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língua materna
em tempos de pandemia
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Ao longo do texto, tomei a liberdade de inserir uma canção que escutei muito nos últimos dias e
que retoma um pouco da minha infância nos anos 1980: “O dia em que a Terra parou”, de Raul Seixas.
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Ver Pesce; Bunzen; Galasso (2018).
3
Ver Bunzen (2015).
bo muitas resistências do uso de tais espaços virtuais por professores
universitários e também por alguns(mas) licenciandos(as). Uma expe-
riência que faço, nos últimos dez anos (2010-2020), é a produção de
blogs nos componentes curriculares de estágio. O relatório de estágio
no formato virtual permitiu-me repensar a importância das trocas,
das interações, das réplicas e dos tipos de saberes que os(as) licencian-
dos(as) mobilizam ao longo dos estágios obrigatórios de observação
e/ou regência4. Os relatórios que antes eram entregues impressos ou
enviados por e-mail transformaram-se em postagens com textos ver-
bais, ilustrações, fotografias, links e outras possibilidades de produzir
textos na universidade. Além disso, o que mais me anima com tais
produções é a possibilidade de todos os(as) estagiários(as) terem aces-
so à produção dos(as) colegas, provocando reflexões sobre diversas
facetas e problemáticas. Os comentários mostram que as postagens
sobre as experiências nas escolas provocam deslocamentos e aprendi-
zagens significativas. Ou seja, é possível realizar muitas atividades na
escola e na universidade com as tecnologias digitais. Faz-se urgente
uma formação inicial e continuada para tais usos de forma cada vez
mais ampla e crítica5.
O contexto da pandemia, pelo que tenho conversado com alguns pro-
fessores em um curso recente de formação continuada de extensão,
fez com que muitos(as) docentes da educação básica iniciassem uma
maior reflexão sobre o uso das tecnologias em sala de aula. Observo
como os(as) professores(as) fazem o maior esforço para planejar aulas
e realizar atividades no trabalho remoto. No entanto, a concepção de
educação bancária e de transmissão de conteúdos ainda é hegemô-
nica. Há muitas possibilidades de realizar um trabalho mais intera-
tivo e dialógico, mas precisamos de políticas públicas que invistam
seriamente em formação de professores para o “novo” contexto. A
grande questão envolve o problema da desigualdade social e da aces-
sibilidade. Em uma turma de 50 alunos de 6º ano da rede estadual de
Pernambuco, apenas 50% participam de atividades pelo celular. Mui-
tos aparelhos não são das crianças, mas dos responsáveis e familia-
4
Ver Sousa; Bunzen; Sarmento (2019); Bunzen (2012).
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Em Bunzen (2016), comentei a importância do uso das novas tecnologias de forma crítica e situada
no processo de alfabetização. Outras reflexões sobre formação inicial, aparecem em Pesce; Lima;
Bunzen (2012).
Palavras finais
Estamos no momento de (re)pensar o papel da escola, do conheci-
mento escolar e da própria concepção de aula. Os currículos do co-
tidiano se modificaram profundamente, pois as relações de ensino e
aprendizagem são outras. Os instrumentos e gestos didáticos tam-
bém foram alterados. Por outro lado, a educação bancária, conteu-
dista e a cultura das avaliações e das tarefas continuam presentes
em vários contextos educacionais privados e públicos. Depois que
voltei, já em território brasileiro, observo meu sobrinho nas aulas
online em uma turma de 6º ano. Todos os dias, ele entra no Google
Classroom, mas só faz ouvir e realizar atividades da apostila. Não
existe muito espaço para falar, não há trocas entre os jovens. O si-
lêncio predomina na sala. A chamada é feita pelo chat e as câmeras
ficam desligadas. Um cenário bastante triste, mas real. Não o escuto
falar, participar, opinar, rir, escrever para os professores ou para os
colegas em nenhum momento durante vários dias. No intervalo, ele
inicia a jogar no mesmo computador em que estuda. Em outra aula,
percebo que ele joga pelo celular, sem que ninguém saiba disso: uma
prática de letramento invisível. A frequência às aulas e a exposição
rígida de conteúdos parecem mais importantes do que o processo
coletivo de construção do conhecimento.
Os encontros poderiam ser bem mais interativos e dinâmicos, mas
reconheço que tudo isso é muito novo para todos(as) os(as) envol-
vidos(as) na educação básica. O jogo de ensinar e as estratégias de
aprender em tempos de pandemia são desafiadores, especialmente
no cenário nacional. Garantir o acesso a todos(as) parece-me o maior
desafio político em um país em uma grave crise do sistema educa-
cional e sem políticas claras para enfrentamento de um cenário tão
complexo. Dar suporte ao trabalho docente, com políticas de forma-
ção, de suporte emocional e financeiro e de reflexão sobre a jornada
de trabalho em tempos de trabalho remoto parece-me mais impor-
tante do que insistir no retorno às aulas presenciais e no cumpri-
mento do calendário de 200 dias letivos. Como diz a recente ciranda
“Ninguém solta a mão de ninguém”, composta por Antônio Nóbrega
e Wilson Freire:
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Letra disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cultura/2020/07/ninguem-solta-a-mao-
de-ninguem-antonio-nobrega-ciranda-clipe/
Referências
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