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RAQUEL HENRIQUE

Resenha do livro “ANTES DO IDE” – de Joed Venturini


Alguém precisa contar aos candidatos a missionários que a realidade do campo
transcultural é bem menos romântica do que se idealiza. E Joed Venturini faz isso com maestria
no livro Antes do Ide. Com muito encorajamento, e abordando questões cruciais à preparação
missionária e vida no campo, ele ajusta as expectativas à realidade do que se vai (em geral)
encontrar.

O livro tem 13 capítulos que abordam temas diversos da vida missionária (desde o pré-
campo até o retorno deste) e são fruto da experiência missionária de décadas do autor. Joed é
médico de formação e filho de missionários, tendo sido ele mesmo missionário na África por
muitos anos, junto com sua esposa e filhos; atualmente, ele trabalha no campo de Portugal.

Entre os tópicos abordados, o autor fala primordialmente da importância da convicção do


chamado, e diz que em alguns momentos de crise e dor, será isso que manterá o missionário no
campo – a certeza, em última instância, de que Deus o direcionou para estar ali. Já na
introdução, o leitor é advertido de que “fazer missões inclui trabalho duro, guerra espiritual do
mais alto nível e, em certos momentos, luta pela sobrevivência física e emocional” (pág. 12). E por
isso mesmo, adverte o autor, a necessidade do preparo é essencial.

Mas não qualquer preparo. Ele aborda em minúcias questões relativas ao preparo
espiritual, acadêmico, de saúde, preparo de retaguarda (levantamento de intercessores e
sustento financeiro), escolha da Agência, e relação com a igreja enviadora (apoio pastoral e
serviço na igreja local).

Embora o preparo adequado possa otimizar a maneira como o missionário vai atuar no
campo, é bem verdade que nem ele será capaz de impedir os efeitos do choque cultural e as
reações diversas que surgem no processo de aculturação. É confortante saber que todos terão –
em diferentes graus – dificuldades no processo de aprendizagem da língua, de compreensão da
cosmovisão local, de mudança na alimentação, de estabelecer relacionamentos com os nativos,
de abrir mão de privacidade (já que em muitas culturas não ocidentais isso não é um valor) etc.

Um propósito claro, com objetivos, metas e planejamento de médio e longo prazo pode
atenuar as expectativas de que todo esse processo de ajuste cultural deva ser instantâneo
(porque não será), e pode também estimular à perseverança. Só isso já é de grande valia, já que
o autor acentua que “o campo missionário tem a capacidade de nos testar até o limite, [e que] as
lutas serão tantas que a ideia da desistência vai surgir muitas vezes” (pág.56).

Na sequência, o livro trata da importância da vida devocional no campo e da comunhão


com o Senhor como condição sine qua non para se realizar a obra missionária. Parece óbvio que
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não seja possível realizar a “obra de Deus” sem “buscar a Deus”; mas na prática, as estatísticas
apontam uma queda significativa nas disciplinas devocionais dos obreiros após a chegada no
campo. E o autor afirma veementemente que para se ter raízes fortes que permitam frutificar e
resistir às tempestades, é necessário desenvolver uma vida devocional ativa e intensa.

Os cuidados espirituais devem acompanhar também os cuidados com a família, que por
vezes se vê exposta a forte estresse por conta das adaptações necessárias à nova cultura. Como
filho, marido e pai missionário, Joed traz muito de sua experiência pessoal e outros exemplos
enriquecedores nesse tópico. E salienta ainda que problemas no casamento tem contribuído
muito para o retorno precoce de missionários. Questões relacionadas à criação dos filhos e
orçamento familiar também são tópicos de debate, bem como a saúde familiar que deve ser
motivo de atenção especial no campo. O cuidado e as demandas de natureza espiritual não
podem nunca justificar uma negligência com a saúde física e espiritual. E, como médico, o autor
dá dicas preciosas, que incluem um check list para montagem de uma farmácia familiar de
emergência.

Os “conflitos com outros obreiros no campo” estão no topo entre as razões de retorno
dos missionários do campo. Embora faça parte da idealização dos obreiros que seus colegas
obreiros serão santos homens e mulheres de Deus, faz bem sermos alertados de eles são na
verdade, exatamente como nós – sujeitos à falhas e pecados. E um olhar de misericórdia e sem
preconceitos para o outro nos ajudará a respeitar autoridades, comunicar eficazmente, resolver
os conflitos pacificamente, ser pacientes e tolerantes. Essas atitudes podem promover melhores
relações dentro das equipes e ser decisivas para uma permanência prolongada no campo.

Quanto à apresentação do Evangelho ao povo, razão pela qual o missionário se desloca


para um campo transcultural, o autor fala da importância de construirmos “pontes” para
comunicar eficazmente o evangelho. E para isso, será necessário conhecer o povo, saber no que
creem, porque creem assim, saber como reagem às situações da vida e porque o fazem assim.
Será preciso compreender sua cosmovisão, e ver que dela decorrem seus costumes e modos de
agir. E isso vai levar tempo, e vai exigir de nós a humildade de assumir uma postura de
aprendizes e servos, e vai exigir também “a percepção de que o nosso mundo e cultura não são
obrigatoriamente os certos” (pág. 133).

Como não poderia ficar de fora, o autor aborda o tema da Batalha Espiritual, e traz muitos
exemplos oriundos de experiências vividas nessa área. Citando Thomas White, ele descreve a
urgência do debate desse tema, ao ressaltar que “missionários demais têm sido enviados para
situações destas [de intensas batalhas espirituais] sem treinamento nas artes da guerra espiritual,
para retornar do campo abatidos e derrotados” (pág. 148). A batalha espiritual na obra
missionária não deve ser ignorada, e os missionários não devem ir para os campos sem preparo
nessa área, sob pena de serem derrotados em pleno front de guerra. É bem lembrado aqui que,
antes da batalha ser ministerial, ela é pessoal; e o obreiro precisa estar verdadeiramente livre de
alianças malignas do passado, para que, em seguida, ele possa se concentrar na libertação de
pessoas por meio de um encontro destas com a verdade da Palavra de Deus e a pessoa de Jesus.
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Outro tópico abordado é a importância de manter contato regular com as bases, que aqui
englobam Agência Missionária, igrejas parceiras, mantenedores e intercessores. É importante
mantê-los informados, comunicando-se regularmente por meio de cartas de oração e cartas
gerais (que hoje incluem, obviamente, e-mails e mensagens de WhatsApp e afins). É importante
também desenvolver habilidades de comunicação oral, já que será parte do ministério falar do
trabalho realizado no campo em muitas igrejas por onde o missionário passar. A comunicação
nunca deve ser negligenciada, e um exemplo narrado é a vitória do rei da Inglaterra Henrique V
contra os exércitos da França, estando seu próprio exército em condições tão desfavoráveis.
Atribui-se à Henrique V a habilidade de usar as palavras para inspirar, motivar e levar os seus à
ação, já que foi com palavras de ânimo e encorajamento que ele despertou a honra de seus
homens para a batalha e teve seu discurso imortalizado por Shakespeare (pág. 180). Somos
desafiados a fazer o mesmo com nossos ouvintes em cada oportunidade de falar sobre a obra
missionária.

O leitor encontrará ainda dicas valiosas de como agir em momentos de crise e imprevistos,
que são apresentadas de forma bem prática e objetiva. Questões das mais diversas, que passam
por ter documentos e bens valiosos guardados em um só lugar, ter combustível e alimento
estocado, farmácia em dia e dinheiro de reserva, até uma mochila pronta (com direito a lista de
itens essenciais) caso haja necessidade de uma retirada repentina... tudo isso e mais um pouco é
abordado dentro dessa temática. O autor também dá conselhos de como agir em diferentes
cenários de crises, como guerras, catástrofes naturais, assaltos/sequestros, doenças, morte etc.

E se a saída não precisar ser repentina, prematura ou motivada por uma crise, ela deverá
ser planejada e bem pensada. Sim, o autor ressalta que é necessário pensar na saída do campo, e
se apoia no exemplo de Paulo que seguia o padrão de “implantar a igreja, instruir os crentes,
definir liderança e passar adiante” (pág. 196). Ele afirma, citando Hesselgrave, que “é quase tão
importante que os pioneiros saibam quando e como deixar uma obra nova, como saber quando e
como empreende-la no início” (pág. 196). Partindo da premissa que a obra missionária é
“acabável” num dado lugar, defende-se que uma vez estabelecida a igreja e treinados os líderes
(ou seja, desde que estes tenham sido treinados para se autodirigir e se autossustentar), o
missionário pode seguir adiante para um novo campo – e nesse particular, o trabalho de um
missionário é bem diferente do trabalho de um pastor.

Por fim, o autor analisa percepções de sucesso e fracasso na obra missionária e desmitifica
falsos conceitos e ideias pré-concebidas sobre isso. Nesse ponto, são profundamente
impactantes os relatos do fim da vida de Adoniran Judson, Hudson Taylor, Lottie Moon e Gladys
Aylward, proeminentes figuras das missões modernas, que a seus próprios olhos não tiveram
tanto sucesso assim na obra, e chegaram a desenvolver sérios problemas emocionais. O autor
ressalta que “o missionário, como ser humano que é, se cansa, se desanima e então se julga um
fracasso” (pág. 209). No entanto, ele nos encoraja lembrando que o Senhor não fará uma
avaliação numérica da obra, pois Ele tem métodos de avaliação diferentes dos nossos, e cita
David Wilkerson ao afirmar que “quando comparecermos perante o trono do juízo [...] seremos
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julgados com base em nossa dependência e obediência à Palavra e à vontade de Deus.” Aleluia!
Louvado seja o Senhor! Que Ele mesmo capacite cada leitor para o cumprimento de Sua obra.

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