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SEMIÓTICA NA HERMENÉUTICA E

INTERPRETnÁ0 CONSTITUCIONAL

Clarice von Oertzen de Araújot

A consciéncia é como o Supremo Tribunal, que pretende


enquadrar suas decisóes de acordo com os princípios da ¿ej.
Mas guando decidiu sobre um ponto, sua decisáo torna-se lei,
tenham os mais sábios conselhos sustentado a justeza da
decisáo, ou tido. Pois a lei atual consiste naquilo que os
membros do Tribuna/ sustentará°. (Peircp, CP 2.153).2

O presente artigo pretende elucidar em que medida os


métodos de pesquisa decorrentes da semiótica e do pragmati-
cismo propostos pelo filósofo e matemático norte americano
Charles Sanders Peirce podem contribuir para a investigaqáo
das questóes ligadas á hermenéutica e á interpretaqáo do texto
constitucional. Importar salientar ainda que para a finalidade
pretendida examinamos os estudos de direito constitucional
propostos por J. J. Gomes Canotilho e Konrad Hesse, ao tratarem
da teoria e da metódica constitucional.

1.Professora no Programa de Estudos Pós Graduados em Direito da Pontifícia


Universidade Católica de Sáo Paulo — PUC/SP; e-mail: clavon@terra.com.br.
2.Tradugáo colhida em SILVEIRA. Lauro Frederico Barbosa da. Curso de Semi-
ótica Geral. Sáo Paulo, Quartier Latin, 2007, p. 216. A nomenclatura "CP" refere-
se aos "Collected Papers of Charles Sanclers Peirce". Charles Hartshorne, Paul
Weiss e Arthur Burks (org.), Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press,
1931-35 e 1958; 8 volumes. A numeragáo anterior ao ponto refere-se ao livro, e a
posterior ao parágrafo. Assim, CP 2.153 refere-se ao volume 2, parágrafo 153.

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Algumas premissas da interpretacao constitucional, reite-


radamente apontadas pela doutrina constitucionalista, sao im-
portantes quando se leva em conta a investigacao semiotica,
especialmente as seguintes:
a) as normas constitucionais nao sao os enunciados da
constituicao. A formulacao linguistica constitui o limite
externo para quaisquer variacOes de sentido. 0 conteu-
do vinculante da norma constitucional é o conteudo
semantic° de seus enunciados3.
b) as normas constitucionais sao dotadas de autoprimazia
normativa, o que em termos pragmaticos significa que
sao portadoras de superior valor normativo, tanto no
aspecto material como no formal";
c) a definicao do significado das normas constitucionais
ocorre diante de questhes atuais, sobre e diante das
quais as normas passam por um procedimento de
concrecao.
d) os textos constitucionais nao sao "sistemas fechados",
mas devem ser considerados na condicao de conjuntos
estruturantes/estruturados abertos a evolucao e ao de-
senvolvimento5;
e) os preceitos constitucionais sao modos de organizacao
de uma realidade presente mas corn dimensao prospec-
tiva (isto é, dirigida ao futuro)6.

3. CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituted°.


a
Coimbra, Livraria Almedina, 2003, 7 a edicao, 4 reimpressao, pps. 1201, 1209,
1215, 1218.
4. CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituted°.
a
Coimbra, Livraria Almedina, 2003, 7 a edicao, 4 reimpressao, p. 1147.
5. CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constituciona/ e Teoria da Constituted°.
a
Coimbra, Livraria Almedina, 2003, 7 a edicao, 4 reimpressdo , p. 1158.
6. CANOTILHO. J. J. Constituted° dirigente e vincu/acd,o do legislador: contri-
buto para a compreensdo das normas constitucionais programciticas. Coimbra,
Coimbra Editora Ltda., 1994, p. 192.

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Convém iniciarmos o artigo estabelecendo diversos con-


ceitos básicos para a compreensáo dos leitores. O que é a semi-
ótica? Qual é o seu objeto? Qual é a sua finalidade?
A semiótica é a ciéncia dos signos, a ciéncia que estuda os
fenómenos da representagáo. Como ciéncia, estuda náo somen-
te as representagóes verbais, ou seja, as representagóes vertidas
em palavras, mas sistematiza rigorosamente qualquer tipo de
representagáo, assim entendida a agá() ou modo de todas as
modalidades de signos. O signo é uma unidade cuja agáo, a se-
miose, constitui o próprio objeto da semiótica'.

7. Um primeiro aspecto que deve ser esclarecido em relagáo á adogáo da se-


miótica peirceana diz respeito ás implicagóes resultantes das investigagóes
conduzidas segundo essa proposta. Há urna outra vertente da semiótica que
investiga a natureza dos fenómenos de linguagem. Trata-se da semiologia,
fundada a partir da obra "Curso de Linguística Gerar do linguista suígo Fer-
dinand de Saussure. Na década de 50 o advento da grande onda estruturalis-
ta levou franceses, búlgaros e italianos a propugnar a criagáo da semiologia.
O movimento contou com a participagáo de inúmeros nomes conhecidos,
dentre os quais: Roland Barthes, Umberto Eco, Julia Kristeva, Louis Hjelms-
lev, Tzvetan Todorov e Algirdas Julien Greimas. A semiologia propós a trans-
posigáo dos modelos e nogóes da linguistica para os demais sistemas de signos,
trabalhando, portanto, com conceitos duais ou binários, tais como significan-
te/significado, denotagáo/conotagáo, língua/fala, etc. O módelo proposto por
Charles Sanders Peirce adota urna série de tríades, decorrentes de suas cate-
gorjas cenopitagóricas tais como primeiridade/segundidade/terceiridade,
signo/objeto/interpretante, ícone/índice/símbolo, etc. Posteriormente, a riva-
lidade entre a utilizagáo dos termos "semiótica" e "semiología" foi oficialmen-
te encerrada pela Associagáo Internacional de Semiótica em 1969. Por inicia-
tiva de Roman Jakobson, decidiu-se adotar "semiótica" como termo geral do
território de investigagóes nas tradigóes da semiologia e da semiótica geral. A
teoria geral do direito e a própria filosofia do direito, nos países cujos ordena-
mentos jurídicos derivam de urna tradigáo continental adotam a semiótica
greimasiana, de natureza estruturalista. Somente a partir de 1987 iniciou-se
um movimento de reuniáo destas perspectivas, por iniciativa de Roberta
Kevelson, que antes de sua morte prematura, promoveu diversas "mesas re-
dondas" sobre Semiótica Legal, sob os auspícios do "The Center for Semiotic
Research in Law, Government and Economics". Estes fóruns abertos geraram
publicagóes organizadas por Kevelson, que procurava reunir as mais diversas
perspectivas metodológicas e colocar em contato os pesquisadores da área de
semiótica legal, fossem eles filiados ao modelo greimasiano ou ao peirceano.

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Para a compreensao desta analise, citemos uma classica


concepcao do signo, proposta pelo precursor da semiotica, o
filosofo, logic° e matematico norte americano Charles Sanders
Peirce:
"Um signo ou representamen é aquilo que, sob certo aspecto
ou modo, representa algo para alguem. Dirige-se a alguem,
isto 6, cria, na mente dessa pessoa, urn signo equivalente, ou
talvez urn signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado
denomino interpret ante do primeiro signo. 0 signo represen-
ta esse objeto nao em todos os seus aspectos, mas corn refe-
rencia a urn tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fun-
damento do representetmen. (CP 2.228)8

As palavras sao signos e sao hegemonicas em sua poten-


cialidade de representar 9 . Mas as palavras constituem tao so-
mente uma parcela do universo de uma das especies de signos:
os simbolos. Ha outras especies de signos nao verbais, denomi-
nados icones e indices. 0 tipo de relacao existente entre o
signo e o seu objeto e o que Peirce denomina fundamento do
signo. A modalidade da relacao ou o fundamento é o que de-
termina a especie do signo, que pode apresentar-se de tres
formas, a saber:
a)icones: signos que possuem alguma similaridade corn o
objeto que representam. Exemplos: fotografias, estatuas,
esculturas.
b) indices: signos que mantem alguma relacao existencial
corn o objeto que representam. Exemplos: fumaca indi-

8. A traducao

esta em Peirce, Charles Sanders. Semiotica. Sao Paulo, Perspec-
tiva, edicao, 1999, p. 46•
9. "De fato, a faculdade simbolica no homem atinge a sua realizacao suprema
na linguagem, que é a expressao simbolica por excelencia; todos os outros
sistemas de comunicacao, graficos, gestuais, visuais, etc., derivam dela e a
supOem". BENVENISTE, Emile. Problemas de Linguistica Geral I. Traducao
de Maria da Gloria Novak e Maria Luisa Neri; revisao do Prof. Isaac Nicolau
Salum - 4 L edicao. Capinas, SP: Pontes, 1995. Editora da Universidade Esta-
dual de Campinas, p. 30.

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cando fogo, cháo molhando denotando chuva; febre


denunciando urna infecqáo.
c) símbolos: signos que possuem reln6es convencionais
com os objetos que denotam. O exemplo mais comum e
esclarecedor é a palavra.
Em se tratando de hermenéutica e interpretagáo constitu-
cional, convém salientar que o interpretante náo é urna pessoa
(ou intérprete, corno erroneamente alguns autores traduzem)
ou um dado pronto e acabado, mas sim um processo relacional
(cognitivo) consubstanciado na ideia gerada pela associagáo
entre o objeto e o signo. O interpretante é urna qualidade, urna
característica substancial do signo, que em alguma dimensáo
reflete o objeto em sua especificidade.
Comentando esta diferenga, afirma Lúcia Santaella que o
intérprete e o ato interpretativo náo precisam ser necessariamen-
te humanos, mas podem refletir-se em processos cibernéticos ou
celulares, e, portanto, náo se confundem com o interpretantel°.
Vale conferir, para a completa ilustragáo do processo rela-
cional que constitui o interpretante, as palavras de Lucrécia
D'Alessio Ferrara:
"Desse modo, o interpretante náo é um dado, mas um pro-
cesso relacional pelo qual os signos sáo assimilados, utiliza-
dos, inventados e superados num processo dinámico de au-
togeragáo".
"O interpretante náo é um simples signo, mas um signo me-
lhor elaborado, um supersigno que reorganiza e inventa o
repertório a partir da experiéncia de atribuigáo do significa-
do. O interpretante náo é certamente o intérprete, é urna
operagáo ativa na medida em que faz um objeto tornar-se
signo e atuando nesta operagáo se torna ele mesmo interpre-
tante. A representagáo é urna operagáo semiótica, é o pro-
cesso cognoscente pelo qual o sujeito possui e produz signos,

10. SANTAELLA, Lucia. A teoria geral dos signos. Semiose e Autogeragdo. Sáo
Paulo, Ática, 1995 p. 86.
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sua unica possibilidade de mediacao corn a realidade, a 6ni-


ca maneira que possui de conhecer fatos concretos, a reali-
dade material e de conviver corn ela" ".

No mesmo sentido, Decio Pignatari:


"Embora a expressao peirceana interpretant seja usualmen-
te traduzida por Interprete' , convem esclarecer que inter-
pretante nao designa tao-somente o interprete ou usuario do
signo, mas antes uma especie de Supersigno ou Superc6digo,
individual ou coletivo, que reelabora constantemente o seu
repertorio de signos em confronto corn a experiencia, confe-
rindo aos signos, em ultima instancia, o seu significado real,
pratico. 0 interpretante, assim, nao é uma `coisa', mas antes
urn processo relacional pelo qual os signos sao absorvidos,
utilizados e criados"".

Para Peirce, "o interpretante nao é outra coisa senao uma


outra representacao" (CP 1.339). "Todo prop6sito de um Signo
aquele de que ele deva ser interpretado ern outro signo" (CF
8.191). Sendo o interpretante gerado pelo prOprio signo, lhe
fornece somente aquele aspecto de corresponclencia corn o ob-
jeto, estando fora os demais aspectos que o signo nao denotou.
Fica claro que estes casos dizem respeito ao signo simbolico. No
caso do signo indicial o objeto nao se constitui necessariamente
como algo diverso do signo. Ele é considerado signo existencial-
mente conectado ao objeto cuja restricao é a de nao poder ser
seu próprio interpretante.
0 modo de representacao do objeto no signo influencia a
natureza do interpretante. 0 interpretante ern nivel de primeiri-
dade (interpretante imediato) desencadeia na mente que inter-
preta somente a captacao sensivel de uma qualidade do objeto,
cuja representacao 6 urn signo. 0 interpretante ern nivel de

11. FERRARA, Lucrecia D'Alessio. A estrategia dos signos. Editora Perspec-


tiva, Sao Paulo, 1.981, p. 57.
12. PIGNATARI. Decio. Informagdo. Lingua gem. Comunicaceio. Cotia, SP,
Atelie Editorial, 2004, p.32 e ss.

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secundidade (interpretante dinámico) desencadeia urna resposta


ativa, o objeto ao ser representado pelo signo motiva urna reagáo
da mente que interpreta. O interpretante em nivel de terceirida-
de (interpretante final) desencadeia na mente que interpreta o
reconhecimento das ordenagóes estabelecidas pelo uso geral e
que ganham forga de leis que identificam convengóes e hábitos.
Desta maneira, cumpre-nos observar que a compreensáo
da vitalidade da linguagem deve encampar estas trés dimensóes
da semiose em sua autogeragáo. O interpretante imediato em seu
caráter de potencialidade náo configurada e o interpretante final

interpretantes emocional/energético/lógico e iniediato/dinámico/


final que irradia da semiose dos enunciados constitucionais. Os
intérpretes estáo compreendidos entre os cidadáos e as institui-
góes sociais e estatais. A realizagáo constitucional é o processo de
semiose, de interpretagáo do texto constitucional, que se opera
mediante a atividade dos diversos órgáos constitucionais e o
'pluralismo de intérpretes' constituído pelos cidadáos, os quais,
mediata ou imediatamente, conformam suas condutas segundo
aqueles dispositivos". Neste sentido, confirma-se que o interpre-
tante final de um preceito se caracteriza como urna norma de
decisáo para a solugáo dos casos jurídicos constitucionaism.

13.CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituigéio.


Coimbra, Livraria Almedina, 2003, 7a edigáo, 42 reimpressáo , p. 1200.
14.Sobre os interpretantes das normas jurídicas confira-se ARAUJO, Clarice
von Ortzen de. Semiótica do Direito. Sáo Paulo, Quartier Latin, 2007, pps. 92
a 138.

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0 corpus constitucional: um supersigno


Uma peculiaridade dos textos constitucionais é o seu pa-
drao de vinculacao. Nao poderiamos deixar de examinar a
questao tao conturbada da determinacao do fundamento de uma
constituicao. Tradicionalmente, a ciencia juridica trata a vali-
dade como urn conceito relacional. A major expressao desta
concepcao foi formulada por Hans Kelsen, em sua conhecida
obra, "Teoria Pura do Direito". Elaborou a validade como urn
padrao construtor de hierarquias, na medida em que o funda-
mento de validade de uma norma juridica depende da obedien-
cia aos criterios de competencia e procedimento previamente
estabelecidos por normas anteriores cronologicamente e supe-
riores em hierarquia.
Kelsen tambem estabeleceu que a unidade do sistema
normativo como resultado da existencia de uma unica norma
fundamental, pressuposta racionalmente, em contraste corn as
demais normas, postas. 0 relato da norma fundamental seria o
comando segundo o qual "devemos nos conduzir segundo os
mandamentos da constituigdo".
Uma constituicao se estabelece como uma norma funda-
mental positiva. Decorre de sua natureza inaugural a impossi-
bilidade em conceber o padrao de validade da lei constitucional
como relacional retrospectivo, uma vez que cada nova consti-
tuicao justamente derroga a anterior, estabelecendo a impera-
tividade de uma nova ordem vigente. Assim, afirma Tercio
Sampaio Ferraz Jr. que as constituicoes sao normas origem re-
conhecidas segundo o padrao de legitimidade:
"A norma origem e apenas reconhecidamente efetiva, isso é,
reune condicOes de ser obedecida nao pela forca ou violencia,
mas nos termos das regras do sistema que definem e permi-
tern o controle da pr6pria efetividade no seu sentido juridico.
(...) ConstituicOes, definidas (calibracao) como normas fun-
damentais, sat) normas origem. (...) Tendo em vista a aplica-
gdo dogrnatica de que constituicoes sejam concebidas como
principio de validade das demais normas de um sistema,

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deve-se dizer que a legitimidade constitucional é a pedra


fundamental da validade do sistema" 15.

A natureza imperativa da ordem jurídica vigente decorre


de tuna convengóes sociais. Os símbolos sáo signos que repre-
sentam os objetos em virtude de urna convengáo. O reconheci-
mento da associagáo simbólica que remete do signo ao objeto é
o efeito pretendido na qualidade de seu interprotante. Nas de-
mocracias, o caráter convencional da imperatividade jurídica
reside justamente no teor do correlato princípio democrático, o
qual prescreve que todo o poder emana do poyo, que o exerce
por meio de representantes eleitos'6. Ou seja, o próprio Direito
Objetivo ou vigente resulta de urna representagáo! O respeito
ás eleigóes legitima e confere caráter imperativo para as leis
produzidas e aprovadas pelo Poder Constituinte. A convengáo
pretende conseguir dos destinatários urna obediéncia voluntária
e consciente. O que náo retira do Direito o seu caráter coerciti-
vo e monológico. A coercibilidade é outra delegagáo que o poyo
faz ao Estado e que representa Luna das qualidádes essenciais
do Estado Moderno". O monopólio do exercício da forga é outra
convengáo que marca as leis jurídicas como signos simbólicos.
Este aspecto monológico é o seu interpretante energético (es-
forgos físicos e mentais envolvidos na manifestagáo dos efeitos
de um signo) genuinamente jurídico, que náo encontrarnos nem
nos signos morais e nem nos éticos. Em sua dinámica monoló-
gica as normas jurídicas instalam relagóes hierárquicas entre o
emissor de urna norma jurídica e seus destinatários. A manifes-
tagáo da forga bruta contra os cidadáos, salvo excegóes expres-
sas, somente pode ser exercida guando determinada pelo Poder

15. FERRAZ JUNIOR. Tercio Sampaio. Constituicáo de 1988: legitimidade,


vigéncia e eficácia , supremacia. Tercio Sampaio Ferraz JÚnior, Maria Helena
Diniz, Ritinha Alzira Stevenson Georgakilas. Paulo, Atlas, 1989, p. 22.
16.Artigo 1, Parágrafo único da Constituigáo Federal: "Todo o poder emana
do poyo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituigáo".
17. CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituigáo.
Coimbra, Livraria Almedina, 2003, 7a edigáo, 4a reimpressáo , p. 89.

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Judiciario. Ha ainda uma terceira convencao deflagrada pelos


signos jurldicos em sua condicao de simbolos: é a proibicao da
ignorancia. A ninguem e permitido desobedecer a lei alegando
que nao a conhece. Sao convencOes operacionais para o exerci-
cio da coercibilidade. A interpretacao dos signos juridicos passa,
necessariamente, por tais associacoes ou convencOes, compro-
vando o carater simbolico das leis.
Como sistema, o direito garante a sua propria imperativi-
dade numa relacao de imputacao que é simultaneamente im-
posta e aceita pelos destinatarios, na medida em que os juris-
discionados sao tanto os receptores como a fonte do poder ou
da autoridade do editor normativo.
Neste sentido, afirma Goffredo Telles JUnior:
"A Constituicao 6, como vimos, um instrumento de limitacdo
do poder, de maneira que deve fundar-se, ao emitir comandos
normativos, numa ideia de direito, que é aceita pela comu-
nidade. 0 poder é a forca exercida pela ideia de urn bem a
realizar, sobre consciencias solidarizadas pelo imperio dessa
mesma ideia e capaz de impor aos membros do grupo as
atitudes que ela determina 0 fundamento do poder encon-
tra-se na ideia a realizar e, por extensao, nas normas neces-
sarias a essa realizacao" 18.

Este padrao de vinculacao da norma constitucional é capaz


de conferir ao conjunto do ordenamento, de forma consistente,
a existencia e vigencia de normas contrarias em seu interior.
Leia-se a explicacao de Tercio Sampaio Ferraz Junior a respei-
to deste fenomeno:
"Enquanto o par conceitual valido/invalido permite urn pro-
cedimento de discriminacao que culmina numa exclusao -
uma norma ou e valida ou nao o e -, o par legitimo/ilegitimo
permite, é verdade, urn procedimento de discriminacao que,

18. Goffredo Telles Junior, A criagdo do direito, 1953, v. 2, p. 576 e 602 (apud
DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus efeitos. Sao Paulo, Saraiva,
1992, p. 76).

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porém, serve para orientar urna incluso: a nogáo de legiti-


midade em oposigáo á ilegitimidade é usada pela dogmática
para legitimar um preceito ou urna prática constitucionais.
(...) A oposigáo legítimo /ilegítimo serve á dogmática para
aceitar como compatível o objeto em discussáo (um conjun-
to normativo primeiro) com o criterio de legitimidade e
afastá-lo de um padráo de ilegitimidade" 19.

A inclusáo operada pelo par conceitual legítimo/ilegítimo


servirá muitas vezes á Dogmática, na investigagáo da pertinen-
cialidade de urna norma a urna ordem legal Vigente. Afirma
Paulo de Barros Carvalho que "ser norma válida quer significar
que mantém relagáo de `pertinencialidade' con o sistema "S",
ou que nele foi posta por órgáo legitimado a produzi-la, median-
te procedimento estabelecido para este fim"".
A qualidade das normas constitucionais que lhes outorga
o efeito de refietirem o fundamento de validade de todo um
sistema de direito vigente é a sua legitimidade, conceito opera-
cionalmente prospectivo, nos moldes ora descritos. Importa
salientar que a legitimidade social de um determinado valor
concretizado em norma é que irá determinar a sua efetividade
no sentido pragmático. Em se tratando de normas origem, como
é o caso das normas constitucionais, a legitimidade assume um
caráter ainda mais significativo.
Os princípios sáo as normas que realizan esses padróes
legitimantes prospectivos. Inclusive porque com eles convivem
válidas as regras contrárias a seus mandamentds, na qualidade
de excegóes á sua aplicagáo. Se concebermos o sistema jurídico
adotando a teoria tridimensional de Miguel Reale, com a tríade
componente do fenómeno jurídico composta dos fatos, valores
e normas, concluiremos que numa comparagáo entre os valores

19. FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. Constituigdo de 1988: legitimidade,


vigéncia e eficácia , supremacia. Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Maria Helena
Diniz, Ritinha Alzira Stevenson Georgakilas. Paulo, Atlas, 1989, p. 23.
20. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 17a edigáo. Sáo
Paulo, Saraiva, 2005, p. 81.

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e os principios estes sao uma forma de objetivacao daqueles. Ou


seja, assumindo os valores e as normas como objetos culturais,
os principios constitucionais, como uma especie do genero
"norma", apenas estao num major grau de concretude, pela sua
positivacao no texto constitucional.
Convivendo corn normas contrarias, os sistemas normati-
vos dispOem de tecnicas de retroalimentacao negativa, proce-
dimentos de anulacao que sao capazes de manter a estabilidade
do conjunto como totalidade. Os mecanismos de exame da cons-
titucionalidade, por exemplo, constituem modos de manter a
unidade e a coerencia interna do sistema. Estas operacOes re-
guladoras da estrutura do sistema normativo permitem que este
conviva temporariamente corn uma norma formalmente inva-
lida, ate que o Poder Judiciario declare a sua inconstitucionali-
dade e o Poder Legislativo, mediante a atuacao do Senado,
suspenda a sua eficacia. A institucionalizacao dos procedimen-
tos, de forma geral, ao refletir a separacao dos poderes e a Ca-
racteristica dos freios e contrapesos prestigiada pelos ordena-
mentos modernos, reflete verdadeira forma de retroalimentacao
negativa, eliminando o excesso de desvios na positivacao da
ordem legal, assegurando a prevalencia de sua programacao
sintatica, de sua propria 'gramatica'.
As normas constitucionais haurem, portanto, a sua vin-
culacao ou eficacia, mediante urn padrao de legitimidade da
Constituicao como corporificacao do poder. A legitimidade sera
a pedra fundamental de todo o sistema juridico", garantindo
a efetividade da Constituicao como uma norma origem de toda
a ordem juridica vigente. Numa semiose subsequente, estas
normas constituirdo o fundamento de validade das normas
infraconstitucionais, cujo cometimento valera em razao da
relaceto de imunizacao conferida pelos relatos das disposicoes
constitucionais.

21. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Constituicao de 1988: legitimidade,


vigencia e eficcicia. Tercio Sampaio Ferraz Junior, Maria Helena Diniz, Ritinha
Alzira Stevenson Georgakilas. Sao Paulo, Atlas, 1989, p. 23.

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Ternos, por fim, que urna ordem jurídica, para ser impera-
tiva, é reconhecida por seus usuários — aqui cornpreendidos os
órgáos estatais dotados de competéncia legislativa, administra-
tiva ou jurisdicional (editores normativos), bem como as insti-
tuigóes e cidadáos em geral (destinatarios) — como urna ordem
legítima.
Este entendimento é complementado por outro, adotado
por José Eduardo Faria, para quem "o motivo pelo qual urna
comunidade ou um grupo considera legítimo um conjunto de
normas jurídicas (especialmente normas constitucionais que
definem a estrutura e os limites dos sistemas políticos) pressu-
póe, portanto, um complexo de valores que deve ser encarado
em fungáo do contexto histórico"".
O exame do aspecto sintático das normas constitucionais
evidencia que elas possuem essa particularidade: sao as matri-
zes da linguagem jurídica do direito positivo. Possuem, portan-
to, o estatuto de signos inaugurais da ordem ju ídica. Náo sáo
derivadas de outras normas que lhes fornegam urn fundamento
de validade. Em sua maneira de representar o objeto, suas qua-
lidades evidentes seriam a regulamentagáo de condutas, o seu
caráter vinculante, a sua imperatividade e supremacia. Ao se
adentrar o campo da hermenéutica e da interpretagáo específi-
cas, a doutrina do direito constitucional considera a supremacía
das normas constitucionais refletida em diversos cánones de
interpretagáo da constituigáo
O valor da supremacia está presente corno urna qualidade
e um efeito permanente que deve tanto ser considerado como
produzido pela interpretagáo das normas constitucionais. A
supremacia do caráter prescritivo da lei constitucional, por náo
conhecer nenhum valor mais alto ao qual urna interpretagáo
deva se subordinar, atribui ao texto constitucional praticamen-
te a condiga() de um sistema autopoiético, autoreferencial,

22. FARIA, José Eduardo. Poder e Legitimidade: urna introducdo á Política do


Direito. Perspectiva, Sáo Paulo, 1978, p. 83.

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reflexivo de si prOprio". 0 carater autopoietico de urn ordena-


mento juridico, ao suportar modificacoes artificialmente impos-
tas, instala no texto constitucional a dimensao dialogica entre
os varios sistemas sociais. Diferentemente da interpretacao de
quaisquer outras normas juridicas de hierarquia inferior, a su-
premacia das normas constitucionais situa a sua hermeneutica
em uma dimensao formalmente auto fundante. Seria uma po-
sitividade fundamental autofundante. Nisto reside o seu carater
abdutivo, reflexo de processos de aprendizagem faliveis 24 , que
conformam interesses e valores contraditorios e que constroem
muito mais urn equili,brio do que uma coerencia da ordem juri-
dica positiva, respondendo As constantes tensOes que a positi-
vacao da ordem juridica instala entre seus diversos principios
constitucionais. A ordem juridica como totalidade inaugurada
por uma carta fundamental é caracterizada por sua incomple-
tude, abertura, e fragmentacao. Mesmo assim, a supremacia das
normas constitucionais permanece derivada da qualidade da
soberania estata1 25 , que compreende o monopolio de edicao das
leis e do emprego da coacdo fisica pelo Estado. Num polo, as
normas constitucionais determinam um parametro de atribuicao
dos significados normativos. Em outro, o emprego da forca deve
estar a servico da imposicao destes significados e nao de outros,
sob pena de abuso de poder, desvio de finalidades, etc. Entao,
o pr6prio carater originario da soberania que ira implicar numa
interpretacao abdutiva do texto constitucional.
Em uma analise semiotica verifica-se que o corpus consti-
tucional veicula enunciados portadores de principios e regras
situados em diversos topos semanticos. He uma diferenciada
densidade significativa, uma configuracao movel, que constitui

23. CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constituciona/ e Teoria da Constituicdo.


Coimbra, Livraria Almedina, 2003, p. 1.452 e ss.
24. CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constitutictio.
Coimbra, Livraria Almedina, 2003, p. 1.453.
25. Sobre a soberania como qualidade do conceito de Estado e de organizacao
juridica vide CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da constituictio,
cit., p. 83 e ss.

172
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um verdadeiro supersigno. Na interpretagáo de um problema


concreto, a solugáo náo está determinada, mas ' determinável.
É o próprio problema, objeto da representagáo objeto dinámi-
co), que provoca a agáo dos signos e a semios da concregáo
constitucional. A natureza do problema, ao provocar a repre-
sentagáo em signos, já exclui os topói náo apropriados26. Na
concepgáo de Max Bense os supersignos sáo o resultado de urna
majoragáo ou superizagáo de signos em estruturas de signos ou
em configuragóes sígnicas mais elevadas ou corriplexas, corres-
pondendo, naturalmente, ás novas referéncias de objeto e de
interpretante e na formagáo de hierarquias.
O gráfico abaixo ilustra a configuragáo de um supersigno".

L
Majara/á°

Na determinagáo da densidade semántica das normas


constitucionais a interpretagáo exige um olhar sistemático. Os

26. HESSE. Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federa-


tiva da Alemanha. Tradugáo de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre, Sergio Anto-
nio Fabris Editores, 1998, p. 64.
27.BENSE, Max. Pequena Estética. 3a edigáo. So Paulo, Perspectiva, 2003, p. 55.

173
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enunciados presentes no corpus constitucional nao podem ser


avaliados como se dispostos sob uma configuracao amorfa. Ha
uma organizacao interna no texto constitucional que é produ-
zida pela conformacao das normas constitucionais segundo a
disposicao dos respectivos campos semanticos.
Ao tratar das funcOes signicas Elisabeth Walter-Bense es-
clarece a constante relacao entre signo e repertOrio. Uma vez
que o signo implica uma relacao triadica ao estabelecer uma
mediacao entre urn objeto e urn interpretante, nao é possivel
reconhecer urn signo isolado. 0 proprio reconhecimento de algo
como sendo urn signo implica em identificar a sua pertinencia
a urn repert6rio. Confira-se:
"For nao poder existir um signo unico ou isolado é que urn
signo sempre aparece junto a outros signos, formando assim
conexoes de signos, isto 6, sistemas de signos, para cuja pro-
dugao tambern sao necessarias, alern das fungi:5es menciona-
das, certas operacOes. Destas as mais importantes sao: a
substituigdo ou troca; em seguida, as operagoes internas de
geracao ou degeneracdo e, por ultimo, as operagOes externas
de adjurtcdo, ou alinhamento, de superizacdo ou formacao de
supersignos, e de iteractio, isto 6, do desenvolvimento corn-
pleto de urn sistema de signos a partir de seus signos iniciais
ou dos meios do seu repertorio"".
"(...) Cada supersigno, isto 6, cada reunido de signos numa
nova unidade ou totalidade, é sempre urn signo de grau su-
perior, isto 6, de repertorio superior. E novo signo de uma
nova relacao triadica".29
"Uma superizacao de signos e sempre tambem uma formacao
de hierarquia de signos, de que ainda nos ocuparemos em
relagao aos sistemas signicos"."

28.WALTHER-BENSE, Elisabeth. A teoria gera/ dos signos. Sao Paulo, Pers-


pectiva, 2000, P. 57.
29.WALTHER-BENSE, Elisabeth. A teoria geral dos signos. Sao Paulo, Pers-
pectiva, 2000, p. 62.
30.WALTHER-BENSE, Elisabeth. A teoria geral dos signos. Sao Paulo, Pers-
pectiva, 2000, p. 62

174
IBET - Instituto Brasileiro de Estudos Tributários

Em termos de densidade semántica há urna organizagáo


que reflete urna graduagáo interna da Constituigáo. Estamos
trabalhando com urna premissa propugnada por J. J. Canotilho,
segundo a qual náo há hierarquia entre os dispositivos consti-
tucionais. Considerarnos, entretanto, que essa simetria possui
urna natureza formal, porque embora todos os dispositivos,
entre si considerados, encontrem-se situados em um mesmo
nivel hierárquico, permanecerá, sempre, urna diferenga de den-
sidade ou de peso, que diz respeito á saturagáo semántica dos
dispositivos constitucionais. Essa igualdade formal entre todos
os dispositivos, todavia, é capaz, com o seu caráter icónico, de
assegurar que o texto constitucional abrigue enunciados que
sejam, entre si, ícones complementares. Ou seja, a negagáo,
operagáo fundamental da lógica clássica, é vista pela semiótica
como a complementagáo de um signo". Para o constitucionalis-
ta portugués, o princípio da unidade da constituigáo significa a
igualdade hierárquica de todas as regras e princípios quanto á
sua validade e prevaléncia normativa".
A questáo da densidade semántica das normas constitu-
cionais pode associar-se com os conceitos básicos de teoria da
comunicagáo. Náo sendo hierárquica, a forma de organizagáo
dos dispositivos constitucionais reflete um tipo de organizagáo
que tem urna forma cromática ou térmica, em termos de defini-
gáo. Para esclarecer as nogóes de campo e densidade semántica
estarnos nos valendo de urna qualificagáo proposta por Marshall
Mcluhan ao classificar os sistemas de comunicagáo e informagáo
em baixa ou alta definigáo, meios quentes ou frios.
Na classificagáo de Mcluhan as informagóes e comunica-
góes podem ser de alta ou baixa deflnigáo. A intensidade da

31. WALTHER-BENSE, Elisabeth. A teoria geral dos signos. Sáo Paulo, Pers-
pectiva, 2000, p. 21.
32. CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituigdo.
Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 1057. No mesmo sentido: HESSE. Kon-
rad. Elementos de direito constitucional da República Federativa da Alemanha.
Tradugáo de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editores,
1998, p. 63.
175
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definicao e inversamente proporcional a da participacao do


receptor na interpretacao da mensagem. Assim, uma mensagem
ou meio em alta definicao requer pouca interacao do receptor
na realizacao da interpretacao. Os dados estao saturados, o
campo semantic° é denso. Na linguagem do pr6prio autor:
"Urn meio quente e aquele que prolonga urn unico de nos-
SOS sentidos e em `alta definicao'. Alta definicao se refere a
urn estado de alta saturacao de dados. (...) De outro lado, os
meios quentes nao deixam muita coisa a ser preenchida
pela audiencia"33.
"Urn meio quente permite menos participacao que urn frio:
uma conferencia envolve menos do que urn seminario, e urn
livro menos do que urn dialog°. (...) Mas o nosso pr6prio
tempo esta cheio de exemplos do principio segundo o qual a
forma quente exclui e a forma fria inclui"34

J. J. Canotilho define a investigacao do conteiido semanti-


co das normas constitucionais como uma operacao de determi-
nacao". Associando-se as doutrinas de Mcluhan e de Canotilho,
quanto menos densa e mais fria for uma norma constitucional,
major a sua abertura semantica, bem como a possibilidade de
delegacao relativa de sua concretizacao aos orgaos aplicadores.
As normas mais frias sao aquelas que, na classificacao do cons-
titucionalista, contem conceitos de prognose, os quais implicam
na atribuicao das consequencias futuras. Nestes casos, tais nor-
mas dificilmente se deixam deduzir da simples mediacao de seu
carater semantic°. Por outro lado, quanto major for a intensi-
dade semantica do dispositivo, mais quente sera a norma e mais
imediatos serao os seus efeitos, exigindo uma menor participacao
dos orgaos aplicadores na definicao de seu significado. Uma alta

33.MCLHUAN. Marshall. Os meios de comunicageto como extensoes do homem.


Traducao de Decio Pignatari. Sao Paulo, Cultrix, 1998, P. 38.
34.MCLHUAN. Marshall. Os meios de comunicacao como extensoes do homem.
Traducao de Decio Pignatari. Sao Paulo, Cultrix, 1998, p. 39.
35.CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituicao.
Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 1090.

176
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saturacáo de dados corresponde ás normas que proporcionarn


urna maior seguranga jurídica, a previsibilidad *? do significado
solicita pouco a percepqáo do destinatário, está mais amparada
na historicidade e no aspecto redundante do significado. Urna
norma programática, por seu turno, sendo de baixa saturacáo,
exige que o destinatário interprete a maior interagáo da norma
com o contexto de sua aplicaqáo, os dados viráo do contexto e
náo do código, haverá um grau maior de indeterminacáo e po-
tencialidade significativa.
Em um núcleo rígido da Constituiqáo, apresentando urna
configuragáo mais aquecida ou densa, encontr m-se os princí-
pios constitucionais fundamentais, conformadores do projeto
básico da ordem constitucional. No texto constitucional brasi-
leiro, adotando a classificacáo de José Afonso da Silva" podemos
destacar como principios fundamentais os seguintes:
a) os princípios relativos á existéncia, forma, estrutura e
tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania,
Estado Democrático de Direito (art. 11);
b) os princípios relativos á forma de governo e á organiza-
gáo dos poderes: República e separa «io dos poderes
(arts. 1° e 2°);
c) os principios relativos á organizaqáo da sociedade: prin-
cípio da livre organizaqáo social, da convivencia justa e
da solidariedade (art. 3°, I);
d) os princípios relativos ao regime principio da
cidadania, da dignidade da pessoa humana, do pluralismo,
da soberania popular, da representa 0o Política e da par-
ticipaqáo popular direta (art. 1° parágrafo único);
e) os principios relativos á prestagáo positiva do Estado:
principio da independéncia e do desenvolvimento nacio-
nal (art. 3°, II), justiyi social (art. 3°, III), rdro discrimi-
naqáo (art. 3° IV);

36. SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19a edkáo.
Sáo Paulo, Malheiros Editores, 2001, p. 95 e ss.

177
IBET — Instituto Brasileiro de Estudos Tributarios

f) os principios relativos a comunidade internacional: prin-


cipio da independencia nacional, do respeito aos direitos
fundamentais da pessoa humana, da autodeterminacei o dos
povos, da nao-intervencao, da igualdade dos Estados, da
soluceto pacifica dos conflitos e da defesa da paz, do repitdio
ao terrorismo e ao racismo, da cooperaceio entre os povos
e da integragao da America Latina (art. 4Q).
Em termos logicos, o postulado da unidade da constituicao
poderia levar a uma crenca sobre a possibilidade de inexistencia
de contradicoes entre os enunciados do corpus constitucional.
Mas este é urn postulado interpretativo abstrato. Para os efeitos
de aplicacao em nivel concreto, a todo instante se pOem peran-
te o Poder Judiciario essa diversidade de saturacao semantica
entre os diversos valores acolhidos nos principios constitucionais
e nas normas programaticas. A interpretacao da constituicao
nao existe desvinculada da ordem de questOes praticas, a inter-
pretacao reflete a concrecao constitucional.
0 texto constitucional, na condicao de matriz do ordena-
mento juridic°, possui urn notavel carater iconic°, uma vez que
a sintaxe de qualquer linguagem, concebida como a sua orde-
nacao configura o seu icone mais abrangente". A forma icOnica
se revela mais nitidamente refletida no principio da concordan-
cia pratica ou da harmonizacao dos dispositivos constitucionaism.
DispOe este principio que no sopeso dos dispositivos constitucio-
nais que comparecem ao caso concreto - e entram em dialog° -

37. "0 icone mais abrangente da linguagem verbal é, sem duvida alguma, sua
sintaxe, o que foi expressamente indicado por Peirce; e visto que todo orde-
namento, como totalidade, é urn Icone (ou seja, uma estrutura), consequente-
mente nao seria possivel uma compreensao sem urn ordenamento sintatico
das palavras. Coube sobretudo a David Hilbert dar, juntamente a Peirce, es-
pecial relevo ao fato de que uma figura de silogismo, uma demonstracao, é
sempre uma figura, uma forma e, por conseguinte, uma imagem, urn Icone".
WALTHER-BENSE, Elisabeth. A teoria geral dos signos. Sao Paulo, Perspec-
tiva, 2000, p. 16.
38. CANOTILHO, JJ. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituicero.
Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 1098.

178
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náo deve haver o atendimento a um bem jurídico em detrimen-


to de outro. A fim de que seja respeitada a simetria de valores
dos bens jurídicos tutelados pela constituigáo, a interpretagáo
deve conduzir a limites e condicionamentos recíprocos que
operem urna harmonizagáo prática. Em sua doutrina, Konrad
Hesse explica essa racionalidade concreta que emanadas ope-
ragóes de aplicagáo das normas jurídicas:
"Por certo, decisáo jurídica, exatamente também no direito
constitucional, náo se deixa racionalizar até o fim; porém isso
pode somente significar que se trata da racionalidade possí-
vel, náo, que metodologia refletida seria prescindível em
geral. A `exatidáo' dos resultados que sáo obtidos no proce-
dimento exposto de concretizaqáo de normas constitucionais,
náo é, por causa disso, urna tal de urna demonstrabilidade
exata corno aquela das ciéncias naturais; esta, no ámbito da
interpretnáo jurídica, pode permanecer nunca mais que
urna ficqáo e ilusáo dos juristas, atrás da qual se escondem,
náo expressas e incontroláveis, as verdadeiras razóes da de-
cisáo, ou, também, decisáo calada. Diante da pretensáo de
exatidáo absoluta, que náo se deixa demonstrar, e, muitas
vezes, nem sequer manifesta a ratio deeidendi, aparece, com
urna exatidáo relativa, que reconhece a limitnáo de sua pre-
tensáo, que, porém, nessa limitagáo pode ser tornada razoável,
convincente e, pelo menos até certo grau, previsível, alguma
coisa ganha, e, precisamente, náo só urna parte da honradez
jurídica, mas também certeza jurídica - limitada"39.

A disposigáo abaixo reflete urna organizagáo segundo a


qual os principios de maior densidade semántica estariam mais
saturados axiologicamente para os efeitos da interpretagáo e
concregáo, enquanto as normas programáticas refletiriam urna
maior interagáo semántica com o universo dos intérpretes e
com o próprio contexto social por ocasiáo da concretizaç do
constitucional.

39. HESSE. Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federa-


tiva da A/emanha. Traducáo de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre, Sergio Anto-
nio Fabris Editores, 1998, p. 69.

179
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PRINCIPIOS FUNDAMENTALS
PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS GERAIS
PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS ESPECIAIS
NORMAS PROGRAMATICAS

A interpretacao da constituicao dirigente e o pensamento


abdutivo.
A operacao de interpretacao das leis e sempre realizada em
vista da necessidade posta por um caso concreto. No caso da
obediencia as normas, esta atualizacao pode nao restar registra-
da em toda a sua extensao. A lei pode selecionar se o registro de
sua incidencia deve privilegiar a obediencia ou a desobediencia,
caso em que se registra predominantemente a aplicacao das
sancOes, como ocorre corn a aplicacao das leis penais.
Tambem a interpretacao da constituicao se pOe diante de
casos concretos. A norma constitucional impoe-se por si mesma,
nao possui urn fundamento de validade fundado em norma
superior. A interpretacao das normas constitucionais nao se
justifica por urn recurso de conformacao hierarquica. A sua
imunizacao, se pudesse estar estabelecida em norma superior,
seria uma imunizacao finalista, apenas uma ampla atribuicao
de competencia.
A semiotica se oferece como urn interessante instrumental
para a hermeneutica e para a interpretacao constitucional em
180
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virtude da atengáo que é conferida ao objeto da representagáo. Na


impossibilidade de um objeto ser inteiramente representado por
um signo, ou mesmo por diversos signos, a semiótica preocupa-se
em identificar qual foi o aspecto do objeto que impulsionou a ge-
ragáo da representagáo, e, portanto, a agá° dos signos. Para Peirce
é o objeto que provoca a agá° dos signos40. Sem a provocagáo dos
objetos, os signos simplesmente náo funcionam como tais.
Com a virada da rnodernidade, as constituigóes deixaram
de consignar somente dispositivos que refletiam o liberalismo
económico e o respectivo modelo de Estado náo intervencionista
na órbita das relagóes privadas e económicas. O modelo de Esta-
do contemporáneo adota o arquétipo de constituigeto dirigente,
traz uma diversidade e uma variedade de normas programáticas.
O Estado passa a instituir políticas públicas, e a constituigáo,
entáo, passa a conter dispositivos que atribuem competéncias
para a sua implementagáo. Este tipo de delegagáo de poderes é
uma regulagáo aberta, em que se necessita de um espago de
apreciagáo política para a consecugáo de metas desejáveis para
o bem comum. O Estado passa a se comprometer com a provisáo
de direitos subjetivos públicos que náo se limitam somente á
preservagáo das garantias individuais, mas compreendem tam-
bém os direitos sociais. Peirce afirma que só percebemos aquilo
que estamos equipados para interpretar. A provisáo de direitos
sociais demanda urna interpretagáo da lei constitucional que se
póe mediante o processo de concretizagáo. Náo sendo táo longa
a tradigáo hermenéutica deste tipo de norma constitucional, e
nem desse modelo de Estado, a interpretagáo das normas pro-
gramáticas está aberta a construgóes menos ancoradas em cáno-
nes interpretativos consolidados pela cultura liberal moderna.
Em se tratando da interpretagáo lógico semiótica da cons-
tituigáo dirigente, J. J. Canotilho41 se preocupa em estabelecer

40. Vide SANTAELLA, Lúcia. Teoria geral dos signos. Semiose e autogeracáo.
Sáo Paulo, Ática, 1995, p.49.
41. CANOTILHO. J. J. Constituiqd o dirigente e vincutacdo do legislador: con-
tributo para a compreensdo das normas constitucionais programáticas. Coimbra,
Coimbra Editora Ltda., 1994, p. 440.

181
IBET — Instituto Brasileiro de Estudos Tributarios

uma diferenca entre sistema normativo aberto e sistema nor-


mativo fechado. Nos sistemas fechados, somente a normacao
explicita e relevante logicamente: o sistema trabalha apenas
corn a modalizacao das prescricaes existentes, sendo vazia a
classe da normacao possivel. 0 autor explica porque uma cons-
tituicao dirigente nao se submete a este modelo:
"Ora, uma constituicao dirigente nao se reconduz a este es-
quema, pois, por urn lado, a regulamentacao constitucional
nao esgota a constituicao real ou material, ficando urn espaco
para a regulamentacao do legislador, e, por outro lado, mesmo
quando ha normacao explicita, ela nunca é entendida como
proibicao de outra normacao, embora secundaria"42.

A interpretacao da constituicao dirigente, portanto, pode ser


levada a urn nivel mais complexo. Envolve a questao da interpre-
tacao das normas que instituem programas normativos. Nestes
casos, uma interpretacdo dedutiva nao resolvera o problema, uma
vez que nao sera possivel atingir o resultado da interpretacdo
mediante a mera manipulacao diagramatica das premissas. A
concretizacao de programas normativos nao pode ser inteiramen-
te explicada racionalmente. A menos que uma explicacdo racio-
nal possa envolver juizos de preferibilidade, operacOes de selecao
e escolha. Assim, essa nocao de racionalidade nao seria estrita-
mente logica, mas seria antes dialogica. Ao descrever as normcts-fim
e normas-tarefa, J. J. Canotilho exemplifica:
"0 mais frequente neste tipo de normas constitucionais é que
elas estabelecam, como dever do legislador, alcancar certos
fins, mas sem prescreverem, em geral, os meios ou comporta-
mentos atraves dos quais eles possam ser obtidos"".

42. CANOTILHO. J. J. Constituiceio dirigente e vinculaccio do legislador: con-


tribute para a compreensao das normas constitucionais programaticas. Coimbra,
Coimbra Editora Ltda., 1994, P. 442.
43. HESSE. Konrad. Elementos de direito constituciona/ da Repablica Federa-
tiva da A/emanha. Traducao de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre, Sergio Anto-
nio Fabris Editores, 1998, p. 68.
44. CANOTILHO. J. J. Constitwicdo dirigente e vinculaceio do legislador: con-
tributo para a compreenselo das normas constitucionais programciticas. Coimbra,
Coimbra Editora Ltda., 1994, p. 446.

182
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Quando se trata de implementar urna política pública a in-


terpretagáo das normas náo se reduz a esquemas inclusivos de-
rivados de subsungóes, urna vez que o legislador ou o aplicador
das normas terá que concretizar a escolha dos meios que julgar
adequados para concretizar um dispositivo programático. Nesta
modalidade de hermenéutica e de concretizagáo constitucional
repousa também a questáo da discricionariedade e da vinculagáo
com as quais se depara o intérprete da constituigáo. Quando
chamado a intervir nas relagóes sociais, a fim de implementar
programas normativos, o legislador pode optar por diversas for-
mas de intervengáo estatal na ordem jurídica e económica.
A elaboragáo das leis em geral, bem corno das leis consti-
tucionais, tem a natureza de geragáo de signos, de semiose. Ao
se positivar, o direito regula o possível náo só na esfera lógica,
mas também na esfera cronológica. O direito tende a prescrever
normas para a orientagáo da conduta futura. A jurisdicizagáo
retroativa opera com situagóes de excegáo. O possível também
está logicamente localizado no futuro. O direito, portanto, tra-
balha com a regulagáo do possível. As possibilidades de intera-
gáo social futura sáo o objeto dinámico da representagáo jurídi-
ca. Este é o aspecto icónico da regulagáo jurídica. O dever ser
regula e qualifica o poder ser. Nesta medida se coloca a inter-
pretagáo de urna norma programática e a sua interpretagáo/
concretizagáo cm legislagáo infraconstitucional.
No caso das normas programáticas, a definigáo de seu
campo semántico se depara com o problema da delegagáo de
competéncias, a sua atuagáo prospectiva é urna abertura. A
interpretagáo da constituigáo dirigente coloca o lintérprete dian-
te da questáo de atribuigáo de determinagáo ás normas abertas.
E assim, harmoniza-se bem com a necessidade de determinagáo
a definigáo de Peirce para a questáo do significado:
"Já analisamos algumas razóes para susteptar que a ideia de
significado é tal que envolve a ideia a um propósito. Mas,
Significado só se atribui a representamens, e o único tipo de
representámen que tem um definido propósito confesso é
um 'argumento'. (...) Mas devo observar que a palavra 'sig-
nificado' náo tem sido reconhecida, até aqui, como sendo um

183
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termo tecnico da logica e, ao propo-la como tal (coisa que me


dado o direito de fazer, uma vez que tenho uma nova con-
cepcao a exprimir, a da conclusao de urn argumento como
sendo seu interpretante declarado) deveriam reconhecer-me
o direito de desvirtuar ligeiramente a aceitacao da palavra
`significado' de modo a ajusta-la a expressao de uma concep-
cao cientifica. Parece natural usar a palavra significado para
denotar o interpretante declarado de urn simbolo"45.

No caso da interpretacao constitucional, a atribuicao de


significado como interpretante declarado é adequada em virtu-
de de respeitar a relacao entre a interpretacao e a concretizacao
constitucional 46 . Trata-se de saber como controlar o significado
da interpretacao e da concretizacao das normas que caracteri-
zam a constituicao dirigente.
No trecho anterior do artigo estabelecemos uma premissa
segundo a qual as normas constitucionais assecuratorias dos
direitos e garantias individuais seriam normas quentes, enquan-
to as normas programaticas seriam de baixa densidade seman-
tica, baixa definicao, caracterizando- se como normas frias,
aptas a demandar major interacao com o contexto, o universo
de regulacao e os destinatarios.
Assim, a definicao do significado das normas constitucio-
nais programaticas coloca-se como uma questa) sempre aberta.
As medidas adotadas para a consecucao de objetivos seleciona-
dos pelo legislador constitucional nao sera° uniformes no tem-
po e no espaco, nao permitirdo uma Unica solucao possivel e
correta. A atribuicao de significados para as normas constitu-
cionais dirigentes deve decorrer de interpretacao evolutiva, que
trabalhe com a selecao de possibilidades dadas em um contexto
pleno de variedades complexas.

3
45.PEIRCE, Charles Sanders. Semiatica. edicao. Traducao: Jose Teixeira
Coelho Neto. Sao Paulo, Perspectiva, 1999, p. 222.
46.HESSE. Konrad. Elementos de direito constitucional da Repnblica Federa-
tiva da Alemanha. Traducao de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre, Sergio Anto-
nio Fabris Editores, 1998, P. 61.

184
IBET - Instituto Brasileiro de Estudos Tributários

Na interpretagáo e na selegáo do significado constitucional,


as inferéncias devem ser críticas. As escolhas de significado
devem reiterar as determinagóes constitucionais bem como as
valoragóes feitas pelo legislador, adequando-as ás complexidades
do contexto. Há urna necessidade da evolugáo 4 a interpretagáo,
de forma a acompanhar as mudangas do cont xto, a fim de re-
fletir urna genuína concregáo constitucional, náo desvinculada
dos problemas concretos.
As normas constitucionais programáticas consagram urna
exigéncia de atuagáo". Observando de um porto de vista prag-
mático, podernos dizer que prestigiar um valor, tutelar um bem
jurídico ou criar um programa normativo significa examinar um
problema a ser resolvido. O cumprimento da norma implica em
adotar urna agáo prospectiva, implementar tima solugáo. Na
medida em que náo é possível deduzir da norma superior ou das
premissas a conclusáo oferecida pela regulagáo infraconstitucio-
nal, esta atribuigáo de significado envolverá um raciocínio abdu-
tivo, urna vez que qualquer solugáo efetivamente implementada
ainda passará pelo controle da eficácia. Antes cla. averiguagáo de
sua eficacia, qualquer implementagáo de sentido programático a
urna norma constitucional será urna mera hipótese, urna possi-
bilidade. No confronto com a experiéncia é cp.T será testada. A
forga normativa da constituigáo depende de sua atualizagáo. Urna
constituigáo forte é aquela que, no momento de concretizagáo,
diante das diversas possibilidades interpretativas, proporcione,
mediante os juízos de preferéncia, a selegáo dos significados que
atribuam um efeito ótimo aos dispositivos constitucionais".
Quando implementa um programa normativo, ao concretizar
urna norma constitucional programática, o legislador adota uma

47. CANOTILHO. J. J. Constituigdo dirigente e vincula0o do legislador: con-


tributo para a compreensáo das normas constitucionais programáticas. Coimbra,
Coimbra Editora Ltda., 1994, p. 464.
48. HESSE. Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federa-
tiva da Alemanha. Tradugáo de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre, Sergio Anto-
nio Fabris Editores, 1998, p. 68.

185
IBET — Instituto Bras ileiro de Estudos Tributarios

tentativa para resolver urn problema, ele formula uma hipotese.


Segundo Peirce, as inferencias envolvidas na formulae do-
de uma
hipotese chamam-se abducCto. Explica o filosofo e logico:
"Admitindo, entao, que a questao do Pragmatismo é a ques-
tao da Abducao, consideremo-la sob esta forma. 0 que é a
boa abducao? Como deveria ser uma hipotese explanatoria
a fim de merecer a classificacao de hipotese? Naturalmente
ela deve explicar os fatos. (...) Portanto, qual é o objetivo de
uma hipotese explanatoria? Seu objetivo é, apesar de isto
estar sujeito a prova da experiencia, o de evitar toda surpre-
sa e o de levar ao estabelecimento de urn habit() de expecta-
tiva positiva que nao deve ser desapontada. Portanto, qual-
quer hipotese pode ser admissivel, na ausencia de quaisquer
razOes especiais ern contrario, contanto que seja capaz de
ser verificada experimentalmente, e apenas na medida ern
que é passivel de uma tal verificacao. E esta, aproximada-
mente, a doutrina do pragmatismo"".

A concrecdo e esse divisor de Aguas, entre o futuro, entre


o possivel, e o existente, o passado. A positivacao produz o di-
reito existente, ela registra os fatos juridicos como uma sucessao
de ocorrencias tipificadas. A legislacdo existente depende de
uma escolha dos legisladores, de uma selecao ou de uma corn-
plexidade de interesses que se revele na selecdo de urn texto
que se pOe como lei geral. A producdo dos fatos juridicos fun-
ciona de forma similar o que na lingua se trata como a producdo
de assergOes. Estas operacoes demandam a percepedo, registram
hip6teses selecionadas de acordo corn similaridades percebidas
entre as hipoteses normativas e os aspectos concretos dos casos.
Este é o atimo ern que se desencadeia a interpretacdo das normas
juridicas. Ern se tratando das normas constitucionais, este fe-
nOmeno é denominado de concretizacao constitucional.
0 fenomeno da concretizagdo constitucional e sua impor-
tancia para as investigacoes da hermeneutica afinam-se bem

49. PEIRCE, Charles Sanders. Semiotica. 3 a edicao. Traducao: Jose Teixeira


Coelho Neto. Sao Paulo, Perspectiva, 1999, p. 233.

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como urna máxima pragmaticista proposta pelo filósofo e ma-


temático Charles Sanders Peirce, para o qual há um elemento
de insistencia e compulsáo no objeto dinámico:
"Os elementos de todo conceito entram no pensamento lógi-
co através dos portóes da percepqáo e dele saem pelos portóes
da agá() propositada; e tudo aquilo que náo puder exibir seu
passaporte em ambos esses portóes deve ser apreendido
como elemento náo autorizado. (5.212)50.

A norma programática, ao propugnar um objetivo ou bem


jurídico a ser perseguido, volta-se a urna interpretaqáo eminen-
temente pragmática, no sentido de que esta interpretaqáo, ocor-
rendo num momento de concretizagáo constitucional, é a formu-
laqáo de urna hipótese, a tentativa de procurar produzir o efeito
que se pretendeu com a edi0o do dispositivo constitucional. Mas
como fazer este controle, que entáo náo é táo monitorado pela
tradigáo, mas procura realizar efeitos? Interpretar urna norma
programática ou um conceito indeterminado, segundo Canoti-
lhosi, significa analisar as delegagóes de poderes e os preenchi-
mentos valorativos. Para as normas constitucionais programáti-
cas, a saída pelo portáo da experiencia se dá somente com a
formulagáo das pro gnoses. É o que explica o próprio autor:
"De igual modo, e tal como a teoria objectiva da interpretagáo
e a teoria da criaqáo hermenéutica haviam salientado, o códi-
go constitucional dirigente náo se compreende separadamen-
te do acto de fala ('acte de parole', `speech act'), ou seja, da
utilizagáo do código constitucional pelo legislador. Dir-se-ia
que o legislador exerce urna determinada performance guando,
concretamente, actualiza o código constitucional"".

50.Tradugáo colhida em SANTAELLA, Lúcia. Teoria geral dos signos. Semio-


se e autogeragdo. Sáo Paulo, Ática, 1995, p.63.
51. CANOTILHO. J. J. Constituigdo dirigente e vincula0o do legislador: con-
tributo para a compreensáo das normas constitucionais programáticas. Coimbra,
Coimbra Editora Ltda., 1994, p. 195.
52.CANOTILHO. J. J. Constituiqáo dirigente e vinculaqá o do legislador: con-
tributo para a compreensáo das normas constitucionais programáticas. Coimbra,
Coimbra Editora Ltda., 1994, p. 424.

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"Quando os Orgaos de direccao politica interpretam, concre-


tizando, a lei fundamental, suscitam-se os problemas do
ambito de pro gnose do legislador e da legislageto como experi-
e'ncia. A deciseto a favor de uma 'forma' de interpretacao
constitui, logo, uma proposta interpretativa de ordenacao
funcional, constitucionalmente plasmada"53.
"Mos, para la destas objeccOes, sempre flea uma realidade
que inequivocamente se situa no Ambito livre de pro gnose
(embora esta deva ser constitucionalmente enquadrada): a
conformacao da vida social, as mudancas das condicOes de
vida, a direccao economica e social, movem-se num piano de
incerteza e de dependencia da evolucao tecnica e cientifica.
NA° obstante a exigencia de programageto raciona/ e de con-
formidade corn os fins constitucionais, as solucOes legislativas
podem ser inadeguadas, viciadas ou erradas'54.

No desempenho de suas competencias legislativas, e na


persecucao de alvos apontados pelas normas constitucionais
programaticas, o legislador infraconstitucional produz hip6teses
de regulacao faliveis, cuja eficacia somente podera ser revelada
corn o tempo de uso, obediencia e aplicacao das normas positi-
vadas. Em nivel de aplicacao dessas normas, o contexto social
encontra-se envolvido em todas as complexidades da pOs mo-
dernidade, das tecnologias digitais, da globalizacao econOrnica
e dos interesses difusos e coletivos. A riqueza de aspectos do
contexto social mantem sempre incompleta a diagramacao geral
e abstrata das hip6teses normativas. Alem da baixa saturacao
semantica das normas programaticas, o aplicador lida tambem
corn a complexidade social do contexto. Assim, a dominancia da
concrecao das normas programaticas assenta-se predominan-
temente sobre o eixo paradigmatic° de organizacao da lingua-
gem, do pensamento, e, portanto, da positivacao normativa.

53. CANOTILHO. J. J. Constituicao dirigente e vincu/acdo do legislador: con-


tributo para a compreensdo das normas constitucionais programciticas. Coimbra,
Coimbra Editora Ltda., 1994, P. 182.
54. CANOTILHO. J. J. Constituicao dirigente e vincu/acao do legislador: con-
tri,buto para a compreensao das norm as constitucionais pro gramciticas. Coimbra,
Coimbra Editora Ltda., 1994, p. 275.

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