Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Imagem Do Corpo em Lacan
A Imagem Do Corpo em Lacan
Resumo
A autora discute o corpo na perspectiva da psicanálise lacaniana. Para isso os registros Real, Sim-
bólico e Imaginário são considerados. Inicialmente é especificado, de forma sucinta, o que é cada
um desses registros, para depois pensar qual a dimensão que o corpo tem com cada um deles.
Palavras-chave
Corpo, Imagem, Real, Simbólico, Imaginário.
seu livro O espelho sofiânico de La Boehme, uniforme, pois esse é o tempo na vida de
que Lacan também se apoiou em autores uma criança que revela o que ficou captu-
de grande relevância, que certamente ser- rado e congelado nessa imagem: ainda que
viram de componentes na elaboração teó- o sujeito fique preso nela por toda sua vida,
rica sobre o estádio do espelho. São eles: essa construção é fundamental para a cons-
Freud, quando afirma em 1914 que o eu tituição de seu Eu.
precisa ser desenvolvido; o anatomista ho- É certo que a imagem vista pelo sujei-
landês Louis Bolk, ao referir-se à pré-ma- to no espelho é um esboço primitivo da-
turação; Elsa Köhler, que com a “Psicolo- quilo que será o seu Eu. Aliás, para Lacan,
gia da Gestalt” mostra que uma gestalt (for- é especificamente no terceiro tempo do
ma) seria capaz de efeitos normativos so- espelho que o Eu se forma, pois, a partir
bre o organismo; Hegel em sua A fenome- daí, o bebê, após assumir a imagem de seu
nologia do espírito3 e Jacob Boehme com sua corpo como sendo sua, poderá identificar-
teoria do espelho sofiânico4 . se com ela. Pode-se dizer com Lacan que o
Passemos então ao que versa a teoria Eu é, essencialmente, imaginário. Nesse
do estádio do espelho de Lacan. Trata-se sentido, Lacan parece estar de acordo com
do processo pelo qual o bebê passa entre o Freud e recorremos, à guisa de lembrança,
sexto e o décimo-oitavo mês de vida, e se a dois momentos freudianos que traduzem
divide em três tempos que podemos cha- a harmonia de pensamento entre Freud e
mar de “lógicos”. No primeiro tempo, a Lacan. O primeiro é sobre o nascimento
criança vê apenas o outro no espelho; no do Eu: “[...] posso ressaltar que estamos desti-
segundo, ela compreende que não se trata nados a supor que uma unidade comparável ao
do outro, mas sim da imagem que ela tem Eu não pode existir no indivíduo desde o come-
do outro, e, no terceiro, ela conclui que ço; o Eu tem de ser desenvolvido” (FREUD,
aquela é sua imagem. 1914, p. 93); o segundo: “o Eu é, primeiro e
Segundo Lacan (1949), o corpo é vivi- acima de tudo, um eu corporal”5 (FREUD,
do pela criança inicialmente como um cor- 1923, p.40).
po espedaçado. Espera-se que a criança,
após cumprir os três tempos do estádio do O corpo e os registros
espelho, possa organizar, construir e cons- Ao percorrer o ensino de Lacan, pes-
tituir a imagem de seu corpo de maneira quisando sobre a questão do corpo, verifi-
ca-se que ele não a discute de maneira mi-
nuciosa, embora faça muitas menções ao
3. No texto de Hegel A fenomenologia do espírito, tem- corpo ao longo de seu trabalho. Lacan pro-
se, em uma das partes, o título: “A verdade da certeza
de si mesmo”. Além disso, neste texto está desenvol- cura articular o corpo sempre que é perti-
vida a dialética resolutiva do mestre e do escravo e é nente, ligando-o ao tema que toma espaço
apresentado o advento da consciência de si. Há, ain- e consistência em seus estudos em uma
da, na proposta hegeliana, o mundo invertido: “o idên-
tico é não-idêntico a si e o não-idêntico é idêntico a determinada época. Quando, por exemplo,
si”. Nesse mundo avesso, os termos são desdobrados ele explicita os registros do Imaginário,
e é precisamente essa lógica do Um-dividido que está Simbólico e Real, termos fundamentais ao
em jogo no estádio do espelho.
4. Jacob Boehme faz parte dos nomes que estudaram a longo de seu ensino, novas formulações são
história do pensamento filosófico e científico nos sé-
culos XVI e XVII, com a qual Koyré integrou, na his-
tória do pensamento, uma rede de místicos e acabou
obtendo diferentes concepções religiosas da época. Em 5. Pode-se pensar o fato de os analistas não se terem
sua obra, o espelho está em jogo. Diz que se o homem interessado pelo estudo do corpo por lhes ter pareci-
é feito a partir da imagem de Deus, mas Deus não do que estudar o corpo seria equivalente a estudar o
tem imagem, Deus só pode, com efeito, conhecer a Si Eu. Certamente, o fato de o Eu ter sido o objeto de
mesmo. Assim, Deus se exprime no homem, criado à estudo de Anna Freud acabou por afastar os analistas
sua imagem. lacanianos do tema do corpo durante muito tempo.
passagens de Lacan: primeiro quando afir- Lacan (1974) diz: “A angústia é justamente
ma que, para gozar, é preciso ter um cor- alguma coisa que se situa alhures em nosso cor-
po, e, segundo, quando diz que um corpo po, é o sentimento que surge dessa suspeita que
pode ser deserto de gozo. O que será que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo” (LA-
Lacan quis dizer com isso? CAN, 1974, p. 65). Pode-se dizer, com La-
Sabemos que, a partir do século XVII, can, que o corpo tende a suportar a angús-
o corpo aparece como máquina; parece que tia, mas cada sujeito tem seu modo parti-
é a esse corpo que Lacan se refere como cular de manobrá-la. Até onde o corpo
“deserto de gozo”. Nesse sentido, os exces- suporta?
sos de cirurgias estéticas são apontados por Lacan busca contribuições em Freud
Colette Soler (2002) como algo análogo ao sempre e, em determinados momentos de
que ocorria ao escravo que fabricava um sua elaboração, em Lévi-Strauss. Lembre-
objeto para seu senhor. Diz ainda sobre o mos da “Eficácia simbólica”, de Lévi-
uso de órgãos de plástico, como silicones e Strauss (1949/1996, p. 216), que pode ser
próteses, que se trata de uma desvitalização considerado fonte do simbólico ou pelo
do corpo, que, de certo modo, é comanda- menos do que aqui discutimos sobre o cor-
do de maneira mecânica, ou seja, há um po simbólico. Nesse texto, Lévi-Strauss
corpo, mas um corpo dessubjetivado. Nes- mostra que o corpo simbólico pode ser
se sentido, retoma-se a expressão de Lacan, subvertido pela linguagem. Vale lembrar
“corpo vazio de gozo”, usada em 1957, no um exemplo: uma parturiente, devido às
texto “A psicanálise e sua relação com a dificuldades de seu parto, pede o auxílio
realidade”. de um xamã para afastar um espírito (Muu)
O sintoma leva gozo ao corpo, as en- que, segundo a crença, impossibilitava o
fermidades orgânicas são exemplos disso. nascimento do filho. Somente uma can-
O corpo deserto de gozo reduz a excitação ção xamanística poderia auxiliá-la.
psíquica ao nível mínimo. Quando Lacan Nessa perspectiva, a eficácia da pala-
se refere à incorporação do significante ao vra sobre os sintomas patentes nos corpos
corpo, mostra que a linguagem subtrai algo das histéricas devia-se não apenas ao saber
do gozo. Interrogamos, então, qual gozo médico de Freud, mas também e princi-
fica em um corpo deserto? Resposta: o gozo palmente à transferência que suas histéri-
que se fixa nos furos do corpo, ou seja, cas com ele estabeleciam. Segundo Lacan
nas zonas erógenas – são as chamadas, ao (1970), em Radiofonia: “O signo basta para
modo freudiano, pulsões parciais. que esse alguém faça da linguagem apropria-
Há, então, o efeito do significante so- ção como de um simples instrumento; da abs-
bre o organismo, quando ele ganha as tração, eis aí a linguagem como suporte [...]”
insígnias da pulsão, pois, desse modo, o (LACAN, 1970, p. 401). Interessante o fato
corpo passa a ser corpsificado. Nesse sen- de Lacan conceber a linguagem como su-
tido, podemos dizer que só quem tem um porte. O que então o corpo suporta quan-
corpo goza dele, mas para isso é preciso do a linguagem fracassa? Até que ponto a
apropriar-se dele através da linguagem. linguagem pode transformar o corpo? Será
Por isso, para gozar, é preciso ter um cor- que a ciência dá conta do insuportável?
po. Como se produz o efeito da linguagem so-
Lacan (1976), discutindo sobre o cor- bre o corpo?
po próprio, interroga: “Quem sabe o que se São muitas questões que surgem no
passa no seu corpo?”, e diz que o sentido do que concerne ao corpo...
corpo, “para alguns, chega a ser o sentido que Lembremos os ensinamentos freudia-
dão ao inconsciente” (LACAN, 1976, p. 145). nos, segundo os quais há um estreitamen-
Em sua conferência intitulada “A terceira”, to entre corpo e inconsciente; e se Lacan
Reverso • Belo Horizonte • ano 32 • n. 59 • p. 31 - 38 • Jun. 2010 35
Mara Viana de Castro Sternick
nos diz que “o inconsciente é estruturado guagem”, dizendo que ela “é um corpo sutil,
como uma linguagem”, então é possível mas é corpo” (ibid., p. 302).
dizer de uma aproximação entre corpo e Na perspectiva lacaniana, há, na pala-
linguagem. É certo que, desde o momento vra, uma força, a ponto de ela produzir um
inaugural, na psicanálise, Freud demons- efeito no Simbólico. Essa é a aposta, mas,
tra como e por que um tratamento verbal “mais ainda, as próprias palavras podem sofrer
poderia ser efetivo na cura de sintomas lesões simbólicas, realizar os atos imaginários
somáticos tais como os que se apresentam dos quais o paciente é o sujeito” (LACAN,
na histeria. Mas ousamos dizer que o cor- 1998, p. 302). Antonio Quinet (2004) nos
po em sua dimensão simbólica não é um lembra da charada proposta por Lacan, “o
recurso de todo sujeito. Podemos interro- que é que tem um corpo e não existe? Resposta:
gar, o que o corpo é capaz de suportar em O Outro, cujo corpo simbólico é constituído de
função da imagem? Esclareçamos que, ao linguagem...” (QUINET, 2004, p. 60). Des-
introduzirmos a palavra “suporte”, pensa- sa maneira, só quem tem acesso à lingua-
mos em suporte tanto no sentido de sus- gem tem um corpo. Dito de outro modo,
tentar, como, por exemplo, “a linguagem só aquele que veste a roupagem do signifi-
dá suporte à imagem do corpo”, como tam- cante tem um corpo, esse tenderá ser dife-
bém em suporte associado a aguentar, so- rente para cada sujeito. Por isso, cada su-
frer, “o sujeito suporta maltratar seu corpo em jeito tratará seu corpo conforme sua estru-
função de sua imagem”. tura clínica, mas seria pertinente lembrar-
Lembremos dois autores, primeiro mos que não apenas um sujeito psicótico
Lacan, em seu Seminário 23, quando nos pode arruinar seu corpo, como bem lem-
diz que “as pulsões são, no corpo, o eco do bra o Marquês de Maricá: “uma cabeça má
fato de que há um dizer” (LACAN, 2005, p. arruína o corpo inteiro” (MARICÁ, 1940,
18) e depois Colette Soler (2002), quan- p.342). ϕ
do interroga: como é possível que a lin-
guagem tenha efeitos sobre o corpo? Po-
demos verificar que aquilo que escapa à THE IMAGE
língua é transferido ao corpo, por exem- OF THE BODY IN LACAN
plo, os sintomas corporais em algumas
histéricas freudianas: Anna O., Dora e Abstract
Elisabeth. The author discusses the body in a lacanian
Retomando Lacan, em “Função e cam- psychoanalysis perspective. For this, the
po da fala e da linguagem” (1953), o corpo records of Real, Symbolic and Imaginary are
pode ser estudado na dimensão do Simbó- considered. Firstly, it is briefly specified, what
lico quando ele ganha a roupagem do sig- is each one of them and, secondly, we develop
nificante, quando remete à linguagem sim- the dimension of the body in each item.
bólica e dá a entender que algo de um su-
jeito, ainda que no discurso do outro, já se Keyword
faz presente, mesmo antes de nascer. Nos Body, Image, Real, Symbolic, Imaginary.
dizeres lacanianos: “os símbolos envolvem a
vida do homem [...] antes que ele venha ao
mundo, aqueles que vão gerá-lo em ‘carne e osso’,
trazem em seu nascimento [...] o traçado de seu
destino” (LACAN, 1998, p. 280).
Para Lacan (1953), a linguagem tem
um corpo quando a fala produz um efeito
no outro, isso ele chama do “dom de lin-
36 Reverso • Belo Horizonte • ano 32 • n. 59 • p. 31 - 38 • Jun. 2010
A imagem do corpo em Lacan
Bibliografia
ROUDINESCO, Elisabeth. A análise e o arquivo.
DUFORT, Dany-Robert. Lacan e o espelho sofiânico Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 76 p.
de Boehme. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 1999. 58 p.
ROUDINESCO, E.; PLON, M. (1998). Dicionário
FREUD, Sigmund. À guisa de introdução ao narci- de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 874 p.
sismo (1914). In Escritos sobre a psicologia do in-
consciente. Obras psicológicas completas de Sigmund SOLER, Colette. Lén-corps du sujet. Cours 2001-
Freud, v.1. Rio de Janeiro: Imago, 2004. 223 p. 2002. Formation Clinique du Champ Lacanien.
Inédito. 199 p.
FREUD, Sigmund. O ego e o id. (1923). In O ego e o
id, Uma neurose demoníaca do século XVII e outros STRAUSS, Claude-Lévi. A eficácia simbólica. In
trabalhos. Obras psicológicas completas de Sigmund Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Bra-
Freud, v.19. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 292 p. sileiro, [s.d.]. 366 p.
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como for- QUINET, Antonio. Incorporação, extrusão e so-
mador das funções do eu (1949). In Escritos. Rio mação: Comentário sobre o texto “Radiofonia”.
de Janeiro : Jorge Zahar, 1998. 608 p. In: ALBERTI, Sonia; CARNEIRO, M. A. (Orgs.).
Retorno do exílio. O corpo entre a psicanálise e a ciê-
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da nia. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. 172 p.
linguagem (1966 [1953]). In Escritos. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 1998. 382 p.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-
1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 246 p. RECEBIDO EM: 01/04/2010
APROVADO EM: 01/05/2010
LACAN, Jacques. Radiofonia (1970). In Outros
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 608 p.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda SOBRE O AUTOR
(1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 201 p.
LACAN, Jacques. A terceira (1974). In Cadernos Mara Viana de Castro Sternick
Lacan, v.2. Porto Alegre: Publicação não comerci-
Psicanalista do Campo Lacaniano
al da APPOA, 2002. 72 p.
de Belo Horizonte.
MARICÁ, Marquês. “Máximas, pensamentos e re- Doutoranda em Psicanálise pela UERJ.
flexões do Marquês de Maricá (pub. em 1846)” . In: Professora da Pós-Graduação
MARICÁ, Marianno José Pereira da Fonseca; Al- em Psicopedagogia de UEMG.
fredo Gomes; Publicado por Edições e publicações
Brasil, 1940. 441 p.
MILNER, Jean-Claude. Os nomes indistintos. Rio Endereço para correspondência:
de Janeiro: Cia de Freud, 2006. 118 p. Rua Padre Marinho, 49/1006 – Santa Efigênia
30140-040 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3261-7602
E-mail: maravc@terra.com.br