Você está na página 1de 7

voltar ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL

ENTRE A ARTE E A CIÊNCIA:


REFLEXÕES SOBRE A PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL
Fausto Borém (UFMG)

1. INTRODUÇÃO À PALESTRA DE ABERTURA DO I SNPPM


O I seminário Nacional de Pesquisa em Performance Musical propõe, como o próprio
nome diz, atrelar a PERFORMANCE MUSICAL à PESQUISA. Coloca assim, lado a lado,
dois valores cotidianos e necessários à humanidade: ARTE e CIÊNCIA. Por isso mesmo,
traz à tona uma grave dissociação que, historicamente, remonta às universitas,
precursoras da universidade moderna (SOUKHANOV, 1992:1.954) e surgidas em
Salerno, Paris e Oxford por volta de 1300.1 Inspirado pela ordem escolástica, sob a qual
"não só a religião, mas a arquitetura, a pintura, a escultura e a música eram reduzidas a
um conjunto de regras e fórmulas estritas" (WOLD et al, 1987:92), o currículo da
academia na Idade Média dividia as sete artes liberais em dois grupos. O grupo superior,
ou quadrivium, tratava das artes matemáticas, subdividas em astronomia, geometria,
aritmética e música. O grupo inferior, ou trivium, tratava da artes verbais, incluindo a
gramática, lógica (ou dialética) e a retórica, áreas tidas como mais "escorregadias" e
menos sujeitas à precisão do cálculo.

De lá para cá, numa trajetória de cerca de dez séculos, a música viveu um processo de
real inversão de valores, caminhando para uma posição percebida hoje, pela maioria das
pessoas, como diametralmente oposta ao pensamento cartesiano. De objeto preciso e
definido por meio de fórmulas, a música metamorfoseou-se nesse objeto pouco palpável,
quase etéreo, que o senso comum moderno consagrou, e cuja compreensão tornou-se
privilégio dos “ sensíveis” . De fato, não causa estranhamento dizer que a música,
atualmente, está muito mais para ARTE do que para CIÊNCIA. De filha legítima da
matemática, a música passou a filha adotiva da emoção.

Mudou radicalmente também o status e a posição sócio-econômica dos intérpretes ao


longo da história da música. Na Baixa Idade-Média, no Cap. 34 do seu De institutione
musica (Os fundamentos da música), BOETHIUS (1989) elegeu os músicos teóricos
como a classe superior e inteligente, secundados pelos compositores, a quem chamou de
classe média, provida de algum conhecimento e discernimento. Finalmente, destinou aos
intérpretes (instrumentistas e cantores) a classe inferior, caracterizada pela ignorância e
pouco alcance intelectual.2 Com a abertura de teatros públicos e a formação do público
pagante na primeira metade do século XVII,3 popularizaram-se a ópera e o concerto
sinfônico. Aumentou a ênfase no intérprete e sua importância na comunicação entre o
compositor e o público. O virtuosismo crescente no século XIX chama a atenção, ainda
mais, para o solista. E é em função dessa faceta glamourosa do “ artista” que o pianista
1
Embora a aglutinação das palavras latinas unus e versus na palavra universus signifique literalmente “ em uma
direção específica” , seu significado, entre os antigos latinos, se referia a “ o todo de” ou a “ um grupo de” . Enquanto
que o singular neutro universum significava o universo, sua derivação universitas significava “ corporação de
pessoas, comunidade” . A adoção do latim nas áreas governamental, religiosa e educacional na idade média
consolidou a designação universitas, precursoras da universidade moderna.
2
Em que pese essa posição preconceituosa, foi por meio do tratado De institutione musica que Boethius (c.480,
c.524) transmitiu o conhecimento musical grego para a civilização ocidental.
3
A estréia da ópera Andromeda de Benedetto Ferrari e Francesco Manelli em 1637 no Teatro S. Cassiano em Veneza
marca o início da tradição de concertos pagos pelo público (GROUT e PALISCA, 1988:369; SADIE, 1988:254, 538).
142
BORÉM, Fausto - ENTRE A ARTE E A CIÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE A PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL

Liszt ainda ofusca o Liszt musicólogo, maestro, educador, compositor, arranjador e


orquestrador. No século XX, o também multifário Paul HINDEMITH (1960:45) afirma que
os intérpretes ou "músicos práticos" com "... [suas] habilidades, atitudes e gostos são
talvez o poder mais forte que determina o desenvolvimento de nossa vida musical..."

Se melhorou a posição do intérprete musical, aumentou também a dicotomia e


mistificação de que a ARTE é função dos artistas e a CIÊNCIA, dos cientistas. Neste
desencontro entre emoção e razão é que adentraremos o próximo século com
discrepâncias em que ícones de referência no mundo da música, como Luciano Pavarotti,
não sabem ler uma partitura. Aberrações como essa podem até ser desculpáveis na
música enquanto mero entretenimento, mas nos deixa um desconforto se pensarmos que
esse distanciamento entre a MÚSICA e a CIÊNCIA, ainda que em menor grau, sobrevive
dentro da universidade. SCHOENBERG (1984:387) nos conta um caso:
“Me oponho ao especialista (...). Para merecer o nome de músico, deve-se possuir não
somente o conhecimento específico em uma área, mas ter o conhecimento de todos os
campos de sua arte. (...) Um regente de banda sinfônica, chefe do departamento de
música (...) vai tocar o ‘Quarteto Harpa’ de Beethoven - assim chamado devido a uma
longa passagem em pizzicatos arpejados. ‘Quem tocará a parte da harpa?’, ele pergunta
aos seus alunos (...). Esses são os crimes de um especialista” .

Como disse anteriormente no X Encontro Anual da ANPPOM em Goiânia,4 esse caso


seria cômico se não revelasse a tragédia da divisão dos professores de música em guetos
de especialistas que, no seu provincianismo ou soberba, não se dão conta de seu
isolamento. Não se trata de uma apologia do “ especialista em generalidades” . Ao
contrário, a escolha e excelência de uma área é o primeiro passo para a diferenciação da
carreira de professor universitário. Mas a compreensão, aprendizagem e ensino de
especialidades em contextos mais abrangentes, que articulem núcleos de conhecimento
com seus devidos entornos, propiciam ao professor a amplitude e vivência do significado
de universidade. É nossa, dos docentes da performance musical, a responsabilidade na
resolução dos conflitos gerados pelos valores herdados do modelo europeu de
conservatório. Valores que ainda se mantêm em diversos níveis, da informalidade nos
processos acadêmicos ao descuido por parte dos docentes com relação à integração de
seus departamentos ou escolas na universidade. Isso suscita a questão da dicotomia
entre o “ fazer” a música e o “ pensar” a música.

Um dos problemas mais graves no ensino da performance musical é a tradição dos


professores de instrumento, canto e regência de não documentarem suas reflexões sobre
a experiência de fazer e ensinar música. No mundo da música de concerto, grandes
instrumentistas, cantores e maestros permanecem apenas como uma memória
inacessível às gerações posteriores que não tiveram a oportunidade de ouvi-los enquanto
eram ativos como intérpretes e professores. Em relação ao ensino da música na
universidade, o musicólogo e o educador musical têm à mão a linguagem escrita
convencional. O compositor dispõe também da pauta e notação musical para documentar,
expressar e divulgar os frutos de sua elaboração intelectual. É importante que o performer
musical também tenha um controle mínimo dessas linguagens, seja para divulgar suas
metodologias de ensino, seja para refletir sobre enfoques analíticos, históricos ou
interpretativos de seu repertório, seja para editar e publicar uma partitura de performance.

Para que o trabalho envolvido no processo de tocar um instrumento, ou cantar, nos seus
diversos níveis - leitura, obediência e desobediência à partitura, decisões técnico-
interpretativas, gestual e interação com o público - não se perca na efemeridade dos
concertos ou na frágil transmissão oral de conhecimentos das lições, deveríamos cultivar
4
Os três parágrafos a partir desse ponto foram retirados de minha palestra preferida nesse evento (BORÉM, 1997:59-60).
143
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL

o hábito de explicar e documentar os meandros da arte de “ fazer soar a música” . Nesse


sentido, os professores de instrumentos, canto e regência deveriam estabelecer uma
rotina de documentação sistematizada de sua metodologia de performance, não só em
texto escrito, mas também em gravação sonora.

Um dos maiores obstáculos à pesquisa em performance musical é a inexistência de


quadros teóricos de referência consolidados sobre interpretação musical. À falta de uma
teoria da performance mais ampla, a exemplo da musicologia, etnomusicologia,
composição e educação musical, devemos adaptar metodologias de pesquisa de outras
áreas, como história, antropologia, educação, matemática, lingüística, psicologia, medicina
etc. Ao mesmo tempo em que a natureza multifacetada da performance torna pertinentes
estudos históricos, comparativos, analíticos e de síntese, exige do pesquisador intérprete
grande dose de criatividade para integrá-los à realização musical e uma ginástica constante
para que não se afaste da característica fundamental da performance que é o discurso
musical. De fato, ainda são pontuais os reflexos das contribuições de pesquisa música no
Brasil na maneira como se faz e se ouve a música no palco.

Outra dificuldade de pesquisa em performance decorre da resistência dos próprios


instrumentistas, cantores e maestros que não crêem numa fundamentação teórica da
interpretação, da técnica instrumental, da reconstrução dos estilos de época no fazer
musical. Esta postura pode esconder, muitas vezes, uma resistência do performer musical
frente a um salto qualitativo - seja através da documentação do conhecimento que
produz, seja na reflexão periódica de suas abordagens pedagógicas - que lhe é exigido na
sua adaptação ao meio acadêmico. Pode esconder, ainda, uma resistência em dividir seu
tempo de prática musical com a elaboração escrita da atividade intelectual. Um estudo
com professores de música de universidades americanas mostrou que, se 77% dos
musicólogos e educadores musicais apreciavam o trabalho de orientação, apenas 50%
dos perfórmeres diziam-se satisfeitos em exercer essa atividade (REES, 1985:150). O
pouco ou nenhum exercício da habilidade de escrita acaba se colocando como empecilho
para a formalização dos procedimentos de pesquisa e socialização de resultados entre os
pares. A criação da Revista Per Musi (permusi@musica.ufmg.br), agora lançada pela
Escola de Música da UFMG e, provavelmente, o primeiro periódico indexado dedicado a
estudos acadêmicos em performance musical e suas interfaces, pretende contribuir para
uma mudança qualitativa e quantitativa no quadro da produção científica nessa área.

Se há uma urgência do encontro da MÚSICA com o rigor científico, há também uma outra
nuance. Chamarei Guimarães Rosa e Manoel de Barros de "poetas-cientistas" ou
"cientistas da imprecisão", e não sem uma certa ironia frente à arrogância do
academicismo brasileiro, que ainda vê na ARTE apenas entretenimento, ou mera
provedora de momentos de distração, relaxamento e alívio para o trabalho científico e
sério. Esses dois brasileiros, morenos, queimados pelo sol e pela cultura popular do
interior do país, cresceram sob a égide das afirmações positivistas européias da CIÊNCIA
e, mesmo, nelas se alimentaram da erudição. Não a negaram. Guimarães Rosa, letrado,
lança mão do anglicismo challenger para descrever o matuto valente no conto Corpo
fechado (ROSA, 1984:224). Em plena poesia, O livro das ignorãnças de Manoel de Barros
propõe "aos blocos semânticos dar equilíbrio" e prega que "ao lado de um primal deixe
um termo erudito" (BARROS, 1994:23).

Mas, é também da prosa de um e da poesia do outro, que lanço mão para ilustrar o
sentimento de um grande abismo que persiste entre a CIÊNCIA e a ARTE ou, afunilando
essa perspectiva para o objetivo do nosso encontro, do descompasso entre a produção
artística e a produção científica, ou ainda, da cisão entre o discurso musical e o discurso
sobre música. Diz Guimarães Rosa: "... [meus livros] defendem o altíssimo primado da
144
BORÉM, Fausto - ENTRE A ARTE E A CIÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE A PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL

intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxulear presunçoso da inteligência


reflexiva... da megera cartesiana..." (ROSA, 1984:334).

Diz Manoel de Barros no Livro sobre nada: "A ciência pode classificar e nomear os órgãos
de um sabiá, mas não pode medir seus encantos" (BARROS, 1996:53).

O positivismo violento de Augusto Comte (1798-1857) na Revolução Francesa refinou-se


no positivismo lógico de Moritz Schlick (1882-1936) e dos outros filósofos cientistas do
Círculo de Viena. Descrito por Raymond Carr (SOUKHANOV, 1992:1413) como "... a
base ´científica´ para políticas autoritárias, especialmente no México e no Brasil", o
positivismo reverbera ad eternum em terras brasileiras nos dizeres Ordem e Progresso da
bandeira nacional (TONELLO, 1995:178). Assim, é compreensível que das gerações
banhadas por esse mote oficial, gerações a que também pertencem Guimarães Rosa e
Manoel de Barros, surjam artistas como eles mesmos, indignados contra uma longa e
oficial prevalência da CIÊNCIA sobre a ARTE, do cálculo sobre a poesia, da descrição
sobre o indescritível, da precisão sobre a incerteza. De fato, nos currículos escolares do
1º ano elementar até o vestibular, as CIÊNCIAS - exatas, sociais e biológicas - estão bem
representadas. A ARTE não.

Essa mesma prevalência oficial das ciências tradicionais nos órgãos de fomento à
pesquisa, como CAPES, CNPq e agências estaduais preocupa, quando é sabido que
muitos cientistas (incluindo alguns da área de música) ainda questionam a necessidade
da pesquisa científica em performance musical.

A última avaliação disponível sobre a produção dos cursos de mestrado em música no


país, mostrou que das 262 dissertações defendidas no país até dezembro de 1996, 127
(48,5%) foram na área de performance musical, além de 17 (6,5%) cujos títulos refletiam
objetos de estudo situados em interfaces da performance com outras áreas (ULHÔA,
1997:80-94). Se a demanda por estudos avançados em música é predominante na área
de performance musical, não se observa essa tendência em outros indicadores de
produção científica. Por exemplo, das 23 bolsas de Produtividade em Pesquisa
concedidas pelo CNPq em 1996, apenas duas eram na área de performance musical.
Preconceito ou falta de competência na área? Enveredar por essa questão seria retomar
as discussões infrutíferas e desgastantes que sempre vem à tona nos encontros anuais
da ANPPOM. A exemplo da área de composição, que tem se organizado nacionalmente e
sugerido critérios de avaliação próprios de sua produção, acredito que esse também seria
o nosso caminho para qualquer mudança de valor nas esferas superiores de pesquisa no
país. Mas gostaria de deixar aqui meu protesto, não como um dos organizadores desse
seminário, mas como professor de música de câmara, contra a visão compartimentalizada
de um parecer da CAPES, que impede o nosso mestrado de oferecer música de câmara,
pela falta de doutores formados em música de câmara. Ora, arrisco a dizer que mais de
95% do repertório solístico de quase todos dos instrumentos é composto de música de
câmara. Da mesma forma, não se pode dizer que doutorados em composição ou
musicologia habilitam o compositor ou musicólogo para tratar apenas de música de
câmara ou de música orquestral ou de música para solista. Como disse Schoenberg
acima, “ esses são os crimes de um especialista” .

Voltando aos nossos poetas, eles sabem que a precisão da palavra convida à
transgressão, e assim deve ser, para que elas brotem do papel e ganhem vida aos olhos
de quem as lê. Numa peça de teatro, a compreensão e envolvimento do público
dependem de como o texto sai da boca do ator. O texto é o mesmo. As interpretações,
diferentes. Isso também acontece com a música. Da leitura do conjunto de símbolos
cartesianos da partitura pelo instrumentista, cantor ou maestro, até a percepção do ouvinte,
145
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL

há pelo menos duas vias distintas e contrastantes nesse processo: (1) a re-criação ou re-
instauração dos afetos no ouvinte ou (2) a reprodução sonora mecânica da partitura.

Os dois grandes expoentes da música erudita ocidental no século XX, Stravinsky e


Schoenberg, ainda carregam os estereótipos opostos da música moderna "mais fácil" e
"mais difícil" de ser ouvida. O grande público tende a se aproximar da música do primeiro
(seria pela vibração rítmica e caráter dançante de sua música?) e a se afastar da música
do segundo (seria pelo seu pessimismo pré e pós-guerra e natural opção pela
dissonância?). Mas foi Stravinsky (citado por GRIFFITH, 1987:62), quem considerou "a
música, por sua própria natureza, essencialmente incapaz de expressar o que quer que
seja, sentimentos, atitudes mentais, estados psicológicos, fenômenos da natureza etc."
Há aí uma contradição, posto que sua música tornou-se popular mais por reverberar a
natureza humana do que por exibir a "precisão de engenheiro", da qual o próprio
Stravinsky se gabava (PAHLEN, 1963:281)5, e por exigir dos instrumentistas que suas
obras não fossem "interpretadas", mas sim "executadas".

Se parece difícil demonstrar ao leigo amante da música que ela é uma CIÊNCIA exata
(parenta em primeiro grau da matemática!), com um pé no positivismo, também não é
tarefa fácil convencer os músicos mais conservadores que a graça da música surge,
muitas vezes (e contrariando Stravinsky), na desobediência dos signos precisos da
partitura. Líder da Segunda Escola de Composição de Viena, Schoenberg desenvolveu
uma escrita musical com uma precisão e detalhamento sem precedentes (pode-se
especular aqui sobre a coincidência geográfica do legado de Schoenberg com a filosofia
positivista de Schlick, ambos sediados em Viena). Mas é nele, SCHOENBERG (1984:303-
304), e não em Stravinsky, ironicamente, que podemos nos ancorar para uma
compreensão da mobilidade da interpretação musical:
"... o significado de uma obra de arte não mudava na sua essência, assim como não
muda a essência de um homem que troca de roupa... diferentes instrumentistas
possuem diferentes sonoridades, diferentes habilidades de expressar dinâmicas e,
especialmente, gostos e obstáculos variáveis à clareza musical".

Podemos, de certa forma, comparar a partitura tradicional à "megera cartesiana", descrita


por Guimarães Rosa pois, nela, os símbolos musicais se distribuem de maneira
semelhante às coordenadas dos nossos tão conhecidos eixos cartesianos e suas três
dimensões X, Y e Z (Ex.1). No eixo horizontal X desloca-se o tempo (composto de sons e
silêncios, organizados em ritmos) e no eixo vertical Y, a freqüência (ou altura das notas
graves, médias ou agudas). O caráter abstrato da música e o número maior de variáveis
que ela envolve sugere, nessa comparação, a existência de mais do que três dimensões.
Mas, simplificadamente, ao eixo Z da profundidade (ou terceira dimensão), poderíamos
associar os timbres (o colorido dos diversos instrumentos) ou as intensidades (o som
forte, o som fraco etc.). A simultaneidade de sons no eixo Y resultaria na harmonia
(acordes) e o movimento no eixo X resultaria na melodia (seqüência de notas). De fato,
cada par de coordenadas (x, y) ocupa um e um só lugar bem definido na partitura. Essa
precisão, que aumenta ainda mais com a cota do eixo Z (como a definição do tipo de
instrumento ou do seu volume de som), permite ao compositor infinitas combinações,
simples ou complexas. Aí está a partitura. Nessa perspectiva, fica mais fácil para o leigo
em música aproximar-se dessa página de símbolos “ indecifráveis” e para o músico
reconhecer sua proximidade com as ciências exatas.

5
É célebre a declaração de Stravinsky de que compunha música "... como o engenheiro constrói uma ponte", referindo-
se não só à sua inspiração matemática, mas também ao fato de que sua música não deveria ser "interpretada", mas
sim "executada", posto que suas partituras não precisariam de informações adicionais do intérprete.
146
BORÉM, Fausto - ENTRE A ARTE E A CIÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE A PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL

Eixo Y: freqüência

Eixo Z: timbre ou dinâmica

Eixo X: tempo (ritmos e silêncios)


Ex.1- Relação entre os eixos cartesianos e a partitura

2. CONCLUSÃO
Uma reintegração entre a CIÊNCIA e a ARTE parece ser uma das promessas do século
XXI e sua busca aponta para uma maior humanização de seus elementos constituintes.
Para "humanizar" a CIÊNCIA, é preciso desmistificar a idéia de que ela é fria e insensível.
Não devemos mais ignorar o elemento “ imprecisão” , cada vez mais evidente mesmo nos
processos naturais das ciências.

Por outro lado, para "humanizar" a ARTE, é preciso aproximá-la do leigo. Na música,
cabe aos intérpretes diminuir as distâncias entre a partitura e o público, e não aumentá-la.
Precisamos deixar claro que a música pode ser percebida e apreciada com elementos
cartesianos do cotidiano, como uma operação matemática. Precisamos desmistificar a
idéia de que a música é território exclusivo dos talentosos e sensíveis.

Assim como Guimarães Rosa e Manoel de Barros, não precisamos viver essa dicotomia:
Ciência de um lado... e Arte do outro. Não precisamos descartar o metrônomo para
experimentar a flexibilidade do tempo. O tempo metronômico permanece pulsando
irreversivelmente. Trata-se de transcendê-lo para se descobrir o tempo psicológico ou
para se restaurar o tempo cultural na interpretação da música. PRIGOGINE (1988:30)
propõe superar essa dicotomia,
"não atacando a ciência como instrumento positivista, nem atacando a arte e a literatura
como se fossem artifícios sem um alcance real... mas antes pondo em evidência... uma
unidade cultural".

147
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL

A perspectiva de reconciliação entre o homem e a natureza, em que "... o saber científico


torna-se auscultação poética da natureza" (BASSETTI, 1988:13) aparenta ser uma das
saídas para essa dicotomia histórica. Analogamente, numa reconciliação entre a CIÊNCIA
e a ARTE, o saber musical se tornaria uma leitura poética da partitura. Como uma
convivência dialética entre o preciso e o impreciso. Seria o momento de um retorno ao
ideal renascentista, epitomizado por Leonardo da Vinci e seu livre trânsito pelas ciências
naturais, ciências exatas e artes? É o próprio Manoel de BARROS (Livro sobre nada,
p.49) quem nos dá a chave, ao dizer que "as antíteses congraçam".

3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Ilustr. Wega Nery. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.
______. O livro das ignorãnças. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
BOETHIUS, Anicius. De institutione musica. Trad. Calvin Bower. New Haven: Yale University Press, 1989.
BORÉM, Fausto. O ensino da performance musical na universidade brasileira. Pesquisa e Música. Rio
de Janeiro. vol.3, n.1, dezembro, 1997, p.53-72.
GRIFFITH, Paul. A música moderna: uma história concisa de Debussy a Boulez. Trad. Clóvis Marques.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
GROUT, Donald Jay, PALISCA, Claude V. A history of western music. 4ed. New York: W. W. Norton, 1988.
HINDEMITH, Paul. A composer´s world, horizons and limitations. New Haven: Yale University Press,
1960. P.45.
PAHLEN, Kurt. História universal da música. 4.ed. Trad. A. Della Nina. Rev. e anot. José da Veiga
Oliveira. Pref. Eurico Nogueira França. São Paulo: Melhoramentos, 1963.
PRIGOGINE, Ilya. O nascimento do tempo. Universo da ciência, n.18. Lisboa: Edições 70, 1988.
REES, Mary Anne. Work autonomy and performers, theorists-historians, and music educators.
Proceedings of the 61st annual meeting-NASM. Estados Unidos, 1985. p.145-163.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. Comentário de Cláudio Wiler. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.
SADIE, Stanley (Ed.), The Norton/Grove concise encyclopedia of music. Ed. Ass. Alison Lathan. New
York: W. W. Norton, 1988.
SCHOENBERG, Arnold. Style and idea. Ed. Leonard Stein. Trad. Leo Back. Berkeley: University of
California Press, 1984.
SOUKHANOV, Susan. The american heritage dictionary of the english language. 3.ed. Boston:
Houghton Mifflin, 1992.
STRAVINSKY, Igor. Poetics of music. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 1947.
TONELLO, Márcia ed. Almanaque Abril. São Paulo: Abril, 1995.
ULHÔA, Martha Tupinambá de, Ed. Dissertações de mestrado em música até 1996. Opus. vol.4, n.4,
agosto, 1997. p.80-94.
WOLD, Milo et al. An introduction to music and art in the western world. 8.ed. Dubuque, Iowa, EUA:
Wm. C. Brown, 1987.

148

Você também pode gostar