Você está na página 1de 84

Aimé Césaire

DISCURSO SOBRE
O COLON IALISMO
segunda edição

LETRÀâCUNÍEMPURÃNEAS
LIVROS & LIVROS
Copyright © by Aimé Césaire
da tradução 2010 © by Anísio Garcez Homem

Capa e projeto gráfico


Fábio Brüggemann

Ilustração da capa
Abolition de l'esclavage en Martínique (1849)
François»Auguste Biard (l799›1882)

Diagramação
Estúdio Semprelo

Edítores
Fábio Brüggemann
Daniel Mayer

ISBN 978~85~7662›0570

Todos os direitos reservados à


Livraria Livros & Livros Ltda.
www.livroselivros.com.br
Impresso no Brasil, ZOZQ
APRESENTAÇÃO

Cláudio Antonio Ribeiro

uando o povo haitiano foi abalado pela úl~


tima grande tragédia do mais doloroso e re'
cente terremoto, Eduardo Galeano, autor do me~
morável As veias abertas da América Latina, escreveu
um artigo muito esclarecedor a respeito da situação
social e política do Haiti e relembrownos da sua
História.
A pobreza, 0 desespero e 0 desamparo dos so~
breviventes, agora revelados a Céu abert0, são frutos
de uma dominação colonialista, cujo grau de CrueL
Clade é uma ferida aberta no coração do Caribe.
Num dos trechos do artigo “Os pecados do
Haiti” denunciava o escritor uruguaio:
“Os Estados Unidos invadiram o Haiti em
1915 e governaram o país até 1934. Retiraramse
quando Conseguiram os seus dois objetivos: Cobrar

3
as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitu—
cional que proibia vender plantaçôes aos estrangei.
ros. Entâo Robert Lansing, secreta’rio de Estado,
justificou a longa e feroz ocupaçäo, militar expli—
cando que a raça negra é incapaz de governar a si
pro’pria, que tem “uma tendéncia inerente à vida
selvagem e uma incapacidade fl’sica de civilizaçäo”.
Um dos responsa’veis pela invasa'o, William Philips,
havia incubado tempos antes a ideia sagaz: “Este é
um povo inferior, incapaz de conservar a civilização
que haviam deix'ado os franceses”.
Em outra passagem, Galeano ressalta que 0
povo negro haitiano, antes de ver seu pais invadll
do pelos Estados Unidos, ja’ havia pago, no século
XIX, o preço de ter cometido o “delito da dignida»
de” a0 se declarar independente da França e ter
proclamado a libertaçâo dos escravos:
“Em 1803, os negros do Haiti deram uma tre—
menda sova nas tropas de Napoleäo Bonaparte, e
a Europa jamais perdoou esta humilhaçäo infligida
à raça branca. 0 Haiti foi o primeiro pais livre das
Ame’ricas. Os Estados Unidos tinham conquistado
antes a sua independência, mas meio milhäo de es!

4
craw›s trabalhavam nas plantações de algodão e de
tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia
que todos os homens são iguais, mas também dizia
que os negros foram, são e serão inferiores.
A bandeira dos homens livres levantowse so«
bre as ruínas. A terra haitiana foi devastada pela
monocultura do açúcar e arrasada pelas calamida~
des da guerra contra a França, e um terço da popu~
lação havia caído no Combate.
Então, Começou 0 bloqueio. A nação recém›
nascida foi condenada à solidã0. Ninguém Compra›
va do Haití, ninguém Vendia, ninguém reconhecia
a nova nação”.
Mais esclarecedor impossívelz Não há maldição
ancestral ou religiosa alguma ligada ao destino do
povo negro haitian(), e sim uma intervenção C010›
nizadora histórica e Consciente por parte das gran«
des potências capitalistas para sufocar e impedir a
expressão livre e independente daquela sofrida, mas
nobre, nação, para aproveitapse da força de trabalho
extraída da miséría a que foi reduzido o Haiti.
A tragédia histórica do Haiti, as invasões do
Iraque e do Afeganistão, as “n0vas” guerras africev

5
nas, a ocupação militar da Colômbía, demonstram
o quanto é atual o Discurso sobre o colonialismo, escri-
to pelo grande poeta e político de esquerda da Mar-
tinica, Aimé Césaire, entre os anos de 1948 e 1955.
Do ponto de Vista histórico conjuntural o
“discurso” de Aimé Césaire é escrito em sintonia
com o momento político e social ao término da
Segunda Guerra Mundial, quando as tensões acu~
muladas entre países colonizados gerariam - na~
quele ou num momento posterior - importantes
e Vitoriosas lutas de libertação nacional, como é o
Caso da independência da China e da Índia, colo›^
nias sob Controle inglês. Ou, como mais tarde, as
guerras de libertação de Angola, Moçambique e da
Argélia, no contínente africano.
Infelizmente, para nós, que Vivemos 55 anos
adiante deste “discurso” (nunca pronunciado como
díscurso, apesar do seu nome) ser escrito, seu con«
teúd0, os questionamentos e dilemas que suscita
continuam Válídos.
No momento em que, pela boca dos portaf
Vozes dos principais governos imperialistas do
mundo, se quer fazer Crer que há um Ccchoque de

6
civilizações” entre o ocidente e 0 mundo árabe
(apresentado Como se fosse sinônimo de terrorisa
mo), a leitura de Césaire nos acorda para o fato
de que não passa de um Velho truque ideológíco
desumanizar os povos a quem 0 imperialismo quer
saquear as riquezas, tornando~os bestas»feras para
melhor justíficar a Violência e o genocídio.
A leitura de Césaire também permite medir
a gravidade do que está acontecendo com 0 povo
grego e com outros povos da Europa, ameaçados
de Verem suas conquistas sociais virarem fumaça
por exigência dos especuladores internacionais
através de organismos de ingerência como o FMI e
a União Europeia. Não é irrelevante lembrar que,
por toda a Europa, e mesmo nos Estados Unidos,
a xenofobia e 0 racismo começam a ser ínoculados
como forma de dividir os oprimidos tornandoos
opositores, seguindo um antigo receituário de do›
minação.
O poeta e político Aimé Césaire, já no início
de seu “discurso”, formula uma afirmação que Vale
ressaltar:
“O fato é que a civilização chamada 'euro.
peia', a civilização 'ocidental', tal como foi molda.
da por dois séculos de regime burguês, é incapaz
de resolver os dois princípais problemas que sua
existência originou: o problema do proletariado e
o problema colonial.”
Hoje em dia, ainda sob o ímpacto da crise
econômica capitalista mundial aberta há três anos,
gerando aumento do desemprego, da desindustria»
lízação e pressão pelo reba1x°amento dos díreitos
trabalhistas e sociais, constata»se que o impasse do
regime burguês em relação às classes trabalhadoras
não só continua como se tornou mais aguda.
O colonialismo de hoje tem outros Contornos
e outros confrontos: A tragédia social do Haiti não
se limita ao número das Vítimas da maís recente e
divulgada catástrofe, porque, país ocupado militap
mente, a desagregação do próprio Estado haitiano
é um terremoto muito mais arrasador e mortal,
urna nova forma de dominação que já dilacerou a
Somália e, com o mesmo punhal, derrama 0 sanr
Q
gue do Iraque e do Afeganistã0.
Este “Discurso” tem uma força retórica e um
apelo emocional Comparável ao grande texto “Eu
Acuso”, de Emile Zola, ao descrever as articulações
e artimanhas antissemitas da cúpula do exército
francês contra 0 oficial Dreyfus.
Por fim, esperamos que a leitura deste livro
possa contribuir para a construção de uma consci~
ência Coletiva de que, neste moment0, é necessário
prestar a mais ampla solidariedade ao povo haitia›
no, exigindo dos governos que enviem àquele País
mais médicos, enfermeiros, professores, engenhell
ros e, no lugar de tropas de ocupaçã0, alimentos,
medicamentos, materiais de construção, roupas e
todo 0 afeto de 'um sonho intenso, um raio vívído
de amor e de esperançaÍ

Curitiba, junho de 2010


E esta é a grande reprovação que eu faço ao
pseudahumanismm haver socavado por muito
tempo os direítos do homem; tido deles, e ainda
ter, uma concepção estreita e dividida, incomple-
ta e parcial; e no final das Contas, sordidamente
racista.
Falei muíto de Hitler. O merecez permite ver
com amplitude e captar que a sociedade capitalista,
em seu estado atual, é incapaz de fundamentar um
direito das pessoas ao mesmo tempo que se mos-
tra impotente para fundar uma moral individuaL
Queirwse ou nã0, ao final do beco sem saída da
Europa, quero dizer da Europa de Adenauer, de
Schuman, de Bidault e de alguns outros, está Hitler.
Ao fím do capitalismo, desejoso de perpetuar~se, está
Hitler. No final do humanismo formal e da renúncia
filosófica, está Hitler.
E, por conseguinte, uma de suas frases se me
impõe:
“Nós aspíramos não à igualdade, mas à domi«
nação. O país de raça estrangeira deverá convertepse
num país de servos, de jornaleiros agrícolas ou de
trabalhadores industriais. Não se trata de suprimir

18
aventureiros que perturbam a sociedade europeia
um ver sacrum, um enxame como aqueles dos
francos, lombardos, normandos; e Cada um estará
em seu papel. A natureza conformou uma raça de
operários, a raça chinesa, com uma destreza manual
maravilhosa, desprovida de qualquer sentimento
de honra; governai~a Com justiça, arrancando dela,
para um bemestar de um tal governo, um amplo
dote em benefício da raça conquistadora, e estará
satísfeita; uma raça de trabalhadores do camp0, os
negros; seja com eles bondosos e humanos, e tudo
estará em ordem; uma raça de amos e soldados, a
raça europeia. Reduzi esta nobre raça a trabalhar no
calabouço como negros e chineses, e esta se rebela›
ra'. Todo rebelde é, mais ou menos, entre nós, um
soldado que frustrou sua Vocação, um ser feito para
a vída heróica, e que vós empregais para uma faina
contrária à sua raça, mal operário, demasiado bom
soldado. Agora bem, a Vida que subleva a nossos
trabalhadores faria feliz a um chinês, a um fellah, a
seres que não são em absoluto militares. Que cada
um faça aquilo para 0 qual está talhado e tudo irá
bem” .

20
Hitler? Rosenberg? Não, Renan.
Porém, ba1x'emos um grau maís. E desta Vez é
o polítíco loquaz. Quem protesta? Ninguém que eu
saiba, quando o senhor Albert Sarraut, falando aos
alunos da Escola Coloníal, lhes ensína que seria
pueril opor as empresas europeias de colonização
“um pretenso direito de ocupação e outro qualquer
díreito feroz de ísolamento que eternizariam a vã
possessão de riquezas sem uso em mãos incapazes”.
E quem se indigna ao escutar o reverendo pa›
dre Barde assegurar que os bens deste mund0, “se
permanecessem indefinidamente repartidos, como
estariam sem a colonizaçã0, não responderiam nem
aos desígníos de Deus, nem a justas exigências da
coletivídade humana”?
Porque, como afírma seu irmão no CrístianiS›
mo, o reverendo padre Muller, “(...) a humanidade
não deve, não pode tolerar que a 1'ncapacídade, a
desídia, a preguíça dos povos selvagens de1x'em in«
definidamente sem uso as riquezas que Deus lhes
confiou com a míssão de pô~las ao servíço do bem
de todos”.
Ninguém.

21
Quero dizer, nenhum escritor autorizado,
nenhum acadêmic0, nenhum pregador, nenhum
polítíco, nenhum cruzado do direito e da religião,
nenhum “defensor do ser humano”.
E, no entant0, pela boca dos Sarraut e dos
Barde, dos Muller e dos Renan pela boca de todos
aqueles que julgavam e julgam lícito aplicar aos
povos não europeus, e em benefício das nações
mais fortes e melhor equipadas, “uma espécie de
expropriação por razões de utilidade públíca”, já era
Hitler quem falava.'
Aonde quero chegar? Ad esta ideiaz que nin~
guém colonializa inocentemente, que tampouco
ninguém colonializa impunemente; que uma nação
que Colonializa, que uma Civilização que justifíca a
colonização e, portanto, a força, já é uma civilização
enferma, moralmente ferida, que 1'rresistivelmente,
de Consequência em c10nsequência, de negação em
negaçã0, é que chama a seu Hitler, quero dizer, seu
Castig0.
Colonização: cabeça de ponte da barbáríe em
uma Civilizaçã0, da qual pode chegar a qualquer
momento a pura e simples negação da civilização.

22
Assinalei na história das expedições coloniais
certos traços que se tem com todo detalhe em outra
sede.
Isso parece não haver agradado a todo mundo.
Parece que isto é tirar velhos esqueletos do armário.
Certamente!
Acaso era inútil Citar ao coronel de Montagnac,
um dos conquistadores da Argé1ia?
“Para expulsar as ideias que me assaltam al~
gumas Vezes, faço cortar cabeças, não Cabeças de
alcachofra, mas realmente Cabeças de homens.”
Acaso convinha negar o uso da palavra ao
conde de Herisson?
“É verdade que trazemos um barril cheio de
orelhas colhidas, par por par dos primeiros amigos
ou inimigos.”
Era necessário recusar-se 0 direito a fazer sua
profissão de fé bárbara a Sal'nt›Arnaud?
“Nós devastamos, queimamos, saqueamos,
destruímos as casas e as árvores.”
Haveria que impedir ao marechal Bugeaud
que sistematizara tudo isto em uma audaz teoria e
reivindicara seus grandes ancestrais.7

23
“Necessita~se uma grande invasão na África que
se pareça ao que faziam os francos, ao que faziam
os godos”.
Era necessário, enfim, atirar às névoas do
esquecimento 0 fato militar memorável do coman-
dante Gérard e calarrse sobre a tomada de Ambike,
uma cidade que a bem da verdade, nunca sonhou
com defender~se?
“Os atiradores não tinham ordem de matar
a não ser aos homens, porém ninguém os deteve;
embriagados pelo odor do sangue, não de1x'aram
vivas nenhuma mulher e nenhuma criança (...) aJo
final da tarde, sob a ação do calor, se levantou uma
pequena brumaz era o sangue de cinco mil Vítimas,
à sombra da cidade que se evaporava ao entardecer”.
São verdadeiros ou não esses fatos? E as
voluptuosidades sádicas e os inefáveis gozos que
estremecem a carcaça a Loti quando pode ver com
seus olhos gêmeos um bom massacre de anamitas?
Verdadeiro ou falso? E se esses fatos são reais, uma
vez que ninguém tem o poder para nega'›los, dir~se'á
para minimizar o 0c0rrido, que esses Cadáveres não
provam nada?

24
Se de mínha parte recordei alguns detalhes
dessas horríveis carnificinas, não é, de nenhuma
maneira, por deleite sombri0, mas porque penso que
não nos desfaremos tão facilmente dessas cabeças
de homens, dessas colheitas de orelhas, destas casas
queimadas, dessas invasões godas, deste sangue que
fumega, dessas cidades que se evaporam no fio da
espada. Esses fatos provam que a colonização, repito,
desumaniza o homem mesmo o mais civilizado; que
a ação coloniaL a empreitada colonía1, a conquista
colonial, fundada sobre o desprezo do homem na›
tivo e justificada por esse desprezo, tende inevitaveL
mente a modificar aquele que a empreende; que o
colonizador, ao habituar~se a Ver no outro a besta, ao
exerc1'tar-se em trata'›lo como besta, para acalmar sua
consciêncía, tende objetivamente em transformar~se
ele próprio em besta. Esta ação, este golpe devolvido
pela colonização, era ímportante assinalar.
Parcialídade? Não. Houve um tempo em que
se sentia Vaidade por esses mesmos fatos e que,
seguros do futuro, não se fazia rodeios ao conta'›los.
Uma última citação de um tal Carl Siger, autor de
um Essai sur la colonisationz “Os países novos são um

25
vasto campo aberto para as atividades individuais,
violentas, que nas metrópoles se enfrentariam com
certos preconceítos, com uma concepção sábia e
regulada da vida, mas que podem desenvolver-se
livremente nas Colônias e, portanto, afirmar melhor
seu valor. Assim, as colônias podem servir até certo
ponto de Válvula de segurança à sociedade modema.
Esta utílídade, mesmo que fosse a úníca, é imensa.”
Na verdade, existem taras que ninguém pode
reparar e que nunca termínam de exp1'ar'se.
Porém, falemos dos Colonizados.
Vejo claramente 0 que a Colonização destruiu:
as admiráveis cívilizações dos astecas e dos incas, das
quaís nem Deterding, nem a Royal Dutch, nem a
Standard Oil me Consolarão jamais.
Vejo bem aquelas civílizações Condenadas a
desaparecer nas quais a colonização introduziu um
princípio de ruína: Oceania, Nigéria, Nyassaland.
Vejo mesmo Claramente 0 que ela aportou.
Segurança? Cultura? ]uridicidade? Apesar de
tud0, olho e vejo, em todos os lugares aonde existe
colonizadores e colonizados, frente a frente, a força, a
brutalidade, a crueldade, o sadismo, 0 golpe, e, como

26
paródia, a formação Cultural, a fabricação apressada
de alguns milhares de funcionários subalternos, de
empregados domésticos, de artesãos, de empregados
de comérci0, e dos intérpretes necessários para o
bom funcionamento dos negócios.
Falei de contato.
Entre colonizador e colonízado só há lugar
para o trabalho forçado, para a intimidação, para a
pressão, para a polícia, para o tribut0, para o rou~
b0, para a Violaçã0, para a Cultura imposta, para 0
desprezo, para a desconfiança, para 0 silêncio dos
cemitérios, para a presunção, para a grosseria, para
as elites descerebradas, para as massas envilecidas.
Nenhum contato humano, somente relações
de domínação e de submissão que transforma o
homem colonizador em Vigilante, em suboficiaL
em feit0r, em antepar0, e ao homem nativo em
instrumento de produção.
Cabe~me agora levantar uma equaçã0: Coloni~
zação = Coisificaçã0.
Ouço a tempestade. Falam~me de progresso, de
“realizações”, de enfermidades Curadas, de níveis de
Vida acima deles mesmos.

27
EL1, eu falo de socíedades esvaziadas delas mes.
mas, de culnlras pisoteadas, de instituições minadas,
de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de
magnificências artísticas aniquiladas, de extraordi.
nárias possibilidades suprimidas.
Refutanmme Com fatos, estatísticas, quilôme-
tros Cle rodovias, de Canais, de ferrovias.
Eu, eu falo de milhares de homens sacríficados
na Construção da linha férrea da CongoOcearL Falo
daqueles que no momento em que escrev0, estão
Cavando com suas mãos 0 porto de Abiyán. Falo de
milhões de homens desarraigados de seus deuses,
de sua terra, de seus costumes, de sua vida, da vida,
da dança, da sabedoria.
Falo de milhões de homens aos quais sabiamem
te se lhes inculcou o medo, o Complexo de inferio
ridade, 0 temor, o pôpse de joelhos, o desesper0, o
servilismo. Obscurecem›me com toneladas exporta~
das de algodão ou cacau, Com hectares plantados de
oliveiras ou de uvas.
Eu, eu falo de economias naturais, harmor
niosas e viáveis, economias na medida do nativ0,
desorganizadas; falo de hortas destruídas, de suba'

28
limentação instalada, de desenvolvimento agrícola
orientado unicamente em benefício das metrópoles,
de saques de produtos, de saques de matérias›primas.
Jactamse da supressão dos abusos.
Eu, eu também falo de abusos. Porém para
dizer que aos antígos tão reais foram superpostos
outros igualmente detestáveis. Falam~me de tiranos
locais devolvidos à razã0; porém eu constato que
em geral o que acontece é um reaproveitamento dos
tiranos. Entre os novos aos antigos e Vice~versa, se
estabeleceu, em detrimento dos povos, um circuito
de bons serviços e de Cumplicidade.
Falam~me de civilização, eu falo de proletariza~
ção e de mistificaçãa
De minha parte, eu faço apologia sistemática
das civilizações para~eur0peias.
Cada dia que passa, cada denegação de justiça,
cada repressão policial, cada reivíndicação operária
afogada em sangue, Cada escândalo sufocado, cada
expedição punitiva, cada ônibus da Compañia Repw
blicana de Seguridad, cada policial e cada miliciano,
nos fazem sentir 0 preço de nossas ancestrais socie›
dades.

29
Eram sociedades comunitárias e não para
alguns poucos.
Eram sociedades não só antecapitalistas, como
foi dito, mas também anticapitalistas.
Eram sociedades democráticas, sempre.
Eram sociedades Cooperativas, sociedades
fraternais.
Eu faço apologia sistemática das sociedades
destruídas pelo imperialismo.
Elas eram o fat0, não tinham nenhuma preten›
são de ser a ideia; não eram, apesar dos seus defeitos,
nem detestáveis nem Condenáveis. Contentavamse
com ser. Nem a palavra derrota, nem a palavra trans›
figuração tinham sentido diante delas. Conservavam
intacta a esperança.
Apesar de que estas sejam as únicas palavras que
se pode aplicar, Com toda a honestidade, às empresas
europeias fora da Europa, meu único Consolo é que
as colonízações passam, que as nações só dormitam
por algum tempo e que os povos permanecem.
Ao afirmar isto, parece que em alguns meios
se finge descobrir em mim um “inimigo da Europa”
e um profeta do retorno ao passado antieuropeu.

30
Eu disse e isso é muito díferente que a Europa
colonizadora enxertou 0 abuso moderno na antiga
injustiça; o odioso racismo na velha desigualdade.
Se se quer julgar minhas intenções, sustento que
a Europa colonizadora é desleal quando legitima à
posteriori a ação Colonizadora aduzíndo os evidentes
progressos materiaís realizados em certos domínios
sob o regime coloníal, porque a mudança brusca é
sempre possível tanto na história como em qualquer
outro âmbito; que nínguém sabe a que estágío de
desenvolvimento material chegariam estes mesmos
países sem a intervenção europeia; que 0 equipamen~
to técnico, a reorganização administrativa, em uma
palavra, “a europeização" da África ou da As'ia, não
estavam ligadas necessariamente como prova o exem«
plo japonês à ocupação europeia; que a europeização
dos continentes não europeus podia ter sido feita de
outro modo sem que fora sob a bota da Europa; que
este movimento de europeização estava em marcha;
que este foi inclusíve freado; que, em todo o caso, foi
falseado pelo domínio da Europa.
A prova é que hoje os nativos da Africa ou da
Asia reivindicam escolas e a Europa colonizadora

31
as nega; é o homem africano quem solicita portos
e estradas, e a Europa colonízadora raciona; é 0
colonizado quem quer ir adiante, é 0 colonizador o
que o mantém atrasado.

3
Indo mais longe, de nenhuma maneira escon-
do que penso que no momento atual a barbárie da
Europa ocidental é incrívelmente grande, superada
com cresces por uma sola, é Verdade: a estadunidense.
E não falo de Hitler, nem do oficíal de galés,
nem do aventureiro, mas do “bom homem” aí em
frente; nem do SS, nem do delinquente, mas do bup
guês honesto. O candor de León Bloy se indignava
há muito tempo porque vigaristas, perjuros, falsários,
ladrões, proxenetas fossem os encarregados de “1evar
o exemplo das Virtudes Cristãs até as Índias”.
O progresso consiste em que hoje 0 detentor
das “Virtudes Cristãs” é quem pretende e se sai
bastante bem com a sua a honra de administrar
no ultramar de acordo com os procedimentos dos
falsários e dos torturadores.

32
E o sinal de que a crueldade, a ba1x'eza, a c0r~
rupçã0, morderam maravílhosamente a alma da
burguesia europeia.
Repito que não falo nem de Hitler, nem do SS,
nem do organizador de progroms, nem da execução
sumária, mas de uma reação surpreendida, de um
reflexo admitido, de um cinismo tolerado. E se
querem um testemunho de uma cena de hístería
antropófaga, apresento um que me foi brindado ao
assistir a Assembleía Nacional francesa.
Caramba, meus queridos Colegas (como se
diz), tiro meu chapéu (meu Chapéu de antropófago,
evidentemente).
Pensai.' Noventa mil mortos em Madagascarl
A Indochina pisoteada, desintegrada, assassinada,
torturas resgatadas do fundo da Idade Média! E
que espetáculo! Esse estremecimento de gosto
que revigora vossas sonolências.| Esses clamores
selvagens.' Bidault Com seu aspecto de hóstía pr0›
fanadaz a antropofagia de falsa devoção e mosca
morta; Teitgen, filho de liante endiabrado, 0 asno
do descerebramentoz a antropofagia dos jurisc0n~
sultos; Motutet, a antropofagia intrigante, fruto

33
do espanta lobos retumbante e com cisos moles,
Coste~F10ret, a antropofagia feita pessoa grosseira
e inoportuna.
InolvidáveL senhores! Com belas frases solenes
e frias, com Vendas de múmia, maniatais ao malga.
Chi. Com algumas palavras convencionais, 0 apunha-
lais. Enquanto molhais a garganta, o estripais. Que
belo trabalho.' Nem uma gota de sangue se perderá!
Aqueles que apuram a taça de Vinho sem
jamais diluí~la em água. Aqueles que como Rama~
dier enchem à maneira de Sileno a cara; Fonlup
Esperaber3, que eriça os bigodes ao estilo do velho
galo cabecirredondo; o Velho Desjardins inclinado
recebendo os eflúvios da cuba, como se se embriaga~
ra com vinho doce. Que Violência aquela dos débeis.'
Significativo: pela cabeça não apodrecem as civilll
zações. O farão, em primeiro lugar, pelo coração.
Confesso que para a boa saúde da Europa e
da civilização, estes “mata! mata.'” estes “que Corra
o sangue” proferidos pelo Velho trêmulo e pelo bom
jovem aluno dos bons sacerdotes, me irnpressionam
muito mais desagradavelmente que os sensacionais
assaltos na porta de um banco parisiense.

34
E isto, tenho em conta, não tem nada de ex-
CepcionaL
A regra, pelo contrário é a da grosseria bur~
guesa. Esta grosseria que rastreamos há um século.
A auscultamos, a surpreendemos, a percebemos, a
seguimos, a perdemos, a reencontramos, a Vigiamos,
e ela se estende Cada dia mais nauseabunda. Oh.'
O racismo desses senhores não me veja agora. Não
me indigna. Só me informo sobre ele. O Constato, e
isso é tudo. Estou quase agradecido por expressapse
e aparecer à luz do d1'a, como sinal de que a intrépi~
da classe que antes se lançou ao assalto da Bastilha
treme sobre suas próprias pernas. Sinal de que ela
sente que morre. Sinal de que ela se sente cadáver.
E quando 0 cadáver balbucia, produz coisas do tipo:
“Nã0 houve senão um excesso de Verdade neste
primeiro movimento dos europeus que recusaram,
no século de Colomb0, reconhecer Como semelhan~
tes a homens degradados que povoavam o Novo
Mundo (...) não podiam f1x'ar por um instante seus
olhares sobre o selvagem sem ler 0 anátema escrito,
não digo unicamente em sua alma, mas até na forma
externa do seu corpo .
,,

35
E está assinado por Joseph de Maistre
(Esta é a moenda mística).
E então isso produz inclusive o seguintez
“Do ponto de Vista da seleçã0, perceberia como
vergonhoso o amplo desenvolvimento numérico dos
elementos amarelos e negros que seriam de difícil
eliminaçã0. Se não obstante a sociedade futura se
organiza sob uma base dualista, com uma classe de
dirigente de cabeçasrruivas e uma classe de raça infe~
rior confinada na mão~de~obra mais tosca é possível
que este últímo papel caiba aos elementos amarelos
e negros. Neste caso, ademais, estes não seriam um
estorvo, mas uma vantagem para os cabeça~ruívas
(...) não há que esquecer que [a escravidãol não tem
nada mais anormal que a domesticação do cavalo ou
do boi. É possível então que esta reapareça no futu-
ro sob qualquer forma. Isto se produzirá inclusive
provavelmente de maneira inevitável, se a solução
simplista não intervirz uma só raça superior, nívelada
pela seleçã0”.
Esta é a moenda Cientificista e está assinada
por Lapouge.

36
E isso produz inclusive o seguinte (desta Vez,
moenda literária):
u - VO .
Sel que de crer-me superlor aos pobres bayas
de Mambérré. Sei que devo sentir~me orgulhoso de
meu sangue. Quando urn homem superior de1x'a de
crepse superior, cessa efetivamente de ser superior
(...) Quando uma raça superior de1x'a de crepse uma
raça eleita, ela cessa efetivamente de ser uma raça
eleita”.
Está assinado por Psichari, soldado da Africa.
Ao traduzir esta moenda ao jargão jornalístico
obtemos o que disse Faguet:
“O bárbaro é, apesar de tudo, da mesma raça
que o romano e o grego. É um prim0. O amarelo e o
negro não são de nenhuma maneira nossos primos.
Aqui há uma Verdadeira diferença, uma verdadeira
distância, e muito grande, etnológica. Até porque,
a Civilização nunca foi feita até 0 presente senão
por brancos (...) A Europa, convertida em amarela,
seria seguramente uma regressã0, um novo período
de obscurantismo e confusã0, ou seja, uma segunda
Idade Média”.

37
E depois, mais ab31x°o, sempre mais abalx'0,
até o fundo do poço, mais abalx°o até que não pos_
samos ba1x'ar as pálpebras, o senhor Jules Romains,
da Academia Francesa e da Recuue des Deux Mondes
(pouc0 importa que o senhor Farigoule mude de
nome mais uma Vez e se faça chamar aqui Salsette
por Conveniência). O essencial é que o senhor Jules
Romains Chega a escrever 0 seguintez
“Só aceito a díscussão com pessoas que se mos›
trem de acordo em aventar a seguinte hipótese: A
França com dez milhões de negros sob seu território
metropolitano, dos quais, cinco ou seis milhões vi-
vem no vale de Garonne. Acaso o preconceito racial
não haveria de roçar as nossas valentes populações
do sudoeste? Acaso não teria surgido inquietude se
houvessem cogitado devolver todos os podkeres a
estes nLegros, filhos de escravos? (...) Aconteceu~me
isso ao estar diante de uma fila Cle negros puros (...)
Não reprovarei sequer aos nossos negros e negras
que mastiguem chicletes. Somente observarei (...)
que este gesto tem por efeito por em relevo os maxi~
lares e que as evocações dos seus espíritos os levam
mais perto da selva equatorial que da procissão das

38
Panateneias (a raça negra não deu, todavia, nem dará
nunca um Einstein, um Stravinsky, um Gershwin)”.
Comparação idiota por comparação idiotaz
posto que 0 profeta da Revue des Deux Mondes e de
outros lugares nos convida às aproximações “dis-
tantes”, que permite que o negro que sou considere
sem que ninguém seja dono de suas associações e
ideias que sua VOZ não tem relação com o carvalho
ou os caldeirões mágicos de Dódona e sim com o
relinchar dos asnos do M1'ssouri.
Mais uma Vez, Volto a fazer a apologia de nos~
sas ancestrais civilizações negras: eram Civilizações
COÍteSCS.

E então, me dirão, 0 verdadeiro problema é


Voltar a elas. Nã0, repito. Nós não somos os homens
do “1'st0 ou aquilo”. Para nós, o problema não é de
uma utópica estéril tentativa de reduplicação, mas
de uma superação. Não queremos fazer reviver uma
sociedade morta. Desejamos isto para os amantes do
exotismo. Tampouco queremos prolongar a socieda›
de Colonial atual, a mais malvada apodrecida sob o
sol. Precisamos criar uma sociedade nova, com ajuda
de todos os nossos irmãos escravos, enríquecida por

39
toda potência produtiva moderna, aquecída pela
fraternidade antiga.
Que isso é possível, a Uníão Soviética nos dá
alguns exemplos
Porém, voltemos ao senhor Jules Romains.
Não se pode dizer que 0 pequeno~burguês
não tenha lido nada. Ele, pelo contrário, leu tudo,
devorou tudo.
Seu cérebro funciona unícamente à maneira de
alguns aparelhos digestivos de típo elementar. Ele
filtra. E o filtro não deLX'a passar senão o que pode
alimentar a torpeza da boa Consciêncía burguesa.
Os vietnamítas, antes da chegada dos franceses
a seu país, eram pessoas de cultura ancestral, diferen~
te e refinada. Esta lembrança incomoda ao Banco
da Indochina. Então, façam funcionar a máquína
do esquecimento.'
Estes malgaches, a quem se tortura hoje, eram,
a menos de urn século, poetas, artistas, administrado
res? Silênci0.' A boca fechadal E 0 silêncio se faz tão
profundo como uma C31X°3~f0rtel Felizmente restam
os negros. Ah.' Os negros.' Falemos dos negros.'
S1'm, falemos deles.

40
Dos impérios sudaneses? Dos bronzes de
Benin? Da escultura shongo? De acordo, isto nos
permitirá falar de outras coisas que não sejam as
sensacionais figuras pintadas que enfeitam tantas
capítais europeias. Da música africana. Por que não.7
E falemos do que disseram, do que Viram os
primeiros exploradores... Não dos que comem nas
estrebarias das Companhias.' Mas dos Elbée, dos
Marchais, dos Pigafetta! E depois de Frobénius! Ehl
Sabeis quem é Frobéníus? Leiamos juntosz
“Civílizados até 0 tutan0.' A ideia do negro
bárbaro é uma invenção europeia”.
O pequeno~burguês não quer escutar nada
mais. Com um bater de orelhas espanta a ideia.
A ideia, esta mosca inoportuna.

4
Assím, companheiros, serão inimigos - com
altura, lucídez e de maneira Consequente não so~
mente governadores sádicos e prefeítos torturadores,
não somente colonos flageladores e banqueiros
8U1(›sos, não somente políticos lambe«cheques e

41
magistrados Vendidos, mas igualmente, e pela mes_
ma razã0, jornalistas acerbos, acadêmicos felpudoS
e com caudas de estupidez, etnógrafos metafísicos e
expertos de índoles Caninas, teólogos extravagantes
e belgas, intelectuais falantes e hediondos que se
acreditam descendentes de Nietzsche ou filhos dos
sete pares de França caídos de não sei que plêiade,
os paterna11'stas, os beijoqueiros, os corruptores, os
que dão tapinhas nas costa, os amantes do exotism0,
os divisores, os sociólogos agrários, os enganadores,
os mistificadores, os babões, os falsificadores e, de
uma maneira geral, todos aqueles que, desempe
nhando seus papel na sórdida divisão de trabalho
para a defesa da sociedade ocidental e burguesa,
tentam de diferente maneira, e por passatempo
infame, desagregar as forças do progresso com o
risco de negar a própria possibilidade do progresso
›, todos sequazes do Capitalísm0, todos representan~
tes declarados ou envergonhados do Colonialismo
saqueador, responsáveis todos, detestáveis todos,
negreiros todos, devedores de agora em diante da
agressividade revolucionária.

42
Varramos todos aqueles que ofuscam a reali~
dade, todos os inventores de subterfúgios, todos os
charlatães mist1'f1'cadores, todos os manipuladores
de geringonça. E não perca tempo tratando de
saber se esses senhores trabalham pessoalmente
de boa ou má fé; se são pessoalmente bem ou mal
intencionados; se são pessoalmente, ou seja, em sua
consciêncía íntima de Pedro e Paulo, colonialistas ou
nã0; 0 essencial é que sua aleatória boa fé subjetiva
não tem nada que Ver com o alcance objetivo e social
do trabalho sujo que fazem como Cães de guarda do
colonialisma
E nesta ordem de ideias, cit0, a guisa de exem~
plos (tomados a propósito em disciplinas muito
diferentes):
- De Gour0u, seu livro Os países tropicais, aom
de, em meio a perspectivas justas, expríme a tese
fundamentaL parcial, inadmissíveL de que jamais
existiu uma grande civilização trop1'cal, que nunca
existiu uma grande civilização senão em clímas tem~
perados; de que em todo o país tropical 0 gérmen
da civilização chega e só pode Chegar de outro lugar
extratropical e que sobre os países tropicais pesa, na

43
falta de maldição biológica dos racístas, pelo menos e
pelas mesmas consequências, uma não menos eficaz
maldição geográfica.
- Do reverendo Tempels, missionário e belga,
sua filosofia bantú lamacenta e pestilenta a não mais
poder, porém descoberta de maneira muito opor.
tuna, como para outros hínduísmos, para 0p0r~se
ao “materialismo Comunista”, que ameaça, parece,
em converter os negros em “Vagabundos morais”.
- Dos historiadores ou novelistas da CiVilização
(dá no mesmo), não este ou aquele, mas todos ou
quase todos; sua falta de objetivídade, seu chauvb
nism0, seu racismo solapado, sua Viciosa palx'ão por
denegar todo 0 mérito das raças brancas, part1'cular-
mente as raças com melanina, sua monomania para
monopolizar toda a glória em proveito próprio.
- Os psícólogos, sociólogos, etc; seus pontos
de Vísta sobre o “primitivismo”, suas investigações
dirigidas, suas generalizações interessadas, suas es»
peculações tendencíosas, sua insistência em caráter
marginaL o caráter “a parte” dos não brancos, seu re'
chaço por exigências da causa ao mesmo tempo que
cada um desses senhores se reclama do racionalismo

44
mais decidido para acusar desde 0 alto a incapacida-
de do pensamento primitivo - , seu rechaço bárbaro
da frase de Descartes, bússola do universalismo, de
que “a razão (...) está completamente em cada um”
e “que não há nem menos [razã0] senão no aciden~
tal e em nenhum Caso nas formas da natureza dos
indivíduos de uma mesma espécie”.
Porém, não vamos tão rápido. Compensa se«
guír os passos de alguns desses senhores.
Não me estenderei sobre os historíadores, nem
sobre os historiadores da colonização, nem acerca
dos egiptólogos, pois é demasíado óbvio o caso dos
primeiros e, quanto aos segundos, 0 mecanismo de
sua mistificação foi definítívamente desmontado
por Cheikh Anta Di0p, em seu lívro Nations nêgres
et Culturez o mais audacioso que um negro escreveu
até agora e que servira', sem dúvida alguma, para 0
despertar da África.
Voltemos, voltemos a A.M Gourou mais exa~
tamente.
Preciso dizer que 0 eminente sábio olha de
cima às populações nativas que “nào participaram”
no desenvolvimento da Ciência moderna? E que

45
não é do esforço destas populações, de sua lma
libertadora, de seu Combate concreto pela vida, a
liberdade e a cultura, que ele espera a salvação dos
países tropicais, senão do bom Colonizador; porque
a leí é formaL a saber, “que são elementos culturais
preparados ern regiões extra~tropicais os que assegu~
ram e assegurarão 0 progresso das regiões tropicais
em direção a uma população mais numerosa e uma
civilízação superior”
Disse que há pontos de vista justos no livro do
senhor Gourou: “O meio tropícal e as sociedades
nativas - escreve ele, fazendo 0 balanço da Coloní-
zação sofreram pela introdução de técnicas mal
adaptadas, pelos tributos 0brigatórios, pelo trabalho
dos Condutores, pelo trabalho forçado, pela escravi~
dã0, pelo traslado de trabalhadores de uma região
a 0utra, pelas mudanças súbitas do meio biológico,
pela apariçâo de novas condições especiais e menos
favoráveis” .
Que pérola.' Que cara a do reit0r.' Que Cara do
ministro quando ler ist0.' Nosso Gourou está desgap
rad0; Não perde por esperar, Vão dizer todos.' Escreve
“ › , .
Gour0u: Os palses quentes tlplCOS se encontram

46
díante do seguinte dilemaz estancamento econômico
e salvaguarda dos natívos ou desenvolvimento econo›“
mico provisório e regressão dos nativos”. E logo lhe
dirão: “Senhor Gour0u, isto é muito grave.' Advirtí-
mos solenemente que com este jogo 0 que está em
jogo é sua carreira”. Entã0, nosso Gourou escolhe
não replicar e omite precisar se o dilema existe ou
somente existe no marco do regime existente; que
se essa antinomía Constitui uma lei 1'nexorável, é a
lei do capitalísmo colonialista, a de uma sociedade,
portanto, não só mortal, mas também ameaçada
de extinção.
Geografia impura e de um que secular.'
Se há algo me1h0r, é o do reverendo Tempels.
Que se saqueie, tortu re no Cong0, que o colonizador
belga se apodere de toda a riqueza, que se mate toda
a liberdade, que se oprima todo 0 orgulh02 que vá
em paz o reverendo Tempels que consente tudo isso.
Porém, cuidado.' Você vaí ao Cong0? Então, respeite
não a propriedade nativa (as grandes companhias
belgas poderiam confundír isso Como uma pedra
atirada ao seu telhado), não a liberdade dos nativos
(os colonos belgas poderiam ver nisso propósitos

47
subversivos), não a pátria congolesa (arriscando.nOS
a que o governo belga encare isso Como um mal),
vocês que vão ao Cong0, respeítem a filosofia bantúl
“Seria Verdadeiramente inusitado escreve
0 reverendo Tempels que o educador branco se
obstinasse em matar no homem negro seu espírito
humano próprio, esta única realidade que nos impe-
de de consideráJo Como um ser inferiorl Seria um
crime de lesa humanidade, de parte do Colonizador,
emancipar as raças primitivas do que é Valioso, do
que constitui um núcleo de verdade em seu pensaa
mento tradicionaL etc”.
Que gener031'dade, pai meu.' E que ze10.'
Agora bem, aprende, portanto, que o pensa«
mento bantú é essencialmente ontológico; que a
ontologia está fundada nas noções Verdadeiramente
essenciais de força Vital e de hierarquia das forças
vitais; que para o bantú, finalmente, a ordem onto«
lógica que defíne 0 mundo Vem de Deus por decreto
divino e deve respeitar~se...
Admirável! Todo mundo ganhaz as grandes
companhias, os Colonos, o governo, todos exceto 0
bantú, naturalmente.

48
Ao ser ontológico 0 pensamento dos bantús, es›
tes somente pedem satisfação de ordem 0ntológica.
Salários decentes.' Moradias Confortáveis! Comidal
Não.' Esses bantús são puro espírito, então:
“O que eles desejam antes de tudo e acíma de
tudo não é o melhoramento de sua situação econôa
mica e materiaL mas 0 reconhecimento do branco
e 0 respeito deste de sua dignidade humana, de seu
pleno Valor humano”.
Em suma, tiramos 0 chapéu diante da força
Vital bantú, um aceno para a alma ímortal bantú. E
os colonialistas seguem em paz.' É preciso considerar
que tudo ísso a um bom preç0.'
Quanto ao governo, de que se que1x'aria ele.7
Porque, como anota 0 reverendo Tempels, com uma
evidente sat1'sfaçã0, “os bantús Consideram a nós os
brancos, e isto desde 0 primeiro Contat0, a partir de
seu ponto de Vista possíveL o de sua filosofia bantú”
e “nos integraram, em sua hierarquia de seres~força,
numa escala muito elevada”.
Dito de outra maneira, conseguiwse que no
topo da hierarquia das forças Vítais bantús esteja 0
branc0, e particularmente o belga, e mais exatamen-

49
Í
tc Alberto ou Leopoldo, e a jogada está feita. Obte_
remos esta maravilhaz o deus bantú será a garantia
da ordem colonialista belga e todo bantú que ouse
conFrontáJa será um sacrílego.
No que diz respeíto ao senhor Mannoni, suas
considerações sobre a alma malgache e seu livro me-
rece que lhes outorguemos uma grande importância.
Sigamothe passo a passo nos ires e vires de
seus pequenos jogos de mãos e ele demonstrará crís-
talino como a água, que a colonização está fundada
na psicologia; que no mundo existem grupos de ho~
mens atacados, não se sabe como, por um Complexo
que bem podia chamarvse Complexo de dependência;
que estes grupos estão feitos psicologicamente para
serem dependentes; que necessitam a dependência;
que a postulam, a reclamam, a exigen1;que este é o
caso da maioria dos povos colonizados, em particular
dos malgaches.
Maldito racismo! Maldito Colonialismol En~
cobre demasiado mal sua barbárie. O senhor Man~

noni tem algo melhorz a psicanálise. Adornado de


existencialism0, os resultados são surpreendentes:
os lugares~c0muns mais desgastados reparados para

50
vocês e de1x'ados como novos; os preconceitos mais
absurdos são explicados e legitimados; e magicamem
te, rapidamente se Convertem em toucinho.
Melhor, escutemo«10:
“O destino do ocidental se encontra na obrll
gação de obedecer ao mandament0: de1x'arás a teu
pai e a tua mãe. Esta obrigação é incompreensível
para o malgache. Todo europeu, no momento do
seu desenvolvimento, descobre nele o desejo (...) de
romper seus laços de dependência, de igualapse a
seu pai. O malgache, nunca.' Ele ignora a rivalidade
com a autoridade paterna, 0 ccprotesto Viril”, a infe
rioridade adleriana, provas pelas quais d.eve passar 0
europeu e que são tidas como as formas Civilizadas
(...) dos ritos de íniciação através dos quais se alcança
a Virilidade (...)”.
Que as sutilezas do Vocabulário, que as novas
terminologias não os assustem.' Vocês Conhecem
o estribilho: “os negros são Crianças grandes”. O
tomam, 0 disfarçam, o enredam. O produto é um
Mannoni. Uma Vez mais, acalmemsel A saída pode
parecer um pouco incômoda, porém na chegada,
Creiam, encontrarão sua bagagem intacta. Nada

51
lhes faltará, nem sequer a Célebre Carga do homem
branco. Escutem, portant0:
“Através destas provas (reservadas ao ocidental
[A. C.]) se supera o medo infantil ao abandono e
se adquire liberdade e autonomía, bens supremos,
porém também cargas do ocidental”.
E o malgache?; perguntarão. Raça servil e men-
tirosa, diria Kipling. O senhor Mannoní diagnostíca:
“o malgache nem sequer tenta imagínar semelhante
situação de abandono (...) Ele não deseja nem au~
tonomia pessoal nem livre responsab1'11'dade”. (Veja~
mos, Vocês o sabem bem. Estes negros nem sequer
imaginam 0 que é a liberdade. Eles não a desejam,
não a reivindicam. São os instigadores brancos quem
lhes metem isso na cabeça. E se lhes a concedessem,
não saberiam o que fazer com ela).
Se 0 senhor Mannoni se desse Conta de que
os malgaches se rebelaram, apesar disso em nume~
rosas ocasiões após a ocupação francesa, e que a
últíma Vez foi em 1947... o senhor Mannoni, fiel às
suas premissas, explicará que neste caso se trata de
um Comportamento puramente neurótico, de uma
loucura Coletiva, de um comportamento de amok;

52
que, além de tudo, neste caso não se tratava para
os malgaches de Caminhar em direção à conquista
de bens reais, mas de uma “segurança imagínária”,
isso evidentemente implica que a opressão da qual
se que1x'am é imag1'nária. Tão claramente, tão de›
mencialmente imaginária, que podemos falar de
monstruosa ingratidão, como no exemplo clássico
do fiyiano que queima o secadouro do capitão que
havia curado suas feridas.
Àquele que crítica o colonialismo de encurra~
lar até o desespero as populações mais pacíficas, 0
senhor Mannoni explicará que o responsável não
é o branco Colonialista, mas sim os malgaches C0›
lonizados. Que diabos! Tomavam aos brancos por
deuses e esperavam deles tudo que se espera de uma
divindade! Àquele que descobre que 0 tratamento
aplicado à neurose malgache foi um pouco rude, 0
senhor Mannoni, que tem resposta para tud0, lhe
provará que as famosas brutalidades das quais se
Comenta foram muito amplamente exageradas, que
estamos diante de uma ficção neurótica, que as
torturas eram torturas imaginárias, aplicadas por
“ . o p .
verdugos 1mag1narlos”. Quanto ao governo fran›

53
cês, este se mostrou partícularmente moderadq
posto que se contentou em prender aos deputados
malgaches, embora devesse sacrificáJos se quisesse
respeítar a leí de uma sã psícologia.
Não exagero nem um pouco. E o senhor Man-
noní quem falaz
“Seguindo Caminhos na Verdade Clássicos, estes
malgaches transformam seus santos em mártíres,
seus salvadores em bodes expíatórios; eles queriam
lavar seus pecados ímaginários no sangue de seus
próprios deuses. Estavam díspostos, inclusive a este
preço, ou melhor, a este preço unicamente, ao ínvés
de mudar uma Vez maís sua atitude. Um traço desta
psicologia dependente parece ser que, dado que
nínguém pode ter dois amos, é conveníente que um
dos dois seja sacrífícado. O setor mais perturbado
dos colonialistas de Antanarnarivo compreendia de
forma muito confusa o essencial dessa psicologia do
sacrifícío, e reclamava suas Vítimas. Eles assediavam 0
alto comissariado, assegurando que se lhes fosse con~
cedido o sangue de alguns inocentes, ctodo mundo
estaría satisfeítoÍ Esta atítude, humanamente deson~
rosa, estava fundada sobre uma percepção bastante

54
justa em termos gerais das perturbações emocionais
que afetavam a população dos altiplanos”.
Daí a absolver aos colonialistas sedentos de
sangue, é só um passo. A “psicologia” do senhor
Mannoni é tão “desinteressada” e tão “livre” como
a geografia do senhor Gourou ou a teología missi0«
nária do reverendo Tempels.'
Eis aqui a pastosa unidade de tudo isto, a pera
severante tentativa burguesa de reduzir os problemas
mais humanos a noções confortáveis e vazias: a
ideia do complexo de dependência em Mannoni, a
ideia ontológica no reverendo Tempels, a ideia de
“tropicalidade” em Gourou. O que se passa com o
Banco da Indochina nisso tudo? E com 0 Banco de
Madagascar.7 E com 0 Chicote? E com o impost0? E
com o punhado de arroz para o malgache ou para o
nhaque? E Com estes mártires? E Com estes inocentes
assassinados? E com esta fortuna sangrenta que se
acumulam em suas arcas, senhores.7 Volatilizados.'
Desaparecidos, confundidos, irreconhecíveis no
reino dos pálidos raciocíníos.
Porém, existe uma desgraça para estes senhores,
e é que o entendimento burguês se mostra cada vez

55
maís reticente à sutileza e que seus donos estão Cada
vez maís Condenados a d1'stanciar›se, para aplaudir a
outros menos sutis e mais brutais. Exatamente isso
dá uma oportunidade ao senhor Yves Florence. E de
fat0, eis aqui, na tribuna do jornal Le Monde, suas
pequenas ofertas de serviço, ordenadas com juízo.
Nenhuma surpresa possíveL Com tudo garantido,
com eficácía comprovada, com todos os exper1°men-
tos realizados e conclusivos, do que se trata aqui é de
um racismo, de um racismo francês, todavia de'bil,

certamente, porém promissor. Escutem melhor:


“Nossa leitora (...) [uma senhora professora
que teve a audácia de Contradizer ao irascível senhor
Florencel experimenta, contemplando a duas jovens
mestiças, suas alunas, a emoção de orgulho que lhe
produz o sentimento de uma crescente integração
em nossa família francesa (...) Seria igual a sua emo›
ç_ão, se ela víesse à França, ao contrário, integrapse
na família negra (ou amarela, ou vermelha, pouco
ímporta), ou seja, diluir~se, desaparecer?”.
Está claro, para o senhor Yves Florence, que é
o sangue 0 que faz a França e que as bases da nação
são biológicas:

56
“Seu povo, seu caráter, estão feitos de um
equilíbrio milenar, vigoroso e delicado por sua vez,
e (...) certas rupturas inquietantes para este equilí~
brio coincidem Com a infusão massíva e azarenta
do sangue estrangeiro que deveu suportar faz uns
trinta anos”.
Em suma, a mestiçagem, eís aqui o inimigo.
Não mais crise sociall Não mais crise econômícal
Não há mais que Crises raciaisl Supostamente 0 hu»
manismo não perde seus direitos de nenhum modo
(estamos no Ocidente!), porém, nos entendamos:
(A' França não será uníversal se de1x°a se perder
no uníverso humano com seu sangue e seu espírito,
mas se Continua sendo ela mesma”.
Eis aonde chegou a burguesia francesa cinco
anos depois da derrota de Hitler.' E nísto, preci«
samente, Consiste seu castigo histórico: em estar
condenada a Voltar a ruminar, como por vício, 0
vômito de H1'tler.
Por que, afínaL 0 senhor Yves Florence esta~
va dando o último toque às novelas Camponesas,
aos “dramas da terra”, às histórias do mal olhado,
quando Hitler, com seu olho perverso e díferente

57
de um herói agreste e malévolo, anunciavaz “O fim
supremo do Estado~povo é conservar os elementos
originais da raça que, esparzindo a Cultura, criam
beleza e dignidade de uma humanidade superior”.
O senhor Yves Florence conhecía esta afirma~

ção.
E não teve cuidado de 1'ncomodar-se por isso.
Muito bem. Está em seu direit0.
Como nós estamos no nosso direito de nos

indignar.
Porque, a posteriori, há que se tomar partido e
dizer por que a burguesia está condenada a ser cada
dia mais insocia'vel, mais abertamente feroz, mais
despojada de pudor, mais sumariamente bárbara; é
uma lei implacáveL que toda a classe decadente se Vê
transformada no receptáculo no qual confluem t0›
das as águas sujas da história; é uma lei universal que
toda a Classe antes de desaparecer deve desonrapse
por completo, unilateralmente, e que é com a cabeça
escondída debalx'0 do esterco como as sociedades
moribundas entoam seu canto de Cisne.

58
5
Por certo, 0 expediente é abrumador.
Recorderse que, historicamente, foi sob a forma
do arquétipo feroz de um rude animal que, pelo
exercício elementar de sua vitalidade, derramowse 0
sangue e semeowse a morte, como revelou à sociedade
capitalísta a consciência e o espírito dos melhores.
Desde entã0, 0 animal se debilitou, seu pelo
escasseou, sua pele se danificou, porém, a ferocidade
permaneceu justamente mesclada com o sadismo.
Hitler tem as costas largas. Rosenberg tem as costas
largas. Também as costas largas tem ]u"nger e outros.
Os SS tem as costas largas.
Porém, isso:
udo neste mundo transpira crime: 0 jornal,
HT

a amurada e o rosto do homem”.

Isto é Baudelaire, e Hitler não havia nascidaI


Prova de que 0 mal Vem de mais longe.
E Isídore Ducasse, conde Lautre'amont!
A esse respeito já é tempo de dissipar a atmos~
fera de escândalo que foi criada em torno de Os
Cantos de Maldoror.

59
Monstruosidades.7 Aerólito literário? Delírio
de uma imaginação enferma? Delx'emos disso.l É
cômodo fazer assim.'
Averdade é que Lautréamont só teve que olhar
ao homem de ferro forjado pela socíedade Capitalista
para apreender o monstr0, ao monstro Cotídiano,
a seu herói.
Ninguém nega a Veracidade de Balzac.
Porém, cuidado: fazei com que Vautrin regresse
dos países quentes, dá~lhe as asas do arcanjo e os ca«
1afrios do paludismo, fazei com que o acompanhem
pelas ruas de Paris uma escolta de Vampiros uru'
guaios e de espantosas formigas, e tereis a Maldoror.
Diferentemente decorado, porém, se trata do
mesmo mundo, do mesmo homem dur0, inflexíveL
sem escrúpulos, amante Como ninguém da “carne
dos seus semelhantes”.
Para abrír um parêntese em rneu parêntese,
creio que chegará o día em que, com todos os ele~
mentos reunidos, com todas as fontes examínadas,
com todas as circunstâncias da obra elucidadas,
será possível dar uma interpretação materialista e
histórica aos Os Cantos de Maldoror que fará aparecer

60
um aspecto demasiado desconhecido desta furíosa
epopeia, o da implacável denuncia, de forma muíto
precisa, da sociedade, e isso não poderá escapar
ao mais agudo dos olhares, e, registremos, tudo se
passava em 1865 .
Antes e necessári0, clar0, limpar 0 caminho
r

dos comentários obscurantistas e metafísicos que


ofuscam a interpretação; voltar a dar atenção a algu-
mas estrofes para a qual pouco se atentaz aquela, por
exemplo, estranha entre todas as demais, da mina de
piolhos, na qual só aceitaremos ver, nem rnais e nem
menos, que a denuncia do poder maléfico do ouro
e da acumulação de riquezas; restituir 0 verdadeiro
lugar ao admirável episódio do ônibus, e Consentir
em encontrar muito basicamente 0 que está a1i,
a pintura alegórica de u1na sociedade aonde os
privilegiados, confortavelmente sentados, recusam
apertapse para dar lugar ao recém Chegado, e seja
dito de passagern quem recolhe ao menino dura›
mente rechaçado? O povo! Representado aqui pelo
recolhedor de 11x'0. O Catador de 11x'0 de Baudelairez
“Et sans prendre souci des mouchads, sés sujets
/ Epanche tout son Coeur em glorieux projet. / Il

61
prête des serments, dicte des lois sublimes, / Terrasse
lês méchantes, releve lês victimes.
Então, Certamente se compreenderá que o
inimigo do qual Lautréamont fez o inimigo, o
“criad0r” antropófago e embrutecedor, 0 sádico
“empoleirado em um trono composto por excre-
mentos humanos e ouro”, o hipócrita, o libertino,
o mandrião que “c0rne 0 pão dos demais” e que
de Vez em quando se encontra perdidamente beí
bado “como um morcego que chupou durante à
noite três toneladas de sangue”, se compreenderá
que não teremos que buscar este criador detrás
das nuvens, porque temos mais probabilidades
de encontráJo no diretório Desfossés e em algum
confortável conselho de administraçã0!
Mas, de1x'emos isso de lado.
Os moralistas não podem remediá-10.
A burguesia, como classe, está condenada, quei~
ra ela ou não, a arcar Com toda a barbárie da história,
Com as torturas da Idade Média e com a Inquisiçã0,
Com a Razão de Estado e com a beligerância, Com 0
racismo e Com 0 escravismo, em resumo, com tudo
aquilo contra o qual protestou, e em termos inolvi~

62
dáveis, na época em que, como classe ao ataque, ela
encarnava 0 progresso humano.
Os moralistas não podem remediar isso. Existe
uma lei de desumanização progressiva em Virtude
da qual na ordem do dia da burguesia só existe, de
agora em diante (e que só pode haver agora) violên›
cia, corrupção e barbárie.
Ia esquecendo o ódio, a mentíra e a arrogâncía.
Ia esquecendo o senhor Roger Cailloís.
No entanto, o senhor Caillois, a quem foi
outorgada para toda a eternidade a míssão de
ensinar a um século frouxo e desalínhado o rigor
do pensamento, a compostura do estilo, acaba de
experimentar uma grande cólera.
O motivo?
A grande traição da etnografia ocidental que,
após algum tempo, com um deplorável deterioro
do sentido de suas responsabilidades, age com en-
genhosidade para por em dúvida a superioridade
unilateral da civílização ocidental sobre as civiliza~
ções exóticas.
De repente, o senhor Caillois entra em cam›
panha.

63
É uma Virtude da Europa, suscitar desta manei-
ra heroísmos salvadores no momento mais crítico.
É imperdoável que não lembremos do senhor
Massis, cruzado em Defesa do Ocidente, por volta
de 1927.
Pretendíamos assegurar que uma melhor sorte
será reservada ao senhor Caíllois, quem, para defen«
der a mesma causa sagrada, transforma sua pena em
uma boa adaga de Toledo.
O que dízia o senhor Massis? Ele deplorava
que “o destino da cívilização do Ocidente, o deS›
tino do homem a secas”, estívesse hoje ameaçado;
que em todos os lugares se percebera o esforço “de
convocar nossas angústias, de discutír os títulos de
nossa cultura e de questionar o essencial de nossa
exístência”, e 0 senhor Massís jurava partír para a
guerra contra estes “desastrosos profetas”.
O senhor Caillois não identifica de maneira
díferente ao inimigo. São estes “intelectuais eu~
ropeus” quem, por uma “decepção e um rancor
excepcmnalmente agudos , se encarnlçam desde
- ,, .

há uns cinquenta anos em “renegar os diversos


ideaís de sua cultura” e quem, por este motívo,

64
mantém, “particularmente na Europa, um persis›
tente mal-estar”.
O senhor Caillois pretende por fim a este malr
estar e a esta inquietaçã0.
E de fato, nunca, desde 0 inglês da era Vitoria›
na, uma personagem passeou ao longo da história
com uma boa consciência mais serena e menos
sombreada pela dúvida.
Sua doutrina.7 Tem 0 mérito de ser sensíveL
Que 0 Ocidente inventou a ciência. Que
somente 0 Ocidente sabe pensar; que nos limites
do mundo ocidental começa o tenebroso reino do
pensamento primitivo, o qual, dominado pela noção
de participação, incapaz de lógica, é 0 protótipo
mesmo do falso pensamento.
Neste ponto nos sobressaltamos. Objetamos
ao senhor Caillois que a famosa lei da participação
inventada por Lévy›Bruhl foi repudiada pelo próprio
Lévy-Bruhl, quem ao final de sua Vida proclamou
diante do mundo havepse equivocado “ao querer
definir um Caráter próprio de mentalidade primitiva
Concebida como uma lógica”; que havia, pelo con›
trário, adquirido a convicção de que “estas mentes

65
não diferem em nada das nossas do ponto de viSta
lógico (...) Portanto, não suportam, Como nós, uma
contradição formal (...) Portanto, rechaçam, como
nós, por uma espécie de reflexo mental, 0 que é
logicamente impossível”.
Não vale a pena.' O senhor Caillois Considera a
retíficação nula e sem Valor. Para o senhor Caillois,
o Verdadeiro Lévy~Bruhl só pode ser 0 Lévy›Bruhl
no qual 0 primitivo faça extravagâncias.
Restam alguns fatos menores que resistem, a
saberz a invenção da aritmética e a geometria pelos
egípcios; 0 descobrimento da astronomia pelos
assírios; o nascimento da químíca entre os árabes;
a aparição do racionalismo no seio do Islã em uma
época na qual o pensamento ocídental tinha uma
aparência furiosamente pré~lógica. Porém, estes de›
talhes impertinentes o senhor Caillois os despacha
rapidamente Com severidade e se torna o princípio
formal de “que uma descoberta que não faz parte
de um conjunto” não e', precisamente, senão um
detalhe, ou seja, uma bagatela sem importância.
É óbvio que impulsionado por isso 0 senhor
Caillois não se detém por nada em tão belo camínho.

66
Depois de haver se Vinculado à Ciência, eí-lo
reivindicando a moraL
Tenham em conta! O senhor Cailloís nunca
comeu a ninguém.' O senhor Caillois nunca pensou
em acabar com a Vida de um inválido.I Ao senhor
Caillois nunca passou pela Cabeça encurtar os dias
de vida de seus Velhos pais.| E bem, eis aquí a supe~
riorídade do Ocidentez “Esta disciplina da Vida que
se esforça por conseguir que a pessoa seja suficien~
temente respeitada para que não se torne normal
suprimir aos anciãos e inválidos”.
A Conclusão se impõe: diante dos antropófagos,
dos que esquartejam e enfeitíçam crianças, a Eur0~
pa e o Ocidente encarnam 0 respeito da dignidade
humana.
No entant0, de1x'emos esta bobagem de lado e
ínsístamos, para que nosso pensamento não se extra~
vie da Argélia, Marrocos e outros lugares nos quais,
no momento em que escrevo 1'sto, tantos Valentes
filhos do Ocidente apliquem a seus irmãos inferi0›
res da África, Com tantos incansáveis cuidados, no
claroescuro dos calabouços, estes autêntícos sinais
de respeito à dignidade humana que se chamam em

67
termos técnícos “a banheíra”, “o choque elétrico”,
“o gargalo de garrafa”.
Insistamosz o senhor Caillois não chegou,
contudo, ao final de sua história. Depois da supe.
rioridade científica e a superioridade moral, vem a
superiorídade religiosa.
Neste pont0, 0 senhor Caillois não toma pret
cauções para não se delx°ar enganar pelo Vão prestígio
do Oriente. As'ia quiçá seja a mãe dos deuses. Em
todo o caso, a Europa é a dona dos rituais. E vejam
a maravílhaz de um 1ado, fora da Europa, cerimônias
do tipo vodu com tudo 0 que implicam de “mas~
carada burlesca, de frenesi coletív0, de alcoolismo
desalinhado, de tosca exploração de um íngênuo
ferv0r”, e de outro lado do lado europeu «, estes va'
lores autênticos que já celebrava Chateaubriand em
O Gênio do Cristianism0: “Os Clogmas e os mistérios
da religião católica, sua liturgia, o simbolismo dos
seus escultores e a glóría do cantochã0”.
Finalmente, um último motivo de satisfaçãa
Gobineau dizia: “Só há história branca”. O senhor
Caillois, por sua vez, constataz “Só há etnografia
» ' . .
branca . E o Oc1dente quem faz a etnograña dos

68
outros, e não os Outros que fazem a etnografia do
Ocidente.
Intenso motivo de ju'bilo, não é verdade?
E nem por um mínuto passa pela Cabeça do
senhor Caillois que teria Valido mais, olhando bem,
não haver tido a necessidade de abrir os museus
pelo qual se jacta; que a Europa teria feito melhor
tolerando ao seu lado as civilizações extrareuropeíaa
realmente Vitais, dínâmicas e prósperas, ínteiras
e não mutíladas; que havia sido melhor delx'á~1as
desenvolverrse e rea11'zar~se, que dar~nos para admirar,
devidamente etiquetados, seus membros dispersos,
seus membros mortos; que, ao final de contas, o mu-
seu não é nada por sí mesmo; que não diz nada, que
não pode dizer nada, ali aonde a plácida satisfação
de si mesmo apodrece os olhos, ali aonde 0 oculto
desprezo pelos demais seca os corações, ali aonde o
racísm0, confessado ou não, acaba com a simpatia;
que não quer dizer nada se não está destinado a
alimentar as delícias do amor próprio; que, depois
de tud0, 0 honesto contemporâneo de São Luis, que
combatia 0 Islã mas o respeítava, tinha maiores pos›
sibilidades de conhecêrlo que nós contemporâneos,

69
que ainda que envernízados de literatura etnográfica
0 desprezamos.
Nã0, na balança do Conheciment0, 0 peso de
todos os museus do mundo nunca pesará tanto
Como uma cíntilação de simpatia humana.
E a Conclusão de tudo isto?
Sejamos justosz 0 senhor Cailloís é moderado.
Havendo estabelecido a superiorídade do
Ocidente em todos os domínios, havendo assím
restabelecido uma sã e preciosa hierarquia, 0
senhor Cailloís brinda uma imediata prova des»
ta superíoridade e Conclui afirmando que não
exterminará a ninguém. Com ele os negros estâo
seguros de não serem linchados, os judeus de não
alimentarem novas fogueiras. Porém, tenhamos
cuidado; é importante que se Compreenda bem
que esta tolerância, negros, judeus, australianos, a
devem, não a seus méritos respectívamente, senão
a magnanimidade do senhor Caillois; não a um
designo da Ciêncía, que não saberia senão oferecer
verdades efêmeras, mas a um decreto da consciên›
Cia do senhor Caillois, que só podería ser absoluta;
que esta tolerância não está condicionada, garanti~

70
da por ningué1n, senão pelo que 0 senhor Caillois
deve a si mesmo.
Quem sabe a Consciência determine um dia li-
berar a rota da humanidade destes Veículos pesados,
de estes impedimentos que constituem as culturas
atrasadas e os povos residuais, porém estamos certos
de que, no instante fataL a consciência do senhor
Caillois, que de Consciência limpa se transforma em
seguida em bela consciência, deterá o braço assassino
e pronuncíará o saltuus sis.
Isto nos propicia a suculenta nota a seguirz
u
Para mim, a questão da igualdade das raças,
dos povos ou das Culturas, tem unicamente sentido
se trata~se de uma igualdade de direit0, não de uma
igualdade de fat0. Em sentido idêntic0, um Cego, um
mutilado, um enfermo, um idiota, um ignorante,
um pobre (não se poderia ser mais considerável Com
os não ocidentais) não são respectivamente iguais,
no sentido material do term0, a um homem forte,
Clarividente, complet0, saudáveL inteligente, culti~
vado ou ric0. Este último tem maiores Capacidades
que, ademais, não lhe Outorgam mais direitos mas
sim mais deveres (...). Igualmente, na atualidade exis~

71
tem diferenças de níVeL de potência e cle valor entre
as diferentes culturas, sejam suas causas biológicas
ou históricas. Estas acarretam uma desigualdade
de fat0. Não justificam Cle maneira alguma uma
desigualdade de direítos a favor dos povos Chamados
superiores, como desejaria o racismo. Conferem a
eles sobretudo cargas suplementares e uma respon
sabilidade acrescida”.
Responsabilidade acrescida? QuaL então,
senão a de dirigir 0 mundo?
Carga acrescida? QuaL então, senão a carga
do mundo.7
E Cailloisztlas se afiança filantropicamente no
pó e coloca sobre seus ombros robustos a ínevitável
carga do homem branco.
Vocês me desculparão por ter falado tão prohx'a›
mente do senhor Caillois. Não é que eu superestime
de modo algum o Valor intrínseco de sua “filosofia”
(vocês puderam julgar a seriedade de um pensamento
que, reivindicando um espírito r1°goroso, cede muito
complacentemente aos preconceitos e gagueja 0 lugar
comum com tal Voluptuosidade), porém esta “filo~
n . o , . o n I
sofla mereCIa ser assmalada porque e 31gn1flcatlva.

72
De quê se trata?
De que jamais esteve o Ocidente - no momen~
to mesmo em que se excita como nunca antes com a
palavra humanismo - tão distante de poder assumir
as exigências de um °Cverdadeiro humanism0”, de
poder Viver 0 humanismo Verdadeiro, 0 humanismo
na medida do mund0.

6
Valores inventados antes pela burguesia e que
esta lançou aos quatro Ventos: um e o do homem
r CC 13

e 0 humanismo, e Vimos no que se converteu; o


r CC ~ 7,
outro e o da naçao .

É um fato: a nação e um fenômeno bur~


I

guês... Porém, precisamente se eu tiro os olhos do


“h0mem” para olhar as “nações”, constato que, toda›
Via aqui 0 perigo é grande; que a empresa colonial é
para o mundo moderno o que 0 imperialismo roma~
no foi para o mundo ant1°g0z precursor do “desastre”
e da “catástrofe”. Os índios massacrados, o mundo
muçulmano esvaziado de si mesm0, 0 mundo chinês
desonrado e desnaturado durante todo um século; 0

73
mundo negro desacred1'tado;vozes imensas apagadas
para sempre; lugares atirados ao Vent0; todo este
serviço mal feit0, todo este desperdíci0, a humani.
dade reduzida a um monólogo, e Vocês crêem que
tudo isto não se paga? A Verdade é que nesta política
“está inscrita a perdição da própria Europa”, e que a
Europa, senão tomar precauções perecerá pelo Vazio
que Criou ao redor de si.
Acreditou~se que somente se abatiam índios
ou hindus ou melanésios ou afrícanos. De fato
se derrubaram uma após outra, as muralhas maís
aquém das quais podia desenvolvepse livremente a
civilização europeia.
Eis, tudo que há de falacioso nos paralelismos
históricos e particularmente do que Vou esboçar na
sequência. No entanto, me permitam Voltar aqui
a copiar uma página de Quinet pela porção nada
desprezível de Verdade que Contém e sobre a qual
Vale a pena meditan
Eis aquiz
“Nos perguntamos por que a barbárie irr0m›
peu de repente na Civilízação antiga. Creio poder
responder a isto. E surpreendente que uma Causa

74
nço sensível não salte à vista de todos. O sistema
da civilização antiga se compunha de um certo

número de nacionalidades, de pátrias, que, embo›


ra parecessem inimigas, e apesar de se ignorarem,
ge protegiam, se sustentavam, cuidavam~se umas

as 0utras. Quando ao crescer, 0 império romano


empreendeu a Conquista e a destruição deste corpo
de nações, os sofistas deslumbrados acreditaram Ver
no fim deste Caminho a humanidade triunfante em
Roma. Falou~se da unidade do espírito human0, isto
foi só um sonho. De fat0, essas nacionalidades eram
ao mesmo tempo avenidas que protegíam a própria
Roma (...) Então, quando Roma, nesta pretendida
marcha triunfal em direção à civilização antiga,
destruiu, uma após outra, Cartago, Egit0, Grécia,
]udeia, Pérsia, Dácia, as Gáliaby resultou que ela
mesma havia devorado os diques que a protegiam
do oceano humano sob o qual deveria perecer. O
magnânimo César, ao esnlagar a Gá1ia, a única Coisa
que fez foi abrir caminho aos germanos. Tantas so~
ciedades, tantas línguas apagadas, Cidades, direitos,
lugares reduzidos a nada Criaram o Vazio em torno
de Roma, e ali onde os bárbaros não Chegavam, a

75
barbáríe nascia por si mesma. Os gauleses destruídos
se Convertiam em mílícias revoltosas. Assim, a queda
violenta, a extirpação progressiva de Cada Cidade, ge-
rou a queda da cívilização antiga. Este edifício social
estava sustentado pelas nacíonalidades ao modo de
Colunas diferentes do mármore da obstinação.
Quando se destruiu, com o aplauso dos sábíos
da época, cada uma destas colunas V1'Vas, 0 edifício
veio aba1x'o e agora os sábios de nossos dias procuram
entender como puderam criar~se em um instante
ruínas tão grandes.
'))

E então, me pergunto= que outra Coisa fez a Eu~


ropa burguesa? Ela socavou as Civílízações, destruiu
as pátrías, arruinou as nacíonalidades, extirpou “a
raiz da diversidade”. Já não há mais dique. Já não
há mais avenida. Chegou a hora do bárbaro. Do
bárbaro moderno. A Ahora estadunidense. Violência,
desmesura, desperdícío, mercantílismo, exagero,
gregarísmo, a estupidez, a vulgaridade, a desordem.
Em 1913, Page escrevia a Wilsom
“O porvír do mundo é nosso. O que vamos
fazer agora quando em breve cair em nossas mãos a
dominação do mund0?”

76
Em 1914, lhe diziaz
“Que faremos em breve desta Inglaterra e deste
impéri0, quando as forças econômicas puserem em
nossas mãos a direção da raça?”
Este impéri0... E os 0utros...
E de fat0, não veem com que ostentação estes
senhores acabam de desfraldar o estandarte do
anticolonialisma7
“Ajuda para os países deserdados”, disse Tru~
man. “]á se foi o tempo do Velho Colonialism0”. Isso
também disse Truman.
Ouçam que as grandes finanças estadunidenses
julgam que Chegou a hora de saquear todas as co~
lônias do mundo. Então, querídos amigos, atenção
para este fato.'
Sei que muitos entre vocês decepcionados com
a Europa, por conta do grande asco que não esco~
lheram presenciar, se voltam eu sei, em pequeno
número para os Estados Unidos, e se acostumam
a Ver neste país a um possível libertador.
“Uma pechincha.'” Pensam os que são dessa
opinião.

77
“Os buldózeresl As inversões massivas de cap¡.
tais.' As rodovias.' Os portos!
- Porém, e o racismo estadunidense?!
- Bah.' O racismo europeu nas Colônias nos
tornou aguerridos!
E hei~nos aqui prontos para correr 0 grande
rísco 1'anque.
Então, mais uma Vez, cuídadal
A única dominação da qual já não se escapa
mais é da estadunidense. Quero dizer da única que
não se escapa completamente ileso.
Posto que falam de fábricas e índústrias por aca~
so não Vêem, histérica, em pleno coração de nossos
bosques e nossas selvas, cuspindo seu gás carbônic0,
a fábrica formidáveL porém servil? Não vêem a má~
quina nunca Vista, a máquína de esmagar, de moer
e de embrutecer aos povos? Não Vêem a prodigiosa
mecanização (do homem!), a gigantesca Violação do
que nossa humanidade de espolíados soube presep
var de íntimo, de intact0, de não decompost0?
Eis que o perigo é imenso...
De maneira que se a Europa ocidental não
toma ela mesma a íniciativa de uma política das

78
“naci0nalidades”, a iniciativa de uma política nova
fundada no respeito aos povos e às culturas, na Áfrll
ca, na Oceania, em Madagascar, ou seja, nas portas
da África do SuL nas Antilhas, nas portas do Estados
Unídos; se a Europa, afirm0, não galvaniza as cultu›
ras moribundas ou não suscita novas culturas; se não
se Converte em estímulos de nações e civilizações,
dito ísto sem ter em Conta a admirável resistência dos
povos Coloníais, simbolizados atualmente de forma
clamorosa pelo Vietnã, porém também pela Áfríca
da República Democrática da Argélia, a Europa terá
perdido ela própria sua última “oportunidade” e se
cobrirá com suas próprias mãos Com o lençol das
trevas mortais.
O que quer dizer, em resumo, que a salvação da
Europa não reside em uma revolução dos métodos,
mas na “Revolução”; que substituirá, enquanto espe~
ramos uma sociedade sem classes, a férrea tirania de
uma burguesia desumanizada pela preponderância
da única classe que tem uma missão universal, p0r~
que sofre em sua própria Carne todos os males da
história, todos os males universais: 0 proletariado.

79
u
b
^.';l›.4
._~
\

Composto com a fonte


Goudy, no ateliê do Estúdío
Semprelo, na Ilha de Santa
Catarína, para a editora Le'
tras Contemporâneas, em
fevereíro de ZOZO.
Aimé Fcrnand David Césnire nasccu
em Bal'5s.*e-P0int, na Martin1'ca, eln ZÓ dc
junho de 1913, e morreu em Fort~de' Fran~
Ce, também na Martínica, em 17 de abril
de 2008. Reconhecido Como um dos mais
importantes poetas da língua francesa do
século ZO, foi muito admirado pelos sup
realistas André Breton e Benjamin Péret,
que participaram em edições de seus livros
de poemas e foram divulgadores de sua
0bra.
Césaíre escreveu peças de teatro,
dedicouase à militância política como um
homem de esquerda, tendo sído deputado
na Assembleia Nacional Francesa, eleito
pela Colónia ultramarina da Martinica, e
presidente da Câmara Fort~deaFrance (fun›
ção análoga a de prefeito, no Brasil, entre
1945 e ZOOI).
Césaire foi, juntalnente com o senea
galês Léopold Sédar Senghor, 0 Criador do
Conceito de “negritude”, e sua obra é for~
temente identificada com suas heranças
Culturais africanas.
Publicou os livros de poemas Cahier
d,un Tetowm au pays natal (1939), Les armes
miraculeuses (1946), Soleil Cou coupé (1947),
Corps perdu (C0m desenhos de Picasso,
1950), Fewements (1960), Cadastre (1961),
Moi laminaire (1982) e La poésie (1994).
No Brasil, a editora Letras Contenv
porâneas publicou uma Coletânea de seus
poemas, gentilmente Cedido por Césaire a
Edson Ubaldo, que 0 traduziu, juntamery
te Com 0 poeta Péricles Prade.

an 11Cll \. C
Aimé Césaire

DISCURSO SOBRE
O COLONIALISMO
I
Espermnos que a leltura deâtc 1i~
st
.

“-**m~"\'ro possa contribuir para a construcãu


e Vurma consciência Coletiva de que,
\.

neste moment0, é necessário prebtar a


mais ampla solídariedade ao povo ha1>
tian0, exigindo dos governos que en~
viem àquele País mais médicos, enfep
meiros, professores, engenheiros e, no
lugar de tropas de ocupação, alimentos, \
medicamentos, materiais de constru~ ,â)".
_ " S f
Cao, roupas e todo 0 afeto de um sonho ,-.

1'ntenso, um mio vívido de amor e de


11 Á
CSPCITIHÇJ .

dol prcfácio de Cláudio Antonio Ribeiro qí


À

= L. =1?a-55_-?I=I.,e-'U"Í"57-n

" 78856 6205_7o_

Você também pode gostar