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Renato Russo e Cazuza
Renato Russo e Cazuza
Junho de 2007
JOSÉ ROBERTO SILVEIRA
Junho de 2007
JOSÉ ROBERTO SILVEIRA
Banca Examinadora:
Junho de 2007
A minha mãe, Madalena, fonte de força e ternura.
Ao Olívio M. Bandeira, o animal que logo sou.
AGRADECIMENTOS
This work aims at a reading of the lyrics in the songs of Renato Russo and
Cazuza in the guise of present-memories, and as autobiographic and
confessional registers. We endeavour to uncover the self of their generation
through the autobiographic register of the rock lyrics which stage the experience
of the crossing of the 1980s. This dissertation, divided into three chapters,
starts by placing the individual in the social-historical context of the re-
democratization in Brazil, something which will allow the realization of the
characteristics which permeate the artistic productions and the understanding of
the peculiarities of the rock music of the period. Then we present a discussion
on the relation between music and poetry, going through the new technological
devices contemporary art relies on. After that we analyze, through the study of
their poetic and documental works, the ways in which the individual is inscribed
in society. The poetic-musical works of Cazuza and Renato Russo are read as
autobiographical, confessional texts. Guilt and forgiveness are revealed and
searched for in the materiality of the poetic word itself. Finally, we try to hear the
voices that interact in these texts and go on to pursuing the remains in the
polyphonic lyrics of the rock music, in which different cultures and poetics are
intertwined. The research is theoretically and methodologically based on
Jacques Derrida, Mikhail Bakhtin, Octavio Paz, Eneida Maria de Souza and
Michel Foucault. The theoretical concepts are scattered throughout the text,
bringing the poetics close to the concepts, thus allowing for a reading of Renato
Russo and Cazuza as the poetics of the crossing.
INTRODUÇÃO ............................................................................................. 8
1
Para um levantamento de dados mais abrangente da história do estudo da música no Brasil
consultar o artigo “Pontos de escuta da música popular no Brasil”, de Elizabeth Travassos
(2005).
que extrapola o texto e ganha as dimensões dos vários pontos de leitura e
escuta. Dessa forma, abordagens literárias e culturalistas têm ido além do
simples debruçar sobre formas. A produção musical brasileira, composta pelos
mais diversos gêneros e ritmos, fornece, no mesmo leque de variedades,
elementos para análises, que se estendem sobre a forma e a composição, e
para abordagens atentas ao cruzamento de materiais semióticos, à inovação
tecnológica e à influência decisiva dos meios de (re)produção em massa.
Affonso Romano de Sant’Anna (2004), preocupado com o paralelo entre a
música popular e a poesia brasileira, empreende comparações entre formas
populares da canção e a poesia modernista brasileira. Por sua vez, Beatriz
Resende (2002), a intelectual que sai do gabinete da academia e vai à rua e
sobe os morros das favelas, dá o tom e o ritmo da música de grupos postos à
margem, mas que são capazes de fazer soar o grito de protesto, crítica e ironia
de uma população que se sente injustiçada e desprotegida. Autores como
Wander Melo Miranda, José Murilo de Carvalho, Eneida Maria de Souza, Luis
Werneck Viana, entre outros críticos de literatura e cientistas sociais,
propuseram decantar a república2 e, em meio ao processo de separação dos
resíduos de ruínas, contradições, injustiças, mazelas e querelas do Brasil,
põem em estudo o canto de celebração, exaltação e questionamento da nação.
Silviano Santiago (2004), em “A democratização no Brasil – cultura
versus arte”, nos lança algumas questões inquietantes que os cursos de pós-
graduação no Brasil vêm repensando. Santiago discute o papel do intelectual,
pensador da literatura de uma minoria letrada, que agora desperta para a
cultura da maioria, e parte para uma compreensão da transformação social,
econômica e cultural da sociedade, através do ruído harmônico da música
popular-comercial presente no cotidiano da vida brasileira. O interesse pela
cultura pop nasce na academia quando o professor de Letras se volta para a
complexidade do fenômeno da música que nos envolve no dia-a-dia3. Santiago
2
Decantando a nação: inventário histórico e político da canção popular moderna (2004):
coletânea de três volumes que resultam do seminário de mesmo nome que reuniu, na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em setembro de 2001, filósofos,
historiadores, sociólogos, cientistas políticos, psicanalistas, antropólogos e críticos literários de
diversas instituições do Brasil. O olhar trans-inter-disciplinar sobre os “jeitos da nossa canção”
talvez seja a marca maior deste trabalho (CAVALCANTI, B; STARLING, H. M. M.;
EISENBERG, J. (orgs.), 2004).
3
De acordo com Santiago, o primeiro grito de escuta desse fenômeno foi dado pelo jovem
intelectual com formação na Universidade de São Paulo, o professor de Letras e músico José
concebe, então, a música como um lugar privilegiado para se pensar a cultura,
a política, o social, o econômico e o histórico do país. O seu trabalho funciona
como uma resenha sobre as portas abertas para o estudo da música
comercial-popular no Brasil e entra na discussão a importância dos meios de
comunicação de massa, como a televisão, o rádio e a indústria fonográfica -
elementos que não podem se ausentar, caso se pretenda a compreensão da
abrangência e alcance da canção em nossas sociedades.
O intelectual da Universidade, como ressalta Santiago, desperta, então,
para a voz e poesia dos “letrados” da “MPB” e do “rock dos 80” ou dos que se
manifestam pelo rap, hip hop, funk e tantos outros gêneros, os quais se tocam
e se hibridizam. Da modinha ao rock, a música brasileira se caracteriza pela
variedade de formas e estilos, uma de suas características mais importantes,
que reflete a nossa diversidade cultural. A produção musical, ao lado da
literatura, é capaz de fazer vir à tona questionamentos que permitem re-pensar
questões imanentes ao ser humano e questões que perpassam a cultura e a
sociedade. Daí, a sintonia que Lucia Lippi Oliveira denota:
Miguel Wisnik com o artigo “O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada
vez”, capítulo do livro Anos 70 – 1. Música Popular (SANTIAGO, 2004, p142).
4
OLIVEIRA, 2004, p.102.
O foco desta dissertação, portanto, recai sobre as particularidades do
rock na versão brasileira dos anos 80. Como objetivo principal o trabalho
propõe uma leitura da produção escrita das obras musicais de Renato Russo e
Cazuza como memórias-presentes e registro autobiográfico e confessional.
Tomam-se Renato Russo e Cazuza como companheiros viventes da travessia
da década de 80 que protagonizam na escrita poético-musical os percalços da
caminhada. Dessa forma, o teor autobiográfico e confessional da escrita dois
autores se estende para todos aqueles de sua geração.
O corpus da pesquisa compreende as letras de música compostas por
Renato Russo para a banda Legião Urbana, e as de Cazuza em carreira solo, a
partir de 1985. As composições de Cazuza trazidas para a pesquisa ainda
compreendem algumas interpretadas pelo grupo Barão Vermelho, do qual o
compositor foi vocalista até 1984.
A Legião Urbana marca oficialmente sua entrada no cenário nacional do
rock em 1984, em Brasília, palco fértil para o rock brasileiro. A origem do grupo,
formado por Renato Russo, letrista e vocalista, Dado Villa-Lobos, guitarrista, e
Marcelo Bonfá, baterista, vem da banda punk Aborto Elétrico, criada por
Renato Russo, no fim da década de 1970. A Legião Urbana se consolida no
mercado ao longo das décadas de 1980 e 1990 e é considerada pela crítica e
público como uma das melhores bandas de rock do Brasil. Assinadas e
interpretadas por Renato Russo, as canções da Legião Urbana mesclam um
lirismo altamente acentuado e a escrita autobiográfica de um eu capaz de
responder pelo momento histórico que o acolhe. A banda lançou, no período de
1984 a 1997, os álbuns Legião Urbana (1984), Dois (1986), Que país é este
(1987), As quatro estações (1989), V (1991), O descobrimento do Brasil (1993),
A Tempestade (1996) e Uma outra estação (lançado depois da morte de
Renato Russo, em 1997). O material escrito da obra musical permite o
posicionamento crítico do autor, no diálogo da primeira pessoa do singular com
os acontecimentos que norteiam a sua época. A canção se instala, assim,
como memória cultural de um tempo, suplementando o processo de transição
de uma década.
As letras de Cazuza correspondem, nesse mesmo sentido, ao papel do
intelectual que pensa com e por seu tempo. Cazuza estréia sua carreira solo
com o lançamento de Exagerado, em 1985, depois de ter participado do grupo
Barão Vermelho, formado no início de 1980, no Rio de Janeiro. Até julho de
1990, ano da morte de Cazuza, sucederam-se os seguintes álbuns: Só se for a
dois (1987), Ideologia (1988), O tempo não pára (1988), Burguesia (1989) e o
póstumo, Por aí (1991). Ao lado de Renato Russo, Cazuza é considerado um
dos grandes letristas do rock brasileiro. Suas letras experimentam o tom
exagerado, marca da escrita do eu que luta contra o tempo que não pára e
deixa o registro, instintivo e confessional, capaz de extrapolar o traço biográfico
e responder, como a literatura – que também é intempestiva – por sua geração.
As letras das canções são tratadas aqui como poesia. O suporte
teórico-metodológico não abarca a parte sonora e performática da produção
musical. A relação entre letra de música e poesia é tratada na primeira parte do
segundo capítulo, quando, então, tem-se uma maior compreensão do diálogo e
das relações entre essas formas de expressão, que se aproximam ou se
afastam conforme os seus suportes. O recorte das canções analisadas seguiu
uma escolha temática que pôde estabelecer diálogo com o suporte teórico5.
Dessa forma, as canções passam a dialogar com os principais conceitos
teóricos da pesquisa: Jacques Derrida (2002, 2004), Mikhail Bakhtin (1981),
Eneida Maria de Souza (2002) e Octavio Paz (1978). Ao longo dos capítulos,
aproximam-se teoria e metáfora, conceito e poética. Dessa forma, a
dissertação não apresenta um capítulo apenas teórico: teoria e objeto se
diluem ao longo do texto. A diluição aponta uma contaminação de discursos,
que reflete parte da prática daqueles que protagonizam qualquer travessia.
A leitura assim sugerida – teórica e poética – procede do trabalho de
“arqueólogo” de Michel Foucault (1987) que propõe a substituição das grandes
sucessões lineares – a história dos longos períodos, das grandes bases
imóveis e das grandes narrativas tradicionais – pelo jogo das interrupções e
descontinuidades. Procedimento que permite operar nas rupturas especificas e
fazer aparecer vários passados e outras formas de encadeamento e
hierarquias históricas – e também de metodologias. Considerando-se esses
fatores metodológicos, a dissertação se organiza em três capítulos.
O primeiro capítulo parte de uma breve contextualização política,
econômica e cultural da década de 1980 para o entendimento do rock desse
5
A data da produção das canções e a referência aos álbuns nos quais elas se agrupam,
quando necessárias, são mencionadas no texto.
período no Brasil. A contextualização permitiu localizar o sujeito e sua
produção artística num momento em que o país se desvincula do autoritarismo
e repressão da ditadura militar e aponta para as possibilidades do exercício da
democracia. Com esse objetivo, busca-se informação histórica em Heloísa
Buarque de Hollanda (1981), quando, em Impressões de viagem, ao tratar da
produção artística das décadas de 60 e de 70, nos permite um confronto com o
artista e sua produção no contexto da década seguinte. O artista dos anos 80
se afasta da atuação política e do engajamento cultural e se volta para a
produção artística que protagoniza suas necessidades, anseios e desejos.
Dessa forma, temos um rock’n roll que toma o sotaque brasileiro e passa a ser
forma e veículo da expressão dessa geração. As letras, então, passam a
comportar o alto teor de subjetividade, voltando-se para a urgência do
presente, no qual convivem os sentimentos de impotência e esperança, de
encanto e culpa. Herdeira do lema “faça você mesmo”, a espontaneidade, a
necessidade de expressão, o subjetivismo, a força poética e musical da
juventude oitentista e, principalmente, o baixo custo de produção são
absorvidos pela indústria fonográfica. O rock alcança, a partir de meados dos
anos 80, uma grande visibilidade, mediada pelo LP e pela divulgação
radiofônica, e se torna artigo da indústria da cultura. Para entendimento desse
rock, buscamos apoio em pensadores da cultura como Walter Benjamin (1993),
Theodor Adorno (1985) e Silviano Santiago (2004). No que diz respeito à
história geral do gênero musical, recolhemos dados em Roberto Muggiati
(1973). Em Guilherme Bryan (2004) e em Ricardo Alexandre (2002),
localizamos informações históricas e citações sobre a cultura e o rock dos anos
80 no Brasil.
Silviano Santiago, ao se ater às questões, problemas e reflexões
inspirados pela democratização no Brasil, aponta uma sociedade do
espetáculo, dos produtos pasteurizados da indústria da cultura e da política de
globalização, que se harmonizam com o vazio, com a necessidade de
expressão e com o consumo do sujeito desse período. O rock configura-se,
neste cenário, como arte e produto de venda, assumindo, assim,
características de hibridez, quando comunga, num rompimento de barreiras,
arranjos tradicionais e tecnológicos, subjetividade e valor comercial, rebeldia e
consumo, e ainda o diálogo entre culturas, que o constitui como um gênero
polifônico. Em Benjamin, ampliamos o entendimento da arte criada para ser
reproduzida. O “valor de exposição”, que afasta qualquer resquício de aura,
aproxima pela reprodução técnica a arte e o seu público consumidor. Por outro
lado, buscando o pensamento de Adorno, observa-se que o rock assume
características de arte pop, e não de gênero popular, entendido pelo teórico
como aquela arte em que produtor e consumidor são os mesmos. Como arte
pop, o rock responde por uma das características que define o pós-
modernismo, de acordo com Frederic Jameson (1993).
Passa-se para o segundo capítulo que discute, num primeiro momento,
a relação antiga e íntima entre poesia e música, e como que esta última, na
contemporaneidade, ocupa o lugar antes reservado à primeira. As exposições
de Jacques Derrida, em Papel-máquina (2004), apontam os novos suportes
tecnológicos que deslocam a poesia do seu formato tradicional de livro para
incorporações eletrônicas e virtualizantes. Deslocamento que promove uma
inversão na hierarquia e no prestígio da palavra escrita, ao mesmo tempo em
que retoma a intimidade entre música e poesia.
Renato Russo e Cazuza ao tomarem o uso desses suportes para
veicular suas produções poéticas e melódicas se inscrevem no tempo e no
espaço que os concebem e os recebem. Os conceitos de crítica biográfica e de
relação entre autor e obra, de Eneida Maria de Souza (2002), permitem o
entendimento dos modos de inscrição do sujeito na sociedade, a partir de sua
obra poética e documental. Assim, a subjetividade da obra de Renato Russo e
Cazuza não é vista sob o ângulo da relação naturalista e factual entre vida e
obra, mas como encenação e representação da experiência dos seres viventes
da travessia.
Pode-se agora ler a escrita autobiográfica do animal-poeta-fingidor. O
conceito operacional de Jacques Derrida (2002) sobre a escrita do animal
autobiográfico é aplicado em nossos autores. Lemos, então, Cazuza e Renato
Russo como animais propensos à autobiografia, quando cedem instintivamente
ao registro da própria vida. Compreende-se, portanto, que o registro
autobiográfico que se dá pelas letras das canções de rock pressupõe o caráter
de encenação e representação do vivido – exercício de Renato Russo e
Cazuza que entra em consonância com a declaração de Fernando Pessoa que
aponta o poeta como fingidor.
Ao escrever, em nós se revela o outro: despimo-nos, confessamo-nos.
Assim, a partir de Derrida, que empreende uma escrita da genealogia da
escrita da confissão em Papel-máquina (2004) e em O animal que logo sou
(2002), lemos a obra de Renato Russo e Cazuza como o relato da confissão.
Ao confessar, ambos expõem a culpa e anseiam por perdão. Culpa e perdão
se revelam e são buscados na mesma palavra poética.
O terceiro capítulo abarca o caráter polifônico do rock. O gênero na
expressão brasileira dos anos 80 dialoga com tempos e culturas distantes,
trazendo para a poética roqueira diversos ecos literários, musicais e históricos.
Pelos conceitos de polifonia de Mikhail Bakhtin (1981), lemos Renato Russo e
Cazuza e percebe-se o suplemento das espessuras finas do palimpsesto, no
qual escritas se tocam, penetram-se, contaminam-se. Aproximam-se o caráter
do roubo da escrita proposto por Derrida, em Papel Máquina, e o conceito de
“outridade” de Octavio Paz (1982). Assim, questiona-se o lugar em que se
deixam perceber as marcas daquilo que não se apaga completamente na
espessura do palimpsesto. Quais os rastros, vestígios sobre vestígios, onde se
pode detectar o clandestino, o roubo, a confissão do roubo de escrita, na
escrita “que acusa e que se desculpa pelas citações e quase citações”6?
A partir de Bakhtin, compreendemos o sujeito e suas inúmeras formas
de expressão – práticas e artísticas – sempre comportando uma perspectiva de
vozes distintas, que em confronto ou harmonia, tecem o discurso, a literatura e
as artes. Há nesse processo de movimentação aquilo que renasce e se renova,
aquilo que se conserva e o que se acrescenta. A escrita polifônica ecoa, na
multiplicidade de vozes que tecem o texto do rock, rastros e vestígios de
poéticas diversas, que na espessura do palimpsesto se revela culpada. O
acontecimento textual e o diálogo entre escritas, como um ato de contrição,
buscam a salvação, ao mesmo tempo em que a própria escrita, que tenta
apagar a culpa, se fixa na profundidade do corte e do rastro e se lavra como a
própria condenação.
A poesia é apontada por Octavio Paz como uma revelação de nossa
condição. Ao nos revelarmos, criamos. Criamos ao nos revelarmos, deixando
vir à tona, pela poesia, que é uma “outra voz”, a “outra voz” que nos constitui.
6
DERRIDA, 2004, p.62.
Aproximando Derrida, Bakhtin e Paz, lê-se Renato Russo e Cazuza nos rastros
que compõem a escrita do animal autobiográfico, fragmentado, descentrado e
desconcertado, que ousa a travessia.
Sem a pretensão de uma visão totalizadora da obra de Renato Russo e
Cazuza, empreende-se uma leitura das escritas desses autores como a poética
da travessia. O caminho escolhido leva a uma escrita acadêmica que se situa
entre as citações – poéticas e teóricas – e se revela contaminada pelo discurso
do outro – poética e teoricamente.
1. O SUJEITO DA TRAVESSIA E DO DESCONCERTO
O Homem se traduz no ritmo, cifra de sua temporalidade.
Octavio Paz
1.1. Do “iê-iê-iê” ao rock dos anos 80
Tentando se vestir com as roupas festivas da redemocratização, a década
de 1980, no Brasil, se inicia no ritmo da abertura democrática, depois de um
governo militar autoritário que regeu com mãos de ferro o país, desde o golpe
de 1964. Entre o colorido das novas vestes e os resquícios dos trapos do luto,
o cenário nacional abriga uma configuração política que, dando continuidade
ao processo de abertura “lenta, segura e gradual”, preconizada pelo governo
Geisel, mobiliza, em 1984, uma multidão em torno do dilema “Muda Brasil”,
entoando o grito pelas “Diretas Já”, emenda constitucional7 que garantiria, se
aprovada pelo Congresso Nacional, eleições diretas para presidente da
república. Entretanto, a mobilização, o grito e a luta não foram suficientes para
a aprovação da emenda Constitucional Dante de Oliveira. No entanto, ainda no
ritmo da vibração pela implantação de uma democracia no país, a candidatura
e vitória de Tancredo Neves, pelo colégio eleitoral, pareciam dar continuidade
ao tempo de esperança e luta do brasileiro. O encanto da população logo seria
tomado pelo medo, quando impossibilitado de assumir o cargo, o então eleito
presidente adoece profundamente e morre em 21 de abril de 1985, e, então,
assume seu vice, José Sarney. O fracasso de planos econômicos promove o
ritmo do desencanto do brasileiro. Em 1990, eleito diretamente pelo povo,
Fernando Collor parece dar outro tropeço na democracia e na liberdade do
brasileiro. A era Collor, obscura e desencantadora, dura até seu impeachment
em 1991, quando outro vice-presidente, Itamar Franco, assume o governo. No
release do disco dos Titãs de 1987, o escritor Paulo Leminski descarrega suas
palavras sobre um vice-país: “(...) Os Titãs é o que restou do rock, suas letras
são o que restou de um país falido, um vice-país, vice-governado, vice-feliz,
vice-versa”8.
O cenário cultural ensaia, entre tantos estilhaços e desencantos, a
diversidade e a liberdade, já que o país tenta se equilibrar e caminhar em
7
A emenda das “Diretas Já” permitiria, se aprovada pelo Congresso Nacional, eleição
presidencial direta já em 1984. A emenda que leva o nome do autor, o deputado federal mato-
grossense Dante de Oliveira, ganha um amplo apoio popular, de políticos da esquerda, de
artistas e de intelectuais. O movimento com o nome de “Diretas Já” se espalha pelo Brasil em
grandes comícios. No dia 16 de abril, pouco antes da votação da emenda pelo Congresso
Nacional, uma multidão estimada em mais de 1,5 milhões de pessoas tomou o vale do
Anhangabaú, em São Paulo. Foi uma das maiores manifestações políticas jamais vista no
Brasil. A votação aconteceu, em Brasília, no dia 25 de abril. A proposta foi rejeitada por falta de
22 votos (foram 298 votos a favor, 65 desfavoráveis e 113 abstenções).
8
LEMINSKI apud DAPIEVE, 2004, p.101.
direção à democracia plena, depois dos anos de chumbo do autoritarismo
militar. A geração 80 não herda a atuação política das décadas anteriores (60 e
70). Sem o cunho político ideológico e a participação engajada, as produções
dos jovens artistas são marcadas pelo alto teor de subjetividade, sem
compromissos diretos de atuação e contestação política. A palavra poética
tenta responder pelo eu e não aposta mais na eficácia revolucionária, como
acreditava o artista dos anos 60. “Nos anos 80, a meninada começa a falar o
que realmente interessa a ela de modo mais direto. De amores desgraçados,
sem ter que falar politicamente de cerceamento, de vamos tomar o poder! Para
fazer o que com ele?”9. As palavras de Ezequiel Neves, produtor musical, dão
o tom da produção poética de várias bandas de rock que surgem no início da
década e se fazem ouvir no país inteiro, por anos afora.
Heloísa Buarque de Hollanda, em Impressões de Viagens (1981) –
trabalho que examina como, a partir da década de 60, a literatura participa dos
debates mobilizados pelas propostas revolucionárias da produção populista e
do experimentalismo de vanguarda – observa como, no calor dos “incríveis
anos 60”, a produção cultural é marcada pela “necessidade de uma arte
participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética”10. A
arte popular revolucionária correspondeu, portanto, a uma demanda colocada
pela efervescência político-cultural da época. Ainda que na prática, como
analisa Hollanda, a poesia populista não desempenhava, apesar de seu
propósito engajado, função revolucionária “enquanto palavra política e poética,
conseguiu, no contexto, um alto nível de mobilização das camadas mais jovens
de artistas e intelectuais a ponto de seus efeitos poderem ser sentidos até
hoje”11. Na agitação mundial que norteia o ano de 1968, quando surge a massa
atuante dos estudantes universitários, há a saída de cena da produção poética,
quando há o deslocamento da poesia para o teatro, para o cinema e para a
música. Tais manifestações ocupam o cenário cultural da época e chamam
atenção tanto dos produtores como dos receptores da cultura.
Em se tratando da mudança cultural para o campo da música popular,
esta é vista como uma forma de captar e transmitir sentimentos e valores
9
NEVES apud BRYAN, 2005, p.34.
10
HOLLANDA, 1981, p.17.
11
Ibid., p.28.
necessários para uma evolução social e ainda como forma de manter vivas
tradições de unidade e integrações nacionais. Porém, o mesmo problema
diagnosticado, o que leva ao fracasso da poesia como manifestação da voz do
povo, também acontece na música, quando há o distanciamento entre o
intelectual, que tenta se passar como porta-voz do povo oprimido, e a grande
massa, que não consegue ter em tais manifestações culturais o real registro de
seus anseios e a resposta para eles. Dessa forma, a produção cultural
engajada se restringe a um circuito fechado, consumida por um público de
intelectuais e estudantes da classe média, sem atingir, portanto, as classes
populares – fracassando em suas pretensões revolucionárias.
O engajamento experimentalista das vanguardas da década de 60
também acreditava nos aspectos revolucionários da palavra poética e queria
participar ativamente dos debates políticos. O intelectual também se colocava
ao lado do proletariado e se achava no direito de por ele falar. E sem lugar para
a intervenção da subjetividade do poeta,
12
Ibid., p.61.
moderno e a crítica ao comportamento. Preocupa-se com o momento e
“começa a pensar a necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento,
rompendo o tom grave da falta de flexibilidade prática da política vigente”13.
Obviamente, num contexto mais amplo, vários nomes e bandas tentam
se firmar ou pelo menos produzir um “som” no país regido pelos militares. No
Brasil, o rock registra, nas duas dezenas de anos de luta para firmar e
sobreviver, contraditoriamente ao seu tom de rebeldia, bons antecedentes: uma
letra ingênua-brega dos “banhos de lua” e dos “biquínis de bolinha amarelinha”
de Celly Campello e os iê-iê-iê inspirados nos “yeah, yeah, yeah” de “She loves
you”, dos Beatles, de 1963. Por essa época, o rock ainda é visto como um
artigo importado e supérfluo. No entanto, é nesse mesmo período que, no
Brasil, a contracultura, o desbunde, o underground, as drogas e mesmo o rock
dão seus sinais, funcionando como uma recusa ao atual projeto político e
econômico. Começa nesse tempo, um desinteresse pela política. Ainda
estamos na década de 70, mas esse tom será o da década seguinte, quando
de fato o rock recebe o sotaque brasileiro e carrega nas letras a subjetividade
do autor sem a preocupação e a necessidade de um engajamento político.
O rock se firma como estética do aqui e agora, já que é a expressão de
uma geração sem perspectivas, ainda que livre da repreensão, mas que vê o
passado repetir o futuro, sem grandes novidades: uma geração que aprendeu a
viver com o que possui, sem ideologia, sem expectativas de tomada de poder,
sem heróis, mortos por overdose, e com inimigos no poder14. O cenário político
permite a liberdade de expressão do artista que, depois de reprimido por anos
de censura, não se sente à vontade para colocar na pauta de suas produções a
dor, o sofrimento, a repressão e o sufocamento da ditadura militar dos anos
anteriores, que agora dá sinais claros de esgotamento. O artista opta, porque
não é dele exigido, falar do seu mundo e do seu tempo e, dessa forma,
configura-se uma poesia da momentaneidade, na qual transborda a
subjetividade, sem, no entanto, desembocar na poesia ingênua da rima fácil.
Órfão de um sistema político falho, o sujeito se desprende do engajamento
político, porque dele nada herda, daí a re-criação apenas do “seu mundo” na
poesia da música. E como música, essa poética se expande, parte de um
13
Ibid., p.61.
14
Referência aos versos de Cazuza, em “O tempo não pára”.
pequeno universo para um cenário nacional: ainda que Cazuza fale da zona sul
do Rio de Janeiro, consegue se comunicar com todo o país ao protagonizar na
voz do “poeta exagerado” toda escassez que marca o homem que atravessa
na corda bamba a “década perdida”.
Na irreverência e humor de João Penca e seus Miquinhos Amestrados,
parte do elenco que protagoniza a cena cultural dos anos 80 desfila na música
“Luau de arromba”15, paródia do ingênuo clássico da Jovem Guarda “Festa de
Arromba”16. A letra comporta, na aparente ingenuidade da brincadeira, a
capacidade de atualização da paródia e antecipa-nos uma importante
característica do rock, que será sua capacidade de diálogo, compondo-se,
muitas vezes, numa rede constante de comunicação com ritmos, autores,
gêneros e suportes diversos, de tempos e culturas próximas e distantes.
Percebe-se, assim, a mudança de comportamento de gerações que fizeram
parte da cena musical brasileira. A festa que virou luau tem todos como
convidados: a marca da diversidade se torna visível quando o país ensaia seus
primeiros passos rumo à redemocratização.
Como movimento musical, a Jovem Guarda surge em 1963, sendo a
primeira versão brasileira do rock mundial, conhecida também como iê-iê-iê.
Liderado pelo cantor e compositor Roberto Carlos, o movimento, com apoio
dos meios de comunicação em massa, tem programas em redes de TV e dura
até o surgimento do Tropicalismo, em 1968. Os cantores de destaque são
Eduardo Araújo, Martinha, Rosemary, Ronnie Von, Antônio Marcos, Deny e
Dino, Leno e Lílian, The Jordans, The Jet Blacks, Renato e seus Blues Caps,
Golden Boys, Os Incríveis, entre outros convidados para aquela “festa de
arromba”.
Para o “luau” os convidados são outros. Como som de base híbrida, o
rock se configura pela a mistura de gêneros e estilos que marca a década. Na
letra, Selvagem Big Abreu consegue pincelar algumas características do
período: a presença dos meios de comunicação de massa, o rádio, a televisão
15
JOÃO PENCA E SEUS MIQUINHOS AMESTRADOS. “Luau de arromba”. Selvagem Big
Abreu, Leandro [compositores]. In: –. Okay, my gay. São Paulo: RCA Vitor. p1986. 1LP. Faixa
1.
16
CARLOS, E. “A festa de arromba”. E. Carlos, R. Carlos [compositores]. In: –. A pescaria com
Erasmo Carlos. São Paulo: RGE, p.1965. 1LP. Faixa 3.
e o disco, cada vez mais presentes com o advento da tecnologia, na sociedade
globalizada do espetáculo:
Essa cultura, já bem distante de uma forma linear, configura-se cada vez
mais plural, quando há o rompimento de barreiras delineadas e os modos de
separar alta e baixa cultura se desfazem, incorporando manifestações
folclóricas tradicionais e formas eruditas restritas e elitistas. O folclórico e o
erudito se misturam recebendo um fator comum, quando a esse novo produto,
o valor comercial é acrescentado. Em se tratando do gênero musical rock –
híbrido por natureza – na versão brasileira dos anos 80, talvez seja mais fácil
categorizá-lo ao dizer “que certas proposições musicais são mais rock do que
17
JOÃO PENCA E SEUS MIQUINHOS AMESTRADOS. “Luau de arromba”. Selvagem Big
Abreu, Leandro [compositores]. In: –. Okay, my gay. São Paulo: RCA Vitor. P.1986. 1LP. Faixa
1.
18
Id., ibid.
outras, isto é, preenchem um número maior de características básicas”19.
Assim, o rock permite uma infinidade de nuances e insinuações que se
introduzem nos espaços restritos das batidas melódicas. O gênero importado
para o Brasil não se faz formatado dentro do compromisso de um movimento
como foi a bossa nova e a tropicália. A experimentação da diversidade de
estilos e a variedade de bandas que se proliferam na nova república fazem
com que o rock seja mais uma atitude do que uma escola. Para Renato Russo,
19
MUGGIATI, 1973, p.8.
20
RUSSO apud BRYAN, 2006, p.288.
21
O termo se refere aos conceitos de Jacques Derrida (2002), que serão discutidos no próximo
capítulo.
22
MUGGIATI, 1973, p.8.
cultura local acontecia, esse grito ia se alterando, assumindo novas formas e
acrescentando outras. Ao adentrar a década de 1980, a juventude brasileira,
recém-saída de um regime militar, entoa um berro, uma forma também de
reconhecimento da sua própria terra que se promete livre e pronta para ser
ocupada, seja pela forma de regê-la política e economicamente, seja pela
expressão das formas artísticas.
Os jovens brasileiros são herdeiros da atitude do movimento punk anglo-
americano “do-it-yourself”. Tal herança não vem simplesmente preencher a
falta de habilidade técnica do saber cantar e tocar, também reflete a atitude de
uma juventude filha da ditadura militar que deixa fortes marcas de abandono
nos filhos da “grande pátria desimportante”23. O sotaque brasileiro do rock
corresponde à necessidade de se fazer ouvir, na aparente simplicidade das
letras e pela batida também simples de seus acordes, a voz de uma geração
que foi aprendendo consigo mesma a lidar com o seu tempo, seus conflitos e
dores, registrando, assim, um processo de crescimento e maturação. O amor
(ou a busca e conseqüências dele), a ética, o sexo, o ritmo da cidade, as dores
e frustrações são sentimentos experimentados e versificados entre fragmentos,
citações e estilhaços do presente. A poética do rock se revela como o registro
urgente do agora, com um olhar atento ao momento e ao espaço, tomando, por
isso, uma forma literária que se aproxima do diário, ou seja, o registro
consonante ao calor dos acontecimentos. Acentua-se, assim, o comentário
sobre o presente e aponta para o futuro próximo, o que confere um caráter
peculiar às composições poéticas dessa época.
“Existe no ar uma urgência de renovação, uma aposta política no
inusitado, uma certeza de que nada será como antes”24, assinala Júlio Barroso,
na Veja, de 18 de fevereiro de 1981. Suas palavras entram em consonância
com as de Clemente Nascimento, ao apontar um direcionamento de ruptura da
estética e proposta da música brasileira no início da década de 80 com os
movimentos poéticos e musicais das décadas anteriores, principalmente a
MPB:
23
CAZUZA. “Brasil”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p.1988.
1CD. Faixa 6.
24
BARROSO apud BRYAN, 2006, p.49.
Nossos astros da MPB estão cada vez mais velhos e
cansados, e os novos astros que surgem apenas repetem tudo
o que já foi feito, tornando a música popular uma música
massificante e chata. (...) Nós, os punks, somos uma nova
face da música popular brasileira, com nossa música não
damos a ninguém uma idéia de falsa liberdade. Relatamos a
verdade sem disfarces, não queremos enganar ninguém.
Procuramos algo que a MPB já não tem mais e que ficou
perdido nos antigos festivais da Record e que nunca mais
poderá ser revivido por nenhuma produção da Rede Globo de
Televisão. Nós estamos aqui para revolucionar a música
popular brasileira, para dizer a verdade sem disfarces (e não
tornar bela a imunda realidade): para pintar de negro a asa
branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de
Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer25.
25
NASCIMENTO apud ALEXANDRE, 2002, p.60. A citação corresponde ao trecho final do
texto “Manifesto punk: fora com o mofo da MPB! Fim da falsa liberdade”, publicado
originalmente na edição de agosto de 1982 da Gallery Around.
A gente não sabemos nem escovar os dente
Tem gringo pensando que nóis é indigente26
26
ULTRAJE A RIGOR. “Inútil”. R. Moreira [compositor]. In. –. Nós Vamos invadir sua praia. Rio
de janeiro: WEA, p.1985. 1LP. Faixa 6.
27
Id., ibid.
28
RUSSO apud BRYAN, 2005, p.377.
este”29, canção que dá nome ao álbum, questiona um Brasil corrupto, atrasado,
desrespeitoso à constituição. “Mas todos acreditam no futuro da nação”30 soa,
ironicamente, um dos versos que aponta para a condição do Brasil como um
país do futuro à espera do eterno amanhã. Passada uma década, a canção se
mostrava tão atual quanto nos anos anteriores.
As palavras do encarte de Que país é este refletem a diferença do artista
do final da ditadura, quando o movimento punk dava suas caras e ainda havia
um teor de questionamento da situação política e econômica. O que justifica o
conteúdo do terceiro álbum da Legião Urbana que, lançado num momento
complicado para o Brasil (1987), questiona a nação sem, no entanto, soar
como possibilidade de mudança e transformação social. A palavra poética
cantada, nesse momento, ainda que possa levar o grito de protesto, não
encontra forças revolucionárias em seu eco: soa mais como nostalgia de
tempos passados do que como o grito de uma juventude que luta por um país
melhor. Se “Que país é este” questiona a nação, as palavras de Cazuza a
respeito de “Ideologia”, canção composta em 1987, conseguem, junto com sua
letra, refletir a geração 80, que nesse momento faz um balanço de seu próprio
tempo:
29
LEGIAO URBANA. “Que país é este”. R. Russo [compositor]. In: –. Que país é este –
1978/1987. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p1987. 1LP. Faixa 1.
30
Id., ibid.
31
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.166.
Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas
Os meus sonhos foram todos vendidos
Tão barato que eu nem acredito
Ah, eu nem acredito
Que aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Freqüenta agora as festas do Grand Monde
O meu prazer
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
Pois aquele garoto que ia mudar o mundo
(Mudar o mundo)
Agora assiste a tudo em cima do muro32
32
CAZUZA. “Ideologia”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran, p1988.
1CD. Faixa 1.
33
LEGIÃO URBANA. “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. R. Russo [compositor]. In: –
. As quatro estações. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p.1985. 1CD. Faixa 5.
constituindo uma rede cuja tessitura será impossível interromper ou nela traçar
uma margem”34. Tais aspectos se situam na tessitura do texto e na
performance da voz e do corpo. Ao tomarmos a definição de différance para
aproximar Cazuza e Renato Russo, antecipamos a leitura da poética desses
autores como a própria différance, ou seja, como “o jogo sistemático das
diferenças, dos rastros de diferenças, do espaçamento, pelo qual elementos se
remetem uns aos outros”35. Tendo o espaçamento como a produção, como
define Derrida, a aproximação dos dois autores se faz por aquilo que os
assemelha e os diferencia, atentando para o movimento da escrita que ensaia
os anseios, frustrações, descompassos, amores, angústias, confissão e
vivência.
O sentimento de impotência parece dominar a cena no final do século.
Não parece haver saída, não há como recuar e nem avançar. O que resta é a
vivência entre os estilhaços da repressão e da liberdade que acompanham o
processo de redemocratização do país. A primeira canção do álbum As quatro
estações (1989), da Legião Urbana, registra o descompasso da juventude que
procura o equilíbrio entre sonhos perdidos, cansaço, dor e desencanto:
34
SANTIAGO, 1976, p.22.
35
DERRIDA, 2001, p.33.
36
LEGIÃO URBANA. “Há tempos”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de
Janeiro: EMI Odeon, p1989. 1cd. Faixa 1.
Ela disse: lá em casa tem um poço, mas a água é muito
limpa.37
37
Id., ibid.
38
LEGIÃO URBANA. “Quando o sol bater na janela do teu quarto”. R. Russo [compositor]. In: –
. As quatro estações. Rio de Janeiro: EMI Odeon, p1989. 1CD. Faixa 5.
Nem foi tempo perdido;
Somos tão jovens.39
(...)
Brasil
Mostra a tua cara
Eu quero ver quem paga
Pra gente ficar assim
Brasil
Qual é o teu negócio
O nome do teu sócio
Confia em mim
(...)
39
LEGIÃO URBANA. “Tempo Perdido”. R. Russo [compositor]. In: – Dois. Rio de Janeiro: EMI
Odeon, p1986. 1CD, Faixa 6.
Grande pátria desimportante
Em nenhum instante eu vou te trair,
Não vou te trair40
40
CAZUZA. “Brasil”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de janeiro: polygran, p1988.
1CD. Faixa 6.
41
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.179.
1.2. A escrita e o consumo da geração “desmemoriada”
42
SANTIAGO, 2004, p.135.
43
Ibid., p.136.
44
Ibid., p.148.
em que essas portas estão sendo abertas, Renato Russo, concentrado na
atitude de denúncia do movimento punk, anuncia:
45
LEGIÃO URBANA. “Geração Coca-cola”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de
Janeiro: EMI Odeon, p1984. 1CD. Faixa 6.
46
Id., Ibid.
47
SANTIAGO, 2004, p.149
em relação à sua prática acadêmica”48 provoca uma inversão no tratamento
metodológico de textos tão díspares como uma entrevista e um poema, por
exemplo. Apropria-se do poema através de uma leitura que ultrapassa a mera
composição e se volta para a cultura, para o social, para o histórico e para o
antropológico. A leitura que extrapola o lingüístico só é possível quando o país
se desprende das amarras do autoritarismo, e outras abordagens críticas,
então, fornecem subsídios para uma análise que permite “esvaziar o discurso
poético da sua especificidade, liberá-lo do seu componente elevado e
atemporal, desprezando os jogos clássicos da ambigüidade que o diferenciava
dos outros discursos”49, como assinala Santiago.
A nova produção acadêmica tem agora o “interesse em estudar seu
próprio universo”50. Por sua vez, o próprio universo do artista, como dito, torna-
se material para sua produção e esta compreende, principalmente, a
subjetividade que encontra lugar para se manifestar e compor a narrativa e a
poética do seu tempo. Deixam-se de lado questões de cunho político e de
engajamento. O artista se engaja agora no seu próprio mundo e colhe de suas
vivências o material de que necessita para os versos e também para a teia da
narrativa. O sujeito da travessia dos anos 80 se insere na história ao contar sua
própria História. Essa História individual, que pode ser escrita com inicial
maiúscula, mesmo sendo construída com passadas largas e descompassadas,
compromete-se com o subjetivo e desvela, pelas bordas do eu, o
aprofundamento dos acontecimentos. Nesse trânsito, o sujeito busca o
equilíbrio e, antes, no confronto de forças adversas, tenta o caminhar. Entre os
escombros de um regime autoritário que se esgota e a mobilização para um
estado democrático, encontra-se o sujeito que, como agente da história,
experimenta a vivência que repercute no corpo e na escrita. Diante da
produção estética do sujeito que responde por seu tempo de travessia, indaga-
se sobre a “singular existência”51 que vem à tona e atinge as esferas do espaço
público, constituindo-se como a atitude política do momento.
52
SANTIAGO, 2004, p.138.
53
Ibid., p. 135.
aumentado seus investimentos na área e, de maldito, o rock
brasileiro parece ter-se tornado a saída para uma das piores
crises registradas no setor discográfico.54
Planejaram Febrilmente
O Brasil ia mudar
Congelaram a pátria amada
botaram as coisas no lugar.
Todo mundo, o mundo inteiro
essa farsa engoliu
o povo se fudeu
e o Brasil faliu
55
RATOS DE PORÃO. “Plano Furado”. RxDxPx [compositor]. In: –. Cada dia mais sujo e
agressivo. São Paulo: Cogumelo Records, p1987. 1CD. Faixa 2.
56
TITÃS. “Comida”. M. Fromer, S. Brito, A. Antunes [compositores]. In: –. Jesus não tem
dentes no país dos banguelas. São Paulo: WEA, p1987. 1CD. Faixa 8.
Eu fui traído e não fiz por merecer 57
57
INOCENTES. “Pátria Amada”. Clemente [compositor]. In: –. Adeus Carne. Rio de Janeiro:
WEA, p1987. 1CD. Faixa 1.
58
CAPITAL INICIAL. “Autoridades”. F. Lemos et all [compositores]. In: –. Independência. Rio de
Janeiro: Polydor, p1987. 1Cd. Faixa 2.
59
HOLLANDA, 1981, p.18.
60
Ibid., p.26.
um futuro promissor”, optam, como diz Walter Benjamin citado por Hollanda,
“por uma solidariedade ‘espiritual’ com o povo”61.
Os planos econômicos que tentam domar a inflação e incentivar as
vendas promovem a visibilidade dos grupos de rock. Dessa forma, a ponte
entre o som da classe média e o restante de milhões de ouvintes brasileiros se
faz pelo Plano Cruzado, cujo insucesso, no entanto, ameniza a euforia de
compras e leva um amontoado de artistas ao esquecimento. Nem todos
conseguem fazer a travessia. Apenas aqueles que já tinham alcançado um
lugar no mercado e no gosto do ouvinte conseguem prosseguir no registro e na
venda de suas músicas. Arthur Dapieve (2004), na relação entre Plano
Cruzado e o BRock – expressão forjada pelo autor para dar conta da
especificidade do rock brasileiro – assinala que:
61
Ibid., p.23.
62
DAPIEVE, 2004, p.201-202
que brota espontaneamente das próprias massas, da forma que assumiria,
atualmente, a arte popular”63. Dentro da concepção do co-autor da Dialética do
Esclarecimento, “a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e
à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra
e a do sistema social”64. O verdadeiro sentido de cultura de massas ou de arte
popular seria, então, aquela em que o produtor e consumidor são os mesmos,
e não aquilo que a indústria cultural promove: “a integração deliberada, pelo
alto, de seus consumidores”65. Tal apreensão do que é arte popular dada por
Adorno entra em harmonia com os versos que canta Jorge Aragão: “Arte
popular do nosso chão.../ é o povo que produz o show e assina a direção”
(grifos nossos).66
Por essa leitura, o rock se afasta da característica de popular e se define
como integrante da cena artística pop. Pop na definição de um mercado
altamente rotativo que engloba uma infinidade de bens simbólicos e forma seus
ícones e modismos. A arte pop pode ser vista, por isso, como uma forma de
arte alienante, efêmera e descartável, mas capaz, no entanto, de catalisar
mudanças e responder pela força de comportamento, principalmente daqueles
ligados à juventude e à cidade. O pop funciona como engrenagem fundamental
para o acionamento da indústria da cultura, no modo como concebe Adorno, ao
aspirar ao consumo em massa de produtos, determinando, assim, “do alto”, o
próprio consumo67. Concentra, ainda, em termos nacionais e regionais, o apelo
de uma era globalizada, no ritmo da novidade e do entretenimento. O pop
ainda permite o ensaio da diversidade, da convivência mútua, nem por isso
sem atritos, das mais diversas formas de vivência do presente.
63
Originalmente o "Résumé über Kulturindustrie" foi uma conferência radiofônica pronunciada
por Adorno na Internationalen Rundfunkuniversität des Hessischen Rundfunk de Frankfurt, de
28 de Março a 4 de Abril de 1963, depois incluído no livro Ohne Leitbild. Parva Aesthetica.
Frankfurt. Suhrkamp, 1967. Tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado do original alemão e
cotejada com a tradução italiana (Parva Aesthetica. Milano. Einaudi, 1979). As citações aqui
são retiradas da mesma tradução, disponível em http://adorno.planetaclix.pt/tadorno17.htm,
captado em 25/02/2007.
64
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. 1985. p.114.
65
ADORNO, Theodor W. Resumo sobre a indústria cultural.
http://adorno.planetaclix.pt/tadorno17. htm, captado em 25/02/2007.
66
JORGE ARAGÃO. “Coisa de Pele”. J. Aragão, A. Marques [compositores]. In: –. Coisa de
Pele. Rio de Janeiro: RGE, p1986. 1CD. Faixa 1.
67
Para Adorno, a indústria cultural “só se interessa pelos homens como clientes e
empregados”, reduzindo a humanidade à essas condições. Portadora de uma ideologia
dominante exerce as funções de perpetuação das características do mundo capitalista
moderno. (ADORNO, 1986, p.137).
A arte pop responde por uma das características que define o “pós-
modernismo”. De acordo com Frederic Jameson (1993), o controvertido termo
“pós-modernismo” envolve uma infinidade de estilos e artes e engloba, desde a
arquitetura do Hotel Bonaventure, por exemplo, até a poesia falada, os filmes e
vídeos comerciais ou de ficção contemporâneos; e
68
JAMESON, 1993, p.25.
um ano, esgotou sua tiragem 25 vezes. Ou uma nova leva de
quadrinistas, como Angeli, Glauco e Laerte. O importante era
que fosse novo, diferente e esteticamente ousado e falasse a
linguagem das ruas69.
69
ALEXANDRE, 2002, p.117.
une “uma síntese e um híbrido dos dois idiomas – música branca e música
negra”70. Tais características, na sociedade brasileira dos anos 80, relacionam-
se às expressões artísticas que respondem por seu tempo em uma cultura
altamente urbana.
Caracterizar o rock como híbrido e como artigo do mundo pop
contemporâneo, avidamente absorvido pela indústria fonográfica, aproxima-se
do pensamento de Walter Benjamin, que em um ensaio da década de 40,
assinalava que “a obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de
uma obra de arte criada para ser reproduzida”71. Sem qualquer resquício de
aura, o rock brasileiro se configura na necessidade do “valor de exposição” que
substituíra o “valor de culto” das obras de arte. Será justamente a técnica da
reprodução que coloca o rock em sintonia com seu “público consumidor”, o que
garante os lucros da indústria fonográfica e a visibilidade da arte. A reprodução
técnica – assegurava Benjamin – “pode, principalmente, aproximar o indivíduo
da obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco. (...) O coro, executado
numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num quarto”72. Visão esta bem mais
otimista do que a de Adorno.
A reprodutibilidade técnica e o valor de troca do rock não impedem, no
entanto, o “efeito do choque”. Roberto Muggiati aponta o choque da
experiência do rock na sociedade americana, comparando com a semelhante
experiência provocada pelo cinema, assinalada por Benjamin. A aproximação
do autor brasileiro aos conceitos do filósofo alemão são perfeitamente
aplicáveis ao gênero nos anos 80, no Brasil:
70
MUGGIATI, 1973, p.37.
71
BENJAMIN, 1993, p.171.
72
Ibid., p.168.
na escala da História, experimenta todo cidadão de qualquer
Estado contemporâneo.73
73
MUGGIATI, 1973, p.68.
74
DERRIDA, 2002, p.66.
75
DERRIDA, 1995, p.248.
76
Ibid., p.244.
77
DERRIDA, 2002, p.87.
Assim, pode-se pensar e analisar como as escritas de Renato Russo e
Cazuza se ordenam como memórias-presentes, confissões e registro
autobiográfico, que promovem o desvelamento de um período histórico através
da voz, da canção, da poesia, do lirismo e da vivência de quem experimenta a
travessia de uma década que não foi perdida.
2. A ESCRITA E A INSCRIÇÃO DO EU: A POÉTICA
CONFESSIONAL DE RENATO RUSSO E CAZUZA
Vamos revelarmo-nus.
Adriana Calcanhoto
2.1. Novos suportes tecnológicos para o aedo
78
SANTIAGO, 2006. “Comparações”, In: http://www.tanto.com.br/silvianodois.htm. Captado em
26/02/2007.
para o teatro, para o cinema e principalmente para a música sem, no entanto,
abandonar essas expressões.
79
HOLLANDA, 1981, p.35.
80
Ibid., p.37.
81
SANT’ANNA, 2004, p.13.
Com o desenvolvimento da sociedade capitalista e o advento da
tecnologia e da reprodutibilidade técnica, a música, no século XX, atinge
grandes esferas de abrangência e importância, constituindo-se, em tempos
atuais, como umas das formas de arte mais difundida. Por diversas razões, a
música vem ocupar um lugar antes reservado à poesia. Com a facilidade de
difusão e inserção no cotidiano, garantido pela tecnologia e por seu alto grau
de atualidade e efemeridade, ela se espalha e atravessa a cidade e se
expande por muitos meios de escuta, atingindo espaços sociais diferenciados,
o que implica experiências e apropriações culturais diversas. Luiz Claudio V. de
Oliveira (1999) aponta a condensação e o simultaneísmo como as principais
caractarerísticas da música que lhe garantem popularização, espaço e difusão.
Ao transmitir, em um curto espaço de tempo, uma mensagem completa com
alto grau de sofisticação e de conteúdo, e pelo poder de recepção paralela a
outras atividades, a música se insere com facilidade no cotidiano e assume
funções que vão do derramamento íntimo de lamentações amorosas até a
função de captar, fixar e revelar modos e costumes de uma época,
diagnosticando sensibilidades e transformações sociais e históricas82.
Nesse sentido, a história recente do Brasil apresenta uma trilha sonora
que acompanha os fatos importantes no cenário político-social. Aldir Blanc e
João Bosco compuseram o samba, que na voz de Elis Regina se configura
como o hino da anistia83. A ditadura militar teve na letra e voz de Chico
Buarque algumas das mais elaboradas canções que registram o autoritarismo,
o sufoco e a necessidade de liberdade numa pátria mãe “subtraída”, como se
pode ouvir em “Cálice”, “Apesar de você” e “Vai passar”. Enquanto Geraldo
Vandré ressaltou a importância da canção, capaz de unir e de ser arma:
82
OLIVEIRA, 1999, p.44.
83
REGINA, E. “O Bêbado e o equilibrista”. A. Blanc, J. Bosco [compositores]. In: –. Elis, essa
mulher. São Paulo: WEA, p1979. 1CD. Faixa 2.
84
VANDRÉ, G. “Pra não dizer que não falei das flores”. G. Vandré6y [compositor]. In: –.
Geraldo Vandré. São Paulo: RGE, p1994. 1CD. Faixa1.
Nesse ritmo, uma das maiores manifestações populares vistas pelo
Brasil, o movimento das “Diretas Já”, tem como hino uma música irônica, que
estampa na irreverência de seus versos a condição de um país que nos tem
como “inútil”85. Enquanto que 1992 vivencia outro clima de agitação popular
que exige o impeachment do presidente Collor. Os “cara pintadas” tomam as
ruas, enquanto se ouve uma trilha sonora que remete aos “anos rebeldes”. A
música, então, ocupa um dos lugares da poesia: o hino da abolição – um
poema de Castro Alves – foi entoado pela voz de seu autor, nas ruas,
acompanhado pelo povo, no século XIX. “Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades”, já dizia Camões86 ou “É você que ama o passado e que não vê/ Que
o novo sempre vem”87, como canta Belchior.
Concomitante a outras atvidades do dia-a-dia, a música passa a fazer
parte da vida dos seus ouvintes: no lazer, no espaço doméstico, no trabalho,
nas lojas, parques, na sexualidade e na intimidade, em shows, na televisão,
pelo rádio, pela internet, em mp3 e celulares etc. “A música para ouvir”88
ganha, como canta Arnaldo Antunes, outros lugares, modos e re-apropriações,
seja pelos meios de difusão, seja nos modos de escuta e recepção. Todo o
alcance da música nas sociedades pós-modernas faz com que haja uma
tensão entre o papel e a máquina, ou seja, uma tensão entre a materialidade
de expressões artísticas, que ganham outros formatos na era fluida da
cibernética. A relação papel e máquina questiona os novos suportes, a
impressão, o papel social, e os sem-documentos no processo de globalização
e exclusão. Essas indagações se estendem para o papel no mundo virtual e
para o lugar do acontecimento, da escrita, do corpo, da memória, do arquivo e
da materialidade na contemporaneidade. Jacques Derrida (2004), ao longo do
livro Papel-máquina, busca as respostas que, como a maioria dos seus
escritos, soam como provocações e novas inquirições.
Nos últimos anos, assistimos ao modo como o desenvolvimento da
tecnologia e as mídias diversas têm interferido na produção, na mediação,
85
ULTRAJE A RIGOR. “Inútil”. R. Moreira [compositor]. In: –. Nós Vamos invadir sua praia. Rio
de janeiro: WEA, p.1985. 1LP. Faixa 6.
86
CAMÔES, http://www.astormentas.com/camoes.htm, captado em 04/04/2007.
87
REGINA, E. “Como nossos pais”. Belchior [compositor]. In: –. Falso Brilhante. São Paulo:
Fhonogran, p1976. 1CD. Faixa 1.
88
ANTUNES, A. “Música para ouvir”. A. Antunes, E. Scandurra [compositores]. In: –. Um Som.
São Paulo: BMG, p1998. 1 CD. Faixa 1.
recepção e valoração das expressões artísticas. Da literatura à animação
virtual, as manifestações artísticas se enveredam por caminhos ditados pela
força do mercado e pelo poder de sedução de novos suportes tecnológicos.
Essas relações estão diretamente ligadas à dinâmica da indústria da cultura,
que atende ao ritmo do capitalismo tardio. Sem leituras pessimistas ou
alongadas sobre os efeitos de tais interferências, é interessante lançar algumas
questões sobre os suportes tecnológicos que determinadas artes,
principalmente a poesia e a música, experimentam atualmente. O que provoca
conseqüências desestabilizadoras nos modos de produção e recepção, e faz
repensar maneiras novas de tratar antigas relações.
Sempre houve no Ocidente a supremacia da escrita, como forma de
eficácia de comunicação e permanência da obra. Relacionado diretamente à
sustentação de status e hierarquias ditadas pelos letrados, o que está escrito
sempre exerceu mais poder. Isso leva ao mesmo status e hierarquia daquele
que tem o privilégio de acesso à escrita. O popular quase nunca se encerra em
páginas de livros e, quando isso acontece, paga o preço do silenciamento das
letras ou a deformação e/ou redução do seu conteúdo estético e social (muitas
vezes um em favor do outro)89. Por muitos séculos, o livro em sua forma de
códice (caderno de páginas superpostas e encadernadas de modo que se pode
abri-lo sobre a mesa, segurá-lo entre as mãos e atê-lo ao peito) reinou em
absoluto como forma de armazenamento e transmissão de informações,
saberes e culturas. Relacionados a esse formato (e também aos outros que
virão) se questiona os seguintes pontos enumerado por Derrida: “a escrita, o
modo de inscrição, de produção e de reprodução, a obra e a operação, o
suporte, a economia do mercado ou da estocagem, o direito, a política, etc”90.
O formato tradicional do livro, com suas folhas impressas, superpostas,
mostra-se como um lugar sagrado, uma moradia, um túmulo. “A dobradura é,
em face da folha impressa em grandes dimensões um índice, quase religioso:
que não marca tanto quanto sua compreensão, em espessura, ofertando o
minúsculo túmulo, decerto da alma”91. A citação extraída de Derrida (2004)
releva a sacralização a qual submetemos o livro, no que se refere ao seu
89
Cf. MATOS, Claudia Neiva de. Popular. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio
de Janeiro: Imago, 1992. p.307-341.
90
DERRIDA, 2004, p.20.
91
Ibid., p.27
tempo, espaço, ritmo, modo de manipulação, modos de legitimação e ainda à
“sociabilidade quase sacerdotal de seus produtores, intérpretes, decisores, em
todas as suas instâncias de seleção e de legitimação”92. Todo o ritual de
ressacralização do livro faz com que a mesma geração que o consagrou sofra
ao vê-lo “perder terreno para outros suportes”93. Vivenciamos a era do livro por
vir. Do códice à incorporação eletrônica e virtualizante, o texto surge para o
leitor como um espetáculo, sem demora, no ritmo do teclado e de conexões
wireless, na tela frente aos olhos do espectador/ ouvinte. A literatura agora
divide o espaço dos afazeres casuais e banais, sem a formalidade da
acomodação dos terrenos sagrados das bibliotecas. Viva, a literatura ganha a
dinâmica do espetáculo, para garantir-lhe o interesse e a sobrevivência no
mundo das imagens.
A escrita, a reprodução e distribuição do livro – lenta e restrita –
procuram a adaptação no mundo pós-moderno – acelerado, fluido, líquido,
visual. Dessa forma, a poesia esculpida “longe do estéril turbilhão da rua”, “No
aconchego/ Do claustro, na paciência e no sossego”94 e que muitas vezes
exigia um leitor de igual disciplina, temporalidade e especialidade, ganha hoje a
leitura que entra pelos fones de ouvidos e faz com que o leitor penetre em
alarde “no reino das palavras”95. A poesia retoma agora, na pós-modernidade,
a sua antiga e íntima relação com a música. O suporte para escrita, na verdade
a sua dificuldade e escassez, que manteve, entre outros motivos, poesia e
música unidas até a invenção da imprensa, promove agora uma inversão na
hierarquia e no prestígio da palavra escrita. A poesia de livro convive com a
poesia da música96, e esta ocupa cada vez mais espaço na sociedade, na
história e no cotidiano dos leitores/ ouvintes/ consumidores de bens simbólicos.
92
Ibid., p.28.
93
Ibid., p.27.
94
BILAC, disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/bilac.html#poeta, captado em
05/04/07.
95
ANDRADE, Carlos Drummond, 1983, p.160.
96
Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque, Caetano Veloso,
Cazuza, Gilberto Gil, Vinicius de Moraes, Noel Rosa, Aldir Blanc, Adriana Calcanhotto, Ana
Cristina César, Antonio Cícero, Armando Freitas Filho, Ferreira Gullar, Francisco Alvim, Manuel
Bandeira, Mário Quintana, Murilo Mendes, Oswald de Andrade e Waly Salomão: estão
reunidas pela primeira vez poesia de livro e poesia da música em um mesmo volume. Um
verso de Cazuza dá nome à antologia Veneno Antimonotonia, organizada por Eucanaã Ferraz.
(Veneno Antimonotonia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007).
Os poetas da música que, entre arranjos e composições, tecem e
interpretam hinos da história e poemas de amor, procuram o lugar para o
acontecimento no arquivo do LP, que cedeu lugar ao CD e agora vive a era da
materialidade virtual de HDs e ipods, que permitem o trânsito entre a memória
cibernética e a recepção particular dos fones de ouvido.
A antiga controvérsia entre letra de música e poesia, que marca leituras
quase apenas de ordem estrutural, se desfaz com leituras culturais que
atentam para o lugar, abrangência e recepção conquistados pela canção e pela
letra da canção nas sociedades contemporâneas. Composições dos vários
gêneros musicais que (en)cantam o Brasil ganham coletâneas que agrupam no
formato livro toda a riqueza poética da letra. Antes, porém, de se poder folhear
as canções no códice, a poesia da música atinge, em seus vários pontos de
escuta, leitores/ ouvintes diferenciados, o que implica, logicamente, em
apropriações e decodificações diversas.
Os sentidos enigmáticos e polissêmicos do signos musicais
favorecem os mais diversos tipos de escuta ou interpretações
– verbalizadas ou não – de um público ou de intelectuais
envolvidos pelos valores culturais e mentais, altamente
matizados e aceitos por uma comunidade ou sociedade. A
partir dessas concepções, a execução de uma mesma peça
musical pode provocar múltiplas escutas (conflitantes ou não)
nos decodificadores de sua mensagem [...] de acordo com
uma perspectiva sincrônica ou diacrônica do tempo histórico.97
97
CONTIER, 1991, p.152.
Música para tocar novela
Música de passarela
Música para vestir veludo
Música pra surdo-mudo
Música para estar distante
Música para estourar falante
Música para tocar no estádio
Música para escutar rádio
Música para ouvir no dentista
Música para dançar na pista
Música para cantar no chuveiro
Música para ganhar dinheiro
Música pra fazer sexo
Música para fazer sucesso
Música pra funeral
Música para pular carnaval
Música para esquecer de si
Música pra boi dormir
Música para tocar na parada
Música pra dar risada98
98
ANTUNES, A. “Música para ouvir”. A. Antunes, E. Scandurra [compositores]. In: –. Um Som.
São Paulo: BMG, p1998. 1 CD. Faixa 1.
“Obra” é outra coisa ainda, que talvez nos leve daqui a pouco
às paragens de um grave problema, o das relações vindouras
entre a forma livro, o modelo do livro, por um lado, e uma obra
em geral, um opus, a unidade ou corpus de uma obra
delimitada por um começo e um fim, uma totalidade.99
99
DERRIDA, 2004, p.20.
faz desaparecer, mas aparecer ao mantê-la, para nela se
realizar.100
100
DERRIDA, 2004, p29.
possibilitam o entendimento da abertura e da abrangência textual que, a partir
do final da década de 70, têm propiciado um novo olhar sobre o texto (nas suas
várias dimensões e linguagens) que ultrapassa seus limites como literatura ou
arte e alcança territórios históricos, culturais, econômicos e sociais. O texto,
então, penetra nos territórios criados e habitados pelo homem, elucidando as
mais complexas relações humanas, que se manifestam pela linguagem. A
produção documental – a correspondência, a crítica ensaística, os
depoimentos, as entrevistas, as reportagens jornalísticas – ao lado da
produção ficcional, compõem a obra do autor.
Os sujeitos, autores de ficção e poética, ao escreverem suas obras, se
inscrevem no tempo e no espaço onde as produzem e onde elas são
recepcionadas. A inscrição do sujeito se escreve de acordo com seu alcance
na sociedade, fato que se dá pelos vários media, tanto de divulgação da obra
ficcional quanto da figura do autor. Atravessada pelos aparelhos midiáticos ou
por sua própria pose, a figura do autor é transformada, com a ajuda de seu
público, em um personagem.
101
SOUZA, 2002, p.116.
Há, nesse processo, uma ficcionalização do eu, que não responde mais
pelo dono do registro de identidade civil, mas responde, sim, pelo registro da
representação do vivido. Representação que se faz com a própria obra ficcional
ou poética, entrecruzando com a pose do autor – nos depoimentos, entrevistas,
fotos, aparições em público, shows, ensaios. Dessa maneira, o autor atua no
palco da sociedade que o concebe e o recebe, de forma que sua encenação
discursiva (que se dá pela escrita e pelo corpo) “ultrapasse os limites do texto e
alcança o território biográfico, histórico e cultural”102. O autor responde, assim,
na figura do intelectual, pela representação do seu tempo e de seu espaço, nas
metáforas, alegorias e metonímias da experiência como ser vivente.
Entre os rituais de consagração e canonização do autor, encontra-se a
própria mídia que se encarrega, de acordo com seus propósitos, de criar seus
heróis e mitos, promovendo a ascensão e também a queda deles. O próprio
público leitor/ ouvinte é também elemento imprescindível em tais rituais. Muitas
vezes, a platéia, no processo de identificação, projeta em seus ídolos tudo
aquilo que anseia, de forma que eles passam a encenar um script delineado
por seu público.
As produções musicais da década de 80 experimentam a aproximação
entre seus pares: autores/ intérpretes e público têm a mesma faixa etária e
comungam dos mesmos anseios, frustrações e sentimentos. Ao falar a mesma
língua, o palco se nivela à platéia, havendo assim uma mistura de vozes, sendo
que a voz do cantor, por soar mais alta e eloqüente, capta e transmite a voz da
platéia. Nesse processo de identificação e na necessidade de criar seus
modelos, Renato Russo e Cazuza seriam vistos como representantes de sua
geração:
102
Id., Ibid.
103
RUSSO apud ASSAD (org.), 2002, p.117.
A capacidade de Renato Russo falar pela juventude e escrever as
relações amorosas são apontadas no mesmo parâmetro em que Chico
Buarque consegue, na voz feminina, dizer do universo da mulher. Nesse
processo que consagra Russo como menestrel de toda uma geração e como
messias, o autor de “Pais e filhos” tenta se despir da máscara de salvador que
lhe foi colocada: “Sou jovem de vinte poucos anos, não sei nada da vida. E as
pessoas bebem minhas palavras como água. Escrevo justamente porque não
sei”.104 Renato Russo estava, na verdade, interessado em fazer rock’n roll
simplesmente. Mas é justamente ao fazerem rock’n roll, ao protagonizarem
grandes temas existenciais da literatura e da humanidade, como o amor, a
morte, a solidão, e temas controvertidos como as drogas e sexualidade, em
suas letras, que Russo e Cazuza “guardam sua natureza ficcional e se
espraiam na página aberta do espaço textual e nos interstícios criados pelo
jogo ambivalente da arte e do referente biográfico”105. A subjetividade do autor
se coloca no texto poético como sendo encenação, atuação e representação
tanto intelectual quanto lírica. Como veremos, Renato Russo e Cazuza são
dois poetas fingidores, tal como o fora Fernando Pessoa.
A representação do vivido, então, se dá pela obra poética e ficcional,
pelo recolhimento dos pequenos acontecimentos cotidianos capazes de
elucidar os fatos históricos, compondo assim “o quadro das pequenas
narrativas, igualmente responsáveis pela construção do sentido subliminar da
história”106. É colocar o sujeito na borda da história e operar nas “rupturas
específicas”; uma espécie de história nova, que a partir das pequenas
significações, fatos e atitudes “aparentemente inexpressivas” do dia-a-dia, que
se ajuntam ao montante da obra do autor, e re-conta a história, afastando-se
dos grandes blocos históricos que entoam a nota dos vencedores. Michel
Foucault (1987), em A arqueologia do saber, nos chama atenção para a
substituição das sucessões lineares – história dos longos períodos, das
grandes bases imóveis e das grandes narrativas – pelo jogo das interrupções e
descontinuidades. Nesse ponto, podemos situar o sujeito da travessia dos anos
104
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.98.
105
SOUZA, 2002, p.119.
106
Ibid., p.115.
1980 que promove, dessa forma, “um corte que só a ele pertence”. Daí, o
aparecimento de “vários passados” que, recortados e encadeados sob novas
categorias e redes de determinações107, coloca o sujeito, conforme aponta
Derrida (2002), na “borda presumida da dita ruptura, a borda de uma
subjetividade antropocêntrica que, autobiograficamente, se conta ou se deixa
contar uma história, a história de sua vida”108 – que vem a ser a História.
A inscrição do sujeito, que se dá também pela escrita, transformando a
experiência em um acontecimento textual, se caracteriza pela necessidade da
materialidade, capaz de reter, inscrever e arquivar. Derrida aponta a “irredutível
acontecimentalidade do acontecimento” que, ao ser arquivada, retida,
textualizada, “produz um novo acontecimento afetando assim o acontecimento
suposto primário, que ela presumidamente retém, traça, consigna, arquiva”109.
O acontecimento no arquivo de sua textualidade, ao afetar o centro e a
“origem” de sua acontecimentalidade, rompe as grandes bases imóveis e as
grandes narrativas da história, e, de forma descontínua, entre oscilações,
deslocamento e rupturas, a produção estética do sujeito é capaz de “descrever
os afastamentos e as dispersões, e desintegrar a forma tranqüilizadora do
idêntico”110. A “singular existência” do homem-animal autobiográfico vem à tona
e funciona, ao mesmo tempo, como indagação e resposta para o trabalho de
arqueólogo de Foucault: “como apareceu um determinado enunciado, e não
outro em seu lugar?”111. Buscar na superfície da palavra escrita para música,
ou seja, na inscrição do acontecimento textual, a profundidade e singularidade
que determina as condições de caminhada do sujeito é avançar na resposta.
Talvez a invenção poética seja capaz de dar conta daquilo que, sem
fingimento ou invenção, a vida por si só, na sua rigidez, faz passar
despercebido ou indigno de nota. O poeta-fingidor muitas vezes encena uma
107
FOUCAULT, 1987, p.5.
108
DERRIDA, 2002, p.60.
109
Ibid., p.80.
110
FOUCAULT, 1987, p.14.
111
Ibid., p.31.
poética do eu, cedendo, sem força qualquer de oposição, aos instintos do
animal autobiográfico.
112
DERRIDA, 2002, p.90.
113
Os hypomnemata, de acordo com Foucault, são livros ou carnês individuais com citações,
fragmentos de obras, exemplos, ações testemunhadas, argumentações, resumos e reflexões
sobre coisas lidas, ouvidas e pensadas, servindo assim como um guia de conduta, bastante
cultivado no meio culto da época. FOUCAULT, 1992, p.135.
114
Quanto à correspondência, Foucault ressalta o exercício pessoal do missivista, já que
“escrever é, pois ‘mostra-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”. A
carta é um olhar de si ao destinatário, ao mesmo tempo um olhar que se volta para si mesmo.
FOUCAULT, 1992, p.150.
comportamento. Ao escrever, ações e pensamentos se tornam conhecidos,
passíveis, por isso, de serem combatidos se são pecaminosos ou possíveis de
levar à tentação. Desde então, compreende-se uma escrita de confissão, em
que se percebe a vergonha, a culpa, a tentativa de livrar do “coração o que
quer que seja de perverso”115. Exercício que levou ao limite Santo Agostinho e
Rousseau. A correspondência e os hypomnemata compreendem, portanto, a
escrita de si e da vivência do eu. Emprestam às múltiplas variações do gênero
autobiográfico o seu alto teor confessional – que Derrida desenvolverá em
profundidade em muitos dos seus escritos sobre o assunto.
Antes de pensar a questão da escrita autobiográfica como confissão,
Fernando Pessoa, ao evidenciar, na própria poesia, o caráter fingidor de toda
escrita, antecipa-nos o modo de ler e compreender o teor de autobiograficidade
de Renato Russo e Cazuza em suas letras de música. Ambos também, em
muitos momentos, alguns mais metalingüísticos e outros mais tênues, deixam
transparecer o ato de invenção da escrita, tanto no que se refere às próprias
ferramentas técnicas quanto àquilo que gira em torno e no interior do eu que
escreve: “Mas então porque eu finjo que acredito no que invento?/ Nada disso
aconteceu assim - não foi desse jeito”.116
Anteriormente, discutimos que tanto o eu da obra poética como o eu da
obra documental dos autores supõem uma encenação, a re-presentação do
vivido. Assim, a invenção poética é capaz de captar com mais profundidade
aquilo que reside também na profundidade, consciente ou inconsciente, do
sujeito, dando-nos, portanto, na superfície material da escrita, aquilo que
somente se pode perceber nela. Adentramos, assim, na diffèrance de Derrida,
em que “como se pode notar, esse ‘a’ se escreve ou se lê, mas não se pode
ouvi-lo”117: “São só palavras: teço ensaio e cena/ Cada ato enceno a
diferença”.118
Assim, a letra de música opera na diferença escrita daquilo que vem à
tona junto com ela. Renato Russo, ao dizer “escrevo justamente por que não
115
FOUCAULT, 1992, p.130.
116
LEGIÃO URBANA. “Acrilic on canvas”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro:
EMI, p1986. 1CD. Faixa 3.
117
DERRIDA, 2002, p.14.
118
LEGIÃO URBANA. “Os barcos”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil.
Rio de Janeiro: EMI, p1993. 1CD. Faixa 7.
sei”119, tem na superfície da letra, pelo reflexo de uma consciência que se
materializa na linguagem, aquilo que quer apreender, reconhecer e arquivar:
“Só por dizer é que finjo que sei”120.
É um eu diante do outro. Vemo-nos na escrita autobiográfica não como
uma imagem no espelho, mas vemos o outro que somos na imagem refratária
da escrita. A poética do eu permite que um outro, a quem também o eu se
dirige quando escreve, seja um eu - outro no trânsito entre aquilo que reside no
interior do sujeito e aquilo que se manifesta na escrita. Desse modo, o eu e a
escrita sempre se modificam e movimentam-se, o que leva ao reconhecimento
de si próprio e ainda ao autoconhecimento. Mas um autoconhecimento que é
do outro:
119
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.98.
120
LEGIÃO URBANA. “La nuova gioventu”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do
Brasil. Rio de Janeiro: EMI, p1993. 1CD. Faixa 13.
121
LEGIÃO URBANA. “A montanha mágica”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD. Faixa 3.
122
FOUCAULT, 1992, p.35.
que (não) preenche as lacunas de uma obra, e, assim, pode-se dizer sempre
inacabada.
Em “Quase sem querer”, Renato Russo, como sintetiza o título, aponta o
caráter de imprevisibilidade da escrita, sua possibilidade do impossível e sua
necessidade de audácia:
Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
123
LEGIÃO URBANA. “Quase sem querer”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro:
EMI, p1986. 1CD. Faixa 2.
124
CAZUZA. “O nosso amor a gente inventa”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio
de Janeiro: Som Livre, p1987. 1CD. Faixa 3.
125
CAZUZA. “Todo amor que houver nessa vida”. Cazuza [compositor]. In: –. O tempo não
pára. Rio de Janeiro: Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 8.
Adoro um amor inventado.126
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.127
126
CAZUZA. “Exagerado”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre,
p1985. 1CD. Faixa 1.
127
PESSOA, http://www.releituras.com/fpessoa_psicografia.asp, captado em 04/04/2007.
128
CAZUZA. “Todo amor que houver nessa vida”. Cazuza [compositor]. In: –. O tempo não
pára. Rio de Janeiro: Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 8.
está mais nu”129. O vestiário, portanto, corresponde à técnica de encobrir a
nudez. A nudez é apenas o “sentimento, o afeto, a experiência (consciente ou
inconsciente) de existir na nudez”130. Por isso, o animal está alheio ao que
implica saber-se nu, saber de si. E ao saber de si em que isso implica? Quem
sou eu, então? Quem é este que eu sou? – indaga Derrida e o animal que nos
olha nu.
Saber de si mesmo tem sido desde o mundo antigo empreitada difícil à
qual os homens têm se entregado filosófica, espiritual, psicológica, cultural e
pessoalmente. “Conheça a ti mesmo”, prevenia o oráculo de Delfos. E Santo
Agostinho, ao assinar as Confissões, não apenas enumera suas faltas e
pecados para um Deus que tudo sabe e tudo vê. Mostra que ao confessar –
exercício que o santo-pecador fez por escrito –, damo-nos a conhecer a nós
mesmos, revelando-nos nus pela nudez das palavras que, paradoxalmente,
despe-nos e nos encobre da falta cometida diante de Deus e do outro. O outro,
antes de tudo, que é si mesmo. Desse modo, antecipa Santo Atanásio:
“escrevendo os nossos pensamentos como se os tivéssemos de comunicar
mutuamente, melhor nos defenderemos dos pensamentos impuros por
vergonha de os termos conhecido”131.
A escrita abriga o desejo da confissão, da revelação e do perdão. Dessa
forma, a escrita autobiográfica implica o ato da confissão, no sentido de arquivo
da experiência do vivente, e no sentido eclesiástico, como assinam, na tradição
ocidental cristã, Santo Agostinho e Rousseau. Para haver a confissão é
preciso, antes, a experiência do acontecimento e afirma Derrida que “não há
acontecimento sem experiência (e isso é o que, no fundo, “experiência” quer
dizer), sem experiência, consciente ou inconsciente, humana ou não, do que
acontece ao vivente.”132 No sentido da confissão da “acontecimentalidade” ou
da “acontecimentalidade” da confissão, Renato Russo e Cazuza assinam os
nomes dos viventes que experimentam a travessia, sendo capazes, ao dizer eu
- homem, eu - animal da escrita, de remeter, antes de responder, ao
arquivamento da experiência de toda a sua geração. Suas escritas podem ser
lidas como memórias coletivas, aproximando da função do relato da memória
129
DERRIDA, 2002, p.18.
130
Ibid., p.17.
131
ATANÁSIO apud FOUCAULT, 1992, p.130.
132
DERRIDA, 2004, p.36.
anterior à Idade Moderna, quando o nós se sobrepunha ao eu. No entanto, a
assinatura do nome da escrita visivelmente forjada na primeira pessoa do
singular sugere a intimidade da confissão, numa sociedade oposta àquela que
valorizava o coletivo em detrimento do particular. Entretanto, será justamente
pela assinatura do nome nos relatos autobiográficos confessionais desses dois
autores que se dará a junção do desejo imanente presente na escrita: a de ser
arquivo do acontecimento e arquivo da confissão. Logo, na primeira canção do
primeiro álbum da Legião Urbana, Renato Russo assinala:
133
LEGIÃO URBANA. “Será”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro: EMI,
p1984. 1 CD. Faixa 1.
134
DERRIDA, 2002, p.27.
135
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.163.
poética, onde o eu através da confissão depara-se frente a frente com o animal
que o olha (ele mesmo), escrever:
O meu prazer
Agora é risco de vida
Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou136
136
CAZUZA. “Ideologia”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Som Livre,
p1988. 1CD. Faixa 1.
Quem vai dizer agora o que eu não fiz?
Como explicar pra você o que eu quis.137
140
LEGIÃO URBANA. “Andrea Doria”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro: EMI,
p1986. 1 CD. Faixa 10.
141
DERRIDA, 2004, p.91.
142
LEGIÃO URBANA. “Eu sei”. R. Russo [compositor]. In: –. Que país é este - 1978/1987. Rio
de Janeiro: EMI, p1984. 1 CD. Faixa 6.
143
DERRIDA, 2004, p.78.
Por aí, o fingimento do poeta não se torna uma mentira e assume forma
documental que ultrapassa a subjetividade do momento da escrita e sobrevive
à assinatura do autor. No ritmo do amadurecimento do eu – lírico, que cada vez
mais se dá ao trabalho da poética confessional, revelando-se nu nas letras das
canções, tem-se o cuidado com a ética, que como dissemos, norteia a obra de
Renato Russo. Em um dos versos de “Natália”, canção do álbum A
Tempestade (1996), temos a materialização do cuidado sincero que entra em
consonância com a busca do amor como salvação para as faltas e erros: “Não
confunda ética com éter”144. A advertência ganha na próxima canção de A
Tempestade um tratado poético e ético para as relações humanas, em que se
tem a confissão, a necessidade do perdão e da salvação. O amor, colocado
como algo acima daquilo que nos faz pequenos nos gestos faltosos, aproxima-
se do perdão e exige a sinceridade tanto daquele que o apreende, quanto
daquele que canta os amores – o poeta-fingidor:
144
LEGIÃO URBANA. “Natália”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro:
EMI, p1996. 1 CD. Faixa 1.
145
LEGIÃO URBANA. “L’Aventura”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro:
EMI, p1996. 1 CD. Faixa 2.
Sinceramente nem é verdade.146 Assim, muitas vezes a confissão se torna
fingida e a poesia, por sua vez, sincera.
Nesse ritmo lúdico da poesia que mistura lembrança e esquecimento,
sinceridade e fingimento, culpa e perdão, o eu tenta se constituir e encontra na
canção uma forma de salvação, de resistência, de perdão. O amor, em “Soul
Parsifal”, aparece como aquilo que permite a unidade. Busca-se a integridade,
a afirmação e o autoconhecimento que se dão pela escrita. O relato da culpa
encontra agora a salvação na materialidade da poesia que descobre e encobre;
pois toda confissão carrega a culpa e o perdão. Ao confessar me tenho
perdoado, cubro-me de novo:
146
Id., ibid.
147
LEGIÃO URBANA. “Soul parsifal”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de
Janeiro: EMI, p1996. 1 CD. Faixa 8.
Eu vou forrar as paredes
Do meu quarto de miséria
Com manchetes de jornal
Pra ver que não é nada sério
Eu vou dar o meu desprezo
Pra você que me ensinou
Que a tristeza é uma maneira
Da gente se salvar depois.148
148
CAZUZA. “Um trem para as estrelas”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1988. 1CD. Faixa 6.
149
CAZUZA. “Blues da piedade”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Som
Livre, p1988. 1CD. Faixa 9.
Renato Russo, como vimos, segue todo o percurso do eu ao longo de sua
obra.
No entanto, em ambos os autores, a confissão acontece, na maioria das
vezes, sem o querer, sem a busca consciente das falhas. Sem a vontade
declarada da confissão, há o desvelamento da história do eu e do nós. Por
isso, muitas vezes, quando, na superfície da letra, o homem se depara com o
animal que o olha nu – porque agora se encontra descoberto pelas palavras –,
ele nega saber de si, promove um percurso contrário ao da materialização da
linguagem. Ficam, portanto, os rastros do animal nos rastros da escrita que não
permite a composição totalizadora desse homem que escreve, até porque é
impossível o todo. Como é impossível toda lembrança sem esquecimento, tal
qual Funes150, que não mais tem nada a lembrar, por não ter mais o que
esquecer.
Pode-se pensar na possibilidade de apagar os rastros, mas, sobre as
marcas das pegadas e traços, o animal se inscreve com mais força, o que
acaba por revelá-lo novamente. Os rastros deixam traços palimpsestuosos: a
escrita que remete a outra escrita, o eu que remete ao eu - outro em si. O
movimento desestabiliza o todo e o centro e impede a totalização do ser, a
totalização da memória, e a totalização da escrita da experiência do
acontecimento. O acontecimento se torna textual, rastro, que o animal fareja,
retoma, arquiva, consigna, encontra. “É como se, há pouco, eu estivesse dito
ou fosse dizer o interdito, alguma coisa que não se deveria dizer. Como se por
um sintoma eu confessasse o inconfessável e, como se diz, eu estivesse
querido morder minha língua.”151
Assim, não devemos também esquecer que as obras de Renato Russo e
Cazuza, ao serem lidas como autobiografia, pressupõem a exposição da nudez
que extrapola o próprio olhar do animal em nós e ganha o olhar do outro. Uma
nudez que acontece, antes de tudo, no espaço privado e depois ganha a
visibilidade pública:
150
BORGES, 1979, p.477-484.
151
DERRIDA, 2002, p.17.
Você me veio como um sonho bom
E me assustei152
152
LEGIÃO URBANA. “O teatro dos vampiros”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1 CD. Faixa 5.
153
DERRIDA, 2002, p.67.
154
NIETZSCHE, Frederico. Ecce homo: como cheguei a ser o que sou, 1959.
3. Vozes que compõem o rock da travessia
155
BAKHTIN, 1981, p.91.
156
DERRIDA, 2004, p.62.
roubo ao remeterem uma a outra, numa espécie de respeito à genealogia de
uma escrita de culpa e perdão.
160
DE MAN apud DERRIDA, 2004, p.67.
161
DERRIDA, 2004, p.69.
162
LEGIÃO URBANA. “Uma outra estação”. R. Russo [compositor]. In: –. Uma outra estação.
Rio de Janeiro: EM, p1997. 1CD. Faixa 2.
Renato Russo e Cazuza, ao responderem também pelo corpo que se
torna metáfora de si próprio e daquilo que arrisca na escrita que busca a
salvação, correm, na mesma medida, o risco do envenenamento. Corpos e
escritas se contaminam ao se sobreporem uns aos outros, na sensibilidade do
toque, no diálogo íntimo que confessa “segredos de liquidificador”163. Para
Derrida, a autobiografia é a escritura de si do vivente enquanto perseguição do
rastro do animal, – é auto-afecção ou auto-infecção ao passo que, ao escrever,
o eu se contamina com o outro, o outro de si mesmo, e o outro de fora: auto-
infeccionam discursos, palavras, linguagens, confissões. “Nada corre o risco de
ser tão envenenador quanto uma autobiografia, envenenador para si, de
antemão, auto-infeccioso para o presumido signatário assim auto-afetado”.164 E
o risco de infecção se alarga na medida em que sabemos que, corpo-a-corpo,
as escritas se entregam umas a outras, sem qualquer proteção, mas seguindo
o instinto de diálogo, quando o animal autobiográfico sacia o instinto de
escrever-se e de inscrever-se.
Os diálogos presentes na música refletem os diálogos entre épocas
históricas e culturas distintas que, de maneiras diversas, deixam marcas no
sujeito, na sociedade e, conseqüentemente, na obra artística, em que a
différance se manifesta, dando-nos um entendimento do passado e,
principalmente, da contemporaneidade. Não só o sujeito se comunica com ele
mesmo e com o outro, na escrita e na arte, recuperando, pelas pegadas, aquilo
que ele veio a ser; a névoa que paira sobre o século XIX pode ainda embaçar a
noite das décadas finais do século XX. A década de 1980 consegue refletir,
ainda que de forma opaca, os resquícios de séculos anteriores e os destroços
de anos mais recentes – presentes nas composições de Cazuza e Renato
Russo.
A escrita polifônica ecoa, na multiplicidade de vozes que tecem a
partitura textual do rock, rastros e vestígios de poéticas diversas, que na
espessura do palimpsesto confessam a culpa. O acontecimento textual e o
diálogo entre escritas, como um ato de contrição, buscam a salvação, ao
mesmo tempo em que a própria escrita tenta apagar a culpa e a fixa na
163
CAZUZA. “Codinome beija flor”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som
Livre, p1985. 1CD. Faixa 6.
164
DERRIDA, 2004, p.87.
profundidade do corte e do rastro, que se lavra como a própria condenação.
Culpa e confissão, salvação e condenação, remédio e veneno: a escrita
pharmakon ou fazer poético é “jorro de tempo, é afirmação simultânea da morte
e vida”. Aqui nos contaminamos com o tom e ritmo de Octavio Paz (1982) que,
em O arco e a Lira, mais precisamente em “A revelação poética”, traça as
margens – que se cruzam e se confundem –entre poesia e religião. O poema
como participação retoma instantes da criação, instaura um tempo mítico. “A
recitação poética é uma festa: uma comunhão”. E assim o é na poesia que se
constitui ritmo, música: ritmo compartilhado, comunhão novamente.
A voz do outro – de Paz, no diálogo com Bakhtin e Derrida – ajuda-nos a
entender a “outridade” como constituição do homem em diálogo constante com
o eu e com o outro. Sempre um outro a dialogar consigo mesmo, a revelar-se:
“A poesia é revelação de nossa condição e, por isso mesmo, criação do
homem pela imagem. A revelação é criação. A linguagem poética revela a
condição paradoxal do homem, sua ‘outridade’, e assim o leva a realizar aquilo
que ele é”165.
Nesse sentido, temos a poesia de Renato Russo e a de Cazuza que
afirmam a falta. A poesia se constitui como a necessidade da presença, da
revelação e da redenção, criando-se em diálogo. “O homem é um nó de forças
interpessoais. A voz do poeta é sempre social e comum...”166, ressalta Paz na
mesma harmonia que ressalta Bakhtin ao conceber a linguagem como sendo,
por sua natureza, dialógica: a palavra é e não é nossa, traz sempre a
perspectiva da voz de um outro, de um outro que ainda é o próprio eu.
165
PAZ, 1982, p.189.
166
Ibid., p.200.
167
Ibid., p.194
As palavras do ensaio de Paz, que toca a poesia e rompe os limites
textuais entre crítica e poética, aproximam-se das palavras desta poesia de
Mario de Sá Carneiro, que ganha a voz e melodia de Adriana Calcanhoto:
168
ADRIANA CALCANHOTO. “O outro”. Mário de Sá Carneiro [compositor]. In: –. Público. Rio
de Janeiro: BMG, p2000. 1CD. Faixa 7.
deixa-se entrever entre os rastros do eu e da vivência diária aquilo que se
revela na metalinguagem de suas canções, quando, muitas vezes, ouvimos
versos auto-explicativos que elucidam a necessidade da canção como
salvação, forma de estar vivo e de se fazer autoconhecer: “Quero ouvir uma
canção de amor/ que fale da minha situação”169. Os versos de “Natália”, do
álbum A tempestade, anunciam a escrita como vida e salvação:
169
LEGIÃO URBANA. “O mundo anda tão complicado”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de
Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 8.
170
LEGIÃO URBANA. “Natália”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro:
EMI, p1996. 1CD, faixa 1.
171
LEGIÃO URBANA. “Quase sem querer”. R. Russo [compositor]. In: –. Dois. Rio de Janeiro.
EMI, p1986. 1 CD. Faixa 2.
comunicação cultural e passa a ser compreendida dentro de uma situação
social e envolve formas de interação, participação, trocas, vivências e
experiências entre interlocutores e intérpretes. Ela consegue, dessa maneira,
ser farol, caleidoscópio, termômetro de nossas sociabilidades e transformações
históricas.
Entende-se aqui a polifonia nas letras de Renato Russo como tentativa
de recuperar ou revelar a “outra voz” nos rastros de sua escrita poético-
musical. A escrita se desdobra palimpsestuosa direcionando para uma relação
de afinidade e influências literárias que apontam um diálogo de tradição e
ruptura entre poetas de todos os tempos. Seguindo a leitura das escritas de
Russo e Cazuza como confissão, a polifonia pode ser também entendida como
recuperação de fragmentos e rastros do animal autobiográfico que visa à
salvação na própria escrita que denuncia a culpa. Assim, Russo o faz de
maneira metalingüística, onde se pode perceber nos vestígios que permitem
um rastreamento de uma escrita que tece um discurso amoroso variado, numa
mistura de culpa e salvação pela escrita que celebra o amor: amor de salvação.
Os fragmentos dos rastros do dia-a-dia tentam se livrar da “poeira que fica se
escondendo pelos cantos”172 e permitem uma leitura de uma poética do
cotidiano e do disparatado que, por sua vez, também celebra o amor: amor de
salvação. Nesses “cantos”, por onde passa o animal, sedimentam os resíduos
e resquícios dos dias e do eu. Na superfície acomodam-se e revelam-se
poeiras: os rastros do animal. Acumulam-se na superfície, ao longo dos dias,
poeiras e palavras, que se sobrepõem, acumulam-se. Sobre os “cantos” o
trabalho de arqueólogo procura o desvelamento daquilo que se esconde nas
várias camadas de escombros, ruínas, e resquícios de tantas escritas.
O disco V, de 1991, com a epígrafe de Brian Jones “Such psychic
weaklings has Western civilization made of so many of us” e “Bem vindo aos
anos setenta!”, esta assinada pelo próprio grupo, dá-nos a dimensão da
polifonia do rock de Renato Russo, tanto no que se refere ao diálogo entre
obras – poéticas e musicais – e no que se refere ao diálogo do poeta com seu
próprio tempo, e com o outro de si mesmo. O disco inicia-se com uma cantiga
de amor do português Nuno Fernandes Torneol, do século XIII, e termina com
172
LEGIÃO URBANA. “Teatro dos vampiros”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro.
EMI, p1991. 1 CD. Faixa 5.
a instrumental “Come share my life”, do folclore americano. O conteúdo do
álbum ilustra a capacidade de comunicação de Renato Russo com culturas
diversas, de épocas e localidades diferentes, e se inscreve no diálogo com seu
próprio tempo e com os seus vários outros eus. O disco V abarca com lirismo a
bruma da era Collor, ao mesmo tempo em que compreende aspectos da
intimidade do autor. No entanto, as composições não se limitam à situação
sócio-econômica do Brasil no início dos anos 1990, nem se reservam às dores
pessoais de Renato. Elas se alargam no tempo e se mostram atualizadas em
qualquer momento histórico: adquirem o caráter de universalidade e
atemporalidade. Trabalho meticuloso, conscientemente articulado por seu
autor:
173
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.127.
174
LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD, faixa 2.
No entanto, a leitura nos dias de hoje dá-nos a entender, do mesmo
modo, o atual estado do país175. A arte da poesia aprendida com Drummond e
Pessoa se faz notar na articulação de vozes que ecoam na tessitura dos fios do
tecido poético-musical, quando a presença-ausência do eu protagoniza a
subjetividade do poeta. “Metal contra as nuvens”, na extensão de seus tantos
versos, é o registro do eu e do nós, do tempo e do espaço, do privado e do
público, do local e do universal. A letra permite o diálogo do eu com seu tempo
e ainda deixa transparecer na bruma os conflitos e aflições que se estendem
para os conflitos e aflições do outro do seu tempo, do tempo passado e do
tempo que virá. A terceira parte da canção sintetiza num lirismo agressivo de
um cavaleiro andante e romântico176 (“Viajamos sete léguas/ por entre abismo
e florestas”177) o desconcerto e a busca de afinação do sujeito que vivencia a
obscuridade da Aids e enfrenta os conflitos internos do corpo e do espírito:
Esta é a terra-de-ninguém
Sei que devo resistir –
Eu quero a espada em minhas mãos.
Embora Renato Russo tivesse optado por não trazer a público a sua
doença, suas letras detectam a presença viral que aos poucos corrompe o
175
Como a letra de “Que país é este”, “Metal contra nuvens” não se torna absoleta. Nem o
Brasil deixa de ser um museu de grandes novidades, quando o futuro repete o passado.
176
Renato Russo após sair do Aborto Elétrico se auto intitulou “Trovador Solitário” e fazia
shows em bares de Brasília.
177
LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD, faixa 2.
178
Id., ibid.
corpo. Como acontecimento que leva à culpa, sexo, drogas, Aids e rock’n roll
embalam as canções que ora celebram Eros ora Thanatos. O sujeito reside
entre os destroços do regime autoritário e procura se encontrar, quando tudo
parece perdido. O acontecimento alimenta a culpa, que assim é expressa na
canção que subtende logo em seguida a salvação, pela escrita e no amor:
182
LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD, faixa 2.
183
LEGIÃO URBANA. “1965 (Duas tribos)”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações.
Rio de Janeiro: EMI, p1991. 1CD, faixa 6.
do amor em sua contradição, imperfeição e salvação. A letra se inicia com
versos em referência direta à epístola de São Paulo aos coríntios. Russo
reelabora de forma poética e musical a citação bíblica, numa seqüência
enumerativa, que afirma e nega as características do amor. A composição
segue com o primeiro quarteto de versos de Camões retirados de um dos seus
sonetos mais conhecidos, intercalados pela repetição da primeira estrofe da
música, que segue com a transcrição fiel do segundo quarteto e do primeiro
terceto do soneto, que ganha um quarto verso, na reelaboração do último verso
do poema do escritor português. A letra termina com a introdução de um novo
verso e a repetição de versos já cantados, finalizando do mesmo modo como
se iniciou:
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece.
(...)
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder.
É só o amor, é só o amor.
Que conhece o que é verdade.
184
LEGIÃO URBANA. “Monte castelo”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de
Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 8.
185
PAZ, 1982, p.189.
186
Ibid., p.172.
fundamenta num amor carnal e divino, precedido de um estado de confusão e
nebulosidade, que se torna, à medida que se escreve e confessa, mais sereno:
Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre
Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente187
187
LEGIÃO URBANA. “Meninos e meninas”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações.
Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 9.
188
Id., ibid.
o risco do auto-envenenamento, mas ela é inevitável, porque alguns animais
são mais autobiográficos que outros, são mais instintivos.
Se em “Meninos e meninas” a confissão se faz entremeada por santos,
metáforas e metalinguagem, em “Leila”, do álbum A Tempestade, o eu se
confessa de forma sutil, revelando-se na narrativa simples de um dia qualquer
na vida de um casal, rodeado de trabalho, filhos, pequenos consertos e baratas
voadoras:
189
LEGIÃO URBANA. “Leila”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de Janeiro. EMI,
p1996. 1 CD. Faixa 11
190
LEGIÃO URBANA. “O mundo anda tão complicado”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de
Janeiro. EMI, p1991. 1 CD. Faixa 8.
191
PAZ, 1982, p.216.
Como salvação, o amor sobressai sobre a culpa e se faz liberdade, fortaleza e
sentido. Mas a vivência de um amor assim, ainda que seja o mais desejado,
faz-se novamente culpa, quando a pobreza do pecador perante Deus leva ao
ato de contrição:
192
LEGIÃO URBANA. “Se fiquei esperando meu amor passar”. R. Russo [compositor]. In: –. As
quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 12.
193
PAZ, 1982, p.217.
texto que se faz novo é todo ele o discurso do outro. Faz-se novo por ser outro,
se faz outro por ser novo. Não são mais São Paulo e Camões que assinam os
versos. O autor é Renato Russo e cabe a ele, que aposta no compartilhamento
do conhecimento da fonte de sua escrita pela comunidade de leitor-ouvinte,
referir-se ao texto fonte. No encarte do álbum fica o registro do crédito da
música: “‘Monte Castelo’ é como está creditado e deve ter alguma coisa do
Tão-Te King (O Livro caminho perfeito) de Lao Tse (Da China Antiga) em
algum lugar. Não vá pensar que nós fizemos tudo isso sem ajuda. Alguns erros
são de propósito outros não”194. Da boca de Burton, a defesa de Russo:
“Montei laboriosamente este escrito com base em diversos autores, mas sine
injuria. Não enganei nenhum autor, e atribui, a cada um, o que lhe era
devido”195.
Os registros do encarte, além de catalogar as fontes do intertexto,
explicitam a proposta de “fazer um disco que fosse um disco amigo, um alento,
que tentasse trazer paz de espírito”196. Nesse ritmo que deixa de lado os ruídos
estrondosos de guitarras, a música de abertura do álbum, “Há tempos”, tem o
segundo verso retirado “de um achado numa igreja em 1600 e alguma coisa na
Europa e veio por carta (oi Luzia!). O legal é que quando minha prima voltou do
encontro jovem lá estava a mesma frase, no mesmo texto, desta vez atribuído
a um autor hindu desconhecido, na apostila (...)”197. A fala de Russo, longe do
discurso elaborado de suas canções, revela como textos ganham, a cada re-
inscrição em lugares e épocas diferentes, autorias e sentidos outros. Sem
acusação de plágio, “o que teus antepassados deixaram-te de herança, se
queres possuí-lo, ganha-o”198. Além de “Há tempos”, outra canção do mesmo
disco, “Quando o sol bater na janela de seu quarto”, apresenta a referência e a
inscrição de origem do discurso do outro: “toda parte sobre dor e desejo” é
retirada da Doutrina de Buda de Dendo Kyokai”199.
A diversidade de fontes, como revelam os registros do encarte, ainda
com recorrência ao tema religioso e ao amor, mostra na elaboração, na citação
na assimilação ou simplesmente no mascaramento, como o fazer poético do
194
Encarte de LEGIÃO URBANA: As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD.
195
BURTON apud SCHNEIDER, 1990, p.98.
196
RUSSO apud ASSAD (org.), 2000, p.209.
197
Encarte de LEGIÃO URBANA. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD.
198
FREUD (citando Goethe - Fausto, primeira parte) apud SCHNEIDER, 1990, p.91.
199
Encarte de LEGIÃO URBANA. As quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD.
compositor dialoga com textos e culturas, doutrinas e religiões diferentes.
Assim o “homem é pluralidade e diálogo, concordando e juntando-se consigo
mesmo, mas também dividindo-se sem cessar. Nossa voz são muitas vozes.
Nossas vozes são uma só voz”200, completa Paz.
A temática do amor envolve toda a obra de Renato Russo. Desde a
primeira canção, “Será”, até a última, “O livro dos dias”, o autor recolheu
fragmentos que compõem um discurso amoroso. Fragmentos que revelam o
flagelo do amor, ao mesmo tempo em que o celebram como o sentimento
maior, a salvação para todas as misérias humanas, culpas, falhas e omissões:
“sem amor eu nada seria”201. O autor persegue os seus rastros. Declara em
“Sereníssima”: “Sou um animal sentimental/ Me apego facilmente ao que
desperta meu desejo”202. Renato Russo foi, então, um animal autobiográfico
que se deixou levar pelo instinto de escrever e se inscrever, perseguindo os
rastros, que o ajudam a compor um manual de desencontros e destroços
amorosos. Ao mesmo tempo em que os escritos sobre o amor atingem o
inatingível, o possível do impossível, na simplicidade e na idealização de um
amor como salvação para o corpo e para o espírito.
A memória e a invenção poética são vozes também presentes que
compõem o discurso amoroso em Renato Russo. Em “Vamos fazer um filme”,
a trilha sonora é um musical dos anos trinta – metáfora que é “a única maneira
ainda/ de imaginar a minha vida”. O amor, na sua simplicidade, deixa
perguntas:
Para aquele que um dia escreveu que “afinal, amar ao próximo é tão
démodé”204, restou-lhe o trabalho de recordação, de recolher entre as
200
PAZ, 1982, p.202.
201
LEGIÃO URBANA. “Monte castelo”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de
Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 7.
202
LEGIÃO URBANA. “Sereníssima”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro. EMI,
p1991. 1 CD. Faixa 6.
203
LEGIÃO URBANA. “Vamos fazer um filme”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento
do Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 8.
204
LEGIÃO URBANA. “Baader-Meinhof Blues”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana.
Rio de Janeiro. EMI, p1985. 1 CD. Faixa 8.
memórias o amor (não) vivido. Assim, em Russo, o amor é mais um tecido
memorialístico do que vivência plena, que levaria à recordação:
205
LEGIÃO URBANA. “Longe do meu lado”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio de
Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 4.
206
LEGIÃO URBANA. “Vento no litoral”. R. Russo [compositor]. In: –. V. Rio de Janeiro. EMI,
p1991. 1 CD. Faixa 7.
Parece agora estar tão cansado quanto eu.
Ou em “Meninos e meninas”:
207
LEGIÃO URBANA. “Maurício”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações. Rio de
Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 8.
208
LEGIÃO URBANA. “Meninos e meninas”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações.
Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 9.
209
AZEVEDO, “Lembrança de morrer”, em
http://intervox.nce.ufrj.br/~clodo/manuel_antonio_alvares_de_azeved.htm, captado em
05/04/07.
Dois poetas que experimentaram a escrita como a própria vivência, dois
poetas que, na bruma, entre cigarros e papéis, registraram na exaltação do eu
a revelação do nós. Os primeiros versos de “Lembrança de morrer” entram em
consonância com os últimos de “A via láctea”:
214
DAPIEVE, 2004, p.126.
215
LEGIÃO URBANA. “Sereníssima”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro: EMI,
p1991. 1CD, faixa 6.
216
CAZUZA. “O tempo não pára”. Cazuza [compositor]. In: –. O tempo não pára. Rio de
Janeiro: Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 6.
217
LEGIÃO URBANA. “O teatro dos vampiros”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro:
EMI, p1991. 1CD, faixa 5.
218
CAZUZA. “O tempo não pára”. Cazuza [compósito]. In: –. O tempo não pára. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 6.
escrita dos álbuns V (1991), O descobrimento do Brasil (1993), A Tempestade
(1996), e do póstumo, Uma outra estação (1997), é ainda o relato do sujeito da
travessia, que ao dialogar com passados distantes ou próximos, dialoga com
sua contemporaneidade, que agora, dado o pouco de distanciamento da
vivência, permite melhor saber quem eu sou.
E depois do começo
O que vier vai começar a ser o fim.
E depois do começo
O que vier vai começar a ser.219
219
LEGIÃO URBANA. “Depois do começo”. R. Russo [compositor]. In: –. Que país é este. Rio
de Janeiro. EMI, p1987. 1 CD. Faixa 4.
220
LEGIÃO URBANA. “Metal contra as nuvens”. R. Russo [compositor]. In: –.V. Rio de Janeiro.
EMI, p1991. 1 CD. Faixa 2.
221
BARÃO VERMELHO. “Posando de star”. Cazuza [compositor]. In: –. Barão vermelho. Rio de
Janeiro: Som Livre, p1982. 1CD. Faixa 1.
Você sem texto sem cinema
Não faz do sexo um problema
Eu armo uma cena, é, eu armo uma cena!
Quebro garrafa
Morro de chorar
Mas ainda te faço dar!222
222
Id., ibid.
223
CAZUZA. “Blues da piedade”. Cazuza. [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro:
Polygran, p1988. 1CD. Faixa 9.
224
Título também da biografia de Jim Morrison escrita por Jerry Hopkins: Daqui ninguém sai
vivo.
225
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.78.
226
BARÃO VERMELHO. “Nós”. Cazuza [compositor]. In: –. Maior abandonado. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1984. 1CD. Faixa 9.
diálogo com autores e gêneros um tanto aversivos para a batida forte do rock.
Cazuza soma sexo, drogas, rock’n roll e a dor-de-cotovelo do samba-canção, o
refinamento da bossa nova e o lirismo de Cartola. Ingredientes que ganhavam
o teor explosivo e alucinante do prazer de viver perigosamente. E assim, o
cantor da classe média optou pela carreira solo, quando entendeu que para por
o Pé na estrada227 e ousar vôos mais altos não seria possível em grupo. A
partir de Exagerado, Cazuza tornou o rock brasileiro o mais polifônico possível.
Somou ao estilo rebelde do gênero, as dores dos amores desencontrados, a
insatisfação da juventude e a transgressão sexual, reformulando conceitos de
comportamento numa sociedade que se desvincula aos poucos das ordens
militares. A fúria, a poesia, a transgressão e o amor, na agilidade de mãos que
escrevem na conturbação de um mundo cada vez mais rápido, ecoam as
atitudes semelhantes dos poetas beat dos anos 50, que revolucionam a escrita,
o comportamento e a sociedade conservadora dos Estados Unidos.
227
Título em português do livro On the road, de Jack Kerouac, uma das fontes de influência de
Cazuza.
228
CAZUZA, Folha de São Paulo, 14/março/1986, disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=31&id_type=2&page=1
229
LEGIÃO URBANA. “Sereníssima”. R. Russo [compositor]. In: -. V. Rio de Janeiro. EMI,
p1991. 1CD. Faixa 6.
despida/ tão desprevenida e exata/que um dia acaba”230. O mal-estar-perante-
a-morte e a náusea, tão bem incorporados na estética do espírito decadente de
Baudelaire, parecem prolongar-se na “... extensão dos longos dias mancos/
quando o tédio, esse fruto da incuriosidade,/ sob os pesados flocos da neve
dos anos, /atinge as proporções da imortalidade”231. Como no século XIX, é
sobre o artista que recai o desencanto, a névoa, o spleen, que permitem na
poesia transformada do cotidiano, um diagnóstico mais preciso do mal du
siècle.
230
CAZUZA. “Ritual”. Cazuza. [compositor]. In: -. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran,
p1987. 1CD. Faixa 2.
231
BAUDELAIRE apud CEIA. Carlos, E-Dicionário de termos literários, disponível em
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/S/spleen.htm, captado em 001/04/2007.
232
LEGIÃO URBANA. “Esperando por mim”. R. Russo [compositor]. In: –. A tempestade. Rio
de Janeiro. EMI, p1996. 1 CD. Faixa 12.
233
LEGIÃO URBANA. “A fonte”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil. Rio
de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 2.
234
LEGIÃO URBANA. “Baader-Meinhof Blues”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana.
Rio de Janeiro. EMI, p1984. 1CD. Faixa 8.
235
CAZUZA. “Ideologia”. Cazuza. [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro: Polygran,
p1988. 1CD. Faixa 1.
236
CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ,
Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em
companheiros da travessia vivenciam ao extremo a velha tríade do “sexo,
drogas, e rock roll”. A essa combinação explosiva, que desde os anos 60,
provoca delírio, prazer, alegria, dor, fascinação, tristeza e morte, acrescenta-se
a Aids que, a partir dos anos 80, vem cortar o “barato” da “juventude
transviada”. A névoa recai de forma fatal sobre aqueles que deixam repercutir
no corpo a liberdade, o excesso e os estilhaços da travessia. O tom mórbido e
frio da Noite na taverna ecoa na letra de “Será”, pela qual Renato Russo
parece profetizar o desencanto e a névoa dos anos que viriam, assombrados,
entre outros fantasmas, pela Aids:
Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que tudo isso é em vão?
Será que vamos conseguir vencer?
Ficaremos acordados
Imaginando alguma solução237
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
237
LEGIÃO URBANA. “Será”. R. Russo [compositor]. In: –. Legião Urbana. Rio de Janeiro. EMI,
p1985. 1 CD. Faixa 1.
238
CAZUZA. “O tempo não pára”. Cazuza. [compositor]. In: –. O tempo não pára. Rio de
Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 6.
239
LEGIÃO URBANA. “1965 (Duas tribos)”. R. Russo [compositor]. In: –. As quatro estações.
Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 6.
240
DERRIDA, 2002, p.74.
Se você quer saber como eu me sinto
Vá a um laboratório ou labirinto.
Seja atropelado por esse trem da morte
241
CAZUZA. “Cobaias de Deus”. Cazuza. [compositor]. In: –. Burguesia. Rio de Janeiro:
Polygran, p1989. 2CD. Faixa 10.
242
CAZUZA. “Um trem para as estrelas”. Cazuza. [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro:
Polygran, p1988. 1CD. Faixa 7.
si é uma luta para vencer isso”243, confessa Cazuza. Em consonância,
“Clarisse”, a letra mais autobiográfica de Renato Russo, que na pele de uma
menina de 14 anos se sente “cansado de ser vilipendiado, incompreendido e
descartado”244, permite-nos visualizar o Ecce Animot de Derrida, aquele que
243
CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas Isto É,
Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
244
LEGIÃO URBANA. “Clarisse”. R. Russo [compositor]. In: –. Uma outra estação. Rio de
Janeiro. EMI, p1997. 1 CD. Faixa 5.
245
DERRIDA, 2002, p.77-78.
246
BATAILLE, 1980, p.17.
humana e do corpo social. A luta, a guerra, a defesa e o combate à doença se
aliam a outros vocábulos bélicos e planejam campanhas para a derrota do
“inimigo”. As metáforas militares não só para doenças, mas também para
combate à pobreza, às drogas, por exemplo – aponta a crítica americana –, se
justificam nas sociedades capitalistas:
247
SONTAG, 2003, p.46.
248
FRIEDRICH, 1978, p.17.
249
Ibid., p.36.
medos, as fantasias, a esperança e todos os sentimentos do homem pós-
moderno250.
Sontag (1984), no artigo “El artista como sufridor ejemplar” elucida a
relação literatura e sofrimento:
“Feedback song for a dyng friend”, escrita em inglês por Renato Russo,
em 1985 e cantada no disco As quarto estações, é uma “canção retorno para
um amigo à morte”254. Seus versos são cantados no momento em que o Brasil
assiste à morte anunciada de Cazuza, vencido pela Aids, em 7 de julho de
1990:
250
A Aids na literatura brasileira desponta em Caio Fernando Abreu: nela se percebe a
literatura do limite e da angústia, que expõe o risco de morte e a fragilidade da vida.
251
SONTAG, 1984, p58.
252
LEGIÃO URBANA. “Índios”. R. Russo [compositor]. In : –. Dois. Rio de Janeiro. EMI, p1986.
1 CD. Faixa 12.
253
NARA LEÃO. “Traduzir-se”. F. Gullar [compositor]. In: –. Romance Popular. Rio de Janeiro:
Polygran, p1981. 1CD. Faixa 8.
254
O encarte de As quarto estações contem a tradução de Millôr Fernandes para “Feedback
song for a dyng friend”: “Alisa a testa suada do rapaz/Toca o talo nu ali escondido/ Protegido
nesse ninho farpado sombrio da semente/ Então seus olhos castanhos ficam vivos/ Antes
afago pensava ele era domínio / Essas aí não são suas mãos são as minhas / E seguras,
minhas mãos buscam se impor / Todo conhecimento do jorro viril do meu senhor /O gosto
perfumado que retém minha língua /É engano instalado e não desfeito (...)”
Soothe the young man's sweating forehead
Touch the naked stem held hidden there
Safe in such dark hayseed wired nest
Then his light brown eyes are quick
Once touch is what he thought was grip
255
LEGIÃO URBANA. “Feedback song for a dying friend”. R. Russo [compositor]. In: –. As
quatro estações. Rio de Janeiro. EMI, p1989. 1 CD. Faixa 3.
256
SONTAG, 2003, p.48.
257
CAZUZA. “Carta dani”. Cazuza [compositor]. In: –. Cazuza - o tempo na pára (trilha sonora
do filme). Rio de Janeiro: Som Livre, p2004. 1CD. Faixa 9.
Em 1985, Cazuza declarou: “Espero que no futuro, não esqueçam do poeta que sou”. E
esclarece a materialidade da letra como a única garantia de permanência e continuidade: “Só a
música vai ficar. É só isso que o público vai levar do Cazuza" (Amiga, 04/dezembro/1985,
disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=24&id_type=2&page=1).
escrita corpórea. O corpo se torna metáfora em Cazuza e abrange o amor, as
paixões, o erotismo e as enfermidades.
Com a Aids não há romantização – apesar de ter sido relacionada, a
princípio, com a vida boêmia, com a noite, com o uso desregrado do corpo e do
prazer.
258
SONTAG, 2003, p.52.
259
CAZUZA, “A via crucis do corpo”, In: ECHEVERRIA, 2001, p.339. Letra escrita por Cazuza a
partir de um conto de Clarice Lispector, para a trilha sonora do filme homônimo de José
Antônio Garcia.
260
SONTAG, 2003, p.47.
261
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.261. Música gravada originalmente por Dulce
Quental, em 19987. Foi regravada por Cazuza em 1989 para o disco Burguesia, mas excluída
da seleção final do álbum.
Cazuza não hesitaria em compor versos sobre a obscuridade da vida.
Mas sempre regado por rimas de amores, o poeta filho da classe média,
dosava poesia beatink com dor-de-cotovelo dos samba canção, dando-nos
assim a característica de um rock polifônico, que não deixara de rezar em sua
cartilha de rebeldia, mas afinava-se com os tempos brasileiros e com os
sentimentos da juventude do fim do século breve.
Vivendo assim a atualidade “na moda da nova Idade Média”262, o futuro
que parece repetir o passado nos permite o encontro de vozes distantes e
recentes que ecoam em nós, muitas vezes através da “mídia da novidade
média”. A juventude se vê recolhida nos cacos e amores impossíveis, nos
goles e em mais uma dose, que Cazuza brinda e bebe em nome de todos, com
total irreverência e pouca prudência: “Mais uma dose?/ É claro que eu estou a
fim/ (...)Canibais de nós mesmos/ Antes que a terra nos coma/ Cem gramas,
sem dramas”263.
Em “Só as mães são felizes”, do seu primeiro disco solo, o autor celebra
o “lado escuro da vida”, e canta suas influências malditas, de Luiz Melodia a
Jack Kerouac:
262
CAZUZA. “Medieval II”. Cazuza. [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre,
p1985. 1CD. Faixa 2.
263
BARÃO VERMELHO. “Por que a gente é assim?”. Cazuza. [compositor]. In: –. Maior
abandonado. Rio de Janeiro: Som Livre, p1984. 1CD. Faixa 7.
264
CAZUZA. “Só as mães são felizes”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 9.
“todas pessoas diferentes e poetas”, Cazuza se coloca no meio deles,
ressignificando seus diálogos com propostas poéticas de outras épocas, dando
um novo sentido para experiência dos “malditos” da travessia dos oitenta e de
outras travessias. O próprio autor explica o processo de criação da letra:
A letra foi vetada pela censura, por causa dos versos finais “pós-Nelson
Rodrigues”, como caracterizava o próprio autor:
265
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.130.
266
CAZUZA. “Só as mães são felizes”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro:
Som Livre, p1985. 1CD. Faixa 9.
267
CAZUZA. “Bruma”. Cazuza [compositor]. In: –. Burguesia. Rio de Janeiro: Polygran, p1985.
2CD. Faixa 19.
angustia blasé de algumas pessoas diante do estilo de vida do final do século
XX, em que você pode fazer o que quiser, mas a satisfação interior é cada vez
mais difícil de ser conseguida”268:
268
ROMÉRO apud ECHEVERRIA, 2001, p.150.
269
CAZUZA. “Completamente blue”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de
Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 6.
270
CAZUZA. “Ritual”. Cazuza [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran,
p1987. 1CD. Faixa 2.
Pra poesia que a gente não vive
Transformar o tédio em melodia
271
CAZUZA. “Todo amor que houver nessa vida”. Cazuza. [compositor]. In: –. O tempo não
pára. Rio de Janeiro: Polygran, p1987. 1CD. Faixa 4.
272
CAZUZA apud ECHEVERRIA , 2001, p.139.
273
CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ,
Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
274
CHICO BUARQUE. “Fado Tropical”. C. Buarque, R. Guerra [compositores]. In: –. Calabar, o
elogio da traição ou Chico canta. Rio de Janeiro: Fhonogran, p1973. 1CD. Faixa 7.
subjetividade, enaltece um amor conquistador – característica ainda do bom e
velho rock’n roll. Assim, as vozes que compõem letra e música de Cazuza são
várias e convivem nas batidas do rock, do blues, do rythm & blues e das
baladas românticas – nas quais ecoam os sentimentos da juventude de sua
geração, que ganham visibilidade através do rock.
Ainda como integrante do Barão Vermelho, Cazuza, em Maior
Abandonado, registra uma poesia cuja temática é a vida e as dores de amor,
que ecoam as vozes de Nelson Gonçalves, Lupicínio Rodrigues e Ataulfo
Alves. Consciente de sua influência e polifonia, Cazuza anunciava: “Um dia
ainda chamo o Nelson Gonçalves para cantar uma música com o Barão. Se
isso chocar algum roqueiro, é sinal de que ele precisa se libertar desse
trauma”275. Dessa forma, inaugura um rock-mpb, feito um “um pierrot
retrocesso/ meio bossa nova e 'rock'n roll”276 que compõe o “clipe sem nexo” do
seu show. Um show híbrido, marcado pela diversidade e influência de gêneros
musicais e formas de compor letra: “A mis-en-scêne, tem muita coisa que a
gente imita dos outros. Pego um pouquinho ali do Caetano, um pouquinho do
Ney, um pouquinho do Mick Jagger, os ídolos da gente"277. Muitas vezes a
música de Cazuza é mais MPB do que rock, é mais bossa e “fossa” que
rebeldia roqueira: formas novas de escrever e cantar num país marcado pela
diversidade. Carrega assim, em suas composições, perspectiva da voz do
outro, que explora e explicita os sentimentos do eu:
275
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.77.
276
CAZUZA. “Faz parte do meu show”. Cazuza [compositor]. In: –. Ideologia. Rio de Janeiro:
Polygran, p1988. 1CD. Faixa 12.
Para Cazuza, “essa música não é um new bossa nova como andam dizendo. É bossa velha
mesmo” (CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.190).
277
CAZUZA, Compilação feita por Ezequiel Neves e recolhida em entrevista às revistas IstoÉ,
Playboy, Amiga e Interview, no período de 1983 a 1989. Disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=4&id_type=2&page=1,
capturado em 04/04/2007.
278
CAZUZA. “Medieval II”. Cazuza [compositor]. In: –. Exagerado. Rio de Janeiro: Som Livre,
p1985. 1CD. Faixa 2.
composição e em sua melodia, elementos estes que podem “desafinar” em
polêmicas e controvérsias, dada a indefinição e variação do significado de tais
termos que tangem o político e uma ordem classificatória hierarquizante. Sem
estender para uma discussão a respeito de gêneros musicais e suas
conotações populares ou não, cabe aqui apenas ressaltar o contato que a cena
roqueira oitentista experimenta com a MPB, seja quando propõe a ruptura, no
inicio dos anos 80, ou quando no final da década, tenta uma reaproximação.
Renato Russo declara a necessidade de “um corte proposital em relação a
MPB” como “valorização dos anos 80”279:
279
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.
280
RUSSO apud BRYAN, 2004, p.138.
281
Cazuza, em 1987, divide o prêmio de Melhor letrista da MPB com Chico Buarque.
282
RUSSO apud DAPIEVE, 2004, p.196.
Renato e Cazuza se distanciam do amadorismo e se tornam porta voz de sua
geração, fixando-se como mainstream do rock brasileiro de todos os tempos.
E os diálogos do rock com a MPB e com outros gêneros musicais, como
o samba e a bossa nova, reafirmam a década de 80 como a década da
travessia. Cazuza e Renato Russo caminham, prosseguem na movimentação
cultural, confirmando também o Brasil como uma nação mista, impura, em
todos os sentidos, desde a colonização. Cazuza declara-se como poeta da
travessia:
Como Renato Russo que assina o diálogo por ele promovido entre São
Paulo e Camões – resignificando o entendimento e entrecruzamento do amor
carnal e divino –, Cazuza se doa para o texto alheio e não se intimida com a
contaminação entre escrita e voz. Penetra, em alarde e festa, no reino das
palavras e as possui. Se dermos ao empreendimento de compreensão da vida
e da obra de Cazuza, os versos de Cartola soam bem, ainda que tristes e
pessimistas, para dar conta, daquele, que como Álvares de Azevedo, foi poeta,
viveu e amou a vida:
289
CHIARA, 2001, p.10.
290
CAZUZA. “Vida louca vida”. Lobão, B. Vilhena. [compositores]. In: –. O tempo não pára. Rio
de Janeiro: Polygran, p1988. 1CD. Faixa 1.
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que iras tomar291
291
CAZUZA. ”O mundo é um moinho”. Cartola [compositor]. In: –. Preciso dizer que te amo -
toda a paixão do poeta. Rio de Janeiro: Universal. p2001. 1CD. Faixa 14.
292
O Capítulo11 do livro Preciso dizer que te amo, que reúne todas as letras do poeta,
apresenta as composições de Cazuza interpretadas por vários artistas como Marina Lima,
Cássia Eller, Adriana Calcanhoto, Ney Matogrosso, Leila Pinheiro, entre outros.
293
ECHEVERRIA, 2001, p259.
294
CAZUZA apud ECHEVERRIA, 2001, p.8.
295
Declaração que vai na contramão da matéria polêmica e sensacionalista da Veja, de 26 de
abril de 1989, em cuja capa vinha a foto de um Cazuza magérrimo e frágil e anunciava:
“Cazuza – uma vítima da Aids agoniza em praça pública”. Concluindo a matéria, a revista
arriscava: “Cazuza não é um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão
colada que está no presente. Não vale, igualmente, o argumento de que sua obra tende a ser
pequena devido à força do destino: quando morreu de tuberculose, em 1937, Noel Rosa tinha
26 anos, cinco a menos que Cazuza, e deixou compostas nada a menos que 213 músicas,
dezenas delas obras-primas que entraram pela eternidade afora. Cazuza não é Noel, não é um
gênio. É um grande artista, um homem cheio de qualidades e defeitos que tem a grandeza de
alardeá-los em praça pública para chegar a algum tipo de verdade” ( VEJA apud ALEXANDRE,
2001, p.345).
Cazuza tivera mais 160 músicas gravadas e deixou mais de seis dezenas inéditas.
“E de qualquer quintal faço cidade”296, reforça-lhe a defesa Renato
Russo. Assim Cazuza ganha a amplitude no tempo e no espaço: "Antes eu me
sentia cronista da minha tribo, muito reduzida, por ser a tribo dos boêmios (...).
Agora, minha temática se tornou mais abrangente. Não que não me considere
mais cronista da minha tribo, mas é que minha tribo aumentou"297. Garante-se,
assim, décadas depois de sua morte, como grande poeta do rock brasileiro.
Talvez por teimosia (característica exacerbada do cantor) seus versos vão
continuar a embalar histórias de amor, amores desfeitos e insistir para que o
Brasil mostre sua cara. Contra o tempo que não pára, Cazuza recolheu em
seus rastros os seus cacos, seus amores vividos e inventados, e num diálogo
com passado e com o presente, deu o tom da expressão de angústia,
liberdade, dor, prazer e desencanto da geração em travessia. Como Noel
Rosa, Jim Morrison, Janis Joplin, Fred Mercury e Renato Russo, “os bons
morrem jovens”298:
296
LEGIÃO URBANA. “Os barcos”. R. Russo [compositor]. In: –. O descobrimento do Brasil.
Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 7.
297
CAZUZA, O Estado de S.Paulo, abril/1988, disponível em
http://www.cazuza.com.br/sec_textos_list.php?language=pt_BR&id=33&id_type=2&page=1.
298
LEGIÃO URBANA. “Love in the afternoon”. R. Russo [compositor]. In: O descobrimento do
Brasil. Rio de Janeiro. EMI, p1993. 1 CD. Faixa 12.
299
CAZUZA. “Ombra mai fu”. Cazuza [compositor]. IN: –. Cazuza - o tempo na pára (trilha
sonora do filme). Rio de Janeiro: Som Livre, p2004. 1CD. Faixa 11.
E tomando (ou roubando, ou dialogando com) Oswald de Andrade, a
epígrafe do último álbum da Legião Urbana, A tempestade - “O Brasil é uma
república federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus” – permite-nos
uma leitura de Cazuza e Renato Russo como “crônicas de uma morte
anunciada”.
300
CHIARA, 2001, p.12.
301
FRIEDRICH, 1978, p.43.
302
Id. Ibid.
303
CAZUZA. “Ritual”. Cazuza. [compositor]. In: –. Só se for a dois. Rio de Janeiro: Polygran,
p1987. 1CD. Faixa 2.
o espírito com alegria tranqüila”304. Assim, Cazuza e Renato Russo, como
Baudelaire, souberam poetizar a dor, o sujo, o malvado, o sórdido, o viral, o
pus: “Do feio, o poeta desperta um novo encanto”305. Ou como escreveu Caio
Fernando Abreu: “E se tudo isso que você acha nojento fosse exatamente o
que chamam amor?”306
304
BAUDELAIRE apud FRIEDRICH, Hugo, 1978, p.40-41.
305
Ibid., p44.
306
ABREU, Caio Fernando apud CHIARA, 2001, p.14
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mas estamos vivos ainda
E quem sabe um dia eu escrevo uma canção p’rá você.
Renato Russo
A pesquisa de dissertação aqui empreendida voltou-se para a leitura da
produções escritas da obras musicais de Renato Russo e Cazuza, buscando
uma leitura das letras de música ordenadas como memórias-presentes e
escrita autobiográfica e confessional. Para tanto, o primeiro capítulo prestou-se
a uma leitura contextualizada das questões sócio-culturais que permeiam as
produções artísticas daqueles que se aventuram na caminhada da travessia. O
rock na sua versão brasileira dos anos 80 apresenta-se e configura-se como a
escrita e o som da juventude herdeira da necessidade do “faça você mesmo”.
Daí, apreendemos o rock, considerando suas características fundamentais e o
contexto econômico e político do Brasil, como o gênero que melhor poderia
formatar e veicular as necessidades da juventude, já que, a princípio, não
exigiria aprofundamento técnico. De base híbrida, o rock brasileiro permite a
convivência de gêneros e estilos e não se formata dentro de uma escola e, por
isso, configura-se como obra poético-musical da travessia. Não há intuito de
permanência, nem de seguidores.
O primeiro capítulo, ao lado do terceiro, dá-nos a dimensão da hibridez
do rock. Por ser híbrido e permitir a confluência de vários ritmos e estilos,
torna-se polifônico. A polifonia, então, reflete uma necessidade da geração da
travessia. Não se constituindo como escola, o rock oitentista exige o diálogo
com o presente e com o passado e vislumbra o futuro, já que objetiva a
transição. A confluência e a diversidade de vozes atestam o sujeito como
portador de perspectivas e resquícios que se manifestam na materialidade de
sua expressão artística. Formas, portanto, do ser vivente fragmentado que,
apenas pelos rastros e vestígios, pode tentar representar quem ele é. Sem
poder se compor na totalidade, o sujeito apenas percorre seus rastros e fareja
os vestígios do perfume particular que lança no espaço público, tornando-se,
assim, metonímia da sociedade que o concebe, e concebendo a sociedade
como metáfora para seu corpo. O todo e a parte, o eu e o nós comungam
particularidades e peculiaridades que fazem ressoar o eco de vozes que
(de)compõem tal sujeito.
No contexto econômico e político, no qual se encontram os autores da
travessia, a característica de uma escrita e de um ritmo musical polifônico
agrega as múltiplas forças, aliadas e inimigas, que movimentam e
desencantam os viventes desse tempo e espaço. Fragmentam-se e
reaproximam-se os vestígios do sujeito. O som da caminhada é o rock. Este
dialoga com outros ritmos, culturas e tempos distintos. São seres viventes da
experiência, da experimentação. Por isso, rupturas e reaproximações que
repercutem a polifonia e o processo de maturação da geração 80. Inserido nas
esferas da indústria cultural, o rock de garagem do início da década, para
permanecer como artigo de venda e registro da expressão artística, necessita
de uma consolidação literária no que se refere às letras e de um afinamento
técnico no que diz respeito à sofisticação sonora. Daí então a reaproximação
com a MPB, que concentra a qualidade lírica e melódica.
O outro ponto a que se chega, refere-se às escritas de Cazuza e Renato
Russo como registro da culpa e busca da redenção. Nesse sentido, os textos
teóricos de Jacques Derrida, O animal que logo sou e Papel máquina,
subsidiam a leitura e se aproximam do texto-objeto, ora um e outro
comportando-se como citação. Na superfície da escrita, encontram-se as
marcas do roubo e da culpa. Ao constatar o roubo e a culpa, a própria escrita
se torna roubo e tão culpada quanto aquele que rouba e confessa. Todavia, o
processo de confissão comporta a redenção e a salvação. O erro e a falta
levam à culpa que, por sua vez, desencadeia os sentimentos de desconcerto
naquele que insiste na travessia. O sujeito do desconcerto é aquele do
concerto, é aquele que busca, na materialidade da escrita e da melodia, a
salvação. É aquele que procura a nota de afinação e harmonia, ainda que o
faça de forma dissonante. É o poeta da pós-modernidade. Se errado, faltoso,
empreende na busca do conserto, na busca daquilo que o ajuste, o afine com
seu tempo e espaço, e principalmente daquilo que o coloque em sintonia com o
corpo e o espírito, com interior e com a sociedade, com o particular e o público.
Portanto, a geração oitenta foi a geração da afinação, por isso ruídos, por isso
atropelos, experimentações, desconcertos – travessia.
A travessia aponta uma terceira margem. Algo que se localiza entre as
margens. Algo que instaura metáforas que compõem a narrativa de uma
década chamada de perdida, mas que, no entanto, se entendida como a
década do trânsito, da caminhada, revela sua importância para o Brasil e para
aquele que a protagoniza. Elo entre o passado penoso e vergonhoso da
ditadura militar e a promessa do futuro grandioso. Porém, não une passado e
futuro, e se desfaz, sem se perder, entre aquilo que é melhor esquecer e o que
apenas acena ao longe, na ilusão do eterno esperar. A geração desmemoriada
foi, no entanto, capaz de escrever sua própria história. As produções poéticas
musicais das várias bandas de rock compõem a narrativa da geração que
produz e consome a arte pop, e vive a dinâmica e fluidez do mundo pós-
moderno. De desmemoriada, a juventude na sua expressão artística se torna a
memória da geração e da nação, mesmo sendo feita em passadas largas e
descompassadas – porque assim são o eu e geração dessa travessia. A
escrita, portanto, antes de seu desvelamento aprofundado, na superfície, toma
a forma de quem a protagoniza.
Nem elo, nem perdida, a geração oitenta, entre as margens, localiza o
sujeito em desarmonia. Os estilhaços e entulhos do autoritarismo convivem
com as roupas festivas da redemocratização. Entre encantos e desencantos,
sem diretas e com reinados de vice-governos, o país tenta se equilibrar em
meio a tropeços, corrupção, fraude e inflação. Na névoa da economia e da
política, o sujeito livre das amarras e ordens, tenta viver a liberdade. Liberdade
de expressão, do corpo, do sexo. Na contramão, os obstáculos, impedimentos,
adestramentos, a Aids, os conflitos internos, a culpa.
Terceira margem, porque a década de 80 se situa entre o que foi e o que
seria. Não comporta a nota dos vencidos dos longos blocos da história, nem se
formata como escola ou movimento. Constrói-se entre rastros e ressalta a
diversidade, a individualidade que, todavia, é capaz de encenar os anseios da
coletividade. Daí, a biografia e a subjetividade que vêm a preencher as lacunas
das grandes ideologias coletivas. É a terceira opção, aquela que não participa
dos movimentos de engajamento cultural e também não é aquela que calada
se deixa levar e ser persuadida. Sem a crença do poder revolucionário na
palavra poética, encena, na rebeldia característica do rock, a insatisfação da
nação.
Chega-se também a outros governos e ritmos: o sertanejo embala a era
Collor. O tom rebelde e a batida forte do rock é ruído para o governo da
corrupção e do confisco. Por isso, os amores e dores-de-cotovelo das duplas
sertanejas, que a partir da década de 1990 proliferam no Brasil, são mais
aprazíveis, menos contestatórios, mais sedutores. E cada época, cada
governo, cada geração compõe e canta sua trilha musical. Mas nota-se,
principalmente a partir de 1990, a diversidade de gêneros e ritmos que cantam
a nação e o sujeito. Entre a subjetividade e a contestação coletiva, aquela
diversidade que ensaia seus primeiros passos na década de 80 ganha, na
última década do século, um profícuo espaço e mercado. Torna-se, hoje, difícil
mapear o estilo, o gênero, a banda ou artista como o representante de um
tempo ou de uma geração. O sujeito da travessia termina sua jornada e
desembarca no multiculturalismo. A mídia e a indústria da cultura, de tempos
em tempos, elegem seus ícones, seus produtos mais lucrativos e celebram,
assim, a arte e o apelo comercial, tornando cada vez mais híbrida nossas
manifestações culturais.
O rock, após a travessia, não sai de cena. Após a euforia e queda das
vendas provocadas pelo Plano Cruzado, as bandas que resistem às
tempestades e intempéries da viagem se consolidam diante do mercado e dos
seus ouvintes/ consumidores. A Legião Urbana continua produzindo até 1996,
quando a banda se desfaz com a morte de Renato Russo. E daqueles que
iniciaram a caminhada, no inicio de 1980, em plena produção nos dias de hoje
se encontram, por exemplo, Capital Inicial, Titãs, Engenheiros do Havaí, entre
outros.
O rock brasileiro toma o aspecto cada vez mais pop e deságua no
chamado pop-rock, gênero que guarda certas características em comum com
rock 80 e consolida o aspecto de arte pop, ou seja, aponta o entretenimento e o
consumo como principais objetivos, diluindo-se no lucro e na efemeridade do
mercado altamente rotativo. Necessita-se, porém, de um levantamento e
análise das letras dos grupos que entram e saem de cena e junto com outros
ritmos e gêneros compõem a trilha sonora da diversidade cultural brasileira
atual. Ressalta-se a diversidade de gêneros e subgêneros que surgem a cada
dia. Fato que assinala a expansão da indústria fonográfica, ao mesmo tempo
em que denota a necessidade de algo novo que responda aos anseios da nova
geração que convive com a aceleração, com a tecnologia e com a fugacidade.
Fatores da pós-modernidade que fragmentam, desconcertam e diluem o
sujeito. Daí a citação, a apropriação, o recorte, a mistura, o pastiche, a
bricolagem e a criação de subcategorias, que marcam os novos gêneros
musicais que, a começar pelo formato em si, já responde por aqueles que os
criam e os consomem. A arte e a cultura tornam visíveis certas engrenagens do
capitalismo. Os novos suportes para música impossibilitam a idéia de se formar
uma discoteca, quando o LP ordenava os gêneros musicais e o consumo de
música. Com a Internet e os suportes virtuais, a música na versão eletrônica
toma outras roupagens e requer atenção e ferramentas que possam elucidar as
trocas culturais urbanas da contemporaneidade.
O outro ponto a que leva a travessia mostra a escrita contra a morte e
contra o tempo que não pára. Marcel Proust e Manuel Bandeira, por exemplo,
foram dois viventes que transformaram a própria vida ou a morte iminente em
arte, em literatura. Renato Russo e Cazuza colocam em tensão a brevidade da
vida e a intensidade da poesia, criando uma escrita que não é a tentativa de
busca do tempo perdido, nem a espera da morte que poderia encontrar a casa
pronta a qualquer momento. A escrita desses dois autores ratifica o incômodo
da mortalidade e o desejo de continuidade. Renato Russo e Cazuza fazem da
escrita a própria vida ou da vida a própria escrita. Empregam assim na vivência
o lúdico que reside na poesia. A brevidade versus a intensidade resulta no
exagero. A poesia de Renato e Cazuza é o exagero, é o derramamento
excessivo de lirismo quando se descobre aquilo que falta. A escassez
acompanha a travessia. A escassez e o exagero são faces de uma mesma
escrita. Sem os opostos se negarem, eles revelam a complexidade e as
contradições do sujeito. Por se tratar de sujeitos da travessia, da
experimentação, muitas vezes, as contradições se intensificam e deságuam em
oxímoros: convivem no mesmo sujeito escassez e exagero, travessia e
agoricidade, culpa e salvação, obra e vida. O oxímoro repercute na polifonia.
Ao se aventurar pela travessia, mais do que a busca de um ponto de chegada,
o importante é a caminhada. A geração 80 é a geração da travessia, mas é a
geração do presente, da valorização do aqui e do agora. É a geração da
caminhada, mas que faz de cada passo uma chegada, pois é incerto o futuro.
A geração 80 é movimento e consegue parar a beleza com a escrita. Ou
pela escrita revelar a beleza do sujo. O poeta é dissonante. Não se teria uma
poética, se não transformasse o feio, o sujo, o nojento, a dor, o sofrimento em
lirismo. Era mais do que preciso transformar o tédio em melodia, era preciso
inventar amores, era preciso inventar canções. Era preciso manter-se vivo e a
vida foi mantida pela escrita e pelo canto. “Porque o meu canto é a minha
solidão/ É a minha salvação/ Porque o meu canto é o que me mantém vivo”307,
finaliza a ultima estrofe, da última música, do último lado, do último disco de
Cazuza – como cantou Renato Russo no dia da morte do seu companheiro de
travessia.
A urgência do presente daquela geração se confronta com a urgência do
passado dos viventes do novo milênio. Vivenciamos hoje o boom da memória.
O que faz com que voltemos no tempo, faz com que relembremos, muitas
vezes com nostalgia, o percurso da caminhada. O percurso e os percalços que
nos trouxeram até aqui e fizeram de nós aquilo que somos. A necessidade de
retorno ao passado, principalmente a revisão do passado do breve século XX,
por ter sido breve e intenso, instaura a busca do tempo perdido. Em se tratando
da década de 80, a busca da década perdida. Quando o futuro não repete o
passado, o presente retoma o passado para entender o próprio presente.
Retrospectivas e nostalgias podem também reiterar o vazio, a superficialidade
do novo. A tecnologia, a dinâmica e fluidez da pós-modernidade causam
fissuras no presente. E a memória e a recuperação do arquivo se prontificam
como uma vivência do passado e do presente. A sociedade que vislumbra o
novo necessita do velho. O que virá depende do que foi, e assim o passado,
apenas aquele que conseguimos reconstituir e articular com o presente, se
transforma em memória.
Na era dos sistemas high-tech de informação, corre-se o risco da
memória – com a de Funes - não nos dizer nada. Os relançamentos,
coletâneas, filmes sobre o Holocausto, almanaques da década de 60, 70, 80,
entre festas com hits e decorações retrô, constituem-se também como
memórias efêmeras para o consumo, postas à venda pela indústria da cultura.
A memória concorre, portanto, como necessidade de recuperação do tempo
perdido, de articulação para entendimento da contemporaneidade e também
como produto da indústria cultural. Ao revisar o passado, nos constituímos,
como Renato Russo e Cazuza, como seres dotados da necessidade do
diálogo. Repercute em nós, a diversidade de vozes, do presente e do passado,
do eu e do outro.
307
CAZUZA. “Quando eu estiver cantando”. Cazuza [compositor]. In: –. Burguesia. Rio de
Janeiro: Polygram, p1989. 2CD. Faixa 20.
Espera-se que em uma escrita de travessia, os passos do presente e os
rastros da caminhada possam apontar o sujeito e os companheiros da jornada.
Fica, portanto, uma escrita diário de bordo, na qual se encontra os relatos das
intempéries, as alegrias da descoberta, o alívio e o sufoco dos dias de sol e
noites tempestuosas. Originalmente, o último álbum lançado pela Legião
Urbana com Renato Russo ainda vivo, se intitula A tempestade com o subtítulo
O livro dos dias. Pensando na possibilidade de uma inversão do título e
subtítulo desse álbum, vislumbra-se o quanto fora tempestuosa a travessia
daqueles dias, ou como aqueles dias ainda que tempestuosos não impediram a
caminhada, nem a escrita.
Cazuza e Renato Russo, os companheiros de viagem, em seus registros
confessionais – poéticos e documentais – se apresentam como aquilo que
substitui as grandes sucessões lineares da história pelo jogo da escrita
subjetiva que comporta o jogo das interrupções e descontinuidades.
Posicionados na borda da história, nossos poetas da música rompem com as
grandes bases imóveis e as grandes narrativas tradicionais: narram a história
do processo de redemocratização do Brasil, encenando na escrita poético-
musical a vivência do eu desconcertado.
Reconstruindo o discurso do outro, procurou-se a palavra muda que
murmura nas entrelinhas do texto e da história oficial. Procurou-se revelar o
miúdo do texto, o miúdo do eu, o miúdo do outro, o miúdo de uma geração. As
singularidades e as condições de existência da década de 80 podem ser lidas
nas obras de Russo e Cazuza. Como arquivo da vivência de uma geração, o
deslocamento da letra da canção para o discurso acadêmico, ainda que possa
contaminar a escrita científica, permite elucidar os acontecimentos que
pontuam o sujeito e seu tempo histórico.
A escrita autobiográfica revela-se culpada e transgressiva, apaixonante
e sedutora. E qualquer escrita sobre uma escrita assim comporta os mesmos
vestígios de quem confessa. Escrever sobre a escrita da culpa e da confissão
exige uma escrita culpada, que confessa por si própria, à medida que se
contamina da escrita do outro, sobre a qual se escreve. Perpetua-se a
genealogia da escrita das confissões iniciada por Santo Agostinho e seguida
por Rousseau. Escrever sobre a escrita do roubo já é roubo. E,
paradoxalmente, cita-se para desculpar, culpando-se mais ainda, confessando.
A escrita sobre a escrita da culpa é palimpsestuosa. Muito não se comporta na
espessura do palimpsesto, daí uma escrita edipiana que se revela pelos pés
inchados do texto, nas inúmeras citações de pé-de-página. Mais culpada ainda
se torna essa escrita sempre à sombra do erro e da culpa daquilo que não se
pode evitar.
Quem escreve sobre a autobiografia corre os mesmos riscos daquele
que se entrega ao instinto do animal autobiográfico. Corre o risco do auto-
envenenamento, da auto-infecção. Mas é o risco que busca a salvação, o risco
da letra em palimpsesto, o risco do perigo, o risco do corte, da dor. Portanto, a
autobiografia e qualquer escrita sobre ela é (re)corte, ruptura, deslocamento.
Não permite, por isso, uma unidade totalizadora. Como não é possível a
totalização de qualquer empreendimento sobre a escrita. Ambas as escritas
não comportam o fechamento, apenas as movimentações do jogo que as
compõem, permitindo infinitas leituras.
Pode-se assim dizer que Renato Russo e Cazuza metaforizam em suas
obras poético-musicais os conceitos de différance e suplemento de Jacques
Derrida. Eles se anunciam na primeira pessoa e tecem a tensão do eu com a
história. O eu que oscila entre a presença e a falta, entre a diferença e os
rastros que se confundem. Eles se suplementam na caminhada. Suas obras ao
serem lidas como constitutivas da travessia, movimentam-se, agitam-se.
Cedem uma a outra na adição flutuante do movimento. São assim memórias-
presentes que se fazem suplemento e diferença.
A fragmentação e desconcerto dos sujeitos da travessia, que se
constituem pela escrita, permitem aproximações, quando a citação poética
(des)culpa conceitos teóricos. Estes, por sua vez, esbarram-se, tocam-se,
contaminam-se com os dizeres que exigem metáforas e outras figuras de
linguagem, que ausentes do escrito teórico, tentam apreender a complexidade
das relações humanas. Relações que, na superfície da escritura, fazem vir à
tona o que reside na profundidade do homem. Somente na escrita se revela a
différance.
Esperam-se ainda outras respostas para aqueles versos que suscitaram
questionamentos desde a primeira música, do primeiro lado, do primeiro disco
da Legião Urbana: “Será que vamos conseguir vencer?”. Como se esperam
ainda outras leituras desses poetas.
A epígrafe, “Ouça este disco da primeira à última faixa. Esta é a história
de nossas vidas”, do álbum Uma outra estação, lançado após a morte de
Renato Russo, resume a escrita da memória e da autobiografia em
palimpsesto. Da legião que se aventurou pela travessia restaram anjos e
demônios, fãs, histórias e o arquivo fonográfico que permitem, nesta estação e
nas próximas, o rastreamento do animal que logo foram, que logo somos, que
logo seremos – como diz o subtítulo de Jacques Derrida: A seguir.
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