Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MULHERES NEGRAS:
Uma análise a partir da obra Ponciá Vicêncio e do estudo de casos clínicos
Conceição retrata uma Ponciá esquartejada nos acúmulos das partidas e ausências
(morte do avô, do pai, dos sete filhos perdidos, a separação da mãe e do irmão, a relação
distante entre ela e o marido). Essas rupturas acionam la reprise (KIEKEGAARD,1990), a
reprodução social (BOURDIEU & PASSERON, 2011), ou simplesmente a retomada de um
passado, ativo no presente, que silencia o verbo, preterido pela ação de repetição (FREUD,
1914). Minuciosamente detalhada nas cenas de cada um dos homens presentes no romance, a
vida de Ponciá encruzilha-se com conceito de dororidade de Vilma Piedade (2017). A
memória da dor exposta por Evaristo (2017) representa o cotidiano de uma família negra,
atravessada pelas interdições e desumanidades, herança escravocrata/colonial. Na ficção, a
1 Socióloga. Especializada em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
Arouca/FIOCRUZ. E-mail: namibiarodrigues@gmail.com.
2 Psicóloga clínica. Integrante da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro. Coordenadora do GT de
Afropsicologia do Centro de Altos Estudos e Pesquisa Afro-Pindorâmica do Instituto Hoju. Contato:neivamiranda.32@gmail.com
dororidade materializa-se nas angústias de Ponciá, Vô Vicêncio e outras personagens: tanto
pela “costumeira angústia no peito, que ela relata a cada amanhecer” (EVARISTO, 2017, p.
14); quanto pela sincronicidade do riso e choro de Vô Vicêncio. Este último, possivelmente
ocasionado pelos traumáticos furos de memórias originados das tragédias de seu passado.
Lacunas não preenchidas pelo seu universo simbólico. Estereótipos cristalizados no
imaginário social de homens e mulheres. Ocasionando o estoicismo emocional que proíbe os
homens de sentir e expressar suas emoções. Ensinamentos presentes no ritual de
patriarcalização dos homens, incluindo os homens negros.
Acaso a solidão é uma questão das mulheres negras, ou uma questão que engloba
homens e mulheres estigmatizados pela cor, independentemente de sua idade ou classe
social? Para Bell Hooks no livro The Will to Change (2005), a vida emocional dos homens
negros é um tabu também para as mulheres negras. Na sua concepção, desde pequenas
ansiamos pelo amor masculino, inicialmente de nosso pai. E por conta de sua escassez,
tendemos a supervalorizar este amor e a nos esconder dele por medo da profundidade do
sofrimento que ele acarreta aos homens e as mulheres que são parte de uma comunidade, uma
sociedade (Ibidem, p. 1-16).
3 O grifo “nortear” problematiza o caráter ideológico do termo: Norte, acima, superior, Sul, abaixo,
inferior. Marcando no texto a importância do resgate de valores socioculturais do sul. O texto A Arte
de Sulear (1991), do físico brasileiro Márcio D’Olne Campos, traz maiores detalhes sobre o termo
que referencia nosso ensaio.
Dos homens que faziam parte da vida de Ponciá, podemos destacar seu avô. “O
primeiro homem que Ponciá conheceu fora seu avô” (EVARISTO, 2017. p.15). A
profundidade do sofrimento apontado por Hooks ganha forma. Filho de seres humanos que
foram escravizados – mas conquistaram a liberdade –, cresceu na fazenda, terras do
escravizador, Coronel Vicêncio, que deu origem ao nome do povoado e ao sobrenome da
família de Ponciá. Reproduzindo o mesmo princípio da segregação racial que estabelece o
“lugar de pessoas de cor”, a narrativa destaca a polaridade binária ocidental dividida: a terra
dos brancos e a terra dos negros. Nesta última, onde vô Vicêncio cresceu carregando o
mesmo fardo e vida cotidiana que seus pais: “Filho de ex-escravos crescera na mesma na
fazenda, levando a mesma vida dos pais” (EVARISTO, 2017.p.17). Sublinhamos a
expressão: levando a mesma vida dos pais para considerar um dos conceitos fundamentais
da psicanálise: a repetição, presente tanto na vida de Ponciá quanto na de seu avô.
A tragédia da família de Ponciá não é um caso à parte. Como na psicanálise, voltamos nossa
atenção apenas para o sujeito, ampliamos o diálogo a perspectiva psicossocial incluindo o
conceito de reprodução social (BOURDIEU & PASSERON, 2011), para dar conta de uma
análise coletiva (sujeito negro) e o ambiente estruturalmente racista. Baseadas nas
inquietações de Fanon ao analisar o negro e a psicopatologia, podemos ponderar os limites
das conclusões psicanalíticas freudianas na experiência de um grupo específico norteado por
paradigmas branco-europeu, o que não é o caso dos personagens analisados, nem do
cotidiano das “pessoas de cor” (FANON, 2008. p.127).
Vô Vicêncio repete a violência que sofreu durante anos, ao ser tratado como não-humano, ao
ter seus filhos vendidos como mercadoria, etc. Ele busca na morte uma forma de liberdade e
ao não encontrar, ele recalca a cena traumática e repete o riso e o choro. Neste ambiente de
violências viscerais, a ação precede a recordação. O estudo realizado pelo Ministério da
Saúde, divulgado na cartilha “Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros”
(2018), aponta que um jovem negro tem maior chance de cometer suicídio no Brasil. O risco
na faixa etária de 10 a 29 anos é de 45% entre jovens autodeclarados pretos e pardos do que
os jovens autodeclarados brancos, no ano de 2016. Entre jovens do sexo masculino e
feminino, diferença é ainda mais relevante: os jovens negros do sexo masculino têm 50%
mais chance de se suicidar que um jovem branco na mesma faixa etária. Enquanto a taxa de
mortalidade por suicídio entre jovens e adolescentes brancos permaneceu estável de 2012 a
2016, entre os jovens negros com a mesma idade, houve um aumento de 12%.
Expondo o cenário que constitui o silêncio do homem negro, refletimos sobre o legado
traumático e seus efeitos destrutivos que mantém-nos sob estresse contínuo. Na experiência
clínica de uma das autoras, o homem negro sempre está presente na voz da paciente mãe,
esposa, etc. A estrutura histórico-racista, na qual a população negra está submetida no Brasil,
mantém-nos sob o contínuo Holocausto Negro-Africano no mundo. O trauma é consequência
do processo ininterrupto – narrado no romance – o que Marimba Ani (1998) chamou de
maafa, ou o grande desastre, perpetuado até os nossos dias.
Refletir sobre a dororidade enquanto povo é o primeiro passo para a reconstituição do amor
entre homens e mulheres negras. As impermanências causadas pelo sequestro para a
escravização nos tiraram o direito de constituir família, de amar nossos homens; e dos nossos
homens nos amarem como companheiras, filhas, netas... Impermanências que esquartejaram!
Mas na circularidade de nossa visão de mundo ancestral, podemos interromper as rupturas,
mantendo o círculo ininterrupto, movidos pelo amor de nós para nós.
Nós, mulheres negras, convocamos os homens negros para que tenham coragem de mudar o
que foi imposto e a simplesmente se tornarem homens matriarcais, herdeiros de nossa
ontologia de origem.
Referências
FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. Obras completas de Sigmund Freud Vol.
XII. Rio de Janeiro: Imago, 2006
HOOKS, Bell. The Will to the Change. New York: Washington Square Press, 2005.
KILOMBA, Grada. A máscara (The Mask). Trad. Jéssica Oliveira de Jesus. In: Plantation
Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster Unrast Verlag, 2 ed, 2010.
SOUZA, Rolf Malungo. Falomaquia: homens negros e brancos e a luta pelo prestígio da
masculinidade em uma sociedade do ocidente. Revista Antropolítica. Niterói, n. 34, p. 35-52,
1º sem. 2013.