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Augusto dos Anjos: um místico sem Deus?

Paulo Margutti
FAJE

RESUMO
A imagem tradicional de Augusto dos Anjos é a de um poeta materialista, ateu e pessimista, que, apesar
disso, não consegue esconder uma inspiração mística implícita em seus versos. Ele seria um místico sem
Deus. O presente texto se posiciona contra essa imagem, procurando mostrar a raiz fundamentalmente
católica e espiritualista da personalidade desse autor, que permite descrevê-lo, na verdade, como um
místico com Deus. Para atingir tal objetivo, o texto caracteriza inicialmente a postura sanchista em
Portugal e no Brasil, postura que constitui um dos principais traços da nossa alma católica ibérica,
procurando mostrar em seguida que a poesia de Augusto dos Anjos, adequadamente contextualizada e
relacionada com a biografia de seu autor, constitui uma manifestação da postura sanchista no Brasil dos
inícios do s. XX.

ABSTRACT
Augusto dos Anjos’ usual image is the one of a materialist, atheist and pessimistic poet, who, in spite of
this, cannot hide a mystical inspiration which is implicit in his verses. He would be described as a
mystical person without a God. The text takes a stand against such an image, trying to show the
fundamentally catholic and spiritualistic roots of the Author’s personality, which woud allow describing
him in fact as a mystical person with a God. In order to reach this goal, the text initially characterizes the
sanchist stance in Portugal and Brasil, a stance that constitutes one of the main traces belonging to our
catholic iberian soul, trying to show that Augusto dos Anjos’ poetry, properly contextualized and related
to its Author’s biography, constitutes a manifestation of the sanchist stance in Brasil at the beginning of
the XXth century.

I – Introdução

Provavelmente, a primeira pergunta do leitor ao ler o título acima seria: qual o


sentido de incluir um texto sobre Augusto dos Anjos num livro que trata da presença de
Deus na literatura brasileira do s. XX? Com efeito, a imagem usual que temos dele é a
de um poeta maldito, famoso pelo seu monismo materialista e pelo seu pessimismo em
relação à natureza e à convivência humana, aspectos que parecem apontar
inevitavelmente em direção a uma forma de ateísmo decepcionado. Sua visão amarga de
mundo pode ser ilustrada pelos dois últimos tercetos do soneto Versos Íntimos, que
parecem oferecer de maneira enfática uma das mensagens mais profundamente
anticristãs da literatura brasileira:

1
Publicado originalmente como capítulo do livro Aragem do Sagrado. Deus na literatura brasileira
contemporânea. Organizado por Geraldo de Mori, Luciano Santos e Carlos Caldas. S. Paulo: Loyola,
2011, pp. 25-56. A numeração das páginas do presente texto não coincide com a da publicação original.

1
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,


Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!2

Todo esse fel moral, que parece opor-se diretamente ao mandamento cristão ama a teu
próximo como a ti mesmo, parece encontrar, senão uma justificação, ao menos uma
explicação na maldição da tuberculose, da qual Augusto dos Anjos supostamente seria
vítima. Afinal de contas, só um poeta tísico, condenado ao sofrimento e ao desconforto,
teria algum motivo para expressar uma visão de mundo tão pessimista.
Em que pese a esses aspectos do retrato de Augusto dos Anjos, muitos críticos
vêem nele uma grande insatisfação com a explicação puramente materialista do mundo,
que faria dele uma espécie de místico frustrado. Isso seria reforçado pela dupla face da
personalidade do poeta, que, por um lado, teria adotado o monismo, mas, por outro,
seria um dualista nato. Nessa perspectiva, Augusto dos Anjos seria um místico
frustrado, um místico sem Deus. Esse fato por si só já justificaria a sua inclusão na
discussão do presente livro, como um dos autores brasileiros em que a presença divina
se manifesta, ainda que negativamente, sob a forma de um sentimento doloroso de
privação espiritual diante da explicação meramente materialista do mundo. Nesse caso,
um título adequado para o nosso texto seria Augusto dos Anjos: um místico sem Deus.
Ora, a presença de um ponto de interrogação no título escolhido certamente levará o
leitor a uma segunda pergunta: se uma das únicas formas de relacionar a poesia anjiana
com a expressão da religiosidade está em revelar o seu misticismo frustrado, faz sentido
colocar em dúvida justamente essa forma de misticismo num estudo que pretende
destacar tal religiosidade?
Pois bem, o nosso objetivo no presente trabalho, em oposição a essas imagens
tradicionais do poeta, é colocar em questão o misticismo frustrado e mostrar que
Augusto dos Anjos era de fato um pensador profundamente religioso. Iremos defender
aqui a ideia de que ele era não um místico sem Deus, mas sim um místico com Deus.

2
Dos Anjos, A. “Eu e outras poesias”. In: Dos Anjos, A. Obra Completa. Volume Único. Organização,
fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994, p. 280.

2
Isso envolverá uma reavaliação de algumas das interpretações tradicionais de sua poesia
e será feito através das seguintes etapas. Em primeiro lugar, tentaremos caracterizar uma
postura filosófica peculiar que marcou Portugal e o Brasil, que denominamos sanchismo
e que pode ser considerada uma das origens da postura de diversos pensadores e
literatos brasileiros. Em segundo lugar, faremos uma contextualização da obra do poeta,
mostrando suas origens nas encruzilhadas do pensamento filosófico brasileiro do final
do s. XIX e do início do s. XX. Em terceiro lugar, procuraremos caracterizar mais
detalhadamente a visão de mundo de Augusto dos Anjos, mostrando as suas principais
características, destacando a sua religiosidade e ligando-a com o sanchismo.3 Nossa
expectativa é contribuir para um maior esclarecimento da visão de mundo de um dos
poetas mais complexos e menos compreendidos de nossa literatura.

II – A postura sanchista e seus reflexos no Brasil

É fato conhecido que a Península Ibérica escolheu um caminho próprio em


direção à modernidade. Para explicar os motivos culturais desse fato, Richard Morse,
em O Espelho de Próspero, cita o trecho abaixo, de Unamuno:

Sinto que trago em mim uma alma medieval e creio que é medieval a alma de
minha pátria; que esta passou à força pelo Renascimento, a Reforma e a
Revolução, aprendendo com elas, é verdade, mas sem deixar que lhe tocassem a
alma, conservando a herança espiritual daqueles tempos que chamam de a Idade
das Trevas.4

Essa passagem foi escolhida a dedo por Morse e constitui uma espécie de confirmação
avant la lettre da tese que ele defende em seu instigante livro. É verdade que, nesse
trecho, Unamuno está se referindo à Espanha, mas parece-nos que a mesma “alma
medieval” poderia ser atribuída sem maiores retoques à situação de Portugal. Nessa
perspectiva, a passagem constituiria uma descrição não só da alma espanhola, mas da
alma ibérica em geral. Isso significa que a herança espiritual mencionada por Unamuno
seria um atributo dessa mesma alma ibérica e também estaria presente em Portugal.

3
Para não alongar muito o nosso texto, deixaremos de fazer, no final, um apanhado geral das nossas
conclusões.
4
Unamuno, M. Del sentimiento trágico de la vida. Apud Morse, R. O Espelho de Próspero. Cultura e
ideias nas Américas. Trad. P. Neves. S. Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 36.

3
Do ponto de vista filosófico, pensamos que tal herança envolve uma postura
filosófica de inspiração medieval, com as seguintes características. Em primeiro lugar,
ela parte de um dualismo entre espírito e matéria, marcado por uma luta interminável
entre esses princípios. Em virtude disso, a nossa missão nesse mundo é vencer a matéria
em benefício do espírito. Em segundo lugar, dado que essa luta inclui inúmeras
tentações promovidas pela dimensão material, as quais acabam por enfeitiçar a nossa
dimensão espiritual, iludindo-a e desencaminhando-a com respeito à nossa autêntica
missão, essa postura vê a vida nesse mundo de maneira estóica e pessimista. Somos
apenas peregrinos, de passagem por um caminho pleno de tentações a serem vencidas.
Temos de aprender a renunciar aos nossos interesses egoístas para encontrar a salvação.
Em terceiro, a ciência e o conhecimento em geral não passam de manifestações da nossa
vaidade. Seres passageiros como nós só podemos achar que sabemos alguma coisa
sobre o mundo em virtude de algum tipo de amor próprio ou até mesmo de arrogância,
capaz de ocultar a nossa finitude e nossas limitações. Nossas teorias e sistemas são
meros arremedos de explicação adequada para o sentido da vida. Isso equivale a uma
forma particular de ceticismo, gerado antes por motivos éticos do que epistemológicos.
Em quarto, esse ceticismo leva à valorização da ação em detrimento da teoria. Se nada
sabemos, se estamos apenas de passagem por esse mundo de ilusão e sofrimento, só
poderemos vencer batalha entre o espírito e a matéria através de nossas ações. O homem
que age, ao estilo de Sócrates, é mais apto a enfrentar a vida do que o homem que
especula, ao estilo de Platão ou Aristóteles. Em quinto e último lugar, a redenção que
efetivamente conta está na vida eterna, ao lado de Deus. Mas ela também é possível
nesse mundo, embora isso aconteça apenas em momentos especiais, em que
conseguimos algum tipo de experiência extática. Essa última constitui uma
manifestação preliminar da experiência de salvação que nos levará à vida eterna.
O pensador que encarna de maneira paradigmática a postura da “alma medieval”
ibérica nos inícios da Idade Moderna é Francisco Sanches (1552-1623), médico e
filósofo, autor de Quod Nihil Scitur (1581). Com efeito, nessa obra ele assume uma
posição filosófica simultaneamente pessimista, cética e salvacionista, colocando-se
contra a escolástica aristotélica de sua época. Ora, essas são precisamente as
características que marcam a alma medieval. Em outro trabalho, denominamos
sanchista à postura assumida por esse pensador e aqueles que se lhe assemelham.
Procuramos também mostrar que o sanchismo se opõe à postura assumida por Pedro da
Fonseca (1528-1599), grande comentador de Aristóteles, podendo ser considerado um

4
dos iniciadores da chamada Segunda Escolástica Portuguesa, tendência que domina as
universidades lusitanas entre 1500 e 1750. O fonsequismo – tal é o nome que atribuímos
à postura de Fonseca e seus seguidores – é marcado por um retorno à exegese
escolástica do estagirita e conta com pensadores como Francisco Suárez (1548-1617),
Luis de Molina (1535-1600) e João de Santo Tomás (1589-1644).5 A predominância do
fonsequismo nas universidades lusitanas pode ser explicada pelo fato de que a
combinação de pessimismo, estoicismo, ceticismo e salvacionismo, marca registrada da
postura sanchista, não encontrou terreno fértil no ambiente disciplinado dessas
instituições. Do ponto de vista acadêmico, era mais conveniente restringir o sanchismo
ao domínio da experiência privada, adotando, no domínio público, a exegese de autores
clássicos, como Aristóteles. Esse apelo à interpretação de tipo escolástico tinha dupla
função: por um lado, compensava o ceticismo ibérico quanto à capacidade de
elaboração de sistemas, através do estudo das filosofias elaboradas por pensadores não-
ibéricos; por outro, mantinha sob controle a indisciplinada “alma medieval” e seu
sanchismo, através da interpretação meticulosa de textos relevantes da tradição
filosófica. Isso não matou o sanchismo, mas conferiu-lhe as características de uma
postura predominantemente subterrânea, marginalizada nas universidades e relegada,
por vezes, ao nível “inconsciente” das culturas portuguesa e brasileira. Isso não impede
que esporadicamente tal postura vença a repressão a que está submetida e surja através
de manifestações características. E essas últimas costumam vir expressas pelo viés
literário. Com efeito, o texto literário, em virtude da abertura maior para a criatividade e
a originalidade, é mais adequado para exprimir a falta de disciplina e a inquietação
existencial do sanchismo. Isso confere às literaturas portuguesa e brasileira a
propriedade de, ocasionalmente, expressar uma dimensão filosófica de tipo sanchista
que está a merecer maior consideração por parte dos estudiosos da história do nosso
pensamento. Não estamos dizendo que essa propriedade seja específica das literaturas
mencionadas, pois ela também pode caracterizar manifestações literárias de outras
culturas, mutatis mutandis. O que queremos salientar aqui é que o sanchismo constitui
um traço marcante da nossa literatura, que repercute na evolução histórica das ideias
filosóficas entre nós.

5
Margutti Pinto, P. R. As idéias de Francisco Sanches e suas ligações com o pensamento filosófico
brasileiro. A ser disponibilizado no próximo número da Revista Sképsis on Line, em <http://www.revista-
skepsis.com>. Os nomes de pensadores espanhóis foram incluídos nessa lista por dois motivos: a) todos
são ibéricos e possuem afinidades filosóficas que ultrapassam as fronteiras nacionais; b) todos viveram na
época da União Ibérica (1580-1640), que permitiu uma intensificação dessas afinidades.

5
Passemos para o caso específico do Brasil, berço da poesia de Augusto dos
Anjos. A partir das considerações acima, podemos dizer que o sanchismo da “alma
medieval” lusitana esteve presente em nossa cultura desde os inícios da colonização. Na
verdade, a inexistência de universidades no Brasil Colônia, associada à maior
inquietação existencial vivenciada pelos colonizadores e colonizados na vida imoral dos
trópicos, permitiu que o sanchismo se manifestasse inicialmente entre nós não como
tendência subterrânea, mas sim, de maneira sui generis, como a visão de mundo
explicitamente partilhada pela maioria. Em um estudo que fizemos a respeito,
mostramos que o brasileiro do Período Colonial viveu uma contradição entre os ideais
morais europeus, defendidos pelos jesuítas, e as mazelas praticadas pelos colonos. Do
ponto de vista filosófico, esse conflito gerou um tipo especial de consciência pessimista
de caráter cético-estóico-salvacionista. O pessimismo, o estoicismo e o ceticismo dessa
forma de consciência infeliz estão ligados à constatação da finitude, inutilidade e
transitoriedade das coisas, constatação essa que aponta em direção à renúncia aos
prazeres e vaidades deste mundo. O salvacionismo, por sua vez, envolve a solução do
conflito através do recolhimento na interioridade, na contemplação mística, para redimir
o homem ibero-tropical de seus pecados.6 Nessa perspectiva, as obras de Gregório de
Matos Guerra, Antônio Vieira, Matias Aires, Nuno Marques, Souza Nunes e Cláudio
Manoel expressam o sanchismo medieval no Brasil, cada uma à sua maneira e em
proporções diversas. Essa visão de mundo foi predominante entre nós até o s. XIX, em
que pese a divulgação de algumas idéias iluministas no s. XVIII, principalmente em
Minas Gerais.
Foi a criação das universidades no Brasil, com D. João VI, que abafou o
sanchismo e o tornou uma tendência marginal e subterrânea. Embora com relativo
atraso, o Brasil experimentou, da mesma maneira que Portugal, um período inicial de
afirmação do sanchismo e um período posterior de recalque do mesmo através da
atividade acadêmica oficial, de tendências fundamentalmente fonsequistas. Isso tornou
o sanchismo uma espécie de corrente de pensamento marginal, subterrânea, na evolução
do pensamento filosófico brasileiro. Do s. XIX em diante, essa corrente subterrânea foi
adotando formas diferentes à medida que evoluía historicamente, mas sempre se
expressou pelo viés literário. Desse modo, as obras de alguns literatos brasileiros podem

6
Ver nosso texto “Aspectos da visão filosófica de mundo no Brasil do Período Barroco (1601-1768)”. In:
O filósofo e sua história. Uma homenagem a Oswaldo Porchat. Campinas : Unicamp, Coleção CLE, vol.
36, 2003, p. 337-396.

6
ser interpretadas como representando manifestações do sanchismo subterrâneo. Isso
quer dizer que a compreensão adequada dessas obras exige que se faça uma ligação
entre o que elas expressam e as ideias das respectivas épocas históricas a que
pertencem, com o objetivo de desvelar a sua dimensão filosófica. É o que faremos a
seguir, a fim de estabelecer os parâmetros adequados para a compreensão do autor que
nos interessa.

III – O contexto filosófico da obra poética de Augusto dos Anjos

Para explicar os elementos filosóficos da poesia de Augusto dos Anjos, teremos


de remontar à época da transferência da Corte Portuguesa ao Brasil. Foi a partir dela que
a matriz sanchista do pensamento colonial sofreu sua primeira alteração. Com efeito, a
vinda de D. João VI ao Brasil levou a uma ruptura radical com a situação colonial até
então vigente, através da abertura dos portos e da criação de instituições de ensino nos
diversos níveis.
Nessa época, o importante pensador português Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-
1848) viveu entre nós. Ele nasceu em Lisboa e influenciou fortemente a evolução
filosófica e política de Portugal na primeira metade do s. XIX. Embora tenha
permanecido apenas doze anos no Brasil, de 1810 a 1821, também deixou entre nós a
sua marca, pois produziu aqui um de seus textos filosóficos mais importantes. Além
disso, suas ideias contribuíram decisivamente para a estruturação política do país por
ocasião da Independência e durante quase todo o Império.
Pinheiro Ferreira pode ser considerado o grande introdutor das ideias do
iluminismo lusitano no Brasil. Ele estudou no seminário da Ordem do Oratório, uma das
instituições mais importantes na divulgação do iluminismo em Portugal, fazendo
oposição aos jesuítas. Ali, ele foi fortemente influenciado pelas idéias de Verney, então
difundidas entre os oratorianos. Mais tarde, deu aulas de filosofia na Universidade de
Coimbra. Ali, procurou divulgar as idéias de Locke e Condillac, sendo, em virtude
disso, ameaçado de prisão. Em 1797, fugiu para a Inglaterra. Quando estava neste país,
conseguiu cargos diplomáticos que lhe permitiram trabalhar na França, na Holanda e na
Alemanha. Demitido de seu cargo em Berlim e, não podendo retornar a Portugal, que
estava ocupado pelos franceses, resolveu viajar para o Brasil, onde chegou em 1810. Em
1813, Pinheiro Ferreira deu uma série de conferências filosóficas no Real Colégio de

7
São Joaquim, no Rio de Janeiro. Essas conferências foram reunidas numa obra
intitulada Preleções Filosóficas.7
Nessa obra, Pinheiro Ferreira assume uma posição simultaneamente empirista e
racionalista, no espírito do ecletismo lusitano. Ele é empirista quanto à origem das
ideias e racionalista quanto ao papel criativo da razão na elaboração dos dados
sensoriais. Em virtude disso, ele vê a alma humana como um misto de sensibilidade e
espontaneidade. Embora a filosofia de Pinheiro Ferreira tenha pretensões sistemáticas,
ela não resolve adequadamente a aporia entre empirismo e racionalismo. Isso fez com
que seus sucessores brasileiros, na época do Império, se dividissem em duas tendências
opostas, que podem ser sumarizadas como segue. De um lado, alguns deles assumiram
uma posição espiritualista, mais voltada para o racionalismo. Esse é o caso do
ecletismo, defendido por autores como Francisco de Mont’Alverne (1784-1858),
Eduardo Ferreira França (1809-1857) e Antônio Pedro de Figueiredo (1814-1859), e do
idealismo, defendido por autores como Gonçalves de Magalhães (1811-1882). O
ecletismo espiritualista foi o primeiro movimento filosófico plenamente estruturado no
país, elaborando uma livre interpretação e adaptação das ideias de Victor Cousin à
realidade brasileira. O nosso ecletismo adota um espiritualismo de base psicológica,
inspirado em Maine de Biran, e o funde com princípios sensualistas, inspirados em
Locke. De outro lado, alguns dos sucessores brasileiros de Pinheiro Ferreira assumiram
uma posição cientificizante, mais voltada para o empirismo. Tal é o caso do positivismo
comtiano, assumido por autores como Benjamin Constant (1833-1891), Miguel Lemos
(1854-1916), Teixeira Mendes (1855-1927) e Pereira Barreto (1840-1923). Para essa
forma de positivismo, a ciência é exaltada romanticamente como única manifestação do
infinito, assumindo por vezes um caráter religioso. A ciência é glorificada, mas de
forma tal que passa a possuir uma dimensão religiosa, o que a aproxima do ecletismo
espiritualista.
Com a proclamação da República, o positivismo comtiano venceu o ecletismo
espiritualista no Brasil. Nessa época, contudo, o positivismo já enfrentava a oposição do
monismo evolucionista da Escola de Recife, representada por Tobias Barreto (1839-
1889) e Silvio Romero (1851-1914). Esses autores adotam o monismo evolucionista,
sob a influência de Haeckel, Spencer, Schopenhauer e Darwin. Tal monismo toma o
conceito de evolução como fundamento de uma teoria geral da realidade natural e como

7
Pinheiro Ferreira, S. Preleções Filosóficas sobre a Teórica do Discurso e da Linguagem, a Estética, a
Diceósina e a Cosmologia. Rio: Imprensa Régia, 1813.

8
manifestação de uma realidade metafísica infinita e ignota: o finito surge como
manifestação ou revelação do infinito.
A título de ilustração, exporemos a seguir algumas das ideias de Ernst Haeckel
(1834-1919). Esse autor foi biólogo, naturalista, filósofo, físico, professor e artista. Do
ponto de vista filosófico, algumas de suas obras mais significativas são Os Enigmas do
Universo (escrito entre 1895 e 1899) e Formas Artísticas da Natureza (1904). No
primeiro desses livros, Haeckel defende uma filosofia monista, para a qual todos os
enigmas do universo se reduzem a um só, que abrange todos os demais: o problema da
substância.8 O monismo só reconhece uma única substância no universo, que é
simultaneamente Deus e Natureza: o deus intracósmico do monismo nos conduz ao
panteísmo.9 Inspirado em Spinoza, o monismo haeckeliano sustenta que a matéria e a
energia são os dois atributos fundamentais do ente cósmico divino enquanto substância
universal.10 Haeckel defende uma concepção materialista da alma, segundo a qual não
há uma barreira psicológica entre o homem e os animais, que diferem apenas em grau.11
A unidade psicológica do mundo orgânico resulta do fato de que a vida orgânica em
todos os seus graus é produto das mesmas forças naturais elementares. 12 A alma nada
mais é do que o conjunto das funções orgânicas do plasma e sua origem tem explicação
fisiológica.13 A imortalidade da alma é um mito.14 A lei cosmológica fundamental
eterna é a lei da substância, que compreende os princípios da conservação da matéria e
da energia.15 Há uma unidade fundamental entre essas duas leis, que são aspectos
diferentes do mesmo cosmo.16 A origem do universo é explicável pela teoria da
evolução. Através dessa última, é possível explicar a aparição natural do universo, da

8
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello &
Irmão Ltda., 1926, p. 20.
9
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello &
Irmão Ltda., 1926, p. 25.
10
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 26.
11
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 126.
12
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 131.
13
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 132; 163-5.
14
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 165.
15
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 251; 285.
16
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 254.

9
terra, dos organismos vivos e do homem.17 A luta pela vida domina a história dos seres
vivos, sem a intervenção de qualquer ordem moral: não há uma providência divina
atuando na evolução do universo.18 As crenças religiosas são todas superstições e a
verdadeira revelação está na ciência da natureza.19 O cristianismo é inconciliável com a
ciência.20 O monismo satisfaz a necessidade moral do nosso sentimento e a necessidade
lógica dos nossos juízos.21 Mas o ideal do Bem coincide na religião monista com a
virtude cristã tal como concebida no cristianismo primitivo, baseado na compaixão e na
fraternidade.22 Quanto ao ideal da Beleza, o monismo se opõe ao cristianismo, que vê o
mundo desprovido de valor.23 A arte monista descobre as belas formas da vida.24 A
Igreja do monismo é a própria natureza.25 Não há dois mundos separados, o material e o
moral.26 A lei ética fundamental consiste em estabelecer um equilíbrio, conforme à
natureza, entre o egoísmo e o altruísmo. Ela pode ser resumida nos dois princípios: faz
ao outro o que queres que te façam e ama ao próximo como a ti mesmo.27 Haeckel
pensa que o seu monismo destrói os três grandes dogmas da filosofia dualista: o Deus
pessoal, a imortalidade da alma e o livre arbítrio. Todavia, no culto da Verdade, da
Beleza e do Bem, que forma o centro da religião monista, encontramos uma tripla
compensação para os mitos destruídos. Nessa perspectiva, o monismo supera a
contradição entre ciência e fé.28
Quanto ao livro Formas Artísticas da Natureza, trata-se de uma tentativa de
ilustrar as belas formas da vida. De acordo com Gregory Moore, Haeckel tenta explicar,

17
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 281 ss.
18
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 317.
19
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 358.
20
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 383.
21
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 388.
22
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 394.
23
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 395.
24
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 396-7.
25
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 402.
26
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 405.
27
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 408-9.
28
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 442-3.

10
através do monismo, não apenas a beleza natural, mas também a criatividade humana.
Ambas são manifestações visíveis de uma força criadora intrínseca cuja ação permeia o
universo e que ele chama de impulso para a arte (Kunsttrieb). Schopenhauer emprega
esse termo para referir-se à conduta espontaneamente criadora observável em animais e
Schiller o aplica ao impulso humano em direção à arte. Mas Haeckel une os dois
sentidos numa perspectiva evolucionista, considerando a arte humana simplesmente
uma expressão mais refinada dos mesmos impulsos criativos primordiais que todos os
organismos possuem em maior ou menor grau. Na verdade, esse impulso criativo é uma
força vital supra-individual, que se identifica com os processos da própria vida. Para
Haeckel, todas as estruturas orgânicas possuem uma alma, que resulta da ação de uma
substância misteriosa, o psicoplasma, base da vida mental. Apenas a teoria da célula-
alma pode explicar a atividade plástica do ser vivo, o seu impulso para a arte. Nessa
perspectiva, as funções artísticas já estão presentes na célula mãe – inconscientemente,
nos animais inferiores, e conscientemente, nos animais superiores e no homem.29 O
livro Formas Artísticas da Natureza constitui uma tentativa de ilustrar visualmente essa
estética evolucionista, através duma seleção de cem litogravuras detalhadas e coloridas
de animais e criaturas do mar. Cada litografia apresenta um grupo de animais
pictoricamente dispostos, segundo critérios de simetria e organização, com o objetivo de
causar o maior impacto visual possível. Dentre os organismos retratados, contam-se
radiolários, cnidários, anêmonas do mar, medusas, etc.30
Herbert Spencer (1820-1903), que merece breve menção aqui, vai para a mesma
direção que Haeckel. Esse pensador britânico também constrói uma filosofia baseada na
teoria da evolução, tentando fazer através dela uma articulação dos resultados das
diversas ciências. Seu objetivo é elaborar uma teoria do progresso como fato cósmico
universal, colocando em relevo o valor infinito e misteriosamente religioso desse
mesmo progresso. A evolução vai do simples ao complexo, através de diferenciações
sucessivas. Sua realidade, mais velada do que revelada, possui um caráter religioso.
Além disso, a realidade última e absoluta nos é inacessível. Nessa perspectiva, existe a
possibilidade de um encontro entre religião e ciência: uma vez que ambas têm como
base a realidade do mistério, elas não podem ser inconciliáveis.

29
Moore, Gregory. Nietzsche, Biology and Metaphor. Cambridge: Cambridge Un. Press, 2002, p. 89-90.
30
Há algumas versões de Formas Artísticas da Natureza na internet. Uma delas pode ser acessada no
endereço <http://caliban.mpiz-koeln.mpg.de/haeckel/kunstformen>. Acesso em 03 de fevereiro de 2010.

11
Como se pode ver, o monismo evolucionista, tanto na versão haeckeliana como
na spenceriana, tenta unificar o materialismo e o espiritualismo, eliminando a oposição
entre ambos e conduzindo a uma visão otimista do universo. Desse modo, embora se
oponha ao comtismo, esse monismo constitui uma variante do positivismo romântico
em geral.
No Brasil, em oposição a essas correntes, surgiu na época inicial da República
um novo movimento espiritualista, liderado por Farias Brito (1862-1917). Esse
pensador defendeu uma filosofia original, que pode ser caracterizada como um
pampsiquismo panteísta. Para ele, não há matéria, mas apenas espírito, que se identifica
com Deus. Embora não fosse católico nem cristão, Farias Brito deu novo alento ao
movimento espiritualista, inspirando posteriormente os católicos Jackson de Figueiredo
(1891-1928) e Plínio Salgado (1895-1975). Por motivos de espaço, não
desenvolveremos mais esse ponto.
Com base na exposição acima, podemos dizer que, durante o Império e nos
inícios da República, o pensamento filosófico brasileiro foi afetado por um conflito que
tem suas origens na oposição não-resolvida entre racionalismo e empirismo no sistema
de Pinheiro Ferreira. No Império, essa oposição assumiu a forma de um embate entre o
ecletismo espiritualista e o positivismo comtiano. Na República, essas correntes
assumiram novas formas e a oposição se deu entre o monismo evolucionista e o
pampsiquismo panteísta. Essa situação aporética deu margem ao aparecimento de
manifestações literárias de caráter sanchista nas épocas mencionadas. No Império, a
postura sanchista é representada pela obra de Machado de Assis (1839-1908). Esse
autor expressa uma visão de mundo simultaneamente cética e pessimista, sem apelo à
espiritualidade, mas que busca a redenção na experiência estética. Sua crítica irônica ao
humanitismo se dirige a todas as formas de positivismo e evolucionismo romântico de
seu tempo. Com seu pessimismo cético e sua busca da redenção estética, Machado
reviveu a matriz sanchista colonial, dando-lhe nova forma. Por esse motivo, sua obra
pode ser considerada uma manifestação literária do pensamento subterrâneo no s.
XIX.31
Nos inícios da República, a postura sanchista é representada pela poesia de
Augusto dos Anjos. Ele pode ser associado a essa postura porque, como diz Gilberto

31
Para maiores detalhes a respeito da visão de mundo de Machado de Assis, ver nosso trabalho
“Machado, um cético pirrônico? Um debate com Maia Neto”. Revista Sképsis on Line, v.1, p.183 - 211,
2007, em <http://www.revista-skepsis.com>.

12
Freyre, juntou preocupações filosóficos aos seus poemas.32 Não é por outro motivo que
Antônio Houaiss caracteriza a sua poesia como filosofante.33 Pretendemos mostrar que
essa poesia vai em direção análoga à dos romances de Machado em suas relações com o
sanchismo, pois constitui uma resposta literária à encruzilhada filosófica em que se
encontrava o pensamento filosófico brasileiro na época inicial da República, no final do
s. XIX e inícios do s. XX. Para tanto, iremos examinar a seguir a dimensão filosófica da
poesia de Augusto dos Anjos, em que um turbilhão de sentimentos desenfreados se
mostra paradoxalmente engessado na forma rígida do decassílabo.

IV – A visão de mundo em Augusto dos Anjos

Nosso autor nasceu em 20/04/1884, no Engenho Pau d’Arco, na Paraíba do


Norte. Formou-se em Direito pela Faculdade de Recife em 1907, mas nunca advogou.
Casou-se com Ester Fialho, em 1910, e com ela teve três filhos, o primeiro dos quais
nasceu morto. No mesmo ano de seu casamento, mudou-se para o Rio de Janeiro e lá
lecionou em diversos estabelecimentos. Publicou quase toda a sua obra poética no livro
Eu, em 1912. No ano seguinte, transferiu-se para Leopoldina e ali trabalhou como
diretor de grupo escolar. Augusto dos Anjos morreu em Leopoldina, em 12/11/1914.
Os fatos acima, relativos à vida de Augusto dos Anjos, são relatados pelos seus
críticos de maneira mais ou menos consensual. Há outros fatos, contudo, que são
apresentados e interpretados por esses mesmos críticos de modo discrepante. Órris
Soares, seu amigo paraibano, por exemplo, o descreve como sofredor desde o
nascimento, à maneira de um “pássaro molhado”.34 Seu único livro, o Eu,
corresponderia a um retrato integral do autor, enquanto poeta trágico, para quem a
felicidade estaria no aniquilamento nirvânico.35 Sua obra seria marcada pela ausência do
amor e sua tristeza decorreria de três fatores: a própria morte que trazia consigo,
representada pela tuberculose; a herança das três raças tristes cuja mescla constituiu
nosso povo; a precária condição cultural do país, marcado pela distância entre o

32
Freyre, Gilberto. “Nota sobre Augusto dos Anjos”. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.). Augusto dos
Anjos. Textos Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 135.
33
A expressão poesia filosofante é de Antônio Houaiss. Ver Houaiss, A. “Sobre Augusto dos Anjos”. In:
Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.). Augusto dos Anjos. Textos Críticos. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1973, p. 322-3.
34
Soares, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.) Augusto dos Anjos:
Textos Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 107.
35
Soares, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.) Augusto dos Anjos:
Textos Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 111; 113.

13
intelectual e o público e pelas limitações de uma educação fundada em ideias e livros
estrangeiros.36 Numa linha semelhante, Marinalva da Silva descreve Augusto dos Anjos
como uma pessoa desequilibrada. Uma das possíveis causa disso estaria no fato de que
sua mãe, Dona Mocinha, teria experimentado um forte trauma quando grávida dele: a
perda de um irmão que estudava medicina, chamado Augusto. Ao nascer, o poeta teria
herdado não só o nome do tio, mas também o trauma de sua perda. 37 Além disso, ele
teria experimentado na juventude uma paixão de desfecho infeliz, que teria contribuído
para abalar sua já desequilibrada personalidade.38 Marinalva da Silva se refere a Amélia,
uma moça de condição humilde que teria tido um caso de amor com o poeta, a ele
entregando-se. A família, zelosa de sua posição social, interferiu na relação, fazendo
com que ela se casasse com outro. Isso teria desencadeado uma profunda crise em
Augusto dos Anjos.39 Como se não bastasse isso, outros acontecimentos teriam
contribuído para reforçar seu desequilíbrio. Em primeiro lugar, ele era extremamente
precoce e, aos dezessete anos, já conhecia seis idiomas. Essa precocidade estava
associada a uma sede de saber insaciável, que o levava a ler muito e a sofrer
psicologicamente com os efeitos duma busca sem fim. Para poupá-lo, seu pai, o Dr.
Alexandre, seu primeiro professor, que o alfabetizara, resolveu emprestar ou então doar
os livros prediletos do filho. Esse fato teria deixado Augusto bastante revoltado,
exigindo dele muito esforço para superar a situação.40 Em segundo lugar, ele teve de
deixar a Paraíba que tanto amava em 1911, no mesmo ano de seu casamento, porque o
Engenho do Pau d’Arco falira e fora vendido após a morte do administrador, o padrasto
de sua mãe. Para sustentar a família, Augusto só tinha conseguido uma modesta cátedra
no Liceu Paraibano. Mesmo assim, foi posteriormente preterido por outro candidato.
Deixou a Paraíba com o coração despedaçado e teve de lutar muito para sobreviver no
Rio e depois em Leopoldina. A dimensão do seu sofrimento só pode ser medida se
levarmos em conta que, em 1914, padecendo de doença pulmonar no estágio terminal,
fez a esposa prometer retornar à Paraíba após sua morte, para que ali pudessem ser
educados os seus dois filhos, Glória e Guilherme.41 Isso significa que Augusto dos

36
Soares, Órris. Elogio de Augusto dos Anjos. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.) Augusto dos Anjos:
Textos Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 118-9.
37
Silva, M. Freire da. Augusto dos Anjos. Vida e Poesia. João Pessoa: Ideia, 2001, p. 31.
38
Silva, M. Freire da. Augusto dos Anjos. Vida e Poesia. João Pessoa: Ideia, 2001, p. 41.
39
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 79 ss.
40
Silva, M. Freire da. Augusto dos Anjos. Vida e Poesia. João Pessoa: Ideia, 2001, p. 33.
41
Silva, M. Freire da. Augusto dos Anjos. Vida e Poesia. João Pessoa: Ideia, 2001, p. 44; 47.

14
Anjos viveu trinta anos amargurado e descrente, além de acometido pela doença.42 É
verdade que, no atestado de óbito de Augusto dos Anjos consta explicitamente que ele
morreu de pneumonia e não de tuberculose.43 Contra isso, Wilson Martins chega a dizer
que, mesmo não sendo tuberculoso, o poeta não só era visto como tal pelos seus
contemporâneos, mas também se sentia tuberculoso, porque, como leigo, confundia as
manifestações da pneumonia com as dessa doença.44 José Escobar Farias, por sua vez,
afirma que, embora a doença tenha sido o fio condutor de Augusto dos Anjos, a sua
poesia não seria diferente se não houvesse a doença.45
Ademar Vidal, que, quando adolescente, tomou aulas particulares com Augusto
dos Anjos com a finalidade de prestar exames de Madureza, oferece um depoimento
sobre seu relacionamento com nosso autor que vai em direção oposta a Órris Soares e a
Marinalva da Silva.46 Vidal contesta a imagem mais ou menos costumeira de Augusto
dos Anjos como uma pessoa de temperamento melancólico e doentio. Vidal reconhece
que está relatando suas impressões de adolescente e que talvez não tivesse então
maturidade suficiente para perscrutar em profundidade a personalidade do poeta. Além
disso, teve com ele uma convivência limitada, pois só o encontrava nas horas marcadas
para as aulas particulares na casa do poeta. Mesmo assim, Vidal se sente autorizado a
defender sua opinião, já que, durante os nove meses que duraram as aulas, Augusto dos
Anjos sempre o recebeu com a mesma atitude harmoniosa e alegre. Ora, isso não
aconteceria se o poeta vivesse mergulhado na tristeza, como afirmam alguns críticos.
Nada indicava que o poeta sofresse de alguma perturbação maior e isso é comprovado

42
Silva, M. Freire da. Augusto dos Anjos. Vida e Poesia. João Pessoa: Ideia, 2001, p. 44.
43
Declaração de Óbito de Augusto dos Anjos. In: Anjos, A. dos. Obra Completa. Volume Único.
Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 802.
44
Martins, W. “Augusto dos Anjos”. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.). Augusto dos Anjos. Textos
Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 333. Na verdade, o máximo que sabemos está
relatado na carta de Ester a Dona Mocinha, em que a primeira relata à segunda o falecimento do poeta.
Ali, somos informados de que, após dois dias de cama com muita febre, Augusto foi submetido a um
exame de escarro e perguntou ao médico se não estava infectado com o bacilo da tuberculose. O médico o
tranquilizou, dizendo-lhe que era o bacilo da pneumonia e que ele nada tinha de tuberculoso (Ver “Carta
de Ester Fialho à mãe do poeta sobre o seu falecimento”. In: Anjos, A. dos. Obra Completa. Volume
Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 803). Quanto
à tese de que Augusto dos Anjos se via e era visto pelos outros como tuberculoso, ela não passa de uma
especulação de Wilson Martins, demandando comprovação.
45
Farias, J. E. “A poesia científica de Augusto dos Anjos”. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.).
Augusto dos Anjos. Textos Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 271.
46
A bem da verdade, o grande inspirador da interpretação tradicional da poesia de Augusto dos Anjos é
Órris Soares. Marinalva Silva segue-lhe os passos, embora inclua em sua interpretação uma série de fatos
da vida do poeta que não parecem ajustar-se completamente à mesma, como, p. ex., as suas experiências
mediúnicas, o seu catolicismo, a sua grande capacidade de amar, seu relacionamento com a mulher, os
filhos e a mãe.

15
por suas cartas à família.47 No retrato feito por Vidal, talvez o maior sinal de
excentricidade na vida do poeta esteja na sua peculiar maneira de compor, andando de
um lado para outro, falando em voz alta, sozinho. Sua irmã Francisca, a Iaiazinha, dizia
que ele, nesses momentos, estava “doidando”.48 Além de não ter vislumbrado qualquer
sinal de doença em Augusto dos Anjos, Vidal não testemunhou a magreza “esquelética”
a ele geralmente atribuída.49 De acordo com Vidal, a tuberculose do poeta foi uma
ficção inventada por alguns de seus intérpretes, que não o conheceram como pessoa e
tiveram apenas os seus versos como elemento único para julgamento. Na realidade, ele
morreu de pneumonia dupla, como pode ser comprovado pelo laudo assinado pelos
doutores Custódio Junqueira, Filipe Nunes Pinheiro e Costa Velho.50 Quanto ao
episódio da desilusão amorosa no relacionamento com Amélia, Vidal também o
interpreta como tendo gerado uma grave crise na vida do poeta, mas de maneira
diferente daquela proposta por Marinalva da Silva. Por um lado, Augusto dos Anjos
teria ficado melancólico na ocasião do incidente, embora esse estado de alma tenha
passado com o tempo. Além disso, a desilusão não teria afetado o seu relacionamento
com os pais, que continuou amoroso como sempre.51 Por outro lado, o episódio de
Amélia seria responsável pela existência de duas fases em sua poesia. Na primeira,
Augusto dos Anjos escreveu sobre temas que não envolviam preocupações filosóficas
ou científicas, falando do amor e da mulher. Para comprovar isso, Vidal cita e analisa
alguns poemas dos anos 1899-1909, nos quais esses temas estão presentes. Neles
também podem ser encontradas referências veladas a Amélia e à frustração amorosa,
bem como às dúvidas céticas que começaram a abalar o pensamento do poeta. Na
segunda fase, Augusto dos Anjos escreveu sobre os temas tenebrosos que se encontram
no Eu, expressando a revolta que lhe ficou na alma, mas procurando apresentar-se como
um ser “superior”, não marcado pelos desenganos amorosos. Vidal argumenta que a
vida de Augusto dos Anjos oferece dele uma imagem oposta à do materialista
pessimista e cético que encontramos em seu único livro publicado.52 Com efeito, o seu

47
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 16-7.
48
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 17.
49
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 23.
50
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 54-7. Na verdade, a
informação que pudemos encontrar na Declaração de Óbito de Augusto dos Anjos é que o atestado foi
assinado pelo Dr. Custódio Junqueira. Seguem-se as assinaturas de Garibaldi Cerqueira, escrivão interino,
e de Eduardo de Sousa Werneck, amigo que compareceu ao cartório com o atestado de óbito. Ver
“Declaração de Óbito de Augusto dos Anjos”. In: Dos Anjos, A. Obra Completa. Volume Único.
Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994, p. 802.
51
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 79-80.
52
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 39-58.

16
amor por Amélia parece ter sido superado, pois mais tarde se casou e foi bastante feliz
com a mulher e os filhos. E Amélia não foi o seu único caso. Vidal nos conta que teve
um filho com a morena Filomena. Ele se chamava Manuel, tendo sido tratado
carinhosamente pela família do poeta. E este não teria sido o único fruto dos momentos
amorosos do poeta, um “mulherengo discreto”.53 Além disso, o amor de Augusto pelos
pais, pelos irmãos, pelos amigos, pela mulher e pelos filhos está devidamente
comprovado nas cartas que escreveu, conforme mencionamos. Nessa perspectiva, o Eu
seria uma obra anterior ao casamento do poeta, quando ele se achava ainda agrilhoado
pelo sofrimento causado pela desilusão amorosa. Outra informação importante está em
que o poeta era católico praticante. Para ilustrar isso, Vidal se refere à trezena de Santo
Antônio que Dona Mocinha fazia realizar no oratório da casa grande e informa que era
Augusto dos Anjos quem puxava a ladainha em latim, cantando com entusiasmo. Outro
fato capaz de ilustrar até que ponto ia o espiritualismo do poeta está em que, numa
determinada época, ele chegou a realizar sessões espíritas na sala de jantar da casa
grande, desempenhando a função de médium. Essas sessões prosseguiram por algum
tempo, mas acabaram produzindo, como consequência, uma atmosfera psicológica em
que qualquer fenômeno inusitado era associado a assombrações e a maus espíritos. As
pessoas se tornaram excessivamente temerosas e a paz do ambiente familiar ficou
prejudicada. Em virtude disso, Dona Mocinha proibiu a continuação dessas sessões.54
Apesar desse desvio do catolicismo estrito, Augusto dos Anjos parece ter mantido sua fé
por praticamente toda a sua vida. Sob esse aspecto, Vidal refere à possibilidade de ter o
poeta solicitado um padre para confessar-se no leito de morte.55 Ora, isso efetivamente
ocorreu e é descrito com os seguintes termos, na carta que sua esposa Ester escreveu a
Dona Mocinha, relatando-lhe a morte do filho Augusto: “pediu-me para chamar o
vigário, e confessou-se tranquila e calmamente”.56 Nessa mesma carta, Ester menciona a
calma e resignação do poeta no leito de morte, bem como o grau de amizade e simpatia
em que era tido em Leopoldina, apesar dos poucos meses de residência na cidade.57
Nessa mesma direção, o retrato abaixo, que Vidal faz de Augusto dos Anjos, merece ser
citado em sua totalidade:

53
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 86; 90.
54
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 69-70.
55
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 58.
56
Carta de Ester Fialho à mãe do poeta sobre o seu falecimento. In: Anjos, A. dos. Obra Completa.
Volume Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 804.
57
Carta de Ester Fialho à mãe do poeta sobre o seu falecimento. In: Anjos, A. dos. Obra Completa.
Volume Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 804.

17
[ele] participava do cotidiano sem maiores altos ou baixos, tomando parte na
existência social da família, ou fora dela, com a mesma naturalidade, fé religiosa
e alegria que a luta proporciona. Por igual, suportando bem as injustiças, os
dissabores, não desanimando, sempre agitado por energias novas, gostando
fervorosa e amorosamente da vida. Pois que soube enfrentar os imprevistos,
jamais se abatendo, nada de esmorecimento, entregando-se ao trabalho como
medida de justificação necessária, amando as mulheres e, portanto, nada
havendo em sua breve passagem pela terra que não estivesse dentro das
normalidades inerentes ao próprio homem comum.58

Como podemos ver, as imagens apresentadas acima são contraditórias e não


parecem corresponder à mesma pessoa. Revelando estar ciente disso, Francisco de Assis
Barbosa, em suas Notas Biográficas, afirma que os amores de Augusto dos Anjos, bem
como sua neurose ou suas doenças “constituem ainda enigmas biográficos mais ou
menos nebulosos”.59 Faltam dados objetivos que permitam a elaboração de um retrato
póstumo do poeta sem as habituais deformações. Mas Assis Barbosa se aventura a
sugerir que o verdadeiro retrato seria o de um homem simples, como a maioria dos
homens, sem anormalidades insuperáveis. O seu grande problema seriam os seus
excepcionais dotes poéticos, que o levaram a fazer de sua arte o eixo de sua existência e
com isso “viveu perplexo e indefeso diante de problemas e dificuldades materiais”.60
Mencionamos a discrepância entre os retratos de Augusto dos Anjos porque
acreditamos que ela se reflete na interpretação de sua poesia, a qual, como diz Ledo Ivo,
está condicionada pela visão de mundo de seu autor.61 Ora, essa última se liga
diretamente à vida de Augusto dos Anjos. Desse modo, a sua biografia precisa ser
considerada com mais cuidado, pois poderá fornecer os elementos de que precisamos
para decidir entre as duas alternativas que se apresentam: era ele um materialista
pessimista cético ou um espiritualista decepcionado que escreveu versos materialistas?
A linha de interpretação mais tradicional, inspirada em Órris Soares, opta pela primeira
alternativa, procurando conciliar uma versão parcial da biografia do poeta com a poesia
que ele produziu. Trata-se de um procedimento bastante natural, quase espontâneo, mas
que se apóia em dados não muito seguros e, além disso, não leva em conta todos os

58
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 129.
59
Assis Barbosa, F. de. Notas Biográficas. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.). Augusto dos Anjos.
Textos Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 27.
60
Assis Barbosa, F. de. Notas Biográficas. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.). Augusto dos Anjos.
Textos Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 27.
61
Ivo, L. “As diatomáceas da lagoa”. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.). Augusto dos Anjos. Textos
Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 325.

18
fatos relevantes da vida de Augusto dos Anjos, alguns dos quais, como vimos, não
parecem adequar-se de maneira satisfatória à interpretação proposta.
A linha de interpretação que estamos oferecendo aqui assume o desafio de
entender a poesia de Augusto dos Anjos e seu significado filosófico em relação a todos
os acontecimentos importantes de sua vida. Para atingir esse objetivo, teremos de
considerar não apenas a obra Eu e Outras Poesias, mas também os Poemas Esquecidos,
os Versos de Circunstância a sua prosa dispersa e a sua correspondência. Tal
procedimento permitirá a elaboração de uma hipótese mais rica e menos simplista do
que a tradicional, pois Augusto dos Anjos parece possuir uma personalidade bem mais
complexa do que aquela que lhe é usualmente atribuída. Quando considerada em sua
totalidade, sua obra apresenta uma visão de mundo mais complexa e aparentemente em
contradição com o monismo materialista espelhado apenas no Eu e Outras Poesias.
Nessa perspectiva, ele não é um poeta pessimista, materialista e ateu convicto cuja obra
se explicaria sobretudo pela tuberculose que o perturbava. Essa leitura se acha
dominada pelo fascínio exercido pelo Eu considerado isoladamente e não leva em conta
os demais dados importantes para obtermos uma interpretação mais adequada. 62 A
questão a que temos de responder aqui envolve encontrar uma solução para o seguinte
problema: como explicar que uma pessoa dotada da crença católica, amável e amorosa
para com a família, capaz de relacionamento fácil, embora possuidora de sensibilidade
exacerbada, possa ter escrito os versos materialistas, evolucionistas e profundamente
pessimistas do Eu? O problema também pode ser colocado nos seguintes termos: como
conciliar o Eu e Outras Poesias com todos os fatos da vida de Augusto dos Anjos, seus
Poemas Esquecidos, seus Versos de Circunstância, sua prosa esparsa e sua
correspondência trocada com a família e os amigos? Há uma oposição aqui que deve ser
apenas aparente e precisa ser explicada através de uma hipótese apropriada.
De acordo com a interpretação que estamos sugerindo, Augusto dos Anjos é na
verdade aquele indivíduo afável, amoroso e católico mencionado acima, conforme
podemos inferir com base não só no conjunto de sua obra, mas também nos fatos de sua
vida. Esse indivíduo, um espiritualista cristão, foi porém atormentado durante um tempo
razoável por crises de intenso pessimismo e ceticismo materialista, em função do

62
O Evangelho da Podridão, de Chico Viana, constitui uma ilustração desse fato: apesar de apresentar
intuições profundas em suas interpretações psicanalíticas da poesia anjiana, o autor reduz sua análise ao
Eu, o que contribui para a produção de um retrato apenas parcialmente correto, seja da personalidade de
Augusto dos Anjos, seja da sua correspondente visão de mundo. Infelizmente, não poderemos discutir
esse ponto aqui. Ver Viana, Chico. O Evangelho da Podridão: Culpa e Melancolia em Augusto dos
Anjos. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1994.

19
sofrimento proveniente da desilusão amorosa no caso Amélia. Os versos que ele
escreveu neste estado de espírito compõem exclusivamente o Eu e as Outras Poesias.
Isso foi possível porque a mente de Augusto dos Anjos, em virtude da educação ao
mesmo tempo católica e cientificizante que recebeu, tendia para o dualismo e sempre
apontava na direção de aporias entre o espiritualismo e o materialismo, deixando-o
sujeito às crises mencionadas. Sua formação nada mais foi do que um reflexo do
contexto cultural brasileiro em que o poeta estava inserido e que nele produziu um
temperamento filosoficamente ambivalente. Esse contexto envolveu, como já vimos, a
oposição entre o monismo evolucionista e o espiritualismo, nova forma assumida pela
oposição entre ecletismo espiritualista e positivismo comtiano dos inícios do Império, a
partir da dicotomia não resolvida pelo sistema de Pinheiro Ferreira. Esse contexto
também está ligado a uma mudança social de grande monta no país, que reforçou o
conflito no temperamento do poeta. Com efeito, Augusto dos Anjos, pertencente às
classes dominantes na Paraíba, vivenciou na própria carne a decadência do engenho
familiar, fenômeno que se tornou comum após a abolição da escravidão e a proclamação
da República. Por esse motivo, ele viveu durante uma fase de transição, em que o
apreço pelo passado abastado conflitava com o presente desesperador e só encontrava
algum alívio na expectativa por um futuro melhor. Toda essa ambivalência eclodiu em
forma de crise existencial por ocasião da perda de Amélia, o seu grande amor juvenil.
Foi em função dessa crise que ele compôs seus poemas pessimistas e cientificizantes,
publicando-os depois em seu único livro em vida.
Se nossa hipótese for verdadeira, então as poesias do Eu podem ser consideradas
o resultado de um período relativamente longo, entre 1899 e 1910, em que Augusto dos
Anjos destilou todo o fel da experiência dolorosa de ter abandonado o grande amor de
sua vida à própria sorte para atender às conveniências familiares defendidas pelos pais.
Disso resultou o tom profundamente melancólico do Eu. Conforme mencionamos, Órris
Soares indica três causas para a melancolia do poeta: a tuberculose, o meio formado por
três raças tristes e a educação a partir de livros estrangeiros. Nossa hipótese, porém,
elimina a primeira delas como falsa e atenua grandemente a importância das outras
duas. Na verdade, a grande causa da melancolia anjiana no Eu e nas Outras Poesias está
no sentimento de frustração, desespero e culpa em virtude da desilusão amorosa. É
verdade que essa última se traduz em manifestações de pessimismo, ceticismo,
perplexidade e materialismo, mas tais manifestações devem ser interpretadas mais como
desabafos poéticos de um espiritualista atormentado pelo sofrimento e pela dúvida do

20
que de um monista evolucionista ateu desiludido com o mundo. Nessa perspectiva,
conforme mencionamos, o Eu constitui uma seleção enviesada de poemas. Do conjunto
de sua obra poética, Augusto dos Anjos parece ter escolhido deliberadamente os mais
céticos e pessimistas para compor a primeira edição dessa obra. E a seleção
representada pelas Outras Poesias, publicadas juntamente com o Eu por ocasião da
segunda edição, foi feita por Órris Soares, que, influenciado por uma falsa imagem do
poeta, adotou os mesmos critérios enviesados a primeira edição. Isso significa que o Eu
e as Outras Poesias não constituem um retrato completo de Augusto dos Anjos, mas
apenas uma persona por ele encarnada. É verdade que essas duas seleções representam
uma maioria significativa com relação à totalidade dos poemas produzidos pelo poeta.
Todavia, para obtermos o retrato completo, teremos de buscar informações
complementares no restante de sua obra, por mais reduzido que ele seja. Por motivos de
espaço, iremos restringir essa busca aos significativamente chamados Poemas
Esquecidos, que ficaram de lado nas duas seleções mencionadas acima e que oferecem
uma visão menos trágica – por vezes até surpreendentemente otimista – do amor, além
de inesperadas declarações de fé em Deus, em Cristo e na Igreja. De qualquer modo,
podemos afiançar que o restante da produção do poeta, principalmente sua
correspondência, revela a pessoa afável e amorosa a que Ademar Vidal se refere.63
O retrato acima é compatível com as descrições de Augusto dos Anjos, feitas por
Vidal e Ester Fialho. O retrato é compatível também com os relatos da religiosidade e
de certos aspectos importantes do temperamento do poeta. A respeito desses aspectos,
informações muito úteis podem ser extraídas das respostas dadas pelo poeta ao
questionário que o Dr. Licínio Santos tinha distribuído a dezoito literatos brasileiros.64
Ali, a respeito de seus antecedentes hereditários, Augusto dos Anjos informa: “meu pai,
vítima da surmenage [excesso de trabalho] morreu de paralisia geral e minha mãe é
excessivamente nervosa”. Sobre sua infância, ele afirma: “desde a mais terra idade eu
me entreguei exclusivamente aos estudos, relegando por completo tudo quanto concerne
ao desenvolvimento, numa atmosfera de rigorosíssima moralidade, da chamada vida
física”. Finalmente, ao responder sobre o que sente de anormal quando está produzindo,
o poeta declara: “uma série indescritível de fenômenos nervosos, acompanhados muitas

63
Ver “Correspondência”. In: Dos Anjos, A. Obra Completa. Volume Único. Organização, fixação do
texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994, p. 675-790.
64
Licínio Santos estava recolhendo material para um estudo que publicou em 1914, com o título de A
Loucura dos Intelectuais. Seu objetivo era mostrar a inexistência de ligação entre os dotes intelectuais e a
loucura, em oposição à famosa tese defendida na época por Max Nordau, em seu livro Degeneração,
publicado inicialmente em 1892.

21
vezes de uma vontade de chorar”.65 Essas respostas permitem que façamos as seguintes
inferências a respeito de Augusto dos Anjos. Em primeiro lugar, a exagerada dedicação
do pai ao trabalho e o excessivo nervosismo da mãe podem ter afetado o poeta senão
geneticamente, ao menos psicologicamente. Caso não seja inteiramente explicada por
esses fatores, sua sensibilidade exacerbada foi ao menos reforçada pelos mesmos. Em
segundo lugar, sua educação, voltada exclusivamente para os estudos e baseada numa
moralidade rígida, sugere que ele tinha uma personalidade em que o espiritualismo
cristão sobrepuja o materialismo, em que a avaliação moral do mundo material é a mais
pessimista possível. Essa educação parece também ser responsável pela tendência do
poeta em ocultar seus dramas pessoais em seus poemas. O excesso de moralismo fazia
com que, ao invés de referir-se explicitamente às pessoas e emoções envolvidas,
Augusto dos Anjos envergonhadamente recorresse a personagens e situações fictícias,
expressando as emoções sem revelar suas origens biográficas. Mesmo assim, ele quase
sempre se denunciava, como bem observa Ademar Vidal, ao analisar alguns dos poemas
do período 1899-1910:

A não ser os poemas de tendências filosóficas, os demais significam um “estado


de alma”, revelando ângulos que não podem ser disfarçados e,
consequentemente, tresandando “motivos ocultos”. Em alguns dos poemas
aludidos aparece o amor como ponto central: é que poucos sabem dos terríveis
sofrimentos de alma experimentados pelo poeta no Engenho Pau d’Arco.66

Em terceiro lugar, a descrição feita pelo poeta daquilo que experimentava ao criar revela
que nesses momentos ele se encontrava em um estado de espírito extremamente agitado
e perturbado, que justifica plenamente o uso da expressão doidando por parte de sua
irmã. Desse modo, apesar de apresentar-se em geral como amigável e amoroso em seu
relacionamento com os outros, Augusto dos Anjos tinha um temperamento tal que o
levava a experimentar episódios fortemente emocionais no ato de compor seus
atormentados decassílabos.
A personalidade dividida do poeta, que oscilava entre o cientificismo e o
espiritualismo, parece constituir a chave interpretativa mais adequada para

65
Anjos, Augusto dos. “Resposta ao Inquérito de Licínio dos Santos, em A Loucura dos Intelectuais –
Rio de Janeiro – 1914”. In: Dos Anjos, A. Obra Completa. Volume Único. Organização, fixação do texto
e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994, p. 799.
66
Vidal, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967, p. 52.

22
compreendermos a sua poesia. Augusto dos Anjos a expressa maneira bastante enfática
no soneto Vítima do Dualismo, pertencente ao conjunto das Outras Poesias:

Ser miserável dentre os miseráveis


Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiossincrasias!

Muito mais cedo do que o imagináveis


Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!

Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo...


Criação a um tempo escura e cor de rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,

Ceva-se em minha carne, como um corvo,


A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!67

O soneto começa com uma autodescrição pessimista, em que o poeta se vê como um ser
que é miserável mesmo entre os miseráveis. A causa disso está em que suas “células
sombrias” envolvem contradições insolúveis. Segue-se uma descrição detalhada do
estado de ânimo do poeta diante das aporias que o atormentam de maneira obsessiva,
através de expressões que, embora sinônimas, revelam as diferentes faces da
contradição. O contraste mais sutil se encontra na oposição entre as expressões minhas
células sombrias, que aponta em direção ao materialismo, no primeiro quarteto, e minha
alma, no segundo quarteto, que aponta em direção ao espiritualismo. As duas são de
certa forma reunidas sem conciliação na expressão psiquê biforme, no primeiro terceto.
É verdade que, no último terceto, as oposições vorazes se alimentam da carne do poeta

67
Dos Anjos, A. Eu e outras poesias. In: Dos Anjos, A. Obra Completa. Volume Único. Organização,
fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994, p. 151. Não se
conhece a data original da elaboração deste soneto, que só foi publicado em 1920.

23
e isso parece dar ganho de causa ao materialismo. Mas o tom geral do soneto deixa a
questão indecidida, mantendo coerentemente a perplexidade e a inquietação do autor
diante dos dualismos que o perturbam. Numa interpretação do poeta semelhante à nossa
quanto a esse aspecto, Elbio Spencer afirma que a dor constantemente manifestada na
poesia anjiana decorre do dualismo resultante do choque de duas forças irreconciliáveis,
o idealismo metafísico e o materialismo científico.68 José Escobar Faria, por sua vez,
afirma que o equívoco fundamental do poeta está em declarar-se monista. Ele quer ser
monista, mas nele se adivinha o mais evidente dualista. Sua real personalidade, mais
órfica do que científica, está expressa nas entrelinhas do Eu.69 Na verdade, tanto em
Haeckel como em Spencer, o próprio monismo evolucionista já envolve alguma forma
de dualismo em seu interior, pois constitui uma tentativa romântica de conciliar as
dimensões espiritual e material da existência. Além disso, o soneto que acabamos de
analisar mostra que o dualismo anjiano não se esconde nas entrelinhas, mas aparece, de
fato, à flor da pele.
Esse estado de espírito aporético despertava nele, de tempos em tempos, crises
céticas, como se pode ver pelo poema Ceticismo, abaixo, publicado em 1901 e escrito
aproximadamente dois anos após o episódio da desilusão amorosa:

Desci um dia ao tenebroso abismo,


Onde a Dúvida ergueu altar profano;
Cansado de lutar no mundo insano,
Fraco que sou, volvi ao ceticismo.

Da Igreja – a Grande Mãe – o exorcismo


Terrível me feriu, e então sereno,
De joelhos aos pés do Nazareno
Baixo rezei, em fundo misticismo:

68
Spencer, Elbio. “Augusto dos Anjos num estudo incolor”. In: Dos Anjos, A. Obra Completa. Volume
Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994,
p. 182.
69
Faria, J. Escobar. “A poesia científica de Augusto dos Anjos”. In: Anjos, A. dos. Obra Completa.
Volume Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 143.

24
– Oh! Deus, em creio em ti, mas me perdoa!
Se esta dúvida cruel qual me magoa
Me torna ínfimo, desgraçado réu.

Ah, entre o medo que o meu Ser aterra,


Não sei se viva pra morrer na terra,
Não sei se morra pra viver no Céu!70

Nesse soneto, que significativamente pertence ao conjunto formado pelos Poemas


Esquecidos, a dúvida é algo profano que se encontra no fundo de um tenebroso abismo.
As causas do ceticismo a que a dúvida conduz são o cansaço e a fraqueza. Contra essa
atitude se levanta o espiritualismo, representado pelo terrível exorcismo com que a
Igreja Católica, descrita como a Grande Mãe, joga no poeta. Em atitude mística, ele reza
aos pés de Cristo, pedindo perdão pela dúvida que não só o magoa, mas também o
diminui e o torna desgraçado. Cheio de medo, ele não sabe se continua vivendo a morte
neste mundo ou se morre para viver a vida do espírito no paraíso. Embora pessimista, o
soneto não revela o poeta materialista e monista que usualmente encontramos no Eu. O
que temos aqui é mais uma evidência que aponta na direção de um ser humano que,
embora essencialmente espiritualista, acha-se atormentado pela dúvida.
Ainda no grupo dos Poemas Esquecidos, encontramos o importante soneto Amor
e Crença, publicado em 1901, que trata de Deus e da fé:

Sabes que é Deus?! Esse infinito e santo


Ser que preside e rege os outros seres,
Que os encantos e a força dos poderes
Reúne tudo em si, num só encanto?

Esse mistério eterno e sacrossanto,


Essa sublime adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava a dores e que enxuga o pranto?!

70
Dos Anjos, A. Poemas Esquecidos. In: Dos Anjos, A. Obra Completa. Volume Único. Organização,
fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994, p. 371.

25
Ah! se queres saber a sua grandeza,
Estende o teu olhar à Natureza,
Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!

Deus é o Templo do Bem. Na altura Imensa,


O Amor é a hóstia que bendiz a Crença,
Ama, pois, crê em Deus, e... sê bendita!71

Deus é visto no soneto como um ser infinito e santo, que reúne em si todas as
perfeições. Deus surge como mistério eterno, objeto da sublime adoração do crente. Sua
grandeza se espelha na natureza por ele criada, de que o céu estrelado constitui um
exemplo. Deus é bondade e amor. Ao homem, resta crer em Deus para ser abençoado.
Este soneto, assim como acontece com algumas outras poesias pertencentes à seleção
dos Poemas Esquecidos, é profundamente cristão e põe em dúvida interpretações como
a de Álvaro Lins, para quem Augusto dos Anjos possui certamente uma natureza
antimística. Lins afirma que o Deus presente nos versos do poeta não é propriamente
uma entidade religiosa, mas apenas um recurso verbal que não pode ser interpretado
sem a consideração da concepção anjiana de mundo.72 Ora, essa última, tal como se
apresenta na totalidade da obra poética de Augusto dos Anjos, que inclui Amor e
Crença, aponta na direção contrária, mostrando que o poeta certamente possui uma
natureza mística e que Deus é propriamente uma entidade religiosa. 73 Os poemas até
agora considerados, pertencentes ao grupo dos Esquecidos, mostram que o Augusto dos
Anjos do Eu é apenas uma persona dentre outras que sua rica individualidade produziu.
Amor e Crença reforça a nossa hipótese a respeito do significado do Eu. Graças à
natureza mística do poeta, ali manifestada, os poemas mais aparentemente materialistas
do Eu estão sempre tingidos por uma avaliação moral pessimista que aponta

71
Dos Anjos, A. Poemas Esquecidos. In: Dos Anjos, A. Obra Completa. Volume Único. Organização,
fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994, p. 393.
72
Lins, Álvaro. “Augusto dos Anjos, Poeta Moderno”. In: Anjos, A. dos. Obra Completa. Volume Único.
Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 122.
73
Outros dos Poemas Esquecidos que convergem com a religiosidade e com uma visão positiva do amor
e da família são, p. ex.: Noivado, Soneto (em homenagem aos nove anos do seu irmão Alexandre), Soneto
(em homenagem ao término dos estudos de seu irmão Alexandre), A Esmola de Dulce, Nimbos, Cravo de
Noiva, Soneto (Lúcia), Quadras, Ideal, Afetos, Sedutora e Ode ao Amor (Irene). Cf. Anjos, Augusto dos.
“Poemas Esquecidos”. In: Anjos, A. dos. Obra Completa. Volume Único. Organização, fixação do texto e
notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 378; 382; 405; 409; 415; 421; 425, 426; 429, 434,
452.

26
secretamente para o espiritualismo, como indicamos, por exemplo, no soneto Vítima do
Dualismo, comentado acima. Nesses poemas, Augusto dos Anjos se revela incapaz de
explicar o mundo através do monismo evolucionista e materialista sem cair numa
avaliação moral de caráter fortemente negativo, que conduz à consciência perplexa de
que o universo assim descrito nada mais é do que matéria em degradação. O círculo
vicioso que alimenta a crise existencial expressa pelos poemas do Eu parece funcionar
como segue. Inicialmente, em algum momento o poeta se sente insatisfeito consigo
próprio, em virtude da conduta covardemente conformista no caso Amélia. Isso o leva a
vacilar em sua fé religiosa. Nesses momentos, o seu lado cientificista, baseado na sede
de explicação racional do universo, se manifesta. Mas a explicação materialista
propiciada pela ciência conduz à desagradável avaliação negativa do universo sem Deus
e isso o traz de volta à fé religiosa, até o surgimento de nova crise.
Chegamos aqui ao ponto em que o pessimismo de Augusto dos Anjos pode ser
considerado. Diversos intérpretes atribuem a origem desse pessimismo a
Schopenhauer.74 Anatol Rosenfeld chega a dizer que a influência desse pensador sobre
o poeta é muito mais profunda do que a de Haeckel e Spencer, citando os poemas Numa
Forja e A Floresta como ilustrações da mesma.75 Certamente, a visão pessimista de
mundo que encontramos no Eu apresenta muitas afinidades com a maneira
schopenhaueriana de ver as coisas. Todavia, dada a formação católica de Augusto dos
Anjos, acreditamos que o pessimismo anjiano encontra inspiração no schopenhaueriano
apenas enquanto esse último possui evidentes pontos de contato com o cristianismo.
Isso fica claro se nos lembrarmos da estética evolucionista de Haeckel e das suas
críticas à moral cristã. De acordo com Gregory Moore, esse pensador alemão tenta
explicar, através do monismo, não apenas a beleza natural, mas também a criatividade
humana. Ambas são manifestações visíveis de uma força criadora intrínseca cuja ação
permeia o universo e que ele chama de impulso para a arte (Kunsttrieb). Schopenhauer
emprega esse termo para referir-se à conduta espontaneamente criadora observável em
animais e Schiller o aplica ao impulso humano em direção à arte. Mas Haeckel une os
dois sentidos numa perspectiva evolucionista, considerando a arte humana
74
Ver, p. ex., Bueno, Alexei. “Augusto dos Anjos: Origens de uma Poética”. In: Anjos, A. dos. Obra
Completa. Volume Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar,
1994, p. 23; Soares, Órris. “Elogio de Augusto dos Anjos”. In: Anjos, A. dos. Obra Completa. Volume
Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 67; Machado,
Raul. “Augusto dos Anjos”. In: Anjos, A. dos. Obra Completa. Volume Único. Organização, fixação do
texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 99.
75
Rosenfeld, Anatol. “A costela de prata de A. dos Anjos”. In: Anjos, A. dos. Obra Completa. Volume
Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 188.

27
simplesmente uma expressão mais refinada dos mesmos impulsos criativos primordiais
que todos os organismos possuem em maior ou menor grau. Na verdade, esse impulso
criativo é uma força vital supra-individual, que se identifica com os processos da
própria vida.76 Essa a perspectiva otimista é complementada pela ética monista.
Segundo Haeckel, a lei ética fundamental, a lei de ouro da moral, é a de amar ao
próximo como a si mesmo. Sob esse aspecto, a ética monista haeckeliana coincide com
a moral cristã.77 Todavia, essa última defende uma série de doutrinas que contradizem a
lei fundamental, tais como o desprezo pelo indivíduo, pelo corpo, pela natureza, pela
civilização, pela família e pela mulher. Haeckel considera essas doutrinas lamentáveis e
inconciliáveis com a modernidade do seu monismo.78 Schopenhauer, por mais que adote
uma visão ligada à Kunsttrieb, assume todas as doutrinas da moral cristã mencionadas
por Haeckel. Esse é um ponto crucial em que as filosofias de ambos se distanciam.
Augusto dos Anjos, por sua vez, não parece ir tão longe, por mais que os poemas do Eu
possam sugerir uma concordância total ou até mesmo um exagero das ideias do filósofo
alemão. Com efeito, a consideração de sua obra e de sua vida como um todo revela um
temperamento cíclico, em que uma visão de mundo profundamente negativa, que não
faz apelo sequer à Kunsttrieb, alterna com uma visão de mundo mais positiva, em que
podem ser encontradas manifestações de amor pela natureza, pela família e pela mulher.
Isso permite que reiteremos nossa caracterização do pessimismo integral do Eu mais
como um desabafo poético do que como uma visão de mundo convictamente assumida.
Em virtude de seu pessimismo cristão, Augusto dos Anjos também se afasta de Haeckel,
cujas ideias cientificizantes e otimistas são incapazes de satisfazer aos seus anseios
místicos. Gilberto Freyre, um dos leitores mais perspicazes de nosso poeta, consegue
perceber muito do pensamento de Augusto dos Anjos, apesar de não ter avançado uma
hipótese interpretativa como a nossa. Freyre vê no poeta uma fome mal reprimida de
valores espirituais. No seu interior, uma corrente de misticismo ataca a fortaleza
haeckeliana em que se refugia com sua doença e suas atitudes sado-masoquistas. Freyre
se pergunta em que direção o levaria a corrente mística, uma vez destruída a fortaleza
haeckeliana. E responde que essa direção seria provavelmente a Igreja de Roma, pois
misticismo e sado-masoquismo são as duas fossas da religião católica que chegam a se

76
Moore, Gregory. Nietzsche, Biology and Metaphor. Cambridge: Cambridge Un. Press, 2002, p. 89.
77
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 409.
78
Haeckel, E. Os Enigmas do Universo. Trad. de Jaime Filinto. 3 ed. Porto: Livraria Chardron, de Lello
& Irmão Ltda., 1926, p. 411.

28
unir.79 Augusto dos Anjos é um místico que substitui, em seus versos, o latim mole da
Igreja pelo latim duro da história natural.80 Em que pese a ênfase de Freyre na
controversa doença do poeta, podemos constatar que ele é capaz de divisar, por detrás
do véu representado pelo vocabulário haeckeliano, a real personalidade católica de
Augusto dos Anjos. Em nossa interpretação, essa personalidade católica explica as
crises de pessimismo existencial do poeta, tão bem caracterizadas pelos poemas do Eu e
das Outras Poesias, mas igualmente negadas por alguns dos Poemas Esquecidos.
Outro ponto digno de nota está no significado da experiência estética para
Augusto dos Anjos. Dotado de uma sensibilidade extraordinária, quase doentia, à flor da
pele, como ele mesmo reconhece em sua resposta ao questionário de Licínio dos Santos,
o poeta parece recorrer à expressão estética como uma forma de redenção dos males
desse mundo. É certo que, por um lado, como católico, ele já possui uma forma definida
de redenção através da experiência religiosa que ele certamente vivenciou, dados os
relatos de sua vida que destacamos acima. Mas, por outro lado, como pensador de
tendências cientificizantes que não se contenta com a explicação monista-materialista-
evolucionista do mundo, nos seus momentos céticos ele só consegue essa redenção
através da experiência estética. Como vimos, suas crises de ceticismo o levam a
enunciar teses materialistas e aparentemente atéias, mas as mesmas vêm sempre
acompanhadas de uma avaliação moral em sentido negativo. Para Augusto dos Anjos, a
explicação científica é insatisfatória: se ele é apenas um grão de matéria no universo
infinito, então não vale coisa alguma e isso é extremamente ruim. Nesses momentos, ele
parece estar possuído pela inspiração romântica, marcada pela Sehnsucht.81 Aliás, essa é
a característica mais significativa do espiritualismo e do monismo evolucionista,
movimentos que disputavam a primazia cultural do Brasil da época de Augusto dos
Anjos.

79
Freyre, Gilberto. “Nota sobre Augusto dos Anjos”. In: Anjos, A. dos. Obra Completa. Volume Único.
Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 77.
80
Freyre, Gilberto. “Nota sobre Augusto dos Anjos”. In: Anjos, A. dos. Obra Completa. Volume Único.
Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio: Nova Aguilar, 1994, p. 78.
81
Essa palavra alemã é difícil de traduzir e merece um comentário aqui. Ela significa algo como desejo
ardente, anelo apaixonado, ou ansiedade. Segundo Ladislao Mittner, a Sehnsucht não se confunde com a
nostalgia. Ela é antes um desejo que não consegue nunca atingir sua meta, porque não a conhece, não
quer e não pode conhecê-la. Ela é o “mal” (Sucht) “do desejo” (Sehnen). Mas Sehnen significa
frequentemente desejo irrealizável porque indefinível, um desejar tudo e nada ao mesmo tempo. Não foi
sem motivo que Such foi reinterpretado, por meio daquelas falsas etimologias que se tornam criações de
novas realidades psicológicas e artísticas, como um Suchen, um procurar. Ora, a Senhsucht é de fato uma
busca do desejo, um desejar o desejar, um desejo que é percebido como inexaurível e que, por isso,
encontra em si mesmo a própria satisfação (Mittner, L. Storia della letteratura tedesca. Torino: Einaudi,
1978, vol. II, p. 698-701).

29
Em resumo, o temperamento dualista de Augusto dos Anjos, devido tanto à sua
formação como ao panorama cultural do país, associado à dolorosa experiência do
fracasso amoroso, o leva a assumir por vezes uma posição pessimista diante da
existência, na qual ele adota a explicação materialista-evolucionista do mundo, mas a
expressa com grande perplexidade e insatisfação moral. Esse pessimismo se afasta do
monismo haeckeliano e aponta na direção de Schopenhauer, mas apenas enquanto esse
último compartilha o desprezo cristão pela carne. A redenção do sofrimento se dá
através da experiência estética, mas sempre denunciando um viés místico-religioso de
caráter implícito. No Eu e nas Outras Poesias, as teses materialistas e aparentemente
atéias de Augusto dos Anjos incluem uma avaliação moral negativa que sugere a fome
pelo absoluto, numa espécie de misticismo frustrado e disfarçado. Essa atmosfera
mística está presente mesmo nos versos mais materialistas e decepcionados das obras
mencionadas, mas se revela explicitamente em alguns dos Poemas Esquecidos.
Ora, esses aspectos permitem aproximar a obra de Augusto dos Anjos do
sanchismo tal como descrito anteriormente. Com efeito, a maior parte das características
do sanchismo se encontram presentes, em graus variados, na poesia anjiana. Em
primeiro lugar, o sanchismo se caracteriza pelo dualismo entre carne e espírito, em que
esse último tem de vencer a primeira. Esse dualismo está presente na poesia anjiana em
diversos momentos: quando ela expressa a personalidade dualista de seu autor; quando
ela oferece uma avaliação moral negativa da explicação puramente materialista das
coisas; quando ela expressa o descompasso entre a ideia (“luz que sobre as nebulosas /
cai de incógnitas criptas misteriosas”) e sua manifestação física (“mulambo da língua
paralítica”); etc. Rafael de Oliveira pensa que o dualismo constitui inclusive a base da
visão de mundo cristã que ele atribui a Augusto dos Anjos. De acordo com Oliveira, a
visão cristã não só opõe o espírito à carne, mas também pratica a “lógica da inversão”,
que leva à glorificação do espírito e à condenação de tudo o que é vital e mundano. O
ser humano, cindido pelo pecado, vive na terra, que é uma região intermediária entre o
céu e o inferno. Nessa perspectiva, a morte é uma libertação, já que promove a
separação entre o espírito e a carne.82 Não pretendemos discutir aqui a questão de saber
se o dualismo constitui a base da visão de mundo cristã. Estamos apenas aproveitando a
descrição que Oliveira faz da atmosfera dualista que anima a mentalidade cristã, pois tal

82
Oliveira, Rafael Soares de. O poeta do hediondo: feísmo e cristianismo em Augusto dos Anjos.
Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade
de Letras da UFMG, 2008, p. 21-24.

30
descrição se ajusta muito bem à personalidade de Augusto dos Anjos, permitindo
ilustrar as ligações de sua poesia com o dualismo sanchista.
Em segundo lugar, o sanchismo vê o mundo de maneira estóica e pessimista.
Ora, conforme mencionamos, a visão negativa das coisas está presente na maioria dos
poemas de Augusto dos Anjos, só que em grau exacerbado. Suas ligações com o
pessimismo schopenhaueriano são claras, mas somente enquanto esse último extrai o
grosso de sua inspiração do pessimismo cristão – e isso apresenta muitas afinidades com
o sanchismo. Mas a postura pessimista é tão forte na poesia anjiana que as possíveis
ligações da mesma com o estoicismo ficam obnubiladas ou mitigadas. Mesmo assim,
pelo menos um importante elemento da postura estóica que converge com o
cristianismo poderia ser identificado na obra de Augusto dos Anjos. Com efeito, a
negação da vida enquanto criadora de sofrimento sugere – ou é compatível com – a
ideia de aceitar resignadamente aquilo que as forças do universo nos destinam, uma vez
que lutar contra elas constitui uma tarefa insana destinada ao fracasso. Desse modo, a
forte presença do pessimismo e a compatibilidade com o estoicismo permitem efetuar a
aproximação aqui proposta.
Em terceiro lugar, o sanchismo é cético com relação à nossa capacidade de
conhecer. Esse ceticismo também se encontra na poesia anjiana, embora apareça de uma
maneira peculiar. Alexei Bueno afirma haver nessa poesia um movimento pendular
entre a adesão a um postulado filosófico e a descrença na sua eficácia e na de todos os
outros sistemas quando confrontados com a morte.83 Todavia, conforme mostramos, a
adesão ao postulado filosófico só ocorre naqueles momentos em que o poeta
experimenta uma crise em relação à sua fé. Na verdade, Augusto dos Anjos oscila entre
a explicação científica do mundo e sua fé. Graças a isso, o apelo à explicação científica
vem sempre acompanhado pelo sentimento de profunda insatisfação com essa mesma
explicação e com a sugestão implícita de que a solução estaria mais além, no campo da
experiência religiosa. Seguindo uma linha de interpretação semelhante, Rafael de
Oliveira coloca Augusto dos Anjos na posição do filósofo moderno tal como descrito no
poema Monólogo de uma Sombra: “quis compreender [...] / a vida fenomênica das
Formas / [...] / e apenas encontrou na ideia gasta / o horror dessa mecânica nefasta, / a

83
Bueno, Alexei. “Augusto dos Anjos: Origens de uma Poética”. In: Dos Anjos, A. Obra Completa.
Volume Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar,
1994, p. 23.

31
que todas as coisas se reduzem!”.84 Movido pelo desejo desmesurado de desvendar os
segredos do universo, o filósofo moderno desrespeita as leis naturais, segundo as quais
tais segredos são interditados aos seres humanos.85 Oliveira pensa que o poema
mencionado constitui uma ilustração de como o poeta conjuga harmonicamente o
misticismo e o cientificismo, criando uma linguagem poética original, um canal de
vazão inusitado, mas extremamente acurado, para a concepção cristã de existência.86
Pensamos que Oliveira está certo e gostaríamos de ressaltar a maneira pela qual o
ceticismo cristão se manifesta aqui: o filósofo moderno tenta explicar tudo, mas sua
tentativa desemboca apenas na contemplação do horror da mecânica nefasta do
universo. O advérbio apenas, usado num dos versos da estrofe acima, sugere a
insuficiência da explicação científica e sua incapacidade de substituir aquilo que é dado
pela fé religiosa. Essa perspectiva converge com o sanchismo, para o qual a verdade
maior é a da religião, enquanto a explicação científica não passa de uma manifestação
da vaidade humana, de uma tentativa frustrada de resolver os enigmas do universo.
Em quarto lugar, o sanchismo busca a redenção no contato religioso com Deus.
Ora, a busca da redenção apresenta aspectos diferentes na obra de Augusto dos Anjos.
Por um lado, nos momentos de crise existencial, a redenção é obtida através da
experiência estética. Nesses casos, o poeta consegue encontrar, de maneira semelhante
ao cético Machado de Assis, ao menos algum consolo na contemplação da obra de arte.
Desse ponto de vista, a poesia anjiana pode ser aproximada do sanchismo de maneira
análoga àquela que propusemos para Machado de Assis. Por outro lado, nos momentos
de fé intensa, a redenção é certamente obtida através da experiência religiosa do contato
com Deus. A obra poética de Augusto dos Anjos, como um todo, ilustra enfaticamente a
redenção através da vivência estética. Mas os fatos que conhecemos sobre sua biografia
são suficientes para permitir a conclusão de que, em outros momentos de sua vida, o
poeta encontrou consolo no contato com o Deus cristão. Se isso é verdade, então a
redenção religiosa também constitui dos objetivos da poesia anjiana e isso permite uma
aproximação maior ainda com o sanchismo.

84
Anjos, Augusto dos. “Monólogo de uma Sombra”. In: Dos Anjos, A. Obra Completa. Volume Único.
Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar, 1994, p. 196.
85
Oliveira, Rafael Soares de. O poeta do hediondo: feísmo e cristianismo em Augusto dos Anjos.
Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade
de Letras da UFMG, 2008, p. 70.
86
Oliveira, Rafael Soares de. O poeta do hediondo: feísmo e cristianismo em Augusto dos Anjos.
Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade
de Letras da UFMG, 2008, p. 80.

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Parece que o único aspecto que afasta a poesia de Augusto dos Anjos do
sanchismo é a valorização da ação, que caracteriza este último e não o primeiro. Como
avalia muito bem Anatol Rosenfeld, o nosso poeta busca uma libertação pela
inteligência, pela contemplação desinteressada.87 Não parece haver, no conjunto de sua
obra, qualquer referência mais explícita à ação. Augusto dos Anjos se posiciona como
um pensador grego antigo, que procura um lugar de onde possa contemplar
privilegiadamente o universo. Em que pese essa diferença, a atitude socrática de
privilegiar a ação não é, em princípio, incompatível com a poesia anjiana. Além disso,
ela poderia constituir uma consequência da atitude geral do poeta, já que ele não
acredita convictamente na suficiência da explicação científica e procura a salvação
sobretudo através da experiência religiosa, que exige uma conduta apropriada para
atingir seus objetivos.
Desse modo, as semelhanças entre a poesia anjiana e o sanchismo são maiores
do que as diferenças. Além disso, essas últimas não são tão significativas a ponto de
merecerem destaque. Isso nos permite compreender a poesia de Augusto dos Anjos
como um avatar do sanchismo.88 Se isso é verdadeiro, então as semelhanças entre a
postura filosófica de nosso poeta e as posturas dos primeiros pensadores brasileiros do
Período Colonial, como Gregório de Matos, Nuno Marques Pereira, Matias Aires,
Antônio Vieira e Feliciano de Souza Nunes são maiores do que poderíamos suspeitar à
primeira vista. Cada um desses autores representa uma manifestação individual de uma
visão de mundo simultaneamente pessimista, cética, estóica e salvacionista.89 E não
podemos esquecer os já mencionados pontos de contato entre nosso poeta e Machado de
Assis, cuja obra constitui uma reação a uma situação de conflito entre espiritualismo e
positivismo e também pode ser considerado outra manifestação individual da mesma
postura sanchista. É por esse motivo que a poesia de Augusto dos Anjos, à semelhança
de Nuno Marques Pereira, que foi um grande sucesso editorial no Brasil Colônia, obteve
também um grande sucesso entre nós, principalmente junto ao grande público. Os

87
Rosenfeld, Anatol. “A costela de prata de Augusto dos Anjos”. In: Dos Anjos, A. Obra Completa.
Volume Único. Organização, fixação do texto e notas de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar,
1994, p. 188.
88
Embora não tenha tido a intenção de argumentar a favor dessa tese, Ledo Ivo contribui para reforçá-la,
ao perceber, na poesia de Augusto dos Anjos, um “barroquismo deflagrador de imagens gordas”. Ver Ivo,
Ledo. “Arredores de um pronome”. In: Coutinho, A. & Brayner, S. (Orgs.). Augusto dos Anjos. Textos
Críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 342.
89
Infelizmente, por motivos de espaço, não poderemos desenvolver esse ponto aqui, fazendo uma
comparação entre as ideias filosóficas expressas pela poesia anjiana e as ideias filosóficas expressas por
cada um desses autores.

33
poemas extremamente pessimistas desse poeta supostamente vitimado pela tísica nos
atraem estranhamente. A imagem tradicional de Augusto dos Anjos produz, no domínio
da literatura brasileira, um fascínio análogo ao que o Aleijadinho produz no domínio da
nossa escultura. Os dois artistas nos fornecem manifestações profundamente emotivas e
pessoais, produzidas por pessoas atormentadas seja pela doença, seja pela inquietação
moral. Suas obras são capazes de despertar o sanchismo que hiberna em todos nós e
que, ao acordar, permite que nos identifiquemos de maneira mais completa com as
ideias filosóficas que expressam.

Referências Bibliográficas

COUTINHO, Afrânio; BRAYNER, Sonia. Augusto dos Anjos: textos críticos. Brasília,
DF: MEC/INL, 1973.
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do Período Barroco (1601-1768)”. In: O filósofo e sua história. Uma
homenagem a Oswaldo Porchat. Campinas : Unicamp, Coleção CLE, vol. 36,
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MARGUTTI PINTO, Paulo Roberto. “Machado, um cético pirrônico? Um debate com
Maia Neto”. Sképsis - Revista de Filosofia. , v.1, p.183 - 211, 2007.
MARGUTTI PINTO, Paulo Roberto. “As idéias de Francisco Sanches e suas ligações
com o pensamento filosófico brasileiro”. A ser disponibilizado no próximo
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MORSE, R. O Espelho de Próspero. Cultura e ideias nas Américas. Trad. P. Neves. S.
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dos Anjos. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: Curso de Pós-Graduação
em Teoria Literária da FALE da UFMG, 2008.

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2001.
VIANA, Chico. O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos.
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VIDAL, Ademar. O outro eu de Augusto dos Anjos. Rio: José Olympio, 1967.

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