ALLOUCH, Jean. Letra a Letra: transcrever, traduzir, transliterar. Rio de Janeiro:
Campo Matêmico, 1995.
Esse livro não é um daqueles que se destaca por sua clareza e, muito menos,
pelo fato de se tratar de um texto fácil para se ler. Entretanto, todos aqueles que
se dispuserem a pagar o preço de gastar algumas (muitas) horas de estudo perse-
guindo o raciocínio deste francês incansável para compreender os três registros
distintos do ato de escrever que são dissecados pelo psicanalista (transcrever, tra-
duzir e transliterar) com certeza ganhará em profundidade e em consistência na
reflexão sobre o ato de escrever. Embora não se trate de um livro sobre o ensino
da escrita, ao tomar a letra como seu objeto de estudo ele nos dá alguns elemen-
tos muito significativos para refletir sobre a história da escrita na humanidade,
sua apropriação pelos sujeitos e, consequentemente, sobre seu ensino.
136
O desafio de ensinar a escrever bem nos dias de hoje
137
Perspectiva histórico-social: a aula de Língua
Portuguesa e seus textos nela produzidos
Você já parou para refletir como são diversificados os modos de rela-
ção dos professores com as teorias que circulam no meio universitário?
Se já o fez, com certeza pode perceber o seguinte: alguns professores
estão engessados por suas opções teóricas, as quais elevaram ao estatuto
de dogma. Outros, que não tiveram a oportunidade de aprofundar seus
estudos e compreenderem-nas profundamente, carregam-nas como se
fossem profissões de fé. Os mais aguerridos agitam-nas ao público como
se tratasse de causas a serem defendidas a qualquer preço. Por último, os
discretos consideram-nas como opções particulares necessárias para dar
coerência e consistência a sua prática investigativa e pedagógica.
Tão diversos entre si, tão parecidos no seguinte traço: todos acham
desagradável quando alguém questiona as suas opções, uma vez que é
necessária muita coragem para colocar anos de experiência na balança
e refletir sinceramente se o que você aprendeu com eles continua valen-
do no presente. Por esse motivo, iniciamos este capítulo visando refletir
sobre a aula de Língua Portuguesa e analisar os textos nela produzidos
sob uma perspectiva histórico-social. Para tanto, convidamos o leitor para
se afastar o máximo possível de “sua opinião formada sobre tudo” e, como
recomendava nosso saudoso Raul Seixas, estar permeável para tornar-se
uma “metamorfose ambulante”. Feito esse primeiro alerta, façamos nossa
primeira parada no Brasil.
Visando superar essa prejudicial tendência que apaga nosso passado e, con-
sequentemente, condena-nos a um eterno patinar no mesmo lugar, a autora faz
uma rigorosa pesquisa de fundo histórico para mostrar como a crescente impor-
tância dada à alfabetização pelos governos esteve sempre atrelada a um projeto
político de modernização social. No quadro 1, a seguir, o leitor encontrará os
principais momentos de um século de discussão sobre a alfabetização, confor-
me Magnani.
140
Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos
A interlocução verbal
na aula de Língua Portuguesa
Para melhor contextualizar nossa reflexão, a interlocução verbal na aula de
Língua Portuguesa, vamos recorrer brevemente a um exemplo já explorado por
nossa equipe de trabalho (RIOLFI et al., 2005) com maior detalhamento. A seguir,
você vai encontrar um registro de uma aula de Língua Portuguesa feito em 2003
141
Linguagem e Pensamento
por uma das autoras do livro Ensinar a Língua Portuguesa no Século XXI: desafios e
perspectivas para o Ensino Fundamental II, em um momento de sua vida em que
ainda não era professora de Língua Portuguesa, mas aluna de Letras, cumprindo
suas obrigações de estagiária.
...enquanto isso...
142
Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos
Uma aluna deitou sua cabeça na carteira e dormiu durante a aula toda.
Para concluir nossa reflexão sobre a aula de Língua Portuguesa e os textos nela
produzidos, vistos sob a óptica da perspectiva histórico-social, vamos recorrer
143
Linguagem e Pensamento
A aula de escrita
gerando desenvolvimento
subjetivo para o professor e seu aluno
Para concluir de maneira mais concreta nossa reflexão sobre uma prática de
ensino de escrita que não atinge nem o professor nem seu aluno da história da
qual são partícipes, vamos recorrer a um belo trabalho de ensino de Língua Por-
tuguesa já explorado parcialmente em trabalho anterior (RIOLFI, 1999).
144
Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos
Como será que isso aconteceu? Não vamos recuperá- Como será que
-lo em sua integralidade, evidentemente. Trata-se aqui isso aconteceu?
apenas de recortar um pequeno fragmento da prática
pedagógica da professora S que, ao compreender o caráter histórico do homem,
levou-o em conta no planejamento de suas aulas e, com bastante insistência,
conseguiu uma preciosa conquista: fazer com que um aluno de 13 anos, que
vinha se negando obstinadamente a escrever qualquer coisa que fosse, produ-
zisse seu primeiro texto escrito.
É importante ressaltar que esse primeiro sim dito à escrita não se deu de
modo isolado: ele foi contemporâneo à suspensão do emudecimento de alguns
alunos, que, vindo a se envolver profundamente com um longo projeto de tra-
balho de pesquisa sobre as histórias de suas famílias e da construção da sua
cidade – Foz do Iguaçu –, acabaram por poder assumir, em primeira pessoa, sua
história de vida. Em equipe, os alunos produziram o volume Escrevendo a História
de Foz do Iguaçu, cujo sumário segue abaixo para maior conhecimento do leitor.
2. Pontos Turísticos
2.8 Ecomuseu
4. Comentário
5. Referências Bibliográficas
145
Linguagem e Pensamento
Assim sendo, após o trabalho quase heroico para organizar uma turma de
adolescentes para, de fato, construir um projeto comum, a professora S – que,
durante um longo tempo lamentava o fato de que dois de seus alunos nada es-
creviam, e mesmo quase nada falavam se não se levasse em conta os momentos
de bagunça generalizada – teve o prazer de se surpreender com a boa adesão de
um de seus alunos ao trabalho em um dia decretado por ela como sendo o “dia
de falar sobre a vida”, atividade de transição entre a pesquisa dos documentos
oficiais da cidade e a investigação das histórias oficiosas das famílias.
Nesse dia, seu aluno Pedro, cuja voz mal conhecia, falou ao grande grupo
pela primeira vez, ainda que apenas para responder, bastante laconicamente, às
perguntas dos colegas sobre sua vida. Embora não parecesse muito à vontade,
após quase um ano de trabalho intenso por parte da professora, nosso aluno
escreveu um texto pela primeira vez.
Não era um texto qualquer, pois, como o leitor poderá comprovar logo abaixo,
inscreve o menino em uma linhagem, dando a ele um lugar na história de Foz do
Iguaçu. Convido, então, o leitor a ler generosamente o texto de Pedro.
Tenho 13 anos meu nome e pedro meu pai tem 39 anos seu nome e sebas-
tião e minha mãe tem 39 anos seu nome e maria eu naci no paraguai o meu pai
na bahia e minha mae nasceu em minas gerais e eles foram morar no paraguai
mas meu pai ouviu falar uma conversa que tinha uma obra grande no brasil e ia
ficar muita gente e dai o meu pai comprou um lote aqui no brasil isto já faz 10
anos que nos viemo morar aqui para o meu pai trabalhar na obra logo que nos
viemo para ca o meu pai ja fichou na obra e trabalhou seis anos depois eles foi
despedido ele voutou para o paraguai trabalhou na agricultura mas ele deijou
nos no brasil para estudar e ele de todo 15 dias ele vem visistar nos.
Nessa direção, a discussão sobre qual seria o melhor método perde sua cen-
tralidade, uma vez que é substituída por uma reflexão cultural mais ampla na
qual a questão dos métodos e técnicas localizados é apenas um detalhe.
Texto complementar
Eu, por tantas e tantas vezes, desejei que a vida fosse torre de Hanói. Sabe
aquele jogo em que você tem que transportar uma “pirâmide” de discos de
uma haste para outra, intercambiando-os de um em um entre essas duas
colunas, usando também uma terceira como intermediária?
Está certo... no começo o jogo nem sempre é assim tão simples: em geral,
a gente erra, volta, se atrapalha, faz um monte de movimentos totalmente
“inúteis”. Mas quando se percebe que o que se tem ali é um sistema lógico,
147
Linguagem e Pensamento
fica fácil inferir as regularidades, as leis que compõem a sua estrutura; o mis-
tério é desfeito.
Como eu ia dizendo, muitas vezes desejei que a vida fosse como esse jogo.
Pensem como seria legal: eu, professora, frente a um aluno rebelde (desses
que adoram desafiar a “autoridade”, ou que se recusam a fazer qualquer coisa
que não contraria o outro), só teria que procurar a técnica e os meios ade-
quados e planejar o momento certo de sua aplicação. Além disso, um livro
de receitas bastaria para que eu me tornasse uma boa cozinheira. Afinal, ele
não me mostra todos os passos para se fazer um belo bolo, por exemplo?
Sim, a vida, se fosse torre de Hanói, seria (quase) perfeita: meus alunos
seriam todos uns “anjos”, como professora eu não teria problema algum,
meu bolo seria comestível... Mas a vida não é assim.
Por mais que se reflita, raciocine e planeje uma ação, nunca é possível
saber ao certo o que virá depois. As regras, as leis que regem os aconteci-
mentos não estão dadas de antemão e as decisões são quase sempre uma
aposta. Uma aposta de que aquele é o melhor caminho, o mais certeiro, o
que nos ajudará a chegar aonde queremos. Enfim, a marca da vida é essa
imprevisibilidade, essa incerteza que nos deixa sempre a sensação de que as
coisas “escapam por entre os dedos”.
Sim, e com certeza é isso que nos orienta e que nos leva a querer... plane-
jar as ações. Mas esse planejar tem que considerar aquele imprevisível que é
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Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos
a marca da vida de todos nós; não pode deixar de levar em conta o desejo do
outro sujeito, que pode, em última instância, seguir por rumos totalmente
diversos daqueles por nós “planejados”. Caso contrário, esse planejamento
vira “camisa-de-força”.
Atividades
1. Analisando-se a história da constituição da alfabetização como objeto de
estudo no Brasil, o que podemos entender a respeito das transformações
sofridas nessa prática pedagógica?
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Linguagem e Pensamento
Dicas de estudo
CALKINS, Lucy McCormick. A Arte de Ensinar a Escrever: o desenvolvimento do
discurso escrito. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
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Perspectiva histórico-social: a aula de Língua Portuguesa e seus textos nela produzidos
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Gabarito
A linguagem humana
e seus efeitos sobre o pensamento
1. Em uma visão que dá prioridade à linguagem, compreendida como
sistema de articulação de signos verbais exclusivo do homem, quan-
do compreendemos a extensão do poder que a linguagem tem sobre
os seres humanos, nós podemos ser mais eficazes como agentes da
manutenção da cultura em geral e, também, refletir a respeito dos su-
cessos e os impasses da educação dos alunos que nos foram confiados
com maior pertinência.
2. Porque não somos animais! A nossa linguagem vai muito além do que os códi-
gos utilizados pelos animais. Caracteriza-se pela capacidade de ser potencial-
mente infinita, uma vez que, cada enunciado permite análise e rearranjo de
suas partes com as de outros enunciados. Nossa linguagem não sofre os limi-
tes da percepção visual, assim sendo, podemos imaginar, formular hipóteses,
projetar as consequências de nossas ações no futuro e assim sucessivamente.
154
Gabarito
A perspectiva histórica do
desenvolvimento do pensamento humano
1. Em suas pesquisas, Vygotsky mostrou que o progresso da fala não é paralelo
ao progresso do pensamento. Para ele, as curvas de crescimento de ambos cru-
zam-se muitas vezes, podem atingir o mesmo ponto e correr lado a lado, e até
mesmo fundir-se por algum tempo, mas acabam se separando novamente.
2. Porque o ser humano precisa viver em sociedade. Assim sendo, logo aprende
que, para se manter vivo, há um “discurso certo” a fazer, que pode ser proferido
aberta e publicamente, e outros discursos e práticas que é necessário velar.
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Linguagem e Pensamento
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Gabarito
O papel da linguagem
no desenvolvimento intelectual de uma criança
1. De acordo com a teoria de Vygotsky, as palavras da mãe são fundamentais na
estruturação do pensamento do bebê. Quando ela mostra objetos a seu filho e
os nomeia, exerce uma importante influência decisiva na formação dos proces-
sos mentais da criança. Como está relacionada à percepção direta do objeto, a
palavra isola seus traços e propriedades essenciais, inibindo as secundárias.
3. Para o autor, a criança pequena ainda não é capaz de controlar previamente seu
comportamento quando deseja realizar tarefas concretas. Assim sendo, tende
a fracassar em todas as tarefas que exigiriam reflexão e planejamento. Após
os sete anos, em média, ela já consegue controlar seu comportamento com o
auxílio de signos externos, como por exemplo, utilizando-se de um barbante
amarrado no dedo para não se esquecer de algo. Desse modo, é mais eficiente
na realização de tarefas às quais se propõe. Ao se tornar adulto, o humano tem
sua atividade psicológica organizada pelo signo linguístico. Consequentemen-
te, mesmo sem o auxílio de instrumentos externos, seu comportamento pode
permanecer mediado, ou seja, planejado e refletido com antecedência.
A influência do aprendizado
escolar no desenvolvimento da criança
1. O professor que segue a perspectiva vygotstkyana não se preocupa tanto
com aspectos como prontidão ou maturação porque, nessa orientação, a
educação não fica à espera do desenvolvimento intelectual da criança, mas,
ao contrário, entende que sua principal função é dar origem ao desenvol-
vimento. O professor não fica esperando a criança se desenvolver primei-
ro para fazê-la aprender depois, mas, ao contrário, trata de fazê-la aprender
para que possa se desenvolver.
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Linguagem e Pensamento
158
Gabarito
2. O contato da criança e sua ação sobre os símbolos da escrita, ainda que es-
ses símbolos estejam organizados correta e significativamente como lingua-
gem, não garantem, por si só, que a criança aprenda a linguagem escrita. A
partir, portanto, de uma compreensão histórica do homem, compreende-se
que é preciso que haja homens utilizando de forma real a linguagem para
que ela se configure enquanto tal.
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Linguagem e Pensamento
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Referências
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Linguagem e Pensamento
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Anotações
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Linguagem e Pensamento
Claudia Rosa Riolfi
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