Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Teorias Antropológicas
Teorias Antropológicas
Teorias Teorias
Antropológicas
Fundação Biblioteca Nacional
Antropológicas
ISBN 978-85-387-3173-3
Teorias Antropológicas
Edição revisada
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
__________________________________________________________________________________
X19t
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-3173-3
Escola antropológica do
Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 117
Ruth Fulton Benedict (1887-1948) – Antropologia e os padrões culturais dos povos | 119
Margaret Mead (1901-1978) – A Antropologia como vocação científica e política | 122
Melville Jean Herskovitz (1895-1963) – a Antropologia do endoculturalismo | 124
Ralph Linton (1893-1953) – cultura e personalidade | 126
Ruth Landes (1908-1991) – narrativas etnográficas da experiência de campo | 128
Roger Bastide (1898-1974) – interpenetrações das civilizações | 129
Fernando Fernándes Ortiz (1881-1969) – transculturação | 130
Considerações finais | 131
A opção foi, dentro desse grande jogo de cartas, identificar os arranjos que
dialogaram e dialogam – pela convergência ou divergências – entre si. Autores/
jogadores que, mesmo com distribuições diferentes, guardaram ou guardam uma
semelhança, muitas vezes tênue, com as estratégias gerais do jogo.
Este livro tem uma estratégia de jogo. E, é claro, o autor rearranjou as cartas
segundo suas próprias “afinidades eletivas”, mas com narrativas amplas e atuais
– inclusive nos textos complementares, referências e bibliografia –, para que
aqueles que são convidados para esse jogo intelectual possam, conforme sua
criatividade, reorganizar as cartas dessa extraordinária aventura – que nunca
cessa – de compreender as razões e emoções que impulsionam mulheres e homens
a rabiscarem cotidianamente as histórias de seus sonhos, desejos e realizações.
Senhoras e senhores, façam seu jogo, como convidou-nos o velho mestre francês.
Introdução
A Antropologia é a ciência que estuda o homem, no sentido lato da expressão (gênero humano).
Em sua feição científica, ela surge na segunda metade do século XIX, na esteira do desenvolvimento das
Ciências Sociais. Desde então, constituiu um amplo leque de paradigmas – metodologias de abordagem,
de pesquisa e de interpretação – que formam as chamadas Teorias Antropológicas Clássicas – as pionei-
ras – e as Contemporâneas (ou Modernas), que estudam e interpretam as dimensões biológicas, culturais
e sociais do ser humano.
A Antropologia (anthropos, pessoa/homem; logos, razão) é a ciência centrada no ser humano e
em suas realizações tangíveis e intangíveis – material e imaterial –, no espaço histórico e no eixo do
tempo, focada no estudo do homem e nos seus feitos sociais e culturais.
O estudo do multiverso – universo material e universo imaterial – do homem atribuiu à Antropo-
logia três aspectos fundamentais para o seu campo de pesquisa e estudo: o estudo do homem na qua-
lidade de elemento integrante de grupos organizados, organizações e formas coletivas de ação social;
o estudo da totalidade do homem como um ser histórico, com suas crenças, usos e costumes, filosofia,
linguagem e representações; e o estudo do conhecimento psicossomático do homem e de sua evolução.
Segundo Laplantine, “só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa
que objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade” (1988, p. 16).
A Antropologia é o estudo do homem por inteiro, em todas as sociedades, em todas as suas dimensões
e épocas.
* Doutor e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação e Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP) – linha
de pesquisa Comunicação e Cultura. Líder do grupo de pesquisa “Laboratório de Observação de Mídias Radicais”, credenciado no CNPq.
Pesquisador do universo cultural afrodescendente. Jornalista e professor universitário.
1 Paleolítico (Idade da Pedra Lascada – antiga); Mesolítico (Idade da Pedra “Média” – período intermediário); Neolítico (Idade da Pedra Polida
nova).
::: Folclore – ramo que estuda as manifestações espontâneas da cultura de grupos urbanos e
rurais, conjunto das tradições, conhecimentos, crenças, lendas de um povo, expressos em seus
hábitos e costumes cotidianos.
::: Antropologia Social – ramo que estuda os processos culturais e sociais de uma sociedade ou
instituição.
::: Cultura e Personalidade – ramo que estuda as inter-relações entre a cultura e as personali-
dades.
::: Antropologia Pré-Histórica – é o estudo do homem por meio dos vestígios materiais enter-
rados no solo (ossos e marcas humanas). “O especialista em pré-história recolhe, pessoalmente,
objetos do solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado na Antropologia Social na
qual se beneficia de depoimentos vivos” (LAPLANTINE, 1988, p. 18).
::: Antropologia Linguística – é o estudo da diversidade das línguas humanas em dois aspectos:
::: etnolinguísticas (como os homens pensam e vivem) – estudo dos textos escritos e orais;
::: etnociência (como os homens interpretam seu próprio saber e saber-fazer).
::: Antropologia Psicológica – é o estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo
humano; estuda a mente e os processos mentais e sociais do ser humano em sociedade.
::: Antropologia Social e Cultural (ou Etnografia) – é o estudo do modo de produção econômica,
das formas de produção técnica, da organização social e da cultura, dos sistemas de
conhecimento de sua difusão, do sistema de parentesco, da língua, das formas de produção
artística, da psicologia social, das crenças e da religião.
Teorias Antropológicas
As Teorias Antropológicas – Clássicas e Contemporâneas (Modernas) – construíram seus legados
científicos a partir da segunda metade do século XIX. Elas sucederam-se na linha do tempo, ampliaram
As cartas, crônicas e relatos comerciais dos viajantes pintam painéis da diversidade humana em
vários pontos do mundo. Missionários, militares e, acima de tudo, os administradores descrevem os povos
e suas produções, com variados graus de precisão. Registram-se as qualidades da terra, sua fauna e flora;
a topografia (descrição minuciosa de uma localidade) das costas e do interior; o sistema de parentesco e
as formas de organização política, econômica, cultural e religiosa dos “povos do novo mundo”.
A Carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500) – escritor português que exerceu a função de escrivão
da armada do navegador Pedro Álvares Cabral (1467 [1468]- 1520 [1526]) –, que narra a chegada dos
portugueses ao Brasil, é um modelo típico desses rudimentos do discurso etnográfico.
Datada de 1500, do Porto Seguro da Ilha de Vera Cruz, sexta-feira, “primeiro dia de maio”, a carta
descreve o impacto que a nova paisagem humana causou aos navegadores portugueses, quando eles
fizeram o primeiro contato com os habitantes locais:
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, benfeitos. Andam nus, sem ne-
nhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar
o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento
duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de
dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte
que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. (CAMINHA, 1500)
Pero Vaz de Caminha descreve a topografia da costa brasileira, a fauna e as riquezas da natureza,
os modos e costumes dos habitantes locais, suas formas de organização social, cultural e religiosa e suas
relações com os navegadores. A riqueza de detalhes, a precisão das descrições, o esquadrinhamento da
localidade conferem ao relato status etnográfico que permitiu, mais tarde, a ocupação de amplas faixas
de terra no novo território.
2 Movimento surgido na França do século XVII que defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica, religiosa, que dominava a Europa.
Segundo os filósofos iluministas, essa forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade.
3 Morgan, Lewis H. La Société Archaïque. Paris: Anthropos, 1971.
4
do final do século 19, bem como na lei de Haeckel . [...] a ontogênese reproduz a filogênese: ou seja, o indivíduo
atravessa as mesmas fases que a história das espécies. [...] Disso decorre a identificação [...] dos povos primitivos aos
vestígios da infância da humanidade. (LAPLANTINE, 1988, p. 65-66)
Antropologia Difusionista
A Teoria da Antropologia Difusionista reage ao etnocentrismo da Teoria da Antropologia Evolucio-
nista Social. Ela procura compreender a natureza das culturas de cada povo, da origem a sua extensão, de
um grupo humano para outro. A corrente explica o desenvolvimento cultural pelo processo de difusão
de aspectos culturais, formas culturais, de uma cultura para outra.
Os diversos povos tomam de empréstimo aspectos culturais fundamentais de outros e os adaptam
às suas particularidades, o que provoca a evolução da cultura e explica a diversidade das manifestações
culturais. Os grupos humanos distintos absorvem “aspectos culturais” de um outro grupo, como uma
tendência humana.
Os antropólogos difusionistas substituem o termo raça pelo cultural e se dividem em três escolas
teóricas: a inglesa, a alemão-austríaca e a norte-americana.
Na escola alemã destacaram-se os antropólogos Fritz Graebner, Friedrich Ratzel, Léo Frobénius,
Wilhelm Schmidt; na escola inglesa, Elliot Smith, J. Perry e W. R. R. Rivers. A escola inglesa ficou conhe-
cida pelo nome de hiperdifusionista pelo fato de alguns dos seus teóricos levantarem a hipótese de
que todas as invenções do homem têm origem na civilização egípcia. Na escola norte-americana o
destaque é o antropólogo Franz Boas (1848-1942)
Seus elementos básicos são a reconstituição histórica – do passado e do presente –, e o intenso
trabalho de campo, com a coleta sistemática de dados primários, de dados colhidos em primeira mão.
Um dos principais teóricos do Difusionismo foi o geógrafo e etnólogo alemão Friedrich Ratzel
(1844-1904), “pai do conceito espaço vital”.
o “salto quântico”, a grande contribuição, a definição das regras do método sociológico de investigação.
As obras de Durkheim6 e , mais tarde, as obras de Marcel Mauss7 são decisivas para a elaboração dessas
características conceituais.
No campo da Escola Sociológica Francesa, em relação ao aspecto metódico, diz Laplantine:
É preciso apreendê-lo totalmente [o fenômeno social], isto é, de fora como uma “coisa”, mas também de dentro como
uma realidade vivida. É preciso compreendê-lo alternadamente tal como o percebe o observador estrangeiro (o etnó-
logo), mas também tal como os atores sociais vivem. [...] o que caracteriza o modo de conhecimento próprio das ciên-
cias do homem é que o observador-sujeito, para compreender seu objeto, esforça-se para viver nele mesmo a experi-
ência deste, o que só é possível porque esse objeto é, tanto quanto ele, sujeito. (LAPLANTINE,1988, p. 91)
Antropologia Funcionalista
Com os dois pés fincados no século XX, a Antropologia Funcionalista inaugura uma nova fase
de observação do olhar antropológico (intenso trabalho de campo), com a adoção da observação
participante, quando o pesquisador submerge no oceano cultural da população estudada; desenvolve o
modelo etnográfico clássico, a monografia, e estuda, de forma sistematizada e global, os conhecimentos
de uma dada cultura. Há assim uma ruptura epistemológica, uma ruptura na forma de construir o
conhecimento, no campo da ciência antropológica, quando o pesquisador procura conhecer as sutilezas
e particularidades da cultura que ele se propõe a compreender, a estudar.
Essa escola dá ênfase ao estudo das instituições, formas de organizações sociais e culturais e das
suas funções para a manutenção do conjunto cultural, da totalidade da cultura de um determinado
povo.
Polonês radicado na Inglaterra, Bronislaw Malinowski (1884-1942) foi um dos principais protago-
nistas da Escola Funcionalista. Malinowski encontra-se entre os precursores do trabalho de campo, fora
dos gabinetes, no fazer antropológico. Ele radicalizou no conceito de compreensão por dentro de uma
cultura observada; rompeu com a especulação distante e instaurou a observação participante – quando
o antropólogo olha de perto a cultura estudada –; ele tira seu modelo de estudo (o funcionalismo) das
ciências naturais, como a Biologia, e estuda o homem nas dimensões social, psicológica e biológica. Sua
obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922, é considerada o primeiro grande estudo etnográfico
de peso.
6 Émile Durkheim (1858-1917), um dos fundadores da Sociologia moderna. Durkheim, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo:
Martin Claret, 2001.
7 Marcel Mauss (1872-1950), sociólogo e antropólogo francês. Mauss, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, 1974.
Essa escola defende que as culturas, de maneira geral, são diversas, mas têm características
comuns, padrões culturais. Esses padrões são resultados do agrupamento de complexos culturais. O
padrão é uma norma regularizadora que estabelece os valores de aceitação e rejeição, dentro de uma
determinada cultura. Diz Ruth Benedict (1989, p. 60), uma das principais expoentes dessa escola, que:
[...] essa elaboração da cultura num padrão coerente não se pode ignorar como se fosse um pormenor sem importância.
O conjunto, como a ciência está a afirmar insistentemente em muitos campos, não é apenas a soma de todas as suas
partes, mas o resultado de um único arranjo e única inter-relação das partes, de que resultou uma nova identidade [...].
Antropologia Estruturalista
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss foi um dos principais articuladores da Escola Atropo-
lógica Estruturalista. Na década de 1940, Lévi-Strauss pesquisou os princípios da organização da mente
humana. Seu objetivo foi estudar as regras estruturantes das culturas presentes na mente humana.
Nessa linha de pesquisa, o antropólogo francês percorreu os caminhos das teorias do parentesco,
da lógica do mito, das chamadas classificações primitivas e da relação natureza versus cultura.
Para Lévi-Strauss, o Estruturalismo concebe a existência de um certo número de materiais culturais
sempre idênticos, como as “cartas de baralho” e o “caleidoscópio” – duas de suas metáforas preferidas
– que podem ser classificadas como invariantes. As diferentes possibilidades de combinações dessas
invariantes são ilimitadas. Elas constituem “leis universais que regem as atividades inconscientes do
espírito” (LÉVI-STRAUSS in LAPLANTINE, 1988, p. 138).
Em um caleidoscópio, a combinação de elementos idênticos sempre dá novos resultados. Mas é porque a história
dos historiadores está presente nele – nem que seja na sucessão de chocalhadas que provocam as reorganizações da
estrutura – e as chances para que reapareça duas vezes o mesmo arranjo são praticamente nulas. (LÉVI-STRAUSS apud
LAPLANTINE, 1988, p. 138)
Antropologia Interpretativa
No meado da década de 1960, o antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006)
desenvolveu a Teoria da Antropologia Interpretativa. Geertz problematiza o estudo antropológico ao
propor uma “leitura da leitura que os ‘nativos’ fazem de suas próprias culturas”. Ele passa a discutir o
papel político e ideológico da Antropologia e de sua escrita sobre os diversos povos.
O autor passa a estudar a cultura como hierarquia de significados (rede de significados tecida
pelos antropólogos) e a busca por uma descrição densa, intensa, do universo cultural dos povos.
Em Chicago [anos 1960] – àquela altura eu começara a lecionar e agitar – teve início e começou a se difundir um
movimento mais geral [...]. Alguns, lá e em outros centros, batizaram esse desenvolvimento, ao mesmo tempo teórico
e metodológico, de “antropologia simbólica”. Mas eu, encarando tudo isso como empreendimento essencialmente
hermenêutico, um esclarecimento e definição, e não como uma metáfrase ou decodificação, e pouco à vontade com as
misteriosas e cabalísticas implicações de “símbolo”, preferi ”antropologia interpretativa”. (GEERTZ, 2001, p. 27)
Antropologias
Na atualidade, as narrativas antropológicas focam suas observações em aspectos centrais das
sociedades contemporâneas, nos feitos e representações da vida moderna: Antropologia Urbana,
Antropologia Política, Antropologia Visual, Antropologia Multirracial, entre outras abordagens
possíveis.
Antropologia Urbana
A Antropologia Urbana estuda a dinâmica urbana da sociedade atual:
::: sua forma de organização, a distribuição populacional, formas de organização da ocupação
urbana, a cidade, as práticas culturais na cidade, a cidade e sua história – a vida cotidiana,
moradia e a vizinhança;
::: práticas de lazer – o tempo sagrado;
::: apropriação do espaço por grupos diferenciados – os cenários, os atores;
::: imagens da cidade – representações do espaço urbano.
Antropologia Política
A Antropologia Política estuda a natureza e as formas das organizações políticas, desde as socie-
dades antigas até as atuais; os processos de formação dos sistemas políticos; as formas de ritualização
do poder político; a história e perspectivas dos sistemas políticos (realeza, poder divino, o colonialismo);
as relações do poder com o sistema simbólico (poder, cultura, sistema de comunicação social).
Antropologia Visual
A Antropologia Visual visa ao estudo da produção de imagens e de suas implicações culturais
na sociedade contemporânea: linguagens, meios de comunicação visual (fotografia, vídeo, televisão,
cinema), informação visual urbana (outdoor, pichação, muralismo) e as mídias radicais urbanas.
Considerações finais
As Teorias Antropológicas sucederam-se na linha do tempo, desde meados do século XIX, e multi-
plicaram as possibilidades de compreensão integral do homem, e suas produções materiais e culturais.
Elas se constituíram em paradigmas – formas de abordagem metodológicas e epistemológicas
– e em um movimento contínuo formularam teses, antíteses e sínteses teóricas e conceituais para a
compreensão da natureza do ser humano.
Esse movimento global deu-se em razão da complexidade da natureza humana e permite ao
antropólogo contemporâneo compreender o passado, estudar o presente e imaginar o futuro.
Texto complementar
Relaxe. Somos todos mestiços
E isso só traz vantagens, afirma o cientista que é o maior estudioso das diásporas humanas
(DORIA, 2007)
O antropólogo Darcy Ribeiro não viveu para saber, mas a premiada ginasta Daiane dos Santos
parece personagem saída de seus livros: mestiça, uma brasileira ideal daquelas definidas antes de
Darcy por Gilberto Freyre, por Sérgio Buarque de Holanda, é caso de estudo. Nos números coletados
de seu DNA pelo professor mineiro Sérgio Danilo Pena a pedido da BBC Brasil, deu que Daiane é
40,8% europeia, 39,7% africana, 19,6% ameríndia.
A antropologia brasileira estudou por muitos anos essa mistura de povos até chegar à famosa
conclusão de Darcy – “ser mestiço é que é bom” – mas é só de pouco tempo para cá que as ciências
biológicas vêm dizer em detalhes exatamente como ela se dá. O estudo da origem genética dos
povos começou nos anos 1950, na Europa, realizado por um jovem médico italiano criado nos anos
do fascismo. Luigi Luca Cavalli-Sforza, entrevistado pelo Aliás, não apenas inventou uma disciplina
científica. Aos 85 anos, ele é um dos mais importantes e prolíficos cientistas vivos.
Um estudioso nos moldes renascentistas, no sentido de que busca informação aproximando
áreas de conhecimento que não costumam se encontrar. Por exemplo: antropologia, genética e
matemática. Com amplo domínio das três disciplinas, após um estudo coletando amostras genéticas
de povos em todo o mundo, Cavalli-Sforza pôde traçar a história daquilo que batizou “a grande
diáspora humana”.
Nascemos, o Homo sapiens, na África Oriental. Por mais de metade da existência humana,
permanecemos lá – e aí nos aventuramos para longe. Do Oriente Médio fomos para a Rússia; de lá,
uma parte foi para a Ásia e outro grupo, mais tarde, para a Europa. Da Ásia, outro ramo seguiu para
a América. Assim, em algumas dezenas de milhares de anos, fomos lentamente ganhando novos
traços. Olhos puxados aqui, pele esbranquiçada ali, pernas mais longas, torsos mais fortes. O próprio
europeu já é mestiço – dois terços asiático, um terço africano.
As técnicas do professor Cavalli-Sforza, aplicadas no Brasil, revelam aquilo que ainda nos causa
surpresa: mestiço não tem cara. Se parecemos brancos ou negros ou mulatos, índios ou não, essa
aparência não diz o que somos. “O Brasil teve a boa sorte de não ver o racismo”, diz o velho cientista
genovês. “Essa é uma herança dos portugueses”, completa, ecoando Darcy. Sim, ser mestiço é bom.
A mistura melhora o povo – dá aquilo que os geneticistas chamam de “vigor híbrido”.
1. Ser mestiço é que é bom, como dizia Darcy Ribeiro? Talvez seja surpreendente para
algumas pessoas que a aparência física, como cor da pele, não sejam bons indícios da herança
genética. Os brasileiros estão certamente entre os povos mais misturados do planeta, embora não
sejam os únicos. A diferença é que nenhum dos outros grupos mestiços forma um povo tão vasto.
O Brasil teve a boa sorte de não ver o racismo prosperando, como costuma acontecer noutros cantos.
Isso provavelmente vem de uma herança portuguesa, povo que já demonstrava predisposição pela
mistura racial desde os tempos de suas primeiras colônias, na África. O estudo de nossas origens
genéticas apenas confirma o que já estava claro para bons observadores: a mistura entre povos e
a produção daquilo que nós geneticistas chamamos de híbridos não traz qualquer desvantagem
do ponto de vista genético. Até melhora, traz uma vantagem naquilo que chamamos de “vigor
híbrido”.
2. Ainda é possível dizer que existem raças humanas? As diferenças entre povos de locais
geográficos distintos são claramente visíveis, caso de cor da pele e tamanho e formato das partes do
corpo. Essas características refletem adaptações ao clima local que surgiram após a espécie humana
se originar na África Oriental, há relativamente pouco tempo (não mais que 100 ou 150 mil anos,
período bastante curto na escala evolutiva) e, naturalmente, após deixar a África, há coisa de 50
ou 60 mil anos. De qualquer forma, essas diferenças são triviais em todos os aspectos essenciais.
A grande maioria das diferenças genéticas se encontra entre um indivíduo e outro, jamais entre
um povo e outro. Falando em números, mais de 90% das diferenças genéticas se dão entre duas
pessoas de um mesmo povo. Apenas 10% da variação se dá entre, digamos, europeus e asiáticos,
entre africanos e americanos nativos. Isso acontece porque a nossa é uma espécie muito jovem e
ainda não houve tempo evolutivo para nos diferenciarmos. Quer dizer: não existem raças distintas
entre os homens.
3. A ideia de etnia ainda serve para explicar algo a nosso respeito? A utilidade do conceito
de “etnia” depende de sua definição. Para mim, diferenças étnicas são as diferenças entre os povos,
tanto genéticas quanto culturais. As distinções culturais são compostas pelo que aprendemos
na sociedade em que somos criados. É natural que tenhamos dificuldades na hora de entender
se um comportamento particular é determinado genética ou culturalmente. Por exemplo: o
comportamento criminoso é determinado pelos nossos genes ou pela nossa cultura? Está claro
que em grande parte o que determina é a cultura. Mas é difícil excluir de todo a tendência inata
em alguns casos raros. É aí que o conceito de “etnia” nos ajuda. Ele nos permite deixar para lá a
questão de se algo é cultural ou genético, principalmente nos casos em que a ciência não tem ainda
a capacidade de definir.
4. Que outras pistas a genética pode oferecer a respeito de nossa história humana? Em
geral, os linguistas têm uma profunda dificuldade de alcançar um consenso em uma das questões
mais importantes de sua disciplina, que é a de se a linguagem surgiu uma única vez, ou se teve
múltiplas origens. Isso acontece porque a maioria desses especialistas não tem interesse em estudar
línguas de forma comparada. Como geneticista, estou convencido de que houve uma única origem
para todas as línguas faladas atualmente. Todos os humanos vivos descendem daquele grupo rela-
tivamente pequeno que viveu na África Oriental há 100 mil anos. Essa tribo cresceu numericamente
e se expandiu pelo resto do mundo, da África para o Oriente Médio, então para a Ásia e Europa.
Por definição, tribos falam a mesma língua, e a linguagem, por conta de seu gigantesco potencial
de comunicação, há de ter sido uma força importante sem a qual a grande migração que levou o
homem a todos os cantos do planeta não teria sido possível. Todos temos a mesma capacidade
intelectual de adquirir essa técnica de comunicação que é a língua. Ela, junto com nossa capacidade
de inventar novas máquinas, são as características que nos diferenciam dos outros animais. Embora,
sempre é bom lembrar, essa é uma questão de graus. Animais também se comunicam e inventam
ferramentas. A diferença na habilidade é que é tremenda.
5. O estudo das origens dos povos pode auxiliar na resolução de conflitos políticos? Nas
questões de terra, como os embates entre judeus e palestinos, não adianta saber quem estava
lá primeiro. A propriedade de terras tem origem histórica, a maior parte das propriedades foi
adquirida de forma violenta em guerras e, mesmo em tempos de paz, não é raro que propriedades
sejam conquistadas por meios desonestos. No caso dos bascos, o problema sequer é de quem
chegou primeiro. Eles são um povo muito, muito antigo. Sua língua pertence à família de línguas
que se espalhou por todo o mundo antes das ondas migratórias que trouxeram as línguas faladas
atualmente na Europa. Ainda há idiomas “primos” do basco que sobrevivem em muitos lugares,
como no Cáucaso, na China e até mesmo entre grupos de índios americanos. Em geral, as sociedades
humanas tentam desenvolver meios para minimizar os conflitos, mas ainda temos muito a caminhar
até chegarmos a um acordo que leve à paz e à justiça social que desejamos.
Atividades
1. Na Antropologia, o treinamento do olhar é um dos exercícios mais importantes da observação
participante – trabalho de campo. Saber olhar e discernir a anatomia, as formas e as cores dos
objetos e sujeitos é a antessala da etnografia. Desenvolva uma pesquisa bibliográfica tendo como
foco principal o conceito de etnografia e de observação participante. Após a pesquisa procure
identificar os principais elementos culturais da sua cidade. Faça um pequeno relatório com as
seguintes observações:
a) Os pioneiros da cidade.
3. Que teoria inaugura a Antropologia como ciência, em que época isso ocorre, qual sua principal
característica e que conceito de homem foi formulado por ela?
Referências
BENEDICT, R. Padrões da Cultura. Lisboa: Livros do Brasil, 1989.
_____. O Crisântemo e a Espada (1946). São Paulo: Perspectiva, 2006.
BOAS, F. Primitive Art. Nova York: Capitol, 1951.
_____. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CAMINHA, P. V. de. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: <www.historianet.com.br/conteu-
do/default.aspx?codigo=552>. Acesso em: 20 ago. 2012.
CLIFFORD, J. A Experiência Etnográfica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
_____. Dilemas de la Cultura. Barcelona: Gedisa, 2001.
CLIFFORD, J.; MARCUS, G. E. Writing Culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: Univer-
sity of California Press, 1986.
DORIA, P. Relaxe: somos todos mestiços. Disponível em: <http://txt.estado.com.br/suplementos/
ali/2007/06/03/ali-1.93.19.20070603.7.1.xml>. Acesso em: 20 ago. 2012.
GEERTZ, C. A Interpretação da Cultura. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
_____. O Saber Local – novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998.
LAPLANTINE, F. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MARCUS, G. E.; FISCHER, M. Anthropology as Cultural Critique: an experimental moment in the hu-
man sciences. Chicago: University of Chicago, 1999.
RATZEL, F. Geografia Dell’Uomo: antropogeografia. Milano: Fratelli Bocca, 1914.
SMITH, G. E. The Ancient Egyptians and the Origin of Civilization. London: Harper, 1923.
Gabarito
1.
a) Nomes e atividades desenvolvidas pelos primeiros ocupantes da localidade (registrados e
documentados ou registros de crença populares).
b) Mineração, pesca, agrária, comércio, pecuária, área remanescente de quilombo, área
remanescente de aldeias indígenas.
c) Rio, mar, floresta, lagoa, serra.
2.
a) Festas religiosas (Juninas ou S. Benedito, S. Bárbara), Festas Cívicas (Independência, Proclamação
da República, Abolição da Escravidão).
b) Religiosa, militar ou civil; turística ou econômica; feriado nacional ou local; de uma comunidade
étnica ou da população em geral.
c) Participação ativa (por quê?) ou participação parcial (por quê?).
Expansão Marítima
A Revolução Comercial dos séculos XV e XVI, antessala da Revolução Industrial que caracterizaria
o século XVIII, impulsionou a expansão ultramarina europeia. A acumulação de capitais, recursos
materiais e desenvolvimento técnico e científico legaram aos europeus as condições favorecedoras
dessa expansão.
Os diversos fatores históricos do período, como a centralização do poder nas mãos de um
governante (no caso, o rei) e a canalização dos recursos da classe emergente (a burguesia) permitiram
o direcionamento de recursos materiais, econômicos e humanos para a empreitada da navegação
transcontinental. Atrás de matéria-prima, compradores e novos produtos, as naus europeias cruzaram
os mares, para muito além de suas costas e paisagens.
No alicerce dessa empreitada, encontra-se a capacidade de concentração e mobilização dos
recursos sociais disponíveis à época, a revolução tecnocientífica do Renascimento europeu5, a retomada
da iniciativa do comércio após o período de dominação árabe6, a busca de novos recursos materiais
(ouro, prata, especiarias) e, acima de muitos dos fatores anteriores, a expansão da fé católica, depois da
expulsão dos mulçumanos dos territórios europeus, no final do século XV.
Os portugueses foram os pioneiros entre os pioneiros. A centralização do poder político em
Portugal, o domínio de técnicas avançadas de navegação, sua forte presença nas rotas comerciais e de
trocas, a liquidez de recursos financeiros auferidos no comércio e a posição geográfica estratégica deram
aos portugueses grande vantagem, em relação aos demais povos europeus, em especial, os espanhóis.
A principal base científica da expansão ultramarina portuguesa foi a Escola de Sagres7. Num curto
espaço de tempo, a Escola de Estudos Náuticos, fundada pelo Infante Dom Henrique, transformou-se no
mais importante centro de estudos e pesquisas das ciências marítimas.
Na Escola de Sagres desenvolveram-se instrumentos e recursos técnicos imprescindíveis para a
aventura náutica lusitana. Além de sua famosa Junta de Cartógrafos – responsáveis pelo esquadrinha-
mento dos mares nos mapas náuticos portugueses, planos de navegação com extraordinária precisão
para a época –, os portugueses aprimoraram a bússola, o astrolábio – instrumento legado aos portugue-
ses pelos sábios árabes que ocuparam o território durante séculos, a ampulheta – relógio de areia –, os
portulatos – livros com descrições precisas das regiões conhecidas – o Quadrante e as técnicas de cons-
trução naval, com o desenvolvimento da caravela. Sem os domínios e conhecimentos técnicos desses
instrumentos, a aventura portuguesa de além-mar seria uma empreitada passível de fracasso.
O desenvolvimento das caravelas foi um grande salto à frente dado pelos mestres carpinteiros
portugueses. Essa navegação era capaz de transportar de 20 a 100 homens, com áreas específicas para
o depósito de alimentos e de armas, e para os alojamentos dos marinheiros e dos capitães. A grande
inovação técnica da caravela foi a utilização de velas triangulares em mar aberto. A técnica permitiu à
navegação deslizar em zigue-zague, independentemente da força e da direção do vento.
5 Renascimento europeu foi o movimento cultural que ocorreu no século XVI no norte da Europa e marcou o final da Idade Média e o início da
Idade Moderna. Fez parte das transformações culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas que caracterizaram a transição do Feudalismo
para o Capitalismo.
6 A dominação árabe teve início em 756 com a tomada da Península Ibérica, constituindo-se inicialmente num emirado politicamente
independente, ainda que reconhecendo a supremacia do Califado de Bagdá. Período considerado símbolo da proposta de diálogo
intercultural e inter-religioso, estendeu-se durante oito séculos até a reconquista cristã do reino de Granada em 1492 resultando na expulsão
dos muçulmanos seguida da expulsão dos judeus.
7 A Escola de Sagres foi fundada em 1417 pelo Infante Dom Henrique, que pretendia tornar mais eficiente o empreendimento marítimo-
-mercantil. Representa a mudança radical e definitiva do rumo da expansão ultramarina.
A Escola de Sagres deu aos portugueses uma vantagem que só depois seria alcançada pelos
espanhóis na corrida ultramarina.
Após a expulsão moura – final do século XV – os reis católicos Fernando e Isabel8 deram início às
grandes navegações espanholas. Os monarcas forneceram suportes econômicos, logísticos, técnicos e
humanos para que o navegador Cristóvão Colombo9 desse início à viagem que o levaria, supostamente,
às Índias.
Colombo navegou em direção ao oeste até encontrar as Antilhas. Mais tarde, o navegador chegou
às ilhas de Cuba, El Salvador e Santo Domingo.
Com o ingresso dos espanhóis à empresa da navegação, acirraram-se os conflitos europeus
para além-mar. Os governos português e espanhol disputavam palmo a palmo cada pedaço de terra
e recursos encontrados no “Novo Mundo”. Sob a autoridade da Igreja Católica Apostólica Romana, a
intensificação dos conflitos levou os países a assinarem um acordo que passou para a história como o
“Tratado de Tordesilhas10”, que procurou disciplinar as disputas advindas dos encontros de novas terras
e riquezas.
As duas nações ibéricas lançaram mão sobre as terras e riquezas nas Américas, África e Ásia.
Mais tarde, Inglaterra, França e Holanda lançaram-se à aventura ultramarina e provocaram a
ruptura do antigo domínio dos dois povos pioneiros das empreitadas no além-mar.
8 O título de reis católicos é o nome pelo qual ficou conhecido o casal composto pela rainha Isabel I de Castela e o rei Fernando II de Aragão,
que unificaram os reinos ibéricos no país que se tornou Espanha.
9 Cristóvão Colombo (1451-1506) foi um navegante genovês que descobriu a América a serviço da Espanha.
10 Tratado de Tordesilhas: tratado assinado em 1494 por Portugal e Espanha que dividia o “Novo Mundo” em duas partes: as terras a leste
pertenciam a Portugal e as terras a oeste pertenciam à Espanha.
11 Ao chegarem às Américas, os europeus imaginavam que tinham alcançado a Índia, por essa razão deram aos povos encontrados no “Novo
Mundo” o nome de índios.
não entendiam, produtores do que não consumiam. O invasor, ao contrário, vinha com as mãos cheias e as suas naus
abarrotadas de machados, facas, facões, canivetes, tesouras, espelhos e, também, miçangas cristalizadas em cores
opalinas. Quanto índio se desembestou, enlouquecido, contra outros índios e até contra seu próprio povo, por amor
dessas preciosidades! Não podendo produzi-las, tiveram que encontrar e sofrer todos os modos de pagar seus preços,
na medida em que elas se tornaram indispensáveis. Elas eram, em essência, a mercadoria que integrava o mundo índio
com o mercado, com a potência prodigiosa de tudo subverter. Assim se desfaz, uniformizado, o recém-descoberto
Paraíso Perdido.
Em tudo eram diferentes os costumes dos europeus e o dos habitantes das novas terras, os índios
americanos.
Nesse período, a Antropologia Espontânea – narrativa e relato (cartas, diários, relatórios) – eram
feitos pelos missionários, viajantes, comerciantes, exploradores, militares e administradores das novas
terras.
Descreviam-se as riquezas da terra, a diversidade e exuberância da fauna e flora, a multiplicidade
de formas da topografia, as anatomias, formas, gostos, modelos, jeitos e traços dos povos “descobertos” e
as suas crenças e valores éticos e morais. Esses foram os primeiros relatos “etnográficos” com os registros
das diversidades e alteridades humanas e culturais.
A carta do escrivão Pero Vaz de Caminha dá uma visão de como se articulavam as primeiras litera-
turas antropológicas, inauguradas com a descrição de formas e costumes de outros povos. O confronto
de costumes e crenças merece a atenção escrupulosa dos narradores de então.
Caminha descreve-lhes as formas:
[...] os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e
rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de
cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria
o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o
era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a
levantar.
Os costumes e modos:
[...] então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não
eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças
seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram,
quedaram-se e dormiram.
Na mesma linha descritiva avança o navegador Américo Vespúcio12. Ele registra com precisão
etnográfica seu percurso até as novas terras, suas fauna e flora, seus povos e seus costumes.
Vespúcio narra as formas e feições dos nativos:
12 Américo Vespúcio (1454-1512), italiano, navegador e mercador. Foi o primeiro a constatar que as recém-descobertas terras do Novo Mundo,
que receberam o nome de América em sua homenagem, constituíam um continente e não parte da Ásia.
Têm os cabelos negros e crescidos; são ágeis e fáceis no andar e nos jogos, e de mui belas feições, as quais contudo a si
próprios desfiguram, furando as faces, os lábios, as ventas e as orelhas. E não se creia que os buracos sejam pequenos ou
tenham apenas um, pois vi muitos com sete, cada um dos quais tão grandes como um abrunho. Tapam estes buracos
com bonitas pedras azuis de mármore, cristalinas ou de alabastro, e com ossos alvíssimos e outros objetos elaborados
segundo seu uso, que é insólito e monstruoso. Homens há que levam nas faces e lábios sete pedras, cada uma de meta-
de da palma da mão de comprido. Não sem admiração, muitas vezes achei pesarem essas sete pedras dezesseis onças,
além das que trazem pendentes de três buracos nas orelhas. (VESPÚCIO, 2007)
Das terras:
[...] a terra daquelas regiões é fértil e amena, de muitos montes e morros, e infinitos vales, e regada de grandes rios
e fontes, coberta de extensos bosques, densos e apenas penetráveis, e povoada copiosamente de feras de todas as
castas. Nela nascem, sem cultura, grandes árvores, as quais produzem frutos deleitosos, e de proveito ao corpo e nada
nocivos, e nenhuns frutos são parecidos com os nossos. Produzem-se inumeráveis gêneros de árvores e raízes, de que
fabricam pão e ótimos mingaus, além de muitos grãos ou sementes não semelhantes aos nossos.
São esses relatos e narrativas que foram o chassi das narrativas antropológicas primordiais, pré-
-científicas; da antropologia “espontânea”. Se ela é uma constante desde os tempos antigos, nos relatos e
histórias dos viajantes da Antiguidade, essas narrativas do século XVI tomam novas formas e contornos,
com o advento da aventura ultramarina. O contato com povos diferentes, com costumes, hábitos e
formas de organização da vida material e imaterial distintas das dos europeus, em escala até então
pouco experimentada, impulsionou a reflexão sobre o homem e seus feitos.
Estavam dadas assim, com o encontro de dois mundos distintos, as bases para a reflexão da natu-
reza humana dos novos povos e novos mundos encontrados.
Para o antropólogo Laplantine (1987, p. 37), esse encontro é a gênese da “reflexão antropológica”.
Ele destaca uma questão central do contato com a alteridade, do confronto visual com a diferença:
os novos povos descobertos pelos navegadores pertencem à humanidade? A reposta a essa questão
fundamenta-se, à época, nas escritas religiosas. A questão é colocada dentro dos seguintes parâmetros:
O selvagem tem alma? O pecado original também lhes diz respeito? (LAPLANTINE, 1987, p. 37-38).
Na busca de resposta a essa questão, na metade do século XVI, a arena da polêmica é ocupada
por dois dos maiores polemistas do período. Em defesa da natureza humana dos índios encontra-se o
missionário dominicano Bartolomeu de Las Casas13; no lado oposto, na defesa da negação da natureza
humana dos indígenas encontra-se o jurista Juan Ginés de Sepúlveda14.
Las Casas acentua as realizações humanas desses povos. O missionário compara, para fortalecer
seu argumento, as realizações dos povos encontrados com os povos europeus, e conclui, em alguns
aspectos, com a superioridade dos primeiros em relação aos segundos:
Àqueles que pretendem que os índios são bárbaros, respondemos que essas pessoas têm aldeias, vilas, cidades, reis,
senhores e uma ordem política que, em alguns reinos, é melhor que a nossa [...]. Nós mesmos fomos piores, no tempo
de nossos ancestrais e sobre toda a extensão de nossa Espanha, pela barbárie de nosso modo de vida e pela depravação
de nossos costumes. (LAS CASAS apud LAPLANTINE, 1987, p. 38-39)
O missionário dominicano15 terá, mais tarde, papel decisivo na escravização dos africanos, negan-
do-lhes a mesma natureza humana atribuída aos nativos americanos.
Na outra linha da contenda, posiciona-se o jurista Sepúlveda. Sua arguição tem caminho oposto
ao de Las Casas. De forma enfática, nega aos nativos qualquer possibilidade de natureza humana e
defende, sem cerimônia, a submissão dos indígenas aos europeus:
Aqueles que superam os outros em prudência e razão, mesmo que não sejam superiores em força física, aqueles
são, por natureza, os senhores; ao contrário, porém, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que tenham as forças
físicas para cumprir todas as tarefas necessárias, são por natureza servos. [...] E se eles recusarem esse império, pode-
-se impô-lo pelo meio das armas e essa guerra será justa, bem como o declara o direito natural que os homens
honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que não têm essas virtudes. (SEPÚLVEDA apud
LAPLANTINE, 1987, p. 39)
Não se furta a esse debate da época uma figura importante na colonização do Brasil, o padre
Manoel da Nóbrega16. Segundo Darcy Ribeiro (1995), Nóbrega, em 1558, defende um plano de
colonização que implica a eliminação dos nativos, ou escravização dos que não forem eliminados.
Ribeiro dá ênfase à “eloquência espantosa” de Nóbrega para pôr fim à antropofagia17: era necessário
dar fim “a boca infernal de comer a tantos cristãos”.
Se S. A. [Sua Alteza] os quer ver todos convertidos, mande-os sujeitar e deve fazer estender aos cristãos por a terra
dentro e repartir-lhes os serviços dos índios àqueles que os ajudarem a conquistar e senhoriar como se faz em outras
terras novas [...]. Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos,
porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa e terão serviços de avassalagem dos índios e a
terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S. A. terá muita renda nesta terra porque haverá muitas cria-
ções e muitos engenhos, já que não haja muito ouro e prata [...] (NÓBREGA in RIBEIRO, 1995, p. 50-51)
Segundo Darcy Ribeiro (1995), essa polarização sobre a natureza humana do indígena no Brasil
vai perdurar durante um longo tempo, no início da ocupação territorial. Ela se expressará em conflitos
pontuais entre os projetos de ocupação e a política dos jesuítas.
Apesar de o projeto jesuítico de colonização do Brasil nascente ter sido formulado sem qualquer escrúpulo humanitário,
tal foi a ferocidade da colonização leiga, que estalou, algumas décadas depois, um sério conflito entre os padres da
13 Bartolomeu de Las Casas (1472-1566) era espanhol e frei dominicano que converteu-se à causa da evangelização pacífica dos índios,
denunciando os abusos cometidos e dedicando-se à defesa da vida, da liberdade e dignidade do índio.
14 Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573), jurista espanhol, baseava em Aristóteles a fundamentação teórica para sua tese de escravidão
natural dos índios.
15 Las Casas, é certo, tendo aconselhado primeiramente a introdução de negros nas Índias, caiu depois em si, vendo a injustiça com que
os tomavam os portugueses. Porque, diz “la misma razón es de ellos que de los índios”. Contudo, a História de las Índias, onde figura essa
retratação, apesar de ter circulado logo em manuscritos, só encontraria seu primeiro impressor três séculos após a morte de Las Casas. De
qualquer modo, sua denúncia do tráfico e escravidão dos negros não encontrou a larga ressonância que tivera a campanha pela liberdade dos
índios” (HOLANDA, 2000, p. 375).
16 Padre Manuel da Nóbrega (1517-1570) foi um sacerdote jesuíta português, chefe da primeira missão jesuítica à América.
17 Antropofagia é o ato de consumir uma parte, várias partes ou a totalidade de um ser humano.
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
A formação da literatura antropológica | 31
18
Companhia [de Jesus] e os povoadores dos núcleos agrário-mercantis. Para os primeiros, os índios, então em declínio
e ameaçados de extinção, passaram a ser criaturas de Deus e donos originais da terra, com direito a sobreviver se
abandonassem suas heresias para incorporarem ao rebanho da Igreja, na qualidade de operários da empresa colonial
19
recolhidos às missões [jesuíticas] . Para os colonos, os índios eram um gado humano, cuja natureza, mais próxima de
bicho do que de gente, só os recomendava à escravidão. (RIBEIRO, 1995, p. 53)
Dessa forma, no início do debate da natureza humana emanada da alteridade e diversidade cul-
tural e humana, o núcleo central da discussão é de ordem religiosa, entre os que praticam a religião
cristã e os outros, destituídos da prerrogativa humana delegada pela religião.
A esse respeito, Holanda (2000) dirá:
Não parece excessivo, pois, dizer que muitos dos antigos missionários do Brasil que, agindo embora à maneira de Frei
Bartolomeu de Las Casas, deveriam parecer-se um pouco, no seu pensar, com Ginés de Sepúlveda, o acre opositor
do Apóstolo das Índias [Las Casas] e partidário do Campelle intrare até o extremo da violência intolerante contra os
bárbaros americanos. Assim é de crer que veriam no gentio muito mais o “perro cochino” do que o “bom selvagem”.
(HOLANDA, 2000, p. 378)
Tangencial à discussão da natureza humana dos indígenas, outro debate aflora dos textos e nar-
rativas do período dessa Antropologia “espontânea”: a natureza da terra (flora, fauna, riquezas natu-
rais, clima e condições humanas). Algumas narrativas apontam a natureza degradante das novas terras,
impróprias para o desenvolvimento das potencialidades humanas. Outras, pelo contrário, destacam a
natureza generosa da terra e de suas condições, comparadas ao paraíso terrestre.
Dentro do universo dessas duas visões, a natureza humana era pendular: ora uma natureza boa
com pessoas de segunda qualidade, ora uma natureza má com pessoas de primeira qualidade.
O historiador Sérgio Buarque de Holanda (2000) registrará as diversas visões do paraíso que circu-
laram entre as narrativas dos primeiros períodos da colonização das Américas.
Uma visão nostálgica do paraíso:
[...] de uma parte, a polêmica dirigida contra a miséria do tempo presente, amparada no louvor e nostalgia de um pas-
sado venturoso e idílico, iria aparentemente favorecê-la. Essa polêmica sabe-se que é de todos os tempos, mas quando
se torna singularidade viva é nos tempos medievais, dando causa até as fórmulas estereotípicas com a do ubi sunt, de
que a balada mais célebre de François Villon é exemplo ilustre, mas não o único. (HOLANDA, 2000, p. 229)
Essas visões distintas da natureza e do homem é a grade de fundo que permeia todo o debate da
diversidade humana e cultural, antes do Iluminismo20. O debate estava preso à concepção religiosa de
mundo. Navegantes, militares, administradores e, acima dos demais, os religiosos sacavam dos textos
18 A Companhia de Jesus foi criada em 1534 pelo espanhol Inácio de Loyola com o objetivo de combater o Protestantismo e por meio de seus
missionários espalhar a fé cristã.
19 As missões jesuíticas funcionavam como pequenas colônias independentes subordinadas diretamente à Igreja Católica. Seus missionários,
os padres jesuítas, eram os responsáveis pela evangelização e catequização dos povos colonizados.
20 Iluminismo é o nome do movimento surgido na França do século XVII e que defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica que
dominava a Europa desde a Idade Média. Segundo os filósofos iluministas, essa forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas
em que se encontrava a sociedade. Os pensadores que defendiam esses ideais acreditavam que o pensamento racional deveria ser levado
adiante substituindo as crenças religiosas e o misticismo, que, segundo eles, bloqueavam a evolução do homem.
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
32 | A formação da literatura antropológica
sagrados às bases de suas arguições para explicar as diferenças da natureza humana, explicitada pelo
encontro entre os povos e culturas do velho mundo com os povos e cultura dos novos mundos.
Ora, sucede que o paraíso terrestre é, pela sua própria essência, inatingível aos homens, ou, na melhor hipótese, só
pode, talvez, ser alcançado à custa de ingentes e sobre-humanos esforços. De fato, só com o declinar do mundo
medieval é que a ideia da corrupção e da degenerescência da natureza poderá afetar mais vivamente aqueles para
quem a salvação eterna se torna, cada vez mais, um ideal longínquo e póstumo. Ao mesmo tempo irá esbater-se pouco
a pouco, embora teoricamente ainda válida, a crença de que o Céu, um Céu sempre mais distante, cuida de interferir a
todo o momento nos negócios profanos. (HOLANDA, 2000, p. 230)
Dá-se um salto extraordinário, em relação ao período anterior. O Iluminismo lança luzes diferentes
no debate sobre a diferença humana e cultural. Procuram-se, não mais nos textos sagrados, mas nas
reflexões teóricas e conceituais, as respostas para tamanha diversidade e alteridade.
No campo científico, desdobram-se várias teorias que procuram dar conta da complexidade
humana: surge o conceito de raça, as explicações da origem humana pelo monogenismo21 ou poligenis-
mo22 até se chegar à evolução como paradigma, modelo do desenvolvimento humano.
No novo debate inaugurado pelo Iluminismo tomam assento duas das principais figuras de proa
da filosofia ocidental: o genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e o alemão Georg Wilhelm
Friedrich Hegel (1770-1831).
No itinerário desse debate, Rousseau elabora o conceito-chave de sua teoria: a perfectibilidade
humana. Segundo o filósofo, em liberdade, os homens seriam capazes de resistir aos ditames da natureza,
uma especificidade humana, estatuto da condição humana, em contato direto com a natureza ou com
a civilização.
Nessa linha, Rousseau desenvolve o conceito do bom selvagem. Ao erigir essa figura, o genebrino
não exaltou a animalidade do selvagem, mas a sua humanidade ante o civilizado. Para ele, a civilização
é a responsável pela degeneração das relações morais. As regras morais e a etiqueta podem esconder as
formas mais vis e egoístas da natureza humana. Diferente seria a vida do homem primitivo.
O primitivo seria feliz por viver em conformidade com suas necessidades inatas: seria autossufi-
ciente em sua existência isolado na floresta. O homem natural é dotado de livre-arbítrio e do sentido de
perfeição. Nessa fase de sua existência, o homem primitivo vive sua idade do ouro, “a meio caminho da
brutalidade das etapas anteriores e a corrupção das sociedades civilizadas” (ROUSSEAU, 1987, p. XIII).
Pergunto qual das duas – a vida civil ou a natural – é mais suscetível de tornar-se insuportável. À nossa volta vemos
quase somente pessoas que se lamentam de sua existência, inúmeras até que dela se privam assim que podem...
Pergunto se algum dia se ouviu dizer que um selvagem em liberdade pensa em lamentar-se da vida e querer morrer.
Que se julgue, pois com menos orgulho, de que lado está à verdadeira miséria. (ROUSSEAU, 1775/1978, p. 251 apud
SCHWARCZ, 1993, p. 45)
Em Introdução à História da Filosofia (1816), Hegel mostra como a Filosofia está ligada à história,
ao desenvolvimento do acontecer histórico. Hegel pinta, com cores carregadas, uma imagem negativa
da América do Sul em relação à América Norte. Aos continentes africano e asiático, o pensador alemão
reserva uma imagem ainda mais degradante: imagem paralisada em sua natureza hostil, e incapaz de
participar da História Universal da Humanidade.
A diferença entre os povos africanos e asiáticos, por um lado, e os gregos e romanos e modernos, por outro, reside pre-
cisamente no fato de que estes são livres e o são por si; ao passo que aqueles o são sem saberem que o são, isto é, sem
existirem como livres. Nisso consiste a imensa diferença das suas condições. Todo o conhecimento e cultura, a ciência
e a própria ação não visam a outro escopo senão a exprimir de si o que é em si, e desse modo a se converter em objeto
de si mesmo. (HEGEL, 1980, p. 335)
Numa única penada, Hegel divide as realizações dos africanos e asiáticos (Novo Mundo) de um
lado e dos gregos e romanos (Velho Mundo), de outro. Ele saca do universo do conhecimento, da cultura
e da ciência, os povos incorporados à sinfonia da humanidade, com o advento das grandes navegações.
Abre-se a brecha no campo da Ciência para se questionar a natureza humana desenvolvida ou
atrasada, com fortes conotações pré-concebidas.
Laplantine (1987, p. 45) observa essa carga preconceituosa:
21 Monogenismo é a teoria que considera todas as raças humanas provenientes de um tipo único primitivo.
22 Poligenismo é a teoria que considera que as diferentes raças humanas derivariam de diferentes espécies primitivas.
Tudo, na África, é nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os “negros” não respeitam nada, nem mesmo eles pró-
prios, já que comem carne humana e fazem comércio da “carne” de seus próximos. Vivendo em uma ferocidade bestial
inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado bruto, eles não têm moral, nem instituições sociais, religião ou
estado. Petrificados em uma desordem inexorável, nada nem mesmo as forças da colonização, poderá nunca preencher
o fosso que os separa da história universal da humanidade.
As reflexões dos dois pensadores atualizam, no século XVIII, os debates dos séculos anteriores.
Estes, com a marca da racionalidade e dos pressupostos científicos; aqueles com a marca da explicação
teológica sobre a diversidade e alteridade humana e cultural.
Rousseau, na sua argumentação, lança mão de uma unidade humana, distorcida depois com a
cultural e o advento da propriedade privada. O bom selvagem é aquele que possui o livre arbítrio e,
longe das amarras da civilização, constrói seu universo de representações, pois está sob a égide da
“perfectibilidade humana”.
Hegel, na linha da Fenomenologia do Espírito (1807), divide a humanidade entre os possuidores
de cultura e aqueles que se encontram à margem dessa civilização. Os primeiros seriam os herdeiros dos
legados dos gregos e dos romanos; os segundos, dos africanos e asiáticos, povos recém-incorporados
ao universo das civilizações europeias. Dessa forma, segundo o autor, eles estariam fora do pensamento,
da ciência e da cultura.
A grande diferença da polêmica tratada por esses dois pensadores do século XVIII em relação à
polêmica dos séculos anteriores é a reivindicação dos estatutos científicos do debate.
Aos poucos, a concepção de homem e das suas ações históricas deixou as fronteiras da Teologia
e ingressa no campo das Ciências.
Essa transição das compreensões da natureza e diversidade humanas do universo teológico para
o científico é a pedra angular da nova ruptura provocada no campo da Antropologia, que passa de
espontânea para a arena das Ciências Sociais, com o advento do século XIX.
Considerações finais
O período da pré-história da Antropologia percorreu um longo trajeto, do século XVI aos séculos
XVII e XVIII. Na primeira fase, a Antropologia Espontânea era um exercício de aventureiros e viajantes.
Seus registros minuciosos descreveram com precisão etnográfica os costumes, hábitos, crenças,
produção, forma de circulação e consumo dos novos povos encontrados com o advento das grandes
navegações.
Nos seus primórdios, as construções teóricas para explicar a diversidade e alteridade humana e
cultural baseavam-se nos textos sagrados, nas Escrituras Sagradas. Nessa fase, colocou-se uma questão
essencial: a natureza divina dos novos povos. A resposta a essa pergunta foi crucial para o desdobra-
mento cultural e humano desses povos, na África, América e Ásia.
Com o Iluminismo, procuram-se nas concepções científicas as explicações sobre a natureza
humana e suas implicações históricas. A existência dos homens e de suas realizações deve justificativas
não mais à fé teológica, mas à razão científica.
Essa é a antessala da experiência que permitirá, nos séculos seguintes, à Antropologia firmar-se
como ciência social e definir seus campos de pesquisa, suas metódicas e seus paradigmas científicos.
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
A formação da literatura antropológica | 35
Texto complementar
Américo Vespúcio (em italiano Amerigo Vespucci) (1454-1512). Mercador, navegador, cosmógrafo
e explorador. Viajou pelo Novo Mundo escrevendo sobre essas terras a Ocidente da Europa. Vespúcio
encarregou-se em Sevilha do aprovisionamento de navios para a segunda e a terceira viagens de
Cristóvão Colombo.
Mundus Novus
(VARNHAGEN, 2007)
Há dias lhe escrevi extensamente acerca do meu regresso das terras novas, que, na frota a
expensas deste Sereníssimo rei de Portugal, corremos e descobrimos; as quaes terras nos deve ser
permitido chamar Novo Mundo, porque, entre os nossos maiores, não houve o menor conhecimento
de que fossem habitadas, e, para todos que ouvirem, será uma novidade. E, entretanto, esta opinião
vai além da dos antigos, pois, deles, a maior parte dizia que, além da equinocial, para a banda do
meio-dia, não existia terra continental, mas somente o mar Atlântico, e os que afirmaram haver aí
terra negaram que fosse habitada de racionais. Mas, o ser esta opinião falsa e a contrária verdadeira,
se provaram nesta minha última viagem, pois naqueles meridianos encontrei terra continental
habitada de mais povos e animais que a nossa Europa e a Ásia ou África, e os ares mais temperados e
amenos que em qualquer outra região conhecida, conforme direi, tratando do que vi ou ouvi digno
de notar neste Novo Mundo e segundo se verá mais abaixo.
Aos 14 de maio de 1501 partimos de Lisboa por ordem do dito rei, com três navios, em busca
das novas terras austrais. Com viagem feliz, navegamos, de contínuo, dez meses para as bandas do
sul, pela forma seguinte. Fizemos caminho pelas ilhas, antes ditas Fortunadas, e que hoje se dizem
Grã-Canárias, que ficam no terceiro clima e confins do ocidente povoado. Depois corremos, pelo
oceano, todo o litoral africano e parte do etíope, até o promontório chamado de Etíope por Ptolo-
meu; o qual agora, pelos nossos, se diz Cabo Verde e pelos etíopes Bezeguiche, e a região Mandinga,
em 14.º ao norte da equinocial, habitada por pretos. [...]
[...] No dia 17 de agosto de 1501 surgimos na costa daquela terra, agradecendo a Deus, com
solemnes preces, e celebrando uma missa cantada, a qual terra reconhecemos não ser ilha, mas sim
um continente, pois corremos ao longo do seu litoral, sem a rodear, e era povoada de inúmeros
habitantes e de muitas sortes de animais silvestres, que não se encontram nos nossos países, e
muitas outras coisas nunca de nós vistas, que seria longo de referir. Muito devemos à clemência de
Deus, que nos fez aportar naquela região, porque já nos faltava água e lenha, e poucos dias mais
poderíamos aturar no mar. Por isso a ele honra e glória em ação de graças.
[...] Andaríamos vagos e errantes, se não nos valêssemos dos nossos instrumentos de tomar a
altura – o quadrante e o astrolábio, bem conhecidos. E assim, desde então, todos nos fizeram muita
honra, e lhes provei que, sem conhecimento da carta de navegar, não há disciplina que valha para a
navegação, a não ser pelos mares já pelos mesmos indivíduos muito navegados.
[...] Uma parte deste continente jaz na zona tórrida, ao sul da equinocial desde o oitavo grau.
Tanto ao longo dele navegamos que, passado o trópico de Capricórnio, chegamos à altura de
cinqüenta graus, na distância de dezessete e meio do circulo antártico. E do que vi e investiguei
da natureza daquelas gentes, dos seus costumes e trato, da fertilidade da terra, da salubridade dos
ares, da disposição do céu e dos corpos celestes, e, especialmente das estrelas fixas da oitava esfera,
nunca aos nossos maiores vistas ou tratadas, passarei a dar conta.
Começarei pela gente. Foi tanta a multidão dela, mansa e tratável, que encontramos naquelas
regiões, que, como diz o Apocalipse, não se pôde contar. Os de um e outro sexo andam nus, sem
cobrir nenhuma parte do corpo, como saem dos corpos das mães, e assim vão até a morte. Têm
os corpos grandes e robustos, bem dispostos e proporcionados, de cor tirante a vermelha, o que,
segundo creio, lhes procede de serem tintos pelo sol, andando nus.
Têm os cabelos negros e crescidos; são ágeis e fáceis no andar e nos jogos, e de mui belas
feições, as quais contudo a si próprios desfiguram, furando as faces, os lábios, as ventas e as orelhas.
E não se creia que os buracos sejam pequenos ou tenham apenas um, pois vi muitos com sete, cada
um dos quais tão grandes como um abrunho. Tapam estes buracos com bonitas pedras azuis de
mármore, cristalinas ou de alabastro, e com ossos alvíssimos e outros objetos elaborados segundo
seu uso, que é insólito e monstruoso. Homens há que levam nas faces e lábios sete pedras, cada uma
de metade da palma da mão de comprido. Não sem admiração, muitas vezes achei pesarem essas
sete pedras dezesseis onças, além das que trazem pendentes de três buracos nas orelhas.
Mas este uso é somente dos homens. As mulheres não furam as faces, mas somente as orelhas.
Outro costume têm extravagante, e que parece incrível: que as mulheres, sendo libidinosas,
fazem inchar o membro de seus maridos tanto, que parecem brutos, e isto por meio de certo arti-
fício e mordedura de uns bichos venenosos, por cujo motivo muitos deles o perdem e ficam como
eunucos.
Não possuem panos de lã nem de linho, nem mesmo de algodão; porque os não necessitam,
nem têm bens de propriedade; porém tudo lhes é comum. E vivem juntos, sem rei nem império, e
cada qual é senhor de si.
Tomam tantas mulheres quantas querem, e o filho se junta com a mãe, e o irmão com a irmã, e
o primo com a prima, e o caminhante com a que encontra. Basta à vontade para matrimoniarem, no
que não observam ordem alguma. Além disso, não possuem templos nem leis, nem são idólatras.
Que mais direi? Vivem secundum naturam, e se pode conceituar de epicureos mais que de estóicos.
Não há entre eles comerciantes nem comércio. Guerreiam-se entre si, sem arte nem ordem. Os mais
velhos, com alguma parcialidade obrigam a quanto querem os jovens, e os levam à guerra, na qual
se matam cruamente; e aos que cativam não poupam as vidas senão para que os sirvam toda a vida,
ainda que a outros comem, sendo certo que é entre eles a carne humana manjar comum; e se há
visto haver o pai comido mulher e os filhos. E um conheci eu, a quem falei, que se gabava de haver
saboreado trezentos corpos humanos, e até estive vinte e sete dias em certa povoação, onde vi
dependurada pelas habitações carne humana salgada, como entre nós se usa com o toucinho e a
chacina de porco.
Digo mais: até se admiram de como nós não comamos os nossos inimigos, nem façamos uso
de sua carne, que dizem saborosíssima. Suas armas são arcos e flechas; e, quando se afrontam em
ação não cobrem nenhuma parte do corpo para defender-se, e nisto são semelhantes aos animais.
Procuramos dissuadi-los quanto nos foi possível destes bárbaros costumes, e eles nos prometeram
deixá-los.
As mulheres vão nuas, e conquanto libidinosas, como disse, são assaz belas e bem formadas; e
pasmoso nos pareceu que, entre as que vimos, nenhuma se notava que tivesse os peitos caídos;
e as que já haviam parido, pela forma do ventre e sua contração, não se diferençavam das virgens, e
se lhes semelhavam nas outras partes do corpo, do que por decênencia deixo de ocupar-me; mas
quando podiam tratar com os nossos cristãos, impelidas pelo desejo, não tinham o menor pudor.
Vivem cento e cinqüenta anos e raras vezes adoecem. E se adoecem, a si próprios se curam
com certas raízes de plantas. Eis quanto de mais notável entre eles observei. Os ares aí são tempera-
dos e bons; e, pelo que pude deduzir de suas narrações, não há pestes nem doenças provenientes
da corrupção do ar, e, se não morrem de morte violenta, vivem larga vida; segundo creio, porque
sempre aí predominam os ventos austrais, e principalmente o que denominamos euro ou aquilão.
Deleitam-se na pesca, e o mar é aí mui próprio para ela, porque é copioso em toda sorte de
peixes.
Não se dão à caça; penso que porque havendo aí muitas sortes de animais, maxime leões e
ursos e muitas cobras e outros bichos hórridos e disformes, e porque os bosques são extensos e as
árvores muito grandes, não ousam arriscar-se nus e sem comprimento a tantos perigos.
A terra daquelas regiões é fértil e amena, de muitos montes e morros, e infinitos vales, e regada
de grandes rios e fontes, coberta de extensos bosques, densos e apenas penetráveis, e povoada
copiosamente de feras de todas as castas. Nela nascem, sem cultura, grandes árvores, as quais
produzem frutos deleitosos, e de proveito ao corpo e nada nocivos, e nenhuns frutos são parecidos
com os nossos. Produzem-se inumeráveis gêneros de árvores e raízes, de que fabricam pão e ótimos
mingaus, além de muitos grãos ou sementes não semelhantes aos nossos.
[...] As pérolas abundam nesta região, como em outro lugar escrevi. Seria demasiado prolixo e
descomedido se quisesse dar conta uma por uma de todas as coisas dignas de notícia e das numerosas
espécies e multidão de animais. E verdadeiramente creio que o nosso Plínio não conseguiu tratar da
milésima parte dos animais, nem dos papagaios e outros pássaros, os quais, naqueles países, são de
formas e cores tão variadas, que o artista Policleto não conseguiria pintá-los. Todas as árvores tão
odoríferas, e produzem gomas ou óleos, ou algum outro licor, cujas propriedades todas, se fossem
conhecidas, não duvido que andaríamos todos sãos. E por certo que se o paraíso terreal existe em
alguma parte da terra, creio que não deve ser longe destes países, ficando situado ao meio dia, com
ares tão temperados, que nem no inverno gela, nem no verão faz calor.
[...] Após estas vêm duas, cuja semi-periferia tem doze graus e meio, e com ela se vê outro canopo
claro. Seguem mais seis estrelas formosíssimas e claríssimas entre outras da oitava esfera, que, na
superfície do firmamento, têm no diâmetro da periferia trinta e dois graus, e são acompanhados
de um canopo escuro de imensa grandeza, que se vê na via láctea, e quando se acham na linha do
meio-dia apresentam esta figura:
[...] Naquele hemisfério vi coisas não de acordo com as razões dos filósofos. Perto da meia-noi-
te, foi visto o arco-íris brilhar, não só por meus olhos, como por todos os nautas. Igualmente vimos à
lua nova no dia da conjunção com o sol. Todas as noites percorrem naquele céu inúmeros vapores
e flamas ardentes. Disse hemisfério, ainda que, com respeito a nós, não o seja mui rigorosamente,
mas só para que nos entendamos.
[...] E o dito baste quanto a cosmographia.
Tais foram as coisas mais notáveis que vi nesta minha última viagem, que denomino Jornada
Terceira, pois as outras duas foram as viagens que para o ocidente fiz por mandado do Sereníssimo
rei de Hespanha, nas quais assentei, dia por dia, todas as coisas admiráveis e mais de notar do sublime
Creador, nosso Deus, para, quando tenha tempo, me dedicar a coligir todas estas singularidades e
maravilhas, escrevendo, geográfica ou cosmograficamente, um livro, para que minha memória passe
à posteridade, e se conheça o imenso certifício de Deus Onipotente, em parte dos antigos ignorado
e de nós conhecido. Pelo que rogo a Deus clementíssimo que me prolongue os dias de vida, a fim
de que com saúde e a sua boa graça possa realizar este desejo e boas disposições. As outras duas
Jornadas as reservo; e restituindo-me este Sereníssimo rei a terceira, regressarei tranquilamente à
pátria, conferindo com os peritos, e com auxílio e animação dos amigos, espero que poderei levar
a cabo estes intentos. Peço desculpa de não lhe enviar esta derradeira Jornada, conforme prometi
na minha última. É disso causa o não haver podido conseguir a sua restituição deste Sereníssimo
rei. Penso fazer ainda uma quarta viagem; e já dois navios estão para isso armados, e a promessa
feita para eu ir, pelo sul, rumo de África, em busca de novas regiões no oriente. E nessa nova viagem
muito penso realizar em louvor de Deus e utilidade do seu reino, e honra da minha velhice, e nada
mais espero senão a ordem do mesmo Sereníssimo rei. Deus nisso permita o que creia melhor, e o
que for resolvido constará.
“O tradutor Giocondo (Jocundus) verteu a presente epístola do italiano em latim, para que os
latinos reconheçam quantas coisas admiráveis se viram nesta viagem, e se reprima a audácia dos
que pretendam perscrutar o erro e a magestarle, e saber mais do que é lícito; quando, havendo
tanto tempo que começou o mundo, é desconhecida a vastidão da terra e quanto ela contém -Deus
louvado.”
Atividades
1. A expansão ultramarina promove o encontro do “Novo Mundo”, provocando nos europeus a
necessidade de reflexão sobre a alteridade humana e cultural. Por que isso ocorre?
2. No início do século XVI surge a Antropologia Espontânea – relatos que noticiaram o “Novo Mundo”.
De que tratavam as narrativas feitas pelos navegadores, missionários e administradores das novas
terras?
3. Comente a visão de homem que emergiu do debate dos teólogos sobre a diversidade humana e
cultural no século XVI.
Referências
CAMINHA, P. V. de. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: <www.historianet.com.br/conteu-
do/default.aspx?codigo=552>. Acesso em: 20 ago. 2012.
DUMONT, L. Homo Hierarchicus: essai sur le système des castes. Paris: Gallimard, 1966.
HEGEL, G. W. F. Introdução à História da Filosofia. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
HOLANDA, S. B. de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil.
São Paulo: Brasiliense; PubliFolha, 2000.
JAMES, W. Pragmatismo e Outros Textos. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
LAPLANTINE, F. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
NÓBREGA, Pe. M. da. Apontamentos de coisas do Brasil, 8 de maio de 1558. In: RIBEIRO, D. O Povo Bra-
sileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
ROUSSEAU, J.-J. Do Contrato Social: ensaios sobre a origem das línguas. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural,
1987.
_____. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São Paulo:
Nova Cultural, 1999.
SCHWARCZ, L. K. M. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
_____. Negras Imagens: ensaio sobre Cultura e Escravidão no Brasil. In: SCHWARCZ, L. M.; QUEIROZ, R. da
S. (Orgs.). Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp/Estação Ciência, 1996.
_____. As teorias raciais, uma construção histórica de finais do século XIX. O contexto brasileiro. In:
SCHWARCZ, L. M.; QUEIROZ, R. da S. (Orgs.). Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp/Estação Ciência,
1996.
_____. Mercadores do espanto: a prática antropológica na visão travessa de Clifford Geertz. In: Revista
de Antropologia, São Paulo, v. 44, n. 1, 2001. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt
ext&pid=S003477012001=000100012). Acesso em: 20 ago. 2012.
VARNHAGEN, F. A. de. Cartas de Amerigo Vespucci. Revista Trimensal do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, n. 41, p. 20-31, 1878. Disponível em: <http://us.geocities.com/josarielcastro /
mundusno.html>. Acesso em: 20 ago. 2012.
VESPÚCIO, A. Mundus Novus. Disponível em: <http://us.geocities.com/josarielcastro/mundusno.html>.
Acesso em: 20 ago. 2012.
Gabarito
1. A expansão marítima propicia a chegada dos europeus ao “Novo Mundo” e o contato com seus
habitantes. Esses povos encontrados eram diferentes em tudo. Seus costumes e comportamentos
provocaram profunda ruptura nas identidades dos povos europeus que compreendiam um
padrão de comportamento ante o mundo. Essa ruptura promove a necessidade de desvendar
tamanhas diferenças apresentadas pelos novos povos.
4. Com o Iluminismo surge uma nova visão sobre o debate da natureza humana e suas realizações.
As diferenças humanas e culturais passam a ser compreendidas pelo universo da ciência e não
mais pelo universo teológico. Os teólogos que antes polemizavam acerca da diversidade e da
alteridade são substituídos pelos filósofos nos séculos seguintes.
1 Colonialismo é a teoria e prática de colonização que tem como objetivo a apropriação de terras e organização do poder formal ou informal
de domínio do grupo imigrante sobre o grupo nativo usando a força ou a superioridade econômica.
2 A Conferência de Berlim foi realizada no período de novembro de 1884 a fevereiro de 1885 com o objetivo de resolver os conflitos entre as
potências europeias colonizadoras, estabelecendo regras de ocupação da África, que até 1914 permaneceu dividida entre Inglaterra, França,
Espanha, Itália, Bélgica, Portugal e Alemanha.
Os administradores coloniais faziam o senso criterioso dos povos, dos recursos naturais e
econômicos, da fauna e, fundamentalmente, das formas de relacionamento dos povos colonizados:
organização do sistema de parentescos, estrutura da organização litúrgica e sacerdotal, mecanismos de
organização social e o papel da cultura no sistema de organização da sociedade.
Esses dados tornavam-se informações logísticas fundamentais para as ações desenvolvidas pelas
metrópoles nas colônias das Américas, África, Ásia e Oceania.
O processamento dessas informações nos gabinetes dos eruditos dos países colonizadores deu
a infraestrutura conceitual para a elaboração do Evolucionismo Social. O deslocamento do homem no
espaço e no tempo e suas realizações nessas respectivas etapas projetaram o conceito de evolução, da
espécie e de suas sociedades.
Na esteira dessa reflexão, o conceito de selvagem é substituído pelo de primitivo; esboça-se a noção
de unidade psíquica do homem; determina-se a escala de evolução e desenvolvimento das sociedades
primitivas em direção às civilizadas; estudam-se as origens do homem e de suas formas de organização
social e cultural; intensificam-se os estudos comparativos do sistema de parentesco, das formas de
organização religiosa e social, e, como parte fundamental dessa transição conceitual, substitui-se o
conceito de raça, numa determinada fase dessa escola, pelo de cultura.
Ao afirmar que todas as formações sociais humanas tinham origens remotas e caminhavam no mesmo sentido, na
direção do progresso, os evolucionistas pensavam que os australianos haviam parado num estágio “primitivo” e os
ingleses avançados para um estágio “civilizado”. É claro que quem pensava assim eram os ingleses, que em plena época
3
da rainha Vitória , o século XIX, a Era Vitoriana, espalhavam militarmente seu império pelo mundo inteiro. Também
podiam pensar assim norte-americanos e outros europeus que se sentiam fazendo parte de uma civilização absoluta,
para eles, a melhor definição. (ROCHA, s/d, p. 23)
Homens de Ciência
O cenário da Antropologia como ciência é ocupado por Homens de Ciência; cientistas que se
debruçaram sobre os dados coletados em campo, por terceiros, e se dedicam a montar um painel
compreensível no tabuleiro do quebra-cabeça antropológico.
Destacaram-se nessa tarefa Charles Robert Darwin (A Origem das Espécies, 1859), Henry Summer
Maine (Ancient Law, 1861), Herbert Spencer (Princípios de Biologia, 1864), Edward Burnett Tylor (A Cultura
3 A rainha Vitória (1819-1901) sucedeu seu tio, o rei Guilherme IV, no trono do Reino Unido em 1837. Recebeu o título de imperatriz da Índia
com a incorporação da Índia ao Império Britânico em 1877. Seu reinado foi o mais longo da história, durou 64 anos, e ficou conhecido como
a Era Vitoriana, considerada o auge da Revolução Industrial inglesa e do Império Britânico com a conquista de territórios na África e na Ásia e
com o acontecimento de significativas mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais.
Primitiva, 1871), Lewis Henry Morgan (A Sociedade Primitiva, 1877) e James George Frazer (O Ramo de
Ouro, 1890).
Esses cientistas sociais deram liga às informações dispersas e abundantes que brotavam das
colônias. Sistematizaram, organizaram e construíram narrativas lógicas, nas dimensões de espaço e
tempo, reconstituindo a trajetória dos povos colonizados.
A noção de evolução é um marco fundamental para o pensamento antropológico. Vai aparecer como ideia básica para
toda uma grande fase da Teoria Antropológica e, na história dos saberes sobre os seres humanos, tem um lugar de des-
taque, quase que como uma âncora, para os trabalhos e estudos que procuravam fazer da Antropologia uma ciência.
Assim, a diferença que se travestia em espanto e perplexidade, nos séculos XV e XVI, encontra, nos séculos XVIII e XIX,
uma nova explicação: o outro é diferente porque possui diferente grau de evolução. (ROCHA, s/d., p. 21-22)
A noção de progresso tornou-se fundamental. O eixo do tempo e do espaço passa a ser funda-
mental, quando se crê na unidade básica da espécie, como se projetava na época. A direção é a de um
estágio inferior para um estágio superior; de um primitivo para um evoluído.
O naturalista britânico inicia seus estudos em 1831, no campo da Medicina e Teologia. Durante
cinco anos, participou da expedição científica a bordo do barco Beagle. Darwin, em campo, acumula
uma enorme massa de informações sobre as espécies animais. Esse trabalho de Darwin é uma das
singularidades de sua elaboração conceitual, num momento em que as reflexões sobre o homem e
suas realizações eram obra de gabinete, documental, relatorial.
Em sua obra principal A Origem das Espécies, Darwin formula a teoria da evolução das espécies, via
seleção natural: no processo, ocorrem com os indivíduos variações úteis na luta pela existência; essas
variações transmitem-se, reforçadas, aos descendentes. Com base nessas observações, elabora a teoria
evolucionista.
Segundo essa concepção, as espécies sucedem-se, umas às outras, por evolução contínua,
permanente, com a sobrevivência dos mais aptos e fortes. Darwin exercerá forte influência na literatura
científica depois de sua obra.
4 Richard Hofstadter (1916-1970) foi historiador norte-americano e professor da Univeridade de Columbia em Nova York (EUA).
Darwin apimenta o debate quando apresenta sua ideia mais polêmica: a da origem do homem.
Segundo o naturalista britânico, o homem não é produto da criação divina e nem fruto de várias origens.
Ele enfatiza que o homem e o macaco têm origem comum; têm o mesmo antepassado. Esse conceito
passou a ser fundamental no estudo do desenvolvimento humano. A Antropologia Física tem esse
conceito como pano de fundo dos seus estudos. A Paleontologia – um dos campos da Antropologia
Física – estuda o desenvolvimento humano, desde os seus primórdios até os tempos atuais.
Na época, essa teoria causou um grande desconforto para Darwin. Diversos setores da academia
e, em especial, dos segmentos religiosos combateram apaixonadamente essa visão. Na sociedade
vitoriana, submersa em valores conservadores e com os tentáculos coloniais por todos os continentes,
os conterrâneos de Darwin se levantam contra esse argumento.
Com sua teoria, Darwin põe um ponto-final no debate travado entre os teóricos monogenistas
(crença numa única fonte de origem humana: os homens não são diferentes, mas desiguais) e os poli-
genistas (crença em várias fontes de origem humana: os homens são diferentes, portanto desiguais): o
naturalista britânico afirmará que todos os homens descendem de uma única espécie e têm a mesma
origem biológica.
Maine utiliza-se do mesmo modelo elaborado pelos seus contemporâneos: há uma origem de um
dado fenômeno, no caso as Leis, que se desenvolve por etapas anteriores, na infância da humanidade,
até as fases mais desenvolvidas, nas sociedades civilizadas.
::: duplamente composta – organização complexa onde os costumes evoluíram para leis escritas
e codificadas, com a formação de castas e princípios religiosos;
::: triplamente composta – civilizações como as do Egito Antigo e do Império Romano.
Sua obra legou às Ciências Sociais diversos conceitos que ampliaram o repertório da Antropo-
logia: função social, controle social, instituição, estrutura social e, a exemplo de outros evolucionistas,
ampliação do espectro de ação do método comparativo.
Herbert Spencer provocou na época forte impacto sobre a intelectualidade brasileira, que
procurava desvendar os caminhos percorridos pela sociedade naquele momento. Duas figuras
importantes do período – Euclides da Cunha5 e Silvio Romero6 – tinham em Spencer uma referência
para suas reflexões sobre a composição e o caráter do povo brasileiro. Seus trabalhos eram divulgados
e consumidos no centro da inteligência acadêmica nacional: as faculdades de Direito de São Paulo e
do Recife e as de Medicina de Salvador e do Rio de Janeiro. O médico legista maranhense radicado na
Bahia, Raimundo Nina Rodrigues7, lançará mão de muitos dos conceitos de Spencer, na leitura que fará
da realidade sociocultural do país.
A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz (1993, p. 25) destacará o papel desempenhado pela escola
evolucionista na formação da intelectualidade nacional e de seus reflexos nas opções políticas adotadas
naquele período, em especial às relacionadas às relações raciais:
Outros estabelecimentos ajudam a compor um panorama intelectual ainda mais diversificado. É o caso das faculdades
de Direito de São Paulo e Recife, que, preocupadas com a elaboração de um código nacional, utilizavam, porém,
interpretações diversas: enquanto em São Paulo majoritariamente adotavam-se modelos liberais de análise, no Recife
8
predominava o social-darwinismo de Haeckel e Spencer. No campo da Medicina, o Instituto Manguinhos, liderado
9
por Oswaldo Cruz , transformava-se em um importante centro de pesquisas, principalmente no que se refere ao
problema da febre amarela e da sanitarização das cidades. Destacada é também a atuação dos institutos históricos,
que congregando a elite intelectual e econômica de diferentes províncias e profundamente vinculados ao monarca
D. Pedro II, começavam a escrever a história oficial desse jovem país.
5 Euclides Rodrigues da Cunha (1866-1909) foi escritor, sociólogo, historiador, engenheiro e repórter jornalístico. Ficou internacionalmente
famoso com a publicação do livro “Os Sertões” em 1902 pela Laemmert & Cia. Considerada uma das obras precursoras da Sociologia e da
literatura modernista no Brasil, em que o escritor analisa os costumes e a religiosidade sertaneja, as características geológicas, botânicas,
zoológicas e hidrográficas da região em que ocorreu a campanha de Canudos (1897) no nordeste da Bahia.
6 Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851-1914) foi crítico literário, poeta, filósofo e político. Participou ativamente da vida política
e intelectual brasileira. Publicou A Filosofia no Brasil em 1878, o primeiro livro de história das ideias filosóficas no Brasil. Foi um dos membros
fundadores da Academia Brasileira de Letras em 1897. Considerado um dos responsáveis pela valorização das tradições populares retratadas
em suas obras sobre folclore.
7 Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi médico legista, psiquiatra e antropólogo. Foi fundador da Antropologia Criminal brasileira,
promoveu a nacionalização da medicina legal e dedicou-se a pesquisas sobre as origens étnicas da população e a influência das condições
sociais e psicológicas sobre a conduta do indivíduo.
8 Ernest Heinrich Philipp August Haeckel (1834-1919) foi médico, naturalista alemão. Ajudou a popularizar o trabalho de Charles Darwin,
sendo que seus principais interesses estavam nos processos evolutivos de desenvolvimento e na ilustração científica.
9 Oswaldo Gonçalves Cruz (1872-1917) foi cientista, médico, bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro. Foi pioneiro no estudo
das moléstias tropicais no Brasil. Organizou o combate ao surto de peste bubônica (1899) em Santos e em outras cidades portuárias brasileiras,
como também coordenou as campanhas de erradicação da febre amarela e da varíola (1903) no Rio de Janeiro. Fundou o Instituto Soroterápico
Nacional transformado em Instituto Oswaldo Cruz.
10 Animismo é a manifestação religiosa que atribui alma a todos os elementos do cosmos, da natureza, a todos os seres vivos e a todos os
fenômenos naturais, sendo todos esses passíveis de possuírem sentimentos, emoções, desejos e até mesmo inteligência.
e seus impactos na forma de organização da sociedade. Sua obra marcou em profundidade, a exemplo
de Darwin, o seu tempo e os trabalhos de diversos outros teóricos, nas várias áreas do conhecimento
social.
Morgan desenvolveu inúmeras pesquisas de campo. Ele estudou diversos povos indígenas, em
especial os iroqueses. Dessa pesquisa, o estudioso retirou grande quantidade de material para sua
reflexão sobre a cultura – material e imaterial – dos índios. Seu trabalho de campo se estendeu para fora
do território norte-americano, em diversas regiões. Com base nesses estudos, Morgan procura elaborar
uma classificação universal do sistema de parentesco, e estabelecer uma conexão geral entre esses
vários sistemas, em escala global.
Sobre a obra de Morgan, Friedrich Engels11 disse:
O grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e restabelecido em seus traços essenciais esse fundamento pré-
-histórico de nossa história escrita e de o ter encontrado, nas uniões gentílicas dos índios norte-americanos, a chave para
decifrar importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história antiga da Grécia, Roma e Alemanha. Sua obra não
foi trabalho de um dia. Levou cerca de 40 anos elaborando seus dados, até conseguir dominar inteiramente o assunto. E
seu esforço não foi em vão, pois seu livro é um dos poucos de nossos dias que fazem época. (ENGELS, 1977, p. 8)
Em sua obra, Morgan procura ordenar o processo de desenvolvimento histórico do homem. Para
cada etapa, com exceção da civilização, ele subdivide em inferior, médio e superior. A classificação está
relacionada ao grau de desenvolvimento obtido pelo homem naquele estágio, quanto a sua capacidade
de reprodução tecnológica de sua existência.
Para o autor, a habilidade de produção desempenha papel decisivo no grau de superioridade e
domínio do homem sobre a natureza e suas condições de existência.
Estado selvagem
Fase inferior
Essa é a fase da infância do gênero humano, segundo Morgan. Nela, os homens vivem em bosques,
nas áreas tropicais e subtropicais. Vivem parte do tempo em árvores e parte desafiando o perigo entre
os grandes animais selvagens. Seus alimentos são os frutos e raízes. O grande progresso registrado
nessa fase foi o desenvolvimento da linguagem articulada. Morgan atribui a esse fato uma importância
extraordinária, pois a partir dessa evolução, o homem cria e pode transmitir aos outros o fruto de sua
criação. Essa fase durou milênios.
Fase média
Essa fase desdobra-se no Período Paleolítico – Idade da Pedra. Ela tem início com o consumo
do peixe e da adoção de um dos maiores avanços registrados na história humana: o uso do fogo. Essa
tecnologia permitiu ao homem autonomia e mobilidade no território. A partir desse advento, ele passou
a seguir o curso dos rios e das costas marítimas. Esses recursos deram ao homem a possibilidade de
se espalhar pelas diversas áreas da superfície da terra. Suas migrações deixaram marcas em todos os
11 Friedrich Engels (1820-1895), filósofo alemão que junto com Karl Marx fundou o chamado Socialismo Científico ou Marxismo.
continentes. O domínio da tecnologia do fogo permitiu então o uso de outros tipos de alimentos: novas
raízes, tubérculos farináceos e pequenas caças. Desenvolve-se a tecnologia das armas: clava e lança,
instrumentos indispensáveis à sobrevivência. Segundo Morgan, em razão da escassez de alimentos,
nessa época, deve ter se iniciado a antropofagia, que perdurou durante muito tempo.
Fase superior
Essa fase tem início com a invenção do arco e da flecha, tecnologia a qual Morgan atribui grande
significado. A partir da introdução dessa tecnologia, o homem passa a se alimentar regularmente e a
estabelecer um certo grau de organização social e comunitária, já que o ofício da caça exige ação cole-
tiva e articulada. O desenvolvimento do arco, da corda, da fibra de cortiça, do cesto de cortiça ou junco,
instrumentos de pedra polida (Período Neolítico) e da seta indicam um grau de maior complexidade
nas faculdades mentais do homem selvagem. De nômade, o homem passa a se fixar em pequenas
localidades, em pequenas aldeias. O fogo e o machado de pedra dão ao homem maiores condições de
domínio da natureza.
A barbárie
Fase inferior
Seu início dá-se com a introdução da tecnologia da cerâmica. Essa é a grande tecnologia
do período, segundo Morgan. Ela permite o cozimento dos alimentos em fogo, sem as fragilidades
dos cestos traçados. Com a barbárie, começam também as distinções de condições de vida entre os
diversos povos dos continentes. Para Morgan, o traço singular desse período é a domesticação de
animais e plantas. O continente oriental tinha diversos animais domesticáveis e cereais para o cultivo.
O continente ocidental, a América, tinha um mamífero domesticável, a lhama, em uma parte de sua
região Sul e o milho, como cereal cultivável. Graças a essas características naturais, o desenvolvimento
dos dois hemisférios se dá de forma distinta.
Fase média
Segundo Morgan, no Leste, essa fase começa com a domesticação de animais; no Oeste, com o
cultivo de hortaliças, com a utilização da irrigação, tijolos crus e pedras de construção. Entre os índios, já
na fase anterior da barbárie, havia o cultivo do milho e, talvez, da abóbora, do melão e outros alimentos
cultiváveis. Vivia-se em casas de madeiras, com aldeias protegidas por paliçadas. Os chamados povos do
Novo México (Pueblos) e os peruanos encontravam-se, na fase média da barbárie, com casas de pedras
em formato de fortalezas; cultivavam plantações e irrigavam o milho e outros vegetais comestíveis.
Segundo o autor, a conquista espanhola cortou o desenvolvimento autônomo desses povos. No Leste,
essa fase começa com a domesticação de animais para o fornecimento de leite e carne. A formação de
rebanhos levou à vida pastoril. Nessa fase, desaparece a antropofagia.
Fase superior
Essa fase inicia-se, segundo Morgan, com a fundição do ferro. Com a invenção da escrita alfabética
e sua utilização para registros literários, passa-se para a fase da civilização. Nessa fase encontram-se os
gregos da época clássica e heroica, as tribos ítalas anteriores à fundação de Roma, os germanos de
Tácito, os normandos. Há uma grande revolução tecnológica no campo da agricultura, a invenção do
arado de ferro, puxado por animais. Essa tecnologia permitiu o arado de grandes extensões de terra e
o aumento extraordinário da produção da subsistência dos povos que a empregavam. Os bosques são
derrubados e suas áreas ocupadas pelas pastagens e agricultura.
Essas condições aceleraram o crescimento da população, em pequenas e densas áreas; embrião
das cidades modernas. Nessa fase registram-se grandes avanços tecnológicos, aperfeiçoados pelos
gregos: foles de força, moinhos à mão, roda de olaria, preparação do azeite e do vinho, da produção
artística em metais, transporte de guerra, construção de barcos, desenvolvimento da arquitetura, surgi-
mento das cidades amuralhadas e da Mitologia. Essa fase é fronteiriça à civilização, no painel histórico
de Morgan.
Em traços gerais, segundo Engels, pode-se sintetizar os estágios definidos por Morgan da seguinte
forma:
Estado selvagem – período em que predominam a apropriação de produtos da natureza, prontos para ser utilizados;
as produções artificiais do homem são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação. Barbárie – período em que
aparecem a criação de gado e a agricultura, e se aprende a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho
humano. Civilização – período em que o homem continua aprendendo a elaborar os produtos naturais, período da
indústria propriamente dita e da arte. (ENGELS, 1977, p. 25)
propriamente a ocorrência do fenômeno, mas sua representação. Elaborou ainda a teoria da magia por
contato, da relação direta: o vodu.
Frazer vai criticar duramente essas duas modalidades de magia que, segundo ele, são formas
errôneas de estruturação do pensamento e a tentativa de produção de uma ciência bastarda e incapaz
de dar explicações científicas sobre a realidade. O autor lança mão do método comparativo para estudar
a magia e seus desdobramentos históricos.
Para o estudioso britânico, a religião e o animismo são movimentos puramente intelectuais. Seus
aspectos sociais são secundários. A religião seria uma tentativa intelectual de explicar as ocorrências do
mundo para os povos em estágios anteriores ao da civilização ocidental.
Segundo Laplantine (1987, p. 68), nessa obra monumental, Frazer
[...] retraça o processo universal que conduz, por etapas sucessivas, da magia à religião, e depois, da religião à ciência. “A
magia”, escreve Frazer, “representa uma fase anterior, mais grosseira, da história do espírito humano, pela qual todas as
raças da humanidade passaram, ou estão passando, para dirigir-se para a religião e a ciência”. Essas crenças dos povos
primitivos permitem compreender a origem das “sobrevivências” (termo forjado por Tylor) que continuam existindo
nas sociedades civilizadas. Como Hegel, Frazer considera que a magia consiste num controle ilusório da natureza, que
se constitui num obstáculo à razão. Mas, enquanto para Hegel, a primeira é um impasse total, Frazer a considera como
religião em potencial, a qual dará lugar por sua vez à ciência que realizará (e está até começando a realizar) o que tinha
sido imaginado no tempo da magia.
Considerações finais
Com o Evolucionismo Social, a Antropologia entra no universo das Ciências Sociais. A disciplina
ganha status de ciência e passa a definir seu “objeto de estudo”, suas metodologias e técnicas de pesquisa.
Nessa caminhada, três aspectos se destacam nessa escola:
::: sua experiência deu-se no quadro geral do colonialismo europeu nos países da África, Ásia e
Américas;
::: a escola instala o conceito de desenvolvimento como paradigma, como forma de compreensão
do homem e de suas realizações no plano da cultura;
::: ao considerar a “unidade histórica” do homem, em desenvolvimento de estado primitivo para
o civilizado, a escola abre a porta para o que se denominará “racismo científico”.
O colonialismo europeu fincou seus tentáculos pelo mundo. Povos, nações, culturas e riquezas
nacionais foram colocadas a serviço do desenvolvimento das nações europeias. Para exercer com efici-
ência seu poder, essas nações estudaram com empenho e afinco as formas de organizações dos países
ocupados. Os conhecimentos desprendidos dos estudos antropológicos serviram para as dominações
de diversos povos e culturas. Um dos grandes imperialistas da época, Cecil Rhodes, declarou certa vez:
“Hei de conquistar todos os continentes e os planetas” (Schwarcz, 1996, p. 163), numa apologia direta à
capacidade dos países ocidentais.
Os dados remetidos pelos administradores coloniais para os países de origem foram coletados
e sistematizados por estudos do porte de Frazer. Por essa razão, uma das características centrais da
Antropologia dessa época era o seu trabalho de gabinete, de escritório, de biblioteca. Apesar de Morgan
e Darwin terem feito trabalho de campo, a maior parte dos estudos da época era feita a distância, sem
um contato direto entre o pesquisador e os povos estudados.
Ao estabelecer o desenvolvimento como paradigma, como modelo de desenvolvimento dos
fenômenos, a escola deu uma grande contribuição aos estudos da Antropologia. A Antropologia passou
a estudar o desenvolvimento do homem e de suas realizações materiais e imateriais nos eixos do tempo
e do espaço, da origem mais remota ao estado em que se encontrava num determinado momento
de evolução. Os trabalhos de Darwin foram importantes para a consolidação e popularização dessa
ideia. Antes do seu trabalho, como fator especial do século XIX e de suas realizações, o conceito já era
debatido e assimilado. Mas, sem dúvidas, a obra do naturalista britânico contribuiu para a consolidação
no imaginário social da época, dessa noção que passa a ser uma pedra fundante no edifício da ciência
que despontava.
A Antropologia Cultural se consolida no quadro das referências científicas. O centro das atenções
dos estudiosos era a cultura tomada sob o ângulo comparativo e evolucionista. Os dois conceitos centrais
eram civilização e progresso. Todos os povos que compunham a grande família humana passariam,
obrigatoriamente, pelos mesmos estágios de desenvolvimento e evolução, do primitivo ao civilizado.
Porém, como acentua Schwarcz (1993, p. 61), há um ponto de mudança nessa linha de raciocínio,
que altera seu conceito e desemboca no racismo científico da época:
A antiga noção de “perfectibilidade” do século XVIII continua presente no século XIX, mas ganha uma acepção diversa.
Nesse caso, implica pensar não em uma qualidade intrínseca do homem, mas em um atributo próprio das “raças civili-
zadas” que tendem à civilização. Por outro lado, o conceito ganha um sentido único e direcionado, já que parece existir
só uma “perfectibilidade” possível, e da outra parte apenas a degeneração.
Essa ideia se desenvolve e ganha força entre a intelectualidade brasileira da época. Intelectuais
como Francisco José Oliveira Viana12 (1883-1951), João Batista Lacerda13 (1846-1915), Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906) e Herman von Ihering14 (1850-1930) sofrem grande influência desse conceito, e
os importam para a leitura e compreensão da realidade brasileira.
O então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista Lacerda, ao participar do I
Congresso Internacional das Raças, realizado em julho de 1911, declara: “o Brasil mestiço de hoje tem no
branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (SCHWARCZ, 1993, p. 11).
12 Francisco José de Oliveira Viana (1833-1951), sociólogo, advogado e escritor. Foi consultor jurídico do Ministério do Trabalho e ministro do
Tribunal de Contas (1940). Sua obra, polêmica pela posição conservadora e por subestimar a presença do negro na formação social brasileira,
foi considerada o marco de uma nova fase de interpretação dos estudos brasileiros.
13 João Batista de Lacerda (1846-1915), médico e cientista. Realizou estudos pioneiros sobre a composição do curare e o veneno de ofídeos e
anfíbios. Conhecido pelos cientistas sociais principalmente por seu trabalho sobre o branqueamento da população brasileira apresentado em
Londres durante o I Congresso Internacional das Raças em 1911.
14 Hermann Friedrich Albrecht von Ihering (1850-1930) jurista e médico alemão. Veio para o Brasil em 1880 e estabeleceu-se, inicialmente, na
então província do Rio Grande do Sul. Dirigiu o Museu Paulista entre 1894 e 1915 onde reproduziu todos os traços de modelo de instituição
europeia. Dedicou muitos estudos a fósseis moluscos, aos pássaros e à etnologia. Foi um dos principais teóricos sobre a relação entre evolução
e paleogeografia na passagem do século XIX para o XX.
Esse conceito passa a dirigir a política de imigração que adotará o país, entre 1870 e 1930. No I
Congresso Brasileiro de Eugenia15, realizado em 1929, o antropólogo Edgar Roquete Pinto16 apresentou
o seguinte diagnóstico:
Diagrama de constituição antropológica das populações do Brasil, organizado segundo as
estatísticas oficiais de 1872 a 1890, por Edgar Roquete Pinto.
Almejava-se uma sociedade cada vez mais branca. Os dados demográficos do IBGE17 não confir-
mam essa previsão. Pelo contrário.
Apesar desses aspectos, o Evolucionismo Social implicou mudanças conceituais na Antropologia
e deu à disciplina o status científico que tem desde então. Dessa forma, estava aberta a porta para que
a disciplina pudesse, sob o impacto dessas alterações, avançar para a conceituação de seu “objeto de
pesquisa” e o desenvolvimento de sua metodologia.
Texto complementar
Do holocausto nazista à nova eugenia no século XXI
(GUERRA, 2007)
Embora a produção da bomba atômica seja sempre lembrada como exemplo da ciência a
serviço da destruição, há outro igualmente relevante: o desenvolvimento das teorias eugênicas e
seu aproveitamento por movimentos raciais, culminando no Holocausto nazista na Segunda Guerra
Mundial.
15 Eugenia (bem nascer) foi o termo cunhado por Francis Galton (1822-1911), que influenciado pela teoria de seleção natural de Darwin, e
convencido de que era a natureza que determinava as habilidades humanas e a hereditariedade era o principal fator da geração de patologias
sociais e doenças, dedicou seus estudos científicos à melhora da espécie humana por meio da seleção artificial (casamentos seletivos). Atualmente
diversos cientistas sociais apontam problemas éticos na eugenia que categoriza as pessoas como aptas ou não aptas para a reprodução.
16 Edgar Roquete Pinto (1884-1954) médico, professor, antropólogo e etnólogo brasileiro. Foi assistente de antropologia no Museu Nacional
e pioneiro no registro de tomadas em close de fisionomias indígenas. Fundou em 1923 a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, primeira emissora
brasileira dedicada à divulgação da arte, cultura e educação. É considerado o pai da radiodifusão no Brasil.
17 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, fundação pública federal criada em 1934 que tem atribuições ligadas às geociências e
estatísticas sociais, demográficas e econômicas. Realiza e organiza informações, obtidas por meio de censos, destinadas aos órgãos federais,
estaduais, municipais às instituições e público em geral.
A maioria dos geneticistas do século XXI, quando a genética é assunto rotineiro na mídia, pouco
ou nada sabe sobre a história da eugenia. Conhecê-la, porém, é fundamental em face de situações
concretas da atualidade, como fertilização in vitro, diagnósticos pré-natal e pré-implantação, aborto
terapêutico e clonagem reprodutiva. Em vista das preocupações sobre a emergência de uma nova
eugenia, é importante rever o passado e aprender com os erros cometidos.
O movimento eugênico
Quando em The Origin of Species, de 1859, Darwin propôs que a seleção natural fosse o pro-
cesso de sobrevivência a governar a maioria dos seres vivos, importantes pensadores passaram a
destilar suas ideias num conceito novo – o Darwinismo Social.
Esse conceito, de que na luta pela sobrevivência muitos seres humanos eram não só menos
valiosos, mas destinados a desaparecer, culminou em uma nova ideologia de melhoria da raça
humana por meio da ciência. Por trás dessa ideologia estava sir Francis J. Galton, cujo nome é
associado ao surgimento da genética humana e da eugenia.
Convencido de que era a natureza, não o ambiente, quem determinava as habilidades humanas,
Galton dedicou sua carreira científica à melhoria da humanidade por meio de casamentos seletivos.
No livro Inquiries into Human Faculty and its Development, de 1883, criou um termo para designar
essa nova ciência: eugenia (bem nascer).
No início do século XX, quando as teorias de Darwin eram amplamente aceitas na Inglaterra,
havia grande preocupação quanto à “degeneração biológica” do país, pois o declínio na taxa de
nascimentos era muito maior nas classes alta e média do que na classe baixa. Para muitos parecia
lógico que a qualidade da população pudesse ser aprimorada por proibição de uniões indesejáveis
e promoção da união de parceiros bem-nascidos. Foi necessário, apenas, que homens como Galton
popularizassem a eugenia e justificassem suas conclusões com argumentos científicos aparente-
mente sólidos.
As propostas de Galton ficaram conhecidas como “eugenia positiva”. Nos EUA, porém,
elas foram modificadas, na direção da chamada “eugenia negativa”, de eliminação das futuras
gerações de “geneticamente incapazes” – enfermos, racialmente indesejados e economicamente
empobrecidos – por meio de proibição marital, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em
última análise, extermínio.
Como salienta Edwin Black no livro A Guerra contra os Fracos, “os EUA estavam prontos para a
eugenia antes que a eugenia estivesse pronta para os EUA”. O aumento no número de imigrantes no
final do século XIX levou o grupo dominante no país, os protestantes cujos ancestrais eram oriundos
do norte da Europa, a buscar motivos para exclusão. Encontraram terreno fértil na pseudociência
da eugenia.
Os eugenistas usaram os últimos conhecimentos científicos para “provar” que a hereditariedade
tinha papel-chave em gerar patologias sociais e doença. Os imigrantes tornaram-se alvos fáceis
de defensores dessa nova “ciência”, que empregaram os achados do movimento eugênico para
construir a imagem dos imigrantes como pessoas deformadas, doentes e depravadas, encontrando
eco em seus contemporâneos nas Ciências Sociais e na Biologia, entre os quais a eugenia propagou-
-se como algo considerado perfeitamente lógico.
O racismo dos primeiros eugenistas norte-americanos não era contra não brancos, mas contra
não nórdicos, e as doutrinas de pureza e supremacia raciais eram elaboradas por figuras públicas
cultas e respeitadas. Quando as teorias de Mendel chegaram aos EUA, esses pensadores influentes
acrescentaram um verniz científico ao ódio racial e social.
O líder do movimento eugenista dos EUA foi Charles Davenport, que dirigia o laboratório de
Biologia do Brooklin Institute of Arts and Science, em Long Island, instalado em Cold Spring Harbor.
Em 1903, obteve da Carnegie Institution o estabelecimento de uma Estação Biológica Experimental
no local, onde a eugenia seria abordada como ciência genuína. Em seguida, juntou-se aos criadores
de animais e especialistas em sementes da American Breeders Association, muitos deles convencidos
de que o conhecimento mendeliano sobre gado e plantas era aplicável a seres humanos.
O próximo passo de Davenport foi identificar os que deveriam ser impedidos de se reproduzir.
Em 1909 criou o Eugenics Record Office para registrar os antecedentes genéticos dos norte-americanos
e pressionar por legislação que permitisse a prevenção obrigatória de linhagens indesejáveis. Para
isso, o grupo concluiu que o melhor método seria a esterilização, e o estado de Indiana foi a primeira
jurisdição do mundo a introduzir lei de esterilização coercitiva, logo seguido por vários outros
estados. Desde o início, porém, o uso de câmaras de gás estava entre as estratégias discutidas para
eliminação daqueles considerados indignos de viver.
Com o tempo, a eugenia passou a ser vista como ciência prestigiosa e conceito médico legítimo,
disseminada por meio de livros didáticos e instituições de instrução eugenista. No primeiro Congresso
Internacional de Eugenia, em 1912, líderes de delegações dos EUA e países europeus formaram
o Comitê Internacional de Eugenia, que, posteriormente, deu origem à Federação Internacional
de Organizações Eugenistas, cuja agenda política e científica era dominada pelos EUA, para onde
eugenistas estrangeiros viajavam para períodos de treinamento em Cold Spring Harbor.
Na Alemanha, a eugenia norte-americana inspirou nacionalistas defensores da supremacia
racial, entre os quais Hitler, que nunca se afastou das doutrinas eugenistas de identificação,
segregação, esterilização, eutanásia e extermínio em massa dos indesejáveis, e legitimou seu ódio
fanático pelos judeus envolvendo-o numa fachada médica e pseudocientífica.
Não houve apenas extermínio em massa de judeus e outros grupos étnicos. Em julho de 1933,
foi decretada lei de esterilização compulsória de diversas categorias de “defeituosos” e, com o início
da Segunda Guerra Mundial, os alemães considerados mentalmente deficientes passaram a ser
mortos em câmaras de gás. Médicos nazistas realizavam experimentos em prisioneiros nos campos
de concentração, e, em Auschwitz, Mengele dedicou-se ao estudo de gêmeos para investigar a
contribuição genética ao desenvolvimento de características normais e patológicas – de 1 500 pares
de gêmeos submetidos a suas experiências, menos de 200 sobreviveram.
Fertilização in vitro
Num futuro próximo, se a eugenia for além dos abortos terapêuticos para de fato projetar
bebês que se beneficiem de todos os avanços da genética, provavelmente não fará sentido que a
concepção ocorra da maneira tradicional, mas sim em clínicas de fertilização in vitro.
No final de sua vida, Galton escreveu um romance chamado Kantsaywhere, em que descrevia
uma utopia eugênica. Após o exame de suas características genéticas, os habitantes de Kantsaywhere
com material genético inferior eram destinados ao celibato em colônias de trabalho. Os que recebiam
um “certificado de segunda classe” podiam se reproduzir “com reservas” e os bem qualificados eram
encorajados a casar entre si. Em 1997, o filme Gattaca esboçava uma versão moderna de um paraíso
eugênico em que a procriação ocorria por fertilização in vitro e só eram implantados embriões
sem defeitos genéticos. Como salienta o geneticista Nicholas Gillham, Kantsaywhere e Gattaca são
lugares semelhantes e as questões éticas levantadas são as mesmas – a diferença está em um século
de avanços tecnológicos.
Atividades
1. Por que o Evolucionismo Social favoreceu o processo de colonização dos países do “Novo Mundo”
pelas nações da Europa Ocidental?
2. Com o ingresso da Antropologia na Era da Ciência surgem os cientistas sociais. Que papel
desempenhavam esses “homens de ciência”?
Referências
DARWIN, C. A Origem das Espécies. São Paulo: Hemus, 1968.
ECKERT, C.; ROCHA, A. L. C. da. As práticas políticas na escrita antropológica, etnografia em hipertextos
e a produção de conhecimento em Antropologia. In: Iluminuras, (série do banco de imagens e efeitos
visuais), número 85. Porto Alegre: Biev, PPGAS/UFRGS, 2006.
_____. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: Global, s/d.
ENGELS, F. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega,1977, v. 3.
FRAZER, J. G. O Ramo de Ouro. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.
GUERRA, A. Do Holocausto Nazista à Nova Eugenia no Século XXI. Disponível em: <www.comciencia.
br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=8&id=44>. Acesso em: 20 ago. 2012.
HOFSTADTER, R. Social Darwinism in American Thought. Boston: Beacon Press, 1975.
MORGAN, L. H. La Société Archaïque. Paris: Antropos, 1971.
ROCHA, E. P. G. O que É Etnocentrismo. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. v. 28. (Coleção Primeiros Passos).
SCHWARCZ, L. K. M. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
_____. Negras Imagens: ensaio sobre Cultura e Escravidão no Brasil. In: SCHWARCZ, L. M.; QUEIROZ, R. da
S. (Orgs.). Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp/Estação Ciência, 1996.
_____. As teorias raciais, uma construção histórica de finais do século XIX. O contexto brasileiro. In:
SCHWARCZ, L. M.; QUEIROZ, R. da S. (Orgs.). Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp/Estação Ciência,
1996.
_____. Mercadores do espanto: a prática antropológica na visão travessa de Clifford Geertz. In: Revista
de Antropologia, São Paulo, v. 44, n. 1, 2001. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt
ext&pid=S003477012001=000100012). Acesso em: 20 ago. 2012.
SPENCER, H. Principles of Biology. London: W. Norgati, 1866.
TYLOR, E. B. Primitive Culture. Chicago: University of Chicago Press, 1958.
Gabarito
1. No século XIX, as potências europeias já tinham conhecimento da existência dos Novos Mundos
e seus povos. Fez-se necessário, então, um projeto de ocupação e exploração econômica
desses novos territórios. Nessa mesma época surge o Evolucionismo Social como ciência que
estuda o deslocamento do homem no espaço e no tempo e suas realizações, o que permitiu a
compreensão e o desenvolvimento de mecanismos eficientes de dominação desses novos povos
e seus territórios.
2. A Antropologia Científica contava com os “Homens de ciência” que por meio da sistematização
das informações coletadas pelos administradores coloniais, sobre os novos povos, estudavam o
desenvolvimento do homem e de suas realizações materiais e imateriais nos eixos do tempo e
do espaço. O conceito de evolução da espécie e de suas realizações é amplamente explorado nas
teorias elaboradas sob a ótica do Evolucionismo Social, fundamental para a constituição do saber
antropológico.
Antropologia Difusionista
Os principais teóricos da Antropologia Difusionista objetivaram quebrar o conceito racista
impregnado na Antropologia do final do século XIX e início do século XX.
Esse foi um traço comum em seus três núcleos de articulação: as escolas alemã-austríacas, inglesa
e a norte-americana. Seus principais representantes foram os alemães Friedrich Ratzel e Leo Frobenius,
os ingleses Elliot Smith, W. J. Perry e W. H. R. Rivers, e o norte-americano Franz Boas.
Para essa escola, a questão fundamental era a cultura, e não a raça, como fator determinante à
diversidade cultural humana. Os fatores dessas singularidades deveriam ser procurados nos estágios
da produção cultural de cada povo, e não na sua conformação racial, linha percorrida pelos trabalhos
– no período anterior – desenvolvidos por Herbert Spencer (Princípios da Biologia, 1864), entre outros
teóricos.
O nome difusionismo está ligado à difusão, à distribuição de elementos culturais de um centro
para a periferia de uma área. Segundo seus teóricos, uma cultura teria origem num determinado ponto
humano, e de lá teria se difundido para outras áreas culturais: de um ponto de origem, essa cultura se
desdobra – difunde-se – para outras áreas humanas.
Cada grupo humano lança mão de aspectos, formas culturais que vão ao encontro dos seus
interesses imediatos ou de sua ecologia humana3, de suas formas de organização do mundo material e
imaterial.
Para tanto, em suas diversas modulações, a Escola da Antropologia Difusionista destaca três
aspectos centrais da sua produção etnográfica antropológica: reconstrução sistemática da história dos
povos estudados, destaque no trabalho de campo – no trabalho etnográfico de observação e registro
de dados –, e a criteriosa coleta de dados primários.
Com a reconstrução histórica – linha do tempo – era possível refazer a trajetória do desdobra-
mento cultural de um ponto de origem aos estágios subsequentes. Na massa de elementos culturais
disponíveis, procurava-se identificar os elementos primeiros dessa manifestação cultural e sua origem,
da qual se desdobraram as demais manifestações, ou seja, identificação do ponto central do qual se
originaram as demais formas, por difusão dos seus elementos culturais.
O trabalho de campo dava lastro a esse objetivo. Na observação direta dos fenômenos e nas suas
comparações exteriores – forma – e interiores – essência – seria possível identificar esses elementos
primários e seus fatores derivados.
A coleta de dados primários apresentaria ao antropólogo as informações culturais mais próximas
de seus estados originários, com uma melhor identificação de aspectos primários e derivados. O trabalho
de gabinete não daria ao antropólogo essa capacidade de observação de dados.
Essa escola marcou profundamente a tradição antropológica, ao procurar se esquivar dos estigmas
preconceituosos presentes nas noções de raça. Ela reforça a tese da existência de uma família humana,
com diversidades nas formas de reprodução de suas condições materiais e imateriais de vida. Apesar
de pontos distintos de um centro intelectual para outro, formou-se uma noção comum da difusão da
cultura de um ponto central de origem para outros pontos geográficos e humanos, por assimilação ou
apropriação desses dados culturais por um ou diversos povos.
3 Ecologia humana é a relação do ser humano com seu ambiente natural. Para a sobrevivência e reprodução dos indivíduos é necessário um
meio ambiente humano saudável que combine tanto elementos naturais (orgânicos e inorgânicos) quanto os culturais que dão suporte à vida
humana nos diversos ambientes. O ser humano adapta-se ao meio ambiente (orgânica, física e mentalmente) possibilitando sua existência em
todos os ambientes terrestres do planeta.
Conceitos difusionistas
A Escola Difusionista ampliou o campo lexical da Antropologia moderna. As diversas fontes de
produção de sua área conceitual legaram aos estudos antropológicos um arsenal de ideias que alargou
o repertório das Ciências Sociais, em especial nos Estudos Culturais.
A metáfora mais comum dessa escola é a da pedra no lago. Os difusionistas criaram a imagem de
que uma cultura é como uma pequena pedra lançada num lago. Suas ondas vão se propagando de um
centro pequeno que se alarga, permanentemente, até as suas margens, regionais ou globais.
Cada pequeno círculo formado significa uma cultura, com suas particularidades e especificidades,
mas com partes da mesma onda original. Os anéis representariam experiências particulares de formas
de apropriação da mesma “pedra” cultural.
Essa teoria traz embutida duas ideias fundamentais que opuseram os difusionistas aos evolucio-
nistas: a natureza da cultura e a unidade psíquica do ser humano.
Ao advogar a natureza como fonte “inspiradora” da diversidade cultural, os difusionistas deslocam
o debate da área das relações raciais para o estudo da natureza cultural de cada povo. Esse deslocamento
é fundamental para a compreensão de que não há raças superiores ou inferiores, mas povos e grupos
humanos que são distintos na forma de apropriação, de retenção e utilização dos elementos culturais
comuns. Cada forma de utilização desses recursos estava ligada à especificidade desse grupo em relação
aos demais, detentores das mesmas raízes culturais.
Na mesma linha navega o conceito de unidade psíquica do ser humano. Os homens, segundo
os difusionistas, têm as mesmas capacidades cognoscíveis, as mesmas competências de apreensão da
realidade circundante. Os homens seriam assim parte da mesma família humana, com as mesmas com-
petências.
No fundamental, a distinção entre a escola evolucionista e a difusionista é a de que a primeira
centra sua reflexão no conceito de que – aos poucos – os seres humanos constituíram diferenças raciais
no seu processo de evolução. Os difusionistas explicam essa diversidade cultural pela forma com que os
povos se apropriam de modos diferentes dos mesmos elementos culturais, mesmo compartilhando a
mesma base psíquica de competências intelectuais, para a interpretação do mundo.
Entre os principais conceitos consolidados por essa escola estão: traços culturais; áreas e círculos;
culturais aculturação; fusão e síntese culturais; hiperdifusionismo e relativismo cultural, culturalismo ou
particularismo histórico.
::: Traços culturais – os traços culturais são elementos que permitem identificar um fenômeno
cultural comum em diversos povos. Essas são as marcas identificadoras da origem daquela
manifestação cultural e indicam sua precedência e sua unidade original, a despeito da distância
espacial entre os povos estudados.
::: Áreas culturais/círculos culturais – as áreas culturais se constituem em centros de produção
tecnológica e cultural, que servem de referência para as demais estruturas humanas que
gravitam ao seu redor. Elas são pontos de referência para diversos povos humanos realizarem
suas experiências culturais, na produção e reprodução de suas vidas materiais e imateriais. Os
círculos culturais se ligam à metáfora da pedra jogada no lago, com sua repercussão em forma
de anéis se ampliando; do centro para suas extremidades. Esses anéis são distintos a cada
momento, porém com a mesma origem de difusão.
Escola alemão-austríaca
Num cenário de transformações políticas e sociais, a Geografia de Ratzel se destaca. Ela dá lastro
para a emergência alemã, num quesito fundamental. A Alemanha tem uma entrada tardia no mundo
capitalista e faltam-lhe as prerrogativas essenciais para sua expansão: possuir colônias, territórios e
recursos naturais, diferentes da Inglaterra e da França. Sua concepção geográfica serviu como uma luva
aos projetos de unificação de Otto von Bismarck6 (1815-1898), primeiro-ministro da Prússia e do Império
Alemão.
Sua principal obra, Antropogeografia, fundante da Geografia Humana, foi publicada em 1882.
Ratzel aplica fundamentos básicos da história ao universo da Geografia. O epicentro de suas reflexões são
as condições determinantes da natureza sobre as condições de produção e reprodução das condições
de vida do homem.
Essas condições circundantes desempenhariam papéis fundamentais na constituição de vida da
humanidade, em seus diversos aspectos: físicos e psíquicos, na sua constituição física e nas suas repre-
sentações mentais e psicológicas. Segundo Ratzel, essas condições físicas e geográficas moldavam a
anatomia cultural de uma determinada sociedade. Uma natureza rica geraria uma sociedade rica; uma
natureza empobrecida geraria uma sociedade pobre.
Ratzel bebe na fonte teórica de Herbert Spencer. Para ele, o desenvolvimento social se asseme-
lhava a um organismo. Os homens se agrupavam em sociedades; estas se transformavam em Estados e,
por fim, estes últimos se convertiam em organismos. Esse rastro da experiência social era determinado
pelas condições geográficas dadas: solo, recursos naturais, condições de vida e reprodução das condi-
ções sociais.
A antropogeografia de Ratzel estuda as relações do homem com o meio ambiente. Para o teórico
alemão, o território era a base da reprodução das condições de vida de um povo. O progresso impunha a
necessidade de expansão territorial. Essa construção teórica dá como natural a instituição de um “espaço
vital” para o desenvolvimento das potencialidades de um povo. Uma sociedade em desenvolvimento
dependerá, cada vez mais, de recursos expandidos para assegurar seu desenvolvimento pleno e
satisfatório, justificava Ratzel.
Diferente dos estudos geográficos anteriores, a Geografia de Ratzel dá destaque ao homem.
Ela abre caminho para uma série de linhas possíveis de estudos, que favorecerão o desenvolvimento
da Antropologia como ciência social relevante: aspectos históricos do desenvolvimento; espaços
geográficos e desenvolvimento territorial; dispersão do homem pela terra e suas reproduções de forma
de vida; distribuições humanas e culturais; isolamentos e mestiçagem; estudos das áreas ocupadas e da
cultura desenvolvida numa localidade ou área geográfica.
No aspecto metódico, os estudos de Ratzel dão contribuições importantes ao legado antropoló-
gico. Ratzel concebe a Geografia como ciência empírica, prática, palpável. Suas técnicas de pesquisa e
análise tinham, na observação direta, seu ponto de apoio para as descrições metódicas feitas, na linha
do que preconiza a etnografia. A observação e a descrição são a base das sínteses feitas pelo geógrafo
alemão, para muitos o precursor da visão ecológica do mundo.
A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz destaca o papel da escola inaugurada por Ratzel no campo dos
estudos sociais e sua influência em outras áreas das ciências humanas. Segundo Schwarcz (1993, p. 58):
6 Otto von Bismarck (1815-1898), político e diplomata, já havia sido primeiro-ministro na França e embaixador na Rússia quando retornou a
Berlim em 1862 e foi nomeado primeiro-ministro da Prússia. Conservador, aristocrata e a favor de uma monarquia centralizada, defendia, com
o nacionalismo e o militarismo, a unificação dos Estados germânicos. Com o apoio da alta burguesia modernizou o exército, criou políticas de
guerras que auxiliaram na expansão do território prussiano até a efetiva unificação da Alemanha, em 1871, quando foi nomeado primeiro-
-ministro do Império Alemão, o “Chanceler de Ferro” (1871-1890).
Paralelamente ao Evolucionismo Social, duas grandes escolas deterministas tornam-se influentes. Em primeiro lugar,
as escolas deterministas geográficas, cujos maiores representantes, Ratzel e Buckle, advogavam a tese de que o desen-
volvimento cultural de uma nação seria totalmente condicionado pelo meio. Para os autores dessa escola era suficiente
a análise das condições físicas de cada país – “dá-me o clima e o solo que lhe direi de que nação se fala” – para uma
avaliação objetiva de seu “potencial de civilização”.
As teorias de Ratzel apresentavam as civilizações europeias como superiores às demais. Para ele,
isso justificaria a imposição da dominação desses povos pelos europeus e a exploração de seus recursos
naturais pelas potências europeias. O determinismo geográfico e a necessidade de ocupação do “espaço
vital” para o desenvolvimento das potencialidades de um determinado povo são as bases teóricas con-
ceituais dos estudos desenvolvidos por Ratzel, no campo das Ciências Sociais, com forte influência nas
Teorias Antropológicas.
Desde cedo, o antropólogo interessou-se pelo trabalho dos primeiros exploradores alemães dos
territórios africanos. Frobenius desenvolveu intenso trabalho de campo e de organização dos seus
resultados, nos museus etnográficos de Bremen, Basel e Leipzig.
Sua obra Origin of African Cultures (1898) significa uma mudança de vetor nos estudos da cultura
dos povos africanos. Frobenius procurou demonstrar a lógica da organização cultural desses povos,
o que – para alguns antropólogos – parecia irregular e ilógico. Frobenius buscou o sentido, a lógica,
7 Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, fundada em 16 de novembro de 1945, promove a cooperação
internacional nas áreas de educação, ciências, cultura e comunicação entre as Nações Unidas (193 Estados Membros e 6 Membros Associados)
na África, nos Estados Árabes, na Ásia e Ilhas do Pacífico, na Europa, na América do Norte, na América Latina e no Caribe.
8 Maurice Delafosse (1870-1926), etnólogo francês. Administrador e estudioso colonial francês na África, trabalhou na descoberta de um fio
histórico e de estruturas originais nas sociedades africanas.
9 Arturo Labriola (1873-1959), economista italiano e socialista de tendência sindicalista revolucionária, opunha-se à doutrina fascista regida
por Benito Mussolini.
a razão e as motivações contidas nessas expressões culturais. Dessa forma, abre-se espaço para outra
experiência desenvolvida depois no campo da Antropologia: a etnociência10.
O antropólogo funda, na Alemanha, o Instituto de Pesquisas da África. Entre 1904 e 1935, Frobe-
nius desenvolveu inúmeras incursões no território africano. Desses estudos sobre as antigas expressões
culturais e seus contatos com diversos povos, deduziu que havia uma origem comum entre os diversos
povos africanos e povos de outras origens culturais, como os árabes.
Frobenius estudou os mitos, ritos e as pintura rupestres de diversos povos africanos. Como parte
desse trabalho efetuado em terras africanas, colheu mitos cosmológicos e lendas culturais de povos
do Zimbábue, Congo, Marrocos, Argélia, Líbia, Egito, Sudão e da África do Sul. Com esses estudos,
Frobenius formulou um conceito que provocou impacto no campo dos estudos antropológicos: o
conceito da continuidade das culturas. Esse conceito indicava o desdobramento de aspectos ou traços
culturais comuns a diversos povos, desde uma origem até seu desdobramento posterior, pela difusão
de aspectos fundamentais dessa cultura original.
Como consequência dessa elaboração, Frobenius conceituou os denominados círculos/áreas
culturais. Por esse conceito, os povos constituem áreas em que partilham elementos e traços culturais,
por difusão ou assimilação. Essas áreas comportam diversos povos, que têm um banco cultural comum,
com conexões entre seus símbolos religiosos, estrutura mitológica e os aspectos culturais de suas
produções artísticas.
Para divulgar seus estudos, Frobenius fundou uma revista (Paideuma11) e, na qualidade de diretor
do Museu de Etnologia (1934, em Frankfurt, na Alemanha), apresentou aos europeus a sofisticada visão
de mundo que se projetava a partir das produções artísticas africanas.
Para Ki-Zerbo, o trabalho desempenhado por Frobenius modifica a visão metodológica dos povos
africanos:
[...] Ao mesmo tempo, pioneiros como Frobenius [...], que, sem preconceitos, haviam trabalhado na descoberta de
um fio histórico e de estruturas originais nas sociedades africanas com ou sem Estado, continuavam seus esforços,
retomados e aperfeiçoados por outros pesquisadores contemporâneos. (KI-ZERBO, 1982, p. 34)
Escola inglesa
Na Inglaterra, o difusionismo assumiu uma característica peculiar. Como reação ao racismo mani-
festado por alguns teóricos do Evolucionismo Social, os difusionistas advogaram a ideia conceitual de
que todas as culturas, e suas diversidades plásticas12 e de conteúdos, tiveram uma única origem, e de lá
se difundiram para todos os quadrantes do planeta, de forma direta ou indireta. Entre seus principais
protagonistas encontram-se William Halse Rivers Rivers, Grafton Elliot Smith e William James Perry.
Com nuances em suas concepções teóricas, todos foram difusionistas, na raiz da expressão, com
a noção da necessidade de reconstrução histórica dos feitos dos povos estudados, e da magnitude
(regional e material) da difusão cultural: hiperdifusionismo e heliocentrismo.
12 Diversidade plástica refere-se à variedade de imagens contruídas pelo homem utilizando-se de técnicas que manipulam materiais para dar
formas e imagens que revelem uma concepção estética e poética em um dado momento histórico.
Seu primeiro campo de estudo foi o cérebro humano. Ao radicar-se em Londres, ele teve à sua
disposição um dos principais centros de pesquisas “etnográficos” do seu tempo: O British Museum, onde
catalogou a coleção de cérebros do museu. Mais tarde, lecionou no Egito, na Escola de Medicina do Cairo,
onde adotou um método revolucionário na época para os estudos das múmias egípcias, o raio X.
Para o antropólogo britânico, ao adotar sua teoria do hiperdifusionismo, os principais fenômenos
civilizatórios do megalítico teriam sua origem no Egito, o epicentro das civilizações modernas. Dessa
região, esses fenômenos teriam se difundido para a Síria, Creta, África Oriental, sul da Arábia e para a
região da Suméria.
Apesar das controvérsias provocadas pela teoria de Smith, ela procura eliminar a polêmica de que
a diversidade cultural dos povos devesse ser medida por uma escala de superioridade e inferioridade
raciais, já que todas as culturas teriam, supostamente, a mesma origem geográfica e humana.
Franz Boas emigrou com a família para os Estados Unidos da América em 1887, seis anos após
se formar. Boas introduziu uma cunha diferenciadora no campo da Antropologia, no debate sobre as
diferenças raciais. Opondo-se ao Evolucionismo Social, ele argumentará que os diversos povos constituí-
ram experiências culturais, tão sofisticadas quanto as experiências dos povos europeus. O antropólogo
advoga a tese da igualdade racial, infraestrutura conceitual da Antropologia Cultural contemporânea.
Para Boas, um grupo humano deve ser estudado dentro da singularidade da sua cultura, no
seu universo cultural. Essas expressões culturais não poderiam ser consideradas inferiores, em relação
às expressões culturais dos povos europeus (caucasianos). Boas propõe uma revisão na escalada
civilizatória: o homem saiu da sua condição de selvagem e iniciou sua trajetória em direção à civilização,
com uma conduta linear, obrigatória.
Para ele, a diversidade cultural se constitui na experiência própria da cada povo. Essas experiências
são relativas entre os povos e não absolutas.
Segundo Boas, cada cultura é uma unidade integrada. Ela seria fruto de um desenvolvimento
histórico peculiar, singular, relativo. Numa linha distinta da inaugurada pela Escola Difusionista Alemã,
em especial, por Ratzel, Boas dá destaque à independência dos fenômenos culturais dos determinantes
geográficos e das condições biológicas de cada grupo e experiência cultural. Para ele, a cultura se
expressa na interação entre o indivíduo, de uma dada realidade sociocultural, com a sociedade, em sua
dinâmica de desenvolvimento singular.
Com Boas inaugura-se uma nova etapa da Antropologia. A etnografia desencadeada por Boas
não se contentava mais em acumular dados e informações de uma certa cultura. Sua etnografia buscava
o sentido geral expresso nessa massa de dados etnográficos.
Ele é certamente um daqueles que mais contribui para esta mutação. Em suas pesquisas sobre os Kwakiutl e os Chinook
do Canadá, ele mostra-nos que no campo tudo deve ser anotado: desde os materiais constituintes das casas até as
notas das melodias que cantam os Esquimós, e isso até ao mais infinito detalhe. Ele considera que não existe objeto
nobre nem objeto indigno da ciência e que, por exemplo, as piadas de um contador são tão dignas de interesse como a
mitologia que exprime o patrimônio metafísico do grupo. A maneira, em particular, como a sociedade tradicional, pela
voz dos mais modestos de entre eles, classificam suas atividades mentais e sociais, deve ser tomada em consideração.
Boas, anuncia assim a constituição daquilo que chamamos hoje de “etnociências”. Enfim, ele é um dos primeiros a nos
ter mostrado não apenas a importância, mas também necessidade, para o etnólogo, de ter acesso à língua da cultura
na qual ele trabalha. As tradições que ele estuda não têm como lhe ser traduzidas. Ele deve recolhê-las ele mesmo na
língua de seus interlocutores. (LAPLANTINE, 2004, p. 66)
Considerações finais
A Escola Difusionista guarda um lugar importante na linha de desenvolvimento das Teorias
Antropológicas. Ela, em vários aspectos centrais, em especial em sua manifestação inglesa e norte-
-americana, levanta-se contra o racismo intrínseco dos evolucionistas. Porém, no campo da experiência
alemã, sobretudo com os trabalhos de Ratzel, o traço da suposta superioridade racial dos povos europeus
em relação aos demais é nítido. A teoria do espaço vital, expressão de um momento da história alemã,
torna-se argumento fundamental da ação dos alemães, para desencadear a Segunda Guerra Mundial.
No aspecto conceitual, sua contribuição foi fundamental. A ideia de que as culturas se difundem
a partir de um ponto de origem – uma pedra jogada na água de um lago – limita a noção de supe-
rioridade de uma cultura em relação à outra, na medida em que todas elas tiveram um denominador
comum. Apesar dos excessos – todas as culturas derivam da experiência do Antigo Egito –, essa escola
apresentou como singularidade o conceito de que cada cultura deve ser compreendida dentro de suas
particularidades.
Ao se apropriarem de um determinado legado cultural – imitação, negociação, ou conquista militar
–, os povos adotam esse legado de acordo com suas particularidades históricas. Essas singularidades
fazem com que esses povos superem suas possíveis limitações físicas – geográficas, topológicas,
climáticas e de recursos.
Por fim, as contribuições conceituais que a Escola Difusionista deu aos estudos da Antropologia
marcaram, de forma decisiva, o desenvolvimento dessa ciência, em particular, nos estudos da cultura e
de suas formas de manifestação. Nos campos específicos da etnociência, da etnografia e do trabalho de
campo, muito se deve ao Difusionismo Cultural.
Texto complementar
Pode a Geografia determinar o desenvolvimento?
(GARDINI, 2007)
As teorias do determinismo geográfico que se difundiram entre os séculos XIX e XX procura-
vam afirmar que o desenvolvimento das nações e as características genéticas das diferentes cultu-
ras eram determinados por padrões geográficos. Na época, o principal argumento utilizado para
basear as leis gerais do determinismo geográfico era a condição climática dos lugares. No entanto,
outros elementos da geografia física ganharam status científico, tais como a posição e localização
da rede hidrográfica, o desenho dos litorais, a qualidade do solo e a morfologia do relevo, sendo
usados para esboçar algumas teorias nesse período.
Na relação entre determinismo geográfico e desenvolvimento dos Estados deve-se considerar a
questão da divisão territorial do trabalho. De acordo com Antonio Carlos Robert de Moraes, professor
de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), existe uma lógica que ainda não se quebrou,
que começa com a concentração dos principais países capitalistas no Hemisfério Norte. Citando
Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, Moraes lembra que a ideia da colônia de
exploração se assenta num meio tropical que é o meio complementar ao meio europeu. Em função
disso, criam-se certos mecanismos e sociabilidades que serão determinantes de posições que até
hoje persistem. “Acontece que hoje o próprio controle das técnicas e das matrizes tecnológicas
segue essa divisão territorial do trabalho. Se buscarmos saber onde é a pátria de uma multinacional,
antes de tudo, é onde estão os seus laboratórios. A área de produção pode se espalhar pelo mundo,
mas os centros de inovação definem bem a nacionalidade das empresas”.
A história do desenvolvimento das civilizações mostra que não é correto afirmar que antes da
chegada dos homens “civilizados”, das latitudes mais altas, os povos dos trópicos eram “subdesen-
volvidos ou pobres”. Afinal, que argumentos sustentariam a veracidade dessa afirmação? Muitos
estudos mostram que as técnicas desenvolvidas pelas culturas dos trópicos eram bastante desen-
volvidas para a época, muitas delas superiores às dos povos de clima temperado. Os ideais europeus
tornaram-se o modelo de desenvolvimento para o mundo e subjugaram os demais. A partir disso,
difundiu-se a ideia da indolência entre os povos localizados na faixa da linha do equador, e usaram-
-se argumentos pseudocientíficos como localização e incidência dos raios solares na superfície da
terra para justificar a dominação.
“Não há fatores climáticos que determinam o fato de um país ser rico ou pobre”, afirma a
professora de Climatologia da Universidade Estadual de Campinas, Luci Hidalgo Nunes. Para ela,
as relações de poder são estabelecidas no âmbito político e não climático, com base, entre outros
fatores, no domínio de recursos naturais, mutáveis historicamente. “O recurso energético, de enorme
relevância, ilustra bem isso: historicamente as nações de maior poderio dominavam, também, os
recursos energéticos. O carvão, por exemplo, foi fundamental para a ascensão do Império Britânico,
cujo declínio coincide com uma série de circunstâncias, entre as quais a substituição da matriz
energética pelos combustíveis fósseis, e a consequente substituição do poderio britânico pelo
norte-americano”, afirma a geógrafa.
Paulo César da Costa Gomes, professor de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), defende que não há uma relação direta entre as condições geográficas e o tipo de desen-
volvimento de uma nação. “Não há um padrão, nenhuma regularidade, quanto mais uma determi-
nação”. Em seu livro Geografia e Modernidade, ele explica que o determinismo na geografia não se
define apenas como uma metodologia que conduz à verdade, mas também como um instrumento
de previsão. “Ao antecipar os resultados, o determinismo permite uma ação no mundo. Assim, sob
essa forma, a ciência deixa de ser expectadora da realidade para se tornar o meio fundamental de
intervenção”, diz ele.
O professor da UFRJ levanta uma questão complexa envolvendo a ciência e o determinismo.
Em seu livro, citando Lewthwaite, afirma que “a formulação de leis e padrões implica inevitavelmente
uma aceitação do determinismo”. Nesse sentido, é possível questionar se a geografia (e a ciência em
geral) ainda estaria vestindo a camisa do determinismo.
Gomes afirma que não. Uma coisa é criar padrões regulares, a outra é ficar esperando que esses
padrões regulares ofereçam sempre as mesmas respostas. “É verdade que a ciência procura essa
possibilidade de formalizar problemas, mas não obrigatoriamente que esses problemas sejam en-
carados na forma de causa e efeito de determinação”, explica. Segundo ele, a palavra determinismo
já está muito estigmatizada no meio científico. Raramente as pessoas usam o verbo determinar em
suas pesquisas, preferindo outro: influenciar. Assim, as características geográficas não “determina-
riam” o desenvolvimento de um povo, mas sim o “influenciaria”.
Mesmo assim, revela Gomes, “está se provando a determinação, pois sempre que houver uma
determinada causa esta terá um efeito. No final, somos muito mais positivistas do que gostaríamos.
Está todo mundo perseguindo um modelo com essa objetividade e com esse poder de previsibilidade,
esperando que isso possa estabelecer uma ciência normativa, capaz de gerar leis em que a gente
possa antecipar o resultado. O sonho ainda é um sonho positivista, infelizmente”, completa.
A associação que Ratzel procurou fazer foi entre a nação e uma determinada quantidade de superfície
com recursos necessários para a manutenção ou para o desenvolvimento daquela cultura. “Ratzel
utilizava muito mais a metáfora do organismo vivo, essa ideia organicista, ou seja, o povo e seu solo
formam um todo. Então o povo não pode sobreviver sem uma determinada quantidade de solo”,
completa Gomes.
Para Moraes, Ratzel não é o cara-chave do determinismo geográfico, apesar de muito associado
a isso. “O cara chave se chama Carl Ritter (1779-1859). Ele sim foi um determinista por excelência”.
De acordo com o professor da USP, Ritter fez uma lei das costas dos litorais onde ele relacionava
o desenvolvimento dos países com a existência de litorais recortados. “Os lugares onde tivessem
litorais muito retilíneos, não seriam pendentes ao desenvolvimento”, explica.
Atividades
1. Comente as ideias sobre a natureza da cultura e a unidade psíquica do ser humano na Antropologia
Difusionista.
Referências
BOAS, F. Primitive Art. Nova York: Capitol, 1951.
_____. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
FAGE, J. D. Evolução da historiografia da África. In: KI-ZERBO, J. (Org.). História Geral da África: I. Meto-
dologia e pré-história da África. São Paulo: Ática: Unesco, 1982.
FROBENIUS, L.; FOX, D. C. A Gênese Africana: contos, mitos e lendas da África. São Paulo: Landy, 2005.
GARDINI, A. Pode a Geografia Determinar o Desenvolvimento? Disponível em: <http://www.com-
ciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=26&id=301>. Acesso em: 20 ago. 2012.
_____. Nova Luz Sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
GRAEBNER, F. Die Methode der Ethnologie. Heidelberg: Winter, 1911.
KI-ZERBO, J. (Coord.) et al. História Geral da África: metodologia e pré-história da África. São Paulo:
África; Unesco, 1982.
LAPLANTINE, F. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
M’BOW. A.-M. Prefácio. In: KI-ZERBO, J. História Geral da África: Metodologia e pré-história Geral da
África. São Paulo: África; Unesco, 1982.
Gabarito
1. Os teóricos difusionistas consideravam a cultura como fator determinante da diversidade cultural
humana e que os grupos humanos possuiam as mesmas raízes culturais, não havendo, então,
raças superiores ou inferiores e sim povos distintos nas formas de apropriação dos elementos
culturais. E os seres humanos em todos os povos têm as mesmas capacidades e competências.
2. O teórico Friedrich Ratzel considerava que as condições do meio em que viviam determinavam
a constituição física e as representações mentais e psicológicas dos homens, explicando assim a
diversidade de culturas entre os povos.
3. A Escola Difusionista Inglesa, reagindo ao racismo do Evolucionismo Social, defendia que todas as
culturas teriam a mesma origem geográfica e humana, o Egito.
4. O difusionista Franz Boas considerava em seus estudos a particularidade histórica de cada povo
estudado. Defendeu que cada cultura se desenvolve de maneira singular em cada grupo humano
que deve ser estudado em seu universo cultural sem que essa diversidade de culturas caracterize
uma superioridade racial.
1 A Batalha de Sedan aconteceu em 1.º de setembro de 1870, durante a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) – oposição francesa à unificação
alemã – entre o exército do Imperador da França Napoleão III e um conjunto de estados germânicos liderados pela Prússia. Essa batalha
resultou na derrota do exército francês e na captura de Napoleão III que, desacreditado pelos franceses, deixou de ser imperador.
2 Comuna de Paris (18 de março a 28 de maio de 1871) foi um governo revolucionário da classe operária em Paris, resultado da luta da
classe operária francesa contra a dominação política da burguesia agravada pela derrota da França na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871).
A Comuna de Paris foi a primeira revolução comunista da história e é considerada uma referência na história dos movimentos populares e
revolucionários.
3 A III República Francesa foi instituída em setembro de 1870 após a derrota do Imperador Napoleão III na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871).
Manteve-se até 1940 com a derrota da França para a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. A III República foi inicialmente conservadora, passou
pelo fracasso da restauração monarquista adotando leis constitucionais (1875) até a conclusão de um programa de reformas democráticas
com relações políticas exteriores como foi o “entente cordial” com a Inglaterra (1904) pelo empreendimento da expansão colonial.
setembro de 1871; a instituição do divórcio – debate que se estende de 1882 a 1884, e a instituição da
educação laica, desvinculada da religião.
Durkheim e seus discípulos desenvolveram pesquisas centradas nas representações coletivas
da sociedade. Eles estudaram as formas das relações sociais e suas etapas de desenvolvimento.
Apontaram as formas de solidariedade social – orgânica e mecânica. Estudaram as formas elementares
das organizações religiosas. Empenharam-se na compreensão da teoria do conhecimento e na busca
da definição do fato social total – articulação biológica, psicológica e sociológica – nas trocas e nas
relações recíprocas, como base de sustentação da vida social. Seus trabalhos subsidiaram a ampliação
do espectro de estudos da Antropologia, como parte dessa área científica, determinando o método de
estudo comparativo, como fator singular entre as Ciências Sociais.
Graças ao empenho e à envergadura dos trabalhos científicos de Durkheim e Mauss, a Escola
Sociológica Francesa foi de fundamental contribuição à Antropologia como ciência respeitada e como
disciplina científica relevante. Esses cientistas sociais também foram responsáveis pela formação de
uma geração de antropólogos que deixou raízes profundas no desenvolvimento desse campo de
conhecimento das Ciências Sociais.
Método científico
As ciências levaram um bom tempo para consolidar uma métrica de organização dos seus estudos.
O método científico atravessou uma larga avenida conceitual até cristalizar-se como instrumento de
investigação científica. Em sua origem, método significa meta (ao longo de), e hodós (via, caminho,
estrada). Método é a ordem, a organização dada a uma investigação, para desvendar as realidades
contidas num determinado fenômeno. É o estudo feito pela ciência para alcançar um fim determinado,
ou verdade com validade científica – em determinadas condições – uma forma racional de agir e de
adequar os meios e fins, evitando tropeços característicos do acaso.
A consolidação do método científico traz uma questão nova para o debate: até então, a Filosofia
havia se preocupado com o ser. Com a evolução das ciências na Idade Moderna4, coloca-se a questão
do conhecer. Inauguram-se os debates sobre a Teoria do Conhecimento, a Epistemologia5. Passa-se a se
preocupar com o sujeito cognoscente (o sujeito que conhece), como também com o objeto cognocísvel
(a realidade externa ao sujeito).
Entre os pensadores que se envolvem na busca da métrica científica dos seus estudos, encontra-
-se o francês René Descartes6, figura de proa que exercerá influência sobre Durkheim, mais tarde.
4 Idade Moderna é o período histórico que vai do século XV ao XVIII e destaca-se por ter sido um “período de transição”. Época marcada pela
substituição do modo de produção feudal pelo modo de produção capitalista e pelo advento do experimentalismo científico – o homem,
senhor do mundo, pode manipulá-lo à vontade.
5 Epistemologia, também conhecida como Teoria do Conhecimento, é a ciência que estuda a origem, a estrutura e os métodos adequados
para a aquisição e a validação do conhecimento.
6 René Descartes (1596-1650) foi um filósofo, cientista e matemático francês. É conhecido como o “pai da filosofia moderna”. Obteve
reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria – geometria analítica. Criador do médoto cartesiano que consiste
no Ceticismo Metodológico – duvida-se de cada ideia que pode ser duvidada – , e também na realização de quatro tarefas básicas para o
estudo do fenômeno ou coisa estudada: verificar, analisar, sintetizar e enumerar todas as conclusões e princípios, a fim de manter a ordem do
pensamento.
Descartes elabora – no século XVII – como ponto de partida da sua forma de filosofar a “dúvida metódica”.
Ela é um artifício que desarticula uma ideia e se propõe a rearticular tudo de novo.
Com o tempo, formalizaram-se as áreas das ciências formais (Matemática e Lógica), as ciências da
natureza (Física, Química, Biologia, Geologia, Geografia Física) e as ciências humanas (Psicologia, Socio-
logia, Economia, História, Geografia Humana, Linguística, Antropologia, entre outras).
O método científico experimental passa a se caracterizar pelas etapas da observação (observação
criteriosa e rigorosa, precisa, metódica e orientada para a explicação racional dos fatos), hipótese7 [hypó
– debaixo de, sob – e thésis – proposição] (organização dos fatos de acordo com uma ordem provisória);
experimentação (estudos dos fenômenos em condições determinadas pelo cientista) e a generalização
(estabelecimento das relações constantes, leis teóricas).
Nas Ciências Sociais a elaboração do método deu-se depois das demais ciências, quando elas se
desligam da Filosofia, em razão do impacto do desenvolvimento das ciências da natureza.
A primeira ciência humana a desenvolver um método foi a Economia. No século XVIII, Adam
Smith foi o primeiro a explicar como funcionava o sistema econômico, em termos matemáticos, e suas
consequências sociais. Mais tarde, o método se estende para as demais Ciências Sociais: na Sociologia,
Augusto Comte8 a designa como uma ciência positiva, a ciência dos fatos sociais, das instituições, dos
costumes e das crenças sociais. Émile Durkheim tenta fazer da Sociologia uma disciplina objetiva,
colocando como meta central o método sociológico e a consideração dos fatos sociais como “coisas” que
possam ser estudas e pesquisadas. Max Weber9 enfatiza a necessidade de usar o método da compreensão,
em oposição ao critério da explicação. Desse trio de ferro das Ciências Sociais, Émile Durkheim irá dirigir
suas energias intelectuais na direção da constituição do método sociológico e de suas implicações nas
Ciências Sociais. Durkheim é considerado um dos pais formadores da disciplina sociológica e exerce
uma forte influência nas gerações futuras de estudiosos e pesquisadores da realidade social.
Segundo Laplantine (1987, p. 88), Durkheim demonstra preocupações distintas das da etnologia
e da etnografia, nos seus primeiros estudos. Porém, com a publicação de As Formas Elementares da Vida
Religiosa (1912), o teórico francês revê suas posições, “considerando que é não apenas importante, mas
também necessário estender o campo das investigações da Sociologia aos materiais recolhidos pelos
etnólogos nas sociedades primitivas” .
Sua preocupação maior é mostrar que existe uma especificidade do social, e que convém consequentemente emanci-
par a Sociologia, ciência dos fenômenos sociais, dos outros discursos sobre o homem, e , em especial, do da Psicologia.
Se não nega que a ciência possa progredir por seus confins, considera que na sua época é vantajoso para cada disciplina
avançar separadamente e construir seu objeto. “A causa determinante de um fato social deve ser buscada nos fatos
sociais anteriores e não nos estados da consciência individual.
Para Durkheim, o social tinha predominânica sobre o individual, a irredutibilidade do social aos
indivíduos. Segundo ele, a consequência dessa irredutibilidade implica observar os fatos sociais como
“coisas”, que só poderão ser explicadas quando relacionadas a outros fatos sociais. Ao elaborar essa con-
cepção, Durkheim dá à Sociologia autonomia ao constituir um objeto de estudo próprio, que a emanci-
pará das explicações históricas, geográficas, psicológicas e biológicas da época.
Esse pensamento durkheimiano [...] vai por meio de suas novas exigências metodológicas renovar profundamente
a epistemologia das ciências humanas da primeira metade do século XX, ou mais exatamente das ciências sociais
destinadas a se separar destas. Vai exercer uma influência considerável sobre a pesquisa antropológica, particularmente
na Inglaterra e evidentemente na França, o país de Durkheim, onde, ainda hoje, nossa disciplina não se emancipou
realmente da Sociologia. (LAPLANTINE, 1987, p. 89)
Durkheim reivindica um comportamento ético irrestrito por parte do pesquisador. Para o pesqui-
sador francês, ao mergulhar num estudo, o estudioso deve abandonar suas ideias pré-concebidas, pre-
conceituosas. Oracy Nogueira vai “flexibilizar” essa posição de Durkheim. Para Nogueira, o pesquisador
carrega na sua mochila conceitual suas prenoções, ao fazer suas opções.
Na realidade, os passos do método científico indicados não se delimitam rigidamente. Assim, a própria formulação das
questões iniciais, mesmo que se acate ao extremo o preceito de Durkheim (1858-1917), segundo o qual o investigador
deve pôr de lado todas as suas prenoções, implica hipóteses que vão influenciar a própria seleção dos dados. (NOGUEIRA,
1973, p. 76)
Mais adiante:
Embora os sociólogos e antropólogos tanto tenham insistido, principalmente a partir das publicações dos trabalhos de
Durkheim, sobre a necessidade de evitar que as prenoções, as expectativas e preferências do investigador interfiram
nos resultados das investigações, no campo das diversas ciências sociais, temos de reconhecer que ninguém pode
lançar-se a um campo de estudos sem levar, desde o início, pelo menos algumas hipóteses, embora ainda obscuras, mal
delineadas, não formuladas de um modo explícito. (NOGUEIRA, 1973, p. 84)
tanto da disciplina – objeto e metódica de abordagem – como com a construção do ethos profissional
do estudioso e pesquisador das Ciências Sociais.
Em sua obra, Durkheim persegue esse caminho. Suas principais obras são: Da Divisão Social do
Trabalho (1893), As Regras do Método Sociológico (1895); O Suicídio (1897); As Formas Elementares da
Vida Religiosa (1912). Durkheim fundou uma das revistas que mais contribuíram para a consolidação das
Ciências Sociais, no mundo inteiro: L´année Sociologique (1896).
Em linhas gerais, Durkheim parte do princípio de que o homem é um animal selvagem, que se
tornou sociável. Ele foi capaz de aprender hábitos e costumes para poder conviver com o seu grupo
social. Esse processo de aprendizado no grupo social Durkheim denominará como “socialização”.
A consciência coletiva se forma durante esse processo. Nessa relação, surgem os objetos do estudo
sociológico, os “fatos sociais”.
Para Durkheim, esses “fatos sociais” precisam atender a três características básicas: generalidade,
exterioridade e coercitividade. Os comportamentos das pessoas ocorrem independente de suas von-
tades pessoais. As métricas delineadoras desses comportamentos é algo que já estava lá antes deles
e continuará depois. O desenvolvimento do método extraído, em grande parte, das ciências naturais,
visava revelar as leis que regem o comportamento social e direcionam os “fatos sociais”.
A lógica é simples: se tudo em uma dada sociedade está interligado, cada pequena alteração
nesse conjunto afeta a sociedade, afeta suas instituições e provoca uma anomia10 em suas relações.
As instituições, segundo Durkheim, cumprem um papel de manter a organização do grupo e atender
suas necessidades. Elas operam contra as mudanças e agem para manter a ordem social, sendo assim,
na essência, instâncias conservadoras, independente de sua natureza: familiar, escolar, governamental,
religiosa ou policial.
A anomia surge quando há um problema nessas relações sociais; quando a sociedade adoece.
Para Durkheim, essa doença da sociedade provoca uma patologia social. Essa doença é considerada,
pelo autor francês, como uma inimiga mortal da sociedade. A Sociologia seria, então, a forma de diag-
nosticar e superar esses efeitos anômalos da patologia social.
Em paralelo à Biologia, Durkheim entendia que o papel do sociólogo seria o de compreender essa
realidade, diagnosticá-la para ajudar a sociedade a superar essa anomalia, essa doença social. Caberá
a cada membro da sociedade, por intermédio do sistema de direitos e deveres, zelar pela preservação
da coesão e da saúde da sociedade e de seus membros. Essa solidariedade social pode ter duas formas
diferentes: uma orgânica e outra mecânica. Na primeira, os indivíduos são solidários devido às suas
semelhanças; a educação é difusa, sem a figura do mestre; não há reciprocidade nas relações. Na
segunda, os indivíduos estão ligados à sociedade, sem intermediários; formam um conjunto mais ou
menos organizado com valores comuns e têm formas coletivas de solidariedade.
Para Durkheim, era necessário elaborar um método para que fosse possível, sob a ótica científica,
observar, descrever e classificar a realidade social. Ele se lança a essa tarefa na sua vida acadêmica como
docente (ministra aula de Pedagogia e Ciência Social na Faculté de Lettres de Bordeaux, de 1887 a 1902),
como pesquisador e como editor de revista da área das Ciências Sociais (L´Année Sociologique, 1896).
10 Anomia é um termo cunhado por Émile Durkheim em seu livro O Suicídio (1897) para descrever um estado de desordem, ausência de leis
e normas sociais.
Logo de cara, Durkheim aponta a magnitude do projeto a que se propôs: elaborar um método
para o estudo das sociedades, com um rigor que se assemelha ao adotado pelas ciências da natureza.
Ele indica a necessidade de um método que vá além da observação ligeira e superficial. Para ele, em
ciência, “deve se desconfiar sempre das primeiras impressões”. O método permite ao cientista social
mergulhar na natureza dos fenômenos e estudá-los.
Durkheim não considerava seu método revolucionário. Num certo sentido, aponta que ele é até
conservador, “pois considera os fatos sociais como coisas cuja natureza não é passível de modificação
fácil” (DURKHEIM, 1985, p. 17). O centro da preocupação de Durkheim nessa obra era a extensão da base
racionalista de observação do mundo para a área das Ciências Sociais:
Estender à conduta humana o racionalismo científico é, realmente, nosso principal objetivo, fazendo ver que, se a anali-
sarmos no passado, chegaremos a reduzi-la a relações de causa e efeito; em seguida, uma operação não menos racional
a poderá transformar em regras de ação para o futuro [...] (DURKHEIM, 1985, p. 17)
No capítulo II, Durkheim vai tratar das regras relativas à observação dos fatos sociais. Nele, o autor
Durkheim estipula a regra fundamental: tratar os fatos sociais como coisas; isso porque:
::: são os data imediatos da ciência, enquanto ideias, a partir das quais se acredita que eles se
desenvolvem, não são dadas diretamente;
::: apresentam todos os caracteres da coisa.
11 “[...] A pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão do meio social tendendo a moldá-la à sua imagem, pressão de
que tanto os pais quanto os mestres não são senão representantes e intermediários”. (DURKHEIM, 1985, p. 5)
12 Nota do autor: “Este parentesco estreito entre a vida e a estrutura, entre o órgão e a função, pode ser facilmente estabelecido em Sociologia
porque, entre os dois termos extremos, existe toda uma série de intermediários imediatamente observáveis, mostrando o laço que há entre eles.
A Biologia não tem o mesmo recurso. Mas é permitido crer que as induções da primeira destas ciências, a tal respeito, são aplicáveis à outra e que,
nos organismos como nas sociedades, não existem entre as duas ordens de fatos senão diferenças de grau”. (DURKHEIM, 1985, p. 11)
E todavia os fenômenos sociais são coisas e devem ser tratados como coisas. Para demonstrar essa proposição não é
necessário filosofar sobre a natureza deles, discutir as analogias que apresentam como os fenômenos dos reinos infe-
riores. Basta constatar que são eles os únicos datum [dado] oferecidos aos sociólogos. Na verdade, é coisa tudo que é
dado, tudo que se oferece ou antes se impõe à observação. Tratar fenômenos como coisas é tratá-los na qualidade de
data que constituem o ponto de partida da ciência. Os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente tal caráter.
[...] somente depois de ter subido até suas fontes, poderemos saber de onde provêm. (DURKHEIM, 1985, p. 24)
E as regras relativas à explicação dos fatos sociais, Durkheim defende que “quando, pois, procu-
ramos explicar um fenômeno social, é preciso buscar separadamente a causa eficiente que produz e a
função que desempenha” (DURKHEIM, 1985, p. 83).
Por fim, para definir as regras relativas à administração da prova: “Por conseguinte, não se pode
explicar um fato social de alguma complexidade senão sob a condição de seguir-lhe o desenvolvimento
integral através de todas as espécies sociais” (DURKHEIM, 1985, p. 121).
13 Nota do autor: “Da teoria desenvolvida neste capítulo se deduziu algumas vezes que, segundo nossas ideias, a marcha ascendente da
criminalidade no decorrer do séc. XIX era fenômeno normal. Nada está mais longe do que realmente pensamos. Muitos fenômenos que
indicamos a propósito do suicídio (ver Le suicide, p. 420 e seguintes) tendem, ao contrário, a fazer crer que tal desenvolvimento é, em geral,
mórbido. Todavia, poderia ser que um certo acréscimo de determinadas formas de criminalidade fosse normal, pois cada estado de civilização
possui a criminalidade que lhe é própria. Mas a esse respeito não é possível formular senão hipóteses”. (DURKHEIM, 1985, p. 65)
Durkheim perseguiu uma lógica inquebrantável para construir um método de pesquisa que
pudesse revelar para os estudiosos da área das Ciências Sociais a complexidade dos fatos sociais e
suas implicações no conjunto da sociedade. Ao colocar Descartes na linha do seu horizonte intelectual
– Um princípio cartesiano era que, na cadeia das verdades científicas, o primeiro elo desempenha papel
preponderante – Durkheim aplica com rigor o método na pesquisa que fará sobre As Formas Elementares
de Vida Religiosa. Logo no início do livro, ao definir o seu objeto de pesquisa, o autor francês anuncia:
Neste livro, propomo-nos estudar a religião mais primitiva e mais simples que se conheça atualmente, analisá-la e
tentar explicá-la. Dizemos de um sistema religioso que é o mais primitivo que nos é dado observar, quando preenche
as duas condições seguintes: em primeiro lugar, é preciso que se encontre em sociedade cuja organização não seja
ultrapassada por nenhuma outra em simplicidade, além disso, é preciso que seja possível explicá-lo sem fazer intervir
nenhum elemento tomado de religião anterior. (DURKHEIM, 1989, p. 29)
Esse esforço de aprimorar uma metodologia de pesquisa na área das Ciências Sociais e de pro-
curar definir o objeto de pesquisa dessas ciências abriu uma extraordinária porta para as pesquisas
posteriores. Mais tarde, um assistente e sobrinho de Durkheim, Marcel Mauss, de posse desse arsenal
teórico e conceitual, tornar-se-á o “pai da Antropologia francesa” e formará uma excepcional geração de
antropólogos.
Pratique des Hautes Études, colaborou com a criação do Instituto de Etnologia da Universidade de Paris.
Lá, teve como alunos, entre outros, Marcel Griaule, Michel Leiris, Roger Bastide, Louis Dumont e Claude
Lévi-Strauss. Bastide14 e Lévi-Strauss15 terão papel decisivo na fundação das Ciências Sociais brasileiras,
mais tarde. Apesar dessa intensa produção, Mauss nunca fez trabalho de campo. Sua produção era emi-
nentemente intelectual, uma Antropologia de gabinete.
Bom leitor e de extraordinária memória, Mauss explorou diversos campos para a elaboração de
seus estudos, tais como etnologia, ciências das religiões, Filosofia, Psicologia, Direito, Economia Política,
Literatura mundial e Ciências Exatas.
Mauss parte do conceito de Durkheim – fato social como coisa, objeto de estudo – e introduz
no conceito o aspecto simbólico. Para ele, os fatos sociais totais exprimem as instituições religiosas,
jurídicas, morais, econômicas, os fenômenos estéticos e morfológicos.
Uma das suas mais difundidas e importantes obras é o Ensaio sobre a Dádiva (1924). Nela, Mauss
faz um estudo comparativo de diversas religiões do mundo, tendo como fio condutor a noção de aliança.
Segundo Mauss, a aliança é um produto da dádiva; tanto as alianças matrimoniais como as políticas, as
religiosas, as econômicas, as jurídicas e diplomáticas e as alianças pessoais.
Entre as dádivas, Mauss inclui os presentes, mas também as visitas, festas, comunhões, esmolas,
heranças e várias prestações, serviços e tributos. Dessa forma, a constituição da vida social é um eterno
dar e receber. Essa permanente troca tece as relações sociais, num permanente sistema de comunicação
física, mas também simbólica. Mesmo nas visitas, segundo Mauss, há essa troca simbólica: ao receber
alguém, o dono da casa torna-se anfitrião, mas cria a possibilidade de, num futuro, vir a ser hóspede
desse que hoje é seu hóspede. Assim, a dádiva é um ato espontâneo, mas simultaneamente obrigatório,
numa dada sociedade.
Segundo Marcos Lanna (2000), as maiores contribuições dadas pelo ensaio foram:
::: mostrar que fatos das mais diferentes civilizações revelam que trocar é mesclar almas, permi-
tindo a comunicação entre os homens, a intersubjetividade e a sociabilidade;
::: essas regras manifestam-se simultaneamente na moral, na literatura, no Direito, na religião, na
Economia, na política, na organização do parentesco e na estética. A troca é, dessa forma, um
fato social total;
::: as trocas são simultaneamente voluntárias e obrigatórias;
::: Mauss propõe um método comparativo que pressupõe uma sociologia.
Nessa obra, depois de percorrer várias experiências de trocas, por diversas civilizações, Mauss
conclui que o estudo da circulação de riqueza oferece uma base para a comparação inicial entre dife-
rentes sociedades e permite uma passagem entre o estudo da sociedade ocidental e o de outras. Na
sociedade moderna, a dádiva está embutida na compra e na venda. Assim, Mauss indica que o trabalho
é sempre uma dádiva em qualquer sociedade.
14 Roger Bastide (1898-1974) foi um sociólogo francês que chegou ao Brasil em 1938 como membro da delegação de professores europeus
e ocupou a cátedra de sociologia do quadro docente do Departamento de Ciências Sociais da recém-criada Universidade de São Paulo.
Desenvolveu sua carreira acadêmica a partir dos estudos sobre os índios e os negros, principais grupos enfocados pela Antropologia brasileira.
15 Claude Lévi-Strauss nasceu em 1908 na Bélgica, é antropólogo, professor e filósofo. Foi professor de Sociologia na Universidade de São
Paulo entre 1934 e 1937. Durante sua permanência no Brasil realizou expedições entre os povos indígenas Bororo, os Kadiwéu e os Nambikwara,
tornando-se etnólogo a partir desses estudos.
Segundo Mauss, seguindo a pegada de Durkheim, há uma origem religiosa na noção de valor
econômico: “as diversas atividades econômicas são impregnadas de ritos e mitos e guardam um caráter
cerimonial obrigatório” (MAUSS, 1974, p. 171). Na reta final do ensaio, Mauss destaca a importância
do estudo do concreto e a necessidade de ter a etnografia como base para os estudos, pois permite
desvendar as singularidades e particularidades contidas na realidade.
Mauss arrasta para a área da Antropologia os conceitos de noções desenhados por Durkheim. Em
especial, o conceito de fato social total. Seu trabalho procura consolidar a autonomia da Antropologia
ante a Sociologia, não mais como uma ciência anexa. Para ele, o lugar da Sociologia é na Antropologia,
e não o inverso, como pensava Durkheim. Com isso, deu uma contribuição decisiva para a consolidação
do fazer antropológico.
Um dos conceitos maiores forjados por Marcel Mauss é o do fenômeno social total, consistindo na integração dos
diferentes aspectos (biológico, econômico, jurídico, histórico, religioso, estético...) constitutivo de uma dada realidade
social que convém apreender em sua integridade. “Após ter forçosamente dividido um pouco exageradamente”,
escreve ele, “é preciso que os sociólogos se esforcem em recompor o todo”. Ora, prossegue Mauss, os fenômenos sociais
são “antes sociais, mas também conjuntamente e ao mesmo tempo fisiológicos e psicológicos”. Ou ainda: “O simples
estudo desse fragmento de nossa vida que é nossa vida em sociedade não basta”. Não se pode, ainda, afirmar que
todo fenômeno social é também um fenômeno mental, da mesma forma que todo fenômeno mental é também um
fenômeno social, devendo as condutas humanas ser apreendidas em todas as suas dimensões, e particularmente em
suas dimensões sociológica, histórica e psicofisiológica. (LAPLANTINE, 1987, p. 90)
Considerações finais
A Escola Sociológica Francesa desempenhou um importante papel na história das Teorias
Antropológicas. Os trabalhos de Émile Durkheim e de Marcel Mauss contribuíram para a definição da
metódica do trabalho do antropólogo e para a definição do seu objeto e estudo de pesquisa.
A definição do fato social – total – e a adoção do método comparativo deram à Antropologia
bases teóricas e conceituais sólidas para o seu desenvolvimento posterior. Centro desses estudos é a
tentativa de definir o homem16 e suas realizações17 no espaço e no tempo, parte das atribuições da
aventura antropológica.
No exercício da construção do método, a Escola Sociológica Francesa legou o conceito de
fato social total, a importância da etnografia para a construção de grandes quadros comparativos, a
utilização do recurso comparativo para a leitura de realidades complexas, a adoção da busca da origem
dos fenômenos como forma de compreendê-los, a definição do fato social como “coisa” cognoscível e o
16 Há nele dois seres: um ser individual que tem a sua base no organismo e cujo círculo de ação encontra-se, por isso mesmo, estreitamente
limitado, e um ser social que representa em nós a mais alta realidade, na ordem intelectual e moral, que possamos conhecer pela observação,
ou seja, sociedade. Essa dualidade da nossa natureza tem como consequência, na ordem prática, a irredutibilidade do ideal moral ao móbil
utilitário, e, na ordem do pensamento, a irredutibilidade da razão à experiência individual. À medida que participa da sociedade o indivíduo
vai naturalmente além de si mesmo, seja quando pensa, seja quando age (DURKHEIM, 1989, p. 46).
17 A conclusão geral desse livro é que a religião é coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que
exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar,
a manter, ou a refazer certos estados mentais desses grupos. Mas então, se as categorias são de origem religiosa, devem participar da natureza
comum a todos os fatos religiosos: também elas seriam coisas sociais, produtos do pensamento coletivo. No mínimo – pois no estado atual
dos nossos conhecimentos nessas matérias, devemos guardar-nos de qualquer tese radical e exclusiva – é legítimo supor que elas sejam ricas
em elementos sociais (DURKHEIM, 1989, p. 38).
papel cognoscente do pesquisador: definição do seu comportamento moral, ético e deontológico ante
o fazer antropológico. Assim, além da definição do objeto da pesquisa e da metódica de abordagem,
a Escola Sociológica Francesa avançou para o estudo das relações epistemológicas, das formas de
produção de conhecimento do real.
Sua importância foi tão expressiva que ela formou uma das mais importantes gerações de antro-
pólogos, a partir dos anos 1950, e que tiveram, em momentos diversos, papel destacado no desenvolvi-
mento das Ciências Sociais no Brasil, em especial, Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss.
Texto complementar
Dom e reciprocidade
(REUNIÃO ANUAL DA SBPC, 2007)
O Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca em sociedades arcaicas, de 1924, do sociólogo
francês Marcel Mauss (1872-1950), foi o ponto de partida para que pesquisadores discutissem sobre
Estado, tributos, mercado, esfera econômica e direitos humanos no simpósio “Dom e reciprocidade
nas políticas públicas”, na 58.ª Reunião Anual da SBPC.
Mauss analisou sistemas de troca nas sociedades e como eles constroem as relações entre os
indivíduos. O antropólogo Marcos Lanna, da Universidade Federal de São Carlos (SP), destacou as
três obrigações interligadas na tese de Mauss: dar, receber e retribuir o dom, que pode ser material
ou imaterial. “No ato da troca, há inalienabilidade, no sentido de que as pessoas vão com as coisas
que passam, a ponto de não ficar claro quem é o sujeito, quem é o objeto da troca; se é a pessoa que
vai com a coisa ou vice-versa”, explicou Lanna.
A sociedade é circulação, para Mauss, pois demonstra que parte de tudo aquilo que passa fica.
Cada objeto pode ser mais ou menos alienável, e cada troca pode transferir mais ou menos direitos
e significar, em cada caso, maior ou menor superioridade do doador em relação ao receptor.
“No ensaio sobre a dádiva, Mauss cunha a noção de fato social total, mostrando o caráter inte-
grado dos aspectos econômicos, políticos, religiosos, lúdicos, estéticos (entre outros) da vida social,
assim como a inter-relação entre História, Sociologia e a dimensão físico-psicológica”, descreveu
Lanna.
Estado e mercado
Uma questão implícita no Ensaio sobre a dádiva é a da possibilidade de uma nova sociedade. A
proposta de Mauss é a de uma convivência entre Estado e mercado, na qual o mercado não destrua
o Estado. “Ao contrário, a convivência deve ocorrer de tal forma que o Estado englobe o mercado”,
disse Lanna. Mauss demonstra ainda que tanto o Estado quanto o mercado são transformações
lógicas e históricas do que ele chama de “dom”, entendido como forma elementar da vida social.
Do dom se desenvolve lógica e historicamente a mercadoria, forma fundamental não de toda a vida
social, mas da capitalista. “A mercadoria seria menos elementar ou universal que o dom, pois este
funda toda a vida social, e a mercadoria o capitalismo”, concluiu.
De acordo com Lanna, também o Estado não seria uma instituição universal; se constituiria a
partir de uma forma de dom, os tributos. “Podemos, assim, em uma perspectiva maussiana, definir
a figura do Estado pela prerrogativa de tributar. Em resumo, tributo e mercadoria são formas passí-
veis de dom, transformações lógicas e históricas da dádiva, manifestações institucionais, concretas
e particulares de um princípio abstrato universal”, afirmou.
Trocas econômicas
A socióloga Cécile Raud Mattedi, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), falou sobre
reciprocidade na esfera econômica e sua interligação com o mercado. Segundo ela, hoje as redes
sociais são vistas como estruturas fundamentais dos mercados e o lugar por excelência onde a reci-
procidade pode ser exercida.
Em seu Ensaio sobre a Dádiva, Mauss abordou a questão da reciprocidade e observou a pre-
sença constante de um sistema de reciprocidade em todas as sociedades humanas. “Portanto, o
sistema de dádivas enraíza as trocas econômicas nas relações sociais e participa da manutenção da
coesão social”, explicou Mattedi. A socióloga discutiu a tripla obrigação de dar, receber e retribuir:
“Por que se dá? Por que é preciso aceitar os presentes? Por que não se pode deixar de retribuí-los?”.
Segundo ela, há, por um lado, a interpretação formalista de que há obrigação e interesse econômico.
Os investimentos materiais têm em vista um proveito social, como prestígio ou poder. Por outro
lado, há a interpretação “indígena”, na qual o que obriga a retribuição é “o espírito da coisa dada”.
Para Mauss, a obrigação de retribuir é a mais intrigante das três. “Certos bens nunca deixam de per-
tencer a seus detentores iniciais, são bens inalienáveis. Por isso Mauss afirma que é preciso retribuir
ao outro aquilo que é, na realidade, parcela de sua natureza e substância”, afirmou a socióloga.
Entretanto, as ideias de Mauss não ficaram livres de críticas. O antropólogo francês Alain
Testart (1945-) criticou Mauss por não separar dádiva e troca não mercantil. A categoria da troca
foi subdividida por Testart em dádiva, troca mercantil e troca não mercantil. Dádiva é cessão de um
bem que implica renúncia de qualquer direito sobre o bem, ou contrapartida. Na troca mercantil,
os parceiros não precisam manter entre si relação social além da troca, predominando a questão do
valor, enquanto a troca não mercantil só pode ocorrer em um quadro de relações pessoais anteriores.
Mattedi considera essa distinção útil para se pensar nas relações econômicas modernas.
Reciprocidade e mercado
A questão da dádiva foi retomada pelo filósofo húngaro Karl Polanyi (1886-1964), em A Grande
Transformação, publicada em 1944.
“Nessa obra, o pensador considera a reciprocidade como um dos princípios de regulação das
atividades de produção e distribuição de bens e serviços, ao lado da economia doméstica (de sub-
sistência), da redistribuição e da troca mercantil”, contou a socióloga da UFSC.
Polanyi criou o conceito de embeddedness (encaixe), segundo o qual as relações econômicas
estão encaixadas nos sistemas sociais. Para o pensador, a reciprocidade predomina nas economias
primitivas, em que bens e serviços são trocados segundo normas sociais. Já na troca mercantil, que
se tornou predominante na sociedade moderna, a produção e o consumo dependem do preço,
fixado de acordo com a lei da oferta e procura.
Nessa troca, diferentes unidades econômicas estão integradas pelo funcionamento de uma
instituição separada (disembedded) das outras relações sociais (políticas, religiosas ou de parentesco).
Já a redistribuição caracteriza as sociedades antigas: de castas ou estratos sociais, submetidas a um
Estado que centraliza uma parte dos recursos oriundos de tributos para redistribuí-los aos membros
da sociedade.
De acordo com a socióloga, durante a maior parte da história da humanidade, os sistemas eco-
nômicos se organizaram a partir de uma combinação entre os princípios da economia doméstica,
da reciprocidade e da redistribuição. Com o fim do feudalismo na Europa ocidental, emergiu a eco-
nomia regulada pelo mercado. A busca do lucro veio substituir a busca da subsistência e se tornou
importante com a afirmação do capitalismo. “O sistema capitalista exige a presença de condições
institucionais específicas, como a propriedade privada dos meios de produção – capital, terra, tra-
balho. Só nesse quadro é que se pode falar de motivações utilitaristas da ação econômica, que não
são naturais, mas resultantes de instituições particulares”, relatou Mattedi.
não pretende obliterar análises de gênero – sobretudo as relações de poder e a violência contra a
mulher como parte das relações de dominação – mas quer demonstrar o que esse crime revela
a respeito das consequências da exclusão social conhecida pelas camadas pobres de Florianópolis,
incluindo “nativos”.
Motta destacou que a troca não implica necessariamente igualdade entre os que trocam. “A
troca pode ser violentamente extorquida se não é aceita de comum acordo ou se uma das partes se
sente permanentemente lesada”, completou. Ela sugeriu que o que faz com que a dádiva se trans-
mute em violência é a lógica da reciprocidade que rege as relações sociais em dado contexto. “Se
considerarmos que o homem inventou a dádiva como alternativa à guerra ou à violência, parece
lógico supor que a quebra da dádiva, da tríplice obrigação de dar, receber e retribuir, conduza à
guerra ou à violência”, afirmou.
Dádiva e violência são dois estados diferentes, mas, com base em sua pesquisa, a socióloga
considera que ambos são regidos pela lógica da reciprocidade. “Então, importa menos decidir se
violência é dádiva do que constatar que, como a dádiva, a violência – ao menos em certos contextos,
como o campo que pesquisamos assinala – responde à lógica da reciprocidade, ou seja, obedece
ao sistema dar-receber-retribuir”, disse Motta. Mas, para ela, esse caso de estupro, mesmo visto pela
lógica da reciprocidade, não encerra o “ciclo da dádiva”. Ao contrário, ele exige um contradom. Ela
chegou a tal conclusão a partir de depoimentos de conhecidos do jovem estuprador, que disseram
que ele devia pagar pelo crime tanto com reclusão, conforme determinou o juiz, quanto com
sujeição ao mesmo suplício de sua vítima, de acordo com o código informal dos apenados por
crimes de estupro.
Na opinião de Motta, esse caso dá visibilidade a determinada dimensão das relações entre
nativos e estrangeiros no cenário paradisíaco das praias de Florianópolis: a dimensão violenta dessas
relações, que envolvem aspectos de raça, cultura, classe e gênero. “A partir daí se descortinam
elementos comuns a estudos que se detêm sobre a sociedade brasileira de classes: exclusão, direitos
humanos, violência, raça e educação.” A socióloga acredita que, em casos como o que apresentou,
é preciso deixar de lado aspectos mais aparentes e investir em uma análise mais arriscada (mas não
menos instigante), que leve em conta questões simbólicas.
Atividades
1. Por que a Escola Sociológica Francesa foi importante para a consolidação da Antropologia como
Ciência Social?
4. Que fatos históricos ocorreram na França, no final do século XIX, que influenciaram a elaboração
teórica de Émile Durkheim?
Referências
DESCARTES, R. Discurso do Método. Rio de Janeiro: Edição de Ouro, s/d.
DURKHEIM, É. As Regras do Método Sociológico. 12. ed. São Paulo: Nacional, 1985.
_____. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulinas,
1989.
_____. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2001.
LANNA, M. Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a Dádiva. Disponível em: <www.scielo.br/scie-
lo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782000000100010>. Acesso em: 20 ago. 2012.
_____. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1987.
LAPLANTINE, F. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, Marcel.
Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, 1974. v. 2.
NOGUEIRA, O. Pesquisa Social: introdução às suas técnicas. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1973.
REUNIÃO ANUAL DA SBPC, 58. Cadernos SBPC. Disponível em: <http://sbpcnet.org.br/arquivos/
arquivo_185.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2012.
XAVIER, I. D. W. Griffith. São Paulo: Brasiliense, 1984.
_____. Cinema: revelação e engano. In: NOVAES, A. et al. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
XAVIER, J. T. de P. Limites conceituais no estudo das religiões afro-descendentes. In: Racismo no Brasil:
percepções da discriminação e do preconceito. São Paulo: Perseu Abramo, 2005.
Gabarito
1. Na Escola Sociológica Francesa foram desenvolvidas pesquisas centradas nas representações
coletivas da sociedade. A realização desses estudos definiu os fenômenos sociais como objeto de
investigação socioantropológico e também a metodologia a ser utilizada na formulação da teoria
do conhecimento.
3. O conceito de “fato social total”, formulado por Marcel Mauss, consiste na articulação biológica,
psicológica e sociológica nas relações sociais. Essa articulação possibilita um permanente sistema
de comunicação física e simbólica constituindo o fundamento da vida social.
4. No final do século XIX, os reflexos dos conflitos políticos e sociais – a derrota de Sedan, a Comuna
de Paris, a III República, os movimentos operários, a instituição do divórcio e a instituição da
educação laica – que passaram a fazer parte da história da França, influenciaram sobremaneira
os estudos de Émile Durkheim, que, preocupado com as questões sociais da época, centrou suas
pesquisas nas representações coletivas da sociedade.
Essas características foram destacadas no estudo comparativo feito pelo antropólogo francês
François Laplantine, entre as particularidades das escolas antropológicas francesa, britânica e norte-
-americana.
Para Laplantine, a Antropologia Britânica caracteriza-se como antievolucionista, em contraponto à
escola Evolucionista, que teve como uma de suas pernas conceituais a Inglaterra. O antropólogo aponta
dois dos principais protagonistas do Funcionalismo como articuladores dessa visão antievolucionista,
Malinowski e Radcliffe-Brown:
[...] é uma Antropologia antievolucionista, que se constituiu desde Malinowski em oposição a uma compreensão
histórica social (reconstruções hipotéticas dos estágios, indo das sociedades “primitivas” às “civilizadas”, bem como
a abordagem da historiografia). [Ela] Dedica-se preferencialmente à investigação do presente a partir de métodos
funcionais (Malinowski), e, em seguida, estruturais (Radcliffe-Brown): uma sociedade deve ser estudada em si,
independentemente de seu passado, tal como se apresenta no momento no qual observamos. O modelo pode,
1
portanto, ser qualificado de sincrônico , enquanto a pesquisa baseia-se no levantamento da totalidade dos aspectos
2
que constituem uma determinada sociedade: a monografia. (LAPLANTINE, 1987, p. 98)
Para Laplantine, os funcionalistas rompem com uma das características centrais dos difusionistas,
representada pela metáfora da pedra lançada no lago em que suas ondas se propagam em círculos, como
as culturas, partindo de um ponto central, e se propagando para os povos vizinhos ou conquistados
militarmente.
Laplantine destaca o epicentro do trabalho dos Funcionalistas que é a pesquisa de campo. Nesse
quesito, a contribuição dos funcionalistas será decisiva para a construção do imaginário social sobre
o trabalho do antropólogo. O trabalho de campo, a pesquisa de observação participante, é, provavel-
mente, a imagem mais forte no imaginário social do trabalho da Antropologia. O cinema explorou essa
imagem da disciplina antropológica3.
[...] é uma antropologia de campo, que se desenvolve muito rapidamente, a partir do início do século, com Malinowski
e, antes, com Radcliffe-Brown, o qual é, mais ainda que Malinowski, um dos pais fundadores de quem a maioria dos
antropólogos britânicos contemporâneos se considera sucessora. Esse caráter empírico (observação direta de uma
determinada sociedade, a partir de um trabalho exigindo longas estadias no campo) e indutivo da prática dos antropó-
logos ingleses apoia-se numa longa tradição britânica [...] (LAPLANTINE, 1987, p. 98-99)
1 O modelo sincrônico de análise compreende que só após entender como a cultura atua é que se pode refletir sobre suas alterações. Para
tanto é necessário um estudo minucioso da sociedade em sua contemporaneidade, de suas instituições e das relações que estas mantêm no
interior do próprio grupo.
2 Dissertação minuciosa de um assunto único. O economista francês Pierre-Guillaume Frédéric Le Play (1806-1882) foi o autor de Les Ouvriers
Européens em 1855, a primeira monografia publicada, e descrevia o gênero de vida e o orçamento de uma família-padrão da classe operária.
Le Play já utilizava o método desde 1930 e foi uma grande influência no desenvolvimento da Sociologia aplicada devido às metodologias
propostas para o estudo de fenômenos sociais.
3 Indiana Jones, personagem criado por Steven Spielberg e George Lucas para as telas de cinema, é professor e arqueólogo que viaja pelo
mundo enfrentando grandes perigos para descobrir fatos e resgatar objetos importantes da História. A Arqueologia é uma ciência pertencente
à Antropologia e estuda as manifestações materiais das sociedades utilizando técnicas e métodos comuns às Ciências Sociais.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a teoria da Antropologia Funcionalista estuda a cultura em sua
totalidade, focada no papel que as instituições desempenham e nas funções exercidas por elas para a
manutenção da sociedade.
[...] o indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente como função a de satisfazer
à sua maneira essas necessidades fundamentais. Cada uma realiza isso elaborando instituições (econômicas, políticas,
jurídicas, educativas...), fornecendo respostas coletivas organizadas, que constituem, cada uma a seu modo, soluções
originais que permitem atender a essas necessidades. (LAPLANTINE, 1987, p. 81)
4 Alteridade (em latim, alterĭtas: ser o Outro). A percepção e aceitação dos valores do Outro, a qualidade do que é Outro. Na concepção
antropológica a existência do homem social só é possível mediante o contato com o Outro, e assim, reconhecer que somos uma cultura
possível entre outras culturas.
A experiência monográfica e histórica projetada pelo Funcionalismo “passa a ser a justificativa de uma
nova fase do colonialismo” (LAPLANTINE, 1987, p. 83-84).
Esses dois aspectos, a contramão da visão de Malinowski em relação aos seus pares na Inglaterra
e suas generalizações rígidas, tornaram sua obra controvérsia e polêmica. Mas essas controvérsias não
foram suficientes para apagar a contribuição dada pelo antropólogo anglo-polonês aos estudos da
Antropologia e à constituição do seu status na área das Ciências Sociais.
5 O método indutivo de investigação científica, criado pelo filósofo britânico Francis Bacon (1561-1626), consiste na observação de casos
particulares partindo de premissas menores até chegar a conclusões generalizadas que são apenas prováveis.
6 Diagramas são representações gráficas de determinado conceito, ideia muito utilizada nas áreas do conhecimento humano.
7 Quadro sinótico é uma técnica de redução de texto que consiste na organização de dados essenciais sobre um objeto de pesquisa, proposta
de visão sintética, já acrescido de notas para elaboração de um quadro.
Para ele, os fatos devem falar por si. A observação do comportamento do grupo ligou Malinowski
às explicações psicológicas, além das sociais e biológicas. Para o antropólogo, o pesquisador deve se
imiscuir na forma de pensar e sentir dos povos estudados. Por isso, para desvendar esse universo, o pes-
quisador deve conhecer a língua dos povos, para compreender a magnitude de seus mitos e ritos.
Segundo Malinowski, a etnografia objetiva a apreensão do ponto de vista dos povos estudados,
sua relação com a vida e suas instituições e compreender o universo cultural, a visão de mundo desses
povos. Foi essa a empreitada que ele se propôs ao mergulhar na singularidade das formas de troca dos
povos das Ilhas Trobriand.
Nessa obra, Malinowski põe em prática a observação participante. Ele rompe, dessa forma, com o
seu mestre, Frazer, que fazia suas reconstruções a partir do seu gabinete de trabalho. Para ele, era funda-
mental ao pesquisador se impregnar da mentalidade de seus interlocutores, e esforçar-se para pensar
na língua deles, para apreender sua visão de mundo. Segundo Laplantine (1987), ao propor esse exer-
cício de radicalidade em direção a alteridade, Malinowski ensinou aos antropólogos o “olhar”. Ser antro-
pólogo é mais do que entrevistar os informantes, mas penetrar no âmago do seu universo cultural.
Em “Os Argonautas”, Malinowski transcende a prática antropológica anterior como registro de
fenômenos exóticos e secundários, pois,
[...] para alcançar o homem em todas as suas dimensões, é preciso dedicar-se à observação de fatos sociais aparente-
mente minúsculos e insignificantes, cuja significação só pode ser encontrada nas suas posições respectivas no interior
de uma totalidade mais ampla. [...] Malinowski mostra que estamos frente a um processo de troca generalizado, irredu-
tível à dimensão econômica apenas, pois nos permite encontrar os significados políticos, mágicos, religiosos, estéticos
do grupo inteiro. (LAPLANTINE, 1987, p. 84-85)
Nessa obra, Malinowski reconstitui a existência de homens e mulheres, nas suas vidas cotidianas e
hábitos, por meio de suas relações e experiências pessoais. Além de exercitar com maestrias fundamentais
para o futuro da Antropologia instrumentos como a observação participante e a etnografia, Malinowski
utilizou a fotografia, abrindo caminho para o que modernamente se chama “Antropologia audiovisual”.
Malinowski com toda a controvérsia de sua produção foi um antropólogo além do seu tempo.
O gavião-real e o corvo são aves usadas pelos nativos australianos para representar a divisão
social interna. Radcliffe-Brown aponta para o fato de que em diversas lendas contadas pelos nativos o
gavião-real e o corvo aparecem como oponentes em um conflito. Já nas regiões da América, as divisões
sociais se apresentavam como aves semelhantes e de cores distintas. O autor destaca que essas dis-
tinções não implicam conflitos entre as partes representadas. Os conflitos registrados não têm relação
direta com a divisão simbólica.
O objetivo último do estudo comparativo era a compreensão das instituições que formavam
cada sociedade particular, a avaliação das leis gerais de funcionamento de cada um desses sistemas
orgânicos e a comparação sistemática entre eles.
As pesquisas e estudos de Radcliffe-Brown se aclimataram perfeitamente às condições históricas
pelas quais passava a Grã-Bretanha. Seus estudos tiveram um valor prático imponderável, pois seriam
úteis para a administração colonial britânica, ao fornecer bases científicas, para o controle e a educação
dos povos colonizados pelos ingleses.
Evans-Pritchard não havia demonstrado interesse no estudo da bruxaria, mas em suas próprias
palavras, “os Azande tinham, de forma que tive que me deixar guiar por eles” (EVANS-PRITCHARD, 1978,
p. 97).
O antropólogo inglês cunhou um conceito importante dos seus estudos nas terras africanas:
espaços ecológicos. Por esse conceito, Evans-Pritchard designava os aspectos físicos e geográficos da
região. Para os Nuer o acesso à água era um critério importante para a definição dos pontos de referência,
e da posição do agrupamento humano, organização do espaço, dentro de seu território.
Para a definição dos espaços ecológicos dos Nuer, a topografia – aspectos físicos e geográficos
– era comutada no cálculo para estabelecer a distância entre os diversos espaços e localidades, e suas
relações recíprocas.
Segundo Evans-Pritchard (1974, p. 109),
[...] a comunidade de uma aldeia que tem água permanentemente disponível em suas proximidades está numa posição
muito diferente daquela que tem que viajar durante a estação seca para obter água, pastagens e pesca. Um cinturão de
8
tsé-tsé cria uma barreira intransponível, estabelecendo grande distância ecológica entre os povos separados por [...] e a
presença ou ausência de gado entre os vizinhos dos Nuer determina, da mesma maneira, a distância ecológica entre eles
e os Nuer [...] A distância ecológica, nesse sentido, é uma relação entre comunidades definidas em termos de densidade
e distribuição, e com referência à água, vegetação, vida animal e dos insetos etc.
Para o estudioso, outro aspecto importante é a compreensão de como os espaços ecológicos são
fundamentais para explicar as noções de espaço e tempo dos povos Nuer, e o seu papel para a compre-
ensão do seu sistema social:
Sua ecologia limita e de outras maneiras influencia suas relações sociais, mas o valor dado às relações ecológicas é
igualmente significante na compreensão do sistema social, que é um sistema dentro do sistema ecológico, em parte
dependente deste e em parte tendo existência própria. [...] (EVANS-PRITCHARD, 1974, p. 94)
8 Tsé-tsé é uma mosca hematófaga, Glossina, que transmite por meio de sua picada a Doença do Sono – Tripanossomíase africana humana.
Doença parasitária, prevalentes na África na forma de epidemia, evolui em dois estágios – sangue e sistema nervoso central – com o avanço
gradual do distúrbio do sono até o estado de estupor permanente.
quais se debruçou, sob a orientação, no início de sua carreira acadêmica, de Bronislaw Malinowski, do
qual foi discípulo. Suas principais obras são: The Primitive Economics of the New Zealand Maor (1929);
Tikopia Ritual and Belief (1930); Art and Life in New Guinea (1936); We, the Tikopia: A Sociological Study
of Kinship in Primitive Polynesia (1936); Human Types: An Introduction to Social Anthropology (1938);
Primitive Polynisean Economy (1939); Malay Fisherman: Their Peasant Economy (1946); Elements of Social
Organization (1951); Two Studies of Kinship in London (editor) (1956); Men and Culture: An Evaluation of the
Work of Bronislaw Malinowski (1957); Social Change in Tikopia: Re-study of a Polynesian Community After a
Generation (1959); History and Traditions of Tikopia (1961); Essays on Social Organization and Values (1964);
Themes in Economic Anthropology (1967); Rank and Religion in Tikopia: Asyudy in Pollynesian Paganism
and Conversion to Cristianity (1970); Symbols: Public and Private (1973).
Uma das singularidades da produção intelectual de Firth é a articulação da análise econômica
com a antropologia. Para ele, a economia, centro de suas preocupações, era uma espécie de ciência de
ligação; ou seja, a economia dava a base de compreensão das relações culturais e sociais de um deter-
minado grupo humano. Ela possui, segundo o autor, “princípios de aplicação universais”, e seus aspectos
estão presentes em todas as formas de organização social.
Firth desenvolveu o conceito de organização social, com a possibilidade de o estudo antropo-
lógico ser aprofundado em uma cultura particular, para a observação do seu sistema social total, para
analisar seu funcionamento e a preservação do sistema. Para o campo da antropologia, ao ampliar o
conceito de organização social, Firth consolidou a Teoria Funcionalista e antecipou, em muitos aspectos,
o conceito estruturalista de estudo antropológico.
O papel desempenhado no Instituto Real de Antropologia conferiu-lhe prestígio e o título de
Cavaleiro da Coroa Britânica.
Em uma de suas obras mais destacadas, que teve o prefácio assinado pelo seu mestre Bronislaw
Malinowski, Nós, os Tikopia: um estudo sociológico do parentesco na Polinésia primitiva (1938), Raymond
Firth faz um trabalho de campo de caráter monográfico. O autor estuda o sistema de parentesco, um
dos temas mais recorrentes da Antropologia da época.
Nesse estudo, Firth observa o impacto que a instalação da Igreja Anglicana9 teve naquela comu-
nidade e em sua dinâmica de organização sociocultural. Ele destaca que, apesar desse contato com o
mundo branco, os nativos locais continuam Tikopia. Apesar do contexto adverso, o antropólogo cons-
tata que as relações de parentesco foram preservadas, e foram indispensáveis para a manutenção da
organização social tradicional.
Para ingressar nesse universo, Firth lança mão da metáfora culinária: “Como um gourmet
caminhando em volta de um banquete servido à mesa, saboreia antecipadamente a qualidade que irá
apreciar inteiramente mais tarde” (1998, p. 24). Nos três primeiros capítulos, o antropólogo descreve
suas impressões sobre esse banquete antropológico e sobre o papel de campo que o antropólogo deve
cumprir e sua metodologia de trabalho.
O autor descreve sua admiração ao povo sobre o qual vai construir sua narrativa antropo-
lógica, com base no conceito elaborado pelo seu mestre, a observação participante. Firth destaca a
9 Igreja Anglicana é a igreja cristã oficial na Inglaterra. Em 1534, durante a Reforma Protestante, o rei Henrique VIII separou-se da Igreja
Católica Romana, definitivamente, a Igreja da Inglaterra que nunca havia se conformado com a dominação Romana. Tem em sua forma de
culto litúrgico influências da Igreja Católica Romana e das Igrejas Protestantes e também uma organização hierárquica com bispos, por isso
conhecida também como Igreja Episcopal. Em diversas partes do mundo as Igrejas Anglicanas se tornaram autônomas, formando províncias
anglicanas nacionais ou regionais que juntas formam a Comunhão Anglicana Mundial.
necessidade de se conviver com os habitantes, conhecer-lhes os hábitos e língua, sem abrir mão do
rigor científico.
A partir daí, Firth dá a contextualização – histórica e geográfica – do estudo, e lança as bases para
o seu exercício etnográfico, com a descrição minuciosa e precisa das relações de parentesco dos Tikopia,
para, a partir desse ponto, ater-se às questões gerais da organização social do grupo. No final da obra,
Firth destaca os mecanismos da conformação do indivíduo à sociedade, por intermédio de rituais de
iniciação e do casamento.
Para Firth, a unidade de parentesco desse povo não é a linhagem, mas a casa (paito): agrupa-
mento de várias famílias nucleares. Um conjunto de casas forma um clã10, formas de organização das
relações econômicas e sociais entre as casas. Essa organização define as relações políticas e religiosas,
baseadas no poder de um chefe e um totem11 ancestral. Essas relações definem as alianças estabelecidas
por esse povo.
Seguindo o modelo clássico do Funcionalismo, Firth, nessa obra, parte do estudo do parentesco,
das relações de casamento, das relações entre as casas e clãs, para o estudo de suas funções na sociedade
total e de suas atribuições na manutenção da sociedade. Isso, sem abrir mão da observação participante
na comunidade e do rigor científico da Antropologia.
10 Clã constitui-se num grupo de pessoas, consanguíneas ou não, e é definido pela descendência de um ancestral comum. Em geral, o
parentesco difere da relação biológica, visto que esta também envolve adoção, casamento e supostos laços genealógicos. Na maioria dos clãs
seus membros não podem casar-se entre si. Alguns clãs possuem um líder oficial, tal como um chefe, matriarca ou patriarca. Dependendo das
regras e normas de parentesco que regem a sociedade onde se inserem, os clãs são patrilineares, seus membros são vinculados à linhagem
masculina; matrilineares; seus membros são vinculados à linhagem feminina, e “bilaterais”, todos descendem do ancestral maior, tanto da
linhagem masculina quanto feminina.
11 Totem, palavra derivada de “dodaim”, significa aldeia ou residência de um grupo familiar. É um símbolo – objeto, animal ou planta – cultuado
como um deus e em torno dele é organizada uma sociedade.
12 Regime do Apartheid foi uma política de segregação racial definida pelos colonizadores europeus na África do Sul em 1902 após a Guerra
dos Bôeres. O decreto do “Ato de Terras Nativas” – os negros deveriam viver em reservas especiais, não poderiam comprar terras fora da
área delimitada – o que garantia mão de obra barata para os latifundiários brancos, e as Leis do Passe – que exigia dos negros passaporte
para poderem se locomover dentro do território para obter emprego, pretendiam manter o domínio sobre a população nativa. Em 1948, o
regime do Apartheid consolidou-se com o controle hegemônico da política do país pelos Afrikaaners (de origem holandesa). Mesmo com a
organização, mobilização e as manifestações da população durante os anos, somente em 1989 começaram as negociações para a libertação
de Nelson Mandela e para a legalização do CNA – Congresso Nacional Africano e de todos os grupo contrários ao Apartheid. Em 1990 é abolido
o regime segregacionista, mas a economia sul-africana ainda revela que a desiguladade racial persiste.
Victor Turner – tendo como tela suas densas experiências etnográficas na África – põe em
suspeição a fixidez e coerência dos sistemas sociais que brotam dos estudos antropológicos. Ele foca
suas observações nas ocorrências descontínuas, ambíguas, mescladas e indeterminadas nos aspectos
processuais cotidianos. Nessas circunstâncias, surge a noção de performance13 em rituais, gêneros
artísticos, formas culturais e microinterações da vida cotidiana.
Com o conceito de performance, Turner desloca a noção de cultura como resposta preestabelecida
pela estrutura social. Ele focará sua observação no construtivismo social, agenciamento, historicidade das
práticas sociais, com suas descontinuidades, fluidez e intersubjetividade.
Os “dramas sociais”, segundo Turner, são comuns nas sociedades e representam performances
que permitem revelar os porões da estrutura social. A raiz do teatro encontra-se nos dramas sociais.
Dessa forma, as potencialidades da comunidade podem ser exploradas, com seus valores e crenças.
Eles podem ser dessacralizados e representados, para que se possam encontrar soluções para tais
conflitos. Os dramas sociais são os confrontos que ameaçariam a norma estabelecida, eles apresentam
qualidades teatrais e uma forma estrutural de etapas.
Para Turner, a Antropologia da Performance é uma parte fundamental da Antropologia Experi-
mental, já que toda a “performance cultural” – cerimônias, carnaval, poesia – são explicações da vida
cotidiana.
Turner defende que, em determinadas circunstâncias, há uma mudança no status dos rituais.
Segundo ele, o processo de separação da vida cotidiana faz com que uma sociedade fique em “estado
intermediário”, como nos “rituais de inversão de status” caracterizados pelo exercício coletivo da autori-
dade ritual dos grupos subalternos socialmente em relação aos seus “superiores” no plano da sociedade,
onde estes são insultados ou até maltratados fisicamente, o que caracteriza a ocorrência da “antiestru-
tura”: mudanças efetivas nos valores e na organização da estrutura social, com processos corretivos,
compensatórios, para retomar a ordem habitual do cotidiano.
13 A performance é uma linguagem artística que apresenta ligações com o teatro e, em algumas situações, com a música, poesia, o vídeo. De
acordo com Victor Turner, performance é uma forma de “expressão” que completa a experiência. A palavra deriva do francês parfournir, que
significa “completar” ou “realizar inteiramente”.
Na sua obra mais popular – Sistemas Políticos da Alta Birmânia: um estudo da estrutura social Kachin
– Leach critica a ideia estrutural-funcionalista de sistemas sociais estáticos e homogêneos, em especial
o conceito de equilíbrio estático. Segundo ele, as sociedades reais não podem estar em equilíbrio, pois
as “unidades sociais” estudadas mostravam-se com grandes variedades de tamanho e indicavam insta-
bilidades. Leach interessou-se pelos processos de mudanças estruturais nas sociedades estudadas.
As críticas de Leach a muitas das ideias conceituais do estrutural-funcionalismo, como a questão
do equilíbrio e da homogeneidade, permitiram avançar para o mapeamento das diversas mudanças
culturais registradas pela Antropologia nos últimos anos.
Considerações finais
A Teoria Antropológica Funcionalista deu grandes contribuições à disciplina da Antropologia.
Duas contribuições foram decisivas para o desdobramento dessa área de estudos das Ciências Sociais: a
observação presente, o estudo in loco dos povos, e a elaboração da narrativa monográfica. A observação
presente pôs o antropólogo em contato com os seus objetos e sujeitos de estudo. Esse contato com a
realidade colocou o pesquisador no coração das relações sociais e culturais dos povos, sem o ranço do
preconceito da visão de superioridade que caracterizou o período anterior da disciplina.
A narrativa monográfica permitiu ao pesquisador focar sua observação num tema, com a
verticalização de sua observação e descrição – detalhadas, precisas, cirúrgicas, atentas – das ocorrências
registradas no campo de pesquisa.
Ao se concentrar nos estudos das funções exercidas numa dada sociedade para a preservação do
todo social, o Funcionalismo rompeu com a noção de evolução linear do primitivo para o civilizado. O
método permitiu observar os valores intrínsecos das instituições na sociedade estudada. Nessa linha,
desdobrou-se em Antropologia Social, de estudo das relações sociais numa sociedade determinada.
Apesar do seu modelo rígido, no início de sua construção conceitual, suas contribuições
alargaram o espectro da ciência, em diversas direções: o trabalho de campo etnográfico, o estudo
monográfico, a pesquisa da sociedade no estágio no qual ela se encontrava no momento do estudo, os
estudos comparativos das funções observadas, a identificação de espaços ecológicos e suas influências
no sistema social, a observação das dinâmicas de conflito no coração da sociedade, a interface da
Antropologia com a Economia, os aspectos situacionais das relações de divisão e fusão, as performances
dos dramas sociais, a consolidação do estudo de caso e a fugacidade e precariedade do equilíbrio das
relações sociais.
Além desses aspectos teóricos, o Funcionalismo teve na figura de Bronislaw Malinowski, por mais
de 20 anos, uma personagem emblemática. Sua atuação em campo contribuiu para a consolidação no
imaginário social da figura do antropólogo como aventureiro das Ciências Sociais, imagem explorada
pelo cinema.
O Funcionalismo tirou a Antropologia dos gabinetes. Com essa escola, a Antropologia foi a campo
e reinventou seus métodos de trabalho e multiplicou seus objetos e sujeitos de pesquisa e, ao estudar a
cultura na sua totalidade, abriu caminho para a escola de que desenvolverá a partir dos anos 1930, nos
Estados Unidos da América, o Culturalismo Norte-Americano.
Texto complementar
sensibilidade artística é talvez a principal característica da Antropologia. Malinowski não nos ensinou
unicamente a ver, mas também a descrever o que vemos: as cenas da vida cotidiana com seu relevo
e sua cor. Desse ponto de vista Os Argonautas parecem-me exemplares. É um livro escrito num estilo
magnífico que aproxima seu autor de um outro Polonês que, como ele, viveu na Inglaterra e que
se exprimia em inglês: Joseph Conrad, e que anuncia as mais belas páginas de Tristes Trópicos de
Lévi-Strauss.
Atividades
1. De acordo com a Teoria Funcionalista Britânica, como se desenvolveu o estudo antropológico no
século XX?
Referências
EVANS-PRITCHARD, E. E. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições políticas de
um povo nilota. São Paulo: Perspectiva, 1974.
_____. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
FIRTH, R. Elementos de Organização Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
_____. Nós, os Tikopia. Um estudo sociológico do parentesco na Polinésia primitiva. São Paulo: Edusp,
1998.
GLUCKMAN, Max. Rituals of rebellion in South-East Africa. In: GLUCKMAN, M. Order and Rebellion in
Tribal Africa. Londres: Cohen & West, 1963.
_____. O material etnográfico na antropologia social inglesa. In: GUIMARÃES, Alba Zaluar (Org.). Des-
vendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
GLUCKMAN, M. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO, B. (Org.).
Antropologia das Sociedades Contemporâneas. São Paulo: Global, 1987.
LAPLANTINE, F. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
LEACH, E. Repensando a Antropologia. São Paulo: Perspectiva, 1974.
_____. Sistemas Políticos da Alta Birmânia. São Paulo: Edusp, 1996.
MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
PRITCHARD, E. Bruxaria, Oráculo e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estrutura e Função na Sociedade Primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973.
_____. Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 1974.
_____. O método comparativo em Antropologia Social. In: MELLATI, J. C. (Org.). Grandes Cientistas So-
ciais. São Paulo. Ática, 1978, v. 3.
SMITH, G. E. The Ancient Egyptians and the Origin of Civilization. London: Harper, 1923.
TURNER, V. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
_____. The Anthropology of Performance. Nova York: PAJ Publications, 1988.
Gabarito
1. A Escola Antropológica Funcionalista priorizou o estudo da organização dos sistemas sociais.
Seus teóricos, por meio da observação participante e da narrativa monográfica, desenvolveram
pesquisas sobre a função das instituições na manutenção da totalidade cultural numa dada
sociedade e seus esforços estavam em compreender de forma sincrônica e explicar cientificamente
o universo cultural dos povos estudados.
3. Na Teoria Funcionalista, as sociedades devem ser estudadas em sua totalidade, na forma como
se apresentam no momento da observação e independentes dos processos de transmissão
de elementos culturais que tenham ocorrido no passado, contrapondo-se, assim, às visões
evolucionistas e difusionistas na Antropologia.
Quanto a essa segunda característica, Laplantine sinaliza dois aspectos finais: a utilização de mo-
delos conceituais dessas disciplinas, bem como suas técnicas de investigação, e “a partir dos anos 1930”,
a colaboração pluridisciplinar da Antropologia com essas áreas do conhecimento, que formou a deno-
minada expressão “cultura e personalidade”.
E finalmente, para Laplantine, a terceira marca distintiva é que a Antropologia Cultural: “[...] estu-
da o social em sua evolução, e particularmente sob o ângulo dos processos de contato, difusão, intera-
ção e aculturação, isto é, de adoção (ou imposição) das normas de uma cultura por outra” (LAPLANTINE,
1987, p. 122).
A Escola da Antropologia Cultural teve uma intensa produção conceitual, entre o final dos anos
1920 e os anos 1950, com desdobramentos pontuais posteriores. Apesar das diversas obras e aborda-
gens, ela teve um núcleo denso que “não atribuiu à natureza o que diz respeito à cultura”; não considerou
como universal o que era relativo, como observou Laplantine (1987, p. 123).
Esse núcleo denso assegurou o eixo central da teoria: a compreensão da diversidade (multiplici-
dade e pluralidade) da cultura, tanto nos aspectos singulares dos traços comportamentais dos mem-
bros de um determinado grupo, quanto na totalidade da “personalidade cultural” do grupo.
A Antropologia Cultural parte do pressuposto de que a variação cultural pode ser encontrada em
cada um dos aspectos das atividades cotidianas dos indivíduos, tais como nas relações religiosas, nas
formas de hospitalidade, nas formas das etiquetas sociais, nos comportamentos sexuais da sociedade,
e nas formas de relações públicas.
O peso da cultura não se manifesta apenas nas formas diversificadas de comportamentos e atividades facilmente locali-
záveis de uma sociedade para outra (como a alimentação, o habitat, a maneira de se vestir, os jogos...), mas também nas
estruturas perceptivas, cognitivas e afetivas, constitutivas da própria personalidade [...] (LAPLANTINE, 1987, p. 125)
A Antropologia Cultural dará à disciplina novas formas de abordagens, novos objetos e sujeitos
de investigação antropológica, mas, acima de tudo, legará à Antropologia as noções irredutíveis da
pluralidade, diversidade e multiplicidade da cultura – nas formas com que homens e mulheres constroem
suas vidas materiais e imateriais –, sem os conceitos de superioridade racial ou cultural presentes nos
estágios anteriores das Ciências Sociais, em geral, e na Antropologia, em particular.
nas pesquisas de campo. Benedict teve papel destacado na consolidação dos conceitos teóricos da
Antropologia Cultural.
Ruth Benedict obteve seu PhD3 em 1923, sob orientação de Boas, com a tese The Concept of the
Guardian Spirit in North America. Nessa época, ela tornou-se docente da Universidade de Columbia
(1923-1931) e editou um importante periódico dessa linha de orientação da Antropologia: Journal of
American Folk-lore (1924-1939).
Na linha aberta por Boas, Ruth Benedict posiciona-se academicamente contra as noções racistas
da Antropologia anterior. Em seus estudos, ela indica a independência dos conceitos de raça, linguagem
e cultura. Dessa forma, dissocia-se do campo que argumentava ser a raça um dos pressupostos do
desenvolvimento cultural de um determinado povo. Benedict, assim como Boas, fecha a porta da
Antropologia para a noção de superioridade de uma raça em relação à outra. Sua concepção original
contribuiu para ampliar os horizontes da Antropologia como Ciência Social.
Em 1934, vem à luz uma das suas mais importantes obras: Padrões de Cultura (Patterns of Culture),
obra fundamental para o desenvolvimento e consolidação dos conceitos teóricos da Antropologia
Cultural.
No livro, Benedict defende o conceito de modelos culturais. Nele, a autora apresenta a cultura
como algo dinâmico, baseada na ideia de totalidade cultural. Para Ruth, há traços característicos nas
formas de produção cultural dos povos. Os indivíduos dessas formas de organização social devem se
adaptar a esses modelos culturais.
Ela destaca dois modelos de organização cultural dos povos: o padrão apolíneo (equilibrado,
harmonioso, ordenado, conformista, com tendência para a arte) e o padrão dionisíaco (violento,
desordenado, conflituoso, com tendência para a guerra).
Dividido em três partes, o livro apresenta conceitos novos para a Antropologia da época. No
primeiro capítulo, a autora apresenta o problema da pesquisa e dá ênfase aos aspectos centrais de seus
trabalhos, em especial às questões da diversidade das culturas e de suas integrações.
Para demonstrar a magnitude da diversidade cultural dos povos, Benedict cita um provérbio dos
índios Digger, narrado por um de seus informantes de campo: “No princípio, Deus deu um vaso a cada
povo, um vaso de barro, e por este vaso bebiam a sua vida. Todos enchiam o seu vaso mergulhando-o na
água. Mas os vasos eram diferentes. O nosso quebrou-se; desapareceu” (BENEDICIT, 1989, p. 34).
Para ela, os povos lançavam mão de aspectos culturais relevantes para a reprodução de suas vidas
materiais e imateriais. Não havia superioridade entre uma forma e outra de organização cultural, mas
aspectos importantes para determinados povos.
A diversidade das culturas resulta não apenas da facilidade com que as sociedades elaboram ou repudiam aspectos
possíveis da existência. É devida ainda mais a um complexo entretecimento de feições culturais. A forma final de qualquer
instituição tradicional vai, como dissemos, muito além do impulso humano original. Em grande parte essa forma final
depende do modo como essa feição se fundiu com outras de diferentes campos da experiência. (BENEDICT, 1989, p. 49)
Para Benedict, as fusões das feições culturais consolidavam um “fenômeno universal”. Dessa
forma, imaginar uma cultura “pura”, no sentido de não estar tingida por outra experiência cultural é uma
3 PhD é a expressão abreviada do inglês americano Doctor of Philosophy que significa Doutor em Filosofia. Até o século XIX, os títulos de doutora-
mento só poderiam ser concedidos em Teologia, Direito ou Medicina. Em 1861, a University Friedrich Wilhelm, em Berlim, foi a primeira a conceder o
grau a estudos das ciências da humanidade, o que aconteceu também em 1900 nos Estados Unidos e depois em 1917 no Reino Unido.
É um avançado grau acadêmico exigido na carreira de professor universitário ou investigador científico. No Brasil equivale ao Doutorado.
impossibilidade, no arco cultural dos povos. O resultado desse processo é a integração das culturas, em
diversos espaços humanos.
Benedict aprofunda, na segunda parte do livro, em um espaço geográfico restrito, um estudo
comparativo de três povos:
4
Escolhi três civilizações primitivas para as descrever com certa pormenorização. Um pequeno número de culturas
tomadas como organizações coerentes de comportamento, e mais instrutivo do que muitas, afloradas apenas nos
seus pontos salientes. A relação de motivações e de propósitos com diferentes aspectos de comportamento cultural,
no nascimento, na morte, na puberdade e no casamento, nunca pode ser esclarecida por uma revista que abranja o
mundo. Devemos limitar-nos à tarefa menos ambiciosa da compreensão multilateral de algumas culturas. (BENEDICT,
1989, p. 70)
Na parte final do livro, Benedict enfatiza que sociedade e indivíduos não são antagônicos, mas
interdependentes.
Não há, propriamente, antagonismo entre o papel da sociedade e o papel do indivíduo. Uma das mais desnorteadoras
falsas concepções devidas a esse dualismo próprio do século XIX, foi a ideia de que o que se tirava à sociedade dava-se
ao indivíduo, e o que se tirava ao indivíduo dava-se à sociedade. Filosofias da liberdade, credos políticos de laissez-
5
-faire , revoluções que apearam dinastias, tudo isso se fundou nesse dualismo. O conflito em Teoria Antropológica entre
a importância do padrão de cultura e a do indivíduo é apenas um aspecto insignificante dessa concepção fundamental
da natureza da sociedade. (BENEDICT, 1989, p. 276-277)
Benedict dirá que sociedade e indivíduos não são antagônicos, pois a cultura fornece a matéria-
-prima de que os indivíduos fazem a sua vida, material e imaterial.
Em Padrões de Cultura, Benedict destaca que cada cultura tem suas formas próprias de conceber
seu ordenamento moral e ético. Esses ordenamentos só poderão ser compreendidos se forem estudadas
as culturas desses povos como um todo, em seu conjunto e relações. Esses valores são importantes para
os povos que os detêm. Para a autora, a moralidade de um povo é relativa ao seu universo cultural. Esses
valores pertencem (Padrões Culturais) a sistemas coerentes e lógicos, com significados para esses po-
vos, por mais que destoem dos valores culturais dos ocidentais. Portanto, devem ser respeitados, como
parte do grande arco de cultura da humanidade, sem hierarquização entre as culturas dos diferentes
povos.
Ruth Benedict esteve entre os diversos intelectuais recrutados pelo governo dos Estados Unidos
da América na mobilização de esforços para a Segunda Grande Guerra Mundial. No fogo da batalha,
Benedict elabora o texto As raças da Humanidade (1945), com o objetivo de combater as noções de
superioridade racial impregnadas no discurso nazista. O texto é um libelo contra a intolerância racial.
Nele, Benedict fala da diversidade humana e dos encontros e misturas raciais produzidos pelo movimento
da humanidade, em diversas partes do mundo.
Outra obra que faz parte desse esforço da sociedade norte-americana para a mobilização da
guerra é o clássico O Crisântemo e a Espada, de 1946. O texto é um amplo estudo da sociedade e da
cultura do Japão.
4 Os povos estudados por Ruth Benedict na pesquisa citada são os povos do Novo México (Índios Pueblo, do Sudeste), os Dabu (Ilha Dobu da
Costa Sudeste da Nova Guiné Oriental) e os da Costa do Noroeste da América (do Pacífico ao Estreito de Puget).
5 Laissez-faire é a contração da expressão em língua francesa “laissez faire, laissez aller, laissez passer”, que significa “deixai fazer, deixai ir,
deixai passar” . A expressão refere-se a uma ideologia econômica que surgiu no século XVIII, com o iluminista Barão Charles de Montesquieu
(1689-1755) que defendia a existência de mercado livre nas trocas comerciais internacionais. O comércio internacional isento de impostos
alfandegários traria maiores benefícios para as nações envolvidas do que a proteção da produção nacional, e por isso a utilização desse
conceito é polêmica, pois pode significar benefício para alguns e prejuízo para outros.
6 Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), foi presidente dos Estados Unidos da América (1933-1945), realizando quatro mandatos. Durante
seu governo enfrentou o período da Grande Depressão (a Crise de 1929, pior e mais longo período de recessão econômica do século XX) e foi
responsável pela entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial (1939). Recuperou os EUA após a Crise de 1929 criando melhores
condições de vida e trabalho aos norte-americanos e favorecendo a construção do país como grande potência.
A primeira configura uma sociedade em que a criança aprende com os mais velhos. O acervo
cultural é tido como definitivo e não há questionamentos críticos. Na segunda, há o predomínio do
modelo de aprendizado junto com os seus próprios pares. Mead dá o exemplo dos filhos de imigrantes
que aprendem mais com os colegas do que com os pais. Na terceira, são os adultos que aprendem com
os jovens.
Margaret Mead indica que nas sociedades desenvolvidas e modernas coexistem as três formas de
organização da cultura. Mas há uma forte tendência da cultura prefigurativa, em razão das mudanças
tecnológicas e da ciência, em que as gerações mais jovens têm maior domínio das informações técnicas
atualizadas, e tendem a ensinar mais sobre tais tecnologias do que aprender.
Margaret Mead teve papel destacado na Escola Culturalista pelas pesquisas realizadas e pelos
seus posicionamentos ante os problemas concretos do seu tempo, em relação ao comportamento
sexual, aos direitos das mulheres e a luta contra o preconceito racial. Ela exerceu a Antropologia como
vocação científica – compreensão dos complexos mecanismos sociais que configuram os compor-
tamentos do grupo – e como vocação política – a Antropologia como instrumento de mudanças na
realidade social do seu tempo.
8 Arthur Ramos de Araújo Pereira (1903-1949) foi um médico psiquiatra, psicólogo social e antropólogo brasileiro. Considerado um dos
maiores cientistas da humanidade, publicou em 1934 O Negro Brasileiro, assumiu a cátedra de Psicologia Social e foi consagrado o pai da
Antropologia Brasileira. Fundou a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnografia do Rio de Janeiro e, no fim dos anos 1940, assumiu a
direção do departamento de Ciências Sociais da Unesco em Paris, cargo que exerceu até sua morte.
Sua principal obra foi o estudo publicado em 1936: O Homem: uma introdução à antropologia.
Nele Linton apresenta suas ideias centrais sobre o homem e sua trajetória na linha do tempo e no
espaço, desde os seus primórdios.
Ralph Linton definiu cultura como herança social. Para ele, os fatos culturais são frutos das
necessidades humanas biológicas (alimentação, habitação, vestuário), sociais (organização social,
organização política, ensino) e psíquicas (crenças, valores estéticos, representações, pensamentos). Essa
cultura modela o homem na sua experiência de construção material e imaterial da vida.
Logo no início do livro, Linton diz:
Muitos pormenores acerca da origem e desenvolvimento do homem são ainda desconhecidos; mas que nossa espécie
evoluiu a partir de alguma forma inferior de vida, já não é posta em dúvida por quem quer que esteja familiarizado com
os fatos [...] A não ser que a ciência toda esteja em erro, não somos anjos decaídos, mas animais aperfeiçoados. E é nessa
crença que o cientista baseia suas esperanças no futuro da nossa espécie. (LINTON, 1976, p. 23)
Dessa forma, Linton apresenta sua concepção de ser humano, sobre a qual deitará uma ampla
gama de reflexão, que atravessa os conceitos de raça, sociedade, família, casamento, tribo, estado, indi-
víduos, história, até aportar nos conceitos de cultura e personalidade.
Nesse par de conceitos, Linton apresenta sua concepção de homem e cultura em uma determi-
nada sociedade:
Há indubitavelmente uma relação íntima entre essa configuração da personalidade e a cultura da sociedade a que o
indivíduo pertence. Na medida em que constitui alguma coisa mais que uma abstração feita pelo investigador, a cul-
tura só existe no espírito dos indivíduos que compõem uma sociedade. Suas qualidades provêm das personalidades
desses indivíduos e da sua interação. Inversamente, a personalidade de cada um dos indivíduos existentes no interior
da sociedade desenvolveu-se e funciona em associação constante com sua cultura. As personalidades afetam a cultura
e a cultura afeta a personalidade. Da influência exercida no desenvolvimento da cultura por certas personalidades, já
tratamos de considerar as dinâmicas da mudança cultural. Neste capítulo nos limitaremos ao outro lado da questão,
isto é, à possível influência da cultura sobre a personalidade. (LINTON, 1976, p. 460-461)
No seu trabalho, Linton consolida a visão da importância do papel da cultura na formação dos
grupos sociais. Para ele, a cultura é um agregado de subculturas, uma forma singular de vida de um
grupo menor, dentro de uma relação social ampla. Essas subculturas têm níveis diferentes de conflitos
pontuais – com a cultura mais ampla e com outras subculturas –, no entanto, elas se mantêm coesas
entre si. Para Linton, essas subculturas não têm valor conotativo de superioridade e inferioridade entre
si. Elas são distintas devido ao nível de organização interna e da estrutura de seus elementos. Elas não
estão, segundo Linton, necessariamente ligadas a um espaço geográfico, em especial.
Para Linton, as culturas são formadas por regras e normas de comportamentos ou costumes (valores
e crenças). Ele classifica essas regras em três grupos distintos, de acordo com o nível de participação
– obrigatória e facultativa – dos indivíduos: as universais – regras dirigidas a todos os membros da
comunidade; as especialidades – focadas em grupos menores de indivíduos; e as alternativas – facultadas
a alguns dos indivíduos do grupo social.
A partir daí, Landes passeia pelo multiverso cultural da religião afrodescendente – o destaque do
papel das mulheres nessa estrutura religiosa, as particularidades das formas de organização litúrgicas,
9 Estado Novo foi o período da história republicana brasileira em que Getúlio Vargas deu um golpe de Estado e instaurou uma ditadura
(1937). Ele determinou o fechamento do Congresso Nacional e extinção dos partidos políticos, outorgou uma nova Constituição, que lhe
conferia o controle total do poder executivo e contava com a censura aos meios de comunicação realizada pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP). O regime de governo do Estado Novo teve seu fim em 1945, quando o então presidente Getúlio Vargas foi deposto.
10 As religiões afrodescendentes têm sua matriz identitária na cosmovisão africana. No Brasil, a partir do século XVI, com a chegada de africanos
escravizados das nações Nagô, Jeje e Bantu, para além das proibições e perseguições históricas, estruturaram-se formas de manifestações
religiosas, como o Candomblé Ketu e o Candomblé Angola, que preservam a ritualística e a visão de mundo das culturas de suas nações africanas
de origem.
11 Maria Escolástica da Conceição Nazareth (1894-1986), brasileira da cidade de São Salvador na Bahia. Iniciada no Candomblé Ketu e filha de
Oxum. Descendente de nigerianos e neta de D. Maria Júlia da Conceição Nazareth, fundadora do Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê (1849) que recebeu
o popular nome de Terreiro do Gantois, pois as terras onde foi construído foram compradas de um francês conhecido como Senhor Gantois.
Mãe Menininha tinha 28 anos de idade quando assumiu a função de dirigente e a cadeira de Iyalorixá do Candomblé do Gantois, considerada
jovem, por sua idade cronológica, em relação às sacerdotisas de outros terreiros recebeu o apelido de Menininha. Foi uma das Iyalorixás mais
importantes da Bahia e do Brasil, reconhecida como referência religiosa, também pelo enfrentamento a perseguições policiais violentas que
reprimiam o culto aos Orixás e como defensora da história da cultura negra por meio da preservação dos primeiros terreiros de Candomblé
em Salvador o Engenho Velho e a Casa Branca.
12 Martiniano Eliseu do Bonfim (1859-1943), brasileiro de São Salvador da Bahia, foi filho de pais africanos que compraram suas alforrias
no Brasil. Também conhecido como Ojeladê, nome dado por seus pais ao nascer e que após sua morte integrou-se à hierarquia de alguns
terreiros de culto aos ancestrais na Ilha de Itaparica, foi enviado por seu pai para estudar a língua ioruba e as tradições africanas em Lagos, na
Nigéria (1875) onde viveu durante onze anos e recebeu o título de Babalawo (sacerdote no culto a Ifá). Voltando a Salvador, tornou-se um dos
líderes religiosos que exerceu grande influência na comunidade baiana e sempre manteve estreita ligação com destacados intelectuais. Por
seus conhecimentos, seu imenso prestígio e saber religioso. Martiniano foi um membro muito influente dos candomblés da Bahia, desde os
fins do século XIX. Babalawo e conselheiro – nas mais antigas e prestigiosas casas de santo, colaborou com Mãe Aninha na estruturação dos
Ministros de Xangô no Ilê Axé Opo Afonjá onde também recebeu o honroso título de Ajimudá. Participou da organização da União de Seitas
Afro-Brasileiras no segundo Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Salvador, em janeiro de 1937.
Nessa obra, Landes exercita a técnica da etnografia com maestria, com tudo que o pacote tem
direito – pesquisas de campo e diários de campo (registros antropológicos do pesquisador em campo;
espaço da memória social e da construção da subjetividade) –, para o registro da alteridade e pluralidade
cultural.
O livro é escrito na contramão do que vigia nas Ciências Sociais da época, em especial no Brasil.
Landes contribui, no campo da disciplina, com a revitalização da construção narrativa da Antropologia,
com as digitais da pesquisa de campo, perspectiva do estudo comparativo, a sensibilidade para a
questão da mulher e pelo papel do indivíduo na construção do conhecimento.
Em suma, parece que o favoritismo de fundo sexual dos senhores do Novo Mundo se combinou com os precedentes
culturais da África para elevar o status das mulheres escravas no Hemisfério Ocidental, em especial, nas sociedades de
origem católica-mediterrânica, atingindo o auge no Brasil, onde tanto brancos quanto negros mantiveram significa-
tivos contatos com a África Ocidental. A tendência se estabeleceu firmemente nas instituições e no pensamento do
povo, e assim continua. Contudo, a classe média emergente de colored por toda parte se bate conscientemente pelos
valores da sociedade dominante, embora certos eruditos acreditem que os celebrados valores populares das mulheres
negras do Brasil tenham funcionado insensivelmente para liberalizar a posição social das mulheres brancas brasileiras.
(LANDES, 2002, p. 352)
Na época da publicação, seu trabalho foi duramente criticado por Herskovitz e Arthur Ramos, por
considerá-lo um mero registro de viagem. Mas, para muitos, Landes foi criticada pelas suas opções em
registrar aspectos culturais ligados às mulheres, à sexualidade e às relações raciais.
Segundo Bastide, para os estudos das sobrevivências africanas na civilização brasileira, não bastava
fazer o trabalho etnográfico de descrição dos ritos ou citar nomes das divindades. Era necessário, sem
o obstáculo da tendência de reinterpretar os dados segundo a mentalidade ocidental, compreender a
“epistemologia afro-americana”, ou o sistema de construção do conhecimento do mundo, característico
dessa civilização.
Com o objetivo de compreender a magnitude da epistemologia africana no Brasil, Bastide teve
uma intensa produção bibliográfica, tendo o negro como o foco de seus trabalhos: Psicanálise do Cafuné
(1941); Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto (1945); O Candomblé da Bahia (1958); Sociologia
do Folclore Brasileiro (1959); As Religiões Africanas no Brasil (1971); Estudos Afro-brasileiros (1973) e As
Américas Negras (1974).
13 Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), escultor, brasileiro de Minas Gerais. Filho de mãe africana escravizada e pai português que o alforriou
ao nascer e lhe ensinou arquitetura e a arte de esculpir. Aleijadinho é considerado o maior expoente do estilo barroco mineiro e das artes
plásticas no Brasil colonial. Em 1777 começou a desenvolver uma doença degenerativa dos membros que comprometeu os movimentos das
mãos e por isso ficou conhecido como Aleijadinho.
14 A tese principal do autor, defendida na Universidade de Paris para obter o grau de Doctorat d’État, foi consagrada ao estudo das
interpenetrações de civilizações e a segunda tese, “a pequena tese”, e esta ora introduzida, sobre o candomblé baiano de rito nagô. (N.T.)
(BASTIDE, 2001, p. 23).
Fernando Ortiz, filho de pai espanhol e mãe cubana nasceu em Havana, em 1881. Cresceu entre
Cuba e Espanha, onde se graduou e doutorou-se em Direito.
Ortiz manteve contato direto com os conceitos produzidos na fornalha da Antropologia Cultural.
Trocou correspondência com Herskovitz sobre a natureza dos encontros culturais na Ilha Caribenha.
Nesse exercício conceitual, cunhou a expressão transculturalismo como um fenômeno social
importante para a compreensão da heterogeneidade cultural cubana.
Segundo Ortiz, o neologismo “transculturação” era para substituir, na terminologia sociológica,
o conceito de “aculturação”, compreendido por ele como o trânsito de uma cultura para outra e suas
implicações sociais.
Transculturação expressa os variados fenômenos que se originaram em Cuba, por meio de
complexos processos de transmutações de culturas, que atravessavam todas as manifestações culturais
do país: econômica, política, social, jurídica, religiosa, ética, artística, psicológica, sexual, entre outros
aspectos da vida cubana.
Segundo Ortiz, a história de Cuba era a história de intricados momentos de transculturação,
do índio, desaparecido sob o impacto da cultura espanhola; dos imigrantes brancos espanhóis, sob
o impacto da miscigenação da nova cultura do Novo Mundo; dos negros africanos, sob o impacto do
novo ecossistema cultural.
Entendemos que o vocabulário transculturação expressa melhor as diferentes fases do processo de transição de uma
cultura para outra, porque esse não se consiste somente em adquirir uma cultura distinta, que é o que a rigor indica o
termo anglo-saxônico aculturação; o processo implica também necessariamente a perda, o desenraizamento de uma
cultura anterior, o que se poderia dizer uma desculturação parcial, além da criação de novos fenômenos culturais que
podem ser denominados de neoculturação [...] (ORTIZ, 1993, p. 148)
Segundo Ortiz, a orquestração desse processo chama-se transculturação. Para explicar o conceito,
Ortiz formula uma metáfora culinária: o ajiáco (guisado com tempero de pimentão), cozido cubano, no
qual vários pedaços são cozidos, com a dissolução de alguns e a permanência de outros. A cultura
transcultural cubana – de trocas culturais entre os diversos povos – é um cozido com todos os elementos
em processo de mudança e transformação, misturando-se em um caldo sintético.
A metáfora expressa a realidade de culturas multiculturais, onde predomina o encontro de várias
matrizes civilizatórias, em processo permanente de troca de elementos culturais, com ressemantizações
e reinvenções permanentes.
Considerações finais
A Teoria da Antropologia Cultural expandiu o repertório conceitual das Ciências Sociais e as
possibilidades de leitura e compreensão dos hábitos e modos humanos.
Seguindo o caminho aberto por Franz Boas – que ajuda a sepultar a visão racista predominante
na Antropologia da primeira metade do século XX –, a Antropologia Culturalista teve seu epicentro nos
círculos intelectuais norte-americanos.
A construção do conceito de Padrões Culturais e da forma com que os povos lançam mão de
elementos culturais desse arco de possibilidades e os adaptam aos seus ecossistemas e necessidades
põem por terra o conceito de superioridade cultural entre os povos, base da justificativa colonial e da
segregação.
O mergulho no universo cultural dos povos – propiciado pela etnografia e trabalho de campo –
desdobrou-se em narrativas de compreensão da relatividade dos aspectos culturais e na necessidade
de decifrar, sem o peso mental dos conceitos e preconceitos do Ocidente, a epistemologia dos povos e
suas estruturas cognitivas, cosmovisões de formas de encarar o mundo.
O continente africano e o continente americano tiveram um papel de destaque no período de
articulação do discurso culturalista. Os dois espaços geográficos enfeixavam uma ampla gama de com-
plexos culturais, infraestrutura da heterogeneidade cultural de seus povos.
Novos conceitos foram necessários para dar conta da forma singular dos encontros civilizatórios
realizados e das suas implicações culturais, na organização da sociedade, nas relações entre os indivíduos
e nas formas de produção e reprodução de suas condições de vida.
Um dos grandes méritos da Escola da Antropologia Cultural foi a consolidação da visão de que
todas as culturas, independentemente de suas cores, de suas localizações geográficas, de suas carac-
terísticas específicas, fazem parte do grande arco cultural da família humana, onde cada povo bebe a
mesma água do vaso, segundo o tamanho de sua sede.
Texto complementar
O cidadão norte-americano
(LINTON, 1976, p. 106-107)
O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do
Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai
debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de linho ou
de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi
descoberto na China. Todos esses materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no
Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios
das florestas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma
mistura de invenções europeias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é
vestiário inventado na Índia e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a
barba que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.
Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira do tipo europeu
meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de pele originais dos nômades
das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no antigo
Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira
de pano de cores vivas que amarra ao pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos
croatas do séc. XVII. Antes de ir tomar o seu breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita de vidro
inventado no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da
América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de
feltro, material inventado nas estepes asiáticas.
De caminho para o breakfast, para para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção
da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera.
O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira
vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália medieval; a colher vem de um original romano.
Começa o seu breakfast, com uma laranja vinda do Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou talvez
uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abssínia, com nata e açúcar. A domesticação do
gado bovino e a ideia de aproveitar o seu leite são originárias do Oriente Próximo, ao passo que
o açúcar foi feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles, os quais são
bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria-prima o trigo,
que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple inventado pelos
índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de alguma
espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado
na Ásia Oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido no norte da Europa.
Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios ame-
ricanos e que consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da
Virgínia, ou cigarro, proveniente do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um
charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma,
lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado
na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas
estrangeiros, se for bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua
indo-europeia, o fato de ser cem por cento americano.
Atividades
1. A Escola Antropológica Cultural formulou o conceito de “Padrões de Cultura” rompendo com as
justificativas de superioridade cultural encontradas em outras escolas. Comente.
3. Segundo Margaret Mead, como se forma a personalidade social de homens e mulheres em uma
sociedade?
4. Por que o Brasil se tornou um dos campos de trabalho nos estudos antropológicos culturalistas?
Referências
BASTIDE, R. Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945.
_____. Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Edusp, 1971.
_____. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BENEDICT, R. Padrões da Cultura. Lisboa: Livros do Brasil, 1989.
_____. O Crisântemo e a Espada (1946). São Paulo: Perspectiva, 2006.
BOAS, F. Primitive Art. Nova York: Capitol, 1951.
_____. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
HERSKOVITZ, M. J. The American Negro: a study in racial crossing. Bloomington: Indiana University
Press, 1928.
_____. Antropologia Econômica. México: Fondo de Cultura Económica, 1952.
_____. Antropologia Cultural. São Paulo: Mestre Jou, 1969.
IANNI, O. A Sociedade Global. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.
LANDES, R. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.
LAPLANTINE, F. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
LINTON, R. Cultura e Personalidade. Rio de Janeiro: Mundo das Letras, 1973.
_____. O Homem: uma introdução à antropologia. 10 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1976.
MEAD, M. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva, 1969.
_____. Visual anthropology in a discipline of words. In: HOCKINGS, P. (Org.). Principles of Visual Anthro-
pology. Paris: Mouton, 1975.
_____. Growing up in New Guinea. Nova York: Perennial Classics, 2001.
_____. Coming of Age in Samoa: a psychological study of primitive youth for western civilization. Nova
York: Perennial Classics, 2001.
ORTIZ, F. Del Fenómeno de la Transculturación y de su Importancia en Cuba: el contrapunteo cuba-
no del azúcar y del tabaco (1940). La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1983.
_____. Etnia y Sociedad. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1993.
Gabarito
1. As Teorias Antropológicas Culturalistas explicavam a diversidade cultural dos povos a partir dos
pressupostos do Relativismo Cultural. Os padrões culturais evidenciam as singularidades culturais,
resultantes das necessidades particulares, biológicas, sociais e psíquicas dos indivíduos de
determinado grupo e de suas formas de organização, sem que essas especificidades determinem
ou indiquem a superioridade de um povo em relação a outro.
Nos anos 1940, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss deu início a uma linha de abordagem
na disciplina que passou a ser conhecida como Estruturalismo. Lévi-Strauss buscava os princípios de
organização da mente humana (pares de oposição e códigos binários), com os objetivos de definir a
anatomia das regras estruturantes das culturas na mente humana, de articular uma teoria das relações
de parentesco, de estudar a lógica do mito, as classificações primitivas e as distinções entre natureza e
cultura.
O antropólogo francês – aluno de Marcel Mauss – percorreu esse caminho com a produção de
obras que se tornaram referências nos estudos das Teorias Antropológicas: As Estruturas Elementares do
Parentesco (1949); Tristes Trópicos (1955); Antropologia Estrutural (1958); Pensamento Selvagem (1962); O
Cru e Cozido (1964); O Homem Nu (1971); Antropologia Estrutural II (1973).
Lévi-Strauss influenciou uma linha de pesquisa e de pesquisadores que se estendeu por vários
campos do conhecimento das ciências humanas, em diversas partes do mundo: Jacques Lacan, Michel
Foucault, Jacques Derrida, Louis Althusser, Edward Sapir.
Assim, o Estruturalismo é todo método ou processo de pesquisa que, em qualquer campo, faça
uso do conceito de estrutura nos sentidos mencionados.
No plano metodológico, o estruturalismo estuda sistemas em grande escala e examina as relações
e funções dos elementos que constituem esses sistemas. Eles variam das línguas humanas às práticas
culturais, contos folclóricos e textos literários.
O termo nasce na Psicologia2 e na Linguística e foi estendido por Lévi-Strauss para a Antropologia
e por outros pesquisadores para outros campos das Ciências Humanas.
Ele toma corpo no Cours de Linguistique Générale ministrado por Ferdinand de Saussure3, na
1 Cibernética (do grego Kubernêtes, que significa piloto) foi primeiro utilizada pelo filósofo grego Platão (428-348 a.C.) para qualificar a arte de
dirigir os homens. Ainda com o sentido de “controle”, o matemático americano Norbert Wiener (1894-1964) apresenta cientificamente em 1948,
na publicação Cibernética ou Regulação e Comunicação no Animal e na Máquina, a cibernética como modelo de estudo de controle e comunicação
em sistemas mecânicos, elétricos ou biológicos. Wiener prestou serviços ao governo americano durante a II Guerra Mundial (1939-1945) no
desenvolvimento dos sistemas de direção de mira automática em máquinas de guerra. Ele percebeu que os computadores deveriam ter habilidades
semelhantes às do ser humano no controle de suas atividades, sendo o homem necessário apenas para estabelecer esse nível de controle. Na
modernidade, os computadores, mesmo mais sofisticados, ainda possuem os mesmos princípios de controle e transmissão de informações.
2 Uma das primeiras fontes foi a Escola Psicológica de Wilhelm Wund (1832-1920). Wund procurou determinar as estruturas da mente na
tentativa de compreender os fenômenos mentais, pela decomposição dos estados conscientes, produzidos pelos estímulos ambientais, o
introspeccionismo (olhar de dentro).
3 Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi um linguista suíço, fundador da moderna linguística científica com seus estudos sobre a estrutura
da linguagem. Estudou Física e Química na Universidade alemã de Leipzig, onde cursou também Gramática Grega e Latina. Decidiu-se pelos
estudos da linguagem e ingressou na Sociedade Linguística de Paris onde, em 1879, publicou seus estudos sobre o sistema das vogais nas
línguas indo-europeias. Suas conferências apresentaram novos conceitos sobre a Linguística, que defendia como a ciência geral dos signos,
dos sistemas de significação, inaugurando o termo Semiologia. Ensinou Linguística Histórica na École Pratique des Hautes Études em Paris (1881-
-1913). Na Universidade de Genebra ministrou o Cours de Linguistique Générale (1907-1913), textos que foram publicados em 1916. Suas teorias
basearam o desenvolvimento do estruturalismo do século XX.
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
A escola antropológica do Estruturalismo francês | 139
Universidade de Genebra (1907-1913). Para Saussure, era possível abordar qualquer língua como um
sistema, em que cada elemento só poderia ser definido pelas relações de semelhanças ou oposição que
mantém com os demais elementos.
Saussure estava interessado na infraestrutura da língua, aquilo que é comum a todos os falantes
e que funciona no nível do inconsciente. Sua pesquisa concentrou-se nas estruturas mais profundas da
língua, mais do que nos fenômenos superficiais.
Na sua exigência mais geral, o Estruturalismo tende não só a interpretar em termos de sistema um campo específico
de pesquisa como também a mostrar como os diversos sistemas específicos, verificados em diversos campos (por ex.,
na Antropologia, na Economia e na Linguística), se correspondem ou têm entre si características análogas. Lévi-Strauss,
por ex., julga possível que uma mesma estrutura possa ser encontrada em três níveis da sociedade: no sentido de que
as regras do parentesco e do matrimônio servem para assegurar a comunicação das mulheres entre os grupos, como
as regras econômicas servem para assegurar a comunicação dos bens e dos serviços e as regras linguísticas à comuni-
cação das mensagens. (ABBAGNANO, 1982, p. 358)
Para Lévi-Strauss, o Estruturalismo era uma forma de “ciência da comunicação”, que revela a
natureza das relações não explicitadas. Segundo o antropólogo francês, toda a cultura é uma modalidade
particular de comunicação, regida por leis inconscientes de inclusão e exclusão. Nos estudos dos
mitos, Lévi-Strauss fala da imagem de uma partitura musical não escrita e sem autor, que expressa o
inconsciente da sociedade. Assim, o sentido do que diz o homem deve ser buscado no que ele encobre,
no que ele esconde, e não no que ele diz ou no que suas palavras expressam.
Essa abordagem original de Lévi-Strauss provoca uma série de rupturas radicais no campo da
Antropologia, segundo François Laplantine. Essas rupturas se dão em quatro pontos centrais:
::: Ruptura com o Humanismo e a Filosofia – com a ideologia do sujeito considerado fonte de
significações:
[...] o Estruturalismo afirma a prioridade do sistema em relação ao homem; das estruturas sociais em relação às
escolhas individuais, da língua em relação ao falante singular e, em geral, da organização econômica ou política
em relação às atitudes individuais. Com o que, não aceita necessariamente o determinismo do indivíduo, mas
apresenta a exigência de encontrar no sistema em que o indivíduo está inserido, os limites e as condições dentro
das quais pode mover-se para renovar ou transformar o próprio sistema. (ABBAGNANO, p. 358)
4 Diacrônica – a linguística diacrônica, encontrada no Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure, compreende o estudo histórico das
línguas considerando a substituição sucessiva dos termos – signos – ao longo do tempo.
5 Sincrônica – a visão sincrônica, destacada nos estudos linguísticos de Ferdinand de Saussure, estabelece o sistema de funcionamento
da linguagem em um determinado tempo. É um estudo descritivo da linguística – das relações dos termos, signos, coexistentes – sem a
perspectiva histórica.
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
140 | A escola antropológica do Estruturalismo francês
Para ele, o indivíduo passa do estado natural para o da cultura enquanto usa a linguagem, aprende
a cozinhar, produz artefatos e objetos. Nessa transição do estado natural ao cultural, o homem obedece a
leis que ele não criou, mas que pertencem a um mecanismo do cérebro.
Lévi-Strauss conceituou duas formas de organização da sociedade: as frias (as que se encontram
“fora da história”, orientando pelo modo mítico de pensar, sendo que o mito é definido como “máquina
de supressão do tempo”), e as quentes (movem-se dentro da história, com ênfase no progresso, estando
em constante processo de transformação tecnológica).
Em 1959, Lévi-Strauss foi nomeado para a cadeira de Antropologia Social do Collège de France,
onde atuou até se aposentar, em 1982. Pelo seu trabalho e pelo reconhecimento internacional, Claude
Lévi-Strauss recebeu o título de doutor honoris causa6 em diversas instituições de Ensino Superior:
Bruxelas, Oxford, Chicago, Stirling, Upsala, Montréal, México, Québec, Zaïre, Visva Bharati, Yale, Harvard,
Johns Hopkins e Columbia, entre outras. Em 2005, aos 97 anos, Claude Lévis-Strauss recebeu o 17.º
Prêmio Internacional Catalunha, na Espanha.
6 Doutor Honoris Causa (termo em latim que significa “para honra”). É um título acadêmico outorgado para distinguir e homenagear
personalidades de atuação relevante e de significativa contribuição em prol das Artes, das Ciências, da Filosofia, das Letras ou do melhor
entendimento entre os povos. O doutoramento pode ser atribuído a personalidades em vida, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
agraciado com o título em 30 de outubro de 2002, mas também postumamente como foi para o cineasta baiano Glauber Pedro de Andrade
Rocha (1939-1981), diretor, entre outros, do filme brasileiro Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) considerado um marco do Cinema Novo.
Glauber Rocha foi honrado Post-Mortem no dia 26 de setembro de 1994. As duas titulações foram outorgadas pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA).
7 Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir (1908-1986) foi escritora, filósofa existencialista e feminista francesa. Reconhecida pelo
impacto causado por suas obras que revelaram sua visão de mundo e trajetória de vida. Recebeu o Prêmio Goncourt por sua obra prima Os
Mandarins (1954), e publicou ensaios críticos como O segundo sexo (1949), uma análise do papel da mulher na sociedade; “A velhice” (1970)
sobre o processo de envelhecimento e a sociedade, e “A cerimônia do adeus” (1981) onde apaixonadamente escreveu inspirada em seu ex-
-companheiro Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo francês com quem fundou o periódico Les Temps Modernes em 1945.
Nessa obra, Lévi-Strauss, segundo Simone, dedica-se ao problema que mobiliza intelectualmente
sociólogos e etnólogos: a proibição do incesto8. Tanto a importância do incesto quanto a sua obscuridade
colocam-no em uma posição única entre os fatos humanos.
Simone destaca a existência de duas categorias de fatos: os fatos da natureza e os fatos da cultura.
Mesmo sem os mecanismos que possam pontuar a passagem de um para outro, os fatos da natureza
são universais, e os fatos da cultura obedecem a normas e regras determinadas pelo grupo social.
Para Simone, no universo intelectual de Lévi-Strauss, o incesto escapa a esse enquadramento. Ele,
como fato, tem as duas vertentes:
A proibição do incesto é o único fenômeno que escapa dessa classificação: pois ela aparece em todas as sociedades,
sem exceção, e ao mesmo tempo é uma regra. As diferentes interpretações tentadas até então se esforçaram todas para
mascarar essa ambiguidade. Alguns pensadores evocaram os dois aspectos – natural e cultural – da lei; mas eles apenas
estabeleceram entre eles uma relação intrínseca; supuseram que um interesse biológico teria engendrado a interdição
social; outros viram na exogamia um fato puramente natural: ela seria ditada por um instinto; outros enfim, dentre os
quais Durkheim, consideraram-na exclusivamente um fenômeno cultural. (BEAUVOIR, 1949)
Esses três tipos de explicação têm conduzido a impossibilidades e contradições, segundo Simone.
Se a proibição do incesto desperta um interesse tão grande é, para a intelectual francesa, porque essa
proibição representa o momento de passagem da natureza para a cultura. Esse momento é quando a
natureza ultrapassa a si mesma.
Essa singularidade decorre do caráter particular da sexualidade mesma: é normal que a dobradiça entre natureza e
cultura se encontre no terreno da vida sexual, pois esta, extraída da biologia, coloca imediatamente outrem em jogo;
no fenômeno da aliança se desenvolve essa dualidade: pois enquanto o parentesco é dado, a natureza impõe a aliança,
mas não a determina. Podemos extrair daqui a maneira pela qual o homem, assumindo sua condição natural, define
sua humanidade. Pela proibição do incesto se expressam e se realizam as estruturas fundamentais sobre as quais se
funda a sociedade humana como tal. (BEAUVOIR, 1949)
A proibição do incesto tem como resultado a definição de uma organização, um sentido positivo
no grupo. Ele estabelece as simetrias e reciprocidade das renúncias no seio familiar, pois haverá a mesma
reciprocidade por parte do outro.
[...] pois para renunciar a seus parentes, é necessário que o indivíduo seja assegurado de que a renúncia simétrica de
um outro lhe conceda aliados; ou seja, a regra é a afirmação de uma reciprocidade; a reciprocidade é a maneira ime-
diata de integrar a oposição entre mim e outrem: sem uma tal integração, a sociedade não existiria. Porém, tal relação
não existiria se permanecesse abstrata; sua tradução concreta é a troca: a transferência de valores de um indivíduo a
11
outro os transforma em parceiros; somente sob essa condição pode se estabelecer um mitsein [ser-com] humano.
(BEAUVOIR, 1949)
A regra faz o indivíduo descobrir a reciprocidade. Ela dá, segundo Simone, a chave do mistério da
exogamia. Proibir a mulher para os membros de uma família é colocá-la à disposição de outro homem,
em outra família. Para Simone, a parente que se rejeita coloca-se à disposição do grupo, estabelecendo
um vasto sistema de comunicação no interior desse grupo.
Simone destaca os aspectos assimétricos das relações entre homens e mulheres num determinado
grupo. Para ela, as relações de reciprocidade não se expressam nas relações entre homens e mulheres.
Elas se estabelecem por meio das mulheres, pois a assimetria marca as relações entre ambos, qualquer
que seja o sistema de descendência – os filhos pertencem ao grupo do pai ou ao da mãe –; as mulheres,
segundo Simone, pertencem ao homem.
Todos os sistemas matrimoniais implicam que as mulheres sejam concedidas por certos homens
a outros homens, mesmo nos sistemas dualistas em que a convergência entre casamento e troca se
explica pela identidade de seu caráter funcional.
Não é o sistema dualista que faz nascer a reciprocidade: ele antes a exprime de uma forma concreta. É esta mesma pers-
pectiva que permitirá explicar as formas de sociedade mais complexas: elas não são o resultado de acasos históricos e
geográficos; todas elas manifestam uma mesma e profunda intenção: a de impedir o grupo de se fechar em si mesmo
e de mantê-lo diante de outros grupos com os quais a troca seja possível. (BEAUVOIR, 1949)
Simone aponta o esforço de Lévi-Strauss para confirmar essas ideias com uma minuciosa análise
de realidades sociais dadas. Para ela, esse estudo forma a parte mais importante dessa obra. A forma
de casamento é um ponto central dos estudos de proibições matrimoniais – entre primos cruzados
(filhos de um irmão e de uma irmã) e primos paralelos (filhos de dois irmãos ou duas irmãs). Segundo a
intelectual francesa, o estudo de Lévi-Strauss torna patente que não é a natureza quem dita suas leis à
sociedade. Para ela, ao compreender a origem dessa assimetria (natureza versus cultura), compreende-
-se também a proibição do incesto.
Para Simone, a obra de Lévi-Strauss confirma a ideia de que a exogamia objetiva assegurar a circu-
lação das mulheres e suas filhas, num determinado grupo social. Seu valor é positivo. Não há um perigo
biológico no casamento consanguíneo, mas um benefício social. A proibição do incesto é a instauração
da cultura no seio da natureza.
Certamente não é porque algum perigo biológico se ligue ao casamento consanguíneo, mas porque do casamento
exógamo resulta um benefício social [...] A lei da exogamia refere-se a valores – às mulheres, valores por excelência
[...] sem as quais a vida não é possível [...] A proibição do incesto é menos uma regra que proíbe casar-se com a mãe, a
irmã ou a filha do que uma regra que obriga a dar a outrem a mãe, a irmã ou a filha; é a regra do dom por excelência.
(LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 521-522)
11 Mitsein, expressão em alemão que se traduz “ser-com”. Foi o termo utilizado pelo filósofo existencialista alemão Martin Heidegger (1889-
-1976), que em suas reflexões sobre o problema do sentido do “ser” e descobrir o seu porquê definiu como mitsein (ser-com) o “ser-com-os-
-outros” – o ser social. Heidegger defendeu que todo ser é sempre “ser-com”, mesmo na solidão, pois a relação com o outro é fundamental na
constituição do ser para a sua relação de “ser-no-mundo” (dasein).
Pensamento Selvagem –
sistemas lógicos e sofisticados de organização social
Na obra Pensamento Selvagem, Claude Lévi-Strauss criou um método original ao associar a análise
estrutural com a psicanálise, para desvendar os mitos e o que eles ocultam dos sistemas cognitivos
dos povos primitivos. Para tanto, o antropólogo francês teve que se despir do antigo preconceito que
cercava o pensamento antropológico acerca dos chamados povos selvagens e primitivos. Para o campo
da disciplina antropológica, Levis-Strauss deu novo contorno aos velhos conceitos consagrados no
estudo etnográfico, tais como raça, cultura, progresso.
Esses povos eram considerados destituídos de cultura, colocados à margem da história e do
progresso da humanidade. Seus sistemas de representação eram considerados formas atrasadas e
arcaicas de pensamento, sem estado, religião e sistema judicial. Ao abordar de um ângulo novo essa
temática, Lévi-Strauss consolida a visão do relativismo cultural, pressuposto da Antropologia moderna.
O estudo sistemático da organização social e familiar dos chamados povos primitivos apontou o
grau de sofisticação de muitas dessas estruturas em relação às ocidentais.
Lévi-Strauss – com base em sua formação filosófica e etnográfica – abandona o conceito do bom
selvagem construído nas narrativas antropológicas do passado. Na sua abordagem original, sua obser-
vação será marcada pela minúcia científica e apaixonada, sem perder sua objetividade científica metó-
dica.
Nessa obra original, Lévi-Strauss mostra-se contrário ao conceito de mentalidade primitiva, pré-
-lógica, que pautou o sistema classificatório dos universos culturais dos povos. O autor mostra o profundo
conhecimento dos povos nativos em relação ao seu ambiente. Na obra, ele conclui que o interesse e o
desejo de conhecer a natureza, sua realidade circundante, pelos nativos, seria guiado pela necessidade
de encontrar recursos úteis a sua sobrevivência: para decidir se determinada espécie natural é útil, faz-
se necessário conhecê-la.
Para Lévi-Strauss, a mente humana opera, em todos os lugares, de acordo com princípios comuns.
Por essa razão, o conhecimento do mundo é parte da experiência humana. Cada grupo humano experi-
menta essa relação de forma diferente, singular – espaço geográfico –, mas os mecanismos lógicos que
operam em cada grupo e dão sentido às suas existências são os mesmos.
A matéria-prima que permite a produção dos mitos é a metáfora. Lévi-Strauss parte do pressu-
posto de que as histórias que os mitos contam são construções, signos retirados de outros sistemas de
significação. Como as palavras da própria língua, no contexto particular do mito, os elementos verificáveis
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
A escola antropológica do Estruturalismo francês | 145
adquirem novos sentidos: rios, montanhas, animais, plantas, céu, cheiros, parto, morte, sexo, troca, fi-
lhos, comportamentos, generosidade, reciprocidade.
12
Essa fórmula, que poderia servir de definição para o bricolage , explica que, para a reflexão mítica, a totalidade dos
meios disponíveis deve estar também implicitamente inventariada ou concebida, para que se possa definir um resul-
tado que sempre será um compromisso entre a estrutura do conjunto e a do projeto. Uma vez realizado, isso estará
portanto inevitavelmente deslocado em relação à intenção inicial (aliás, simples esquema), efeito que os surrealistas
denominam como felicidade “acaso objetivo”. Há mais, porém: a poesia do bricolage lhe advém também e, sobretudo,
do fato de que não se limita a cumprir ou executar, ele na “fala” apenas com as coisas, como já demonstramos, mas tam-
bém por meio das coisas: narrando, por meio das escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter e a vida de seu
autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si [...] Também sob esse ponto
de vista, a reflexão mítica aparece como uma forma intelectual de bricolage. [...] (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 36-37)
12 Para melhor acompanhar o autor em suas considerações sobre o pensamento mítico, mantivemos nesta tradução os termos bricoler,
bricoleur e bricolage que, no seu sentido atual, exemplificam com grande felicidade, o modus operandi da reflexão mitopoética. O bricoleur é
o que executa um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de um plano preconcebido e se afastam dos processos
e normas adotados pela técnica. Caracteriza-o especialmente o fato de operar com materiais fragmentários já elaborados, ao contrário, por
exemplo, do engenheiro que, para dar execução ao seu trabalho, necessita da matéria-prima (nota de Almir de Oliveira Aguiar e M. Celeste da
Costa e Souza, tradutores da 1.ª edição pela Ed. Nacional – 1989, p. 32).
Lógicas baseadas em “oposições binárias” que permitem ao homem classificar, relacionar e dar
sentido a todas as coisas e à sua existência. É essa lógica compartilhada pelos seres humanos permite a
troca de sentidos entre as diversas culturas – sociedades frias e quentes – e propicia a comunicação.
Seria necessário esperar até a metade deste século [20] para que caminhos separados por tanto tempo se cruzassem:
o que dá acesso ao mundo físico pela via da comunicação e aquele do qual há pouco se sabe que, pela via da física,
dá acesso ao mundo da comunicação. O processo total do conhecimento humano assume assim o caráter de um
sistema fechado. Portanto é ainda permanecer fiel à inspiração do pensamento selvagem reconhecer que o espírito
científico em sua forma mais moderna contribuiu para legitimar seus princípios e restabelecê-lo em seus direitos, por
um encontro que somente aquele soube prever. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 298)
Considerações finais
Claude Lévi-Strauss é uma figura estrelar no seio da Antropologia. Suas contribuições ampliaram
o horizonte teórico e conceitual da disciplina e espraiaram pelas ciências humanas seus conceitos e
teorias.
Sua presença no Brasil – como docente e como pesquisador – provocou fortes impactos nas
Ciências Sociais do país e formou um time de primeira linha, que contribuiu com a consolidação de seus
métodos de estudo e análise, como o trabalho do antropólogo Roberto da Matta, mestre e doutor em
Filosofia (Ph.D.), em Harvard, autor de Ensaios de Antropologia Estrutural, de 1973, que disse a respeito
dessa influência:
O primeiro traço de união que encontro nesses ensaios é o método estrutural, tal como esse instrumento de trabalho foi
aplicado à Antropologia Social por Claude Lévi-Strauss. Pois foi a partir do teste de suas ideias, especialmente aquelas
relativas às interpretações dos grupos tribais de língua Jê do Brasil Central, que iniciei minha própria compreensão do
13
“método estrutural”, aplicando-o crítica e constantemente ao meu trabalho de pesquisa junto aos índios Jê-Timbira
do Norte de Goiás, do Pará e do Maranhão, dentre os quais tenho estudado sistematicamente os Gaviões e os Apinayé
(cf. MATTA, 1967, 1970, 1970a, 1971, 1971a e 1971b). (MATTA, 1973, p.12)
13 Timbiras: um dos ramos dos grupos tribais de língua Jê do Brasil Central, representados pelos Krahó, Krikati, Gaviões, Apinayé e Canela.
Texto complementar
Resenha sobre Saudades do Brasil
(ACHUTTI, 2007)
Grata surpresa para antropólogos, fotógrafos e aficionados de ambas as áreas, um livro de
fotografias do mestre Claude Lévi-Strauss. E com este nome: Saudades do Brasil. Seria coisa
da Companhia das Letras? Aprendi, num artigo de Roberto Da Matta, que nós brasileiros temos
o privilégio de poder sentir saudades até da própria saudade. Senti saudade de minha saudade
pela Elis Regina (faz 13 anos que ela viajou sem volta). Coloquei seu último disco na vitrola (não o
tenho em CD) e organizei-me entre ouvir o Saudades do Brasil, da Elis, que há muito não ouvia, e
folhear o recente Saudades do Brasil do Lévi-Strauss. Pulo a introdução do livro, e começo a viajar
pelas populações indígenas brasileiras do ano de 1935 ouvindo a introdução instrumental de César
Camargo Mariano, quando vem o primeiro texto, no disco: “Mais um dia vai chegar/ Que o mundo
vai saber/ Não se vive sem se dar/ Quem trabalha é que tem/ Direito de viver/ Pois a terra é de
ninguém”. É de arrepiar. Voltando para o início do livro, constata-se que Lévi-Strauss inspirou-se
no nome de uma peça para piano, composta por Darius Milhaud, em 1921, compositor francês
que atuara na embaixada francesa num Rio de Janeiro em seu período áureo. Para compor esse
livro de 228 páginas estampadas com 176 belas fotos em preto e branco, o autor, com o auxílio
de sua mulher, refez a viagem do então jovem etnólogo por meio de 3 mil fotografias obtidas na
sua maioria com uma câmara Leica. As fotos estão editadas na sequência que parte da cidade de
São Paulo passando por Pirapora, Pico do Itatiaia, Paraná, Santa Catarina, tribos kadiwéu, bororo,
nambikwara, mundé, tupi-kawahib, terminando com a série que o autor denomina “O Retorno”.
Os negativos, de um modo geral apresentam-se bem conservados e por isso puderam resultar em
boas ampliações feitas por Matthieu Lévi-Strauss, a quem o Claude Lévi-Strauss dá a coautoria do
livro. Apesar de sua afeição passageira pela fotografia (o autor confessa que depois desse período
brasileiro deixou de lado a técnica fotográfica), influenciado por seu pai como ele definiu: um “artista-
-pintor e, sobretudo retratista, que tinha o hábito de fotografar seus modelos para controlar a posição
dos traços principais”, Lévi-Strauss revela ter domínio técnico e uma boa noção de composição e
equilíbrio. É bem verdade que não se pode saber se todas as fotografias apresentadas estão com
seu recorte original ou foram retrabalhadas na ampliação. Algumas que apresentam uma acentuada
granulação em relação às demais poderiam sugerir isso.
Para os conhecedores de uma das principais obras de Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, escrita 15
anos depois de ter retornado a Paris, Saudades do Brasil constitui-se num belo volume de ilustração
chegado 40 anos depois do principal. Em Tristes Trópicos o autor afirmava que “a evocação de recor-
dações com 20 anos de idade é semelhante a uma contemplação de uma fotografia amarelecida.
Quando muito pode ter um interesse documental. “Suas fotografias não amareleceram, porém com
86 anos de idade, ao evocar suas recordações o autor revela um tom saudoso e confessamente
cético. Na introdução de Saudades do Brasil não reconhecemos os questionamentos do papel do
antropólogo, que vai ao Terceiro Mundo cumprir uma espécie de ritual de passagem, não encon-
tramos a discussão sobre o caráter das cidades europeias em relação às americanas, também não
encontramos os relatos das dificuldades e das peripécias de um estudioso europeu que ganha as
matas de um país continental e que, no desespero para não se perder, agarra uma mula pelo rabo.
Enfim não encontramos a vitalidade do antropólogo que revela seu processo, seus questionamentos
e suas descobertas. Em Saudades do Brasil encontramos Lévi-Strauss hesitante quanto à importância
de colocar a público suas fotos. Ele faz questão de alertar para o fato de não trazer o retrato de exis-
tências primitivas. Ao contrário, afirma tratar-se de restos de uma civilização dizimada. Mesclando
seu conhecimento anterior com informações mais recentes, o autor chama a atenção para o desa-
parecimento das populações indígenas, por meio da diminuição de seus conglomerados e a perda
de suas especificidades e identidades culturais. Ele chega a tomá-las como metáfora da perda
de qualidade de vida na Europa, afirmando que “todos índios doravante, estamos em via de
fazer de nós mesmos o que fizemos deles”. À maneira estruturalista, relaciona a diminuição popula-
cional e desagregação cultural dos índios com o progresso e o aumento populacional do Ocidente
que irá “devorar a si mesmo”. Termina declarando “afeto e nostalgia” ao Brasil, assim como à sua
própria juventude. Leia-se: saudades.
Atividades
1. Quais os objetivos das pesquisas da Escola Antropológica Estruturalista?
3. De acordo com Simone de Beauvoir, a que se propõem os estudos sobre as estruturas elementares
do parentesco de Lévi-Strauss?
Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
ACHUTTI, L. E. R. Resenha sobre Saudades do Brasil. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 1,
n. 2, p. 257-259, jul./set. 1995. Disponível em: <www.ufrgs.br/ppgas/ha/pdf/n2/HA-v1n2a23.pdf>.
Acesso em: 20 ago. 2012.
BEAUVOIR, S. de. Les structures élémentaires de la parenté, par Claude Lévi-Straus. Les Temps Moder-
nes, ano 7, n. 49, p. 943-949, out. 1949. Disponível em: <http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/
campos/article/viewFile/9547/6621>. Acesso em: 20 ago. 2012.
CARDOSO, F. H.; IANNI, O. Homem e Sociedade: leituras básicas de sociologia geral. São Paulo: Nacio-
nal, 1973.
LÉVI-STRAUSS, C. O Cru e o Cozido. São Paulo: Brasiliense, 1991.
_____. As Estruturas Elementares do Parentesco Petrópolis: Vozes, 1982.
_____. O Pensamento Selvagem. Campinas: Papirus, 1989.
_____. Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
_____. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
_____. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
MATTA, R. da. Ensaios de Antropologia Estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973.
SCHORAKE, C. E. Viena Fin-de-Siècle: política e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Gabarito
1. O Estruturalismo inaugurado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss permitiu a pesquisa sobre
a forma de organização da mente humana e as regras estruturantes da cultura com os estudos
sobre as relações de parentesco, o sistema cognitivo dos povos primitivos e a distinção entre
natureza e cultura.
3. A análise de Simone de Beauvoir sobre as estruturas elementares do parentesco afirma que Lévi-
-Strauss estuda os mistérios da sociedade, o mistério do homem. O antropólogo aborda o incesto
considerando a existência de fatos da natureza e de fatos da cultura. E compreende que a proibição
do incesto e a norma da exogamia garantem o controle das relações sociais, a reciprocidade entre
os indivíduos e comunicação interna de um grupo.
4. Segundo Lévi-Strauss, existem duas formas de organização da sociedade. As sociedades frias são
orientadas por mitos, uma linguagem simbólica, são narrativas construídas com a ressignificação
de elementos de outros sistemas de significação. E as sociedades quentes estão em permanente
transformação tecnológica, a exemplo do que ocorre nas chamadas sociedades civilizadas.
Na década de 1960, nos Estados Unidos da América, emerge uma nova teoria no campo da
Antropologia: a Teoria da Antropologia Interpretativa ou Hermenêutica1. Seu principal protagonista
foi o antropólogo Clifford Geertz, considerado um dos mais importantes pensadores da disciplina no
século XX. Suas ideias, ao lado de Claude Lévi-Strauss, provocaram forte impacto intelectual no campo
da Antropologia e em outras áreas, como a Psicologia, a História e a Teoria Literária.
A Antropologia Interpretativa sinalizou quatro grandes referências que singularizam essa aborda-
gem antropológica, em larga escala, no campo teórico da disciplina:
::: a concepção de compreender a cultura como hierarquização de significados;
::: a busca pela “descrição densa” do cenário cultural observado;
::: o esforço metódico de ir à busca da interpretação do “texto cultural” e não da definição de leis
ou modelos explicativos;
::: basear-se na inspiração legada pela hermenêutica como técnica de interpretação em simetria
com a sua utilização na interpretação de textos filosóficos ou religiosos.
1 Qualquer técnica de interpretação. A palavra hermenêutica é frequentemente usada para indicar a técnica de interpretação de textos
religiosos ou filosóficos.
Segundo Clifford Geertz, pedra angular dessa concepção antropológica, a interpretação antropoló-
gica feita pelo antropólogo em campo é uma “leitura da leitura” que o “nativo” faz de sua própria cultura.
Esse é um pressuposto teórico fundamental da Antropologia Interpretativa, advogada por Geertz.
Para o antropólogo norte-americano, metaforicamente, a Antropologia Interpretativa é a leitura
da sociedade como um texto, análoga a um texto. A interpretação se dá em diversos momentos da leitura
do texto. “Nativos” e antropólogos leem de forma diferente esse texto pleno de significados, marcados
por experiências distintas. Os elementos da cultura estudada devem ser entendidos, interpretados, sob
a ótica dessa relação textual e de sua interpretação ou interpretações.
Quando Clifford Geertz, considerado como o pesquisador mais representativo da Antropologia Interpretativa nos
Estados Unidos (Existem nos Estados Unidos, desde meados dos anos 1970, correntes de Antropologia Interpretativa
– influenciadas em particular pelos trabalhos hermenêuticos de Ricoeur e de Gadamer) que duvidam da neutralidade
do pesquisador e da objetividade do saber, questionando-se sobre as condições de produção da Antropologia enquanto
produção textual. [...] Propõe-nos a metáfora da “cultura com texto”, ele não quer dizer que a cultura possui uma cultura
textual, mas sim que ela pode ser antropologicamente apreendida, construída, interpretada apenas num texto, num
texto que subentende outros textos que foram escritos antes de mim e, sobretudo que foram escritos por outros. Assim
a descrição etnográfica enquanto narração de uma cultura, longe de resolver-se necessariamente na estrutura, é uma
questão que também pode ser colocada em relação com a leitura. Do mesmo fenômeno social, não existe apenas uma,
2
mas sim uma pluralidade de descrições possíveis – a etnografia podendo nesse caso ser considerada uma poligrafia
– assim como uma série de leituras possíveis dessa mesma descrição. Três etnólogos confrontados ao mesmo campo
(por exemplo, Korn, Bateson e Geertz em Bali) nunca darão uma descrição idêntica, e nunca as potenciais leituras
desses três etnólogos darão os mesmos resultados. (LAPLANTINE, 2004, p. 110)
Além das pesquisas de campo, o ambiente acadêmico que emoldurava o cenário da articulação
do conceito era intenso. Diversos centros intelectuais procuravam arquitetar conceitos, métodos e
metódicas que dessem conta dos cenários móveis e complexos que se avizinhava no horizonte das
ciências humanas e no da Antropologia.
Em Chicago, àquela altura eu começara a lecionar e agitar, teve início e começou a se difundir um movimento mais geral,
vacilante e nada unificado, nessas direções. Alguns, lá e em outros centros, batizaram esse desenvolvimento, ao mesmo
tempo teórico e metodológico, de “Antropologia Simbólica”. Mas eu, encarando tudo isso como um empreendimento
2 Poligrafia, substantivo feminino (polígrafo+ia). Qualidade de quem é polígrafo; conjunto de conhecimentos vários; coleção de obras diversas,
científicas ou literárias.
Nesse mar agitado pelas ideias inovadoras, Geertz deu forma – com outros teóricos – ao conceito
e à sua abrangência de observação conceitual e metodológica.
De qualquer forma, fosse ela “simbólica” ou “interpretativa” (alguns até preferiam “semiótica”), começou a surgir um
estoque de termos, alguns meus, alguns de outras pessoas, outros reutilizados com alteração do sentido anterior, em
torno dos quais se poderia construir uma concepção revista do que pelo menos eu ainda chamava de “cultura”: “descrição
densa”, “modelo de/para”, “sistema de sinais”, “episteme”, “ethos”, “paradigma”, “critérios”, “horizonte”, “quadro”, “mundo”,
“jogos de linguagem”, “interpretante”, “sinnzusamenhang” [nexo], “tropo”, “sjuzet”, “experiência próxima”, “ilocucionário”,
“formação discursiva”, “desfamiliarização”, “competência/desempenho”, “fictio”, “semelhança familiar”, “heteroglossia” e,
é claro, “estrutura”, nos seus variados e inúmeros sentidos intercambiáveis. A virada para o sentido, como quer que
tenha sido denominada e expressa, alterou tanto o assunto investigado quanto o sujeito da investigação. (GEERTZ,
2001, p. 27)
3 Gilbert Ryle (1900-1976), filósofo inglês, foi um representante da geração de filósofos britânicos. Ficou reconhecido, principalmente, pela sua
crítica ao dualismo cartesiano, para o qual ele cunhou a frase “o fantasma na máquina”.
O quadro torna-se mais complicado com a hipótese de surgir um terceiro garoto que dá piscadelas
para se divertir e imitar o garoto com tique nervoso. O primeiro garoto não tinha intenção de piscar; o
segundo tinha a intenção de piscar, para se comunicar, de acordo com um código socialmente aceito. Já
o terceiro garoto tinha a intenção de ridicularizar.
Poderia, porém, ocorrer um fingimento e não uma conspiração para o caso do segundo garoto,
com a intenção de levar um inocente a pensar que existia uma conspiração em andamento.
Segundo Ryle, há uma “descrição superficial” para descrever aquilo que de fato cada um dos três
garotos pretende com o seu ato; eles contraem a pálpebra direita por motivos diferentes, distintos.
Ryle chama de descrição densa aquilo que o piscador está fazendo, isto é, praticando uma farsa de um
amigo, imitando uma piscadela para enganar o outro. A descrição densa interpreta aquilo que está
oculto pela epiderme dos atos.
Segundo Geertz, um relato etnográfico deve refletir uma descrição densa feita pelo etnógrafo;
ou seja, ele deve ser capaz de separar as piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas verdadeiras
das imitadas, e as motivações ocultas pelas membranas aparentes. A descrição densa é interpretativa.
Ela interpreta o fluxo do discurso social. A interpretação consiste em salvar o que foi dito num
determinado discurso da sua possibilidade de extinção, e fixá-lo em formas pesquisáveis, mensuráveis.
Dessa forma, a descrição densa deve ser microscópica, no sentido de desvendar as dobras ocultas nos
quadros culturais, e nas relações estabelecidas entre os seus membros.
Para Geertz, essa é a vocação da etnografia, sob a capa da descrição densa. Sua meta é:
[...] uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos das quais os tiques nervosos, as piscadelas, as
falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles
de fato não existiriam (nem mesmo as formas zero de tiques nervosos as quais, como categoria cultural, são tanto não
piscadelas como as piscadelas são não tiques) pálpebras. (GEERTZ, 1989, p. 17)
Trabalho de campo
Clifford James Geertz desenvolveu intensivas e extensivas pesquisas de campo, base de seus
ensaios publicados. Para ele, no início dos seus trabalhos de campo, a metodologia antropológica era
excessivamente abstrata e distanciada da realidade. Essa situação o impulsionou a elaborar uma nova
abordagem metódica de análise das informações e dados colhidos em campo. Foi com essa perspectiva
que ele se lançou ao estudo da religião em Java5.
Nessa linha de trabalho, ele deu robustez ao que mais tarde chamou-se de Antropologia Interpre-
tativa ou Hermenêutica.
Para Geertz, era importante saber o que as pessoas de determinada formação cultural acham que
são, o que fazem; por que fazem e por qual motivo elas creem que fazem o que fazem.
Referindo-se à Hermenêutica, Geertz disse:
4 O Instituto Tecnológico de Massachusetts (Massachusetts Institute of Technology, MIT): centro universitário de educação e pesquisa privado
localizado em Cambridge, Massachusetts, nos EUA. Ele é um dos líderes mundiais em ciência e tecnologia, bem como outros campos como
Administração, Economia, Linguística, Ciência Política e Filosofia. Entre seus proeminentes departamentos e escolas, destacam-se Sloan School
of Management, Lincoln Laboratory, Computer Science and Artificial Intelligence Laboratory, Media Lab e Whitehead Institute. Muitos dos seus
docentes foram laureados pelo Prêmio Nobel.
5 Java (em indonésio, javanês e sundanês Jawa) é a segunda maior e a principal ilha da Indonésia, onde se situa a capital do país, Jakarta.
Ela é muito antiga. Nasceu com: a) a interpretação dos textos sagrados – designados com o nome de exegese, b) a
interpretação dos textos jurídicos, c) a prática da tradução de uma língua para outra. Sua primeira formulação teórica
aconteceu no final do século XVIII com Schleiermacher (pastor protestante, exegeta do Novo Testamento e tradutor de
Platão), depois Dilthey e Nietzsche, que Habermas qualificará de “placa giratória da modernidade”. Mas a hermenêutica
contemporânea só começa realmente com a Linguística e com a Fenomenologia, ou seja, com o livro de Heidegger,
L’Être et le Temps (Paris, Gallimard, 1964) que colocou em evidência o caráter temporal da experiência humana. Hoje,
seus principais representantes são H. G. Gadamer (Vérité et Méthode, Paris, Le Seuil, 1976) que fundou um método qua-
lificado de “dialógico” e Paul Ricoeur (Temps et Récits, Paris, Points-Seuil, 1976) que lançou as bases entre a interpretação
e a narração. O procedimento hermenêutico, que se afirma hoje, em particular, com a reação ao endurecimento de
certas posições estruturalistas, não abrange unicamente a estrita interpretação dos textos. As questões levantadas pela
hermenêutica são atualmente colocadas no campo da Filosofia (cf. Emanuel Levinas assim como a corrente daquilo e
que foi chamado “desconstrução” com a obra de Jacques Derrida (L’Écriture de la Différence, Paris, Lê Seuil, 1967) e seus
alunos norte-americanos) e das Ciências Sociais, assim como no campo da Semiologia (Umberto Eco, L’oeuvre Ouverte,
Paris, Le Seuil, 1965; Les Limites de I’Interprétation, Paris, Grasset, 1992; Roland Barthes, L’Obvie e l’Obtus, Paris, Le Seuil,
1982; da crítica literária (H.R. Jauss, Pour Une Herméneutique Littéraire, Paris, Gallimard, 1988), da psicanálise (P.Ricoeur,
Le Conflit des Interprétations, Paris Le Seuil, 1969), da Antropologia (C. Geertz, Dan Sperber, Le Savoir des Anthropologues,
Paris, Hermann, 1982), e da teoria da tradução (G. Mounin, Les Problèmes Théoriques de la Traduction, Paris Tel/Gallimard,
1990; J.-R Ladmiral, Traduire: Théorème pour la Traduction, Paris, Tel/Gallimard, 1995; A Berman, L’Épreuve de l’Étranger,
Paris, Tel/Gallimard, 1995) que cultivam laços estreitos com a Antropologia. (LAPLANTINE, 2004, p. 108-109)
Geertz concordava com a tese de Lévi-Strauss de que há uma abordagem etnocêntrica6 no estudo
da Antropologia. Para ele, um dos principais riscos do etnocentrismo era o de aprisionar o antropólogo
na sua interpretação pessoal, nas teias dos seus próprios significados. Segundo Geertz, o maior
problema do antropólogo em seus estudos não é o de estranhar o outro (nativo diferente dele), mas o
de se estranhar; estranhar a si mesmo. Geertz aconselhava os antropólogos a fugirem dessa armadilha
conceitual, que se conhecessem melhor, antes de estudarem outras sociedades; outros povos; outras
culturas.
6 Etnocêntrico, adjetivo (etno+cêntrico). Aquele que considera o seu povo ou grupo social como o centro da cultura; é intolerante em relação
a outras culturas; concentra-se sobre uma cultura como interesse ou objeto principal.
7 Interacionismo simbólico: teoria da simbologia utilizada e aceita universamente para indicar atos e situações que possam ser úteis e
necessárias para todo o mundo, pelo menos ser aceita pela imensa maioria da sociedade ocidental, desenvolvida pela chamada “Escola de
Chicago”, nos Estados Unidos.
Geertz define que o objeto da Antropologia é a hierarquia de estruturas significantes. Elas são
estruturas superpostas de inferências, por onde o antropólogo percorre à procura de um caminho para
compreendê-las e interpretá-las. Não é o antropólogo se tornar um “nativo”, mas conversar com eles.
Fazer a etnografia é ler o discurso social por cima dos ombros de quem os escreveu; é enxergar além das
referências imediatas que se apresentam ao olhar do antropólogo.
O fundamental é aprofundar a busca pelas particularidades e as condições de entendimento
das culturas localizadas, e não mais das estruturas, dos processos de pensamento. Essa posição vai de
encontro ao que havia sido proposto por Lévi-Strauss, pois perde a unidade psíquica do pensamento.
Geertz conclui a obra com a observação de que a descrição etnográfica – descrição densa,
microscópica – e a análise cultural são incompletas. Pior: quanto mais profunda é a análise cultural,
menos completa ela será. Entretanto, salienta para os antropólogos que olhar as dimensões simbólicas
8 Arbitrário Cultural: “capital simbólico”; estratégia de poder simbólico e violência simbólica.
da ação social – arte, religião, ideologia, ciência, lei moralidade – não é afastar-se dos dilemas existenciais
da vida, mas mergulhar neles.
A vocação da Antropologia Interpretativa não é responder às questões mais profundas, mas
colocar à disposição as respostas que outros deram e incluí-las no registro de consulta sobre o que o
homem falou de e para si.
Segundo a autora da resenha, esse núcleo de ideias logo se impôs no universo conceitual da
Antropologia. Dessa forma, Geertz surge, pela densidade de sua obra, como uma espécie de líder “não
nomeado” desse efervescente grupo. Lilia Schwarcz destaca o estilo, a estrutura narrativa e o singular
sistema de codificação que emergiam do texto de Geertz.
Em A Interpretação das Culturas, e por meio de uma série de ensaios que iam da religião a um pequeno ritual de briga
9
de galo em Bali, o antropólogo inaugurava um estilo individual e a prática benjaminiana de produzir insights, no lugar
da grande teoria arrumada. Mais uma vez a religião, como uma prática que ensina a sofrer e menos a consolar, aparecia
como tema central no The Religion of Java. Em Negara, o etnógrafo se vestia de historiador e estudava o ritual em uma
sociedade monárquica, na qual os limites entre realidade e representação estavam pouco estabelecidos. Foi a publi-
cação de Local Knowledge que Geertz sinalizou para a possibilidade de entender os antropólogos tal qual uma aldeia,
sujeita a padrões e costumes originais. Provocou a todos quando editou Works and Lives, indicando como, no ambiente
intelectual, não há unaminidade possível. (SCHWARCZ, 2001)
No resumo das atividades desempenhadas por Geertz, Lilia Schwarcz destaca a coragem do
antropólogo de se posicionar nos debates de sua época e retomar a discussão dos grandes temas da
Antropologia, com observações críticas sobre autores e escolas anteriores, “isso tudo sem deixar de
desfazer de seu próprio trajeto pessoal” (SCHWARCZ, 2001).
No livro, Geertz toca em um ponto polêmico do trabalho de campo: a relação entre antropólogo
e informante. Com a palavra, Geertz:
Enquanto elas (as relações entre antropólogo e informante) se mantêm apenas como ficções parciais (portanto, verda-
des parciais) e apenas mais ou menos percebidas (portanto, meio obscuras), a relação progride bem. O antropólogo
apoia-se no valor científico dos dados coletados e talvez num certo alívio pela simples descoberta de que a tarefa não
10
é, afinal, do todo sisífica . Quanto ao informante, seu interesse é mantido por toda uma série de ganhos secundários: a
sensação de ser um colaborador essencial numa empreitada importante, ainda que mal compreendida; o orgulho por
sua própria cultura ou por seu próprio conhecimento dela; a chance de expressar ideias e opiniões pessoais (e passar
adiante boatos do varejo) e uma pessoa neutra, de fora; e também, de novo, algum benefício material direto ou indireto
de um tipo ou de outro. E assim por diante – as recompensas são diferentes praticamente para cada informante. Mas,
se é rompido o acordo implícito de eles se encararem mutuamente, a despeito de sérios indícios do contrário, como
membros do mesmo universo cultural, nenhum desses incentivos mais comuns é capaz de manter a continuidade da
relação por muito tempo. Ela se extingue aos poucos numa atmosfera de inutilidade, tédio e desapontamento geral,
ou, de forma bem menos comum, desmorona subitamente num sentimento mútuo de que se foi enganado, usado e
rejeitado. Quando isso acontece, o antropólogo experimenta uma perda da empatia: o namoro foi rompido. O infor-
mante vê a coisa como uma revelação de má-fé: sente-se humilhado. E mais uma vez eles se encerram em seus mundos
separados, internamente coesos e incomunicáveis. (GEERTZ, 2001, p. 40-41)
Lilia Schwarcz aponta as pinceladas que Geertz se permite sobre sua biografia pessoal (sua passagem
pela marinha), mas aponta, a seguir, o retorno, logo, de sua ampla experiência acadêmica (estudos em
Ohio, estágio no New York Post, a formação em Cambridge, Berkeley) e de campo (Java, Bali, Sumatra e
Marrocos11), e os trinta anos no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, que “levaram à criação con-
junta de um grupo que é hoje referência para todo aquele que se imagine interessado em humanidades”.
Outro aspecto destacado no texto de Lilia Schwarcz é a iconoclastia criativa de Geertz:
Engana-se, porém, aquele que pensa que Geertz apenas desconstrói ideias e conceitos alheios. Ao contrário, várias
bandeiras são levantadas, de maneira mais ou menos direta. Em primeiro lugar, é fácil encontrar a defesa veemente
da etnografia e de uma abordagem cultural. Por sinal, Geertz é o primeiro a buscar por uma dimensão menos vasta
para esse conceito que, ao invés de dar conta de tudo, aparece definido a partir da noção de “consenso”: consenso
entre outros povos, como entre nós. Há ainda uma retomada da discussão sobre o estatuto da dimensão simbólica no
pensamento social e, mais uma vez, a declaração de que o “significado se dá sempre em contexto” e não é, portanto, um
código a ser decifrado de maneira fria e distante. Aí está implícita a crítica, que muitas vezes aparece de modo direto,
ao modelo estruturalista de Claude Lévi-Strauss, que nunca escondeu sua opção pela busca de estruturas distantes da
10 Na mitologia grega: Sísifo, filho do rei Éolo, da Tessália, e Enarete, era considerado o mais astuto de todos os mortais; foi condenado por
toda a eternidade a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava
quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por esse
motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada “Trabalho de Sísifo”.
11 Sumatra ou Samatra é a maior ilha inteiramente na Indonésia (as outras duas ilhas maiores, Bornéu e Nova Guiné, têm territórios parciais
na Indonésia). Marrocos é um país localizado no extremo noroeste da África, estando limitado a norte pelo Estreito de Gibraltar (por onde faz
fronteira com a Espanha), por Ceuta, pelo mar Mediterrâneo e por Melilha, a leste e a sul pela Argélia, a sul pelo Saara Ocidental (território que
controla) e a oeste pelo Oceano Atlântico. A capital do país é a cidade de Rabat.
empiria mais imediata. Nesse duelo de gigantes, não há vencedor definido e por isso mesmo sobra a reflexão, que antes
impulsiona para a convivência crítica, do que leva à opção por uma teoria que exclui as demais. (SCHWARCZ, 2008)
Segundo Lilia Schwarcz, Geertz faz, no livro, o quê promete não fazer, revê temas espinhosos para
a Antropologia, tais como identidade, nação, estado, povo. Ela reproduz a frase de Geertz que diz que o
“antropólogo é um mercador do espanto”, no seu exercício de etnógrafo e na sua produção etnográfica.
“Não é preciso concordar com Geertz, não há como deixar, no entanto, de se entusiasmar com um
pensador que continua duvidando dos seus achados”, diz Lilia Schwarcz (2001).
Por fim, Schwarcz dá ênfase ao aspecto ensaístico do livro. Para ela, o texto é um testemunho
vigoroso da atuação intelectual e de vida experimentado por Geertz, com suas ideias desconcertantes
e provocadoras, que evita a acomodação no campo de reflexão da antropologia, com a negação siste-
mática de modelos metódicos e explicativos.
Mais do que um amontoado de conferências e de ensaios desconexos, esse livro é, portanto, um testemunho de um
intelectual vivo e atuante, que faz de suas ideias instrumentos de reflexão (e de provocação), que evita o comodismo
das personalidades consagradas e que, sobretudo, sabe rir de si próprio. Pena que a editora, que foi tão cuidadosa
na tradução e realizou o mais difícil: deu vazão à maneira original do autor redigir, tenha optado por alterar o título,
introduzindo uma versão mais comportada e que combina pouco com a “boa modéstia” de Geertz. Ao trocar o título
original Available Light: anthropological reflections on philosophical topics por Nova Luz sobre a Antropologia, perdemos
na sutileza, assim como fica-se um pouco distante desse estilo singular de fazer teoria. Afinal, Geertz sempre negou
estar criando modelos, assim como reagiu às homenagens que essencializavam sua Antropologia Interpretativa.
(SCHWARCZ, 2001)
Para ela, “Geertz foi muito longe, apesar de continuar negando seu próprio legado”.
Considerações finais
A Antropologia Interpretativa ou Hermenêutica ampliou o repertório da disciplina antropológica
e problematizou o objeto e sujeito da Antropologia e do etnógrafo em seu trabalho de campo.
Geertz foi um protagonista de peso nesse exercício. Sua principal metáfora, a de ler a sociedade
como um livro, denuncia sua intenção de não correr atrás de leis gerais sobre as sociedades e cultura,
mas interpretar as interpretações dos nativos, para as quais essa cultura e sociedade têm valores distintos
da do antropólogo.
Sua técnica de descrição densa busca ir além das descrições epidérmicas, superficiais, das
sociedades estudadas. Essa leitura microscópica exige mais do que o registro minucioso e criterioso dos
dados obtidos em campo. Ela exige o desvendar das teias interpretativas tecidas pelos membros dessa
sociedade.
A cultura como hierarquização de estruturas significativas mostra-se como um texto a ser
revelado, como as escrituras religiosas ou filosóficas. Um texto não compartilhado entre o escritor e o
leitor; nativo e antropólogo. Lê-lo implica ir além das referências imediatas colocadas à disposição do
antropólogo. Para tanto, faz-se necessário partir do estudo da percepção do nativo dessa cultura. O
arbitrário cultural que dá as regras e compassos dessa cultura são os mediadores, intermediários, para a
apreensão e absorção dos signos e significados de uma determinada cultura.
Apesar da possibilidade de leituras globais e universalizantes da Antropologia Interpretativa,
Geertz salienta que sua meta é a descrição microscópica e que essas micronarrativas e descrições
etnográficas dificultariam as generalizações.
De uma certa forma, essa Antropologia provoca uma ruptura com a vocação da Antropologia
anterior, que procurava as leis e generalizações dos padrões e comportamentos da sociedade e deter-
minava modelos metódicos do fazer e pensar antropológicos.
Tanto na metódica quanto na abordagem, a Antropologia Interpretativa vitaminará, a partir das
produções de Clifford James Geertz, as provocações instigadas pela Antropologia Pós-Moderna, que se
desenha a partir desse quadro de referência.
Texto complementar
A mitologia de um antropólogo
(TSU, 2008)
O que o sr. acha que o futuro reserva aos antropólogos? Na introdução de seu livro, o
sr. diz que está cada vez mais difícil sobreviver à base de Antropologia, as coisas não são
mais como eram. Qual é o campo de trabalho da Antropologia? Bem, não é bem que não dá
para sobreviver com a Antropologia, acho que os antropólogos estão sobrevivendo bem, mas está
ficando mais difícil porque tudo está ficando mais complicado. Nós lidamos com uma gama maior
de sociedades, não apenas as chamadas sociedades simples. Lidamos com sociedades grandes,
como a Índia, o Brasil, o que torna as coisas mais complexas do que quando nós ficávamos restritos
a apenas povos tribais. Em segundo lugar, o mundo é agora muito mais integrado e desenvolvido,
logo, tudo é conectado a tudo o mais de forma bastante complicada. Além disso, há muito mais
pessoas trabalhando nessas áreas, em que antes costumávamos trabalhar sozinhos. Ninguém mais
estava muito interessado nos povos que estudávamos, mas hoje todos estão. Isso faz com que a
Antropologia seja muito mais do que a soma das coisas, em um sentido, mas muito mais difícil de
buscar realizar, em outro.
Mas qual seria o dever dos antropólogos? Não creio que possamos fazer muito mais do
que seguir do jeito que estamos e continuar a pensar no que estamos fazendo e qual a nossa
contribuição particular – o tipo de contribuição que a Antropologia pode de fato dar eficazmente.
A Antropologia não pode mais ser uma ciência completamente geral, que estuda tudo, que diz
estudar o “Homem”. Ela tem que perceber qual é, em um lugar como a Índia, ou a Indonésia, ou
o Marrocos, ou o Brasil, o seu papel particular em interpretar o que ocorre – isso ao lado de outras
disciplinas, como Economia, Política, História, Literatura. Tudo isso deve ser levado em consideração,
e a Antropologia deve encontrar seu lugar e sua contribuição em meio a esses outros campos.
Como o sr. se envolveu com a Antropologia? Eu fiz faculdade depois da guerra – depois da
Segunda Guerra Mundial – e estudei Inglês e Filosofia por uns tempos. E então, quando decidi fazer
a pós-graduação, um de meus professores sugeriu que eu poderia me interessar por Antropologia,
em particular a que estava então sendo ensinada em Harvard, porque em Harvard estava sendo
ensinada como parte de um departamento multidisciplinar, chamado Relações Sociais. Nesse
departamento, estavam reunidas as disciplinas de Antropologia, Sociologia, Psicologia Social e
Psicologia. Então eu fiz isso e foi assim que entrei para a Antropologia.
O sr. acredita que a Antropologia Cultural, a chamada Antropologia Hermenêutica, pode
ser considerada uma ciência? Claude Lévi-Strauss diria que o tipo de Antropologia praticada
pelo sr. não é Antropologia, e sim etnografia. Devo dizer que não sou da mesma categoria que
Claude, mas não acho essa questão particularmente importante. Não me importa se ele a chama
de ciência ou não, eu mesmo acredito que seja, mas isso depende do que significa “ciência”. Lévi-
-Strauss certamente está certo ao dizer que a Antropologia Cultural não segue o mesmo modelo
que as ciências naturais, mas eu acredito que seja empírica, sistemática, tente desenvolver argu-
mentos que possam ser ao menos confrontados com provas. Ela vai atrás de um objetivo mais ou
menos específico... Por isso não vejo motivo para não chamá-la de ciência, mas concordo que não
como a Física ou a Química etc. Porém não vejo por que compará-la à Física. Eu mesmo não acho
que a questão de como chamá-la seja tão importante.
Então, para ela ser vista como ciência, não é necessário que a chamemos de ciência. Supo-
nho que não. É, não precisa. Eu costumo fazê-lo, bem, por questões políticas.
Parafraseando Max Weber, a Antropologia, tanto em campo quanto na academia, é uma
vocação? Com certeza é uma vocação para mim, tem sido assim nos últimos 50 anos. Espero que
continue a ser, sim, é um compromisso, é mais do que um simples trabalho ou um lugar para se
receber um salário. Eu tento, suponho, melhorar as comunicações entre as pessoas, a compreensão
entre as pessoas. Portanto acredito que seja uma vocação. Nem todos na Antropologia estão com-
prometidos com ela como se fosse uma vocação, mas os melhores estão.
ordem neoliberal geral, simultaneamente ocorre uma reação contra isso, que busca aumentar
autoexpressões culturais. Acho que devemos usar esse paradoxo para entender exatamente o que
acontece. Não me parece que nem a ideia de o mundo inteiro estar meio que subsumido em uma
única hegemonia nem a noção de “cada um é seu próprio eu” se imporão. Não sei bem o que dizer
sobre a globalização como processo, a globalização é um fato, está ocorrendo, o gado atravessa
o mundo, há muita comunicação etc., mas não acho que isso ocorra sem paralelos, sem outros
movimentos em direções opostas.
Então o sr. não concorda que a globalização seja um movimento avassalador de culturas
“menores”? Não, na verdade, não concordo. Bem, não sei como tudo isso terminará – quem é
que sabe isso? Mas o que eu sinto é que essas culturas são realmente fortes e, em certo grau, são
estimuladas pela própria globalização a se tornarem ainda mais fortes. Não creio que elas serão
esmagadas, embora muita gente ache que sim.
O sr. tem uma visão otimista do futuro... Não diria que é uma visão otimista, mas que ao menos
esse tipo de pessimismo não é o meu. Tenho meu próprio tipo de pessimismo, que não é esse.
E qual é o seu tipo de pessimismo? Eu não tenho, estava brincando. Eu não acho que o mundo
esteja prestes a se tornar, por completo, um tipo de hegemonia neoliberal baseada nos Estados
Unidos. Há certamente pessoas que querem isso e alguns cientistas em alguns lugares que dizem
que isso acontecerá, mas creio que há vários motivos para questionar isso. Não acredito que o neo-
liberalismo vá subjugar todo o mundo. Bem, temos que ver, temos que esperar a história e ver.
Existe algum episódio de seu trabalho de campo que o sr. recorde como particularmente
interessante? Fiz muito trabalho de campo e sempre me diverti muito com ele. O primeiro de todos,
ir por dois anos e meio a Java, foi bem excitante. Depois fui para Bali por um ano e depois para o
Marrocos por vários anos. E então estive de volta a Java, a Bali, ao Marrocos... O trabalho de campo
foi seguramente um dos pontos altos da minha vida.
Gostaria que o sr. contasse um caso específico, uma história anedótica...Escrevi sobre
praticamente todos os eventos anedóticos que me aconteceram, é difícil me lembrar de algum
específico agora. O trabalho, depois de feito, quando olhamos para ele, é semiautobiográfico, ao
menos em parte. E no meu trabalho eu já contei uma série de histórias, coisas que me aconteceram:
ter sido surpreendido em plena guerra civil na Sumatra, ter-me envolvido com certas pessoas no
Marrocos...
Até que ponto a sociedade a que se pertence e aquela na qual se faz o trabalho de
campo influem no trabalho dos antropólogos? Não há dúvida quanto a isso, todos nós somos,
como se diz hoje, “observadores situados”. A única coisa que se pode fazer a respeito é ter a maior
consciência possível desse fato e pensar nisso, não assumir que o modo como vemos as coisas é o
modo como as coisas simplesmente são, mas entender. Sim, obviamente, um antropólogo norte-
-americano ou um brasileiro ou um francês verão as coisas de uma maneira algo diferente, e uma das
razões é o contexto cultural do qual eles vêm, do qual extraem suas percepções e seus princípios.
Não há nada de errado nisso, é inevitável, o erro ocorre quando as pessoas não se conscientizam
disso e simplesmente assumem que qualquer sensação que têm não precisa ser confrontada com
a realidade. Claro, não há nada semelhante a um observador totalmente neutro e abstrato. Isso não
é tão fatal quanto pode soar, só significa que é preciso pensar sobre de onde as pessoas vêm, onde
elas estão trabalhando etc.
Atividades
1. Segundo a interpretação de Clifford Geertz, como se dá a organização das sociedades?
2. Por que a Teoria Antropológica Interpretativa possibilita a leitura da sociedade como um texto?
Referências
BERMAN, M. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989.
GEERTZ, C. A Interpretação da Cultura. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
_____. O Saber Local – novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998.
LAPLANTINE, F. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
SCHWARCZ, L. K. M. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
_____. Negras Imagens: ensaio sobre Cultura e Escravidão no Brasil. In: SCHWARCZ, L. M.; QUEIROZ, R. da
S. (Orgs.). Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp/Estação Ciência, 1996.
_____. As teorias raciais, uma construção histórica de finais do século XIX. O contexto brasileiro. In:
SCHWARCZ, L. M.; QUEIROZ, R. da S. (Orgs.). Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp/Estação Ciência,
1996.
_____. Mercadores do espanto: a prática antropológica na visão travessa de Clifford Geertz. In: Revista
de Antropologia, São Paulo, v. 44, n. 1, 2001. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt
ext&pid=S003477012001=000100012). Acesso em: 20 ago. 2012.
TSU, V. A. A Mitologia de um Antropólogo. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/
fs1802200103.htm>. Acesso em: 20 ago. 2012.
Gabarito
1. O antropólogo Clifford Geertz observou que a organização das sociedades está centrada na
cultura e essa possui um sistema de signos de poder que estabelecem eficazes formas de controle
social.
3. Clifford Geertz inaugura a Antropologia Interpretativa provocando a ruptura do que ele chamou
de “provincialismo cultural” – padrões generalizados da sociedade – o que limitava o estudo dos
elementos das culturas que devem ser entendidos, interpretados.
1 Polissemia (poli, vários; semia, significado) Vários significados para uma mesma palavra; propriedade que uma mesma palavra tem de
apresentar vários significados. Polifonia é o fenômeno também conhecido como heterogeneidade enunciativa, que pode ser mostrada ou
constitutiva; simultaneidade de vozes ou sons; intertextualidade; interdiscursividade.
Novos cenários
A Antropologia Pós-Moderna, ao atingir de frente esses pilares, atinge também dois pressupostos
caros à Antropologia, na qualidade de ciência: o método de abordagem, na qual o antropólogo é um
observador privilegiado no campo de trabalho, sem se envolver com o seu objeto ou sujeito de estudo,
e a sua autoridade de cientista qualificado para uma observação neutra e distante, para não ter seu
relato etnográfico contaminado pelos seus valores.
Esses foram os pilares fincados nos primórdios da Antropologia, quando ela reivindicava sua
competência científica.
O antropólogo francês François Laplantine apontou essa mudança de viés (1987). Para ele, um
dos precursores dessa abordagem foi Georges Balandier. Em sua obra, Balandier traçava as linhas do
que chamou de Antropologia da Modernidade.
Segundo Laplantine, uma das maiores contribuições dessa abordagem antropológica foi ajudar
no deslocamento do foco da Antropologia, tirando-o das investigações tradicionais dos etnógrafos, e
de abrir novos focos de investigação. O antropólogo destaca como lócus especial, a cidade.
De acordo com Laplantine:
Correlativamente, essa Antropologia da Modernidade (segundo a expressão de Balandier), que instaura uma ruptura
com a tendência intelectualista da etnologia francesa, leva o pesquisador a interessar-se diretamente pela sua própria
sociedade. Finalmente, enfatizando a realidade conflitual das situações de dependência (econômica, tecnológica,
militar, linguística...), ela não opera apenas uma transformação do objeto de estudo, mas inicia uma verdadeira mutação
da prática da pesquisa. (LAPLANTINE, 1987, p. 146)
Laplantine aponta também para a ruptura metodológica proposta por essa nova abordagem
antropológica, em especial em relação ao antropólogo, ao etnógrafo. Ele passa a ser aquele que é
capaz de viver nele mesmo a tendência principal da cultura que estuda. O etnógrafo não se isenta
das circunstâncias que modelam a sociedade que ele estuda. Se as preocupações da sociedade são
religiosas, “ele próprio deve rezar com os seus hóspedes” (LAPLANTINE, 1987, p. 150).
Assim, a etnografia é antes a experiência de uma imersão total, consistindo em uma verdadeira aculturação invertida, na
qual, longe de compreender uma sociedade apenas em suas manifestações “exteriores” (Durkheim), devo interiorizá-la
nas significações que os próprios indivíduos atribuem a seus comportamentos [...]. Essa apreensão da sociedade tal
como é percebida de dentro pelos atores sociais com os quais mantenho uma relação direta (apreensão esta, que não
é de forma alguma exclusiva da evidenciação daquilo que lhes escapa, mas que, pelo contrário, abre caminho para essa
etapa ulterior da pesquisa), é que distingue essencialmente a prática etnográfica – prática de campo – da do historiador
ou do sociólogo. (LAPLANTINE, 1987, p. 150)
Essa abordagem dá uma fisionomia própria para a Antropologia, que a distingue de outras
disciplinas das ciências humanas (História e Sociologia). Isso ocorre, de acordo com Laplantine, porque a
Antropologia só se dá com a descoberta etnográfica. Ou seja, com uma experiência direta que comporta
uma parte de aventura pessoal, no corpo a corpo do trabalho de campo (LAPLANTINE, 1987, p. 151).
A abordagem microssociológica passa a dar atenção aos resíduos considerados pouco dignos
de abordagens científicas. Ela provoca uma certa inversão temática, e passa a investigar as pequenas
ocorrências do cotidiano.
O etnógrafo interessa-se pelas condutas e comportamentos comuns, ordinários, cotidiano, tais
como os gestos, expressões corporais, hábitos alimentares e de higiene, o ruído e silêncio da cidade,
vestuário, poética urbana e rural.
Diferente da Antropologia Clássica do final do século XIX e início do século XX, essa Antropologia
não está à busca de leis gerais, comportamentos uniformes da sociedade, mas no foco micrológico de
suas experiências cotidianas.
Sobre essa angulação surgida no campo da etnografia, Laplantine diz:
O que me parece importante sublinhar, finalmente, é que grande parte da renovação das ciências humanas contempo-
râneas deve-se incontestavelmente a sua abertura para nossa disciplina, que as influenciou (direta ou indiretamente)
designando-lhes novos terrenos de investigação e convencendo-as de que não deve haver, na prática científica, objeto
tabu [...] (LAPLANTINE, 1987, p. 155)
A corrente que se denomina etnografia experimental centra seu estudo nas condições de obser-
vação participante do etnógrafo no campo de pesquisa, e nas suas relações com os sujeitos da pesqui-
sa. Muitos dos pressupostos erigidos na década de 1920 (do século passado) tais como neutralidade
axiológica, impessoalidade, imparcialidade, objetividade, em relação à observação participante, serão
revistos por essa corrente, que problematiza a complexa relação do etnógrafo com o sujeito de sua
observação antropológica.
Segundo Laplantine, a tensão se desloca para a relação mostrar versus demonstrar. Mais do que a
descrição cirúrgica de uma dada realidade, passa a ser fundamental a compreensão. Explicar, dentro do uni-
verso proposto nos anos 1920, não era mais o fundamental. A compreensão do quadro passa a ser determi-
nante. Isso muda a relação do antropólogo com a cultura que estuda, e os seus procedimentos em campo.
Não foi a Antropologia que fundou a etnografia, mas sim o contrário, a tal ponto que alguns mestres de nossa disciplina
(penso em particular em Boas) consideram que qualquer síntese é sempre prematura e que muitos daqueles que, no
período contemporâneo, mais contribuíram para renovar a pesquisa, incluindo a pesquisa teórica – James Clifford nos
Estados Unidos, Jeanne Favret-Saada na França –, preferem qualificar-se de “etnógrafos”. Devemos enfim lembrar aqui
que a descrição etnográfica, que consiste mais em apresentar do que em representar, não se limita unicamente à sua
modalidade textual. Ela opera hoje em um dos campos em maior expansão na nossa disciplina, que é o campo da
museologia, uma atividade de conservação, de exposição e de restituição. (LAPLANTINE, 2004, p. 116)
Uma terceira corrente tida como vanguarda pós-moderna foca a crise dos pressupostos científicos
em geral, a crise dos paradigmas científicos, dos modelos teóricos e da prática científica.
Nessa linha de abordagem, advoga-se que tudo é possível no texto e no trabalho de campo, no
pensar e fazer antropológicos, desde que se promova uma ruptura com os procedimentos – conceituais
e operacionais – adotados no passado da Antropologia.
De modo elástico, pode-se considerar que a denominada Antropologia Pós-Moderna ou Crítica
lança seus holofotes conceituais para a questão do texto etnográfico – sua arquitetura e essência – para
a problematização da complexa relação entre o etnógrafo e o sujeito observado, e nas possibilidades
apresentadas no trabalho de campo – pensar e fazer – desde que se adote novos procedimentos que
impliquem ruptura com os procedimentos adotados pelas correntes antropológicas anteriores.
Em síntese, essa corrente propõe, em linhas gerais, a ruptura com os procedimentos historicamente
construídos pela disciplina, desde os seus primórdios, na metade do século XIX, quando a disciplina passa
a reivindicar um status científico, no âmbito das ciências humanas: desmistificação da etnografia clássica
como forma de produção de conhecimento da realidade factual; crítica à autoridade etnográfica; adoção
da experiência pessoal do etnógrafo à margem da teoria científica; admissão da intersubjetividade na
relação do etnógrafo com os informantes no trabalho de campo; admissão da influência do cenário onde se
desdobram a pesquisa nos dados coletados e as limitações impostas ao registro etnográfico; e, um aspecto
central, a crítica à determinação de leis gerais para a compreensão do arco cultural das sociedades.
Como linha de defesa, a crítica concentra-se nos pressupostos do positivismo científico4 (base da
ruptura científica da Antropologia, com o período especulativo anterior), do reducionismo5 (restrição da
complexidade e diversidade humana) e do empirismo6. Em contrapartida a esses legados, a Antropologia
Pós-Moderna reivindica um posicionamento humanista para o pensar e fazer antropológicos, com
ênfase ao caráter provisório – precários, transitórios, parciais – da análise cultural.
4 Positivismo científico: conceito que advoga o primado da ciência no processo de construção do conhecimento; proclama-se como o
verdadeiro saber científico.
5 Reducionismo: nome das teorias correlatas que defendem, em geral, que objetos, fenômenos, teorias e significados complexos podem ser
sempre reduzidos, a fim de explicá-los, à suas partes constituintes mais simples.
6 Empirismo: teoria que defende que todo o conhecimento deriva da observação e da experiência factual, concreta, real.
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
Antropologia Pós-Moderna ou Crítica | 173
7 Maurice Leenhardt (1878-1954); pastor protestante francês e etnógrafo. Teve um papel pioneiro na Antropologia francesa. Atuou como
missionário e etnógrafo na Melanésia, entre 1920 e 1930.
privilegiado de investigação científica antropológica. Segundo ele, há uma forte equivalência entre o
etnógrafo e o seu informante de campo. A barreira instransponível que separava o antropólogo do nativo
rui ante a perspectiva apresentada pela reflexão de Clifford.
O livro mostrou-se provocativo no campo da Antropologia Cultural ao propor que a dimensão
literária é uma base constitutiva do discurso etnográfico e ao indicar uma equivalência radical entre
o etnógrafo e o informante. A construção do discurso antropológico até então “viajou” em direção
contrária: a cientificidade – neutralidade e objetividade – do discurso etnográfico e, para tais fins, a
separação cirúrgica – imparcialidade – entre o etnógrafo e o seu informante.
8 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832); escritor alemão, cientista, filósofo e botânico. Goethe foi uma das personagens mais importantes
da literatura alemã e do Romantismo europeu (século XVIII e inícios do século XIX).
Essa arquitetura do olhar guarda relação direta com o Surrealismo – forma de percepção da reali-
dade – e com a etnografia – modo de ver a realidade, em movimento, plena de plasticidade e contornos
diversos.
Para Clifford, o ambiente cultural dos anos 1920 e 1930 de Paris provoca uma série de coinci-
dências entre os dois “métodos-movimentos” – Surrealismo e etnografia: lugares, nomes e livros são
comuns em ambas formas de observação: “A etnografia, a ciência do risco cultural, pressupõe um cons-
tante desejo de ser surpreendido, de desfazer sínteses interpretativas e valorizar – quando surge – o
inclassificável, o inesperado outro” (CLIFFORD, 1998, p. 169).
O antropólogo norte-americano persegue as interfaces entre o Surrealismo e a etnografia. Para
ele, o Surrealismo é “cúmplice secreto” da etnografia, na descrição – registro – na análise e na extensão
das “bases de expressão e do sentido no século XX” (CLIFFORD, 1998, p. 137).
Mais: os pensadores e poetas surrealistas se interessavam pelo mundo exótico, imponderável,
de uma certa Paris oculta. Suas peregrinações tornavam o familiar, estranho. Nessa ordem de fatores,
os surrealistas caminhavam na contramão dos etnógrafos, que procuravam tornar o não familiar em
família.
Essa característica dos surrealistas não passará despercebida por outro comentador da obra de
Benjamin, Sergio Paulo Rouanet. Em uma passagem de seu livro, As Razões do Iluminismo, Rouanet
explicita esse aspecto da obra “benjaminiana”:
A primeira seção de Paris, capital do século XIX, descreve o surgimento das passagens, a partir de 1922, essas galerias
recobertas de vidro, com paredes de mármore, ladeadas de lojas luxuosas, perfuradas entre blocos de casas, que
segundo a descrição de um guia da época constituíam “uma cidade, um mundo em miniatura”. A condição social do
aparecimento das passagens foi o florescimento da indústria têxtil, que leva, simultaneamente com as passagens, à
fundação dos primeiros “grandes magazines”, e a condição técnica é a utilização do ferro e do vidro como materiais
de construção. Assim como o Império, período em que esse material começou a ser usado, desconhecia a natureza do
estado como instrumento de dominação da burguesia, os primeiros construtores desconheceram a natureza inovadora
do ferro e o utilizaram para edificar suportes semelhantes a colunas de Pompeia, da mesma maneira que mais tarde
as estações ferroviárias imitariam chalés [...] As passagens, que na vida real serviam a fins mercantis, transformaram-se,
nos falanstérios, em lugares de moradia: o falanstério é uma cidade de passagens. (ROUANET, 1987, p. 51-52)
Esse aparente paradoxo é provocado pelo jogo contínuo entre familiar e estranho, do qual a et-
nografia e o Surrealismo faziam parte.
Segundo Clifford, as interpretações dos antropólogos tradicionais são inadequadas para o estudo
dos grupos à margem, quando esses entram em espaços históricos ou etnográficos. Suas trajetórias
humanas não resistem às pressões provocadas pelo capitalismo: suas características singulares, parti-
culares estavam presas aos seus passados tradicionais, sem conseguir produzir o novo, não inventavam
mais o seu futuro; o seu amanhã.
Por essa razão, essa Antropologia Tradicional era ineficaz na capturação dos aspectos particulares
desses grupos marginais.
Clifford se opõe ao conceito de uma cultura enlatada. Para ele, a cultura é um diálogo aberto, um
diálogo criativo e inovador, com subculturas e vetores em diversas direções.
Com essas características de cultura, em processo de ebulição e transformações, como a Paris da
década de 1920, a convergência do “olhar” e do interesse pelo exótico confluíam as miras dos surrealistas
e dos etnógrafos para experimentações comuns.
9 A Escola de Frankfurt surgiu da iniciativa de um grupo de pensadores alemães, em 1923, com o nome de Instituto de Pesquisa Social de
Frankfurt. O objetivo do instituto era fazer uma crítica da sociedade, em geral: aspectos econômicos, culturais e de produção de conhecimento,
a partir de uma perspectiva marxista (Karl Marx, pensador revolucionário alemão, 1818-1883) renovada. Os principais membros da Escola de
Frankfurt foram Walter Benjamin (1892-1940), Max Horkheimer (1895-1973), Herbert Marcuse (1898-1979), Theodor W. Adorno (1903-1969) e,
mais recente, Karl-Otto Apel e Jurgen Habermas, como sua segunda geração.
O livro é dividido em duas partes, segundo Taussig: terror e cura. Para o autor:
[...] esses temas se comunicam na política da obscuridade epistemológica e na ficção do real, na criação dos índios, no
papel desempenhado pelo mito e pela magia em relação à violência colonial, bem como em relação à cura e no modo
como ela pode mobilizar o terror a fim de subverter essa violência, não através de catarses celestiais, mas fazendo com
que o poder se enrede em sua própria desordem. (TAUSSIG, 1993, p. 15)
Taussig se interessa pela interpretação e a representação desses fatos no universo imaginário dos
índios. Com base na teoria de Walter Benjamin – “a história que mostrava as coisas como elas ‘realmente
foram’ revelou-se o narcótico mais forte do nosso século” – (TAUSSIG, 1993, p. 15). O autor centra-se na
narrativa histórica clássica e no poder imaginativo enfeixado nessas narrativas.
O pensamento de Benjamin cai como uma luva nessa nova arquitetura de narrar. Em O Narrador,
Benjamin dá as métricas da narração, que se aproxima, observado pelos etnógrafos pós-modernos, da
narrativa etnográfica crítica, mistura de objetividade e subjetividade descritivas.
A experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narradores. E, entre os que escreveram
histórias, os grandes são aqueles cuja escrita menos se distingue do discurso dos inúmeros narradores anônimos.
Entre estes últimos, aliás, há dois grupos que certamente se cruzam de maneiras diversas [...] Se se quer personificar
esses dois grupos nos seus representantes arcaicos, então um está encarnado no lavrador sedentário e o outro no
marinheiro mercante. [...] O mestre sedentário e os aprendizes volantes laboravam juntos nas mesmas oficinas e todo
mestre fora aprendiz volante antes de se haver estabelecido em sua terra ou fora dela. Se camponeses e homens do
mar tinham sido velhos mestres da narração, a condição de artífice era sua academia. Nela se unia o conhecimento
do lugar distante, como o traz para casa o homem viajado, como conhecimento do passado, da forma como este se
oferece de preferência ao sedentário. (BENJAMIN, 1980, p. 58)
A narrativa toma uma forma alegórica. Mais uma vez, Taussig dá a palavra a Benjamin: “O valor
dos fragmentos do pensamento é tanto maior quanto menos direto for o seu relacionamento com a
ideia subjacente, e o brilho da representação depende desse valor tanto quanto o brilho do mosaico
depende da qualidade da pasta de vidro” (TAUSSIG, 1993, p. 20).
Taussig procura a subjetividade do relato, mais do que uma suposta objetividade. A própria cons-
trução do texto mostra-se uma parte importante dessa forma de pensar e fazer antropológicos. O autor
experimenta uma aproximação intensa entre literatura e etnografia, na construção da narrativa antro-
pológica.
Taussig persegue a alegoria do terror pelo olhar de um preso em sua cela o espaço da morte: o
aprisionamento, a perda do contato com a realidade, o bloqueio do olhar. Segundo Taussig: “A maior
parte de nós conhece e teme a tortura unicamente por meio das palavras dos outros. Por isso preocupo-
-me com a mediação do terror escrevendo eficazmente contra o terror” (TAUSSIG, 1993, p. 25).
Para reproduzir uma experiência não vivida por ele, Taussig procura arquitetar, seguindo as experi-
ências pós-modernas, um texto polifônico, com diversas vozes se intercalando e se sobrepondo, na cons-
trução de sua narrativa, como uma construção coletiva. Taussig denuncia o caráter alegórico dessa
construção, baseada na experiência literária, como tela de fundo. Nesse vai e vem, literatura se imiscui
com etnografia, que se imiscui com literatura, num movimento pendular.
A prisão torna-se a alegoria de uma sociedade onde a tortura é comum, e a população fica à
mercê dos seus algozes. Assim, no presente, a prisão se transfigura naquilo que foi no passado colonial,
em usina de tortura e fragilização físico e impositivo de um pequeno número de europeus sobre a
imensa maioria dos nativos.
Para ilustrar essa ideia, Taussig recorre a uma história chilena (o Imbuche):
[...] existe no campo chileno uma velha história sobre o que acontece quando uma criança é raptada pelas bruxas.
A fim de quebrar a vontade da criança, as bruxas quebram seus ossos e costuram as partes do corpo de maneira anormal.
A cabeça é virada para trás, de tal modo que a criança tem que andar de ré. As orelhas, os olhos e a boca são costurados.
Essa criatura, que recebe o nome de Imbuche, é usada como analogia para a relação entre a junta militar e o povo
chileno. (TAUSSIG, 1993, p. 26)
A alegoria é direta: para submeter o povo chileno, o governo militar “quebra os ossos da resistência”,
e transforma o povo chileno num fantoche de retalhos.
Em sua obra, Taussig convoca as ideias de Artaud10 (“Se a confusão é sinal dos tempos, vejo na raiz
dessa confusão uma ruptura entre as coisas e o mundo, entre as coisas e as ideias e signos que cons-
tituem sua representação”), Joseph Conrad11 (O coração das trevas), Foucault12, o embaixador inglês
Casement13, entre outros, para pintar o “espaço da morte”.
Taussig mobiliza os recursos conceituais da crítica literária e das possibilidades dadas pela lite-
ratura – polifonia, polissemia, alegoria – para, dentro de um universo povoado pela narrativa oral dos
índios colombianos, traçar um painel social do terror – a tortura sistemática do colonizador sobre o
nativo – e a cura – ação xamânica praticada por esse povo.
A narrativa se desdobra num contexto histórico em que se mesclam subjetividade e objetividade
factual do etnógrafo e do nativo, de forma alegórica.
Em síntese, nessa obra singular, Taussig, ao trabalhar com a imagem do xamã, revela que não é
sua magia, mas as ficções politizadoras ou politizadas é que criam o efeito da realidade.
Considerações finais
Com as bases teóricas propostas pelos etnógrafos pós-modernos, o debate na Antropologia
ganhou novos contornos e dimensões conceituais, na década de 1980.
Essa nova abordagem proposta sacudiu os pressupostos históricos da disciplina, erigidos nas
primeiras décadas do século passado, e indicou novas possibilidades teóricas: a interpretação da
realidade factual como possibilidade e não como algo determinado.
Por esse ângulo, cabem as subjetividades do etnógrafo e a do observado, questão impensável
para a metódica e metodologia da década de 1920.
Os seus mentores passam a exercitar a metaetnografia, em que a própria produção etnográfica
passa a ser analisada. Isso leva a etnografia a flertar com a crítica literária e com a tessitura do texto
literário: estilo, estrutura narrativa e sistemas de codificação etnográficos.
10 Antoine Marie Joseph Artaud (1896-1948) foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês. Ligado ao Surrealismo,
foi expulso do movimento por ser contrário à filiação ao partido comunista. Sua obra O Teatro e seu Duplo é um dos principais escritos sobre a
arte do teatro no século XX.
11 Joseph Conrad, nome verdadeiro Józef Teodor Nałęcz Korzeniowski (1857-1924), escritor britânico de origem polonesa.
12 Michel Foucault (1926-1984), filósofo e professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France desde 1970 a
1984. Autor de História da Loucura e História da Sexualidade. Uma de suas obras mais importantes é Vigiar e Punir.
13 Roger David Casement (1864-1916), patriota irlandês, poeta, revolucionário e nacionalista irlandês e diplomata inglês. Denunciou os abusos
dos direitos humanos no Congo e no Peru por empresas de extração de borracha.
Os estudos dos resíduos considerados indignos pelas ciências humanas são estimulados, como
forma de apreensão do contexto estudado e de sua compreensão, além das relações epidérmicas, de
pele, exteriores.
Um conjunto de ideias passa a ser privilegiado por essa etnografia: debate sobre a forma do
discurso etnográfico e suas implicações para a apreensão da realidade; politização da relação etnógrafo
versus observado, e ruptura com a reivindicada neutralidade axiológica do pesquisador no campo de
trabalho; relativização da autoridade do etnógrafo em relação à cultura estudada, onde se apresenta
uma equivalência quase que radical entre o etnógrafo e o “nativo”; o destaque ao caráter polissêmico
da cultura.
A Antropologia Pós-Moderna propõe a revisão de vários aspectos centrais da disciplina e, por
essa razão, contribui com a ampliação do espectro de abordagem etnográfica das suas possibilidades
de apreensão e compreensão.
Texto complementar
A etnografia como gênero literário
(GOMES JÚNIOR, 2008)
É oportuna a publicação deste livro do historiador James Clifford, coletânea de ensaios organi-
zada por José Reginaldo Santos Gonçalves, que assina a apresentação e conduz uma esclarecedora
entrevista com o autor no final do volume. Conhecido nos meios antropológicos brasileiros há pelo
menos uma década, faltava uma edição que desse conta, ao menos em parte, de seu trabalho acerca
da história das ideias e das práticas que caracterizaram a antropologia do século XX.
O editor brasileiro optou por não traduzir nenhum dos livros publicados originalmente pelo
autor, mas, dos seis ensaios de A Experiência Etnográfica, quatro constam da coletânea de 1988, The
Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature and Art. Cabe uma dúvida quanto
a essa opção: apesar de Clifford declarar na “Introdução” o caráter exploratório e inacabado da
coletânea de 1988, os ensaios que lá estão travam entre si um nítido diálogo, como, por exemplo,
On Ethnographic Surrealism e On Collecting Art and Culture. A despeito da natureza complementar
dos dois textos, apenas o primeiro é traduzido. Além disso, perdem-se, entre outros, escritos sobre
Victor Ségalen, Michel Leiris, Aimé Césaire e Edward Said.
Apesar de suas muitas facetas é possível distinguir no livro dois blocos. O primeiro, composto
por “Sobre a Autoridade Etnográfica”, “Sobre a Alegoria Etnográfica” e “Sobre a Automodelagem
Etnográfica: Conrad e Malinowski”, é talvez o que já produziu mais ressonâncias no Brasil, pois
apresenta uma visão crítica, bastante ampla, tanto das práticas de campo quanto das práticas
textuais que dominaram a Antropologia no século XX. Já o segundo bloco tem a aparência de
ser mais restrito, pois versa especificamente sobre a Antropologia francesa entre as duas grandes
guerras e traz ensaios que tratam das relações do Surrealismo com a etnografia e das experiências
de campo de Marcel Griaule e Maurice Leenhardt, nomes menos conhecidos fora da França. Mas,
apesar da especificidade, são um contraponto bastante interessante ao consenso etnográfico
dissecado nos primeiros ensaios do livro.
No começo do século, constituiu-se uma rotina que modelou o perfil do antropólogo profis-
sional, de forma quase hegemônica, até os anos 1960. A antiga separação entre o pesquisador de
campo e o antropólogo foi posta em questão e a experiência de campo (visto como uma espécie
de laboratório), com forte caráter iniciático, tornou-se uma exigência. Malinowski em Trobriand foi
o modelo para as gerações futuras: um pesquisador solitário em meio aos nativos, dominando sua
língua e atento para as rotinas da vida cotidiana, tornava-se apto para produzir um conhecimento
holístico da sociedade em questão. Conhecimento com um duplo fim: por um lado, serviria de base
para a ciência do Homem; por outro, garantiria o registro que funcionaria como sucedâneo para
uma perda irreparável. Os trobriandeses desapareceriam enquanto tal, mas o registro do etnógrafo
resgataria a memória que eles, ágrafos, seriam incapazes de preservar, o que, para Clifford, consti-
tui-se numa das pedras angulares da Antropologia do século XX: a construção retórica da ideia do
primitivo em extinção.
Os povos que fizeram a fortuna do pensamento antropológico foram assim constituídos
enquanto entidades isoladas e descritos em um estado de pretensa pureza. Bastante preocupado em
não ser confundido com o missionário, o viajante ou o funcionário do governo colonial, o etnógrafo
buscou construir em torno de si mesmo a aura de uma experiência voltada para um conhecimento
objetivo. Para isso, uma estratégia textual decisiva dizia respeito ao apagamento dos indícios que
pudessem macular a pureza do encontro entre o pesquisador e os nativos: nada era dito sobre os
preparativos da expedição, sobre a eventual posição de força do governo colonial propiciando a
estada do etnógrafo, ou sobre as interferências decisivas dos informantes nativos. E ficava de fora,
principalmente, o intenso processo subjetivo, pleno de ambivalências, vivenciado pelo etnógrafo. O
caráter negociado, polifônico, tateante, do conhecimento produzido em campo dava lugar no texto
a um monólogo autoral com um mínimo de fissuras.
Pressionado pelas transformações decorrentes da descolonização e da emergência dos
movimentos das minorias e dos direitos civis, esse modelo começou a viver seu ocaso a partir
dos anos 1960. Nesse novo cenário, marcado por um intenso translado de povos, de experiências
e saberes, produziu-se uma fabulosa multiplicação de vozes, e o monólogo que caracterizou a
etnografia até então passou a soar como um anacronismo.
De forma bastante abreviada, é esse o eixo de preocupações que conduz a primeira parte de
A Experiência Etnográfica e que se constitui no núcleo mais conhecido do pensamento de Clifford.
Mas há que se falar também de seus estudos franceses.
Até recentemente, a tradição francesa esteve como que sob suspeita, já que suas mais respei-
táveis figuras do campo antropológico, Mauss e Lévi-Strauss, não seguiram os protocolos hegemô-
nicos da Antropologia Anglo-Americana.
O primeiro foi um grande incentivador da pesquisa de campo, mas não a praticou; o segundo,
apesar de ter escrito um dos mais famosos livros no qual a aventura etnográfica ocupa o centro,
não fez no interior do Brasil quase nada daquilo que a rotina etnográfica dos anos 1930 prescrevia.
No que diz respeito ao campo por excelência da etnografia francesa, o fato de o africanismo ter
deslanchado apenas com a Missão Dakar-Djibouti, em 1931, já foi interpretado, por exemplo, como
o resultado da morte prematura de muitos discípulos de Durkheim e Mauss na Primeira Guerra
Mundial. Mas os dados trazidos à tona pela interpretação de Clifford mostram que talvez o destino
da pesquisa antropológica na França deva ser visto por meio de outros parâmetros.
Não é possível considerar como simples coincidência biográfica o fato de os membros mais
proeminentes da Missão Dakar-Djibouti, como Marcel Griaule, Michel Leiris e André Schaeffner
terem sido colaboradores das revistas Documents e Minotaure (que dedicou um número especial à
missão), editadas por Bataille e egressas da vanguarda surrealista; nem acaso o fato de Bataille ter
sido vinculado por toda vida a Alfred Métraux; nem algo aleatório o fato de o museu do Trocadéro
ter sido um lugar de inspiração e pesquisa fundamental para Picasso e outros artistas. Paris entre as
duas guerras foi um laboratório vivo da “etnografia surrealista”. O exotismo não vinha só da África,
estava ali mesmo, nas ruas de “Le Paysan de Paris”, de “Nadja” ou no mercado das pulgas. A reflexão
antropológica era produzida nos seminários de Mauss, Dumézil e Granet, na Sorbonne, na École
Pratique e no Collège de France, mas também no café do Quartier Latin, onde se reunia o Collège de
Sociologie de Bataille e Caillois.
Clifford não arrisca a ideia de um Marcel Mauss surrealista, mas demonstra muito bem a varie-
dade vertiginosa dos temas de suas aulas, frequentadas por surrealistas e etnógrafos em formação,
sua “confusão inspirada”, seu caráter boêmio, a ponto de sugerir que uma de suas famosas frases,
aquela que incita à procura das “luas mortas ou pálidas no firmamento da razão”, poderia ser consi-
derada um sumário da “etnografia surrealista”.
O que me parece sugestivo na visão de Clifford sobre a Antropologia na França, particular-
mente seus estudos sobre Griaule, Leiris e Leenhardt, é que não emerge a ideia de uma experiência
fracassada, seja porque Griaule teve uma visão performática da etnografia, concebida enquanto um
trabalho de equipe, seja porque Leiris fez da etnografia uma viagem altamente subjetiva, seja por-
que Leenhardt articulou perigosamente o papel de missionário e de etnógrafo e, a despeito disso,
foi quem sucedeu Mauss na prestigiosa cadeira de etnologia na École Pratique. A França aparece
assim como um espaço dissonante dentro do consenso etnográfico da primeira metade do século,
espaço que agora deixa de parecer tão exótico quando ficamos sabendo um pouco mais, por exemplo,
sobre as etnografias de Malinowski e de Margareth Mead.
No panorama da etnografia francesa traçado por Clifford resta um ponto de interrogação.
Curiosamente, Lévi-Strauss aparece em uma posição secundária, seja quando o assunto é o
Surrealismo ou quando são abordadas as rotinas de campo dos etnógrafos. No primeiro caso, Lévi-
-Strauss é referido mais como alguém de fora que, posteriormente, interpretando Mauss como
protoestruturalista acaba por subtraí-lo do contexto da “etnografia surrealista”, aparentemente
avessa aos sistemas. Quanto ao trabalho de campo, não há como não lembrar de Tristes Trópicos,
quando Clifford descreve os protocolos dominantes na época. O fato de nele estarem expostos
todos os andaimes da expedição, de ser escrito como autobiografia e ter a forma de narrativa de
viagem, faz desse livro um verdadeiro exotismo frente à rotina textual da época.
Lévi-Strauss poderia muito bem ser levado em conta, como um contraponto, nas reflexões que
tratam de Griaule e Leiris, pois suas etnografias têm muitos pontos de contato no que diz respeito
ao ritmo, às preocupações estéticas e ao objetivo de formar coleções. Além disso, seus vínculos
com os surrealistas foram bem mais intensos do que os descritos por Clifford. Não apenas alguns
acidentes biográficos, mas algo que, em alguma medida, ficou entranhado no próprio método. Mas,
pelo visto, essa é uma história que ainda está para ser desvendada.
James Clifford pertence a uma corrente de estudiosos que se voltou para a interpretação do
próprio conhecimento do qual é caudatária. Os trabalhos de Clifford Geertz, no campo antropológico,
e de Hayden White, nos estudos históricos, são talvez as principais referências dessa tendência.
Deve-se a ela uma consciência aguda da retórica que articula o discurso das ciências humanas, e o
resultado dessa consciência, que mescla ironia e ceticismo, tende a ser duradouro. Só espero que
não seja paralisante, já que muita consciência da linguagem às vezes pode produzir afasia. E espero
que o reconhecimento da etnografia também como “gênero literário” não incite a aventuras pouco
rigorosas em fronteiras discursivas.
Mas isso não me parece um grande risco, pois os antropólogos também sabem ser exigentes.
Bom exemplo disso talvez seja o comentário de Lévi-Strauss sobre seu mais famoso livro, por acaso
aquele que faz uso dos registros literários mais variados. De Tristes Trópicos, disse ele, certa vez, que
parecia coisa de estudante gazeteiro.
Atividades
1. Qual a importância da Etnografia na abordagem antropológica pós-moderna?
Referências
BENJAMIN, W. O narrador; O surrealismo. In: Os Pensadores: textos escolhidos/Walter Benjamin, Max
Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
_____. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In: Os Pensadores: textos escolhidos/
Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas et al. São Paulo: Abril Cultural,
1980.
CLIFFORD, J. A Experiência Etnográfica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
_____. Dilemas de la Cultura. Barcelona: Gedisa, 2001.
CLIFFORD, J.; MARCUS, G. E. Writing Culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: Univer-
sity of California Press, 1986.
GOMES, J. Pierre Fatumbi Verger – mensageiro entre dois mundos. Disponível em: <www.overmundo.
com.br/overblog/pierre-fatumbi-verger-mensageiro-entre-dois-mundos>. Acesso em: 20 ago. 2012.
GOMES JÚNIOR, G. S. A Etnografia como Gênero Literário. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/
fsp/resenha/rs13029904.htm>. Acesso em: 20 ago. 2012.
JORDÃO, P. A Antropologia Pós-Moderna: uma nova concepção da etnografia e seus sujeitos. Dispo-
nível em: <www.portalppgci.marilia.unesp.br/ric/include/ getdoc.php?id=26&article=7&mode=pdf>.
Acesso em: 20 ago. 2012.
LAPLANTINE, F. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MARCUS, G. E.; FISCHER, M. Anthropology as Cultural Critique: an experimental moment in the hu-
man sciences. Chicago: University of Chicago, 1999.
ROUANET, S. P. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
TAUSSIG, M. Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
Gabarito
1. A Antropologia Pós-Moderna preocupa-se com a construção do modelo textual das etnografias
contemporâneas. Os registros etnográficos devem representar a polifonia (várias vozes) nas
culturas polissêmicas (múltiplas-plurais) interessando-se pela apreensão das experiências
cotidianas dos “nativos”, favorecendo a politização do fazer e pensar antropológicos.
3. James Clifford valoriza a dimensão literária do fazer antropológico, as relações que envolvem o
etnógrafo, seu informante e a cultura estudada. Segundo Clifford, a imparcialidade exercitada na
pesquisa científica até as primeiras décadas do século XX distancia o universo cultural estudado
do registro feito a partir da observação axiológica desse universo cultural, contestando assim,
a autoridade das produções etnográficas que compromete a compreensão dessa realidade
cultural.
1 Idiossincrasia: temperamento peculiar, hábito corporal; maneira pessoal de reagir à ação de agentes externos; comportamental própria de
um indivíduo ou grupo responsável pela interpretação de uma situação de acordo com sua cultura e formação.
2 Estresse ou stress: pode ser definido como a soma de respostas físicas e mentais de uma incapacidade de distinguir entre o real e as experiências
e expectativas pessoais; resultado de uma reação que o organismo tem quando estimulado por fatores externos desfavoráveis.
3 Área isolada de vegetação no deserto; metaforicamente significa área de conformo, ante o caos.
Cidade em foco
A Revista Comciencia4 – número 29, março de 2002 – traz um pequeno cardápio dos principais
problemas das cidades contemporâneas. A publicação procurou investigar os problemas da cidade sob
diversos prismas e matizes: as revitalizações de áreas degradadas, a importância do estatuto da cidade,
os programas habitacionais com foco na qualidade de vida, o déficit habitacional dos grandes centros
urbanos, as novas possibilidades de planejamento e organização do espaço urbano, os velhos problemas
das novas metrópoles, a tensão e problemática da relação centro versus periferia, a qualidade da água,
a qualidade da coleta do lixo, a qualidade da preservação ambiental, os problemas da educação, e as
tecnologias de inclusão social.
Na apresentação desse número, o diretor de redação do periódico, Carlos Vogt, explica que:
[...] as cidades, em sua tendência progressiva ao gigantismo, são produto da Revolução Industrial, em particular da
chamada Revolução Científico-Tecnológica, ocorrida na segunda metade do século XIX e que configuraria o mundo,
já na passagem para o século XX, tal qual hoje o conhecemos: a eletricidade, os derivados do petróleo, os veículos a
motor de combustão interna, as indústrias químicas, os transportes urbanos, interurbanos e intercontinentais, o rádio,
a fotografia, o cinema, o fonógrafo, mais tarde, na década de 1920, a televisão e os grandes parques de diversão e lazer
destinados ao entretenimento de uma população de trabalhadores, cada vez maior nas cidades, vivendo das novas
formas de trabalho próprias da economia industrial. (VOGT, 2002)
Em seguida, Vogt aponta para o fenômeno que provoca o inchaço das grandes cidades:
De fato, estamos, pela primeira vez na história da humanidade, na iminência de vermos, nos próximos anos deste início
de século, a população das cidades superar a população do meio rural, sendo que, em 2025, segundo projeções da
ONU, essa inversão já mostrará um índice populacional de 61% concentrado em espaços urbanos. [...] Em 1950, não
havia no mundo mais do que 7 cidades com população superior a 5 milhões de habitantes; hoje, são dezenas. Havia
apenas 100 cidades com mais de 1 milhão de habitantes; hoje, elas se multiplicaram a ponto de, em 2025, de acordo
com a ONU, terem uma previsão de 527, e o que é pior, a grande maioria localizada em países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento. (VOGT, 2002)
4 “Revista Eletrônica de Jornalismo Científico”, do Labjor – Laboratório de Jornalismo Científico da Universidade Estadual de Campinas (<www.
comciencia.br/reportagens/framereport.htm>). Publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC/Labjor – que divulga
reportagens interativas sobre ciência e tecnologia.
5 Cesare Pavese (1908-1950), escritor e poeta italiano.
Santos discorre sobre o estágio das técnicas e as condições políticas favorecedoras da globalização.
Segundo ele, há um número de fatores que explicam a “arquitetura da globalização”, da produção da
globalização:
A unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a existência de um motor único
na história, representado pela mais-valia globalizada. Um mercado global utilizando esse sistema de técnicas avançadas
resulta nessa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro. (SANTOS, 2001b, p. 24)
Entretanto, o que despertará a ênfase da crítica de Santos é que sobre essa base material se constro-
em versões desse processo, em que há a ocorrência de três mundos num só. A contradição dos elementos
materiais e imateriais nas sociedades contemporâneas produz três versões de mundo, ao mesmo tempo:
De fato, se desejamos escapar à crença de que esse mundo assim apresentado é verdadeiro, e não queremos admitir
a permanência de sua percepção enganosa, devemos considerar a existência de pelo menos três mundos num só. O
primeiro seria o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é:
a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra globalização. (SANTOS, 2001b,
p. 18)
6 A expressão Consenso de Washington – neoliberalismo – nasceu em 1989, criada pelo economista inglês John Williamson, ex-funcionário
do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Numa conferência do Institute for International Economics (IIE), em Washington,
Williamson listou regras políticas que o governo dos Estados Unidos preconizava para a crise econômica dos países da América Latina. Por
decisão do Congresso norte-americano, as medidas do Consenso de Washington foram adotadas como imposições na negociação das dívidas
externas dos países latino-americanos. Acabaram se tornando o modelo do FMI e do Banco Mundial para todo o planeta. Regras: disciplina
fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de mercado, abertura comercial, investimento estrangeiro
direto, com eliminação de restrições, privatização das estatais, desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas), direito
à propriedade.
Nas obras de Santos podem ser observados dois movimentos na reorganização das regiões do
país e na construção de suas diferenciações no processo de urbanização: o movimento macro – sob
o impacto da globalização – no âmbito das regiões, que implicam concentração de riqueza, cultura e
poder em um polo, em detrimento do outro; e um movimento no âmbito das relações rurais e urbanas,
com as redefinições produtivas das cidades, para a compreensão do quadro de segregação e violência
registradas nas grandes áreas urbanas do país.
A ocupação do território, os seus movimentos internos e externos, macros e micros, produziram
cidades cindidas, apartadas, divididas e segregacionistas.
7 Ermínia Maricato é professora titular, coordenadora do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (<www.
usp.br/fau/docentes/depprojeto/j_whitaker/artigos.html>.) e do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP (<www.comciencia.br/reportagens/framereport.htm>.).
Ela indica o processo de acomodação – arranjo sinalizado por diversos estudiosos – que se deu
em diversos momentos importantes da história brasileira, que modelaram a feição da sociedade: Inde-
pendência (1822), Constituição (1824), Lei da Terra (1850), “libertação” dos escravos (1888), e a Procla-
mação da República (1889).
Apesar do crescimento do período (crescimento de 7% ao ano do Produto Interno Bruto – média
da riqueza nacional8), em razão das circunstâncias políticas apontadas, a renda foi mal divida.
Segundo Ermínia Maricato,
Nesse período, as grandes metrópoles, especialmente São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, eram vistas como
a alternativa de melhora das péssimas condições da vida rural. Um gigantesco movimento migratório foi o principal
responsável por ampliar a população urbana em 125 milhões de pessoas em apenas 60 anos. Em 1940, cerca de 18,8%
da população brasileira era urbana. Em 2000 essa proporção é de 82%, aproximadamente, o que permite classificar o
Brasil com um dos países mais urbanizados do planeta sendo que perto de 30% dessa população vive em apenas nove
metrópoles. (MARICATO, 2002)
Mas, Ermínia Maricato diz que, nesse período, a despeito dos dados, “o ovo da serpente estava
sendo gerido”. No final do século passado, as marcas das grandes cidades são: favelas, poluição do ar e
das águas, enchentes, desmoronamentos, crianças abandonadas, violência e epidemias.
A pobreza urbana é maior do que a média da pobreza brasileira e está concentrada nas regiões metropolitanas. Dos
pobres brasileiros, 33% estão nas “ricas” metrópoles do Sudeste. Concentram-se também nas regiões metropolitanas
80% da população moradora das favelas, conforme estudos de Suzana Pasternak. Em nove metrópoles brasileiras
moram cerca de 55 milhões de pessoas. É mais do que a população de vários países latino-americanos ou europeus,
juntos. O Rio de Janeiro tem população equivalente a um Chile e São Paulo tem população superior a um Chile e
meio. No entanto, o país não tem política institucional para as regiões metropolitanas, como se os índices de violência,
poluição e miséria que elas apresentam pudessem ser resolvidos com políticas compensatórias pontuais. A ausência de
políticas para as metrópoles é uma ofensa à inteligência brasileira. Se os municípios que as compõem se entenderem
para compatibilizar as iniciativas relativas à coleta e destino do lixo urbano e da macro drenagem, por exemplo, melhor
para todos, senão, azar. (MARICATO, 2002)
Pior:
Aproximadamente 50% da população das metrópoles de Rio de Janeiro e São Paulo mora nas favelas ou nos lotea-
mentos ilegais da periferia. Mas os problemas urbanos estão longe de se restringir às áreas metropolitanas. O censo do
8 Produto Interno Bruto (PIB): indicador que mede a produção de um país levando em conta três grupos principais: agropecuária, formado
por agricultura extrativa vegetal e pecuária; indústria, que engloba áreas extrativa mineral, de transformação, serviços industriais de utilidade
pública e construção civil; e serviços, que incluem comércio, transporte, comunicação, serviços da administração pública e outros.
IBGE de 1991 verificou uma tendência confirmada em 2000, de que as cidades médias (entre 100 000 e 500 000 habi-
tantes) crescem a taxas mais altas do que as regiões metropolitanas (4,8% contra 1,3%). Os problemas das metrópoles
começam a surgir nas cidades de porte médio que ainda apresentam melhor qualidade de vida: Florianópolis, Aracajú,
Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, entre tantas outras. Favelas, crianças abandonadas, moradores de rua, congestio-
namentos de veículos, mortes no trânsito, poluição da água e, em especial a chamada violência urbana são alguns dos
indicadores que constituem amostra da tendência que é geral. (MARICATO, 2002)
Um sério problema é a condição da moradia urbana. Não há registro de posse nem instrumentos
regularizadores. Isso, em diversas áreas urbanas importantes. Salvador, Fortaleza, Recife, Maceió, Belo
Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba.
O gigantesco crescimento de invasões de terra, em anos recentes, se dá devido à falta de alternativas habitacionais, seja
10
por parte do mercado privado (que não chega a atender 30% da população do país segundo dados da Cibrasec ) seja
devido ao diminuto alcance das políticas públicas. Sem subsídios, não há como incorporar a maior parte da população
ao mercado, muito menos quando ele continua privilegiando os ganhos especulativos. Bancários, professores
secundários, policiais, enfermeiros, todo um contingente de trabalhadores regularmente empregados são excluídos
do mercado o que não dizer dos informais, que são em número crescente. (MARICATO, 2002)
Para reverter esse quadro de crise urbana, Ermínia aponta a necessidade de superar o “analfabe-
tismo urbanístico”:
A reversão desse quadro exige, antes de mais nada, um conhecimento mais rigoroso sobre ele. O primeiro passo para
começar a mudar esse rumo é tirar as instituições e a sociedade do “analfabetismo urbanístico” e criar a consciência da
dimensão dos problemas que estão sendo produzidos por esse crescimento urbano sem regulação pública e social-
mente desigual. O conhecimento sobre as cidades no Brasil e sobre a cidade em que cada um vive poderia começar na
rede escolar. (MARICATO, 2002)
9 O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) é uma fundação pública federal vinculada ao Ministério Extraordinário de Assuntos
Estratégicos. Suas atividades de pesquisa fornecem suporte técnico e institucional às ações governamentais para a formulação e reformulação
de políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiros.
10 Companhia Brasileira de Securitização (Cibrasec). Ela atua no Sistema Financeiro Imobiliário e compra os Certificados de Recebíveis
Imobiliários e os revende aos investidores.
Para ela, há instrumentos legais à disposição: planos diretores11 e o Estatuto da Cidade12, além
de mecanismos que visam à função social da propriedade. Por fim, dentro do espírito da publicação,
Ermínia diz: “Sem querer abusar do trocadilho trata-se de ocupar a lacuna e criar a consciência com
ciência, com conhecimento” (MARICATO, 2002).
Etnografia urbana
A cidade tornou-se um complexo sistema de organização da sociedade, com seus diversos aspec-
tos positivos e negativos. As cidades, em especial as que nasceram sem planejamento de sua ocupação,
tornaram-se um “caldeirão”, onde se misturam pedaços originais de diversas culturas, suas sínteses e
suas antíteses; suas convergências e suas divergências; seus conceitos e preconceitos; a segregação e o
racismo; a tolerância e a intolerância religiosa; os condomínios fechados e as moradias precárias; seus
aparelhos sociais de qualidade e sem qualidade mínima de utilização; suas ruas, esquinas, becos; suas
formas tradicionais e inéditas de organização, sua liberdade e repressão; suas elites, seus miseráveis e
suas “tribos urbanas”.
Observar e estudar esse complexo sistema, suas populações, suas produções materiais e imate-
riais, torna-se um desafio estonteante para o etnógrafo moderno. Encontrar uma metódica adequada
para essa observação, formas de análises e categorias de análise torna-se um desafio instigante para as
ciências humanas e seus formuladores: um desafio para a etnografia urbana.
De fora e de longe
José Guilherme Cantor Magnani – Departamento de Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo e membro do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo – escreveu em 2002
o artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, no qual procura articular duas linhas de
reflexão, segundo suas próprias palavras: uma sobre a cidade e outra sobre etnografia.
Neste artigo pretendo articular duas linhas de reflexão: uma sobre cidade e outra sobre etnografia. O propósito é explorar
as possibilidades que esta última, como método de trabalho característico da Antropologia, abre para a compreensão
do fenômeno urbano, mais especificamente para a pesquisa da dinâmica cultural e das formas de sociabilidade nas
grandes cidades contemporâneas. Em primeiro lugar exponho, de forma sumarizada, alguns dos enfoques mais
correntes sobre a questão da cidade e, em contraste com essas abordagens, que classifico como um olhar de fora e de
longe, apresento outra de cunho etnográfico, a que denomino de olhar de perto e de dentro. (MAGNANI, 2002)
Magnani procura contribuir com a elaboração de uma perspectiva que possibilite “um recorte
mais específico, voltado para o estudo de temas própria e especificamente urbanos” (MAGNANI, 2002).
O pesquisador agrupa em dois blocos as abordagens sobre a cidade: a primeira de análise e diag-
nóstico com ênfase em aspectos desagregadores – colapso do sistema de transporte, as deficiências do
saneamento básico, falta de moradia, concentração e desigualdade na distribuição dos equipamentos,
11 Plano Diretor: instrumento básico da política de desenvolvimento do município, com a finalidade de orientar a atuação do poder público e
da iniciativa privada na construção dos espaços urbano e rural e na oferta dos serviços públicos essenciais, com o objetivo assegurar melhores
condições de vida para a população.
12 Estatuto da Cidade: – Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 – visa a regulamentação do desenvolvimento urbano no Brasil; responsável por
regulamentar e definir instrumentos à efetivação das diretrizes encontradas no capítulo sobre política urbana da mais recente Constituição
Brasileira (1988).
aumento dos índices de poluição e violência, dos chamados países “emergentes” 13; a segunda aborda-
gem com cenários marcados por uma “feérica sucessão de imagens (deslumbrante) – superposição e
conflitos de signos, simulacros, não lugares, redes e pontos de encontros virtuais – articulada por semió-
logos, arquitetos, críticos pós-modernos, referidas às cidades do “primeiro mundo”.
No primeiro caso, apresenta-se uma linha de continuidade onde fatores desordenados de crescimento acabam por
produzir inevitavelmente o caos urbano; no segundo, enfatiza-se a ruptura, consequência de saltos tecnológicos
que tornam obsoletas não só as estruturas urbanas anteriores como as formas de comunicação e sociabilidade a elas
14
correspondentes; o caos, aqui, é semiológico . Um, fruto do capitalismo selvagem; a outra, mais identificada com o
capitalismo tardio. (MAGNANI, 2002)
Para o autor, as duas abordagens levam a conclusões semelhantes “no plano da cultura urbana”:
deterioração dos espaços e equipamentos públicos, privatização da vida coletiva, segregação, eliminação
do contato, confinamentos, entre outros aspectos. Magnani diz que esse “esquematismo” é comum no
discurso da mídia e setores acadêmicos, pois é uma fórmula de sucesso.
Tanto num caso como no outro essa denominação alude ao papel que tais cidades ocupam numa economia altamente
interdependente: sedes de conglomerados multinacionais, polos de instituições financeiras, produtoras e/ou distri-
buidoras de determinados serviços, informações e imagens, elas constituem os nós da ampla rede que também já é
conhecida, num mundo globalizado, como “sistema mundial”. Sua influência, dessa forma, faz-se sentir muito além das
respectivas fronteiras físico-administrativas e nacionais. (MAGNANI, 2002)
Após discorrer sobre as duas abordagens, com base na bibliografia produzida, Magnani enfatiza
que o seu propósito é delimitar um campo onde seja possível apreciar alternativas de análise “para a
dinâmica urbana contemporânea” (MAGNANI, 2002).
Perto e dentro
Após uma série de observações sobre as formas de abordagens da dinâmica urbana contem-
porânea, seus aspectos em comum (ausência de atores sociais, por exemplo), natureza da observação
etnográfica, Magnani indica o ponto central de sua análise:
Assim, o que se propõe inicialmente com o método etnográfico sobre a cidade e sua dinâmica é resgatar um olhar de
perto e de dentro capaz de identificar, descrever e refletir sobre aspectos excluídos da perspectiva daqueles enfoques
que, para efeito de contraste, qualifiquei como de fora e de longe. (MAGNANI, 2002)
Segundo Magnani, a mudança de foco tem a vantagem de evitar a dicotomia: indivíduo versus
megaestruturas urbanas (despersonalização, massificação, solidão etc.).
Entretanto, contrariamente às visões que privilegiam, na análise da cidade, as forças econômicas, a lógica do mer-
cado, as decisões dos investidores e planejadores, proponho partir daqueles atores sociais não como elementos
isolados, dispersos e submetidos a uma inevitável massificação, mas que, por meio do uso vernacular da cidade
(do espaço, dos equipamentos, das instituições) em esferas do trabalho, religiosidade, lazer, cultura, estratégias de
sobrevivência, são os responsáveis por sua dinâmica cotidiana. Postulo partir dos atores sociais em seus múltiplos,
diferentes e criativos arranjos coletivos: seu comportamento, na paisagem da cidade, não é errático, mas apresenta
padrões. (MAGNANI, 2002)
13 Países emergentes: eram os chamados países do Terceiro Mundo, em oposição aos países ricos chamados de Primeiro Mundo. Em 2003,
com a articulação da diplomacia brasileira, formou-se o G-20, com os maiores países desse bloco.
14 Semiólogo (semio+logo); teórico que estuda os fatores culturais como signos, baseando-se nos estudos linguísticos de Ferdinand de
Saussure.
Magnani parte em busca desses padrões, modeladores do comportamento dos atores sociais, na
paisagem da cidade, e dentro de sua dinâmica urbana.
Nesse ponto do artigo, uma nova interrogação é feita: trata-se da Antropologia da cidade (a
cidade em seu conjunto) ou Antropologia na cidade (prática cultural em particular)?
Partir das regularidades, dos padrões e não das “dissonâncias”, “desencontros”, “hibridizações” como condição da pes-
quisa supõe uma contrapartida no plano teórico: a ideia de totalidade como pressuposto. Não se trata, evidentemente,
daquela totalidade que evoca um todo orgânico, funcional, sem conflitos; tampouco se trata de uma totalidade que
coincide, no caso da cidade, com os seus limites político-administrativos: em se tratando de São Paulo, por exemplo,
é impensável qualquer pretensão de etnografia de uma área de 1 525km2 ocupada por cerca de doze milhões de
pessoas. No entanto, renunciar a esse tipo de totalidade não significa embarcar no extremo oposto: um mergulho na
fragmentação. Se não se pode delimitar uma única ordem, isso não significa que não há nenhuma; há ordenamentos
particularizados, setorizados; há ordenamentos, regularidades. (MAGNANI, 2002)
Assim, segundo o autor, os dois planos apresentados – cidade em seu conjunto e o de cada prática
cultural – são dois polos de uma relação “que circunscrevem, determinam e possibilitam a dinâmica que
se está estudando” (MAGNANI, 2002).
Para captar essa dinâmica, por conseguinte, é preciso situar o foco nem tão de perto que se confunda com a perspec-
tiva particularista de cada usuário e nem tão de longe a ponto de distinguir um recorte abrangente, mas indecifrável e
desprovido de sentido. Em outros termos, nem no nível das grandes estruturas físicas, econômicas, institucionais etc.,
nem no das escolhas individuais: há planos intermediários onde se pode distinguir a presença de padrões, de regula-
ridades. E para identificar essas regularidades e poder construir, como referência, algum tipo de totalidade no interior
da qual seu significado possa ser apreciado, é preciso contar com alguns instrumentos, algumas categorias de análise,
como será discutido a seguir. (MAGNANI, 2002)
Categorias de análise
Para o autor, essas categorias de análise têm um duplo estatuto: surge do reconhecimento
empírico – arranjos concretos e efetivos por parte dos atores sociais – e podem ser descritos “num plano
mais abstrato” – categorias: pedaço, trajeto, mancha, pórtico, circuito.
Desenvolvi algumas categorias que descrevem as formas como podem se apresentar alguns desses recortes na paisagem
urbana – pedaço, mancha, trajeto, circuito – procurando mostrar as possibilidades que abrem para identificar diferentes
situações da dinâmica cultural e da sociabilidade na metrópole: a noção de pedaço evoca laços de pertencimento e
estabelecimentos de fronteiras, mas pode estar inserida em alguma mancha, de maior consolidação e visibilidade na
paisagem; esta, por sua vez, comporta vários trajetos como resultado das escolhas que propicia a seus frequentadores. Já
circuito, que aparece como uma categoria capaz de dar conta de um regime de trocas e encontros no contexto mais amplo
e diversificado da cidade (e até para fora dela) pode englobar pedaços e trajetos particularizados. (MAGNANI, 2002)
Considerações finais
A Antropologia Urbana faz com que o etnógrafo traga para o seu quintal – lugar onde vive e
constrói suas representações culturais – a reflexão do pensar e fazer antropológicos. A cidade mostra-se,
apesar da proximidade, um terreno escorregadio e perigoso.
A cidade é complexa – articulam-se áreas segregadas e precárias, pontos de convergência de várias
formas de violência – física e simbólica –, com áreas incluídas no movimento global e infraestruturas
sofisticadas de informação e comunicação digitais (áreas rápidas e áreas lentas; áreas que mandam e
áreas que obedecem; áreas opacas e áreas luminosas) – múltipla – com diversas formas de organização
dos atores sociais e institucionais, nos planos políticos, econômicos, sociais e culturais – polifônica –
com diversos universos culturais originais, ressemantizados e reinventados – e mutante – processo
ininterrupto e permanente de mudança e transformações.
A investigação da cidade impõe ao etnógrafo uma série de desafios, na sua prática profissional,
em especial, quanto à totalidade e à abrangência da etnografia urbana: etnografia da cidade ou etno-
grafia na cidade.
Outro calcanhar de Aquiles: a totalidade experimentada é reconhecida pelos atores sociais, reco-
nhecida pelo etnógrafo e com capacidade de compreensão descritiva.
No passado da Antropologia, essas eram questões que não se colocavam com tanta ênfase, na
medida em que os informantes de uma cultura estavam distantes – geográfica e fisicamente – dos rela-
tos produzidos pelos etnógrafos sobre as culturas dos nativos.
Na Antropologia Urbana, não!
O relato do etnógrafo está à disposição dos sujeitos de sua investigação, graças às modernas
formas de captação, organização e difusão dos relatos etnográficos.
Esse cenário impõe à etnografia a necessidade de construções conceituais de categorias de análise
e procedimentos práticos do trabalho de campo para a apreensão e compreensão dessa realidade
mutante.
Texto complementar
(MAGNANI, 1992)
Quando a imprensa noticia certo tipo de ocorrência, geralmente envolvendo grupos de jovens
ou adolescentes – enfrentamentos entre bandos rivais, comportamento em shows e festivais, picha-
ções etc. – inevitavelmente aparece o termo “tribos urbanas” no box explicativo que acompanha a
matéria.
Com essa referência, o que se pretende é introduzir algum princípio de ordenamento num
universo que se caracteriza exatamente por sua fragmentação e singularidade. Analisando mais
de perto essa tentativa de explicação, percebe-se que na maioria das vezes o caráter das transgres-
sões identificado em tais manifestações não extrapola um limiar até certo ponto previsto e tolerado
como característico de determinada faixa etária. Quando os efeitos de tais práticas vão além desse
limiar, muda o enfoque: está-se no âmbito da delinquência, do banditismo, da violência urbana.
Algumas dessas ocorrências, contudo, oscilam entre as fronteiras do tolerado e do
francamente reprovado: é o caso das pichações, que introduzem uma tensão entre a natureza de
seus protagonistas (“adolescentes em fase de autoafirmação”) e os danos que suas intervenções
produzem no patrimônio público ou privado. Fica-se na dúvida entre acionar os policiais da
Secretaria de Segurança, os psicólogos da Saúde ou os teóricos da Secretaria da Cultura. Um pouco
“selvagens” demais, os integrantes dessa tribo...
Esse quadro mostra, entre outras coisas, a ambiguidade do uso do termo “tribos urbanas” em
seu uso corriqueiro, tal como aparece no senso comum e na mídia. Que dizer, então, de seu emprego
em pesquisas e trabalhos ditos científicos?
Metáfora ou categoria
A primeira observação é: quando se fala em “tribos urbanas” é preciso não esquecer que na rea-
lidade está-se usando uma metáfora, não uma categoria. E a diferença é que enquanto a realidade é
tomada de outro domínio, e empregada em sua totalidade, a categoria é construída para recortar, des-
crever e explicar algum fenômeno a partir de um esquema conceitual previamente escolhido. Pode
até vir emprestada de outra área, mas nesse caso deverá passar por um processo de reconstrução.
A metáfora, não: traz consigo a denotação e todas as conotações distintivas de seu uso inicial.
Por algum desses traços é que foi escolhida, tornando-se metáfora exatamente nessa transposição:
o significado original é aplicado a um novo campo. A vantagem que oferece é poder delimitar um
problema para o qual ainda não se tem um enquadramento. É usada no lugar de algo, substitui-o,
dá-lhe um nome. Evoca o contexto original, em vez de estabelecer distinções claras e precisas no
contexto presente. O problema, contudo, que acarreta é que dá a impressão de descrever, de forma
total e acabada, o fenômeno que se quer estudar, aceitando-se como dado exatamente aquilo que
é preciso explicar. Para apreciar devidamente os limites e alcances de seu emprego, é preciso antes
de mais nada ter presente qual é o domínio, o sistema de significações de onde foi tirada.
E qual é o domínio original de “tribo”? A etnologia e, nela, uma forma de organização de socie-
dades que constituíram o primeiro e mais significativo objeto de estudo da Antropologia.
Não deixa de ser sintomático o fato de se tomar emprestado um termo usual no estudo das
sociedades de pequena escala para descrever fenômenos que ocorrem em sociedades contemporâneas
altamente urbanizadas e densamente povoadas. O recurso parece deslocado, mas é exatamente isso
que se quer com o uso de metáforas: um de seus efeitos é projetar luz de forma contrastante sobre
aquilo que se pretende explicar.
Para poder avaliar até que ponto esse termo ajuda a entender tais fenômenos, nas sociedades
modernas, é preciso inicialmente descobrir os significados que ele tem no campo em que é manejado
como termo técnico, nas sociedades indígenas. O segundo passo é identificar que relação existe
entre o recorte original e aquele que se produz com a utilização no novo contexto.
Sem entrar em detalhes e controvérsias que não cabem nos limites e propósito deste artigo,
pode-se dizer que tribo constitui uma forma de organização mais ampla que vai além das divisões
de clã ou linhagem de um lado e da aldeia, de outro. Trata-se de um pacto que aciona lealdades para
além dos particularismos de grupos domésticos e locais1.
E o que é que vem à mente quando se fala em “tribos urbanas?” Exatamente o contrário dessa
acepção: pensa-se logo em pequenos grupos bem delimitados, com regras e costumes particulares
em contraste com o caráter homogêneo e massificado que comumente se atribui ao estilo de vida
das grandes cidades. Não deixa de ser paradoxal o uso de um termo para conotar exatamente o
contrário daquilo que seu emprego técnico denota: no contexto das sociedades indígenas “tribo”
aponta para alianças mais amplas; nas sociedades urbano-industriais evoca particularismos, estabe-
lece pequenos recortes, exibe símbolos e marcas de uso e significado restritos.
Por isso é que não se pode tomar um termo de um contexto e usá-lo em outro, sem mais – ou
ao menos sem ter presente as reduções que tal transposição acarreta. Como categoria, tribo quer
dizer uma coisa; enquanto metáfora é forçada a dizer outras, até mesmo contra aquele sentido
original. Sendo metáfora, “tribo” evoca mais do que recorta. E evoca o quê? Primitivo, selvagem,
natural, comunitário – características que se supõe estarem associadas, acertadamente ou não, ao
modo de vida de povos que apresentam, num certo nível, a organização tribal. O fato de substituir
a precisão do significado original por imagens associadas de forma livre (e algumas delas incor-
retamente) é que dá ao termo “tribo” seu poder evocativo, permitindo-lhe designar realidades e
situações bastante heterogêneas.
1 Evans-Pritchard, E. E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978; SAHLINS, Marshall. Sociedades Tribais. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. Atualmente
há quem discuta a legitimidade desse uso do termo tribo: argumenta-se que a categoria apropriada, em qualquer caso, é sociedade. Tribo
não passaria, então, de uma designação inadequada porque empregada para designar sociedades indígenas sem reconhecer seu direito
e estatuto de verdadeira sociedade frente à sociedade nacional, inclusiva. Levando-se em conta, porém, o sentido e contexto do uso do
termo tribo por inúmeros autores – além dos citados – mantém-se, neste texto, a referência ao seu uso mais tradicional.
Usos e abusos
Essa liberdade que a metáfora possibilita não a desqualifica em contextos de pesquisa e
análise; exige, contudo, que se tenha presente que seu emprego não é unívoco e que se tomem os
cuidados correspondentes, sob pena de, aí sim, torná-la equívoca. Sem esse exercício prévio corre-
se o risco de iniciar o trabalho na base de uma convenção do tipo: todos sabem do que se está
falando, quando na realidade cada qual lê o termo em questão (no caso tribo) com um significado
diferente. E na maioria das vezes, segundo o senso comum mais rastaquera.
A seguir, rapidamente, alguns significados de seu emprego em textos a respeito da cidade e
seus personagens.
Um primeiro significado, mais geral, de tribo urbana, tem como referente determinada
escala que serve para designar uma tendência oposta ao gigantismo das instituições e do Estado
nas sociedades modernas: diante da impessoalidade e anonimato destas últimas, tribo permitiria
agrupar os iguais, possibilitando-lhes intensas vivências comuns, o estabelecimento de laços
pessoais e lealdades, a criação de códigos de comunicação e comportamento particulares.
Em outros contextos, tribo evoca o “primitivo” e designa pequenos grupos concretos com
ênfase não já em seu tamanho, mas nos elementos que seus integrantes usam para estabelecer
diferenças com o comportamento “normal”: os cortes de cabelo e tatuagens de punks, carecas, a cor
da roupa dos darks e assim por diante.
Quando evoca o “selvagem”, o termo designa principalmente o comportamento agressivo,
contestatório e “antissocial” desses grupos e as práticas de vandalismo e violência atribuídas a
outros como as gangues de pichadores, as torcidas organizadas.
Grandes concentrações – concertos de rock em estádios, shows e outras manifestações (envol-
vendo ou não consumo de drogas ou comportamentos coletivos tidos como irracionais) – ensejam
também o emprego de “tribos urbanas”. Nesse caso o que se evoca é algo confusamente imaginado
como “cerimônias primitivas totêmicas”. E assim por diante.
Por último é preciso ainda levar em conta que até mesmo a particular ideia que vê na tribo indí-
gena uma comunidade homogênea de trabalho, consumo, reprodução e vivências por meio de mi-
tos e ritos coletivos2, não se aplica às chamadas “tribos urbanas”: sob esta denominação costuma-se
designar grupos cujos integrantes vivem simultânea ou alternadamente muitas realidades e papéis,
assumindo sua tribo apenas em determinados períodos ou lugares.
É o caso, por exemplo, do rapper que oito horas por dia é office boy; do vestibulando que nos
fins de semana é rockabilly; do bancário que só após o expediente é clubber; do universitário que à
noite é gótico; do secundarista que nas madrugadas é pichador, e assim por diante.
Concluindo
Uma análise das utilizações mais frequentes da expressão “tribos urbanas” mostra que na maioria
dos casos não se vai além do nível da metáfora. Assim, esse termo – a menos que seja empregado
2 Homogeneidade que está longe de caracterizar a cultura, o modo de vida, os sistemas simbólicos desse tipo de sociedade.
após um trabalho prévio com o propósito de definir seu sentido e alcance – não é adequado para
designar, de forma unívoca e consistente, nenhum grupo ou comportamento no contexto das prá-
ticas urbanas. Pode constituir um ponto de partida, mas não de chegada, pois não constitui um
instrumento capaz de descrever, classificar e explicar as realidades que comumente abrange.
Ao invés de tentar reduzir os múltiplos grupos e práticas a um suposto denominador comum,
mais proveitoso seria explorar sua diversidade na paisagem urbana, procurando determinar as
relações que estabelecem entre si e com outras instâncias da vida social.
Uma possível estratégia de pesquisa poderia, por exemplo, começar por um primeiro recorte,
o da faixa etária, para ficar no universo de jovens e adolescentes.
O passo seguinte seria escolher como eixo da análise uma (ou várias) das facetas normalmente
presentes na constituição e dinâmica desses grupos: o estabelecimento de laços de sociabilidade, a
ênfase nos ritos de passagem, a presença de códigos de diferenciação, as formas de uso e apropriação
do espaço urbano, as modalidades preferidas de entretenimento e lazer etc. Um levantamento
etnográfico encarregar-se-ia de mostrar a forma concreta e distintiva que cada grupo – ou aquele
escolhido como objeto da pesquisa – dá a alguma dessas práticas.
Aí, sim, até que se poderia fazer referência às sociedades tribais, pois nelas, assim como em
outras formas de organização social, existe um cuidado especial com aqueles momentos em que
membros de conjuntos etários em tempos de iniciação exercitam-se aprendendo, contestando ou
pondo à prova a consistência das relações sociais que logo terão que assumir – passado o período
da liminaridade – já então revestidos de um novo status.
Atividades
1. Quais são as três versões de mundo, apontadas por Milton Santos, na produção da globalização
nas sociedades?
2. Comente as duas linhas de reflexão propostas por José Guilherme Cantor Magnani para a
elaboração das categorias de análise da Etnografia urbana.
Referências
MAGNANI, J. G. Festa no Pedaço: cultura popular e lazer na cidade. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1989.
_____. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências. São
Paulo. v. 17, n. 49, jun. 2002. Disponível em: <www.n-a-u.org/DEPERTOEDEDENTRO.html>. Acesso em:
20 ago. 2012.
_____. Tribos Urbanas: metáfora ou categoria. Cadernos de Campo, São Paulo, ano 2, n. 2, 1992.
Disponível em: (http://www.n-a-u.org/Magnani.html) Acesso em: 20 ago. 2012.
MARICATO, E. Brasil Cidades: alternativas para a crise urbana. São Paulo: Vozes, 2001.
_____. Dimensões da tragédia urbana. Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, São Paulo, n. 20,
mar. 2002. Disponível em: <www.comciencia.br/reportagens/framereport.htm>. Acesso em: 20 ago.
2012.
SANTOS, M. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001a.
_____. Por uma Outra Globalização: do pensamento único à consciência universal. 5. ed. Rio de Janei-
ro: Record, 2001b.
VOGT, C. As cidades e os muros. Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, São Paulo, n. 20, mar.
2002. Disponível em: <www.comciencia.br/reportagens/framereport.htm>. Acesso em: 20 ago. 2012.
Gabarito
1. O geógrafo Milton Santos destaca “a globalização como fábula”, “a globalização como perversidade”
e “uma outra globalização” como três versões de mundo que surgem nas sociedades globalizadas.
2. O novo cenário da Antropologia Urbana desafiou o etnógrafo moderno a buscar uma metodo-
logia eficaz de observação e estudo da realidade urbana contemporânea. Disposto a contribuir
para a superação desse desafio, José Magnani propõe a articulação de duas linhas de reflexão:
uma sobre a cidade – caos urbano e caos semiológico, e outra sobre a etnografia – dinâmica
cultural e formas de sociabilidade. Essa articulação possibilita a delimitação de um campo e suas
alternativas de análise.
3. A antropologia urbana observa a cidade contemporânea como um ecossistema social que apre-
senta profundas contradições materiais e imateriais. O desenvolvimento de uma etnografia urba-
na para o estudo desse cenário definiu a cidade como um sistema complexo, múltiplo, polifônico
e mutante.
4. Nas pesquisas sobre as regiões e suas funções na organização territorial, o professor Milton Santos
observa que cada região do Brasil passou por uma forma diferente de processo de urbanização.
Diferença justificada pela categoria na qual está inserida determinada região. Essas categorias
são: as zonas de densidade e de rarefação, fluidez e viscosidade, espaços de rapidez e de lentidão,
espaços luminosos e espaços opacos, espaços que mandam e espaços que obedecem e as novas
lógicas que regulam a relação centro-periferia. Esse mesmo processo apresenta dois movimentos
de reorganização das regiões do país: um movimento impulsionado pela globalização e outro
pela necessidade de redefinição das funções produtivas.
Centralidade da imagem
No âmbito da disciplina, a Antropologia Visual tornou-se um importante instrumento para
a descrição etnográfica. Desde os trabalhos de campo de Malinowski, em Os argonautas do Pacífico
Ocidental, a fotografia – e mais contemporaneamente outras formas de registros visuais (cinema, vídeo,
imagens pictóricas, multimídia, celulares, fotografia jornalística e publicitária, outdoor, murais de rua,
pichação, grafite de rua) – é um suporte importante de fidelidade do registro de dados.
A infraestrutura tecnológica que se tem permite um amplo trabalho com várias possibilidades
para a capturação e a edição de imagens, nas ciências humanas. Por essa razão, a fotografia é uma fonte
inspiradora à reflexão conceitual da etnografia, pois além da técnica ela é uma ótima fonte de docu-
mentação. A fotografia permite um alto grau de fidelidade na tradutibilidade dos códigos imagéticos
em escrita.
Por ser uma forma de apropriação instrumental das imagens em campo, a fotografia é facilitadora
do diálogo entre o etnógrafo e sua fonte de informação, tornando-se uma mediadora entre as suas
culturas e azeitando a produção do conhecimento da realidade investigada.
Mesmo sendo uma analogia máxima e fiel – uma superanalogia – do registro da realidade, ela
não é a realidade. Como outras formas de linguagem, a fotografia é polissêmica. Ela guarda uma tensão
dialética entre o conteúdo do registro e a sua aparência.
Como mostrou Platão, a centralidade da imagem é um traço característico do Ocidente. A imagem
tem uma função específica na sociedade. A apropriação dos instrumentos técnicos que permitem
o registro dessa forma de analogia do real assume, cada vez mais, papel de destaque na descrição
etnográfica no campo da investigação antropológica.
Parece, em uma primeira aproximação, que é a palavra intuição a que melhor exprime a osmose entre visão e
conhecimento. [...] E esta equivalência, que nos parece trivial, entre visão e intuição não seria antes o efeito da influência
que ainda exerce Descartes sobre o uso que fazemos do vocabulário filosófico? [...] Não seria o fato de “ver” o melhor
análogo desta apreensão pontual de um conteúdo pelo espírito? Esse tema cartesiano é bem conhecido. E parece
poder ser inscrito, grosso modo, em uma tradição que remonta a Platão. Assim, a visão teria sido, desde os gregos, o
paradigma de um saber imediato cuja certeza é tão forte que ele se garante por si próprio [...] (LEBRUN, 1988, p. 21)
Laplantine cita Radcliffe-Brown e Claude Lévi-Strauss como expoentes desse modelo na Antro-
pologia.
O segundo modelo, o antropólogo vai sacar do romance naturalista, que deu asas ao modelo
positivista de observação e de experimentação. Pintores e escritores do século XIX, sobretudo na
França, lançam mão dessa forma descritiva em suas obras e experiências artísticas. O escritor-estudante-
-pesquisador do Realismo recorre à documentação precisa; toma notas de suas observações em campo;
monta arquivos; viaja; frequenta os cenários de suas obras (hospitais); faz reportagens; visita prisões,
minas e reconstrói o estilo e modo de vida que quer retratar em seus textos.
Esse tipo de romance, para Laplantine, tem duas particularidades. A primeira é a teoria do meio
ambiente. Os escritores do período naturalista radicalizam no exercício de descrição do ambiente e nas
suas implicações com os personagens de seus romances.
A segunda particularidade é que os escritores realistas são escritores do “instantâneo”. Eles com-
partilham o mesmo tesouro dessa forma de observação e descrição com os seus contemporâneos, os
pintores impressionistas1 e os primeiros fotógrafos:
Se para eles a descrição reveste sempre um caráter explicativo, ela concerne exclusivamente à presença e o presente
daquilo que é descrito, nunca ao passado. Eles manifestam pela escrita viva e incisiva – o jornalismo passou por aí –
preocupações de lexicógrafos e não de gramaticistas. (LAPLANTINE, 2004, p. 76)
O objetivo desses artistas era apresentar a descrição mais minuciosa possível da realidade. Essa
empreitada do Realismo – característica do Ocidente, desde os gregos – deseja que seus romances
sejam uma cópia objetiva do real. Isso a faz aproximar-se do registro etnográfico da Antropologia.
É bem possível que muitos antropólogos sejam sem o saber escritores realistas. A maneira como se procura a descrição
mais completa de um grupo humano através da observação distanciada da “realidade social” é comum às correntes
positivistas das ciências sociais e naturalistas do romance. [...] (LAPLANTINE, 2004, p. 76)
Segundo o autor, por essas razões, o modelo pictórico contribuiu com a reflexão sobre o olhar e a
pesquisa e ajudou a pensar a descrição etnográfica.
1 O Impressionismo é um movimento artístico surgido na França no século XIX que criou uma nova visão conceitual da natureza utilizando
pinceladas soltas dando ênfase na luz e no movimento. As telas eram pintadas ao ar livre para que o pintor pudesse capturar melhor as
nuances da luz, da natureza e seus movimentos. A arte era classificada como alegre e vibrante, com muita cor e movimento. A presença dos
contrastes, da natureza, transparências luminosas, claridade das cores, sugestão de felicidade e de vida harmoniosa transparecem nas imagens
criadas pelos impressionistas.
Laplantine destaca a ligação visceral da fotografia com seu referente. Ela confere um grau de
objetividade ao objeto ou sujeito observados. A fotografia tem um tal poder de objetividade que dobra
o sectarismo e as dúvidas, ante as evidências por ela apresentada.
Para Laplantine:
O que funda a especificidade da descrição fotográfica é um laço absolutamente indefectível com o seu referente.
Enquanto a descrição naturalista designa e que a descrição pictórica evoca ou sugere, a imagem, quanto a ela, oferece-se
inteiramente como substituição do real. [...] A fotografia, quanto a ela, coloca imediatamente um termo ao cepticismo
relativo a uma questão e à dúvida quanto a uma interrogação. [...] Ela é da ordem da certeza, da evidência, e mais ainda da
prova da objetividade dos fatos. [...] Tudo pode ser recusado na existência, salvo a fotografia. (LAPLANTINE, 2004, p. 81)
A seguir, em sua linha de raciocínio sobre o modelo de descrição etnográfica propiciado pela
fotografia, Laplantine destaca a singularidade da fotografia. Segundo o autor, é impossível falar da
fotografia em geral. Só é possível falar apenas de uma fotografia. Ela é a reprodução de uma cena, de
uma paisagem de um personagem, em sua “singularidade e contingência”.
[...] A fotografia é realmente o modelo perfeito da descrição do que é único e que nunca se repete. Ela capta o fugitivo, o
aleatório, o singular, em sua nudez e em seu silêncio, sem induzir em si o menor efeito de causalidade, a menor procura
de uma ordem escondida por trás das aparências [...] (LAPLANTINE, 2004, p. 82)
2 No Brasil, o livro foi editado com o título A Câmara Clara: nota sobre a fotografia.
[Após Malinowski] Será preciso, no entanto, esperar ainda uns quinze anos para que a fotografia etnográfica assuma
um autêntico estatuto: será com a obra de Gregory Bateson e de Margaret Mead. Em Bali, durante dois anos, os dois
pesquisadores põem em prática as últimas páginas de Naven: “Não podemos nos contentar com observações e entre-
vistas. Precisamos utilizar autênticas técnicas de análise descritiva dos gestos, das posturas, das mímicas”. Eles flagram
25 000 fotografias e voltam também com uns 700 metros de películas 16 mm. Balinese Character: a photografic analysis,
publicado em 1942, é o resultado desta empresa. A partir da descrição de 700 fotos, Bateson e Mead mostram-nos
como é que moças e moços adquirem corporalmente e interiorizam os modelos de aprendizado da cultura balinesa
(LAPLANTINE, 2004, p. 84)
3 A semiótica (do grego semeiotiké ou “a arte dos sinais”) é a ciência geral dos signos e da semiose, que estuda todos os fenômenos culturais
como se fossem sistemas sígnicos, isto é, sistemas de significação. Ocupa-se do estudo do processo de significação ou representação, na
natureza e na cultura, do conceito ou da ideia, e investiga qualquer campo de pesquisa: artes visuais, música, fotografia, cinema, culinária,
vestuário, gestos, religião, ciência. Semiólogo ou semioticista é quem se coloca nesse campo de abordagem.
4 Palavra grega. Idolatria que significa imagem, por sua vez, tem origem nas palavras Eídolon (imagem) + latreia (culto).
Barthes tinha em mente a fotografia do irmão de Napoleão, Jerônimo, que encabeça a abertura
desse livro:
Um dia, há muito tempo, dei com uma fotografia do último irmão de Napoleão, Jerônimo (1852). Eu me disse então,
com um espanto que jamais pude reduzir: “Vejo os olhos que viram o Imperador”. Vez ou outra, eu falava desse espanto,
mas como ninguém parecia compartilhá-lo, nem mesmo compreendê-lo (a vida é, assim, feita de golpes de pequenas
solidões), eu esqueci. Meu interesse pela Fotografia adquiriu uma postura mais cultural. Decretei que gostava da Foto
contra o cinema, do qual, todavia, eu não chegava a separá-la. Essa questão se fazia insistente. Em relação à Fotografia,
eu era tomado de um desejo “ontológico”: eu queria saber a qualquer preço o que ela era “em si”, por que traço essencial
ela se distinguia da comunidade das imagens. Um desejo como esse queria dizer que, no fundo, fora das evidências
provenientes da técnica e do uso e a despeito de sua formidável expansão contemporânea, eu não estava certo de que
a Fotografia existisse, de que ela dispusesse de um “gênio” próprio. (BARTHES, 1984, p. 12)
Barthes dirá que sem a intervenção do observador (pessoal e subjetiva), a fotografia ficaria
limitada ao registro documental. O livro foi a última obra do autor publicada, poucos dias antes de ser
atropelado e morrer, em 1980.
Apesar da receptividade de “Câmara Clara”, foi um outro ensaio de Barthes que apresentou uma
metódica de utilização da fotografia em jornal como um elemento de análise da realidade social e,
portanto, dentro de um contexto de descrição etnográfica, com aspectos conotativos e denotativos: “A
mensagem fotográfica”.
O texto faz parte de uma coletânea publicada, em 1990, com comentário de Luiz Costa Lima:
Teoria da Cultura de Massa, editado pela Paz e Terra.
No texto, Barthes se dedicará em deslindar os meandros da linguagem fotográfica da imprensa.
Para o autor, a mensagem fotográfica da imprensa tem, como qualquer mensagem, três partes: emissão,
canal e meio receptor. A partir dessa constatação, ele passa a analisar as características próprias dessa
forma de linguagem.
A fotografia de imprensa é uma mensagem. A totalidade dessa mensagem é constituida por uma fonte emissora, um
canal de transmissão e um meio receptor. A fonte emissora é a redação do jornal, o grupo de técnicos, entre os quais
uns batem foto, outros a escolhem, a compõem, a tratam, e outros enfim a intitulam, preparam uma legenda para ela
e a comentam. O meio receptor é o público que lê o jornal. E o canal de transmissão é o próprio jornal, ou, mais exata-
mente, um complexo de mensagens concorrentes, de que a foto é o centro, mas de que os contornos são cosntituídos
pelo texto, título, legenda, paginação, e , de maneira mais abstrata mas não menos “informante”, pelo próprio nome do
jornal (pois este nome pode constituir saber que pode fazer infletir fortemente a leitura da mensagem propriamente
dita: uma foto pode mudar de sentido ao passar de l’Aurore para l’Humanité). (BARTHES, 1990, p. 303)
Nesse contexto, mais do que um produto, a fotografia é dotada de “uma autonomia estrutural”.
Para analisá-la, Barthes recorrerá à metodologia estruturalista. A totalidade da informação é constituída
de duas estruturas convergentes e heterogêneas. No texto, a substância da mensagem são as palavras;
a substância da fotografia é constituída por linhas, superfícies e tonalidades.
Segundo Barthes, primeiro, a análise deve incidir sobre as estruturas separadamente. Esgotada
a análise em cada uma das estruturas – texto e imagem – compreende-se, então, a maneira como se
completam.
Barthes explorará o que ele chama de “paradoxo fotográfico”. A fotografia tem uma dimensão de
analogon (analogia), perfeita analogia com a realidade, a reprodução dos aspectos visíveis da realidade
fotografada: a analogia mecânica com a realidade, denotatividade. Mas ela tem também uma dimensão
subjetiva, conotativa: a leitura que a sociedade faz dessa fotografia.
[...] O paradoxo fotográfico seria então a coexistência de duas mensagens, uma sem código (seria o análogo fotográfico)
e outra com código (seria a “arte” ou o tratamento ou a “escritura” ou a “retórica” da fotografia): estruturalmente, o
paradoxo não é evidentemente a colusão de uma mensagem denotada e de uma mensagem conotada [...]. Este
paradoxo estrutural coincide com um paradoxo ético [...] [ele] obriga, portanto, a um verdadeiro deciframento.
(BARTHES, 1990, p. 307)
Segundo Barthes, o registro do real, analogon, a mensagem sem código, dá-se com a imagem,
pura e simples, imagem denotativa. A dimensão conotativa, entretanto, dá-se com uma série de opções
feitas pelo fotógrafo: nível de produção da fotografia (tratamento, escolha técnica, enquadramento,
paginação). O processo de conotação tem seis procedimentos, divididos em dois grupos:
::: primeiro grupo – trucagem, pose, objetos;
::: segundo grupo – fotogenia, estetismo e sintaxe.
Nos primeiros procedimentos, a conotação é produzida por uma modificação do próprio real;
modificação da mensagem denotada.
Para Barthes, esses termos estruturais têm funções específicas na construção da dimensão cono-
tativa (subjetiva) da fotografia.
A trucagem utiliza-se da credibilidade particular da fotografia. Ela intervém no plano de denotação.
Os jornais usam e abusam desse recurso. A trucagem ocorre quando um jornal fotografa um personagem
abraçado a outro de forma que, de certo ângulo, pareça que eles estão se beijando. O enquadramento da
imagem conota (dá a entender) uma postura diferente da intenção dos personagens.
As poses têm uma reserva de atitudes estereotipadas chamadas de “gramática histórica”. Elas
usam da associação de imagens para conotar uma mensagem. Uma fotografia de alguém de terno e
gravata conota seriedade e sobriedade. Uma fotografia de alguém de chinelo e bermuda conota uma
pessoa descontraída.
Os objetos, segundo Barthes, indutores, correntes de associação de ideias (livros conotam inteli-
gência, assim como os óculos; armas conotam violência).
A fotogenia é uma estrutura informativa, onde a mensagem é conotada pela própria imagem,
ou embelezamento da imagem (iluminação mais acentuada, impressão em papel de qualidade com
impressão e tintas especiais, e pela tiragem).
O estetismo remete à fotografia para a ideia de um quadro, contrário à pintura verdadeira. Segundo
Barthes, isso ocorre, quando a fotografia se faz pintura, para impor um significado mais sutil e mais
complexo, que o permitiriam outro processo conotativo.
Por fim, a sintaxe é uma leitura discursiva de objetos e signos. O encadeamento das informações
induz a uma leitura específica, que pode ser diferente de uma pessoa para outra.
Dessa forma, com uma sacada genial, Barthes explorou as dimensões do paradoxo da fotografia
(dimensão denotativa – analogia com a realidade – e dimensão conotativa – aspectos subjetivos que
interferem na leitura da fotografia).
Para finalizar, Barthes faz três observações:
::: o texto constitui uma mensagem parasita, destinado a conotar a imagem;
::: o efeito da conotação é provavelmente diferente segundo o modo de apresentação do
discurso; quanto mais próximo está o discurso da imagem, menos parece conotá-la;
::: é impossível à palavra dublar a imagem, pois na passagem de uma estrutura à outra elaboram-
-se significados distintos.
Viu-se que o código de conotação não era verossimilmente nem “natural”, nem “artificial”, mas histórico, ou, se se prefere:
“cultural”; os signos aí são gestos, atitudes, expressões ou efeitos, dotados de certos sentidos em virtude do uso de uma
certa sociedade: a ligação entre o significante e o significado, isto é, a significação propriamente dita, permanece senão
imotivada, pelo menos inteiramente histórica. Não se pode dizer, portanto, que o homem moderno projete na leitura
da fotografia sentimentos e valores caracteriais ou “eternos”, isto é, infra- ou trans-históricos, a menos que se precise
bem que a significação seja sempre elaborada por uma sociedade e uma história definidas; a significação é, em suma, o
movimento dialético que resolve a contradição entre o homem cultural e o homem natural. (BARTHES, 1990, p. 313)
Considerações finais
A Antropologia Visual tem no recurso da fotografia um importante instrumento de descrição
etnográfica. Desde a metade da década de 1910, a fotografia tem sido usada com bons resultados, no
campo da etnografia.
Malinowski e Margaret Mead usaram com sucesso esse recurso, em seus trabalhos de campo. De
uma certa forma, essas experiências construíram uma referência para as futuras gerações de etnógrafos,
que rasgaram os continentes, para registrar a diversidade humana e cultural dos povos.
O texto de Barthes, entretanto, serve de alerta. A fotografia é polissêmica. Ela tem duas dimensões
distintas: a denotativa, que é a reprodução factual da realidade registrada, tal como ela se apresenta
ao capturador da informação: a conotativa, que é histórica e opera, ora na distribuição das imagens
fotográficas, ora na produção dessa informação.
As categorias de análise apresentadas por Barthes – trucagem, pose, objetos, fotogenia, este-
tismo e sintaxe – podem se estender para outras formas de produção de imagens, como o vídeo e as
produções multimídias. Nesses suportes há também a articulação dessas duas dimensões.
Essas categorias também favorecem o etnógrafo, na análise do material colhido em campo. Pelo
lado dos sujeitos investigados, os informantes conhecem muitas vezes mais do que o etnógrafo, os
recursos tecnológicos de capturação de imagens podem lançar mão desses recursos e induzir o
etnógrafo a erros de análise e interpretação – associação planejada de gestos e a interferência de outros
personagens no enquadramento fotográfico; a pose deliberadamente debochada, a utilização de
objetos descontextualizados – utilização inadequada de utensílios de caça, pesca, cerimônia religiosa,
entre outros.
Pelo lado do etnógrafo a situação também pode induzir ao erro analítico: a utilização de uma luz
mais forte, para melhorar a imagem; o recurso de edição de imagens; a associação deliberada de infor-
mações que articulem uma mensagem para o receptor.
São todos cuidados que ensinam o etnógrafo no seu trabalho e não permitem o desfalecimento
de sua vigilância epistemológica.
Os diversos recursos de produção imagética, cada vez, converter-se-ão em instrumentos importan-
tes da descrição etnográfica, contribuindo para a apreensão e compreensão do complexo quadro da di-
versidade humana e cultural que reinventam, a cada minuto, a feição desse ecossistema chamado Terra.
Texto complementar
A Antropologia Visual é a interação das linguagens textual e visual e essa interação pode
contribuir muito para o entendimento dos significados culturais tornando as pesquisas etnográficas
mais completas, já que, quando se é difícil descrever situações a imagem fala e quando as estruturas
e relações estão em jogo, o texto se faz presente.
Encontrar o equilíbrio entre as técnicas de repente seja o complexo na nova Antropologia, mas
quando alguém consegue fica claro que não é impossível de fazê-lo.
Pierre Verger talvez seja o fotógrafo/etnógrafo que alcançou isso quando ainda a discussão de
validade acadêmica da fotografia estava acontecendo.
O filme Pierre Fatumbi Verger: mensageiro entre dois mundos, sobre a vida e a obra do francês
que se tornou baiano fundamental, foi narrado e apresentado por Gilberto Gil, que encarna o papel
de refazer os caminhos percorridos por Verger, nos três continentes: África, Europa e América;
mostrando sua vida e pesquisa que se misturam aos olhos de quem começa estudá-lo.
O enredo do filme é intenso entre os mundos baiano e africano, o tempo todo somos emba-
lados por atabaques tocados com força e vigor, o contraste sempre muito presente reforça o olhar
que Verger tinha, misturado às cores e línguas que faz do mistério e do segredo personagens que
estão ali, na Bahia, na África, em Verger, no filme.
Pierre Verger vê no ano de 1932 um marco, após a morte da mãe, torna-se um fotógrafo viajante.
De dezembro de 1932 até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de viagens ao redor
do mundo, sobrevivendo exclusivamente da fotografia. Verger negociava suas fotos com jornais,
agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas e até trocou seus serviços por transporte.
Paris tornou-se uma base, um lugar onde revia amigos e podia fazer contatos para novas viagens.
Trabalhou para as melhores publicações da época, mas em suas imagens observamos sempre o
olhar atento que registrava os costumes e hábitos de negros por todo mundo. Na sua viagem à
África Ocidental (1935-1936), Verger conhece a cultura iorubá e somente em 1946 chega a Salvador
onde aguçou seu interesse pelas raízes dos costumes locais e a relação entre a cidade brasileira e
o outro lado do Atlântico, iniciando uma pesquisa sobre a cultura e a religião africanas: cultos aos
orixás, a botânica usada nos rituais, o comércio de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de
Todos os Santos foram alguns de seus temas.
Verger, como ele mesmo diz na entrevista incluída no filme, fixou-se na Bahia em “razão do
charme de Salvador”, onde inicialmente não “ousava” fotografar nenhuma pessoa de pele clara.
Nessa pesquisa ele passa 20 anos entre os dois continentes, protegido por uma entidade; torna-se
filho de Mãe Senhora, realizando um trabalho academicamente reconhecido, recebia uma bolsa
de estudos e pesquisas do Institut Français d’Afrique Noire (Ifan) e como resultado apresenta a etno-
grafia Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos, dos
séculos XVII a XIX, um trabalho que mostra a forte relação de brasileiros em Benin e africanos em
Salvador. A realização dessa obra se deu de uma maneira mais que participativa, Verger foi primei-
ramente iniciado no candomblé, é nomeado babalaô (pai do segredo, uma espécie de adivinho),
se torna Fatumbi depois de batizado no Ifá (jogo de adivinhação que deu origem ao que é conhe-
cido como jogo de búzios no Brasil). Pierre Fatumbi Verger era integrante, participante e religioso,
ganhou confiança, entrou no mundo de segredos e mistérios que pesquisava. Ele próprio dizia-se
racionalista, que não acreditava e não se considerava pesquisador já que não possuía seriedade e
vontade de perguntar tal como um pesquisador faz, naquele momento ele estava criando um estilo
próprio de fazer etnografia, de pesquisar e fazer ciência. Em 1966 recebeu o título de doutor pela
Academia na Universidade Sorbonne sem mesmo ter uma formação acadêmica, mas uma formação
de conhecimento da realidade.
O diretor Lula Buarque de Hollanda nos leva em uma viagem na vida de Verger e na história e
conhecimentos africanos. Em alguns momentos do filme os detalhes são tantos que parece que Verger
está no segundo plano: a voz dada aos africanos entrevistados é constante, as imagens mostram as
ricas heranças africanas no Brasil, quadros interessantes são apresentados com movimento e depois
a fotografia de Verger, a combinação funciona muito bem. Quando não estamos sendo invadidos
por uma cultura negra com modos de organização, religião e costumes muito particulares com uma
lógica muito elaborada estamos assistindo rituais onde a beleza dos detalhes, das cores, contrastes,
composições se revelam em instantes. As entrevistas das pessoas envolvidas com o candomblé e
com Verger e os depoimentos de pesquisadores, fotógrafos e amigos como Jean Rouche, Jorge
Amado, Zélia Gattai, Mãe Stella, Pai Agenor, Cid Teixeira e Milton Geran são mesclados com textos de
Verger narrados por Gil.
Gilberto Gil empresta ao filme um pouco de si, de sua crença, fé e emoção. Parece ter se
identificado muito com o papel que lhe é incumbido: refazer o caminho de Verger por Paris, Benin e
Bahia, por meio das pesquisas de Lula Buarque e Marcos Bernstein. A entrevista que Verger concedeu
a Gil é interessante em vários aspectos, nela o fotógrafo fala do seu racionalismo e surpreende quando
fala que não existe incorporação e sim o extravasamento daquilo que a pessoa é (e/ou que a crença
e o social permitem que ela seja – uma análise, digamos, estruturalista). Outro dado interessante
é quando afirma que não se considera um pesquisador, pois não pergunta “o que é” ou “o que
significa isso”? Parece que Verger ao contrário busca conhecer, no sentido de ter uma experiência
individual e subjetiva, para então fazer análises e abstrações. No entanto o que mais chama a
atenção é o que ocorre depois da entrevista, Pierre Verger morre no dia seguinte. Agora não é a vida
e obra de Verger que está virando filme, sua morte também é registrada, é capturada pelas lentes e
sentida pelo narrador (Gil). Mas uma vez, o mistério se faz presente no filme, quando acontece algo
que não pode ser nomeado de mera coincidência de fatos. O final do filme é o final da vida do seu
protagonista: Pierre Fatumbi Verger (1902-1996).
Atividades
1. Por que a descrição fotográfica é considerada polissêmica?
Referências
ARANHA, M. L. de A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.
BARTHES, R. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
_____. A mensagem fotográfica. In: LIMA, L. C. Teoria da Cultura de Massa. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990.
BOSI, A. Fenomenologia do olhar. In: NOVAES, A. (Org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
CHAUÍ, M. Janela da alma, espelho do mundo. In: NOVAES, A. (Org.). O Olhar. São Paulo: Cia. das Letras,
1988.
_____. Simulacro e Poder. São Paulo: Perseu Abramo, 2006.
DESCARTES, R. Discurso do Método. Rio de Janeiro: Edição de Ouro, s/d.
FELDMAN-BIANCO, B.; LEITE, M. L. M. (Orgs.). Desafios da Imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas
ciências sociais. São Paulo: Papirus, 1998.
GOMES, J. Pierre Fatumbi Verger – mensageiro entre dois mundos. Disponível em: <www.overmundo.
com.br/overblog/pierre-fatumbi-verger-mensageiro-entre-dois-mundos>. Acesso em: 20 ago. 2012.
GOMES JÚNIOR, G. S. A Etnografia como Gênero Literário. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/
fsp/resenha/rs13029904.htm>. Acesso em: 20 ago. 2012.
KUBRUSLY, C. A. O que É Fotografia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
LAPLANTINE, F. A Descrição Etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.
LEBRUN, G. Sombra e luz em Platão. In: NOVAES, A. (Org.). O Olhar. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.
MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MEAD, M. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva, 1969.
_____. Visual anthropology in a discipline of words. In: HOCKINGS, P. (Org.). Principles of Visual Anthro-
pology. Paris: Mouton, 1975.
_____. Growing up in New Guinea. Nova York: Perennial Classics, 2001.
_____. Coming of Age in Samoa: a psychological study of primitive youth for western civilization. Nova
York: Perennial Classics, 2001.
MONTE-MÓR, P.; PARENTE, J. I. Cinema e Antropologia: horizontes e caminhos da antropologia visual.
Rio de Janeiro: Interior Edições, 1994.
NOVAES, A. et al. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
VERGER, P. F. Notas sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na
Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: Edusp, 2000.
_____. Fundação Pierre Verger. Disponível em: <www.pierreverger.org>. Acesso em: 20 ago. 2012.
Gabarito
1. A fotografia é considerada polissêmica por apresentar duas dimensões. Segundo Barthes, a
dimensão conotativa é a leitura que a sociedade faz da imagem e a dimensão denotativa é o
registro real da imagem.
4. A Antropologia Visual, com seus diversos recursos, possibilita ao exercício etnográfico instrumentos
eficazes de descrição que colaboram com a fidelidade do registro dos dados, agem como
facilitadores do diálogo entre as culturas e auxiliam na vigilância epistemológica do etnógrafo.
Antropológicas
ISBN 978-85-387-3173-3