De lá para cá, numa trajetória de cerca de dez séculos, a música viveu um processo de
real inversão de valores, caminhando para uma posição percebida hoje, pela maioria das
pessoas, como diametralmente oposta ao pensamento cartesiano. De objeto preciso e
definido por meio de fórmulas, a música metamorfoseou-se nesse objeto pouco palpável,
quase etéreo, que o senso comum moderno consagrou, e cuja compreensão tornou-se
privilégio dos “ sensíveis” . De fato, não causa estranhamento dizer que a música,
atualmente, está muito mais para ARTE do que para CIÊNCIA. De filha legítima da
matemática, a música passou a filha adotiva da emoção.
Para que o trabalho envolvido no processo de tocar um instrumento, ou cantar, nos seus
diversos níveis - leitura, obediência e desobediência à partitura, decisões técnico-
interpretativas, gestual e interação com o público - não se perca na efemeridade dos
concertos ou na frágil transmissão oral de conhecimentos das lições, deveríamos cultivar
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Os três parágrafos a partir desse ponto foram retirados de minha palestra preferida nesse evento (BORÉM, 1997:59-60).
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ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL
Se há uma urgência do encontro da MÚSICA com o rigor científico, há também uma outra
nuance. Chamarei Guimarães Rosa e Manoel de Barros de "poetas-cientistas" ou
"cientistas da imprecisão", e não sem uma certa ironia frente à arrogância do
academicismo brasileiro, que ainda vê na ARTE apenas entretenimento, ou mera
provedora de momentos de distração, relaxamento e alívio para o trabalho científico e
sério. Esses dois brasileiros, morenos, queimados pelo sol e pela cultura popular do
interior do país, cresceram sob a égide das afirmações positivistas européias da CIÊNCIA
e, mesmo, nelas se alimentaram da erudição. Não a negaram. Guimarães Rosa, letrado,
lança mão do anglicismo challenger para descrever o matuto valente no conto Corpo
fechado (ROSA, 1984:224). Em plena poesia, O livro das ignorãnças de Manoel de Barros
propõe "aos blocos semânticos dar equilíbrio" e prega que "ao lado de um primal deixe
um termo erudito" (BARROS, 1994:23).
Mas, é também da prosa de um e da poesia do outro, que lanço mão para ilustrar o
sentimento de um grande abismo que persiste entre a CIÊNCIA e a ARTE ou, afunilando
essa perspectiva para o objetivo do nosso encontro, do descompasso entre a produção
artística e a produção científica, ou ainda, da cisão entre o discurso musical e o discurso
sobre música. Diz Guimarães Rosa: "... [meus livros] defendem o altíssimo primado da
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BORÉM, Fausto - ENTRE A ARTE E A CIÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE A PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL
Diz Manoel de Barros no Livro sobre nada: "A ciência pode classificar e nomear os órgãos
de um sabiá, mas não pode medir seus encantos" (BARROS, 1996:53).
Essa mesma prevalência oficial das ciências tradicionais nos órgãos de fomento à
pesquisa, como CAPES, CNPq e agências estaduais preocupa, quando é sabido que
muitos cientistas (incluindo alguns da área de música) ainda questionam a necessidade
da pesquisa científica em performance musical.
Voltando aos nossos poetas, eles sabem que a precisão da palavra convida à
transgressão, e assim deve ser, para que elas brotem do papel e ganhem vida aos olhos
de quem as lê. Numa peça de teatro, a compreensão e envolvimento do público
dependem de como o texto sai da boca do ator. O texto é o mesmo. As interpretações,
diferentes. Isso também acontece com a música. Da leitura do conjunto de símbolos
cartesianos da partitura pelo instrumentista, cantor ou maestro, até a percepção do ouvinte,
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ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL
há pelo menos duas vias distintas e contrastantes nesse processo: (1) a re-criação ou re-
instauração dos afetos no ouvinte ou (2) a reprodução sonora mecânica da partitura.
Se parece difícil demonstrar ao leigo amante da música que ela é uma CIÊNCIA exata
(parenta em primeiro grau da matemática!), com um pé no positivismo, também não é
tarefa fácil convencer os músicos mais conservadores que a graça da música surge,
muitas vezes (e contrariando Stravinsky), na desobediência dos signos precisos da
partitura. Líder da Segunda Escola de Composição de Viena, Schoenberg desenvolveu
uma escrita musical com uma precisão e detalhamento sem precedentes (pode-se
especular aqui sobre a coincidência geográfica do legado de Schoenberg com a filosofia
positivista de Schlick, ambos sediados em Viena). Mas é nele, SCHOENBERG (1984:303-
304), e não em Stravinsky, ironicamente, que podemos nos ancorar para uma
compreensão da mobilidade da interpretação musical:
"... o significado de uma obra de arte não mudava na sua essência, assim como não
muda a essência de um homem que troca de roupa... diferentes instrumentistas
possuem diferentes sonoridades, diferentes habilidades de expressar dinâmicas e,
especialmente, gostos e obstáculos variáveis à clareza musical".
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É célebre a declaração de Stravinsky de que compunha música "... como o engenheiro constrói uma ponte", referindo-
se não só à sua inspiração matemática, mas também ao fato de que sua música não deveria ser "interpretada", mas
sim "executada", posto que suas partituras não precisariam de informações adicionais do intérprete.
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BORÉM, Fausto - ENTRE A ARTE E A CIÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE A PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL
Eixo Y: freqüência
2. CONCLUSÃO
Uma reintegração entre a CIÊNCIA e a ARTE parece ser uma das promessas do século
XXI e sua busca aponta para uma maior humanização de seus elementos constituintes.
Para "humanizar" a CIÊNCIA, é preciso desmistificar a idéia de que ela é fria e insensível.
Não devemos mais ignorar o elemento “ imprecisão” , cada vez mais evidente mesmo nos
processos naturais das ciências.
Por outro lado, para "humanizar" a ARTE, é preciso aproximá-la do leigo. Na música,
cabe aos intérpretes diminuir as distâncias entre a partitura e o público, e não aumentá-la.
Precisamos deixar claro que a música pode ser percebida e apreciada com elementos
cartesianos do cotidiano, como uma operação matemática. Precisamos desmistificar a
idéia de que a música é território exclusivo dos talentosos e sensíveis.
Assim como Guimarães Rosa e Manoel de Barros, não precisamos viver essa dicotomia:
Ciência de um lado... e Arte do outro. Não precisamos descartar o metrônomo para
experimentar a flexibilidade do tempo. O tempo metronômico permanece pulsando
irreversivelmente. Trata-se de transcendê-lo para se descobrir o tempo psicológico ou
para se restaurar o tempo cultural na interpretação da música. PRIGOGINE (1988:30)
propõe superar essa dicotomia,
"não atacando a ciência como instrumento positivista, nem atacando a arte e a literatura
como se fossem artifícios sem um alcance real... mas antes pondo em evidência... uma
unidade cultural".
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ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM PERFORMANCE MUSICAL
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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