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A imagem do corpo em Lacan

A imagem do corpo em Lacan


Mara Viana de Castro Sternick

Resumo
A autora discute o corpo na perspectiva da psicanálise lacaniana. Para isso os registros Real, Sim-
bólico e Imaginário são considerados. Inicialmente é especificado, de forma sucinta, o que é cada
um desses registros, para depois pensar qual a dimensão que o corpo tem com cada um deles.

Palavras-chave
Corpo, Imagem, Real, Simbólico, Imaginário.

Lacan, leitor de Freud, não busca a que os registros Simbólico e Imaginário


equivalência do corpo investigado no mo- são evocados como recursos para defini-
delo freudiano como pulsional, erógeno e lo. Por isso, não foi em vão que Jean Clau-
nem tampouco orgânico – embora ne- de-Milner (2006) intitulou de Os nomes
nhum desses seja desconsiderado por ele indistintos seu livro, cujo tema central são
–, mas o corpo vinculado ao gozo, corpo os três registros. Para definir esse registro
advindo da consequência do significante lacaniano, o referido autor diz: “um agre-
fornecido pelo Outro e incorporado pelo gado onde não se estabeleça nenhum laço, ne-
sujeito, cabendo ao sujeito nomeá-lo atra- nhuma propriedade, nenhuma similitude ou
vés da linguagem. Mas de que corpo trata dissimilitude, isso é o real” (MILNER, 2006,
a psicanálise lacaniana? p. 49).
Pensamos que para trabalharmos o Embora o Real lacaniano seja diferen-
tema que aqui nos propomos a desenvol- te daquilo a que se chama de realidade,
ver, seria pertinente esclarecermos as mo- por vezes o termo aparece no início do
dalidades propostas por Lacan em seus re- ensino lacaniano de maneira confusa, sen-
gistros, como corpo real, corpo simbólico do vítima de certa ambiguidade. É verda-
e corpo imaginário. No entanto, não se de que o emprego desse termo no seio da
poderá seguir nessa investigação sem an- psicanálise foi feito por Lacan em 1936,
tes especificar de forma bastante sucinta o mas só a partir da década de 70 ele terá
que é e qual é a dimensão daquilo que prioridade em seus estudos.
Lacan (1953) chamou de registros, ou me- Na perspectiva lacaniana, o Real é o
lhor, de seus “três sistemas de referência” impossível. Sabe-se que o Real não com-
(LACAN, 1953, p. 89), para então depois porta simbolização e, por isso, acaba ten-
elucidar o estatuto do corpo nos respecti- do a dimensão da insistência; na lógica la-
vos registros, dando-se maior ênfase ao re- caniana, é o que “não cessa de não se ins-
gistro do Imaginário. crever”. Sendo assim, urge que se tente dar
sentido para aquilo que não tem sentido.
Os registros lacanianos Dar sentido ao Real é a função do Simbó-
Comecemos pelo Real. Percebemos, lico, mas também se sabe que, em contra-
em grande parte das vezes que se consulta partida, o sentido é sempre Imaginário.
uma fonte na qual Lacan se refira ao Real, Como se pode perceber, estamos diante de
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um embaraço: como dizer de um registro, teoria publicamente, chamou-a de “vassou-


prescindindo de outro? rinha”1 .
O Simbólico é um registro que organi- A historiadora Elisabeth Roudinesco
za, ou melhor, ordena. Não é em vão que (2007) nos diz que não existe uma versão
Lacan refere-se muitas vezes à expressão de original da conferência proferida por La-
Claude Lévi-Strauss “a ordem simbólica”, can sobre esse tema. No entanto, é sabido
tomando dele tal expressão para lembrar que, no meio de sua conferência, ele foi
o quanto o Simbólico é o registro respon- interrompido por Ernest Jones e não pôde
sável por colocar ordem; essa é a função do terminá-la, e por esse motivo sentiu-se ofen-
símbolo e também da linguagem, só a par- dido, abandonando o congresso para as-
tir dele é que se poderá ordenar o Real e o sistir às olimpíadas de Berlim. Ainda nos
Imaginário. arquivos da historiadora, consta que, em-
Observamos que, desde o início do bora não exista o texto de Lacan na ínte-
ensino lacaniano, a ideia da explicação si- gra, algumas notas foram tomadas por
multânea dos três registros estava presen- Françoise Dolto no mesmo ano, cujo con-
te. Ao se fazer referência ao Real, é preci- teúdo já revela também a tese lacaniana
so mencionar o Simbólico, ao se fazer exposta em 1938 através de seus “Comple-
menção ao Simbólico, mostra-se necessá- xos familiares”.
rio lançar mão do Imaginário; e é justa- Com relação à teoria do estádio do espe-
mente essa a intenção de Lacan, pois, no lho, ainda é preciso que façamos algumas
decorrer do tempo, em um segundo mo- considerações. É sabido que Lacan parece
mento de seu ensino, a ideia de pensar os ter-se servido da expressão de Henri
registros concomitantemente tomou con- Wallon2 “estádio do espelho” para formu-
sistência de tal forma que foi transforma- lar sua teoria. Este autor foi um dos pri-
da em um Seminário, RSI, em que se apre- meiros escritores a se pronunciar sobre a
sentou o enodamento dos três registros, questão da criança no espelho; publicou,
feito aos moldes de um nó borromeu – em 1931, ou seja, um ano antes da apre-
um nó no qual a separação de qualquer sentação de Lacan, um trabalho sobre o
um dos elos faz consequentemente que estádio do espelho, com o título “Como
os outros se desamarrem. se desenvolve na criança a noção de corpo
O termo Imaginário assume, por vezes, próprio”, que remete à experiência da ima-
a conotação de ilusão, produzindo elucu- gem da criança no espelho, cuja represen-
brações fantasiosas. Trata-se, porém, em tação será refletida na maneira pela qual a
psicanálise, da relação dual que um sujeito criança desenvolverá sua cognição.
estabelece com a formação de sua imagem Outra consideração importante é que
e de seu Eu. Foi justamente com uma expo- Dany-Robert Dufort (1999) nos conta, em
sição – que passou a ser de conhecimento
público – sobre essa questão que Lacan in-
troduziu esse termo na psicanálise, de onde 1. Dufour (1999) nos sugere que Lacan coloca sua acep-
vieram muitos desdobramentos. ção nos utensílios de limpeza para “reorganizar a casa
de Freud” e comenta não ter sido em vão a evocação
O estádio do espelho foi o tema com o do estádio do espelho 30 anos depois, justamente
qual Lacan se introduziu na psicanálise em quando ele está ministrando um seminário sobre O
exposição realizada por ocasião do XVI ato psicanalítico.
2. Embora Roudinesco afirme que não se sabe se houve
Congresso da IPA em Mariembad, durante algum reconhecimento da parte de Wallon por La-
o mês de agosto de 1932; mais tarde, na can, Dany-Robert Dufour (1999) considera que La-
sessão de 10 de janeiro de 1968 do semi- can o fez em seu texto sobre “Agressividade em psica-
nálise” datado de 1948, publicado em seus Escritos,
nário sobre O ato psicanalítico, Lacan, lem- em que enfatiza o “caráter notável das contribuições
brando da primeira vez que se referiu a essa de Wallon”.

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seu livro O espelho sofiânico de La Boehme, uniforme, pois esse é o tempo na vida de
que Lacan também se apoiou em autores uma criança que revela o que ficou captu-
de grande relevância, que certamente ser- rado e congelado nessa imagem: ainda que
viram de componentes na elaboração teó- o sujeito fique preso nela por toda sua vida,
rica sobre o estádio do espelho. São eles: essa construção é fundamental para a cons-
Freud, quando afirma em 1914 que o eu tituição de seu Eu.
precisa ser desenvolvido; o anatomista ho- É certo que a imagem vista pelo sujei-
landês Louis Bolk, ao referir-se à pré-ma- to no espelho é um esboço primitivo da-
turação; Elsa Köhler, que com a “Psicolo- quilo que será o seu Eu. Aliás, para Lacan,
gia da Gestalt” mostra que uma gestalt (for- é especificamente no terceiro tempo do
ma) seria capaz de efeitos normativos so- espelho que o Eu se forma, pois, a partir
bre o organismo; Hegel em sua A fenome- daí, o bebê, após assumir a imagem de seu
nologia do espírito3 e Jacob Boehme com sua corpo como sendo sua, poderá identificar-
teoria do espelho sofiânico4 . se com ela. Pode-se dizer com Lacan que o
Passemos então ao que versa a teoria Eu é, essencialmente, imaginário. Nesse
do estádio do espelho de Lacan. Trata-se sentido, Lacan parece estar de acordo com
do processo pelo qual o bebê passa entre o Freud e recorremos, à guisa de lembrança,
sexto e o décimo-oitavo mês de vida, e se a dois momentos freudianos que traduzem
divide em três tempos que podemos cha- a harmonia de pensamento entre Freud e
mar de “lógicos”. No primeiro tempo, a Lacan. O primeiro é sobre o nascimento
criança vê apenas o outro no espelho; no do Eu: “[...] posso ressaltar que estamos desti-
segundo, ela compreende que não se trata nados a supor que uma unidade comparável ao
do outro, mas sim da imagem que ela tem Eu não pode existir no indivíduo desde o come-
do outro, e, no terceiro, ela conclui que ço; o Eu tem de ser desenvolvido” (FREUD,
aquela é sua imagem. 1914, p. 93); o segundo: “o Eu é, primeiro e
Segundo Lacan (1949), o corpo é vivi- acima de tudo, um eu corporal”5 (FREUD,
do pela criança inicialmente como um cor- 1923, p.40).
po espedaçado. Espera-se que a criança,
após cumprir os três tempos do estádio do O corpo e os registros
espelho, possa organizar, construir e cons- Ao percorrer o ensino de Lacan, pes-
tituir a imagem de seu corpo de maneira quisando sobre a questão do corpo, verifi-
ca-se que ele não a discute de maneira mi-
nuciosa, embora faça muitas menções ao
3. No texto de Hegel A fenomenologia do espírito, tem- corpo ao longo de seu trabalho. Lacan pro-
se, em uma das partes, o título: “A verdade da certeza
de si mesmo”. Além disso, neste texto está desenvol- cura articular o corpo sempre que é perti-
vida a dialética resolutiva do mestre e do escravo e é nente, ligando-o ao tema que toma espaço
apresentado o advento da consciência de si. Há, ain- e consistência em seus estudos em uma
da, na proposta hegeliana, o mundo invertido: “o idên-
tico é não-idêntico a si e o não-idêntico é idêntico a determinada época. Quando, por exemplo,
si”. Nesse mundo avesso, os termos são desdobrados ele explicita os registros do Imaginário,
e é precisamente essa lógica do Um-dividido que está Simbólico e Real, termos fundamentais ao
em jogo no estádio do espelho.
4. Jacob Boehme faz parte dos nomes que estudaram a longo de seu ensino, novas formulações são
história do pensamento filosófico e científico nos sé-
culos XVI e XVII, com a qual Koyré integrou, na his-
tória do pensamento, uma rede de místicos e acabou
obtendo diferentes concepções religiosas da época. Em 5. Pode-se pensar o fato de os analistas não se terem
sua obra, o espelho está em jogo. Diz que se o homem interessado pelo estudo do corpo por lhes ter pareci-
é feito a partir da imagem de Deus, mas Deus não do que estudar o corpo seria equivalente a estudar o
tem imagem, Deus só pode, com efeito, conhecer a Si Eu. Certamente, o fato de o Eu ter sido o objeto de
mesmo. Assim, Deus se exprime no homem, criado à estudo de Anna Freud acabou por afastar os analistas
sua imagem. lacanianos do tema do corpo durante muito tempo.

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associadas ao tema do corpo. Durante riências da infância, e o gozo é o que está


quase meio século, Lacan dedica seus es- para além do princípio do prazer e indica,
tudos a esses registros, cada registro ga- de alguma maneira, transgressão.
nha um tempo, merecedor de sua aten- Pensamos que a melhor maneira de
ção, ou melhor, há uma prevalência de explicarmos o gozo é lançando mão da
ênfase (pode-se dizer que o tempo do Ima- noção de desejo. Sabemos que as proibi-
ginário vai de 1936 a 1953; o tempo do ções são aquelas que mais aguçam o dese-
Simbólico, de 1953 a 1976; e o tempo do jo humano, certamente também o proibi-
Real, de 1976 a 1980). do pode levá-lo ao deleite quando é possí-
Para Roudinesco e Plon (1998), essa vel desfrutá-lo. Por outro lado, o desejo é,
“tópica” modifica-se ao longo do tempo, em Freud, resposta do arranjo edipiano,
pois, de 1953 a 1970, o Simbólico exerce a pois é o pai o responsável por deixar o su-
primazia sobre o Real e o Imaginário jeito numa posição de desejante após in-
(S.R.I.); em um outro momento, é o Real terditar a mãe. Nesse sentido, o pai ou
que ganha maior espaço, de 1970 a 1978, aquele que fizer sua função será aquele res-
com o seminário sobre R.S.I. Ao chegar a ponsável por interditar o gozo e cabe ao
essa última etapa de seu ensino, Lacan sujeito fazer uma espécie de arranjo sim-
busca entrelaçar os três registros através do bólico do que ficou dessa fase. Portanto,
nó de borromeu. se há proibição, e o sujeito sabe dela, há
O corpo que goza está presente tanto espaço para o desejo e, nesse sentido, não
na experiência de satisfação quanto no há espaço para o gozo. Ter acesso ao pra-
encontro traumático com o sexo, pois es- zer seria apenas se deliciar com uma pro-
tes determinam as modalidades de gozo. va, uma degustação do que pôde ser a rela-
Ambos os momentos são derivados de uma ção inicial com a mãe, portanto, do pra-
experiência no corpo. No primeiro, tem- zer, do qual, dito à maneira freudiana, co-
se a dimensão de gozo em uma experiên- nhecemos apenas um “princípio”; o exces-
cia única de prazer, que produz, a partir so, a transgressão, o deleite e o desfrute
de então, uma busca compulsiva de obje- estão além do princípio do prazer, estão
tos que forneçam novamente o mesmo portanto do lado do gozo.
prazer; no segundo, durante uma cena se- Se o desejo tem por característica ser
xual, o corpo da criança pode ter-se excita- inesgotável, isso por si só nos mostra o
do, mas, como ela era ainda muito peque- quanto ele é igualmente insaciável. Assim,
na e não tinha entendimento do que era o não há objeto que possa satisfazê-lo, em-
sexo, tal cena não tomou a dimensão que bora o sujeito insista em imaginariamen-
assume quando é reatualizada no futuro, te achar que se satisfará com o consumo
quando, então, suscitada por outra vivên- de pequenos objetos oferecidos pelo con-
cia semelhante, será ressignificada enquan- sumo.
to trauma. Nesse sentido, o corpo Real es- Lacan, em seu Seminário 20, indica
tabeleceu-se antes e precisará, diante de inicialmente que o sujeito quer continuar
novos acontecimentos, contar com o recur- a gozar e a não querer saber o motivo pelo
so do Imaginário e do Simbólico. Mas e o qual goza. Mas, afinal, o que é o gozo e
gozo? para que ele serve? De início, toma-se de
O termo “gozo” é um conceito que per- pronto a resposta lacaniana: “o gozo é aqui-
tence ao campo jurídico, define o direito lo que não serve para nada” (LACAN, 1985,
de ter um bem, desde que o sujeito possa p. 11). No entanto, o que a clínica nos in-
responsabilizar-se por ele. No campo psica- dica é que há um excesso de gozo impossí-
nalítico, podemos dizer, de forma sucinta, vel de se traduzir em palavras.
que o prazer está ligado à repetição de expe- Por outro lado, são intrigantes duas
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passagens de Lacan: primeiro quando afir- Lacan (1974) diz: “A angústia é justamente
ma que, para gozar, é preciso ter um cor- alguma coisa que se situa alhures em nosso cor-
po, e, segundo, quando diz que um corpo po, é o sentimento que surge dessa suspeita que
pode ser deserto de gozo. O que será que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo” (LA-
Lacan quis dizer com isso? CAN, 1974, p. 65). Pode-se dizer, com La-
Sabemos que, a partir do século XVII, can, que o corpo tende a suportar a angús-
o corpo aparece como máquina; parece que tia, mas cada sujeito tem seu modo parti-
é a esse corpo que Lacan se refere como cular de manobrá-la. Até onde o corpo
“deserto de gozo”. Nesse sentido, os exces- suporta?
sos de cirurgias estéticas são apontados por Lacan busca contribuições em Freud
Colette Soler (2002) como algo análogo ao sempre e, em determinados momentos de
que ocorria ao escravo que fabricava um sua elaboração, em Lévi-Strauss. Lembre-
objeto para seu senhor. Diz ainda sobre o mos da “Eficácia simbólica”, de Lévi-
uso de órgãos de plástico, como silicones e Strauss (1949/1996, p. 216), que pode ser
próteses, que se trata de uma desvitalização considerado fonte do simbólico ou pelo
do corpo, que, de certo modo, é comanda- menos do que aqui discutimos sobre o cor-
do de maneira mecânica, ou seja, há um po simbólico. Nesse texto, Lévi-Strauss
corpo, mas um corpo dessubjetivado. Nes- mostra que o corpo simbólico pode ser
se sentido, retoma-se a expressão de Lacan, subvertido pela linguagem. Vale lembrar
“corpo vazio de gozo”, usada em 1957, no um exemplo: uma parturiente, devido às
texto “A psicanálise e sua relação com a dificuldades de seu parto, pede o auxílio
realidade”. de um xamã para afastar um espírito (Muu)
O sintoma leva gozo ao corpo, as en- que, segundo a crença, impossibilitava o
fermidades orgânicas são exemplos disso. nascimento do filho. Somente uma can-
O corpo deserto de gozo reduz a excitação ção xamanística poderia auxiliá-la.
psíquica ao nível mínimo. Quando Lacan Nessa perspectiva, a eficácia da pala-
se refere à incorporação do significante ao vra sobre os sintomas patentes nos corpos
corpo, mostra que a linguagem subtrai algo das histéricas devia-se não apenas ao saber
do gozo. Interrogamos, então, qual gozo médico de Freud, mas também e princi-
fica em um corpo deserto? Resposta: o gozo palmente à transferência que suas histéri-
que se fixa nos furos do corpo, ou seja, cas com ele estabeleciam. Segundo Lacan
nas zonas erógenas – são as chamadas, ao (1970), em Radiofonia: “O signo basta para
modo freudiano, pulsões parciais. que esse alguém faça da linguagem apropria-
Há, então, o efeito do significante so- ção como de um simples instrumento; da abs-
bre o organismo, quando ele ganha as tração, eis aí a linguagem como suporte [...]”
insígnias da pulsão, pois, desse modo, o (LACAN, 1970, p. 401). Interessante o fato
corpo passa a ser corpsificado. Nesse sen- de Lacan conceber a linguagem como su-
tido, podemos dizer que só quem tem um porte. O que então o corpo suporta quan-
corpo goza dele, mas para isso é preciso do a linguagem fracassa? Até que ponto a
apropriar-se dele através da linguagem. linguagem pode transformar o corpo? Será
Por isso, para gozar, é preciso ter um cor- que a ciência dá conta do insuportável?
po. Como se produz o efeito da linguagem so-
Lacan (1976), discutindo sobre o cor- bre o corpo?
po próprio, interroga: “Quem sabe o que se São muitas questões que surgem no
passa no seu corpo?”, e diz que o sentido do que concerne ao corpo...
corpo, “para alguns, chega a ser o sentido que Lembremos os ensinamentos freudia-
dão ao inconsciente” (LACAN, 1976, p. 145). nos, segundo os quais há um estreitamen-
Em sua conferência intitulada “A terceira”, to entre corpo e inconsciente; e se Lacan
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nos diz que “o inconsciente é estruturado guagem”, dizendo que ela “é um corpo sutil,
como uma linguagem”, então é possível mas é corpo” (ibid., p. 302).
dizer de uma aproximação entre corpo e Na perspectiva lacaniana, há, na pala-
linguagem. É certo que, desde o momento vra, uma força, a ponto de ela produzir um
inaugural, na psicanálise, Freud demons- efeito no Simbólico. Essa é a aposta, mas,
tra como e por que um tratamento verbal “mais ainda, as próprias palavras podem sofrer
poderia ser efetivo na cura de sintomas lesões simbólicas, realizar os atos imaginários
somáticos tais como os que se apresentam dos quais o paciente é o sujeito” (LACAN,
na histeria. Mas ousamos dizer que o cor- 1998, p. 302). Antonio Quinet (2004) nos
po em sua dimensão simbólica não é um lembra da charada proposta por Lacan, “o
recurso de todo sujeito. Podemos interro- que é que tem um corpo e não existe? Resposta:
gar, o que o corpo é capaz de suportar em O Outro, cujo corpo simbólico é constituído de
função da imagem? Esclareçamos que, ao linguagem...” (QUINET, 2004, p. 60). Des-
introduzirmos a palavra “suporte”, pensa- sa maneira, só quem tem acesso à lingua-
mos em suporte tanto no sentido de sus- gem tem um corpo. Dito de outro modo,
tentar, como, por exemplo, “a linguagem só aquele que veste a roupagem do signifi-
dá suporte à imagem do corpo”, como tam- cante tem um corpo, esse tenderá ser dife-
bém em suporte associado a aguentar, so- rente para cada sujeito. Por isso, cada su-
frer, “o sujeito suporta maltratar seu corpo em jeito tratará seu corpo conforme sua estru-
função de sua imagem”. tura clínica, mas seria pertinente lembrar-
Lembremos dois autores, primeiro mos que não apenas um sujeito psicótico
Lacan, em seu Seminário 23, quando nos pode arruinar seu corpo, como bem lem-
diz que “as pulsões são, no corpo, o eco do bra o Marquês de Maricá: “uma cabeça má
fato de que há um dizer” (LACAN, 2005, p. arruína o corpo inteiro” (MARICÁ, 1940,
18) e depois Colette Soler (2002), quan- p.342). ϕ
do interroga: como é possível que a lin-
guagem tenha efeitos sobre o corpo? Po-
demos verificar que aquilo que escapa à THE IMAGE
língua é transferido ao corpo, por exem- OF THE BODY IN LACAN
plo, os sintomas corporais em algumas
histéricas freudianas: Anna O., Dora e Abstract
Elisabeth. The author discusses the body in a lacanian
Retomando Lacan, em “Função e cam- psychoanalysis perspective. For this, the
po da fala e da linguagem” (1953), o corpo records of Real, Symbolic and Imaginary are
pode ser estudado na dimensão do Simbó- considered. Firstly, it is briefly specified, what
lico quando ele ganha a roupagem do sig- is each one of them and, secondly, we develop
nificante, quando remete à linguagem sim- the dimension of the body in each item.
bólica e dá a entender que algo de um su-
jeito, ainda que no discurso do outro, já se Keyword
faz presente, mesmo antes de nascer. Nos Body, Image, Real, Symbolic, Imaginary.
dizeres lacanianos: “os símbolos envolvem a
vida do homem [...] antes que ele venha ao
mundo, aqueles que vão gerá-lo em ‘carne e osso’,
trazem em seu nascimento [...] o traçado de seu
destino” (LACAN, 1998, p. 280).
Para Lacan (1953), a linguagem tem
um corpo quando a fala produz um efeito
no outro, isso ele chama do “dom de lin-
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A imagem do corpo em Lacan

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fredo Gomes; Publicado por Edições e publicações
Brasil, 1940. 441 p.
MILNER, Jean-Claude. Os nomes indistintos. Rio Endereço para correspondência:
de Janeiro: Cia de Freud, 2006. 118 p. Rua Padre Marinho, 49/1006 – Santa Efigênia
30140-040 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3261-7602
E-mail: maravc@terra.com.br

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