Você está na página 1de 482

ROMAN SNGARDEN

A OBRA
DE ARTE LITERARIA

T r a d u ç ã o de

A l b í n E. B e a u
M a r i a da C on ceição P u ga
João F. B a r r e n t o

P r e fá c io dè

M a r ia M a n u e l a S a r a iv a

2 .11 ediçao

F U N D A Ç Ã O C A L O U S T E G U L B E N K I A N | LI S BO A
Prefácio à edição portuguesa

Haverá um conhecimento objectivo de uma obra literária,


conhecimento certo, a distinguir de opiniões subjectivas e erra­
das? Román Ingarden faz a pergunta no § 6 1 deste livro. Alar­
gando o problema, interrogamos: poder-se-á falar de obras objec-
tivamente difíceis, isto é, de difícil acesso a todo e qualquer
le itor? Não o cremos, a não ser que se tome tal ideia como um
caso-limite. Pois somos tentados a acreditar que Das literarische
Kunstwerk o realiza bastante bem.
Investigação rica mas prolixa, não raro obscura, desconcer­
tante na sua economia interna, o presente estudo desdobra-se em
múltiplas linhas de fractura e convergência que irradiam de um
terreno fenomenológico husserliano de base para perspectivas de
natureza lingüística, lógica, estética, sem deixar de afirmar com
insistência a pretensão de lançar as bases de uma ciência da
literatura.

1 Este Prefácio foi escrito a .partir da leitura do original alemão,


quando a tradução portuguesa não estava ainda concluída. Desconhecendo
a paginação do volume português, não a podíamos citar. Mas citar a
paginação alemã, além de criar confusões, seria de alguma utilidade?...
Uma tradução destina-se, por definição, a um público que a prefere ao
original por razões várias. O facto de o livro estar dividido não só em
capítulos mas também em parágrafos forneceu-nos a solução do problema.
Não é ideal, mas é a única de que dispomos. O parágrafo é geralmente
curto, e neste caso a numeração não muda. Por isso citaremos sempre o
parágrafo e o leitor descobrirá com relativa facilidade o texto, a teoria ou
a problemática que estão em causa no nosso comentário.
Algumas vezes faremos referências a Husserl e às suas Investigações
Lógicas (Logische Untersuchungen). N o caso em que tivermos de fazer
citações precisas damos em português o passo em questão, mas citamos
a obra alemã, edição de 1913.
A Obra de Arte Literária tem três Prefácios, o da primeira edição,
em 1930, e os de 1960 e de 1965, respectivamente para ás segunda e terceira
edições. Para simplificar, quando se trate do primeiro falaremos do Pre­
fácio de 1930, ou do Prefácio, simplesmente.
VIII

Tudo isto em 1930, data da primeira -edição do volume que


hoje sai a público em tradução portuguesa!2
Se toda a obra escrita é o espaço aberto e sempre disponível
a uma infinidade de leituras diferentes, esta é-o certamente de
múltiplas maneiras. Em prim eiro lugar, porque os diferentes
leitores, sectorialmente situados em qualquer destes pontos de
vista: literário, lingüístico, lógico, estético, filosófico..., farão,
como é óbvio, a leitura para a qual os prepara a sua formação
específica. Nada impede de imaginar o leitor ideal, nestes tempos
em que tanto se fala de interdisciplinaridade. Não cremos, con­
tudo, que tal leitor exista ainda. E aqui temos um dos paradoxos
desta obra paradoxal.
Escrita em 1930, é natural verificarmos que está ultrapassada
em vários dos sectores particulares de que releva, apesar das
notas acrescentadas à segunda edição, de 1960. E, no entanto,
o leitor para o qual foi escrita ainda não existe... Significa isto
que ela vale sobretudo, em nosso entender, pelo seu valor exem­
plar. É difícil imaginar o que representa de ousadia e de novidade
uma obra como esta que, ao querer lançar as bases de uma
ciência por nascer (e, ao que parece, ainda hoje não nascida...),
o faz numa tão vasta ambição de síntese. Tão vasta que não
sabemos se admirar a grandeza do projecto ou nos admirarmos
perante a sua ingenuidade.

2 0 ano de 1930 pode tomar-se como o marco aproximado que separa


duas épocas, tanto em lingüística como em lógica.
Em lingüística, o Cours... de Saussure havia já suscitado reflexões
sobre signo, símbolo, significado, por parte de filósofos e de linguistas;
mas de semântica, em sentido actual, não poderá falar-se ainda por longo
tempo. Os primeiros trabalhos importantes da escola fonológica de Praga,
base da lingüística estrutural, aparecem precisamente por esta altura. Dos
três centros de onde irradia a renovação da lingüística e dos seus principais
representantes — Trubetzkoy, Bloomfield, H jelm slev— era impossível ou
pouco provável ter conhecimento em 1930. (Sem contar que a redacção
de A O bra de A rte L ite rá ria começou em 1927.)
Quanto ao chamado C írcu lo de Viena, os anos trinta são os da sua
maior expansão (fundação da revista Erkenntnis, diáspora provocada pela
perseguição nazi, organização de congressos internacionais). Uma nota
ao § 18 de A Obra de A rte Literá ria , acrescentada em 1960, revela a oposição
de Ingarden ao programa positivista do movimento — o que se compreende
facilmente pelo que a seguir diremos.
Aliás, não é a única referência ao C írcu lo de Viena. Essa nota, porém,
tem especial interesse porque, ao lado de Carnap e de Wittgenstein, Ingar­
den refere-se a outra importante escola polaca de lógica, em que sobres­
saem os nomes de Lesniewski, Zukasiewcz, Tarski. Portanto, e como seria
natural, conheceu o grupo de Varsóvia. N o entanto, ao falar, no Prefácio
e noutros passos, da nova lógica, ou nova orientação em lógica, é a lógica
fenomenológica que tem em mente.
Do valor estético da obra literária quase ninguém jala hoje.
«Ainda não é formalizável, talvez dentro de cinqüenta anos...»,
disse-nos alguém que se move na zona de influência de A.-J. Grei-
mas, durante o Seminário de Semiología, realizado no Verão de 71,
em Urbino. Mesmo o conceito de obra literária se esfuma perante
outros mais englobantes, como o de escrita. Quanto à aliança
entre lingüística e lógica, só na década de 50, com o segundo
Wittgenstein, Chomsky e outros, se voltou a tentar. Mas isto
é terra prometida e mal vislumbrada para a maioria, mesmo nos
nossos dias. E todos os problemas respeitantes ao «a u tor», de
que neste livro se fala, embora com certa cautela e precaução?
Ingarden ainda acreditava em tudo isso.
Não deploramos o passado nem os sacrifícios epocais, que
é por vezes indispensável consentir, para uma sempre maior
radicalização de conceitos básicos, para a renovação, crescimento
e reajustamento dos diferentes domínios do saber. Mas não dei­
xamos de sentir a urgência de certas recuperações fundamentais.
Por isso desejaríamos ver neste livro, ultrapassado em certos
sectores, um sinal precursor de uma nova, futura era, de unidade
e síntese (onde estas forem possíveis), mas sobretudo menos
redutora, mais englobante e fiel à complexidade do real.

Fenomenología, lógica, estética... coisas a mais para o leitor


médio de formação lingüística e literária, a quem se destina,
afinal, esta colecção. É para ele este Prefácio. Pensamos que lhe
falta o apetrechamento conceptual e terminológico de base para
toda e qualquer leitura de A Obra de Arte Literária, se não dispõe
de uma iniciação ã fenomenología husserliana. A brir o caminho
a esta iniciação, mais precisamente, ao entendimento deste livro
no terreno de onde nascem as suas raízes mais fundas, eis o que
pretendemos em prim eiro lugar.
Mas aqui as coisas complicam-se. P or um lado, Ingarden faz
um apelo constante a noções fenomenológicas fundamentais:
intencionalidade (acto de simples intenção, objecto intencional,
correlato intencional,, factor de direcção intencional...), intuição,
representação, preenchimento (Erfüllung), doação originária...
N o entanto, quem leia o seu livro e esteja familiarizado com o
pensamento do «venerado mestre» verifica que expressões idên­
ticas ou semelhantes às de Husserl podem recobrir realidades
diferentes! Está neste caso a noção, tão importante para Ingarden,
de puramente intencional, com as subdistinções que lhe estão
ligadas (§§ 20-22, entre outros). Mas o contrário também pode
acontecer, isto é, que uma ligeira alteração terminológica exprima
exactamente a doutrina de Husserl. Pensamos na teoria da Wort-
X

laut (a palavra no seu aspecto fón ico), em que o discípulo cuida


fazer ohra um tanto original (§§ 9, 10, 12) e que é, quanto a nós,
no essencial, a teoria husserliana do signo verbal (Wortzeichen),
termo a que Ingarden recorre também, sobretudo no final da
obra (§§ 62, 64, 66). E há a presença constante do professor de
Gõttingen pràticamente em todas as páginas deste livro, mesmo
quando não é nomeado. Basta indicar o peso enorme, desmedido,
da intuição em sentido husserliano, que nos parece ser o eixo em
torno do qual se organizam todos os elementos que contribuem
para a valorização estética da obra literária. E há as críticas
e divergências apontadas por Ingarden no Prefácio de 1930 e
nalguns outros passos, nomeadamente no importante § 66.
No âmbito destas divergências se inscreve o famoso e irri­
tante debate entre Realismo e Idealismo, que aterroriza os novos
e faz sorrir os cépticos. Falar de filosofia, hoje? É verdade que
se não fala muito de filosofia, que se julga possível neutralizá-la,
pelo menos metê-la entre paréntesis, recorrendo a noções pura­
mente «operacionais»... È verdade também que Ingarden nem
sempre é claro e que o debate entre Realismo e Idealismo passou
de moda. Não nos parece, contudo, tão ultrapassado como isso
ao insistir na necessidade de uma reflexão filosófica sobre o
fenómeno literário 3.
Acabámos de delinear, muito por alto e a partir de alguns
exemplos mais relevantes, um estudo a fazer — as relações entre
o pensamento de Husserl e o de Ingarden— , estudo que não
cabe num prefácio, pois, a ser feito, teria de ser longo, minucioso,
fundado em citações precisas das obras dos dois filósofos.
Não queremos, contudo, deixar o leitor não especialista com­
pletamente desarmado. Mas não é fácil explicar em poucas pala­
vras o que é intencionalidade, constituição, redução eidética,
redução transòendental e outras noções fundamentais; nem parece
indispensável fazê-lo aqui. Existe uma bibliografia em português
que os estudiosos de literatura e de lingüística só ganharão em
conhecer4.

3 O problem a será retomado na conclusão deste Prefácio.


4 De A. F. Morujão, A Doutrina da Intencionalidade na Fenomenología
de Husserl (Coimbra, separata da Biblos, X X X , 1955); Mundo e Intencio­
nalidade (Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos, 1961). De J. Fragata,
A Fenomenología de Husserl como Fundamento da Filosofia (Braga, Livraria
Cruz, estudos public. pela Fac. de Filos, de Braga, 1959); Problemas da
Fenomenología de Husserl (Braga, Livraria Cruz, estudos public. pela Fac.
de Filos, de Braga, 1962). De G. de Fraga, De Husserl a Heidegger. Ele­
mentos para uma Problemática da Fenomenología (Coimbra, Instituto de
Estudos Filosóficos, 1966). Por último, um breve mas útil artigo de M. An­
tunes, «Crítica literária e fenomenología» (in Brotéria, L X X V I, 4, 424-35).
XI

Posto isto, retomaremos alguns dos problemas atrás indi­


cados e outros que julgarmos necessários, começando por situá-los
numa perspectiva histórica.

§ 1. Ingarden e Husserl

Ingarden foi discípulo de Husserl em Gõttingen, a partir de


1909 aproximadamente, e segue-o para Freiburg, onde este ensinou
desde 1916 até ao fim da sua carreira docente 5.
Largos anos de convívio pessoal e uma comunicação de ideias
que a separação não quebrou6 e se traduz por numerosos artigos
sobre Husserl e por uma volumosa correspondência mantida
quase até à morte do fundador da fenomenología, em 19387.
Da profunda marca deixada pelo professor e amigo no jovem
estudante polaco que, por volta dos dezoito anos, chega a Gõt­
tingen para conhecer o autor das Logische Untersuchungen, é a
presente obra testemunho irrefutável. Influência profunda que se
alia a não menor independência de espírito. Ê esta a sorte comum
de todos os grandes iniciadores. Mas talvez só eles mereçam ter
discípulos dissidentes...
O debate entre Realismo e Idealismo (que, segundo Ingarden,
é o horizonte último dentro do qual se investiga a essência da
obra literária), as sérias reservas feitas ao idealismo trancen-
dental e outras posições do filósofo polaco só se podem entender
à luz da doutrina das Investigações Lógicas e da evolução de
Husserl durante o chamado período de Gõttingen (1901-1916).
Esta evolução surpreendeu a maioria dos seus adeptos da p ri­
meira fase; H. Spiegelberg, que conheceu muitos deles pessoal­
mente, fala mesmo de consternação, « consternação crescente» 8.
No começo do século, em 1900 e 1901, Husserl publica os
dois volumes de uma das obras que marcarão profundamente esse
mesmo século, as Investigações Lógicas, cuja repercussão no
mundo intelectual alemão foi enorme. E precisamente em 1901
deixa Halle e é nomeado professor em Gõttingen. Atraídos pela

5 H. Spiegelberg, The phenomenological movement. A historical intro-


duction, vol. I (The Hague, M. Nijhoff, 1960, Fhaenamenologica 5), 169-70
e 225.
6 Supomos, por indicações do Prefácio de 1930, que Ingarden perma­
neceu um ou dois anos em Freiburg. O que perfaz cerca de oito anos de
«aprendizagem» husserliana.
7 H. Spiegelberg, op. cit., 225.
8 Op. cit., 170.
XII

leitura deste livro, pelo prestígio do seu autor, começam, por


volta de 1905, a chegar à célebre cidade universitária os primeiros
discípulos, estudantes ou jovens professores. Entre eles, Adolf
Reinach, lohannes Daubert, M oritz Geiger, Theodor Conrad, Hed-
wig Conrad-Martius, Wilhelm Schapp, Alexander Koyré, Jean
Héring, Roman Ingarden, Edith Stein e o u tros9. A guerra de 14
dispersa definitivamente estes primeiros ouvintes e críticos que,
entretanto, formaram «círculos fenomenológicos» em Munique e
em Gõttingen 10. Mas a «Primavera fenomenológica», como J. Hé­
ring chamou a esta época de intensa vitalidade e entusiasmo n,
declina muito antes, se a entendermos como adesão sem reservas.
Husserl nunca teve a equipa de investigadores que desejou, tra­
balhando sistemáticamente segundo o seu plano e o seu método 12.
Não falando já das defecções célebres de Max Scheler e de Hei-
degger, esta numa fase posterior, o prim eiro choque que alertou
o ainda reduzido grupo de fenomenólogos-aprendizes foi o curso
de Verão de 1907, que ficou inédito até 1947 13. Aí aparece, segundo
os comentadores actuais, o prim eiro esboço da redução transcen­
dental. P or outras palavras, aí começa Husserl a abrir caminho
para a verdadeira fenomenología, que tem o seu acto oficial de
nascimento em 1913 com a publicação do vol. I das Ideias para
uma Fenomenología Pura e Filosofia Fenomenológica 14.
Em 1929, R. Ingarden trabalhava no presente estudo quando
aparece Lógica Formal e Transcendental, onde o idealismo husser-
liano é confirmado uma vez mais; a esta obra se refere no Prefácio
de 1930, para sublinhar com júbilo os pontos de convergência
entre o seu pensamento e o do antigo mestre, para recusar, com
certa subtileza mas de maneira inequívoca, o idealismo trancen-
dental. Este é, de facto, quanto a nós, a opção filosófica de base

9 H. Spiegelberg, op. cit., 169-70.


10 Sobre as relações dos dois Círculos cf. H. Spiegelberg, op. cit., 168-73.
11 J. Héring, «L a fénoménologie il y a trente ans. Souvenirs et réfle-
xions d'un étudiant de 1909» (in Revue Internationale de Philosophie,
Bruxelles, 1939), 369.
12 J. Héring, «Edm und Husserl. Souvenirs et réflexions» (in Edmund
Husserl. 1859-1959, La Haye, M. Nijhoff, 1959, Phaenomenologica 4), 26-7.
11 Editado com o título Die Idee der Phánomenologie. Funf Vorlestin-
g'en (E. Husserl, G. Werke, Haag, M. Nijhoff, 1947, Husserliana II).
14 «Ideen zu einer reinen Phánomenologie und phánomenologische
Philosophie». Este 1." vol. das Ideias... foi publicado no n.° 1 do importante
anuário de fenomenologia, então criado, o Jahrbuch fiXr Phánomenologie
und phãnomenologischen Forschung. O editor da revista foi Husserl, natu­
ralmente, com a colaboração de A. Pfánder e M. Geiger (de Munique),
A. Reinach (de Gõttingen) e M. Scheler (de Berlim).
XIII

do método fenomenológico, da fenomenología tal como Husserl


a concebeu. Mas esta recusa, que não é só de Ingarden, como
vimos, vem de muito antes!
Podemos imaginar sem custo o jovem estudante polaco
chegando a Gõttingen, por volta de 1910, trazendo na bagagem
as Investigações Lógicas (é ele quem o diz, algures) e verificando
que o seu autor ultrapassara já a fase atingida p o r essa obra,
fase pré-transcendental em que apenas se propusera estabelecer
com rigor as bases de urna nova lógica e em .que (herança do
positivismo, já decadente, mas com muita força aínda) tentara
manter-se numa neutralidade filosófica em relação ao Idealismo
como ao Realismo.
Esta neutralidade, aliás, é discutível. Entre os especialistas
de Husserl há quem veja, hoje, nas Investigações uma orientação
idealista. Mas a primeira reacção foi diferente. E Husserl contri­
buiu muito para essa interpretação ao dizer «co m uma ironia
séria»: «Os verdadeiros positivistas somos nós! » 15
A fenomenología das Investigações Lógicas ou a ilusão das
terceiras vias! A Primavera de Gõttingen ou o desmoronar de
mal-entendidos que, mais urna vez, Husserl foi o prim eiro a criar
com a sua famosa palavra de ordem: Zu den Sachen selbst! Nada
que não sejam as próprias coisas (die Sachen selbst), vistas em
si mesmas e com um olhar novo. . . A intuição. . . A pura descrição
das essências — e, para começar, das essências ou ideias lógicas.
Hegel provisoriamente expulso da circulação na Alemanha,
Freud ensaiando os primeiros passos, Níetzsche, o obscuro, a
poucos acessível, Kierkegaard ainda não descoberto senão no seu
país, onde ninguém é profeta: a cena filosófica está vazia. Can­
sados dum kantismo que sobrevivia em comentários de comen­
tários ou em secundárias ramificações de escola, dum positivismo
redutor e pobre, duma psicologia adolescente, ingênua e aguer­
rida que se julgava o centro do universo, compreende-se que os
primeiros leitores e ouvintes de Husserl vissem nele o que os
franceses viram em Bergson: um renovador. Um renovador que
afirma a necessidade de regressar ao concreto, à experiência
imediata: a intuição das essências; que recusa opções metafísicas;
que introduz uma certa ordem na lógica, anexada pela psicologia;
que forja ou renova noções que se consideram chaves capazes de
abrir todas as portas. Antes de mais, a noção de intencionalidade.
Infelizmente para os primeiros entusiastas, em 1907 e em 1913
Husserl dá dois grandes passos na direcção do idealismo trans-

15 J. Héring, art. cit. (in Rev. Intern. de Philo.), 370.


XIV

cendeníal. Regresso a Kant ou a algo de muito parecido com a


filosofia de K ant? Infidelidade ao ideal daí fenomenología como
ciência rigorosa 16? Repúdio de uma concepção supostamente
realista do princípio de intencionalidade?
Husserl é um eterno iniciador. Em cada obra se renova, em
cada estudo recomeça a caminhada infatigável para fundar a
filosofia. Um projecto inicial que se mantém, alargando-se sempre,
em cada fase uma versão nova da fenomenología. Ê p or isso que
encontramos hoje tantas fenomenologías diferentes: a de Sartre,
a de Merleau-Ponty e, muito antes, a de Reinach, a de Pfãnder,
a de Nicolai Hartmann, a de Max Scheler. A de Roman Ingarden.
O mestre forneceu os materiais de base. Com eles, cada um
dos ouvintes ou leitores muito cedo foi para o seu canto traba­
lhar, erguer a sua tenda. A de Ingarden é uma entre tantas outras.
Destrinçar o que nela há de autenticamente husserlíano e de
elaboração pessoal, repetimos, seria matéria para um estudo
profundo e extenso. Aqui, temos de nos lim itar a abrir caminhos.
Mas o que fo i dito permite ir um pouco mais longe.
Nas suas linhas gerais, o problema põe-se mais ou menos
nestes termos: enquanto Husserl se renova constantemente,
Ingarden, de certa maneira, parou ao nível das Investigações
Lógicas e de Ideias I, muito mais perto da primeira que da
segunda obra.
Não que Husserl fosse a única influência recebida. Igual­
mente importantes foram as de Pfãnder e de Bergson17. E o leitor
pode verificar p or si a numerosa lista de outros autores citados
neste volume. Também não pensamos que Ingarden tenha acei­
tado em bloco as Investigações, pois se afasta delas em pontos
importantes. Sabemos, por outro lado, que é bom conhecedor de
escritos posteriores de Husserl, publicados ou inéditos, alguns
dos quais são aqui referidos. Queremos dizer que os problemas
que mais fundamente o tocaram e suscitaram a sua reflexão vêm
das Investigações Lógicas e de Ideias I. É dentro da problemática
destas obras que se move, do seu conteúdo ou do impacto p o r
elas produzido — dos aplausos, dúvidas, perplexidades, críticas,
interpretações várias que suscitaram.
Quer as aceite, quer as rejeite ou discuta, é dentro deste
horizonte que se mantém. Um exemplo do prim eiro caso, o «fan­
tasma» do psicologismo; do segundo, o debate entre Realismo e
Idealismo.

16 «Philosophie ais strenge Wissenschaft», longo artigo de Husserl


publicado na revista Logos em 1910.
17 H. Spiegelberg, op. cit., 226.
XV

Diremos uma palavra sobre cada um deles, começando pelo


último.

§ 2. O debate entre Realismo e Idealismo

O contributo mais original de Ingarden em fenomenología


é talvez constituído pelas suas análises da obra de arte: literatura,
para começar, mas também música, pintura, arquitectura. A sua
obra fundamental, porém, diz respeito ao debate entre Realismo
e Idealismo, problema de todos os tempos que retomou aguda
actualidade com a adopção, por parte de Husserl, de um novo
idealismo transcendental18. E Spiegelberg cita Der Streit um die
Existenz der Welt como o estudo mais significativo do pensador
polaco 19. J. Héring confirma este testemunho dizendo que todos
os problemas suscitados pela nova atitude filosófica de Husserl,
concretizada em Ideias I, são exaustivamente tratados no im por­
tante manuscrito de Ingarden e faz votos pela sua rápida publi­
cação em francês ou alemão20.
Não conhecemos este livro, cujo título, A Controvérsia Acerca
da Existência do Mundo, só por si remete para um problema
central de Ideias I. Algo se pode deduzir das referências que
encontramos em A Obra de Arte Literária (notas da segunda edi­
ção), mas apenas um problema nos interessa agora: o que diz
respeito ao ser da obra literária.
Basta consultar um Vocabulário de Filosofia para verificar
como são múltiplas e por vezes discutíveis ou pouco claras as
noções de Realismo e de Idealismo. Assim, por exemplo, importa
não confundir o ponto de vista epistemológico com o ponto de
vista ontológico, que são distintos, embora correlativos: uma
teoria do ser está sempre ligada a uma teoria do conhecer. Não
só é fácil misturar os dois planos como se tornaram correntes
designações equívocas. A doutrina platónica das ideias, que aqui
nos interessa de maneira especial, tanto pode ser considerada
idealista (as ideias têm prioridade sobre os seres individuais e
materiais, que apenas são o seu reflexo ou imagem) como realista
(as ideias têm uma existência real e autónoma).
J. N. Mohanty afirma a propósito de Husserl: « Ele é um dos
raros, entre os filósofos anteriores à filosofia analítica, que recusa

18 H. Spiegelberg, op. cit., 226.


19 H. Spiegelberg, op. cit., 226.
20 J. Héring, art. cit. (in Edmund Husserl. 1859-1959), 28. A obra, em
dois volumes, foi publicada em polaco em 1947-48 e em alemão em 1964-65.
XVI

qualquer classificação em “ ismo” . De facto, o método que lhe


é próprio permitiu-lhe combinar na sua filosofia elementos tão
diversos como “ realismo” e “ idealismo” , “ racionalismo” ' e “ empi­
rismo”, “positivismo” e “pragmatismo” , “ intuicionismo” e “ inte-
lectualismo” .» 21 Em nossa opinião, já o dissemos, a filosofia de
Husserl é essencialmente uma forma de Idealismo. Mas julgamos
possível, como Mohanty, encontrar nela todas estas tendências —
tensões internas que talvez nunca se resolvam. O que ajuda a
explicar a pluralidade de «fenomenologías» a que Husserl deu
origem, assim como a multiplicidade de interpretações (por vezes
opostas) do seu pensamento.
Se isto se aplica à obra husserliana considerada no seu
conjunto («o b ra » de que aliás se não pode falar enquanto houver
inéditos não publicados...), aplica-se, de maneira especial, às
Investigações Lógicas.
Retomamos aqui o apontamento do parágrafo anterior, sobre
as primeiras reacções a este livro, desenvolvendo um pouco o
que atrás ficou dito. Houve quem nele visse um positivismo mais
largo — que admitia, por exemplo, uma intuição intelectual —
mas se abstinha de tomar posições metafísicas. Uma parte sig­
nificativa deste grupo interpretou a recusa do Idealismo e do
Realismo como uma terceira via que liquidava definitivamente
o dilema secular. Mas, ao contrário destes, muitos, e não só
entre os discípulos da primeira hora, viram na fenomenología
nascente uma abertura ao realismo epistem ológico22. Outros,
porém, deram à famosa intuição das essências um sentido plato­
nizante ou «idealista»...
Podíamos continuar a lista, mas paramos aqui pois chegámos
ao ponto que nos interessa.

31 Edmund Husserl’s theory of meaning (The Hague, M. Nijhoff, 1964,


Phaenomenologica 14), 2.
22 J. Héring formula bem o problema ao escrever: «II nous semblait
que la phénoménologie était aussi compatible — et même m ieux— avec
la thèse de 1’indépendance du monde ou avec celle de 1’interdépendance
de la conscience et du monde», art. cit. (in Edmund Husserl. 1859-1959), 27.
A independência da consciência e do mundo caracteriza o realismo
epistemológico medieval. Quanto à segunda alternativa aqui enunciada,
cremos que ela se aplica com alguma exactidão à ontologia fenomenológica
de Sartre. É uma interpretação grosso modo realista do princípio de
intencionalidade qüe Sartre apresenta aos leitores franceses num célebre
pequeno artigo de 1939: «Une idée fondamentále de la phénoménologie de
Husserl: l’intentionnalité» (in Situations I, Paris, Gallimard, 1947), 31-5.
De uma maneira geral, é esta a tendência que permanece na escola feno­
menológica francesa.
XVII

N o respeitante ao último problema enunciado, encontrámos


provàvelmente a posição de Ingarden. Urna nota do § 18 dá-nos
conta de perplexidades e oscilações por que passou em épocas
anteriores às da redacção de A Obra de Arte Literária. O certo é
que, ao escrevê-la, compara o Idealismo das Investigações Lógicas
com o idealismo transcendental (idealismo alargado. . . ) da Lógica
Formal e Transcendental. Mas só ao último faz sérias reservas.
Mais urna vez enunciamos um problema que vamos reduzir
às suas linhas elementares.
Qual o ser da obra literária e (o u ) das objectidades que
nela se manifestam? Os caps. 1 e 2 do presente livro (§§ 2-7)
respondem à pergunta, numa reflexão cerrada e densa. Mas o
problema fora posto logo no Prefácio e é retomado posterior­
mente, por exemplo nos §§ 18 e 66.
N o essencial, a solução de Ingarden consiste em recusar a
alternativa entre ser real e ser ideal para introduzir uma terceira
modalidade de ser:, o puramente intencional, que caracteriza,
entre outros, o ser da obra literária. Puramente intencional por­
que ontològicamente não autónomo mas dependente da cons­
ciência que o cria.
De certa maneira, esta nova modalidade de ser é também
uma terceira via — que não exclui mas se acrescenta às duas
zonas de ser consagradas por uma longa tradição. A analogia
com a terceira via husserliana ou pseudo-husserliana permanece,
contudo, no desejo de quebrar a alternativa entre Realismo e
Idealismo, para admitir, neste caso, uma terceira dimensão
ontológica.
Numa perspectiva puramente fenomenológica, seria a essên­
cia da obra literária a única a investigar e descrever. É nesta
linha que devemos compreender a teoria dos estratos e outras '
análises dos últimos capítulos. Mas Ingarden afirma com fre­
quência que a mera descrição fenomenológica lhe não basta. P o r
isso o objecto do seu estudò se insere num horizonte mais vasto,
a análise fenomenológica é acompanhada — precedida — por uma
reflexão ontológica na qual, precisamente, tomam lugar e sentido
a discussão do ser da obra literária.
Voltando às Investigações Lógicas, é curioso verificar que
Ingarden as rectifica ou completa, mais do que as rejeita. Fala-nos
das duas concepções opostas em lógica: a psicologista e a idea­
lista; esta última, afirma, tem o séu representante mais signifi­
cativo em E. Husserl e nos dois volumes de 1900-1901 (§ 18).
E, se lermos algumas passagens atrás indicadas (Prefácio de 1930,
§§ 18 e 66), parece-nos fácil concluir que Ingarden perfilha, de
XVIII

maneira muito menos inequívoca que Husserl, o platonismo das


essências, quanto a nós erradamente atribuído ao mestre. Apenas
faz algumas distinções, importantes mas secundárias, quanto ao
assunto que estamos tratando. Retira às significações husserlia-
nas a idealidade, isto é, a intemporalidade e a invariabilidade, mas
para a atribuir ao que chama essências, conceitos, objectidades
ideais. Esta zona da idealidade pura é apresentada em termos
que nos parecem perfeitamente platonizantes, talvez melhor,
agostinianos.
Poder-se-ia objectar que apela, neste caso, para a teoria da
intersubjectividade, que cita mesmo as Meditações Cartesianas
no § 66. É, sem dúvida, um contributo valioso para o problema
de que se ocupa nesse parágrafo (e que retomaremos em breve).
As suas observações têm actualidade e lêem-se com imenso inte­
resse. N o entanto, o apelo à intersubjectividade funciona também
(sobretudo dentro da economia do livro) como um desvio que
lhe permite regressar ao ponto de partida, por outras palavras,
que lhe serve para distinguir significação e conceito, para fazer
do conceito o fundamento ontológico das unidades de significação
e, finalmente, para manter as três zonas de ser: ser real, ser ideal,
ser da (criado pela) consciência.
Sem poder concluir, pela leitura de A Obra de Arte Literária,
quais as posições tomadas pelo filósofo polaco em todos os
aspectos da controvérsia entre Realismo e Idealismo, parece-nos
que a análise sumária que acabamos de fazer confirma o que
atrás dissemos sobre a fase da fenomenología husserliana que
sobre ele teve influência decisiva. A comparação com Heidegger
pode ser elucidativa. Enquanto o autor de Sein und Zeit faz, em
relação ao mestre comum, uma opção comparável à de Ingarden
mas cria uma metafísica com bases totalmente novas, este fica
preso à problemática da sua juventude em Gõttingen.
Que a distinção entre intencional e puramente intencional
(com as subdistinções que se seguem) não é husserliana, seria
possível demonstrá-lo com facilidade. O próprio Ingarden o
sugere, talvez, numa nota ao § 20. Aplicado à literatura, o pura­
mente intencional parece-nos corresponder à ficção de Husserl:
literatura e artes em geral, embora Ingarden empregue as duas
noções sem as distinguir claramente.
A ficção está ligada à modificação de neutralidade, modifiy
cação do «quase», do «com o se» (ais ob), passagem ao irreal ou
puramente estético. Estas são as designações mais correntes em
Husserl. Reconhecemo-las em muitas páginas deste livro, nomea­
damente nos §§ 25, 33-37, 63... Ingarden emprega ainda outras,
XIX

de origem lógica. N o § 33 parece marcar urna certa distância


entre a sua teoria e a modificação de neutralidade husserliana.
Tanto quanto uma leitura atenta nos permite concluir, Ingarden
desenvolve e aplica a dominios concretos e diferentes dos de
Husserl a teoria condensada nos §§ 109-111 de Ideias I e de outros
escritos. Mas, no essencial, não vemos a menor diferença entre
os dois autores. Há mesmo descrições da Neutralitátsmodifikation
extremamente felizes e perfeitamente conformes à doutrina do
mestre 23.
Só mais uma palavra a terminar este parágrafo. Que Ingar­
den, como tantos outros que o fundador da fenomenología, de
perto ou de longe, tocou, tenha seguido o seu próprio caminho,
é com ele e com os seus leitores. Mas, num país onde o pensa­
mento husserliano é tão mal conhecido, esta tradução pode cons­
tituir um perigo grave: o de atribuir a Ingarden ideias que são
de Husserl ou de pôr em circulação como husserlianas ideias e
teorias que, de facto, o não são. E isto em pontos tão funda­
mentais como é, por exemplo, a intencionalidade.
Sem tratar a questão, parece-nos útil uma rectificação de
princípio. Tratar o intencional (ou o puramente intencional, tanto
faz, visto que esta distinção começa já por não ser husserliana) 1
como um modo de ser é falsear Husserl, é colocar o problema
num plano ontológico em que este nunca o colo cou 24. A intencio­
nalidade husserliana é uma propriedade da consciência, proprie­
dade essencial que a define totalmente: a sua capacidade de
referência ao ser, segundo modalidades ou intenções várias:
perceptiva, imaginativa, estética, intenções afectivas que se diver­
sificam ao infinito, modos de intencionalidade puramente racio­
nais, como os que encontramos na lógica... Limitamo-nos a dar
uma pálida ideia de um domínio por assim dizer ilimitado.
Mas esta é apenas uma primeira aproximação: porque, antes
da redução transcendental, portanto, ao nível das Investigações,
a intencionalidade é um encontro; depois, é uma constituição2S.

23 Permitimo-nos remeter para o nosso estudo L'imagination selon


Husserl (La Haye, M. Nijhoff, 1970, Phaenomenologica 34), especialmente
para o cap. IV, «Imagination et neutralisation», 175-246.
24 Que o idealismo transcendental de Husserl seja uma opção meta­
física é inegável. Assim como a maneira de conceber a consciência no tão
discutido e discutível § 49 de Ideias I. Mas isso é outro problema.
25 P. Ricoeur, introdução à trad. franc. de Ideias I (Paris, Gallimard,
1950), XX. Para um conhecimento mais actualizado da intencionalidade
recomenda-se o último volume da Phaenomenologica: D. Souche-Dagues,
Le développement de Vintentionnálité dans la phénomenologie husserlienne
(La Haye, M. Nijhoff, 1972, Phaenomenologica 52).
XX

§ 3. Psicologismo, antipsicologismo, fenomenología

A crise das ciências é um fenómeno bem conhecido que


domina as últimas décadas do século passado e entra pelo
século X X . Husserl é um dos que, ao lado de tantos outros,
enfrentam esta crise e tentam resòlvê-la. P or isso passa da mate­
mática à lógica, da lógica à fenomenología, numa motivação que
permanece através de metamorfoses várias: a de introduzir
ordem, clareza e rigor num edifício onde reina o caos.
Na sua tentativa para fundar a lógica em bases sólidas
encontra o psicologismo, ou seja, o imperialismo da psicologia,
que, juntamente com a história, tenta reduzir todas as outras
ciências a meras províncias do seu império. Os leitores de for­
mação lingüística ou literária estão familiarizados com a abusiva
pretensão da história, com o historicismo reinante na «filo lo g ia »
e na crítica literária, sobretudo pelas reacções famosas e fecun­
das que provocou. Conhece menos o psicologismo, mas o modelo
historicista apresenta características idênticas. Talvez se possa
dizer que eram dois monopólios em concorrência, ou aliando-se
por vezes, para tornar mais confusas as coisas.
O psicologismo lógico era, pois, uma realidade. Mas a ética,
a estética, e assim por diante, não escapavam ao seu projecto
de dominação ou dominação efectiva. «O mundo é a minha
representação», tal a fórmula corrente no final do século que
condensa bem o psicologismo epistemológico. Esta tendência
remonta a Hume e é dela. qtie fala Sartre no artigo citado páginas
atrás (nota 22), que muitos leitores portugueses conhecem. «Que
é uma mesa, um rochedo, uma casa? Uma certa reunião de “ con­
teúdos de consciência” , um arranjo destes conteúdos. Õ filosofia
alimentar!» 26 «Contra a filosofia digestiva do empírio-criticismo,
do neokantismo, contra todo o “ psicologismo” , Husserl não se
cansa de afirmar que é impossível dissolver as coisas na cons­
ciência. » 27
Antecipando sobre o assunto do § 5, não convirá lembrar
que a famosa « imagem acústica» de Saussure é um exemplo
admirável da «filosofia alimentar» de que fala Sartre? Uma
espécie de duplo (imagem), de cópia, de representação psíquica
no interior da consciência concebida como armazém... Assim,
Saussure escapou à tutela da história mas não escapou por com­
pleto à psicologia dominante do seu tempo. Felizmente que há

26 Art. cit., 31.


27 Ari. cit., 32.
XXI

outras coisas, e bem melhores, no Cours de linguistique générale.


A «imagem acústica» é, porém, umâ noção psicologista típica.
Quando Husserl escreve as Investigações Lógicas, o psicolo­
gismo, sob todas as suas formas, e especialmente o psicologismo
lógico, é de facto um gigante que se torna indispensável derrubar,
e vencer. A finalidade do vol. I, Prolegómenos à Lógica Pura, é
precisamente esta: desembaraçar o terreno do mal-entendido que
tudo adulterou ao reduzir os conceitos lógicos a meros produtos
de operações psíquicas, a conteúdos de consciência. Confundir
facto e essência, afirma ainda Husserl em Ideias I, é misturar
os planos. As essências — e, para começar, as essências lógicas —
devem ser compreendidas na sua pura idealidade, isto é, naquilo
que são, tal como uma intuição pura as apreende, libertas da
interpretação psicologista que as reduz a conteúdos psíquico
Por isso as designa, nas Investigações, p or species ideales.
Em nosso entender, não há aqui nenhum realismo das essên­
cias ou «idealism o» de tipo platonizante. Husserl foi mal servido
pela sua formação matemática e lógica. E, sobretudo, o desejo
de restaurar a especificidade do conceito lógico, de o subtrair à
zona de influência psicologista, levou-o sem dúvida a expressões
ambíguas.
Seja como for, Ingarden aceita o Idealismo das Investigações
Lógicas, quando aplicado à zona das idealidades puras. Assim
como continua, trinta anos depois dos Prolegómenos, a esgrimir
contra o psicologismo. Ê certo que esta tendência era profunda
e, por mais decisiva que tenha sido a influência de Husserl junto
de estudiosos das mais variadas especialidades que se conver­
teram à fenomenología (dando origem a correntes de lógica feno­
menológica, de estética fenomenológica, etc., etc.), o psicologismo
não morreu de vez. Posto sèriamente em causa, vai sobrevivendo.
O que era um gigante, no início do século, não se transforma
em simples moinho de vento, três décadas depois. N o entanto,
i sua persistência, menos generalizada, mais enfraquecida, não
parece justificar totalmente a luta encarniçada que atravessa o
presente volume. Com efeito, Ingarden não cessa de combater
d psicologismo, da primeira à última página de A Obra de Arte
Literária.
Porquê? Há razões objectivas para tal. Mas o nó da questão
situa-se numa zona mais profunda, num debate interior que
Ingarden trava consigo mesmo e que não acaba por resolver,
velo menos neste, livro. Ele reside, quanto a nós, no facto de
não ter acompanhado Husserl na sua posterior evolução.
Só a teoria da redução transcendental (que põe a nu a zona
ia consciência pura, onde esta se descobre a si mesma como
XXII

poder constitutivo de todos os sentidos em que apreende o mundo


e de todas as modalidades intencionais desta apreensão) permite
a Husserl ultrapassar, de maneira definitiva, o nível psicológico.
Se é certo que as Investigações Lógicas destruíram o pres­
suposto psicologista, também é verdade que a fenomenología
não logra ainda desprender-se por completo da descrição psico­
lógica.
Ora foi mais ou menos aí, dissemos, que Ingarden parou.
Do antipsicologismo das Investigações e de Ideias I reteve
certos elementos básicos e, em prim eiro lugar, a distinção entre
objecto (cõnteúdo) intencional (de um acto ou de uma frase) e
conteúdo real (entenda-se aqui real no sentido de psíquico, quase
a resvalar para o fisiológico). Por outras palavras, o intencional
é uma transcendência na imanência, algo que se manifesta ou
aparece na consciência pura mas se distingue do seu fluxo
imánente real.
Tudo isto adquire sentido na fenomenología husserliana da
maturidade, assente nos dois pilares que são redução transcen­
dental e constituição. Mas Ingarden permanece na ambigüidade
da primeira fenomenología (chamemos-lhe assim...), não se liber­
tando, pòr isso mesmo, da ameaça do psicologismo. São várias
as perplexidades, explícitas ou implícitas, que o fazem oscilar
perpetuamente entre uma descrição fenomenológica e uma des­
crição psicológica. È a ultima, contudo, que predomina em A Obra
de Arte Literária. N o único parágrafo introduzido em 1960,
segundo cremos, , o § 25a, chega a acusar Husserl e Pfãnder de
se não terem libertado por completo do psicologismo. P o r isso,
a própria fenomenología, tal como a entende, é uma atitude que
só assume a medo e quando não pode deixar de ser.
A este propósito queríamos chamar a atenção para dois
problemas, sendo o primeiro, como é natural, o da análise feno­
menológica que esperaríamos encontrar neste estudo. O segundo
diz respeito à problemática da «obra aberta», para empregar uma
expressão familiar aos nossos leitores.
N. Hartmann, M. Geiger, H. Conrad e outros aplicaram o
método fenomenológico à estética em geral ou à exploração de
domínios específicos da criação artística. Ingarden tem lugar
neste sector, segundo H. Spiegelberg e R. Bayer28. Mas... il faut
y regarder de plus près, como diria Sartre.
No Prefácio à terceira edição deste livro, o professor de
Cracovia explica como, pouco a pouco e em diversos escritos, se

28 Cf. H. Spiegelberg, op. cit., 226; R, Bayer, Histoire de Vesthétique


(Paris, A. Colin, 1961), 381.
X X III

foram delineando os contornos de uma estética fenomenológica,


como ele próprio a entende. Só a totalidade destes estudos dará,
pois, uma ideia exacta da sua doutrina. A Obra de Arte Literária
é apenas uma fase num longo caminho. Impossível caracterizá-la
fora de uma visão de conjunto. O que se pode verificar é que a
análise fenomenológica só de longe em longe aqui aparece.
No início do § 6 faz-se uma série de distinções importantes:
ontologia da obra literária; psicologia da produção artística no
domínio da literatura; análise dos actos de consciência que estão
na origem da estruturação da obra literária; obra considerada
em si mesma e distinta, tanto de um como de outro ponto de
vista (o psicológico e o fenomenológico, segundo cremos). Estas
distinções parecem-nos certas. Apenas lamentamos que o exces­
sivo receio do psicologismo tivesse impedido Ingarden de ir até
ao fim das exigências do método fenomenológico. R. Odebrecht
faz-lhe esta mesma crítica; Ingarden responde numa nota ao § 2
da segunda edição. Mas, por mais valiosa e penetrante que seja
a teoria dos estratos, estes «pairam no ar», efectivamente. Assim
como a análise horizontal da obra literária, a sua ordenação
temporal e espacial (§§ 54-55). Aí deparamos com observações
de real interesse que apontam para os estudos das estruturas
narrativas de um Brémond, de um Barthes, de um Greimas (de
Barthes, sobretudo, no famoso artigo de Communications 8) e
para os que se relacionam com o tempo na obra literária, tais
como os de J. Pouillon e G. Poulet. Mas de análise fenomenoló­
gica apenas alguns apontamentos esporádicos. Há a salientar os
§§ 62 e 66, onde se condensa o que é possível colher fragmenta­
riamente, aqui e além, sobre uma fenomenología da obra literária,
quer do ponto de vista do leitor, quer do ponto de vista do autor.

Falámos, no início deste Prefácio, da necessidade de certas


recuperações fundamentais. Entre elas a do «a u tor».
A par de tentativas várias, mais felizes umas que outras,
feitas sob o signo da psicanálise, e que, mesmo que o não queiram
ou professem o contrário, visam, por uma necessidade interna,
a esta recuperação — não poderíamos pensar na fenomenología
como outra via diferente a tentar, com vista à mesma finalidade?

Passamos agora ao que chamámos a problemática da «obra


aberta».
Nos caps. 13 e 14 (§§ 61-67), a propósito do terceiro estrato
da obra literária, R. Ingarden põe o problema do estado de
disponibilidade da obra, de certas zonas de indeterminação que
XXIV

nela encontramos, ou seja, em resumo, a possibilidade que esta


oferece de leituras diferentes, quer pessoais, quer epocais. Impos­
sível ler estas páginas sem pensar na teoria de Umberto E c o 29.
Certas afirmações do cap. 13 poderiam ser atribuídas a Eco ou
mesmo a Roland Barthes.
A distinção que faz entre a obra em si, idêntica a si mesma,
e as suas concretizações, múltiplas e variáveis, continua em
discussão. Uma interpretação husserliana levar-nos-ia a conside­
rar que um objecto X só se torna obra escrita pela leitura que
dela fazemos, eventualmente obra literária, esteticamente positiva
ou negativa, pelos juízos de valor que lhe atribuím os30. Ingarden
aproxima-se desta solução no § 65. Afirma, mais de uma vez,
que a obra apenas se manifesta ao leitor na sua concretização,
isto é, no acto da leitura, o que está muito perto da teoria husser­
liana. Admite até que o papel activo do leitor e do crítico possam
destruir a própria obra para produzir, em seu lugar, uma obra
nova.
Tudo isto no cap. 13 (§§ 61-64). Mas, no início do cap. 14,
§ 65, eis que o perigo do psicologismo, com o seu corolário
— o subjectivismo — , lhe surge como ameaça à objectividade, à
identidade da obra. Procura então recuperar o terreno perdido
(quanto a nós, ganho) recorrendo à idealidade do conceito.
lá foi dito que Ingarden distingue significação e conceito e
que só ao último atribui o estatuto ontológico da. idealidade pura.
Só o conceito ê imutável, invariável, intemporal, enquanto as sig­
nificações podem variar 3¡._ Mas o conceito é o fundamento da
significação! Pela participação ao mesmo conceito, d.ois interlo­
cutores podem compreender-se empregando palavras que, em prin­
cípio, admitem significações diferentes. De maneira análoga, dois
ou mais leitores podem ler o mesmo livro, cujo estrato significa­
tivo é susceptível de originar leituras várias, melhor: seria, mas
não é. As significações remetem para os conceitos e estes são
garantia de estabilidade. Assim se esconjura o risco da confusão,
da pulverização subjectivista do objecto literário.
Esta a solução de Ingarden para restaurar e fazer valer os
direitos da identidade da obra (§ 66).

29 L'oeuvre ouverte, trad. do italiano (Paris, Seuil, 1965).


50 Sobre a obra de arte em Husserl remetemos o leitor para o nosso
estudo «O primado da percepção e a concepção da obra de arte em
H usserl» (in Perspectivas da fenomenología de Husserl, Coimbra, Centro
de Estudos Fenomenológicos, 1965), 73-106.
31 Retomaremos o problema no § 5: A teoria husserliana do signo
lingüístico.
XXV

Convém parar um pouco e olhar para trás. Nos §§ 7 e 8


voltaremos ao 3.° estrato e então se verá melhor quais as possi­
bilidades reais que Ingarden concede à indeterminação da obra
literária. Para já, não esquecer que a questão surgiu com esta
motivação, circunscrita, pois, por limites relativamente modestos.
Aconteceu, porém, que a problemática se desprendeu do
ponto de partida, foi alargada, formulada na sua dimensão má­
xima: a obra literária surgiu-nos como promessa de um espaço
totalmente disponível o. uma pluralidade ilimitada de leituras.
Mas a abertura concebida nestes termos foi logo neutralizada.
Como vimos.
Que pensar da solução proposta por Ingarden? Ela apare­
ce-nos como uma tentativa arriscada, um percurso sinuoso que
não acaba por nos convencer nem parece convencer por completo
o próprio autor. O § 67, que fecha o capítulo 14, exprime mais
dúvidas do que certezas. Reconheçamos, porém, que Ingarden
teve o mérito de não fugir a um assunto difícil e escolheu um
caminho que, sem ser indiscutível, merece reflexão.
A semântica moderna encontrou as mesmas dificuldades.
Neste e noutros sectores de investigação da lingüística e da lite­
ratura diversas teorias foram propostas. Novos conceitos surgi-
ram. A questão mantém-se no horizonte.
Ao problema da leitura se liga de perto o da leitura crítica,
da análise literária. São conhecidas as divergências que dividem
este sector e que é possível reduzir a duas tendências fundamen-
lais: uma, um neopositivismo que busca critérios científicos de
análise; e outra ou outras formas de abordagem do fenómeno
literário que se arriscam a cair num neo-impr essionismo.
Sem resolver o problema, é muito possível que o filósofo
polaco nos marque o rumo certo ao afirmar que se torna indis­
pensável determinar os limites de variabilidade de uma obra
literária (§ 64). Por outras palavras, e indo ao fundo da questão:
há limites, fronteiras a estabelecer. Talvez com mais rigor,
parece-nos indispensável, hoje, que ao abordar uma obra literária
o façamos num projecto fundamental de ultrapassar o impres-
sionismo fácil do passado. Para isso há apetrechamentos cientí­
ficos de inspiração vária que não é permitido desconhecer e
entre os quais é possível escolher. Posto isto, e para além desta
exigência fundamental, há ainda lugar para a subjectividade do
leitor-crítico que se assume como sujeito. Gostaríamos de acres­
centar: que não pode deixar de. o fazer!
Não se julgue que esta precisão é um pormenor sem im por­
tância. Ê muito mais do que isso. Na verdade, cada leitor-crí­
tico não pode ler uma obra a não ser a partir da situação que
XXVI

ele mesmo è — situação sempre ligada a uma possibilidade de


opção — , situação e opção reveladas já, e antes de mais, no
método que escolhe ou consente para se introduzir no universo
a explorar.

§ 4. A teoria dos estratos

Impossível passar em silêncio, neste Prefácio, a famosa teo­


ria dos estratos, que constitui o travejamento fundamental de
A Obra de Arte Literária. Ainda aqui encontramos a influência
de Husserl32. Aliás, Pfãnder, Ingarden, Hartmann 33, outros talvez,
foram todos beber à mesma fonte.
O livro Teoria da Literatura, de R. Wellek e A. Warren, foi,
sem dúvida, o principal instrumento que divulgou junto do pú­
blico português o nome do filósofo polaco e quase exclusivamente
a teoria dos estratos! Primeiro, a tradução espanhola, de 1953,
que teve larga difusão nos nossos meios universitários. Anos
depois, a tradução portuguesa. O original inglês é de 1942 e a ele
se refere Ingarden no Prefácio à terceira edição do presente livro
para rectificar interpretações que considera erradas ou superfi­
ciais do seu pensamento. A breve referência de Wellek-Warren
não parece, de facto, uma boa introdução, mas a «análise enge­
nhosa e altamente técnica» 34 do antigo estudante de Gõttingen
não torna muito acessível o seu trabalho.
Com efeito, a enumeração dos quatro estratos, que se encon­
tra no § 8, e à descrição dos quais é consagrada a quase totali­
dade do volume, suscita numerosas interrogações.
Num quadro de pensamento e terminologia tradicionais ( as
unidades lingüísticas são ainda, neste livro, a palavra e a frase;
as modernas noções de fonema, monema, morfema, sintagma,
são-lhe desconhecidas) , Ingarden fala-nos, contudo, de problemas
a que Saussure, Bühler, Jakobson, Eco, Greimas, Barthes... nos

32 H. Spiegelberg, op. cit., 226: «In these studies Ingarden made im-
pressive use of the strata theory of pure logic as developed particularly
by Pfãnder on the basis of Husserl’s first suggestions.» Spiegelberg refere-se
não só a Das literarische Kunstwerk, mas aos estudo de estética em ge^ral
de Ingarden.
33 R. Bayer, op. cit., 347, considera N. Hartmann como um dos repre­
sentantes da tendência fenomenológica em estética e refere-se à sua ma­
neira de conceber a complexidade do objecto estético explicando a sua
estrutura por estratos.
34 R. Wellek, A. Warren, op. cit. (Lisboa, Publicações Europa-América,
1962), 188.
XXVII

habituaram. A alguns se fez referência. Podemos acrescentar o


problema do significado, o das funções da linguagem e outros.
A palavra função aparece-nos, por assim dizer, a cada página
deste livro com sentidos diversos. Mas, com frequência, estratos
e funções (no sentido, hoje corrente, de funções da linguagem)
estão relacionados ou confundidos. Esta relação não é clara mas
é profunda no espirito de Ingarden e vem de 1930. Numerosas
passagens de A Obra de Arte Literária se ocupam da função
expressiva ('Funktion des Ausdrückens ou Ausdrucksfunktdon
por vezes, geralmente Funktion der Kundgabe ou Kundgabe-
funktionj. Encontramo-la nos §§ 9, 10, 12, 19, 26... O § 19 tem
especial interesse, pois refere um artigo de K. Bühler, de 1920,
que contém um esboço do esquema que a Sprachtheorie difundiu
em 1934: as três funções da linguagem. Mas a influência de
Bühler não é única; outros autores são citados, no texto ou em
notas, Husserl nomeadamente, no § 13. Esta última influência
revela-se ainda na preocupação de Ingarden em distinguir a fun­
ção expressiva de outra — que passaremos a designar por função
apresentativai5— , ou seja, a Darstellungsfunktion de Bühler,
função denotativa ou referencial de Jakobson.
Tudo isto se tornará mais claro nos parágrafos seguintes ao
considerarmos alguns problemas que a teoria dos estratos sus­
citou.
A fim de abrir caminho aos dois problemas que atrás mencio­
námos: o significado, as funções da linguagem, é útil chamar a
atenção para duas notas acrescentadas à segunda edição, uma
ao § 9, outra ao estudo de 1958, As funções da Linguagem no Es­
pectáculo Teatral, (§ 3 ), publicado em Apéndice.
Estas duas notas foram motivadas pelo sucesso da Sprach­
theorie, que apareceu pouco depois da obra de Ingarden; nelas
se encontram associados os nomes de Bühler, Husserl e Twar­
dowski. A intenção de Ingarden parece clara: Bühler não é tão
original como se pensa porque, antes dele, Husserl tinha isolado,
nas Investigações Lógicas, a função expressiva, que aliás se encon­
tra já em Twardowski numa obra de 1894lb. A segunda nota é
mais extensa e pretende ser mais explícita que a primeira. Ci-

35 Ingarden emprega também, em geral, Darstellung, possivelmente


por influência de Bühler. A tradução mais correcta seria representação.
Mas a polissemia deste termo só gera confusões. Acresce que Reprasen-
tation (representação em sentido forte) convém com mais propriedade ao
3.° estrato. Acabámos por nos decidir por apresentação — designação que
também não é isenta de ambigüidade (of. nota 79).
36 Husserl cita Twardowski nas Investigações Lógicas, II, 1, 50. N o que
segue ocupar-nos-emos exclusivamente de Husserl.
XXVIII

tando sempre as Investigações, acrescenta-se: Husserl ocupou-se


aí minuciosamente, demoradamente (ausfürlich), de Ausdruck e
Kundgabe (podemos traduzir, respectivamente, por «expressão»
no sentido de expressão verbal e «expressão» ou «manifestação»
no sentido de função expressiva). Husserl modificou esta termi­
nologia, numa época posterior, para Bedeutung e Ausdruck
( « significação» e «expressão»). Há aqui algumas confusões.
Mais uma vez, e generalizando, o que é e o que não é de
Husserl? Sem descer a um estudo exaustivo, repetimos, tocare­
mos no assunto, e Husserl estará presente nos quatro pontos
seguintes, todos eles suscitados pela teoria ingardiana dos estra­
tos, a saber: a teoria husserliana do signo lingüístico; percepção
e significação; estratos e funções da linguagem; para uma estética
da intuição.

§ 5. A teoria husserliana do signo lingüístico

Na última nota citada no parágrafo anterior Ingarden mis­


tura dois problemas: o da função expressiva e o da expressão
verbal. Vamos separá-los, deixando para o § 7 decidir se encon­
tramos ou não em Husserl a dita função. Do que não há sombra
de dúvida é que Husserl formula em 1901 uma teoria do signo
lingüístico que tem semelhanças notáveis e diferenças não menos
importantes com a de Saussure.
Sem fazer uma análise exaustiva da questão, não queremos
deixar de assinalar o facto, demasiado esquecido. Apenas alguns
apontamentos, no desejo de que alguém os retome para estudo
mais profundo e com pleto37.
Três pontos fundamentais parecem aproximar Saussure e
Husserl: a descoberta de uma ciência dos sinais em geral; o
princípio de imanência a presidir às relações entre significante
e significado; o anti-historicismo dos dois pensadores, com a
consequente preferência pela descrição sincrónica e sistemática
das coisas mesmas.
Trata-se de afinidades, não de coincidências absolutas. Assim
é que os três pontos acima indicados só podem ser tomados
como tendências que vão no mesmo sentido. Muitas restrições,
reservas e precisões há a fazer agora.

37 Supomos conhecido dos leitores, o Cours de linguistique générale,


o que nos dispensará de citações constantes. Citá-lo-emos apenas quando
houver problemas de interpretação ou quando isso nos interessar por
razões especiais.
XXIX

Em prim eiro lugar, Husserl nunca fala de semiología. Refe­


re-se, contudo, e logo no início das Investigações Lógicas ( l . a In­
vestigação, cap. 1, § 1), a um vasto domínio de sinais ou signos.
O sinal (Anzeichen) não é o mesmo que signo (Zeichen) e signo
é também diferente de expressão (Ausdruck). Na prática podem
tomar-se os signos no sentido de sinais, indícios, marcas distin­
tivas... Exemplos: o estigma, signo do escravo; a bandeira, signo
da pátria; os monumentos; o nó no len ço... «E m sentido rigo­
roso, uma coisa não pode ser chamada signo (Anzeichen) a não
ser nos casos em que serve efectivamente a um ser pensante de
indicação para outra coisa qualquer.» 38 Neste vastíssimo campo
Husserl faz várias distinções, em que não nos detemos para ir
à que mais interessa: signos indicativos, de um lado; signos
significantes ou expressões, do o u tro 39. Estes últimos têm um
lugar à parte no conjunto: « Todo o signo é signo de qualquer
coisa, mas nem todo o signo tem uma “ significação” , um “ sen­
tido” que seja expresso com o signo. » 40
Não encontramos a designação que Saussure tornou célebre;
também não aparece a ideia de conjuntos ou sistemas de sinais.
Com estas reservas, Husserl não andou muito longe da intuição
do mestre de Genebra.
Quanto à confusão entre signo e sinal, inaceitável para um
saussuriano, ela não é grave para Husserl. O signo de Saussure,
que é a totalidade (do significante e do significado), corresponde
à expressão (Ausdruck) de Husserl41.
Sobre imanência muito haveria a dizer, mas limitamo-nos ao
essencial. Saussure operou uma revolução na lingüística ao banir
a ideia da língua como nomenclatura. Em vez de termos e coisas,
o signo saussuriano nunca desemboca no mundo extralinguístico
pois liga significante e significado. Há algo de muito semelhante
no projecto fundamental (mais inconsciente do que consciente
ou só progressivamente consciente...), na ideia-directriz da feno­
menología husserliana. Entendida como idealismo transcendental,
que é ela senão a descoberta da consciência constituinte e das
significações que constitui? «Zu den Sachen selbst!», proclamava
o professor de Gõttingen, mas o que o preocupava nessa mesma

38 Log. Unt., II, 1, 24-5.


39 Op. cit., II, 1, 30.
40 Op. cit., II, 1, 23.
41 À expressão, no seu aspecto físico, chama signo sensível, complexo
fónico articulado ou escrito num papel (Log. Unt., II, 1, 31). O signo lin­
güístico husserliano é o significante saussuriano (menos a imagem acústica)
reduzido, por abstracção, à pura materialidade.
XXX

época não eram as coisas mas os seus sentidos: a consciência e


os modos como as coisas se lhe manifestam.
A I Investigação Lógica tem por título Expressão e Signifi­
cação (Ausdruck und Bedeutung). A expressão remete para urna
significação — o significado de Saussure. A análise da significação
dá lugar ou relaciona-se com muitas outras distinções. Entre elas,
a de objecto intencional e matéria intencional. Matéria intencio­
nal ou unidade ideal de significação42. A significação determina
a referência intencional de um acto, na linha objectiva. Se toma­
mos, por exemplo, um acto de pensamento, um triángulo pode
ser pensado sob dois aspectos diferentes: triángulo equilátero,
triángulo equiángulo; Napoleão pode ser pensado como o ven­
cedor de lena ou o vencido de Waterloo 43. Em ambos os casos
temos o mesmo objecto, apreendido sob significações ou sentidos
diferentes. O sentido nunca coincide com o objecto: é o objecto
tal como nos aparece. E pode aparecer-nos de variadíssimas ma­
neiras! P or outras palavras, há que distinguir o objecto sobre o
qual se pensa algo e aquilo que dele se pensd44. Neste segundo
termo temos o significado, constituído pela consciência.
Estamos, pois, já, no domínio da imanência.
Em princípio, o objecto-intencional também não é uma trans­
cendência. Mas, ao nível das Investigações Lógicas, o intencional
é insuficientemente elaborado. Napoleão parece ser o referente,
introduzido posteriormente a Saussure. Nas Ideias I a redução
transcendental põe o mundo entre paréntesis, total e definitiva­
mente. Claro que no interior dos paréntesis vamos encontrar o
mundo! Mas tudo quanto a análise noético-noemática permite
descobrir é a consciência pura e o mundo nela constituído.
Falámos de três pontos de afinidade entre Husserl e Saus­
sure. Sobre o terceiro limitamo-nos a uma citação de B. Málm-
berg: nas Investigações Lógicas Husserl «reclama uma “gramática
pura” e proclama a existência de leis estruturais, mesmo na
língua» 45.
Esta afirmação pode induzir em erro. Não há dúvida de que
Husserl anteviu a possibilidade e a necessidade do que chamamos
hoje análise estrutural. O seu anti-historicismo, a sua formação
lógica predispunham-no para tal. N o que respeita à doutrina do

42 A Bedeutung husserliana pode ser considerada em dois sentidos:


como acto doador de significação e como unidade ideal de significação.
É a última acepção que está agora em causa.
43 Log. Unt., II, 1, 46.
44 Op. cit., II, 1, 46.
45 Les nouvelles tendances de la linguistique (Paris, P. U. F., 1968), 308
XXXI

significado ficou, contudo, muito aquém de Saussure. A distinção


saussuriana entre significado e valor, a descoberta de que o valor
de uma palavra depende da constelação em que está inserida,
dos seus «arredores», são mais fecundas para a fundamentação
da semântica estrutural do que a análise estática de Husserl.
Ê certo que este admite as «significações ocasionais», como Ingar­
den refere no § 18 de A Obra de Arte Literária. Mas é uma aber­
tura tímida em relação à visão de Saussure.
Temos aqui o prim eiro elemento que opõe os dois pensado­
res. Sem ser total ( e merecer, em nossa opinião, um estudo mais
profundo), não pode deixar de ser assinalado.
O segundo oferece a mesma característica. Ê conhecido o
lugar privilegiado que Saussure atribui à língua falada e consi­
derada como factor de comunicação. À primeira vista, não existe
nenhum privilégio deste género em Husserl, pelo menos nas
Investigações Lógicas. Quando fala da expressão considera-a, indi­
ferentemente, como signo verbal ouvido ou escrito. Refere-se, no
entanto, à função de comunicação da linguagem dizendo que esta
é a sua função originária46. Seria necessário completar estes
dados com a teoria da intersubjectividade, característica da sua
última fase.
Chegamos ao terceiro elemento que opõe Husserl e Saussure.
Em rigor, só deveria ser estudado numa visão global que com­
parasse as duas concepções de signo lingüístico. Mas estamos
perante uma divergência tão profunda e radical ( ao contrário
das duas precedentes) que não podemos deixar de lhe dar um
lugar à parte. Trata-se da imagem acústica, já atrás mencionada
(pp. xx-xxi).
Para compreender a origem e natureza deste conceito con­
viria lembrar a crítica que Sartre faz, em L ’imagination, à ma­
neira como a chamada «imagem mental» foi concebida durante
os últimos séculos, de Hume a Taine ou Spencer, digamos com
certo optimismo. A «imagem mental» não passava de cópia en­
fraquecida da percepção, uma espécie de duplo — de natureza
vária, consoante a interpretação dos teorizadores— que se vai
« armazenando» na consciência, no cérebro, se preferirem. Un
petit tableau à 1'intérieur de la conscience... à semelhança dos
quadros que penduramos nas paredes das nossas casas.
Nos dois livros que consagra ao assunto, L'imagination e
L'imaginaire, Sartre afirma que a fenomenología husserliana for­
nece um princípio capaz de acabar definitivamente com o pos-

46 Log. Unt,, II, 1, 32.


XXXII

tillado de imanência ( « filosofia alim entar»...) que se encontra já


na escolástica e na filosofia grega. O nosso estudo L'imagination
selon Husserl confirma o juízo de S artre47.
Neste ponto, o método fenomenológico vai muito mais longe
di que a psicologia dentista das «marcas depostas em cada
cérebro» 48 que alimenta a cultura de Saussure.
Não falta sequer, no Cours de linguistique générale, o para­
lelo entre as duas espécies de imagem, a imagem acústica c a
imagem visual, ou seja, a palavra escrita: « A língua_ é a deposi­
tária das imagens acústicas e a escrita a forma tangível dessas
imagens.» 49
A expressão de Saussure nem sempre é clara, mas o seu
pensamento parece sé-lo: o complexo fónico sensorial dá origem
a duas imagens — a imagem visual escrita, representação do signo
verbal, também comparável a uma fotogra fia 50. Mas será legítimo
opor fotografia e rosto? Não o eremos, visto que «o rosto», em
principio, nunca é considerado em H mesmo, mas sempre tam­
bém numa outra cópia ou representação: a imagem acústica.
Que é, afinal, uma‘ imagem acústica? Dissemos que o pensa­
mento de Saussure parece claro. Mas talvez não o seja. Quem

47 Sobre o postulado da imanência cf. pp. 38, 42-57, 62-3, 94-6, 100, 116,
140, 163-8, 248, 253.
48 Cours de linguistique générale, trad. port. (Lisboa, Publicações
Dom Quixote, 1971), 49.
49 Op. cit., trad. port., 43. «E n outre, les signes de la langue sont pour
ainsi dire tangibles; Vécriture peut les fixer dans des images convention-
nelles, tandis qu'il serait impossible de photographier dans tous leurs
détails les actes de la parole; la phonation d ’um mot, si petit soit-il, repré­
sente une infinité de mouverraents musoulaiires extrémement difficiles à
connaitre et à figurer. Dans la langue, au contraire, il n’y a plus que l’image
acoustique, et celle-ci peut se traduire en une image visuelle constante.
Car si l ’on fait abstraction de cette multitude de mouvements nécessaires
pour la réaliser dans la parole, chaqué image acoustique n'est, comme nous
le verrons, que la somme d'un nombre limité d’éléments ou phonémes,
susceptibles à leur tour d'étre évoqués par un nombre correspondant de
signes dans l’écriture. C'est cette possibilité de fixer les choses relatives
à la langue qui fait qu’un dictionnaire et uñe grammaire peuvent an étre
une représentation fidéle, la langue étant le dépót des images acoustiques,
et l’écriture la forme tangible de ces images» (Cours..., Paris, Payot, 1955),
32. Sublinhados nossos.
50 Op. cit., trad. port., 57. «M ais ie mot écrit se mêle si mtimement
au mot parlé dont il est l’image, qu’il finit par usurper le role principal;
on en vient à donner autant et plus d'importance à la représentation du
signe vocal qu'á ce signe lui-méme. C'est comme si l'on croyait que, pour
connaitre quelqu’un, il vaut mieux regarder »a photognaphie que son visage»
(C o u rs ...), 45, Sublinhas nossos.
XXXIII

sabe o que é uma imagem acústica?... A dificuldade em responder


a esta pergunta explica, por certo, que a designação alternei, com
a de «impressões acústicas» 51. Na célebre definição de signo lin­
güístico da I parte, cap. 1, § 1 do Cours... as confusões acumu-
lam-se — a imagem acústica não é o som puramente físico mas
a sua marca (empreinte) ou representação psíquica (im agem );
contudo, é sensorial e até por vezes lhe chamamos material... 52
O que parece sólido em tudo isto é a associação íntima, no
signo lingüístico, de dois elementos, um de carácter sensorial,
logo perceptivo, outro da ordem do conceito. Há algumas defi­
nições, no Cours de linguistique générale, tão importantes como
esta, em que a imagem acústica não entra. Pois nem a noção de
signo lingüístico nem a de significante perdem nada com isso.
M uito pelo contrário!
Impunha-se examinar agora a maneira como Husserl e Saus­
sure concebem a estrutura do signo lingüístico. Digamos, para
já, que ambos sublinham a sua arbitrariedade. Em Husserl é
este o critério fundamental que lhe permite distinguir signo e
im agem 53. Ambos insistem também no seu carácter um tanto
misterioso: realidade de duas faces, como uma folha de papel,
mas que é apreendida unitàriamente pela consciência.
Deixamos agora Saussure, que supomos conhecido, para ex­
por em breves linhas o pensamento de Husserl, que é nesta ques­
tão o parente pobre.
Ao ocuparmo-nos, há algum tempo, do assunto distinguimos
duas fases no pensamento de Husserl: urna mais dualista, a das
Investigações Lógicas, outra mais unitária, a de Ideias I I C o m
efeito, é impossível falar de concepções totalmente diferentes,
pois já na I Investigação, ao tratar da expressão verbal, Husserl
parte de «duas coisas» ou de uma «realidade de duas faces»
para sublinhar que entre elas existe a mais profunda «unidade».
É habitual distinguir na expressão a sua face física, o signo
sensível, e os actos doadores de sentido que lhe conferem signi-

51 Op. cit., trad. port., 69.


52 Op. cit., trad. port., 122. «L e signe linguistique unit non une chose
et un nom, mais un concept et une image acoustique. Cette derniére n’est
pas le son matériel, chose purement physique, mais l'empreinte psychique
de ce son, la représentation que nous en donne le témoignage de nos sens;
elle est sensorielle, et s'il nous arrive de l’appeler “ matérielle” , c'est seu-
lement dans ce sens et par opposition à l'autre terme de l'association, le
concept, généralement plus abstrait» (Cours...), 98.
53 L ’imagination selon Husserl, 91-4.
54 Art. já citado na nota 30 (in Perspectivas da fenomenología de
Husserl), 99-101.
XXXIV

ficação5S. Para o fundador da fenomenología esta distinção cor­


rente é inexacta, insuficiente pelo menos. O acto doador de
sentido é objecto de ampla análise (§§ 6-15 da I Investigação,).
Httsserl considera-o especificamente distinto da percepção que
apreende o signo na sua materialidade. Simplesmente, a pura
apreensão perceptiva do signo sensível ( pela vista ou pelo ouvido)
não é a apreensão da expressão verbal autêntica ou completa:
a expressão como tal é a expressão animada de um sentido56.
O dado sensorial é pura matéria informe que tem de ser investida
por uma forma, a significação. Esta ideia aparece já nas Inves­
tigações Lógicas e é desenvolvida nas Idéias I 57.
A expressão é, pois, já, uma forma. O acto perceptivo encon­
tra-se totalmente recoberto pelo acto doador de sentido.
Embora se exprima por vezes em termos dualistas ( a expres­
são é o suporte — Tráger— da significação), Husserl faz um
esforço constante para ultrapassar este dualismo, sem contudo
confundir ou misturar o que é de essência diversa. Chega a pôr
em causa a existência das «duas faces» na relação significante-
significado, seja-nos permitida a terminologia saussuriana: «Uma
relação fenomenológica mais aprofundada desta relação só pode-
' ria ser realizada pelo exame da função de conhecimento das
■ expressões e das suas intenções de significação. Resultaria daí
que a concepção das duas faces a distinguir em todas as expres­
sões não poderia defender-se seriamente; ao contrário, a essência
da expressão reside exclusivamente na significação.» 58 Ao retomar
o assunto, na V Investigação, afirma que os actos doadores de
sentido não são exteriores à expressão nem lhe são justapostos
como se fossem apenas dados à consciência ao mesmo tempo.
Trata-se da conexão de duas espécies de actos, não de uma soma,
que produz um acto global unitário no qual se pode distinguir,
de certa maneira, uma face material e outra espiritual59.
Ê fácil verificar que, nestas diferentes formulações, nem
sempre totalmente concordantes, Husserl se debate com um fenó»
meno complexo, difícil de analisar e de dizer.
Em Ideias II, a palavra (e, por extensão, a linguagem, o
liv ro ) surge-nos ao lado de outras realidades que compõem o
Umwelt, o mundo humanizado, atravessado por significações cul-

55 Log. Unt., II, 1, 31-2. (Significação e sentido são sinónimos para


Husserl.)
56 Op. cit., II, 1, 38-9.
57 L'imagination selon Husserl, 35.
58 Log. Unt., II, 1, 49.
59 Op. cit., II, 1, 407.
XXXV

turáis, mundo humano da vida quotidiana no qual nos movemos.


A palavra, a pessoa, a obra de arte, instituições de qualquer espé­
cie, o simples objecto de uso diário que tem um sentido para
nós, são reunidos sob a designação genérica de unidades com­
preensivas. Em qualquer dos casos trata-se de objectos espiritua­
lizados. A expressão verbal, para considerar apenas o exemplo
que nos interessa, é já, do ponto de vista material, urna corporei-
dade espiritual (eine geistige Leiblichkeit) 60. Por outras palavras:
encará-la como tal (com o mera realidade m a teria l...), ao nivel
perceptivo, é puro contra-senso.
• Ê fácil confrontar esta doutrina com a de Saussure e concluir
que a raiz da inspiração husserliana é muito diferente da que
nos propõe o «p a i» da lingüística moderna.
O breve resumo apresentado parece confirmar o que escre­
vemos no início deste Prefácio: a teoria da Wortlaut (a que, nos
§§ 8, 10, 12, Ingarden chama a sua teoria) é, afinal, a de Hus-
serl. . . 61 Acrescente-se, no entanto, que Ingarden foi mais longe
no desenvolvimento que lhe deu.
Há que assinalar, antes de mais, a importante distinção entre
conteúdo material e conteúdo formal da significação (§ 15).
Seria do maior interesse confrontar a doutrina ingardiana com
a fronteira traçada por Hjelmslev entre forma e substância do
conteúdo, que Greimas retoma e desenvolve na Sémantique struc-
turalé.
Outro problema relacionado com o precedente: ao nivel das
unidades de significação superiores à palavra também Ingarden
traz algo de novo.
Tanto Husserl como Saussure identificaram significação (sig­
nificado) e conceito. Ingarden distingue-os, como ficou dito.
Retirar a idealidade à primeira para a atribuir ao segundo
resolve o problema? Deixamos a questão em aberto. O certo é
que, ao nivel da significação, o discípulo avançou em relação ao
mestre. Por influência do próprio Saussure, citado numa nota
do § 3 de A Obra de Arte Literária? È duvidoso. As fontes lin­
güísticas verdadeiramente importantes para o filósofo polaco
parecem ser Humboldt, Wundt, A. Marty, Brugmann, Delbrück,
nomes bem conhecidos, representantes de escolas ou correntes
que em 1930 se não podem considerar de vanguarda... A estes

e0 Perspectivas da fenomenología de Husserl, 86-100, especialmente 98.


6r Curiosa urna nota ao § 9: «Parece que E. Husserl já se refere, ñas
Investigações Lógicas, à diferença entre o material fónico concreto e o
elemento formal significativo (. . . ) » . Não só nesta obra como nas Ideias, I,
precisamos.
XXXVI

sé juntam adeptos da lógica fenomenológica, sendo A. Pfãnder o


mais significativo. De autores como Humboldt e outros, Ingarden
desenvolve, contudo, os pontos em que foram precursores. Cita,
por exemplo (nota ao § 11), urna frase de Humboldt que confere
prioridade ao discurso em relação aos elementos que o compõem:
frase e palavra. A unidade superior é, em principio, a que confere
sentido às unidades menores (§§ 15-19, 21-23). Assim é que o
livro de Ingarden nos oferece em 1930 esboços de semántica
estrutural62.

§ 6. Percepção e significação

A.-I. Greimas escreve na Sémantique structurale que a per­


cepção é «o lugar não lingüístico onde se situa a apreensão da
significação» 63, que o significante designa «os elementos ou gru­
pos de elementos que tornam possível a aparição da significação,
ao nível da percepção (...)»* * , que as significações «são reco­
bertas pelo significante e manifestadas graças à sua existência» 65.
Afirmações análogas se encontram nas pp. 11, 18, 30 e outras 66.
Para um leitor apressado todas estas formulações se eqüi­
valem e não levantam problema. Sobretudo se são lidas à luz
da preferência expressa p o r Merleau-Ponty e pela sua atitude
epistemológica, que caracteriza, segundo Greimas, a das ciências
humanas em geral no séc. X X 67.
Tudo parece claro e simples. Merleau-Ponty deu o golpe de
misericórdia nos dualismos vetustos do passado, iniciando ou
corroborando o reinado da clareza, da não-ambiguidade... Para
desgraça dos espíritos cartesianos de todos os tempos ( dualistas
ou não, o que é, afinal, secundário) as coisas nunca são simples,
e Merleau-Ponty não fala de simplicidade mas precisamente de
ambigüidade — ambigüidade em sentido forte e não no de con­
fusão ou mal-entendido.

62 De sintaxe distribucional também.


63 (Paris, Larousse, 1966), 8.
64 Op. cit., 10.
65 Op. cit., 10.
66 «Quel que soit le statut du signifiant, aucune classification de signi-
fiés n’est possible à partir des signifiants. La signification, par conséquent,
est indépendante de la nature du signifiant grâce auquel elle se manifeste»,
p. 11. Aqui a inspiração parece ser diferente e poderia ser interpretada em
sentido husserliano. Quanto à frase citada na nota precedente, é tão vaga
que admite todas as interpretações possíveis.
67 Op. cit., 7.
XXXVII

N o que respeita a percepção e significação, apenas uma per­


gunta: será exactamente a mesma coisa dizer que a percepção é
o lugar onde se apreendem as significações e afirmar que estas
se manifestam ao nível da percepção? Ê discutível, claro... Tudo
depende do sentido que se atribui a cada termo... Quer-nos pare­
cer, contudo, que a primeira formulação poderia ser compreen­
dida num sentido tradicional: «N ih il est in intellectu quod prius
non fuerit in sensu»... Pois onde apreender as significações a
não ser na percepção, na experiência, melhor, a partir da expe­
riência, visto que não há outro ponto de partida seja para o que
for?! Mas, sendo assim, onde está a novidade? Visto que de novi­
dade se trata, tal interpretação é inaceitável. E a fórmula que
melhor condensa o pressuposto epistemológico de Greimas parece
ser a que aponta para a significação dada ao nível da percepção.
Continuamos a perguntar: a apreensão significativa é uma
e a mesma coisa que a apreensão perceptiva? É um elemento da
percepção, identifica-se ou reduz-se à percepção? Este o verda­
deiro problema, o que deveria fazer reflectir. Mas até agora só
ouvimos repetir.
Antes de continuar, duas observações.
Greimas não nos interessa de maneira especial. Partimos dele
pela importância que tem no panorama lingüístico actual e por
ser um bom representante de uma atitude que tende a genera­
lizar-se. Ê esta atitude que nos interessa, e justamente porque
tende a generalizar-se.
Segundo ponto: de que percepção se trata? Esta questão
impõe-se porque Husserl distingue da percepção sensível ( a «sen­
sação» dos velhos tempos) uma outra percepção, intelectual,
categorial. Percepção, intuição e experiência são termos pràtica-
mente sinónimos. Temos assim duas formas diferentes de per­
cepção, de intuição, de experiência. No quadro da fenomenología
husserliana a distinção é nítida e não é possível confundir os
planos. Fora dele este alargamento pode ser fonte de confusões.
Husserl não será, em certa medida, responsável pelo sentido vago
e indeterminado que se dá por vezes à percepção? Talvez. Mas
só por um conhecimento também vago e impreciso do seu pen­
samento.
Terminamos este paréntesis precisando que ao falar de per­
cepção nos referimos sempre à percepção sensível ou doação
originária em sentido estrito.
Deixando agora de lado Merleau-Ponty e a relação entre a
sua epistemología e a de Husserl, gostaríamos de voltar à teoria
husserliana do signo lingüístico. Ou à teoria ingardiana da Wort-
lauit. No ponto que nos interessa, mestre e discípulo estão de
XXXVIII

acordo: a expressão como tal ( o signo lingüístico de Saussure)


nunca pode ser objecto de simples percepção porque investida
por um significado. Por outras palavras: o significado não se
apreende ao nível da percepção.
Concordamos que o pensamento de Husserl não é de urna
total clareza, a maneira como se exprime também não. Mas se
as coisas mesmas não são claras e simples? Se são... ambíguas?
Afinal, Husserl diz bem esta ambigüidade em vez de a dissolver.
N o Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage pode
ler-se a propósito de «.signo»: «O ponto mais litigioso diz respeito
à natureza do significado. Tem-se definido este como falta, ausên­
cia no objecto perceptível, que se torna assim significante. Esta
ausência equivale, pois, à parte não sensível; quem diz signo
tem de aceitar uma diferença radical entre significante e signifi­
cado, entre sensível e não sensível, entre presença e ausência.
O significado, diremos tautológicamente, não existe fora da sua
relação com o significante — nem antes, nem depois, nem para
além; é o mesmo gesto que cria o significante e o significado,
conceitos que se não podem pensar um sem o outro. Um signi­
ficado sem significante é o indizível, o impensável, o inexistente
mesmo. A relação de significação é, em ccrto sentido, contrária'
à identidade consigo: o signo é ao mesmo tempo o que está ali
e o que falta: originàriamente duplo.» 68 ■_
Onde Husserl fala de material e espiritual aqui diz-sc
«sensible et non sensible», «présence et absence», «marque et
manque»...
Desejo de empregar terminologia nova (nova?... Sartre não
anda longe.. . ) para evitar o « espiritual», carregado de uma certa
ideologia que se pretende evitar a todo o custo? Parece que sim.
De qualquer modo não se cai em afirmações simplistas, de uma
clareza total, que conduzem em regra a certezas curtas. E o im ­
portante é não esvaziar o real da sua carga de opacidade, de
complexidade, de não coincidência consigo mesmo.
Este o verdadeiro problema. O dualismo ou não dualismo
é secundário, dissemos. Nunca se louvará suficientemente Mer­
leau-Ponty, por exemplo, por ter desembaraçado a filosofia do
dualismo simplista de Descartes, que a experiência desmente a
cada passo. Lembremos, a propósito, que Freud, inimigo in­
suspeito dos dualismos platónico e cartesiano, descobriu o
fenómeno da ambivalência, característico de tantos mecanismos
inconscientes normais e sempre detectável nas neuroses. Pode-

íS Op. cit. (París, Seuil, 1972), 132-3.


XXXIX

ríamos citar alguns outros casos. Mas este não bastará para
deixar antever que há dualismos falsos e dualismos certos?
Poderá contestar-se: dualismo é uma coisa, ambigüidade e
ambivalência é ou são outras. Aceitamos a objecção. Pensamos
mesmo que ela é fecunda. Possível ponto de partida para uma
reflexão generalizada que se impõe. Aqui apenas a tocámos, indi­
cando a direcção em que nos parece situar-se: a dialéctica do
uno e do múltiplo, para além da alternativa monismo-dualismo.
Afastámo-nos do nosso assunto, mas julgamos esta digressão
oportuna. Usámos um método ultrapassado: parece que nos lim i­
támos a opor uma ou várias autoridades a outras tantas. Isto
é só, de facto, o que parece. Invocámos os autores que melhor
nos serviram para exprim ir as nossas próprias evidências. Mas
o problema da evidência não será um dos prismas em que a
dialéctica do uno e do múltiplo se refracta? A evidência é o
injustificável último. Injustificável, no sentido de não admitir
como possível ou necessária qualquer justificação ulterior. Plu­
ralidade injustificável como a pluralidade das consciências — de
que decorre. Irredutível como ela, em larga medida.
Num certo sentido, a pluralidade das consciências parece sef
irredutível e nela encontramos a contingência fundamental69.

§ 7. Estratos e funções da linguagem

Reúnam-se alguns fios que ficaram soltos nas páginas ante­


riores deste Prefácio.
Ingarden usa com frequência a palavra função no sentido
de função da linguagem e relaciona, de modo pouco claro, estra­
tos e funções (pp. x x v i - x x v i i ). Em sua opinião, a função expres­
siva, que Bühler divulgou na Sprachtheorie, remonta a Husserl
e a Twardowski (p. xxvn). A este propósito entrecruza dois pro­
blemas diferentes: o da expressão verbal e o da função expres­
siva, como é fácil concluir, pelo que atrás dissemos. Do prim eiro
nos ocupámos no § 5; do segundo nos ocuparemos em breve.
Antes disso importa explicitar, ao menos nas suas coorde­
nadas fundamentais, as relações entre estratos e funções. A asso­
ciação dos dois no espírito de Ingarden vem de 1930 (pp. xxvi-
x x v i i ). Mas o assunto foi amadurecendo após essa data. O estudo
de 1958 As Funções da Linguagem no Espectáculo Teatral é uma
prova disso.

69 J.-P. Sartre, L ’étre et le néant (Paris, Gallimard, 1943), 362-3.


XL

Ingarden lembra, no § 1, que toda a obra literária é uma


construção lingüística bidimensional. Enumera a seguir os quatro
estratos de 1930, e no § 3 aparece a nota a que já se fez referência
(p . x x v i i ), na qual Bühler, Husserl e Twardowski aparecem
pela segunda vez associados. Falta acrescentar o próprio Ingar­
den que, num trabalho de 1956, distinguiu cinco funções. Destas,
afirma, apenas utiliza quatro, no estudo em questão: a função
apresentativa, a função expressiva, a função de comunicação, a
função de persuasão.
A originalidade e a finura desta análise ingardiana do espec­
táculo teatral são inegáveis, o que justifica a sua recente tra­
dução francesa10.
Quanto ao assunto que nos interessa, dizemos que amadu­
receu se entendermos por isso que o discípulo de Husserl e de
Pfãnder se preocupou cada vez mais com o problema das funções
da linguagem, não que a relação entre estratos e funções se tenha
clarificado. Tal clarificação, pelo menos, não é visível no estudo
publicado como Apêndice de A Obra de Arte Literária.
Mas se tentarmos, por conta própria e para os nossos lei­
tores, introduzir uma certa ordem no imenso material que nos
é proposto, algumas linhas de organização começam a desenhar-se.

a) A base da linguagem: 1.° e 2.° estratos

O estrato fónico-linguístico e o estrato das unidades de sig­


nificação podem reduzir-se, num sentido muito geral, às duas
faces do signo saussuriano: significante e significado. Falamos
de Saussure e não de Husserl por nos dirigirmos a um público
de formação lingüística. Na realidade, a terminologia, a inspi­
ração, o gosto das distinções subtis, são de origem husserliana,
já o verificámos.
O 1° e 2 ° estratos, Ingarden não cessa de o repetir, possuem
uma importância excepcional, que lhes confere um lugar à parte
no conjunto. Impossível pô-los ao lado dos outros, quer em
si mesmos, quer no papel que desempenham na formação dos
restantes estratos. Constituem a base da linguagem. Não será
esta a ideia do autor, no início do estudo sobre teatro, ao afirmar
que toda a obra literária é uma construção lingüística bidimen­
sional?

70 Poétique, 8 (Paris, Seuil, 1971).


XLI

O Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage faz


referência ao acto lingüístico, que Bühler aproxima do acto de
significar dos medievais ou ainda do acto doador de sentido iso­
lado por Husserl71. E o autor do artigo « Langage et action»
acrescenta: «É , pois, um acto inerente ao acto de falar e inde­
pendente dos projectos nos quais o discurso se insere. O estudo
deste acto faz assim parte integrante do estudo da língua e cons­
titui mesmo o seu núcleo central.
Em que consiste agora esta actividade lingüística original,
esta pura actividade do significar?» 72
O passo transcrito serve de introdução ao acto de comuni­
cação de K. Bühler e às suas funções da linguagem, assim como
ao desenvolvimento posterior que lhe deu Jakobson.
Encarar segundo esta perspectiva o 1° e o 2.° estratos é
simplificar em extremo a «análise engenhosa e altamente téc­
nica» de que falam Wellek e Warren; não eremos, contudo,
falsear o pensamento de Ingarden.
Pode concluir-se este breve apontamento dizendo que não
há funções (ou «p ro je c to s ») nos dois primeiros estratos de
A Obra de Arte Literária — considerados na sua complementari­
dade. Precisão fundamental, pois veremos em breve que ambos
são de grande importância em relação a uma ou outra função
quando tomados separadamente.
Só em conjunto, formando uma unidade, é lícito ver neles
o «p rojecto fundamental» dentro do qual se especificam e arti­
culam o ou os «projectos particulares» de cada mensagem: as
nossas conhecidas funções da linguagem.

b) A função expressiva e o 1.° estrato

A função expressiva tem sido mencionada com frequência


ao longo deste Prefácio. Ê natural começarmos por ela. Acresce
que está intimamente relacionada com o 1.° estrato.
Ê no cap. 4 (§§ 9-13), consagrado ao estrato fónico-linguís-
:ico, na nota ao § 9 atrás referida (p. xxvn), que surge pela
primeira vez a função expressiva. E o estudo que aqui se publica
cm Apêndice remete para o parágrafo que fecha o capítulo.

426. B. M alm berg fala também na influência das Investigações Lógi-


- de Husserl em K. Bühler (op. cit.), 308.
72 Dictionnaire..., 426.
XLII

Nesse § 13, Ingarden fala da função expressiva na acepção de


Husserl73 e põe em evidência a importância do estrato fónico
na manifestação dos vários estados psíquicos, na vida psíquica
concreta das personagens ( trata-se de teatro...), irredutível à
zona da pura comunicação do pensamento. Estamos muito perto
da função expressiva de Bühler ou função emotiva de Jakobson!
Os exemplos dados por Ingarden assemelham-se muito com os
deste último a u to r74.
Mas será possível filiar esta função em Husserl e em Twar-
dowski? N o respeitante a Husserl, não parece errado responder
afirmativamente desde que se façam .certas precisões.
Sem descer a grandes minúcias de exegese, pode resumir-se
o pensamento de Husserl, nos §§ 6-8 da I Investigação, da se­
guinte maneira: uma expressão significa, por um lado, graças
aos actos doadores de sentido; manifesta ou exprime, por outro 75,
tal ou tal acto psíquico daquele que fala. Por outras palavras,
a comunicação entre duas pessoas faz-se através de expressões
em que alguém se exprime e em que, ao mesmo tempo que se
exprime, comunica algo. A estas duas faces da «expressão na
sua função comunicativa» 76 chama Husserl função expressiva11.
M uito à sua maneira, distingue nesta um sentido estrito ou pró­
prio: a função expressiva propriamente dita e um sentido largo
que engloba as duas faces da comunicação.
Note-se que as vivências ou actos psíquicos em questão não
são exclusivamente de cariz afectivo ou emotivo. Provam-no os
exemplos dados. Ingarden deixa subsistir a mesma generalidade,
mas acusa-se nele, de maneira mais acentuada, a tendência para
opor os actos emotivos à zona da pura comunicação do pensa­
mento (§ 13, por exemplo).
Há, portanto, no filósofo de Cracovia uma maior aproxima­
ção de Bühler-Jakobson.

73 Ao contrário do que acontece no § 9 de A Obra de Arte Literária


e no § 3 do Apêndice, a referência a Husserl no § 13 não aparece em notas
de rodapé mas no corpo do parágrafo. Isto leva a supor que data de 1930.
Mas nada podemos concluir em segurança por não dispormos da primeira
edição.
74 Essais de linguis tique générale (Paris, Les Editions de Minuit, 1963),
214-6. A A. Marty (muito citado por Ingarden) diz Jakobson que deve a
designação de função emotiva.
75 Kundgibt (Log. Unt., II, 1), 32.;
76 Op. cit., II, 1, 32.
77 Kundgebende Funktion, op. cit., II, 1, 33.
XLIII

Resumindo: a função expressiva de Ingarden não pode re-


duzir-se ao estrato fónico, mas está intimamente relacionada com
ele, o que ninguém contesta hoje!

c) A função apresentativa, o 4.° e o 2.° estratos

Enquanto a função expressiva depende do 1° estrato, mas


há a considerar nela outros factores, verifica-se uma tendência
marcada para aproximar mais — fazer corresponder — a função
apresentativa, do 4.° estrato (objectidades apresentadas) e a
função de reprodução imaginativa, do 3° ( os tais « aspectos dis­
poníveis», aos quais se não fez ainda o comentário que merecem).
Sobre a função apresentativa releia-se o § 19, em que é citado
o artigo de Bühler de 1920 (p. xxvn). Ingarden critica-o, mas
não terá vindo dele a influência e mesmo a terminologia?
Parece que sim. E, uma vez mais, há razões para crer que esta
fonte se amalgamou com outra, que é mais profunda e vem de
mais longe — a leitura, o ensino de Husserl.
Numerosas análises de Ingarden levam à conclusão de que
a função apresentativa corresponde ao 4° estrato. Mas este está
numa relação estreita com o 2° estrato, o das unidades signifi­
cativas! Nessa medida, a função apresentativa o está também.
Repare-se na ordem de sucessão, à primeira vista pouco
compreensível, dos estratos. O 3° estrato é deixado para o fim,
caps. 8 e 9 (§§ 39-46), e o 4.° estrato é estudado logo a seguir
ao 2°. Mais concretamente, do 2° estrato se ocupa o cap. 5
(§§ 14-26); do 4.°, o cap. 7 (§§ 32-37). O cap. 6 (§§ 27-31) serve
de transição e a sua finalidade é mostrar os laços que unem o
nível da significação e o nível do mundo apresentado.
Ê nesse capítulo, nomeadamente no § 28, que Ingarden
afirma com insistência: o conteúdo de sentido das frases é o
elemento decisivo para a constituição das objectidades apresen­
tadas; numa frase que enuncia algo a respeito de um objecto X,
este objecto é determinado péta significação de sujeito da frase;
as objectidades apresentadas numa obra são-no graças às uni­
dades de significação; as relações objectivas desempenham uma
função essencial na constituição do «m undo» que um texto ou
uma obra nos apresentam.
Qualquer que seja a dimensão da unidade escolhida (frase,
período, obra) o pensamento de Ingarden não varia.
Ora é também neste cap. 6, e logo no título, que aparece a
Darstellungsfunktion, função apresentativa segundo Ingarden.
Abrimos um breve paréntesis para relembrar o que já atrás
icon tdito ( nota 42 deste Prefácio). A Bedeutung husserliana
XLIV

pode ser considerada segundo duas maneiras diferentes embora


estreitamente relacionadas: como acto f o acto doador de sen­
tido,) e como unidade de significação. Ambas as acepções se
encontram nas Investigações Lógicas, mas nem sempre é fácil
desembrenhá-las uma da outra.
O medo constante de recair no psicologismo explica urna
nota do § 15 de A Obra de Arte Literária, em que Ingarden marca
urna certa distância em relação a A. Marty, que vê na significação
um acto ou uma vivência... Isto não tem nada a ver com a sua
própria concepção, escreve o filósofo polaco. Mas as coisas não
são assim tão simples... Ingarden sabe-o e, talvez por isso, volta
a debater longamente o problema no § 18, para concluir que a
referência intencional de um nome a um objecto através da sig­
nificação é o reflexo do pensar intencional contido no acto doa­
dor de sentido. Aqui se encontram refeitos, ao fim e ao cabo, os
dois sentidos da Bedeutung husserliana.
Considero pois o puro acto de significar como o terreno
comum ou o «p rojecto fundamental» da comunicação lingüistica,
dentro do qual se explicitam as várias funções da linguagem.
In ú til sublinhar a importância e actualidade desta concepção.

d) A função apresentativa e a de reprodução imaginativa


(3.° e 4.° estratos)

Assim como a passagem do 2° para o 4.° estrato é feita


cuidadosamente no cap. 6, assim também os últimos parágrafos
do cap. 7 são parágrafos de transição — do 4 ° para o 3° estrato.
Pensamos, em especial, no importante § 37. Aí se estabelece
o confronto entre a função apresentativa e uma outra, que pode­
ria chamar-se função representativa ou de representação mas que
preferimos designar por função de reprodução imaginativa ( ou,
simplesmente, função de reprodução) por razões de clareza78.

78 Relembre-se o que dissemos na nota 35. É a Darstellungsfunktion


de Ingarden que traduzimos por função apresentativa. Ao lado desta surge
agora a função de reprodução ou função de reprodução imaginativa: Abbil-
dungsfunktion por vezes, mais frequentemente Funktion der Zuerschei-
nungsbringen ( Erscheinung: aparição, visão). 0 § 37, onde todas estas
designações aparecem, merecia um estudo aprofundado. A Reprasenta-
tionsfunktion aí se encontra também, com dois sentidos diferentes. Em
rigor só deve aplicar-se ao 3.° estrato. Ingarden emprega-a pouco, certa­
mente para evitar a excessiva carga sémica da palavra Reprãsentation
na psicologia do fim do século xix e até na fenomenología husserliana.
A seu exemplo evitámo-la também.
XLV

Entre estas duas funções da linguagem há uma grande diferença


e uma grande afinidade. Na primeira temos o que nos é apresen­
tado de maneira puramente intelectual. Apresentação opõe-se,
pois, a aparecimento, reprodução intuitivos. Na segunda função
as coisas são-nos dadas como se as estivéssemos vendo. É esta,
afinal, a «função» do 3° estrato: levar o leitor a ultrapassar o
que Husserl e Ingarden chamam o domínio das intenções vazias
para adoptar uma intencionalidade intuitiva.
Como se estivesse vendo... Como se... A modificação de neu­
tralidade ou passagem ao irreal não perde nunca os seus direitos,
no domínio da literatura de ficção como no do espectáculo tea­
tral. Mesmo neste a percepção tem de ser neutralizada para que
o espectáculo não se perca como espectáculo e a obra de arte
mantenha a sua especificidade. Muitos racistas, sem dúvida, assis­
tiam à representação de Otelo, numa tarde de Agosto de 1822,
em Baltimore. Mas só o soldado inculto, de guarda no interior
do teatro, se precipitou para o palco de espingarda em punho,
no 5.° acto, para defender Desdémona da fúria de um negro 79.
Os primeiros tinham-se instalado na atitude necessária à ilusão
teatral85. Estavam no teatro, assistiam a uma «representação»,
a um espectáculo... O segundo confundiu os planos.
Voltando à literatura, a única forma de intuição a que o
leitor pode recorrer é a intuição imaginária, visto que a intuição
por excelência, a percepção, lhe está por princípio vedada (§§ 34,
42). Desenvolveremos este aspecto da questão no parágrafo se­
guinte.
Ao 3.° e 4° estratos correspondem, pois, duas funções. Duas
funções diferentes? Diferentes apesar da conexão existente entre
elas? Ou duas modalidades de uma mesma função? O leitor não
terá dificuldade em seguir a reflexão de Ingarden. As três ma­
neiras de encarar o problema estão presentes na obra de 1930,
devendo reconhecer-se que as duas primeiras oferecem larga
margem de preferência. N o entanto, ao escrever As Funções da
Linguagem no Espectáculo Teatral, em 1958, Ingarden evoluiu, e
foi na terceira solução que se fixou 81.
Temos assim (e abstraindo da sua aplicação ao teatro) a
função apresentativa, que pode revestir carácter puramente con­
ceptual ou processar-se de tal modo que a apresentação dos

n Stendhal, Racine et Shakespeare (¡Paris, J.-J. Pauvert, 1965), 38-9.


80 Gp. cit., 36-42.
61 É possível que esta solução seja já adoptada em 1956 no livro Uber
die Ubersetzung, que não conhecemos, onde apresenta as cinco funções
da linguagem (cf. nota ao § 3 do trabalho de 1958).
XLVI

objectos intencionados se faça em aspectos evocados imaginati­


vamente; a função expressiva que, como vimos, deve muito a
Husserl e a Bühler; a função de persuasão, porventura a mais
autenticamente ingardiana... Não viria, contudo, a despropósito
confrontá-la com a função apelativa de Bühler-Jakobson.
Temos, finalmente, a função de comunicação. Vimos já
(p . x x i, x l i i ) que esta designação se encontra em Husserl, e é
bom relembrar o contexto em que aparece. Husserl não pensava,
por certo, nas funções da linguagem tais como hoje as enten­
demos. Embora a referência a Twardowski, precisamente à obra
a que Ingarden atribui tanta importância nesta matéria, devesse
ser analisada mais de perto.
De qualquer modo, sabemos todos hoje que a comunicação
não é uma função que se possa colocar ao mesmo nível das
outras, que ela é a fronteira que separa uma tradição de dois
milênios — a linguagem, expressão do pensamento — da lingüís­
tica moderna.
Sem abandonar por completo a perspectiva tradicional, Hus­
serl introduz, antes de Saussure, a ideia fundamental de que a
linguagem serve para comunicar. À sua maneira, assim como
que de passagem, como quem lança sementes num vasto campo,
tantas e tão variadas que em muitos casos ficam longo tempo es­
condidas ou só descobrimos os seus frutos nos terrenos vizinhos.
Mas, afinal, quais as funções da linguagem propriamente
ditas? E quantas? Temos as de Bühler, as de Ingarden, as de
Jakobson, para citar só estes. Terá Jakobson dito a última pala­
vra sobre o assunto? Pela nossa parte não o cremos. Ê mais
que provável que novas funções venham a ser descobertas.
Porque não?

§ 8. Para uma estética de intuição

Escrevemos no início deste Prefácio que o presente livro de


Ingarden nos dá, ao mesmo tempo, menos e mais do que o seu
título promete. A obra literária é o objecto principal deste
estudo. Mas, sem deixar de o ser, torna-se o fio condutor que
o filósofo de Cracovia manobra com grande liberdade. Dela se
passa ao teatro, à pantomima, ao film e; a partir desse ponto
fixo considera a obra científica, entrevê o domínio das artes
plásticas (§§ 56-60). É natural que só mais tarde tenha com­
preendido que a literatura fazia parte, desde o início, de um
conjunto mais vasto. Um projecto apenas meio consciente em
1930. Da sua consciencialização nasceu Untersuchungen zur Onto-
XLVII

iogie der Kunst em 1962. Eis mais ou menos o que diz o Prefácio
da terceira edição de A Obra de Arte Literária.
Ingarden reconhece, pois, o carácter excessivo do seu livro.
São acontece o mesmo com o que pode chamar-se o seu aspecto
deficitário: a dimensão que dá ao termo literatura está longe de
poder abranger todas as produções literárias.
Leia-se o § 25 a), em que responde às objecções de Kate
Hamburger. A despeito da importância que dá à persuasão,
Ingarden não nos convence a não ser no respeitante à modifi­
cação de neutralidade. N o essencial K. Hamburger tem razão:
o conceito ingardiano de obra literária é demasiado estreito,
aplicável somente à poesia épica e dramática. O mundo nelas
apresentado apenas simula ou reproduz a realidade. Por outras
palavras, a forma de arte, a corrente literária que Ingarden toma
constantemente por modelo é a arte realista. Aí vai buscar, como
é natural, as suas realizações mais características: romance, no­
vela, drama. O romance histórico, o drama histórico ocupam
mesmo um lugar privilegiado. Raras vezes se fala da lírica em
A Obra de Arte Literária, e sempre em breves apontamentos.
Endurecemos talvez a posição de Ingarden... Em 1930 muita
água tinha corrido por sobre o programa realista, novos mani­
festos haviam surgido, não só em literatura tom o em pintura,
em música, em vários sectores da arte. O espírito curioso e de
larga cultura do pensador polaco não o ignora! A prova é que
admite a possibilidade de outros cânones artísticos. Admite-os
em teoria, parece-nos, e, o que é significativo, como casos-limites
ou excepções (§§ 38, 46, 52...). De uma maneira ou de outra logo
regressa à norma, ao terreno familiar. Terreno não indiscutivel­
mente aceite, por uma qualquer espécie de direito, mas admitido
como um facto ou escolha tácita.
Tudo isto diz respeito ao 3° estrato e à excepcional impor­
tância que Ingarden lhe atribui. E o 3.° estrato, por sua vez,
remete-nos para o papel da imaginação na leitura, na leitura da
ficção em especial, visto que dela se trata, de maneira por assim
dizer exclusiva.
Tantas vezes abordámos já este 3 ° estrato, com mais ou
menos demora, que nos podemos resumir finalmente.
Para o compreender, duas noções husserlianas de base. Num
primeiro tempo temos actos de pura intenção ou de intenção
vazia, pensamento conceptual vazioS2, consciência signitiva ou
significativa... versus intuição ou preenchimento. Impõe-se dis­

82 A distinguir de uma intuição das essências!


XLVIII

tinguir, em seguida, os vários actos intuitivos: percepção (nas


suas diversas modalidades), imaginação, memória, intropatia...
O acto intuitivo por excelência, segundo Husserl, é a per­
cepção sensível, a que chama também experiência ou doação
originária83. É ela que nos dá as coisas mesmas, «em pessoa»,
«em carne e osso» (metáforas husserlianas), numa plenitude que
é a mais perfeita, embora prometa mais do que é capaz de dar.
A sua estrutura é complicada; üs coisas no espaço e no tempo
só se oferecem em esboços,, perfis '(Abschattungen), aspectos
sempre parcelares, fragmentários, qug sucessivamente se enca­
deiam e completam. Como horizonte de cada acto perceptivo,
um feixe de intenções vazias, tspáÇos abertos a futuras intuições,
que podem ou não revestir a intencionalidade perceptiva.
O § 40 de A Obra de Arte Literária contém um bom resumo
da teoria husserliana da percepção. Uma nota, logo no início, es­
clarece: no período de Gõttingen, Husserl usou com frequência
Ansicht (aspecto). Mais tarde Aspekt, Abschattung M. Ingarden
prefere guardar a designação antiga, Ansicht.
Estamos agora a ver a infra-estrutu&i do 3.° estrato, que lhe
serve ao mesmo tempo de modelo.
O Ansicht esquematizado é, assim, o inesperado horizonte
que surge, aqui e além, numa obra literária — narrativa, descri­
ção, diálogo— e que, graças à imaginação do leitor, actualiza o
que é apenas «esquema» vazio, disponibilidade. Vemos determinada

83 N a última nota ao § 34 de A Obra de Arte Literária, Ingarden afirma


que Husserl considera também os actos de imaginação como originària-
mente doadores. E indica como fonte o manuscrito de um curso de 1922.
N ão conhecemos este manuscrito nem o consultámos para o nosso estudo
L'imagination selon Husserl. Tudo quanto podemos dizer é que esta con­
cepção é contrária à doutrina de Husserl na totalidade das obras que
utilizámos. Ela é contrária também ao próprio Ingarden!
Não podemos afirmá-lo, mas é possível que se trate apenas de um
mal-entendido ocasionado pelo gosto husserliano das distinções subtis de
terminologia. Porque o texto a que esta nota se reporta continua a distin­
guir a «apresentação» (Prasentation) da percepção, que é uma autodoação
em pessoa da «apresentação» realizada pela imaginação ou fantasia. A única
novidade que encontramos aqui é o termo de Prasentation, normalmente
reservado à percepção (apresentação no séntido forte: tornar presente),
atribuído à imaginação.
A esta são normalmente consagradas as designações de Reprasentation
ou Vergegenwãrtigung (representação, presentificação).
Isto é, de facto, novo e parece contraditório porque a distinção entre
percepção e imaginação mantém-se.
Relembremos, de passagem, o que dissemos na nota 35 a propósito
de apresentação.
w Foi este último termo que se generalizou.
XLIX

rua de Paris (§ 42), acompanhamos determinada personagem e


com ela atravessamos corredores e descemos -escadas (§ 45). Fre­
quentemente nos identificamos com as personagens que mais nos
tocam ... Instantes fugidios e transitórios como as Abschattungen
do acto perceptivo, enigma de plenitude e esvaziamento, onde
tudo está sempre a recomeçar e prestes a morrer. Espaços privi­
legiados de um livro que se dilatam, abrem o tempo para repeti­
ções imaginárias de paisagens experimentadas num passado que,
por momentos, se anima e volve quase-presente... Espaços elás­
ticos, de dimensões incertas, que também podem concentrar-se
num ponto só, na intensidade de uma quase-presença resumida.
Já fizemos referência neste Prefácio à problemática da « obra
aberta» (pp. xxm -xxv). Sem negar as linhas de convergência com
Eco ou com Barthes, pode concluir-se agora que o ângulo de
abertura que Ingarden nos propõe em A Obra de Arte Literária
é mais restrito e a intenção diferente. A margem concedida aos
leitores para que a partir de experiências diversas se apropriem
da obra, fazendo dela leituras pessoais e diferentes, nasce apenas
do 3.° estrato. Ê através dos. horizontes abertos pelos aspectos
esquematizados que a liberdade imaginativa pode mover-se,
saindo das páginas do livro, passando a uma atitude intuitiva
que recria coisas e pessoas, que as toca como se as estivesse
vendo.
Esta a primeira conclusão que se impõe. Mas há algo de
mais importante a dizer sobre o assunto. A intuição imaginativa,
ao introduzir-se na leitura, é o factor de valorização estética, por
um lado. Mas, p or outro, desfigura a obra literária. Eis um pro­
blema sério que Ingarden formula no § 63 do seu livro.
Convém não esquecer o propósito antipsicologista que o
atravessa, as repetidas advertências de que se não deve confundir
a obra e o seu autor, explicar a primeira pelas experiências, a
vida, a história daquele que a escreveu. A obra é considerada em
si mesma como entidade autónoma e, neste sentido, fechada85.
O mundo que nela se apresenta é, de facto, apresentado na pró­
pria obra, na sua imanência. Uma transcendência na imanência,
se quisermos, como é o intencional husserliano correctamente
interpretado.

85 Inútil sublinhar a orientação comum, neste ponto, entre as cor­


rentes de análise literária mais vivas por volta de 1930: a Estilística, o
Xew-Criticism americano, o Formalismo russo. Acrescente-se a que provém
do impulso fenomenológico e que é visível em R. Ingarden, M. Dufrenne
e outros.
L

Na filosofia de Husserl o mundo real foi definitivamente


posto entre paréntesis pela redução transcendentalSô. Poderá sê-lo
na literatura?
Pela dupla influência de pressupostos correntemente aceites
pelos padrões da análise literária da época e do imperativo feno-
menológico de regresso às próprias coisas (no caso, as próprias
obras...), Ingarden mantém com intransigência o princípio da
imanência.
Mas a maneira como concebe o 3 ° estrato e o valor que lhe
atribui não constituem uma ameaça séria a esta mesma ima­
nência?
Convém ler os §§ 4446, em que o papel privilegiado que os
aspectos desempenham na apreensão estética de uma obra lite­
rária é posto em evidência. Mais uma vez estamos em presença
de um pensamento que se elabora diante de nós e não escamoteia
as dificuldades. O 3.° estrato tem uma carga de valor estético
que lhe é própria, nisto, como noutras coisas, um dos elementos
a considerar na polifonia da obra. Quem diz polifonia não pode
pensar m onopólio... Ingarden não consegue evitar, contudo, um
desequilíbrio, um quase açambarcamento do estético pelo 3.° es­
trato, a que corresponde, como se viu, a função de reprodução
imaginativa. O valor artístico de uma obra depende, em última
análise, da sua capacidade de evocar abreviadamente, por ful-
gurações momentâneas, o mundo real das coisas, dos lugares,
das pessoas, das experiências do leitor. A estes momentos excep­
cionais que «fazem ver» chega a chamar instantâneos fotográ­
ficos. A sua importância, quase diríamos o seu volume, na obr.a
faz com que esta atinja ou não o nível da grande arte.
Mas, afinal, ainda estamos no domínio da imanência?
O mundo real fo i ou não fo i definitivamente posto entre parén­
tesis? O 3.° estrato ameaça este equilíbrio; a intuição imaginária
pode fazê-lo ressurgir a cada instante.
A estética da intuição (da Einfühlung) foi uma corrente
muito viva na Alemanha em fins do séc. X I X e princípio do
séc. X X . Tem raízes pré-fenomenológicas, e o movimento feno-
menológico, nalguns casos, serviu-lhe de aliado. Nela se podem
incluir Th. Lipps, J. Volkelt, Max Scheler, M oritz Geiger, Roman
Ingarden87.

86 Ao escrever estas palavras temos a consciência de form ular um


problema, não de apresentar um a solução.
87 R. Bayer, Histoire de Vesthétique, 346-9; H. Spiegelberg, The pheno-
menological movement I, 214.
LI

Imanência, intuição... Tal como nos surgem em Ingarden,


não podemos descobrir uma certa contradição entre duas exi­
gências de pólo oposto? Mas a contradição não é total. A modi­
ficação de neutralidade nunca perde os seus direitos e age como
um travão. O leitor é quase levado a ver, a ouvir, a atravessar o
livro para passar à realidade. Mas esta é sempre uma quase-rea-
lidade em que nunca chega a acreditar a sério. Pode até reviver,
num esforço de regresso ao passado ( remoto ou próxim o), mas
é um esforço antecipadamente fracassado pois nunca fará .brotar
a frescura do que foi vivido na presença, na coincidência, na
verdade. Em vez de contradição será talvez mais exacto falar
de tensão.
O conceito de obra de arte em Husserl tem por base o que
designámos por «prim ado da percepção». Neste como noutros
pontos, o discípulo permanece fiel ao professor de Gõttingen,
queremos dizer, concretamente, à primeira fase de Husserl®.
Também em Ingarden se deve falar, apesar de tudo, do primado
da intuição.
Não será a intuição que leva o filósofo polaco a passar
naturalmente da literatura ao mundo do espectáculo ( teatro,
pantomima, film e), às artes que fazem ver de maneira propria­
mente dita? Isto explicaria a sua preferência pelo teatro, a que
atribui a primazia, dentro dos géneros literários (§ 63). Primazia
porquê? Dentro da sua lógica, tal primazia explica-se.
Formulamos uma hipótese. Uma afirmação seria abusiva.
Até porque nos §§ 49-50 a intuição perceptiva se alarga. Assim
como Husserl admite uma percepção ou intuição intelectuais,
Ingarden fala-nos, por sua vez, de uma visão das qualidades
metafísicas: o que, para além dos cenários imaginários que ajuda
a recriar, uma obra comunica. Trata-se, como é óbvio, de um
comunicar intuitivo que elimina distâncias, da capacidade de
revelar, de interpelar, de tocar o leitor no mais profundo de
si mesmo.

Umas breves palavras a concluir este Prefácio. N o livro rico


e denso que é A Obra de Arte Literária há coisas a mais para a

88 N a primeira fase, Husserl utiliza duas categorias para definir o


estético: a presentificação (Vergegenwartigung) e a modificação de neu­
tralidade. N a segunda fase guarda só a Neuíralitdtsmodifikation, e a Verge-
lenwartigung desaparece. (Perspectivas da Fenomenología de Husserl), 104-5.
Haveria que m ostrar o parentesco entre a Vergegenwartigung husserliana
í a Abbildungsfunktion de Ingarden.
LU

nossa exigência actual de especialização. Lingüística, literatura,


estética, lógica, fenomenología, ontologia...
Estará Ingarden definitivamente ultrapassado, ou não será
mais acertado ver nele um precursor, sobretudo ao afirmar a
necessidade de uma reflexão filosófica sobre lingüística e litera­
tura? O problema fo i posto no início destas considerações
(p. x).
É indiscutível que os bons (ou maus) velhos tempos de
Descartes e Newton passaram: um edifício único com vários
compartimentos ou a famosa árvore com raízes, tronco e ramos
de nomes diferentes. Mas, pela mesma razão, não deveriam pas­
sar também os múltiplos «a libis» de um positivismo que não
cessa de renascer periódicamente das próprias cinzas?
Parece indispensável distinguir hoje (mais do que Ingarden
o fez...) três coisas: primeiro, o que é do domínio autónomo de
cada ciência e que só por abstracção se pode separar dos pressu­
postos filosóficos, teológicos ou políticos a que em regra testá
ligado. Isto é sobretudo válido numa perspectiva diacrónica.
É possível reconstruir a história da matemática, da física ou da
lingüística numa síntese, aliás sempre provisória, registando o
que, num processo de selecção e sedimentação, o trabalho de
séculos fo i acumulando, rejeitando, corrigindo, aperfeiçoando de
maneiras várias. (Há épocas de rotura e épocas de continuidade,
por exemplo.)
Em segundo lugar, e aqui pensamos na «ciência que se faz»,
há que explicitar os pressupostos filosóficos e ideológicos que
informam a investigação em cada ciência nas suas várias cor­
rentes, escolas ou tendências. Explicitá-los, assumi-los.
Finalmente, e no respeitante aos sectores que de maneira
especial nos interessam: importa criar uma Filosofia da Lingua­
gem (que não dispensa, talvez, uma Filosofia da Lingüística...)
e uma Filosofia da Literatura — designação bem mais pertinente
do que Teoria da Literatura, reflexão que englobaria esta última
e iria. muito mais longe.
M a r ia M a n u e l a S a r a iv a
D e d ica d o a N u n a
Prefácio da segunda edição

Passaram-se mais de trinta anos sobre a redacção deste


livro. Entretanto, o mundo sofreu muitas modificações. Se hoje
me resolvo a publicar de novo este livro, move-me não só a cir­
cunstância de ele se encontrar esgotado desde há muitos anos,
sendo até rara a possibilidade da sua consulta nas bibliotecas,
mas também o facto de continuar ainda actual, apesar das
enormes transformações que se operaram na atmosfera cultural,
e de até nos últimos anos ser alvo de maior consideração do
que na altura da sua primeira aparição. Nesse ano de 1930
foi um empreendimento arriscado tentar uma ontologia da obra
de arte literária e discutir problemas não só puramente, estru­
turais como ontológico-existenciais, tratando então a obra lite­
rária à luz do problema Idealismo-Realismo. Foi precisamente
sob este aspecto que a situação se modificou profundamente
nos passados 30 anos. Neste lapso de tempo, tais problemas
ou outros que lhes são análogos foram abordados de diversos
ângulos e sob vários aspectos, e muitas vezes tratados num
espírito muito afim do meu. O interesse por semelhantes pro-
blemás aumentou visivelmente não só na Alemanha como ainda
noutros países, Se isto se deve à influência do meu livro ou
se aconteceu completamente à margem dele, não tem importância
de maior. Despertou entretanto a consciência de que os pro­
blemas ontológicos referentes à obra de arte literária não são
de modo algum assuntos relativamente isolados da ciência da
literatura, mas estão, pelo contrário, intimamente relacionados
com as várias questões fundamentais da filosofia: o problema
c. pois, formulado no sentido que se ajusta à intenção do presente
livro. Deste modo, não ficará a obra isolada no mundo científico
como nos inícios da sua existência.
Ao mesmo tempo, quer parecer-me que as suas análises e
perspectivas, no que toca a problemas ulteriores, ainda não
foram de maneira alguma exploradas em medida satisfatória
4

posição é irjtermediária entre as duas posições antagónicas. Para


evitar a extensão desnecessária do meu livro já volumoso, e
ainda para ajudar o leitor a assumir uma atitude pura em
relação ao objecto da investigação, desisti de uma vincujação
expressa às teorias existentes. Tal vinculação tem normalmente
por conseqüência a remissão do leitor para esquemas conceptuáis
preexistentes, o que essencialmente dificulta a visão pura das
situações de facto presentes.
Apesar de as minhas investigações terem por tema principal
a obra literária, e sobretudo a obra de arte literária, os
motivos que, em última análise, me levaram a tratar este tema
são de natureza filosófica geral e transcendem amplamente este
assunto regional. Estão intimamente relacionados com o problema
Idealismo-Realismo, que desde há anos me preocupa. Como
tentei demonstrar nas minhas Observações acerca do problema
Idealismo-Realismo \ o conflito entre o «Realism o» e o «Idea­
lismo» abrange vários grupos de problemas muito intrincados
que é necessário distinguir e tratar isoladamente antes de se
abordar o problema principal metafísico. Em conseqüência disso,
há várias vias que nos preparam o acesso a este problema prin­
cipal. Uma delas está relacionada com a tentativa do chamado
Idealismo Transcendental de E. Husserl em conceber o mundo
real e os seus elementos como objectividades puramente inten­
cionais, que têm o seu fundamento ontológico e a sua razão
determinante nas profundidades da pura consciência constitutiva.
Para se tomar posição perante esta teoria, elaborada por E. Hus­
serl com extrema subtileza e através da exposição de situações
reais sumamente importantes e de difícil captação, é, entre outras
coisas, necessário pôr em relevo a estrutura essencial e o modo
de ser do objecto puramente intencional, para em seguida exa­
minarmos se as objectividades reais, pela sua própria essência,
podem ter essa mesma estrutura e esse mesmo modo de ser.
Com este escopo, procurei um objecto cuja intencionalidade
pura fosse indubitável e em que pudéssemos estudar as estruturas
essenciais e o modo de ser do objecto puramente intencional
sem nos submetermos às sugestões resultantes da consideração
das objectividades reais. Foi assim que a obra literária se me
afigurou ser um objecto de investigação particularmente ade­
quado a este fim. Ao ocupar-me dela mais de perto rasgaram-se-me
os problemas específicos da ciência da literatura, e o livro pre­

1 Cf. Festschrift für E. Husserl, pp. 159-190.


5

sente é o resultado do seu estudo relacionado com as tendências


fundamentais que acabo de indicar. Porque me deixei guiar na
redacção deste livro por motivos tão diversos, diferentes si-
■ações reais foram mais rigorosamente tratadas do que
indispensável num livro que se limitasse a estudar apenas
35 fundamentos filosóficos de uma teoria da obra literária. Por
outro lado, foi precisamente a multiplicidade das produções
pertencentes à estruturação da obra literária que me levou a
uma série de considerações, indispensáveis para este problema
especial e ao mesmo tempo importantes para várias disciplinas
filosóficas. Assim, as investigações do 5.° capítulo são uma
contribuição para a Lógica e a sua nova orientação; as consi­
derações sobre as relações objectivas e as objectividades apre­
sentadas na obra literária procuram desenvolver alguns problemas
ontológico-formais, as investigações sobre o modo de ser dos
objectos apresentados têm importância para a Ontologia exis­
tencial geral. Para não prejudicar a unidade do livro, evitei
discutir as conseqüências muito importantes que derivam dos
resultados desta investigação, tanto para o problema Idealismo-
-Realismo, como ainda no que respeita a outros problemas filo­
sóficos. O presente livro foi escrito durante uma licença concedida
para a realização de estudos, nos meses de Inverno de 1927/28.
A preparação de outras publicações inadiáveis e as condições
muito difíceis do meu trabalho arrastaram, por mais dois anos
inteiros, a redacção definitiva do texto a imprimir, verificando-se
correspondente atraso na publicação do livro. A conseqüência
disto foi a de muitos resultados dos meus estudos terem entre­
tanto sido publicados noutras obras. É este o caso de muitas
observações do 5.° capítulo deste livro e da Formale und trans-
zendentale Logik, de Husserl. A afinidade entre algumas das
minhas análises e as afirmações do meu venerado mestre cau­
sou-me particular satisfação durahte a leitura da sua obra
recente. Ao mesmo tempo, a comparação dos dois textos revelou
que, ao lado de pontos de contacto, existem também grandes
divergências, e porventura naqueles pontos que para mim são
os mais importantes. Assim, foi-me impossível referir esta sua
obra apenas pelo acréscimo posterior de uma série de citações.
Déixei, pois, imprimir o texto do meu livro sem o modificar
e quero indicar aqui apenas os pontos de afinidade e de diver­
gência, esperando poder um dia dedicar uma publicação especial
à nova obra tão 'significativa do meu venerado mestre.
As minhas afirmações concordam com as de Husserl em
Formale und transzendentale Logik ao conceberem os signifi-
6

cados das palavras, as frases e as unidades superiores de sentido


como realizações que resultam das operações subjectivas da
consciência. Portanto, não são objectividades ideais r\o sentido
definido pelo próprio Husserl nas suas Logischen Untersuchungen.
Enquanto Husserl conserva o termo ideal na maior parte da
sua Lógica, acrescentando só, por vezes, em parêntese a palavra
irreal, eu renuncio por completo a esta nomenclatura, pro­
curando opor, nitidamente, aquelas realizações às objectividades
ideais no sentido rigoroso. Nisto revela-se a primeira divergência
objectiva. Husserl considera actualmente como produtos inten­
cionais de género especial todas as objectividades outrora con­
sideradas como ideais no sentido antigo, chegando, assim, a
uma ampliação universal do Idealismo Transcendental, enquanto
eu continuo a insistir na rigorosa idealidade de várias objecti­
vidades ideais (dos conceitos ideais, dos objectos individuais
ideais, das ideias e das essencialidades) e vejo até nos conceitos
ideais um fundamento ôntico das significações das palavras que
lhes torna possível a sua identidade intersubjectiva e o seu
modo-de-ser ontològicamente heterónomo. Ao mesmo tempo, a
nova concepção dos produtos lógicos resulta em Husserl sobre­
tudo das investigações fenomenológicas e dos motivos idealista-
-transcendentais universais, enquanto as minhas considerações
seguem a orientação ontológica, procurando demonstrar nos
próprios produtos lógicos uma série de circunstâncias que im­
possibilitam o seu ser ideal no sentido rigoroso e, ao mesmo
tempo, indicam como sua origem ôntica as operações subjectivas.
Só depois tento acrescentar alguns esboços fenomenológicos
correspondentes. Abstenho-me, no meu livro, de todo o juízo a
respeito da posição idealista-transcendental e, em particular,
da concepção idealista do mundo real. O meu livro contém uma
série de resultados isolados que, no caso de serem verdadeiros,
serão contrários a esta concepção. Isto diz respeito, p. ex., à
singular estrutura dupla das objectividades puramente intencio­
nais, às indeterminações que aparecem nos seus conteúdos e à
sua heteronomia ontológica.
Quanto a pormenores sobre a aludida afinidade com a
Lógica de Husserl, bastará salientar as seguintes observações
como afins das correspondentes de Husserl: 1.°, a concepção
das operações subjectivas elaboradoras das frases e a distinção
entre a pura proposição e o juízo; 2.°, a distinção entre o
conteúdo material e formal da significação nominal da palavra
e o confronto da plenitude de significação de uma palavra iso­
7

lada com os momentes sintácticos próprios da sua significação


na frase; 3.°, a análise da constituição de uma objectividade
puramente intencional numa multiplicidade de períodos. Final­
mente, acontece por vezes que onde Husserl se limita a aludir
só de passagem a uma afirmação ou a um problema, porque
no contexto respectivo não os pode aprofundar, eu, para os
fins que tenho em vista, ofereço análises pormenorizadas. Refe­
re-se isto, p. ex., à minha consideração do modo de ser das
objectividades apresentadas na obra literária, enquanto Husserl
só duas vezes observa que «também as ficções têm o seu modo
de ser» (1. c., pp. 149 e 226). Na página 230 da sua obra, Husserl
põe o «problema delicado» da possibilidade de «a subjectividade
em si mesma criar, únicamente a partir das origens da sua
espontaneidade, produtos susceptíveis de passar por objectos
ideais de um “ mundo” ideal. E mais (como problema de outra
ordem) o do modo detestas idealidades poderem receber exis-
xència vinculada ao espaço e tempo no mundo da cultura exigido
como real enquanto encerrado no universo espaço-temporal, exis­
tência essa na forma da temporalidade histórica, como é o caso
das teorias e ciências». Estes «problemas delicados», em particular
o segundo, constituíram outrora o ponto de partida da minha
reflexão sobre a obra literária. O resultado foi a exclusão destas
realizações não só do âmbito das idealidades no sentido rigoroso,
mas também do mundo real. Se consegui ou não justificar este
resultado, o leitor deste livro poderá julgar por si mesmo.
Todas estas observações permitem ao leitor orientar-se com
facilidade nas relações que existem entre o meu livro e a Formale
and Transzendentale Logik de Husserl. Embora eu tenha de
referir alguns pontos de divergência em relação às opiniões do
meu venerado mestre, não esqueço quanto lhe devo. Hoje, depois
de doze anos de trabalho pessoal, sei, melhor do que nunca, quanto
Edmund Husserl, com as suas profundas intuições e o domínio
de horizontes ilimitados, a todos nos supera. Se conseguirmos
descobrir algo que a Husserl passou despercebido, devemo-lo,
sobretudo, às grandes facilidades que o seu trabalho incansável
de investigador nos proporcionou.
Por fim, não queria deixar de exprimir os meus melhores
e mais calorosos agradecimentos a todos aqueles que me auxi­
liaram na preparação do presente livro. Foram, sobretudo, os
Professores Julius Kleiner e Zygmunt Lempicki, que me ajudaram
com os seus conselhos preciosos e crítica. Alguns capítulos
¿iscuti-os com o Dr. W. Auerbach (que também me ajudou na
8

revisão das provas tipográficas) e com a Dr.a M. Kokoszynska


e fico-lhes muito grato por muitas observações acertadas.
A Dr.a Edith Stein teve a amabilidade de se encarregar do grande
trabalho da correcção lingüística do texto, prestando-me, assim,
um precioso serviço de amizade.
Os meus especiais agradecimentos vão para Max Niemeyer,
que, apesar da crise geral, resolveu publicar o meu livro na
sua Casa Editora, empenhando-se em lhe dar a melhor apre­
sentação possível.

Lemberg, Outubro de 1930.

O A utor
Prefácio da terceira edição

A nova edição do presente livro aparece quando o seu


Apêndice original, agora intitulado Investigações acerca da Onto-
'.:zia da Arte, já tinha sido publicado em língua alemã. Só agora
5-c torna evidente que as reflexões consagradas à obra literária,
¿esde o princípio, constituíam simplesmente parte de uma pro­
blemática mais vasta e foram conduzidas segundo uma intenção
:eórica mais extensa. Abstraindo da relação com o problema
Idealismo-Realismo, que talvez se torne nítida depois da publi­
cação do meu livro Der S treit■um die Existenz der Welt («A dis­
cussão acerca da existência do mundo»), está claro agora que
eu, desde o princípio, pretendi criar, pela análise profunda da
estrutura e do modo de ser das obras das diferentes artes, uma
base mais concreta para a Estética fenomenológica do que a
vigente até então. Andava aliada a este propósito a exigência
metodológica de que a ciência da literatura e toda a investigação
estética deviam concentrar as suas análises nas próprias obras
de a rte 1 e todos os problemas a elas concernentes só nesta
base poderiam ser tratados2. É certo que os dois livros men­
cionados constituem somente a parte principal das minhas
publicações em língua polaca. Espero, porém, oferecer ao público
alemão pelo menos o meu livro Vom Erkennen des literarischen
Kunstwerkes («D o conhecimento da obra de arte literária») e
uma colectânea das minhas conferências em versão alemã. Então
começarão a delinear-se os contornos de uma Estética fenome-
nològicamente tratada, como eu a entendo.

1 A isto René Wellek chamou mais tarde «o método literário-imanente


¿a ciência da literatura».
2 Em 1931, fui por isso alvo de ataques vindos de todos os lados,
pelo menos na Polônia. Ficaria satisfeito se esta exigência metodológica
fosse hoje considerada trivial.
10

nem tão-pouco ultrapassadas pelos resultados contidos em outros


livros e tratados, de modo a perderem hoje o seu significado.
Pelo contrário, creio que este meu livro oferece resultados que
excedem quanto outros realizaram neste campo. Oxalá que a
situação destas investigações tenha evoluído favoràvelmente a
este livro e talvez as reflexões nele contidas se tornem hoje
mais acessíveis ao leitor do que o foram no princípio do quarto
decênio deste século.
Assim deposito este livro nas mãos do público, esperando
que continue a provar a sua utilidade.
Deixei a obra inalterada na sua essência. Apenas nalguns
passos tentei adaptar as formulações anteriores com mais pre­
cisão aos factos dados. Por vezes completei o texto com uma
ou outra observação. Tenho plena consciência de que este livro
seria muito mais acessível e plástico para os investigadores da
literatura se eu oferecesse uma série de análises concretas das
obras de arte individuais. Contudo, já na primeira redacção
tive de renunciar a elas, porque de outro modo o livro ficaria
demasiado extenso. Além disto, receei analisar obras de arte
concebidas numa língua que me é estranha, porque neste caso
fácilmente se é levado a interpretações erradas. Por essas mesmas
razões desisti também agora da análise de obras de arte indi­
viduais. Em contrapartida, inseri em vários passos novas refe­
rências literárias e citei as opiniões alheias que pareciam con­
firmar a minha posição em vários problemas particulares. Foram
particularmente valiosas para mim as confirmações oriundas
de autores que era óbvio não conhecerem o meu livro. Em alguns
passos respondi às objecções que me foram feitas no decurso
dos anos. Infelizmente, a literatura mais recente só parcialmente
foi tomada em consideração, e eu apenas pude obter uma
parte reduzida das respectivas publicações.
Por fim, não quero deixar de apresentar os meus melhores
agradecimentos ao meu fiel editor, Dr. Hermann Niemeyer, em
Tubingen, por se propor reeditar este livro.

Cracovia, 1959.

O A utor
Prefácio

As investigações trazidas a público nesta obra têm por tema


principal a estrutura fundamental e o modo de ser da obra
!::erária e, muito especialmente, da obra de arte literária. Desta
pretendem sobretudo focar a estrutura característica e eliminar
¿ 3. sua concepção as várias confusões que em obras antecedentes
resultaram, por um lado, das tendências psicologísticas, que
continuam a ser fortes, e, por outro lado, das considerações de
uma teoria geral da arte e da obra de arte. Das primeiras, trato
mais pormenorizadamente na primeira parte do presente livro,
permitindo-me aqui remeter o leitor para ela. Quanto à teoria
zeral da arte, oscilou-se, desde os tempos de Lessing, entre duas
concepções antagónicas. Ou aproximou-se demasiado das «artes
plásticas» (em primeiro lugar da pintura) a obra literária, e
particularmente a obra de arte literária, ou pretendeu-se 1 — se­
guindo o primeiro impulso de Lessing— , como, por ex., Th. A.
Meyer, acentuar em demasia o elemento puramente lingüístico
da obra literária, negando assim os elementos plásticos da obra
de arte literária. Estes dois extremos, a meu ver, resultaram do
íacto de se considerar a obra literária sempre como uma reali­
zação unistratificada, enquanto, na realidade, ela é constituída
por vários estratos heterogéneos, e de se terem em conta apenas
alguns elementos, e sempre diferentes nas diversas teorias, como
unicamente constitutivos. Visto que as minhas considerações
procuram pôr em relevo a estrutura multistratificada e a poli­
fonia, com ela relacionada, como essenciais à obra literária, na
intenção de visar todos os elementos nela existentes, a minha

1 Sobre a história do problema, cf., entre outros, Jonas Cohn, na


Zeitschrift für Aesthetik und Allgemeine Kunstwissenschaft, 1907, n.° 3;
além disto, R. Lehmann, Deutsche Poetik, § 8.°.
12

Fora originalmente meu propósito fazer a crítica, nesta nova


edição, de algumas teorias apresentadas nos últimos anos.
Como, porém, esta edição é uma reimpressão fotomecánica,
devo desistir dessa intenção e limitar-me a fazer aqui algumas
observações sobre a Teoria da Literatura de René Wellek e Austin
Warren, referindo aqueles passos em que René Wellek expressa­
mente menciona o meu liv r o 3.
Há apenas dois passos (a pp. 169 e 175) em que o meu
nome aparece no texto da Teoria da Literatura4. O primeiro
destes passos refere-se à minha concepção de estratificação da
obra de arte literária, não indo além, no fundo, de uma enume­
ração destes estratos. Afirma-se, porém, que eu distingo cinco
estratos, e, entre eles, o das qualidades metafísicas. Isto é um
erro. É certo que eu tive em conta, entre outras, as qualidades
metafísicas, mas nunca as considerei um dos estratos da obra
literária. Seria, pois, inteiramente errado se o fizesse. Só rara­
mente aparecem em certos acontecimentos e situações da vida
dentro do mundo apresentado. Se constituíssem um estrato da
obra deviam pertencer à estrutura fundamental da obra de arte
literária e aparecer, como tais, em todas as obras deste género.
Não é este, de modo algum, o caso, o que aliás Wellek também
nota. Apesar disto, a sua função na obra de arte é muito
importante. Estão intimamente relacionadas com o seu valor
estético, e foi precisamente esta a razão por que eu tratei das
qualidades metafísicas5. Podem também aparecer em obras
de outras artes, sobretudo de Música, Pintura, Arquitectura, etc.
Nestes casos podem frequentemente depender do modo como
eu concebi a «ideia» de obra. A existência de qualidades meta­
físicas não está, portanto, de modo algum ligada ao carácter
literário da obra. Se fossem consideradas estrato da obra de
arte literária, passariam despercebidas a feição «anatómica» e a

3 A Teoria da Literatura apareceu primeiro em inglês no ano de 1942,


portanto numa época em que a Polônia se encontrava ocupada por tropas
estrangeiras, ficando nós, durante muitos anos, excluídos da vida científica
do mundo. Nessa altura o meu livro estava quase esgotado e dificilmente
se podia obter nos E. U. A. É certo que a tradução alemã da Teoria da
Literatura apareceu em 1959, mas eu só o soube muitos anos depois da
publicação da 2.a edição do meu livro.
4 Nas anotações e na bibliografia, o título do meu livro é várias vezes
indicado. O leitor que não conhece o meu livro não pode, porém, depreen­
der daí em que medida o livro de René Wellek segue de perto as minhas
posições.
5 Isto já é um indício de que se não justifica a crítica de Wellek que
discutirei mais adiante.
13

função estrutural dos estratos na obra de ârte literária e na


obra de arte em geral.
A minha concepção dos estratos foi descrita por R. Wellek
sob o aspecto, para mim estranho e equívoco, de «norma» e de
«sistema de norm as»6. Além disto, Wellek omite por completo
a segunda particularidade estrutural da obra de arte literária —
a seqüência das partes. Isto significa uma deturpação essencial
lanto da estrutura da obra literária, como ainda da minha
concepção. A omissão da ordem de seqüência das partes da obra
torna impossível a Wellek tratar de problemas importantes da
arte literária.
A páginas 175 e seg., R. Wellek critica-me da seguinte ma­
neira: «Não nos ocupámos da questão dos valores artísticos.
Mas o exame precedente deverá ter revelado que não existe
estrutura fora das normas e dos valores7. É-nos impossível
compreender e analisar qilalquer obra de arte sem referência
a valores. O próprio facto de uma pessoa reconhecer certa
estrutura como «obra de arte» implica um juízo de valor. O erro
da Fenomenología pura reside na presunção de que tal disso­
ciação (!R. J.) é possível, de que a valores estão sobrepostas
estruturas e lhes são de qualquer forma «aderentes». Este erro
de análise diminui infelizmente o valor do penetrante livro de
Román Ingarden, que tenta analisar a obra de arte sem a referir
a valores 8. A raiz da questão encontra-se naturalmente na acei­
tação, por parte dos fenomenólogos, de uma obra eterna, intem­
poral, de «essências» a que apenas mais tarde (!R. J.) se adicionam
as individualizações empíricas.» A isto devo responder:
1.° É-me inteiramente desconhecido e pessoalmente também
completamente estranho que os «puros fenomenólogos» suponham
haver «estruturas sobrepostas» aos valores e a estes de qualquer
modo «aderentes». É certo que a palavra «estrutura» é tão
polivalente 9 em R. Wellek que esta frase mal se entende. Seja,
porém, qual for a acepção das palavras «valor» e «estrutura»,

6 Ocupar-me-ei disto noutro lugar.


7 Se esta afirmação disser respeito à parte precedente do capítulo x n
da Teqria da Literatura, a verdade é que a análise de modo algum trata
da relação entre as normas, valores e estruturas. No fundo, refere-se às
"ünhas considerações acerca da natureza e do modo de ser da obra de
arte literária, sem mencionar, no texto, o meu nome. Só na página 169 há
um resumo da minha concepção dos estratos.
8 Esta sentença de R. Wellek foi muitas vezes repetida por outros
autores, sem verificarem a sua veracidade. Por isso refiro-a aqui.
9 Demonstrá-lo-ei noutro lugar.
14

o verbo «sobrepor» sugere que o que está na base seria o «valor»


e o que sobre ele se ergue seria precisamente umá «estrutura».
É exactamente o contrário daquilo que eu afirmei. Por outras
palavras: as estruturas (e nem todas, mas estruturas muito
especiais) são o que está na base; o fundamento e os valores
são precisamente o fundamentado.
2.° Max Scheler falou, com efeito, de valores como objectos
ideais ou essencialidades, mas distinguiu deles os «bens» que
são individuais e de modo especial reais, e cujos momentos
valiosos são igualmente individuais. Nenhum fenomenólogo afir­
maria, porém, que a estas «essencialidades» apenas mais tarde
se acrescentariam as «individualidades empíricas».
3.° São duas coisas distintas — o que R. Wellek não toma
em consideração: analisar uma obra de arte individual, como,
p. ex., o Fausto de Goethe, e construir uma teoria filosófica
universal da obra literária. No primeiro caso, seria errado con­
siderar determinada obra de arte individual totalmente «sem
referência» — no dizer de R. Wellek — ao seu valor artístico,
embora ainda neste caso deva haver fases da investigação, em
que os momentos axiològicamente neutros da obra de arte são
visados, sem se atender, então, ao seu valor. No segundo caso,
porém, em que a investigação é realizada com base numa análise
do conteúdo da ideia universal da obra de arte, não devemos
esquecer que as obras de arte são artística ou estéticamente
valiosas, ou devem encarnar em si um valor, mas o valor
determinado que uma obra de arte tem eventualmente, ou pode
ter, deve ficar fora da nossa consideração precisamente porque
esta particularidade do valor constitui uma variáv.el no conteúdo
da ideia universal de obra de arte. Só os casos singulares destas
variáveis podem aparecer nas obras de arte individuais. É com­
pletamente impossível proceder de outra maneira. E o próprio
R. Wellek não procede de outro modo — apesar da crítica que
me dirige. Diz ele expressamente — e inteiramente no meu sen­
tido e seguindo ainda o meu exemplo — a páginas 26 e seg. do
seu livro: «Esta concepção de literatura é descritiva e não
valorativa. Não se cometerá qualquer injustiça para com uma
obra de grande fôlego e influência pelo mero facto de a rele­
garmos para o campo da retórica ou da filosofia ou do panfle-
tarismo político, porque em todos estes campos se podem pôr
problemas de análise estética e de estilística, mas falta-lhes pre­
cisamente a característica principal da literatura, isto é, a especial
relação à realidade, que é a «ficção». Esta concepção de lite­
ratura incluiria assim todas as espécies de ficção, ainda que
se tratasse do pior romance do pior poema, do pior drama.
15

Segundo ela, a classificação de obras de arte deveria constituir


questão distinta da valoração.»
É precisamente esta a minha opinião. Merece também aten­
ção o facto de, segundo R. Wellek, a literatura não se distinguir
de outras obras pelo seu valor mas — na afirmação de Wellek —
pela sua «relação particular com a realidade». Corresponde isto,
igualmente, à minha opinião. Nesta formulação vaga, a afirma­
ção aliás já não é nova. Na Alemanha, remonta pelo menos a
Lessing. Por isso tentei dar um passo importante em frente
nesta questão procurando definir um pouco mais exactamente
aquela «ficção», indicando ao mesmo tempo os quase-juízos que
são o seu meio de produção.
4.° Finalmente, nem tentei nem exigi «a análise da obra de
arte sem referência a valores». Textualmente escrevo (p. 38):
<Finalmente, abstraímo-nos por enquanto de todas as questões
gerais relacionadas com a essência do valor de uma obra de
arte e, particularmente, de uma obra de arte literária. Verifi­
caremos decerto que nesta se podem encontrar valores e
não-valores e que estes levam à constituição de um valor total,
particularmente qualificado, de toda a obra literária. O que,
porém, constitui a essência de tais valores deve ficar fora da
nossa consideração porque a solução deste problema pressupõe,
por um lado, a solução do problema do valor como tal e, por
outro, a intuição da estrutura da obra literária. Pela mesma
razão, deixamos por agora completamente de lado, no exame
da obra literária, a questão do seu valor positivo ou negativo.»
Por outras palavras, isto significa que eu pretendo consi­
derar igualmente as obras de valor positivo e as «sem valor»,
: é, de valor negativo. A única expressão porventura equívoca
r.este caso é a expressão «sem valor». Como foi, porém, empre-
zada em oposição a «valor positivo», não deveria dar origem
¿ mal-entendidos. Só quando tomamos em consideração todas
2.5 obras de arte, tanto as de valor positivo como as de valor
n-egativo, podemos esclarecer porque é que muitas são estética
:u artisticamente valiosas e outras, pelo contrário, no dizer do
próprio R. Wellek, são «más». E o que é que eu fiz, realmente,
-o meu livro? Com efeito, não investiguei a essência geral
zd valor. Em contrapartida, procurei em cada estrato da obra
de arte literária e também na ordem da seqüência das suas
partes os pontos onde podem surgir valores (ou mais precisa­
mente: qualidades valiosas artísticas ou estéticas). Chamei tam-
:em a atenção para vários destes pontos. Procurei ao mesmo
:rmpo tomar consciência do que é específico no valor artístico
: estético da obra de arte. literária e caracterizei este valor
16

como uma harmonia polifónica de qualidades valiosas. Isto


pode, naturalmente, ser errado ou ainda muito insuficiente. Mas
não é indício algum de eu ter procurado analisar obras de arte
literária «sem referência a valores».
5.° Não posso tratar aqui do significado e da validade da
afirmação com que Wellek justifica a sua posição: «A investi­
gação anterior deve, pois, ter mostrado que não há estruturas
fora de normas e valores.» O esclarecimento do sentido desta
afirmação e a ponderação das suas razões só poderiam reali-
zar-se num estudo mais extenso, que excede os limites deste
livro. Fá-lo-ei noutro lugar.

Cracovia, Setembro de 1965.

O A utor
Primeira Parfe

Q UESTÕ ES PRÉVIAS
Primeira Parte

QUESTÕES PRÉV IA S

§ 1. Introdução

Estamos perante um facto curioso. Quase todos os dias


zos ocupamos de obras literárias \ Lemo-las, somos impressio­
nados por elas, agradam-nos ou desagradam-nos, apreciamo-las,
formulamos diferentes juízos sobre elas, discutimo-las, escreve­
mos tratados sobre obras individuais, ocupamo-nos da sua
história e, muitas vezes, elas constituem quase uma atmosfera
em que vivemos. Parecé-nos, portanto, que conhecemos os objec­
tos desta ocupação sob todos os aspectos e exaustivamente.
Contudo, interrogados sobre o que seja propriamente a obra
literária devemos com certa surpresa admitir que não encon­
tramos nenhuma resposta correcta ou satisfatória. O nosso
saber a respeito da essência da obra literária, com efeito, não
so é insuficiente mas sobretudo pouco claro e muito incerto.
Poder-se-ia julgar que isto se dá apenas connosco, leigos na
matéria, a lidar simplesmente com obras literárias, sem pos­
suirmos conhecimentos teóricos sobre elas. Todavia não é assim.
5e consultarmos os historiadores da literatura ou os críticos,
du mesmo aqueles que tratam da ciência da literatura, as res­
postas ao problema não são sensivelmente melhores. Os múltiplos
•uízos que nos oferecem são muitas vezes contraditórios e, no
fundo, não constituem resultado sólido de uma investigação
çue propriamente incidisse sobre a essência da obra literária.
Exprimem antes as chamadas convicções «filosóficas» do seu
-utor, i. é, normalmente certos preconceitos não-críticos, conso­
lidados pela educação e pelo hábito, e que provêm de uma
epoca já passada. Nas obras de ciência literária da autoria de

1 Empregamos a expressão «obra* literária» para designar indistin-


*_imente qualquer obra de «literatura», sem precisarmos se se trata de
_ma autêntica obra de arte ou de uma obra sem valor. Só quando pro-
ruramos focar os aspectos da obra literária, que a constituem obra de arte,
ciaremos esta última expressão.
20

escritores importantes não encontramos em -geral formulado


com clareza o problema da essência da obra literária como se
fosse um assunto do conhecimento de todos e inteiramente
insignificante *. E ainda que por vezes se ponha esta questão,
ela aparece desde o princípio entretecida de vários problemas
e pressupostos que objectivamente lhe não dizem respeito e
tomam impossível uma resposta adequada. Omitida a questão
central, insiste-se em resolver vários problemas especiais que
— por mais interessantes que em si sejam — nunca permitem
uma solução final desde que fique por esclarecer a essência
própria da obra literária. A esta questão central queremos nós
dedicar a investigação que se segue.
O nosso propósito é, no fundo, modesto. Queremos principiar
por uma «anatomia da essência» da obra literária, cujos resul­
tados principais nos devem abrir o caminho para a sua consi­
deração estética. Os problemas especiais de Estética e Teoria
da Arte que actualmente são tratados sob vários aspectos ficam
excluídos da nossa consideração e só mais tarde devem ser
abordados com base nos resultados por nós obtidos. Contudo,
a sua formulação correcta já depende, a nossa ver, dos resul­
tados aqui representados.
Naturalmente, não pretendemos de modo algum diminuir a
importância das conclusões de outros investigadores para a
evolução da ciência da literatura, ainda que sejam diferentes
as afirmações fundamentais a que chegámos. Muitos problemas
não têm solução quando se não segue o caminho acertado.
Exigimos apenas uma posição inicial perante a obra literária,
em princípio distinta das tendências psicológicas e psicologistas
até agora dominantes, e esta posição levará por si mesma à
purificação e modificação das opiniões até agora defendidas.
Enquanto se não tiver assumido perante os objectos da inves­
tigação uma atitude fenomenológica puramente receptiva e diri­
gida para a essência da coisa há sempre a tentação de passar
por cima daquilo que lhe é específico, «reduzindo-o» a outros
elementos já conhecidos. É este o caso, também, dos estudos
sobre a obra literária. Revelam quase todos tendências «psico­
logistas» ou, pelo menos, psicológicas. Mesmo em obras que
gostariam de romper com o psicologismo — como, p. ex., o inte­
ressante livro de Dohrn, Die künstlerische Darstellung ais Pro-

1 Isto refere-se, naturalmente, à situação que reinava outrora, em 1927,


quando estas palavras foram escritas. Desde aquela época muita coisa se
‘ em modificado.
blem der Ásthetik, ou o estudo publicado em língua polaca por
Zygmunt Lempicki (A respeito do problema da fundamentação
de uma poética pura) 1— a tendência para reduzir a obra lite­
rária a certos factos e contextos psíquicos, decompondo-a neles,
continua ainda muito intensa. Parece tão natural a muitos inves­
tigadores categorizados ser a obra literária uma realidade psí­
quica que nem sequer admitem se fale da sua redução a algo
de diferente. Nós, pelo contrário, julgamos poder delinear na
obra literária um objecto de estruturação inteiramente específica,
que nos interessa também por outras razões já referidas no
Prefácio.

1 W sprawie uzasadnienia poetyki czystej, publicado na homenagem


a K. Twardowski, em Lwów, 1922. Constituem um passo essencial no sen­
tido da libertação do psicologismo muitas afirmações de Lempicki na sua
recensão publicada na «Zeitschrift fiir Philologie», t. x, do livro Gehalt
und Gestalt de O. Walzel. A primeira tentativa para considerar a obra
literária puramente em si mesma, que julgamos ter sido a do tratado
de W. Conrad, Der ãsthetische Gegenstand, na «Zeitschrift für Ásthetik»,
vols. in e iv, não exerceu, infelizmente, influência alguma. Contudo, Conrad
vai longe de mais ao ver na obra literária um objecto ideal, o que é
insustentável, como pretendemos demonstrar.
Capítulo 1

Problemas do ponto de partida

§ 2. Delimitação provisória do âmbito dos exemplos

Principiamos por determinar provisoriamente, através da


selecção de uma série de exemplos, o âmbito dos objectos que
pretendemos investigar. Fazemo-lo «provisoriamente», i. é, esta­
mos de antemão sempre prontos a modificar este modo de
determinação inicial do âmbito do objecto caso o decurso da
mvestigação a isto nos obrigue. Assim, a investigação é submetida
2 uma orientação que poderá ser modificada a todo o momento.
A determinação definitiva do âmbito da obra literária pressupõe
2 captação e a determinação conceptual da própria essência da
obra literária. Seria, portanto, possível somente depois de con­
fu id a a investigação.
Se quisermos agora escolher os exemplos segundo o critério
i o conceito de «obra literária» usado na vida diária, não escla­
recido, porventura até errado, podemos enumerar obras perten­
centes a qualquer dos «géneros literários» possíveis. Assim,
¿tribuimos o valor de obra literária igualmente à Ilíada, de
Homero, à Divina Comédia, de Dante, a qualquer dos dramas
¿e Schiller e, com a mesma razão ainda, a qualquer romance
p. ex., A Montanha Mágica, de Thomas Mann), a uma novela
du. finalmente, a um poema lírico. Não queremos, porém, con­
siderar como obras literárias apenas as obras que têm elevado
valor literário ou cultural. Seria absolutamente errado. De mo­
mento nem sabemos o que distingue as obras de valor daquelas
que o não têm, nem o significado próprio de valor de determinada
ibra e, em particular, de valor literário. Além disso, não se
percebe porque não deveria haver obras literárias «m ás» e sem
valor. Por outro lado, é precisamente nossa intenção pôr em
relevo uma estrutura fundamental comum a todas as obras
l::erárias, independentemente do valor que possam ter. Devemos,
portanto, escolher como exemplos para a nossa investigação
:bras e opúsculos que, segundo o juízo comum e usual, não
24

têm valor, *p. ex., qualquer romance policial publicado num


jornal ou um poema banal de amor de um jovem estudante K
Aos exemplos que acabámos de indicar juntam-se outros
que nos podem levantar dúvidas sobre o seu estatuto real de
«obras literárias», e que aliás não queremos perder de vista.
São, p. ex., todas as «obras científicas», nitidamente distintas
das obras de «literatura» que queremos estudar, e de que muitas
vezes se ouve afirmar ser grande, pequeno ou absolutamente
nulo o valor literário, como se fosse possível compará-las com
as obras de «literatura» e, em última análise, possuíssem a
mesma essência. Igual cabimento têm todos os artigos de jornais,
indistintamente, quer tratem de qualquer acontecimento ou pro­
blema importante, quer não passem de uma informação policial.
Interessam ainda todos os diários, autobiografias, memórias de
acontecimentos passados, etc. Outro tipo de casos duvidosos é
constituído pelas obras cinematográficas (comédias, dramas, etc.),
por todas as pantomimas e pelo «espectáculo» teatral.
Passamos agora a tratar da primeira série de exemplos para
neles aprendermos a estrutura fundamental da obra literária.
Começamos pela discussão de alguns problemas iniciais, que
mais tarde se revelarão problemas principais.

1 Acerca desta proposta metodológica, e bem assim de toda a orien­


tação fundamental das investigações realizadas no presente livro, R. Ode-
brecht, na sua Ãsthetik der Gegenwart (19), pp. 25 e segs., escreveu:
«Podemos virar-nos para «a coisa», valorizando-a, sem tomarmos o valor
em si como objecto (Husserl). Isto exige de novo uma orientação própria
«dbjectivadora». Este facto passa despercebido a todos os fenomenólogos,
que, por exagerado receio do psicologismo, eliminam a vivência estética,
ocupando-se do «portador» neutro do valor, como se o valor aderisse
ao portador (como supõe a escola de Rickert) e dele pudesse ser arbi-
tràriamente separado. A este erro de princípio não foge o trabalho de
Roman Ingarden sobre a obra de arte literária. A investigação penetrante
da estruturação multistratificada da obra literária, a caracterização de
quatro estratos especiais (formações fónico-linguísticas, unidades de signi­
ficação, objectividades apresentadas, aspectos esquematizados), estética­
mente considerados, pairam no ar. Não se pode considerar a obra ora
simplesmente imaginável ora valiosa, porque se trata, neste caso, de dois
«objectos» diferentes. Desde o início é preciso manter presente a dupla
intentio perante o objecto ideado como obra de arte.»
A isto tenho de observar que nem a Husserl (expressamente men­
cionado por Odebrecht) nem a mim passaram despercebidas a possibilidade
e a diferença das duas atitudes perante o objecto de valor estético. Trata-se
até mais exactamente — como eu julgo ter mostrado no meu livro, publi­
cado em 1937, em língua polaca: Sobre o Conhecimento da Obra Literária —
de atitudes diferentes, muitas vezes entrelaçadas, relativamente à obra
§ 3. O problema do modo de ser da obra literária

A primeira dificuldade é-nos oferecida pela pergunta: Entre


que objectos, reais ou ideais, devemos enumerar a obra literária?
A divisão de todos os objectos em ideais e reais parece ser
a mais universal e, ao mesmo tempo, completa. Poderíamos,
portanto, julgar ter afirmado algo de decisivo quanto à obra
literária, após a solução deste problema. Todavia não é tão fácil
de resolver. E não o é por duas razões: primeira, porque até hoje
a determinação dos objectos ideais e reais segundo o seu modo
de ser, apesar de muitas tentativas importantes, não chegou a
ser definitivamente realizada. Em segundo lugar, não é, de mo­
mento, claro o que seja propriamente uma obra literária. Ainda
que nos tenhamos de contentar, provisoriamente, com conceitos
de objectividades reais e ideais não suficientemente clarificados,
as tentativas fracassadas em considerar a obra literária como
objectividade ideal ou "real mostrar-nos-ão, da maneira mais
sensível, quão obscuro e insuficiente é o que sabemos da obra
literária.

Mterária. N a verdade — como Odebrecht acertadamente v ê — , não se trata


apenas de perceber a obra ora sem o valor «a ela aderente» ora com este
mesmo valor. Conforme a atitude, chegamos a uma concretização da obra
em causa de mui diferente contextura e de diversa configuração em muitas
das suas linhas (o que ainda não foi possível discutir aqui, cf. adiante
cap. 13.°). Isto, porém, não exclui a possibilidade da percepção puramente
cognitiva da obra, enquanto fundamento último de todas as potenciali­
dades nela radicadas das concretizações constituídas na atitude estética e
ainda na não-estética, tendo naturalmente em consideração os modos dife­
rentes em que a obra se nos apresenta nas diferentes fases da vivência
estética. N o livro mencionado sobre o conhecimento da obra literária fiz,
entre outras, uma análise pormenorizada da vivência estética. Apresentei
dela um breve resumo ao 2.° Congresso Internacional de Estética e Ciência
Geral das Artes, em Paris, em 1937. Quanto mais se exigir, no caso indi­
vidual, esta captação puramente cognitiva da obra para compreendermos
d s modos de chegar às diferentes concretizações a partir da identidade

ia cbra, tanto mais numa consideração totalmente universal da essência


da obra literária (e também da obra de arte), como é escopo do presente
livro. Que isto não é nenhum «erro», como Odebrecht julga, resulta do
próprio facto de a obra literária entrar, por assim dizer, como esqueleto
em qualquer concretização adequadamente constituída, que reveste este
mesmo esqueleto apenas de traços e pormenores diferentes, como sucede
num corpo vivo. Através deste revestimento, que encerra em si qualidades
estéticamente valiosas e mostra o valor estético nelas fundado, o esqueleto
:orna-se visível e pode até dele dissociar-se. Só na medida em que este
esqueleto está contido na concretização e nela continua visível fica obvia­
mente assegurada a identidade da obra em todas as suas mutações durante
a sua vida histórica.
26

Falamos aqui de objectividades reais e ideais apenas no


sentido de algo que, no seu ser, é em si mesmo autónomo e
independente de todo o acto cognoscitivo que o vise !. Se alguém
não estivesse disposto a aceitar connosco a autonomia no ser
dos objectos ideais2 teria de distinguir entre estes e as objec­
tividades reais, ao menos pelo facto de estas começarem num
momento qualquer temporal, durarem algum tempo, se modi­
ficarem eventualmente durante ele e deixarem finalmente de
existir3, não se podendo afirmar o mesmo a respeito dos objectos
ideais.
Com a intemporalidade dos objectos ideais relaciona-se tam­
bém o facto de eles não poderem ser alterados, embora até
agora não se tenha conseguido esclarecer qual a razão da sua
inalterabilidade. Em contrapartida, os objectos reais — como foi
já observado— podem, sem dúvida, sofrer alterações, e na
realidade sofrem-nas, embora se possa de novo perguntar se
eles devem sempre alterar-se por essência.
Pressuposto isto, perguntemos se determinada obra literária,
p. ex. o Fausto de Goethe, é um objecto real ou ideal. Imedia­
tamente nos convencemos de que não nos podemos decidir
segundo está alternativa. Por cada uma das possibilidades que
mutuamente se excluem parecem militar importantes argumen­
tos. O Fausto foi redigido em determinado período. Podemos
indicar com exactidão relativamente grande a época em que foi
escrito. Estamos todos de acordo em que ele existe desde o
tempo do seu aparecimento, ainda que não entendamos bem o
que rigorosamente pode significar falar da sua existência. Talvez
já não comungássemos com igual segurança da convicção de
que esta obra-prima de Goethe, desde o tempo em que nasceu,
está sujeita a estas e àquelas mutações e de que virá uma época
em que deixará mesmo de existir. Contudo, ninguém negará

1 A senhora Conrad-Martius também acentua a «autonomia existen­


cial» de objectividades ideais, mas parece que entende por esta apenas
a «independência no ser» no nosso sentido. Cf. Realontologie, p. 6: «Já não
pode haver dúvida alguma de que há um «algarismo três» com uma
intangibilidade completamente intemporal e, por conseguinte, com absoluta
autonomia existencial.» (Jahrbuch fíir Philosophie, t. 6, p. 164.)
2 Para abreviar, emprego aqui o termo «objecto ideal» num sentido
mais lato do que o empreguei nas minhas Questões Essenciais. Aí distingui
entre objectos ideais, ideias e essencialidades ideais. Aqui, esta expressão
designa os três tipos de idealidades.
3 Aqui pretendo falar apenas de coisas relacionadas com a nossa
experiência directa e não discutir a possibilidade de um objecto real
eterno nem a questão da sua relação com o tempo.
27

que é possível alterar uma obra literária, no caso de o próprio


iutor ou os organizadores de urna nova edição omitirem certas
partes, substituindó-as por outras. Apesar destas alterações, uma
obra literária pode continuar a ser a «mesma» desde que as
alterações não vão demasiado longe. Pelas observações prece­
dentes devíamos considerar a obra literária como um objecto
real. Mas quem poderá negar ao mesmo tempo que o Fausto
¿ um objecto ideal? Pois o que será ele se não uma multiplicidade
de frases em determinada ordem? Urna frase, porém, não é
nada de real; deve ser — como muitas vezes foi afirmado — um
determinado sentido ideal, composto por uma multiplicidade de
significações ideais que, todas juntas, constituem uma unidade
sui generis. Se, porém, a obra literária fosse um objecto ideal
seria incompreensível que pudesse surgir em determinada época
e sofrer alterações durante a sua existência, como na realidade
acontecel. Neste aspecto distingue-se radicalmente das o b je t i­
vidades ideais como, p. ex., determinado triângulo geométrico
ou o número cinco ou a ideia de um paralelogramo ou a essência
do «vermelho». Assim, as duas soluções antagónicas do problema
parecem ser inviáveis.
Chegaríamos nós a este resultado só porque erradamente,
e sem o saber, julgamos parte ou qualidade da obra literária
muita coisa que, na realidade, lhe é estranha? Se fosse possível
proceder a uma correcção poder-se-ia talvez chegar a uma deci­
são. E como a gênese temporal da obra literária não parece
admitir dúvida, impõe-se desistir da suposição de que as frases
ideais formem parte constitutiva da obra literária e considerar
a obra literária simplesmente como objecto real. Um exame
mais criterioso revela todavia que assim deparamos com novas
dificuldades, nomeadamente quando se nega com os psicologistas
a existência dos conceitos ideais2, admitindo-se que o leitor
também não possa recorrer a ele^ na percepção de uma obra
literária. Sejamos mais explícitos.

1 W. Conrad, que vê na obra literária um objecto ideal, não chega


a ter consciência desta dificuldade. Cf. Der aesthetische Gegenstand, Zeit-
schrift für Aesthetik, vols. III e IV. Também a senhora Conrad-Martius
parece considerar pelo menos algumas obras literárias (ou apenas figuras
literárias) com objectividades ideais. Cf. I. c., p. 163. Em contrapartida,
podia pensar-se na conhecida distinção de F. de Saussure entre «langue»
e «parole» se o conceito de «langue» fosse definido com maior precisão.
2 Esta segunda suposição é independente da primeira. Poderia defen­
der-se, portanto, a concepção de que há unidades ideais de sentido
(conceitos), mas que não são partes constitutivas da obra literária. Mais
tarde havemos de ponderar com exactidão esta possibilidade.
§ 4. As concepções psicologistas e o problema da
identidade da obra literaria

O que resta da obra literária sob as duas condições que


acabam de ser descritas? Segundo parece à primeira vista, nada
mais do que uma multiplicidade de sinais gráficos escritos
(impressos) (ou, numa obra lida em voz alta, de sons verbais).
Examinando o caso com mais precisão, não há apenas uma
única multiplicidade, mas tantas quantos os exemplares exis­
tentes da respectiva obra. Os elementos e a ordem das multi­
plicidades singulares podem ser muito semelhantes uns aos
outros. Se, porém, fosse só esta semelhança o traço de união
dos exemplares singulares de «uma e a mesma» obra (p. ex., de
um romance) não haveria razão suficiente para os considerar
como «exemplares» de um só romance. Além disso, não seria
lícito falar de «uma e a mesma» obra literária (p. ex., de A Mon­
tanha Mágica), mas devia supor-se a existência de tantas obras
quantos os «exemplares».
Pretender-se-á talvez resolver esta dificuldade objectando-se
que estes sinais seriam apenas um meio de comunicação ou de
conhecimento da própria obra de arte literária e que esta seria
somente aquilo que o seu autor viveu ao concebê-la *. Se esta

1 A concepção que identifica a obra literária com as vivências do


seu autor foi muitas vezes defendida na época da florescência do psico-
logismo (cf., p. ex., R. M. Werner, Lyrik und die Lyriker). Encontramo-la
também em tratados aparecidos muito mais tarde. Assim, p. ex., lê-se
em Pierre Audiat (La Biographie de l’oeuvre littéraire, Esquisse d'une
méthode critique, Paris, 1925): «L'oeuvre est essentiellement un acte de
la vie mentale, elle est une impulsión de tout notre passé vers un avenir
incertain (...)» (p. 40). «E lle représente une période dans la vie de récrivain,
période qu'on pourrait à la rigueur chronométrer.» «(...) pour se réaliser,
l'oeuvre est obligée de durer et parce qü’elle dure, nécessairement elle
change» (p. 39). Também nos tratados polacos da ciência da literatura
registamos exemplos característicos desta concepção da obra literária.
N o tratado Acerca do Método da Análise Estética das Obras Literárias
(Pamiçtnik Literacki, Lwow, 1923), E. Kucharski nega que a linguagem
constitua a matéria da obra literária, julgando poder encontrar esta
matéria somente na «consciência humana viva ininterruptamente eficaz
c eternamente móvel», e particularmente nas «representações imaginativas».
Nestas condições, a obra tem, por assim dizer, urna segunda existência
nas vivências dos leitores; a própria obra original reside, de certo modo,
na consciência do autor e é constituida pelas suas «representações ima­
ginativas». «O conteúdo da poesia é, portanto, aquilo que o poeta viveu no
momento da criação e que reviverá em nós durante a percepção da obra»
(o «conteúdo» reconstruido). «Pertencem, portanto, ao conceito da figura,
p. ex., todas as representações imaginativas que Mickiewicz teve das
29

concepção fosse correcta, seria antes de mais impossível, nas


condições estabelecidas, contactar directamente com uma obra
literária e conhecê-lal. Poderia então uma multiplicidade de
manchas de cores (ou de sons) sem sentido2, com que lidaríamos
exclusiva e imediatamente, permitir a percepção de vivências
alheias? Ninguém o admitirá. Objectar-se-á, talvez, que os sinais
gráficos são sem sentido na medida em que a «significação
ideal» é uma ficção científica, mas não são todavia meras
manchas de cores. Elas «relacionam-se» sempre — graças ao
hábito ou a uma convenção— com as nossas correspondentes
representações, em que imaginamos o que os sinais gráficos
«indicam», i. é, neste caso as vivências do autor. Além disso,

figuras criadas em dado momento da obra poética.» (Kucharski refere-se


a uma obra poética da autoria de Adam Mickiewicz. A «figura» constituiria
mn elemento da form a estética.) Também o investigador mais importante
das obras de Stowacki na Polônia, Julius Kleiner, fala da «obra na alma
do aütor», a que opõe «a obra na alma do leitor» (cf. Análise da Obra,
Carácter e Objecto das Investigações Literárias, primeiro publicadas
em 1913, e Conteúdo e Forma da Poesia, três tratados publicados em 1925,
em língua polaca, na colectânea Estudos sobre a Literatura e a Filosofia).
A determinação definitiva da obra literária por Kleiner, enquanto objecto
da investigação literária, tem na verdade um teor um pouco diferente,
deixando perceber que, ao lado de várias observações interessantes que
encontramos nas suas reflexões, Kleiner não deixou de se aperceber de
muitas dificuldades provenientes da concepção psicologista, sem todavia
conseguir libertar-se do psicologismo. Lemos em Kleiner: «O todo que
orienta a investigação não é nenhum objecto individual realmente dado,
mas o todo psíquico possivelmente mais rico que o conteúdo do texto
possa evocar em qualquer indivíduo dotado da correspondente percepção
e sensibilidade.» Nesta ordem de ideias, o «conteúdo do texto» significaria
«todos os elementos psíquicos», portanto igualmente o «conteúdo» e a
«form a» (traduzido e sublinhado por mim). 0 todo assim caracterizado
seria um ideal a elaborar pela ciência da literatura. Se esta, porém,
recorrer a este ideal a razão reside apenas na circunstância de a «própria»
obra de arte literária «na alma do autor» não ser directamente acessível
à investigação. A elaboração deste ideal servirá para chegar, por assim
dizer, sub-repticiamente à obra ria alma do autor e esclarecê-la. Assim,
é lícito considerar também como psicologista a concepção de J. Kleiner.
1 Aliás, também J. Kleiner o admite, na medida em que ele conduz
as suas reflexões sem excluir positivamente da obra literária as signifi­
cações ideais. Mas o «conteúdo do texto» significa para ele «todos os
elementos psíquicos que contém»; portanto, ou Kleiner concebe as signifi­
cações como «elementos psíquicos» ou estas não pertencem ao conteúdo
do texto; devemos optar pela primeira interpretação porque noutro lugar
lemos: «O conteúdo do texto não é um sistema de significações apenas,
é um sistema.de estímulos heterogéneos (m últiplos).» (/. c., p. 153.)
2 Deveriam ser sem sentido se a sua significação fosse considerada
como não-existente.
30

experimentamos ainda outros «estados psíquicos» provocados


por estas representações.
No entanto, toda esta argumentação em nada modifica a
nossa afirmação. Neste caso, ser-nos-iam directamente acessíveis
— abstracção feita dos sinais gráficos percebidos — apenas as
nossas imagens, os nossos pensamentos e eventuais estados
emocionais. E ninguém pretenderia identificar os conteúdos
psíquicos concretos por nós vividos durante a leitura com as
vivências já há muito passadas do autor. Portanto, ou a obra
literária não nos é imediatamente perceptível ou é idêntica às
nossas vivências. Seja como for, a tentativa para identificar a
obra literária com uma multiplicidade de vivências psíquicas do
autor é completamente absurda. As vivências do autor deixam
de existir precisamente no momento em que a obra por ele criada
começa a existir K Não há processo algum de tornar essas
vivências, por essência transitórias, de qualquer modo tão dura­
douras que elas próprias pudessem ainda perdurar depois de
ser vividas. Além disso, seria também inteiramente incompreen­
sível porque, p. ex., não nos atrevemos a inserir no romance
Os Camponeses Polacos, de Reymont, as dores de dentes que
o autor porventura tenha sofrido ao escrevê-lo, e julgamos, em
contrapartida, perfeitamente justificado fazê-lo relativamente à
paixão de Jagusia Boryna, que o próprio autor certamente
nunca sentiu nem podia sentir.
Se, porém, excluíssemos as vivências do autor da obra por
ele criada, restar-nos-iam da obra, sob as condições estabelecidas,
apenas os sinais gráficos individuais no papel e teríamos de
aceitar a conseqüência já aludida de que não há, p. ex., apenas
uma Divina Comédia de Dante mas inúmeras e de que o seu
número varia com o dos exemplares existentes. Além disso, a
maior parte dos juízos até agora considerados como verdadeiros
acerca de obras literárias deviam ser completamente errados, e
até sem sentido, enquanto outras afirmações inteiramente absur­
das seriam verdadeiras, p. ex. a de as obras literáriáS^individuais
se distinguirem pela sua substância química ou estarem subme­
tidas à acção da luz do Sol e outras coisas semelhantes.

1 Algumas semanas depois de eu ter feito esta observação nas minhas


lições universitárias, no semestre de Verão de 1927,- encontrei uma afir­
mação de teor idêntico no vol. II da Psicologia de W ladyslaw Witwicki
(em língua polaca). Witwicki não deduz, infelizmente, as conclusões neces­
sárias nas suas restantes considerações acerca da obra literária. O próprio
facto de ele tratar da obra literária num livro didáctico de Psicologia
é suficientemente característico.
31

Também a concepção de que a obra literária se reduz a


m a multiplicidade de vivências experimentadas pelos leitores
dorante a leitura é completamente errada e são absurdas as
mas conseqüências. Se assim fosse haveria, p. ex., muitos
Hamlets distintos uns dos outros. E a medida da sua mutua
c necessária distinção ressalta melhor do facto de as diferenças
entre as vivências dos leitores individuais serem necessàriamente
muito grandes não só por razões meramente casuais, mas pro-
fondas, como o são, p. ex., o nível cultural, o tipo da indivi-
«kialidade do respectivo leitor, o clima cultural geral da época,
as suas concepções religiosas, o seu sistema de valores reco­
nhecidos, etc. Nesse caso, qualquer nova leitura, se fosse pos­
sível, constituiria no fundo uma obra inteiramente n ova!.
Seríamos de novo obrigados a considerar como verdadeiras
Tárias afirmações erradas. Assim, não poderia haver, p. ex.,
nenhuma Montanha Mágica, de Thomas Mann, constituindo um
todo homogéneo porque ainda não houve ninguém capaz de ler
este romance de uma só vez, sem interrupção. Restariam apenas
«pedaços» singulares, não relacionados, desta obra e difícil seria
compreender porque haviam de ser partes de uma só obra.
Por outro lado, vários juízos que dizem respeito à obra de arte
literária singular deviam ser errados ou absurdos. O que signi­
ficaria neste caso, p. ex., o facto de a Ilíada ser escrita «em hexá­
metros»? Podem quaisquer vivências ou estados psíquicos ser
«escritos em hexámetros» ou ter a forma de um soneto? Tudo
isto são simples absurdos, que só mencionamos para demons­
trar as conseqüências a que forçosamente se chega quando
realmente se pretende adoptar a sério a concepção psicologista
da obra de arte literária sem se confinar a generalidades vagas 2.
Pode certamente discutir-se se há obras literárias no sentido
de algo com existência autónoma ou se apenas são «meras
ficções» em qualquer acepção da palavra, mas não se devem
atribuir à obra literária várias objectividades a esta perfeita­
mente alheias a que nunca nos reportamos ao falar e julgar

’ Esta conseqüência, vista também por J. Kleiner (cf. /. c. p. 151),


leva-o, p. ex., à definição atrás reproduzida da obra literária.
2 Já Herder viu rectamente este problema (Kalligone, Obras X X II):
«\ u m a linguagem corrente, o simbolismo dos sons ou até das letras
fica fora da alma. Esta cria e form a para si com palavras um mundo
a estas completamente estranho mas próprio de si mesma, ideias, imagens,
formas essenciais.» — É preciso construir uma teoria positiva da essência
e do modo de ser das unidades de significação para se avaliar a verdade
e a importância destas afirmações de Herder.
32

obras literárias singulares e de que resultam, uma vez tidas


em consideração, os aludidos absurdos.
Se, porém, não queremos colaborar em tais absurdos e
insistimos na afirmação de que toda a obra literária é algo
idêntico em si mesmo 1 devemos — ao que parece — considerar
o estrato das palavras e frases significativas como um elemento
constitutivo da obra literária. Se, porém, estas últimas são
objectividades ideais o problema do modo de ser da obra lite­
rária repõe-se de novo em todo o seu vigor. Há ainda outra
possível saída desta situação que não devemos deixar de con­
siderar porque pode servir de objecção à argumentação que
acabamos de desenvolver.

§ 5. A obra literária como «objecto da imaginação»

A objecção possível é esta: As dificuldades expostas no


parágrafo precedente resultam unicamente de uma interpretação
errada da opinião segundo a qual a obra literária seria uma
multiplicidade de experiências vividas pelo autor durante a sua
produção. Aqui não se trataria de modo algum de experiências
fugazes, i. é, da vivência de alguma coisa, mas meramente daquilo
a que estas vivências subjectivas s^ referem, portanto dos objec­
tos dos pensamentos e das imagens do autor. Estes objectos
— portanto certas personagens e coisas cujos destinos são apre­
sentados na obra — constituem o que é essencial na estruturação
da obra literária. São eles que radicalmente distinguem duas
obras literárias uma da outra, e sem eles nenhuma obra desta
espécie seria possível. Distinguem-se ao mesmo tempo e perfei­
tamente dos sinais gráficos, dos fonemas e também das próprias
frases seja qual for o modo como estas são interpretadas. Por
outro lado, não são nada de ideal mas apenas, segundo se diz,
produtos da pura fantasia, puros «objectos da imaginação» do
autor que dependem inteiramente do seu arbítrio e, por isso,
não se podem separar das respectivas vivências subjectivas
criadoras. Como tais, deveriam esses objectos ser considerados
algo de psíquico.

1 Se aqui insistimos tanto na identidade da obra literária, estamos


perfeitamente de acordo com M. Scheler quando escreve: «Um a obra
de cultura intelectual pode ser simultáneamente percebida, sentida no
seu valor e apreciada por qualquer número de pessoas.» Cf. Der Formalis-
mus in der Ethik und materiale Wertethik, Jahrbuch für Philosophie,
vol. I, p. 496.
33

Assim, tornar-se-ia compreensível, ao mesmo tempo, a gênese


c a morte temporal de uma obra literária e a possibilidade de
d a estar sujeita a estas ou àquelas alterações, obedecendo ao
sic iubeo do autor. A unidade e unicidade de uma obra literária
perante a multiplicidade dos «exemplares» ou das «leituras»
singulares seriam então garantidas pela identidade destes «objec­
tas de imaginação». Portanto, não seria preciso recorrer à
hipótese, a vários títulos duvidosa, da idealidade das significações
da frase para assegurar à obra a sua unicidade e identidade.
Todavia, também esta concepção é insustentável — pelo me­
nos na formulação referida e sob as condições que implica.
Ignora, sobretudo, a dificuldade principal que surge após a
eliminação das unidades ideais de sentido da estruturação da
obra literária e depois de negar a sua existência. É indubitável
que os objectos apresentados na obra de arte literária constituem
o seu elemento importante e indispensável. Contudo, uma vez
transformados em «objectos da imaginação» (o que aliás ainda
admite múltiplas interpretações!) no sentido de quaisquer com­
ponentes da vida psíquica do autor e, ao mesmo tempo, imposta
a necessidade de os dissociar de qualquer modo désta vida
concreta surge o problema, insolúvel sob as condições estabe­
lecidas, de como seria possível atingir esses «objectos da ima­
ginação» como entidades idênticas e assegurar a sua identidade.
Xão se trata de fundamentar a identidade da obra literária nos
objectos apresentados mas, inversamente, devem esses mesmos
objectos ser justificados quanto à sua própria identidade. Nas
condições da opinião descrita há apenas duas zonas fundamen­
tais de objectos existentes: as coisas físico-materiais e os indi­
víduos psíquicos com as suas vivências e estados. Os objectos
apresentados na obra de arte literária não podem ser integrados
em nenhuma destas esferas de realidade. Não se integram na
esfera psíquica porque, embora designados como «objectos da
imaginação», «objectos da fantasia», se opõem ao mesmo tempo
às experiências subjectivas, ficando assim de facto dissociados
da esfera psíquica K Esta dissociação seria, porém, indispensável
se esses objectos, como unidades idênticas, houvessem de fun­
damentar a identidade da obra perante a multiplicidade das
vivências psíquicas individuais. Também não seria lícito Situá-los
na zona dos objectos físicos visto que eles «devem ser «meros

1 Se os deixássemos submersos na esfera das vivências a obra


literária ficaria reduzida a uma multiplicidade de vivências do autor
•ou dos leitores) e regressaríamos à situação insustentável já discutida.
34

objectos da imaginação», no fundo, um nada. Examinando o


problema superficialmente poder-se-ia afirmar que os objectos
apresentados no caso de dramas, romances ou outras obras
históricas se identificam com as personagens, coisas e destinos
que outrora tiveram existência real. Examinando o problema
mais de perto, nem se pode provar esta identidade nem é pos­
sível aplicar esta argumentação a todas as obras literárias.
Há muitas obras que apresentam objectividades inteiramente
fictícias e não são «históricas» em nenhum sentido. O melhor
argumento contra a pretensa identidade fornece-o, porém, o
facto de as objectividades apresentadas (p. ex., C. J. César no
drama de Shakespeare) serem comparadas justificadamente com
as figuras reais que lhes correspondem, sobressaindo as dife­
renças objectivas entre elas. Se, porém, todas as objectividades
apresentadas («históricas» ou não) são radicalmente distintas de
todas as reais e se o seu ser e a sua maneira de ser dependem
apenas das correspondentes multiplicidades vivenciais do autor,
não só é impossível, nas condições estabelecidas, encontrar o
lugar em que sejam autónomas como necessitam, além disso,
de fundamentar a sua identidade e unicidade. Concebidas
em vivências subjectivas e, passe a expressão, por estas susten­
tadas, tendo por única via de acesso — segundo as condições
estabelecidas — as vivências subjectivas do autor, as objectivi­
dades apresentadas só nessas vivências deveriam basear a sua
identidade. As vivências, porém, são unidades individuais distin­
tas umas das outras pelo seu conteúdo objectivo e, portanto,
tudo quanto constituir elemento de cada uma delas ou tenha
a sua origem unicamente numa vivência deve ser igualmente
individual como a própria vivência e distinguir-se de tudo
quanto tiver a sua origem noutras vivências ou constituir uma
componente destas. Assim, não só é impossível que o leitor possa
apreender a «objectividade da imaginação» concebida pelo autor,
mas também que o autor possa apresentar várias -vezes a mesma
objectividade na sua identidade. Como é que neste caso seria
possível, nas condições estabelecidas, falar-se ainda, p. ex., do
mesmo C. J. César enquanto personalidade representada num
drama de Shakespeare?
Falha também esta tentativa de salvar a unidade e a iden­
tidade da obra literária. Resta, portanto, para sair desta situa­
ção difícil a única via, ou seja, reconhecer a existência das
unidades ideais de sentido sem as integrar na obra literária,
para evitar as dificuldades atrás expostas, e recorrer a elas a fim
de assegurar a identidade e unicidade de uma obra literária.
O modo de realizar este plano será demonstrado pelas nossas
35

ulteriores investigações. Se, porém, esta tentativa também falhasse


e se mostrasse simultáneamente que só é lícito aceitar dois
reinos de objectos, os reais e os ideais, então não se poderia
resolver em sentido positivo o problema do modo de ser nem
o da identidade da obra literária, cuja existência deveríamos
simplesmènte negar.
As reflexões precedentes não revelaram apenas as dificul­
dades com que tem de lutar uma teoria viável da obra literária,
mas mostraram também a pouca clareza e a incerteza do nosso
saber acerca da sua essência. Nós não sabemos que elementos
se lhe devem atribuir: as unidades de sentido das frases ou os
objectos apresentados ou talvez muitos elementos ainda não men­
cionados ou finalmente uma multiplicidade deles. Também não
temos por enquanto ideias claras sobre as qualidades caracte-
rizadoras dos elementos eventualmente discutíveis. E no caso
de uma pluralidade de elementos participar na estruturação da
obra literária o modo da sua integração numa única obra tam­
bém nos é momentáneamente vedado. Da estruturação essencial
da obra literária depende o seu modo de ser e a raiz da sua
identidade. Se os problemas atrás discutidos devem ser resol­
vidos é preciso começar por os pôr de lado e, em primeiro
lugar, captar directamente na sua estruturação a obra literária
como ela se nos apresenta em numerosos exemplos, analisá-la
profundamente e passar daquelas generalidades vagas com que
provisoriamente nos tivemos de contentar para situações con­
cretas. Com este fim devemos desobstruir o caminho de tudo
o que perturbe a visão. É preciso averiguar em particular o
que indubitàvelmente não pertence à obra literária independen­
temente do que ela em si mesma seja. Neste aspecto os resul­
tados da discussão precedente podem prestar-nos imprescindível
auxílio.
Capítulo 2

Eliminação das formações não pertencentes


à estruturação da obra literária

§ 6. Delimitação do tema

De início limitámos o campo dos objectos da nossa obser­


vação eliminando todas as questões que só podem ser tratadas
com êxito depois da captação da essência da obra literária.
Tratamos aqui exclusivamente da obra literária acabada.
Consideramos «acabada»^uma obra literária quando todas as
frases e palavras isoladas que nela aparecem foram inequivo­
camente determinadas e fixadas segundo o seu sentido, teor e
coordenação. Em contrapartida, parece-nos irrelevante para o
seu acabamento ser de facto redigida por escrito ou apenas
recitada oralmente, uma vez que na eventual recitação repetida
não sofra alterações essenciais *. Ficam assim fora das nossas
considerações tanto a fase da gênese da obra literária como
todas as questões relativas à criação artística. Não procedemos
assim por arbitrariedade infundada, mas porque vemos na con­
fusão permanente dos dois campos de trabalho — ontologia da
obra literária e psicologia da produção artística ou literária —
uma das causas de numerosos problemas deslocados e artificial­
mente criados e queremos evitá-los. Só quando a estruturação
da obra literária remetesse para múltiplos actos de consciência
deveríamos tratar deles na medida em que fossem necessários
ao esclarecimento da essência da obra literária. Neste caso a
análise dos actos de consciência continuaria distinta da psico­
logia da criação artística e tais actos não deveriam confundir-se
com a obra literária.
Ficam ainda fora das nossas considerações todas as questões
que dizem respeito ao conhecimento da obra literária, seus
modos especiais e limites. Por exemplo, questões como estas:
Por que actos de consciência se obtém o conhecimento de uma
obra de arte literária? Quais as condições que devem ser cum-

1 Quais as modificações «essenciais» e as não essenciais só muito


tarde se poderá demonstrar.
38

pridas da parte dos sujeitos quando uma obra literária for


conhecida por muitos sujeitos cognoscentes como «uma e a
mesma»? Quais são os critérios que nos permitem distinguir
um conhecimento «objectivo» de uma obra literária de opiniões
subjectivas e erradas? Haverá na realidade um conhecimento
objectivo das obras literárias?, etc. Outras tantas questões que
dizem respeito à possibilidade de uma « ciência da literatura».
São problemas que até agora — que saibamos — nem sequer
foram postos com plena consciência ou formulados correcta­
mente, mas que também não podem ser abordados enquanto
reinar, em relação à essência da obra literária, um tal caos e
uma tal divergência de opiniões *. Além disso, não queremos
examinar expressamente as diferentes posições possíveis da parte
do leitor perante a obra literária. Só quando for indispensável
para a compreensão desta, quando se tratar de focar a obra
literária como objecto estético, devemos reportar-nos à posição
subjectiva em que tais objectos são dados.'
Finalmente, abstraímo-nos por enquanto de todas as questões
gerais relacionadas com a essência do valor de uma obra de
arte e, particularmente, de uma obra de arte literária. Verifi­
caremos decerto que nesta se podem encontrar valores e não-
-valores e que estes levam à constituição d e . um valor total,
particularmente qualificado, de toda a obra literária. O que,
porém, constitui a essência de tais valores deve ficar fora da
nossa consideração porque a solução deste problema pressupõe,
por um lado, a solução do problema do v a lo r2 como tal e, por
outro, a intuição da estrutura da obra literária. Pela mesma
razão, deixamos por agora completamente de lado, no exame da
obra literária, a questão do seu valor positivo ou negativo.

§ 7. O que não pertence à obra literária?

As observações precedentes deixam já entrever o que se


deve eliminar da estruturação da obra literária como elemento
estranho à sua essência, segundo a nossa maneira de ver. Vamos
ser explícitos.

1 A estes problemas dediquei o meu livro Sobre o conhecimento da


obra literária (ed. polaca, Lemberge, 1937).
2 Apesar das contribuições significativas que nomeadamente Max
Scheler deu nos anos vinte à solução do problema do valor, não creio
que seja lícito pressupô-las aqui como resultados definitivos e indiscutí­
veis. Menos satisfatórias ainda são as investigações que se referem aos
domínios regionais dos valores (p. ex., os éticos, estéticos, etc.). Cf., p. ex.,
Ch. Lalo, L ’art et la morale, Paris, 1925.
39

1.° Em primeiro lugar, fica completamente fora da obra


literária o próprio autor com todos os seus destinos, vivências
e estados psíquicos. Nomeadamente, as vivências do autor durante
a criação da sua obra não constituem elemento da obra criada.
Embora — o que não se contesta — possa haver um complexo
de estreitas relações entre esta obra, a vida psíquica e a indi­
vidualidade do autor, embora nomeadamente a gênese da obra
possa ser condicionada por determinadas vivências do autor e
toda a sua estruturação e particularidades individuais possam
depender funcionalmente das qualidades psíquicas do autor, do
seu talento e do tipo do seu «mundo de ideias» e temperamento,
e contenham portanto em si vestígios mais ou'menos vincados
de toda a sua personalidade e por isso a «exprimam», todas
estas realidades em nada alteram o facto primitivo e muitas
vezes mal interpretado de o autor e a sua obra constituírem
duas objectividades heterogéneas que, pela sua própria hetero-
geneidade radical, devem ser completamente distintas. A com­
provação deste facto permite depois salientar com justeza as
múltiplas relações e dependências existentes entre essas duas
objectividades.
Entre os investigadores que se ocuparam da essência da
obra literária dificilmente se encontrará algum que pretendesse
afirmar consciente e expressamente o contrário'. Na realidade,
porém, nunca se distinguiram nitidamente as duas objectividades
e por isso caiu-se muitas vezes em confusões diversas, no fundo
inteiramente absurdas, a que atrás nos referimos. São preci­
samente esses absurdos que nos obrigam, em primeiro lugar,
à tese acima formulada. Esta nossa concepção será confirmada
pelas análises a que vamos proceder. Por outro lado, não se
deve pensar que a obra literária é, por esta razão, um objecto
autónomo no seu ser. Também o arco-íris não constitui parte
do indivíduo que o percebe (e vice-versa) e contudo não se lhe
pode reconhecer autonomia existencial. A solução a dar a este
problema no caso da obra literária só considerações ulteriores
a poderão indicar. A decisão, porém, sobre qualquer resposta
num ou noutro sentido só é lícito obtê-la a partir da intuição
da estruturação específica da obra literária e não pode ser
deduzida de opiniões e teorias preconcebidas que deixam com­
pletamente por esclarecer a sua essência.

1 Que sempre é possível mostra-o, p. ex., o livro já citado de Pierre


Audiat.
40

2.° Não pertencem também à estruturação da obra literária


as qualidades, vivências ou estados psíquicos do leitor. Esta
afirmação parece ser uma banalidade evidente. Contudo, as
influências do psicologismo positivista continuam ainda vivas
entre os investigadores da literatura, teorizadores da arte e
críticos da Estética \ Basta abrir qualquer livro e encontrar os
termos constantemente repetidos «imagens», «sensações», «emo­
ções», ao tratar de obras de arte ou de obras literárias para
nos convencermos da verdade da nossa afirmação. As tendências
psicologistas acentuam-se particularmente quando se trata da
beleza ou mais geralmente do valor artístico de uma obra. Neste
caso, a tendência geral para reduzir todos - os valores a algo
de subjectivo é ainda reforçada, por um lado, pela atitude especial
que muitas vezes assumimos durante a leitura de uma obra de
arte literária e, por outro, pela consideração das condições
subjectivas a satisfazer sempre que um valor deva apenas «reve­
lar-se» a um sujeito consciente — para empregarmos o termo
de Heidegger— sem contudo ser por ele objectívãmente captado.
Em vez de entrar em vivo contacto mental com a obra de
arte (especialmente com a literária), de se entregar a ela na
intuição imediata (que de modo algum se deve identificar com
a apreensão teorética e objectiva!), de a saborear num caracte­
rístico esquecimento de si mesmo, avaliando-a simplesmente
deste modo sem proceder a uma objectivação do seu va lo r2, o
leitor muitas vezes utiliza a obra de arte literária apenas como
estímulo extrínseco que lhe suscita sentimentos e outros estados
psíquicos por ele valorizados e só nesta medida lhe presta a
atenção necessária. Entrega-se às suas próprias vivências, entu­
siasma-se por elas, e quanto mais profundos, invulgares e ricos

1 Este «ainda» refere-se à situação .anterior a 1930. Quer parecer-me,


no entanto, que não é essencialmente diferente da de 1960 tratando-se de
investigadores que não seguem a orientação fenomenológica. Basta con­
sultar, v. gr., o livro de André Lurçat, Form es, com p osition s et lois d'har-
m onie, E lém en ts d’ane Science de Vesthétique architecturale, para se
verificar que todos os momentos de valor estético da obra de arte são
considerados «impressions» do observador. As tendências positivistas e com
elas também a interpretação psicologista de todas as objectividades em si
qualitativamente determinadas intensificaram-se substancialmente depois
de 1930, sobretudo sob a influência da expansão do Neopositivismo de
Viena. O ponto culminante desta tendência foi atingido entre 1930 e 1940,
mas as tendências positivistas continuam a ser demasiado fortes, parti­
cularmente nos países anglo-saxónicos, sendo consideradas o único ponto
de vista «científico» no amplo círculo dos indivíduos sem cultura filosófica.
2 Cf. E. Husserl, Ideen zu einer reinen Phaenom enologie, pp. 66 e segs.
41

forem os seus próprios estados (sobretudo as emoções sugeridas


e ao mesmo tempo só imaginadas), quanto mais perfeitamente
puder «esquecer» todo o resto (e também a obra de arte e os
seus próprios valores), tanto mais elevado apreço tributará por
natural inclinação à obra de arte em causa. De facto, não apre­
cia a obra de arte por causa dos seus próprios valores, de que
20 assumir tal atitude nem sequer se apercebe e que ficam até
submersos sob a plenitude de sentimentos subjectivos. Julga-a
simplesmente «valiosa» porque ela é um meio que lhe provoca
vivências agradáveis ].
Esta atitude perante a obra de arte é muito freqüente,
nomeadamente tratando-se de obras musicais. Por isso não é
de admirar que se considere como essencial e valioso na obra
de arte literária aquilo que a leitura sugere ao leitor. O que
:em propriamente valor para semelhante leitor reside neste caso
¿lectivamente nas qualidades especiais e na plenitude das emo­
ções sugeridas pela poesia, enquanto o valor da própria obra
¿e arte nem sequer chega a aparecer. A concepção subjectivista
dos valores artísticos é portanto, no fundo, conseqüência da
falta de cultura no contacto com a obra de arte.
A subjectivação psicologista dos valores artísticos — como
iá se notou— é favorecida sem dúvida por um factor cuja
existência efectiva, relacionada com uma convicção geral de
ordem gnosiológica pelo menos duvidosa, impõe essa mesma
subjectivação. É indubitável que os valores estéticos e quaisquer
outros só nos são dados quando o sujeito consciente assume
determinada atitude (estética, no caso presente). A atitude
estética distingue-se — ao contrário da emoção forte do leitor
inculto — por certa paz interior, contemplativa, pela penetração
na própria obra, que não nos permite ocupar-nos das nossas
vivências. Esta calma contemplativa, que pode muito bem coe­
xistir com o extremo enlevo, não significa a atitude fria, ou
melhor, inteiramente neutra, puramente observadora e alheia a
qualquer emoção que é característica da captação teorética e
racional de um objecto e que tem por conseqüência não deixar
aflorar à visibilidade fenomenal os momentos qualitativos de
valor da obra de arte. É possível converter em dado imediato
e de diversos modos a obra de arte literária, quer nos seus
momentos valiosamente qualitativos (na atitude estética), quer
sem esses momentos (numa simples contemplação teorética),

1 Cf. as observações assaz notáveis de M. Geiger em Vo¡n Dilettantis-


mus im künstlerischen Erleben (Zugánge zur Âsthetik, 1928).
42

quer finalmente como suporte dos valores estéticos (numa cap­


tação temáticamente objectiva dos valores constituídos nesses
momentos valiosamente qualitativos). Aqui intervém o precon­
ceito epistemológico atrás mencionado. Diz este que «objectivo»
é só aquilo que sempre se apresenta como qualidade de um
objecto a qualquer sujeito cognoscente, mantendo-se este intei­
ramente passivo e aliás em quaisquer condições subjectivas
(e eventualmente objectivas) de conhecimento. Esta posição vê
no modo racional puramente teorético do conhecimento aquele
que, pelo menos em princípio, satisfaz estas condições. Quando,
porém, a doação de uma objectividade exige atitudes e operações
especiais da parte do sujeito para se realizar, quando a mudança
de atitude traz consigo uma mudança de esfera do dado, então
considera-se o dado nestas condições, por isso mesmo, algo
«meramente subjectivo», que «na realidade» não existe. Este
«subjectivo» é então imediatamente interpretado como algo de
psíquico no sentido de um componente do ser psíquico e caímos
assim numa teoria psicológica dos valores.
Levar-nos-ia demasiado longe demonstrar aqui pormenoriza­
damente o erro da concepção gnosiológica que acabamos de
referir. Basta-nos indicá-la como uma das razões que levam ao
subjectivismo psicologista dos valores e mostrar assim como
sob a argumentação aparentemente evidente dos psicologistas
se ocultam pressupostos gnosiológicos injustificados e pelo
menos muito duvidosos.
3.° Finalmente, deve ser eliminada da estruturação da obra
de arte literária a esfera dos objectos e das situações, que
porventura constituem o modelo dos objectos e das situações
que «aparecem» na obra. Se, p. ex., a acção no romance Quo
Vadis, de H. Sienkiewicz, se passa «em Roma», a própria Roma
— a capital real do Império Romano — não pertence à respectiva
obra. Como entender neste caso a expressão: esta acção «passa-se
em Roma» e como explicar que, apesar desta eliminação, o
modelo real de certa maneira continua a transparecer na obra
literária — é um problema especial de que só muito tarde nos
poderemos ocupar.
Delimitado deste modo o tema do nosso estudo e eliminada
da estruturação da obra literária uma série de objectividades
podemos dedicar-nos agora à análise desta obra.
Segunda Parte

ESTRUTURAÇÃO
DA OBRA LITERÁRIA
Segunda Parte

ESTRUTURAÇÃO DA OBRA LIT ER Á RIA

Capítulo 3

Estrutura fundamental da obra literária

§ 8. A obra literária como produção multistratificada

É nosso propósito esboçar antes de mais nada a estrutura


fundamental da obra literária, fixando assim as linhas gerais
da nossa concepção da sua essência.
A estrutura específica da obra literária reside, a nosso ver,
no facto de ser uma produção constituída por vários estratos
heterogéneosx. Os estratos singulares distinguem-se entre si:
primeiro, pelo respectivo material característico, de cujas parti­
cularidades resultam qualidades especiais de cada estrato; se­
gundo, pela função que desempenha cada um deles, quer em
relação aos outros estratos, quer à estruturação de toda a obra.
Apesar da diferença do material dos estratos singulares, a obra
literária não constitui um feixe desarticulado de elementos casual­
mente justapostos, mas uma construção orgânica cuja unidade
se baseia precisamente na particularidade dos estratos singulares.
Entre estas camadas há uma que se distingue, i. é, a das uni­
dades de sentido que constitui o travejamento estrutural de
toda a obra, exigindo por sua essência os restantes estratos e
determinando alguns deles por si mesma de tal modo que eles
têm nela o fundamento do seu ser e no seu conteúdo dependem
das qualidades dessa camada. São, portanto, inseparáveis deste
estrato central como elementos da obra literária2.
A diferença do material e dos papéis (ou funções) dos estra­
tos singulares é, ao mesmo tempo, a razão por que a obra na
sua totalidade não é um produto monótono mas possui carácter
polifónico essencial. Isto quer dizer que em conseqüência da
singularidade dos estratos individuais cada um deles se torna

1 O significado que se atribui aqui à expressão figurativa «estrato»


ressaltará da investigação que se segue.
2 Isto não quer dizer que o estrato das unidades de sentido desem­
penhe a função central de percepção estética da obra de arte literária.
46

visível de maneira própria no todo, contribuindo com algo de


próprio para o carácter global do conjunto sem contudo lhe
viciar a sua unidade fenomenal. Por sua vez, cada um destes
estratos tem a sua própria multiplicidade de qualidades que
levam à constituição de qualidades específicas de valor estético.
Assim, nasce uma multiplicidade de qualidades de valor estético
com que se constitui uma qualidade de valor polifónica e todavia
una do todo.
Distinguem-se geralmente vários géneros de obras de arte
literária. Se pode admitir-se aqui o termo «géneros», então deve
derivar da essência da obra literária1 a possibilidade de dife­
rentes variações e modificações. Temos, pois, de mostrar que
é indispensável um determinado número e selecção de estratos
em toda a obra literária e que, apesar disso, a estruturação
específica de cada um destes estratos possibilita não só diferentes
funções nem sempre necessárias mas ainda o aparecimento de
novos estratos que não entram em todas as obras literárias.
Quais são, portanto, os estratos absolutamente necessários a
toda a obra literária para se conservar a sua unidade intrínseca
e se manter o seu carácter fundamental? São — para já ante­
ciparmos aqui o resultado definitivo das nossas considerações —
os seguintes: 1.°, o estrato das formas significativas verbais e
das produções fónicas de grau superior erguidas sobre elas;
2.°, o estrato das unidades de significação de diverso grau; 3.°, o
estrato de múltiplos aspectos esquematizados, das continuidades
e séries de aspectos; e finalmente, 4.°, o estrato das objectividades
apresentadas e seus destinos. As análises ulteriores mostrarão
que esta última camada, por sua vez, é por assim dizer «bila­
teral»: de uma parte, o «lado» dos correlatos das frases (espe­
cialmente das relações objectivas) intencionais apresentativas;
da outra, o «lado» das objectividades neles apresentadas e seus
destinos. Se apesar disso aqui nos referimos só a um estrato,
assim acontece por razões importantes que mais adiante serão
expostas. Se em cada obra literária deve estar contido o estrato
da «ideia» e o que significa neste caso o termo «ideia», queremos
por enquanto propor unicamente como problemas.
Em cada um dos estratos a distinguir constituem-se as
qualidades de valor estético características do respectivo estrato.
Neste contexto, pode perguntar-se se não seria necessário dis­
tinguir ainda outra camada especial da obra literária, que se

1 N a terminologia mais correcta das minhas Questões Essenciais:


o conteúdo da ideia universal da obra literária.
47

estratificaría por assim dizer «transversalmente» aos estratos


acima mencionados e que teria por fundamento da sua consti­
tuição todos os restantes estratos: a das qualidades de valor
estético e da polifonia que nestas se constitui. Contudo só com
base na análise dos estratos singulares se pode decidir esta
questão. Por conseguinte, também a pergunta pelo que na estru­
turação global da obra literária constitui o objecto próprio da
atitude estética só mais tarde poderá ser tratada.
A multistratificação estrutural ainda não esgota a essência
específica da obra literária. Será ainda preciso descobrir nela
aquele momento estrutural que faz que toda a obra literária
tenha «princípio» e «fim » e lhe permite «desenvolver-se» durante
a leitura, desde o princípio até ao fim, na sua amplitude
específica.
A afirmação de estruturação multistratificada e polifónica
da obra literária é, no fundo, uma trivialidade. Por maior que
ela seja nenhum dos autores meus conhecidos viu claramente
que nela reside a estrutura fundamental específica da obra
literária K É certo que na prática, i. é, na análise das obras

1 Julius Kleiner procede duas vezes à distinção entre os diferentes


«estratos» .ou «esferas» da obra literária: 1.*, no tratado Conteúdo e
Forma na Poesia; 2.a, no artigo Carácter e Objecto das Investigações
Literárias. N o primeiro caso, porém, não se trata dos estratos da obra
literária concluída, mas propriamente de fases singulares da sua gênese
que depois ficarão visíveis na própria obra. Estes «estratos» singulares
são os seguintes: a) o estado de uma forte emoção psíquica que impele
para a «expressão», b) qualquer figura, situação, reflexão que satisfaça
o impulso para a expressão e dê a este conteúdo psíquico uma determi­
nação que o fixe, c) uma divisão do já contido em b) que lhe confira um
plano pormenorizado e determine exactamente o género literário da res­
pectiva obra, e finalmente, d) um sistema muito especial de imagens e
o sistema equivalente de palavras. Infelizmente, Kleiner não nos diz
como estes «estratos» singulares se apresentam na obra concluída. Por
mais interessantes que sejam estas observações elas não coincidem com
o que temos em mente ao falar de «estratos» da obra literária, o que
já se deduz do facto de distinguirmos estes estratos primàriamente na
obra literária concluída. Também é mais do que duvidoso corresponderem
os nossos estratos às fases singulares que Kleiner distingue na gênese da
obra literária. N o segundo dos tratados citados Kleiner já se ocupa da
obra concluída e julga possível ver no «conteúdo do texto» uma «esfera
própria da realidade humana». Nesta distingue ainda quatro «esferas»:
«Esta realidade própria abrange quatro regiões, quatro esferas: 1.*, todo
o material verbal (individualização e organização do material), 2.a, a apreen­
são cognitiva e recomposição do conteúdo, 3.a, o sistema de imagens que
são análogas à «realidade da vida» mas isoladas dela e impostas de deter­
minado modo à consciência, 4.a, a força espiritual e habilidade que se
48

individuais, na determinação dos seus vários tipos, no confronto


de várias correntes e escolas literárias, etc., se compararam os
elementos singulares da obra literária e se procurou dar relevo
às suas qualidades no caso individual. Nunca, porém, se viu que
se trata de estratos heterogéneos que reciprocamente se condi­
cionam e relacionam sob múltiplos aspectos; nunca se distingui-

manifestam na criação e plasmação.» Pelos pormenores acrescentados não


se vê claramente se estas quatro esferas são elementos do próprio texto
ou ressonâncias psíquicas que sob a influência da leitura nascem na alma
do leitor. Causa confusão também a afirmação anteriormente citada de
que «todos os elementos psíquicos» se encontram no conteúdo do texto.
Por fim, Kleiner julga que a distinção das «esferas» singulares é assunto
completamente secundário (cf. I. c., p. 280). Só o decurso ulterior da
investigação mostrará qual a relação entre a nossa concepção e a de
Kleiner. De passagem, observe-se apenas que Kleiner só na primeira e
na terceira «esferas» pode ter em vista algo que, puram ente isolado e
libertado de concepções psicologistas, provàvelmente corresponda a um
ou outro dos estratos que nós distinguimos. Contudo, a justaposição destas
«esferas» e das «esferas» segunda e quarta mostra que Kleiner entende
por «esfera» coisa diferente do que nós entendemos por «estrato da
obra». Quanto a outros autores, a minha concepção está mais próxima
da que W. Conrad desenvolveu no seu tratado D e r aesthetische Gegenstand
(Zeitschrift für Aesthetik, vols. II I e IV ). Conrad também distingue quatro
«lados» — como ele d iz— da obra literária: sinais fónicos, significação,
objecto intencionado, expressão (ou objecto expresso). Noutro lugar do
citado tratado refere-se apenas a três «momentos» essenciais da obra
literária: o símbolo, a sigoificação e o objecto (cf. I. c., p. 489). Em qual­
quer caso elimina da obra o estrato dos aspectos (a que ele chama «im a­
gens de representação»). Apesar destas afinidades a minha concepção da
obra literária distingue-se em muitos pontos da de Conrad, nomeadamente
no que diz respeito aos resultados das análises singulares. É-me impossível
referir aqui todos os pontos em particular ou travar uma discussão. Queria
apenas chamar a atenção para o seguinte: 1.°, Conrad não vê que a poli­
fonia dos estratos heterogéneos é essencial à obra literária. Nem sequer
tomou consciência da existência desta polifonia. A sua distinção dos
«lados» distintos da obra — embora recta em princípio— não atinge a
profundidade suficiente para trazer a plena luz a estrutura fundamental
da obra literária na sua arquitectónica própria e unidade. 2.°, A sua con­
cepção do «objecto estético» como objectividade ideal é insustentável —
como o demonstram os resultados finais do presente livro. Neste aspecto
Conrad é demasiado influenciado pelo ponto de vista de Husserl nas
Logischen Untersuchungen para poder apreender o modo de ser específico
da obra literária. Ele mesmo senté que nesta matéria existe uma diferença
entre a obra literária e, v. gr., as objectividades matemáticas, embora as
suas afirmações sobre este assunto sejam ainda muito primárias. E não
é de admirar. Sem investigações ontológico-existenciais, naquela época
quase impossíveis, o problema do modo de ser da obra literária não pode
ser enfrentado. Apesar de tudo, considero o estudo de Conrad como um
início importante.
ram esses estratos com nitidez na sua estrutura universal nem
se demonstrou a correlação resultante desta estrutura. Mas só
a análise penetrante tanto dos estratos singulares como, final­
mente, da espécie do conjunto relacionai que deles resulta pode
revelar a especificidade estrutural da obra literária. Só ela pode
criar a base firme para a solução dos problemas especiais lite­
rários e estético-literários em que até agora nos empenhámos
em vão. Precisamente a não consideração da multistratificação
da obra literária tem por conseqüência a impossibilidade de
clareza no tratamento de vários problemas. Assim, p. ex., o pro­
blema muito discutido da distinção entre «form a» e «conteúdo» 1
da obra literária não pode de modo algum ser posto correcta­
mente sem atendermos à estruturação multistratificada da obra
porque todos os termos necessários são polivalentes e variáveis.
Qualquer tentativa para resolver o problema da forma da obra
de arte literária deve de modo especial falhar quando se atende
apenas a um dos muitos estratos, esquecendo os outros, porque
assim passa despercebido que a forma da obra resulta simples­
mente dos momentos formais dos estratos individuais e da sua
acção conjunta. Nesta ordem de ideias, também não é possível
resolver sem se tomar em consideração os nossos resultados o
problema do constitutivo da «m atéria» na obra de arte literária.
Também o problema já mencionado dos «géneros literários»
pressupõe o conhecimento da estruturação multistratificada da
obra literária. Antes de mais, devemos aclarar esta matéria.

1 Cf. O. Walzel, Gehalt und. Gestalt im Kunstwerk des Dichters, p. 192.


Também as palavras «form a» e «conteúdo» são aliás extraordinàriamente
ambíguas, o que levou Walzel a empregar ao lado dos termos tradicionais
ainda os de «Gehalt» e «Gestalt». A análise exacta de obra de O. Walzel
revela, porém, que ele apesar disto é vítima de vários equívocos destas
expressões. Como eu demonstrei no meu livro Discussão acerca da exis­
tência do Mundo (dois vols., Cracovia, 1947/48), podem distinguir-se nove
conceitos diferentes, geralmente confundidos, de «form a» ou de «conteúdo».
Num tratado especial Sobre «Form a» e «Conteúdo» na, Obra de Arte
Literária, publicado no volume II dos meus Estudos de Estética (em
língua polaca, Varsóvia, 1957/58), mostrei a seguir as situações complexas
inerentes ao emprego destes conceitos diferentes de form a e conteúdo
da obra de arte literária.
Capítulo 4

O estrato das formações fónico-linguísticas

§ 9. A palavra ¡solada e o seu fonema significativo 1

O problema de sabermos se a «linguagem» constitui elemento


essencial da obra de arte literária já é antigo; a resposta foi
frequentemente afirmativa, mas também não são raras as res­
postas negativas. Vamos discutir este problema começando por
aqueles exemplos que são indubitàvelmente obras literárias. Veri­
ficamos então que o estrato lingüístico pertence à estruturação
da obra literária entendida neste sentido. Em qualquer dos
exemplos escolhidos deparamos em primeiro lugar com palavras,
frases, períodos. Contudo, esta verificação simples e de começo
puramente factícia deixa em suspenso várias questões de cuja
solução depende o sentido exacto e a importância daquela veri­
ficação. Em primeiro lugar surge um problema: em que sentido
pertence a «linguagem» à obra literária; depois, se ela — como
muitos investigadores afirm am 2— constitui apenas um meio,
porventura imprescindível, que possibilita apenas o acesso à
obra literária ou se, pelo contrário, é um constitutivo da própria
obra, constitutivo esse que desempenha na economia da obra

1 0 sentido de «W ortlaut» exige que, a par do elemento fónico, se


não omita a sua relação com a significação das palavras, como escreve
o autor: «E m particular, determinado material fónico só é “W ortlaut”
por ter uma “ significação” mais ou menos determinada.» Este «ter uma
significação» é interpretado mais adiante no sentido de «ser portador de
uma significação», de modo que esta função é exercida pelo «W ortlaut»
e não pelo elemento fónico: « ...o portador de uma significação não é o
material fónico concreto mas o “W ortlaut” ». Por outro lado, o portador
de uma significação é uma form a fónica típica que assegura a invaria-
bilidade e a mesmidade da palavra fónicamente diferente todas as vezes
que é pronunciada. Esta form a fónica típica é conferida ao material fónico
pela significação. Por isso, propomos como tradução de «W ortlaut» «fonema
significativo» ou «form a significativa» da palavra, dois aspectos incindíveis
que permitem diferente acentuação. (N . T.)
2 Cf., p. ex., E. Kucharski, Zur Methode der asthetisçhen Analyse
der literarischen Werke, ob. cit.
52

de arte um papel essencial. Devemos, portanto, estudar estes


problemas segundo esta ordem.
A «linguagem» pode, em primeiro lugar, ter o significado
de uma função psíquica fisiológicamente condicionada, quer
como fala dirigida a outro, quer como «fala interior» consigo
mesmo *. É claro que a «linguagem» neste sentido não tem aqui
interesse para nós. Mas também no sentido da linguagem falada,
p. ex., «língua inglesa», deve ficar excluída aqui. O que unica­
mente interessa é que em qualquer obra literária aparecem
formações lingüísticas — palavras, frases, períodos. O que são
elas? É este o primeiro problema.
Em cada uma destas formações devem distinguir-se, como
se sabe, duas faces ou dois componentes diferentes: por um
lado, determinado material fó n ic o 2 multidiferenciado e diver­
samente ordenado e, por outro, o sentido a ele «ligado». Estes
dois componentes aparecem em qualquer formação lingüística

1 A distinção entre «sprechen» e «reden» que H. Ammann faz (cf. Die


menschliche Rede, val. I, pp. 38 e segs.) não nos interessa aqui. [O autor
refere aqui a distinção entre «sprechen» e «reden» operada por H. Ammann,
Die menschliche Rede, Sprachphilosophische Untersuchungen, I - I I 2 (Darm-
stadt, 1962), pp. 38-41. Dada a impossibilidade de uma tradução literal
indicaremos as diferenças que Ammann aponta no capítulo que dedica
a essa distinção: 1) «R ede» exprime o aspecto mental da linguagem, o
conteúdo intelectual, o pensamento; etimológicamente, «rede» virá do
latim «ratio» sob a acção de uma palavra germânica com significado
semelhante; 2) «Reden» é mais restrito do que «sprechen», pois a criança
de dois anos e o papagaio «falam » (sprechen) mas não «reden»; 3) os
exercícios práticos de uma língua (Sprechübungen) ainda não são «Rede-
übungen»; 4) a relação alma-corpo ajuda a * compreender a palavra
«sprechen» mas não «reden», pois quando a alma se exprime emprega-se
a palavra «sprechen» e não «reden», quer se trate do olhar onde a alma
sc espelha, quer do poema onde fala a Primavera, quer do diálogo com
Deus onde o homem se exprime; 5) «sprechen» está para «reden» como
a alma para o espírito, porque pela alma entramos na esfera do corpo
animado, próprio de «sprechen»; pelo espírito no reino da validade
objectiva, das razões lógicas e válidas, próprio de «reden»; 6) a relação
com o ouvinte é diferente em «sprechen» e «reden»: enquanto «sprechen»
visa produzir determinado efeito na alma do ouvinte, gramaticalmente
traduzido pelo uso transitivo de «sprechen», «reden» estabelece uma
relação racional com algo de objectivamente válido que transcende o
plano do anímico; 7) esta distinção leva a form ular em termos de «reden»
e não de «sprechen» o problema da origem da linguagem, cujo passo
decisivo se deu quando pela primeira vez surgiu o «reden», isto é, quando
o homem se libertou da subjectividade do «eu » anímico e exprimiu
conteúdos transubjectivos. (N . T.)~\
2 O termo «material fónico» é ainda ambíguo. Cf. as considerações
subsequentes.
53

independentemente da função que desempenham na comunicação


lingüística entre indivíduos psíquicos ou, p. ex., numa obra lite­
rária. É, portanto, necessário examinar estes dois componentes
em si mesmo e nas suas relações.
A formação lingüística mais simples — embora não origi­
nária— é constituída pela palavra isolada1. Encontramos nela,
por um lado, uma forma significativa e, por outro, a sua signi­
ficação. Em particular, determinado material fónico só é forma
significativa por ter uma «significação» mais ou menos deter­
minada. Desempenha a função de portador de uma significação
e transmite-a eventualmente na comunicação mental de muitos
sujeitos conscientes. A própria delimitação de um material fónico
num todo tonal uno e completo realiza-se, como se sabe, pelo
exercício da função mencionada 2. Mas o conjunto tonal concreto,
ou seja, o material fónico concreto e a forma significativa, ainda
não é — como em breve se verá — idêntico a si mesmo. Para
a constituição da forma significativa, a significação a ela ligada,
rigorosamente idêntica no emprego repetido3, contribui decisi­
vamente ainda noutro sentido a explicar.
Dizemos com razão que «a mesma» palavra (p. ex., «casa»)
é várias vezes pronunciada, quer, p. ex., num tom alto e agudo,
quer num tom baixo e suave. Certamente neste caso visamos a
significação tida por idêntica nas duas pronúncias mas, ao
mesmo tempo, julgamos apreender a mesmidade da palavra

1 Temos aqui em vista sobretudo as palavras «faladas». Há, porém,


ainda palavras «escritas» ou «impressas». Podemos falar da palavra
«escrita» em dois sentidos: no de uma produção de sinais gráficos, indi­
vidual, real, que aparece, dura algum tempo e se extingue e que na sua
específica função de representante substitui a palavra falada. Tanto a
individualidade como a realidade desta produção são irrelevantes para
esta função. Falamos ainda da palavra escrita noutro sentido, que é o
sentido próprio, entendendo-se por ela certo tipo vago de qualidade formal
concretizado num sinal real quando este deva funcionar como «palavra».
Como a palavra escrita no primeiro sentido não pertence de modo algum
à obra literária e no segundo, em contrapartida, apenas quando se trata
de obras escritas (ou impressas) e visualmente lidas, só mais adiante
devemos referir-nos à palavra escrita na segunda acepção. Cf. cap. 14.°
Se à essência da palavra pertence apenas o som e não o signo visual,
como afirma W. Conrad (cf. I. c., p. 479), parece-me pelo menos duvi­
doso. Contudo, Conrad tem razão ao afirm ar que o som é elemento
primário da palavra. Aliás, não distingue a forma significativa da palavra,
na nossa acepção, do material fónico concreto.
2 Julgo que foi H. Bergson quem no seu livro Matière et mémoire
chamou a atenção para este facto.
3 Apesar disso podem dar-se certas alterações no conteúdo da mesma
significação, cf. adiante §§ 16.° e 17.°
54

ainda a respeito da forma significativa, que é a mesma, embora


o material fónico concreto não só apareça individualmente novo
em cada uma das pronúncias, mas ainda diferente sob vários
aspectos (p. ex., o da entoação, do timbre, da intensidade, etc.).
Pergunta-se o que propriamente seja esta forma significativa e
o que é que, ao pronunciarmos a palavra, condiciona a sua
doação. A respeito do primeiro problema é possível defender a
opinião de que o elemento significativo da palavra se reduz a
determinada selecção e ordenação de partes escolhidas no mate­
rial fónico concreto, que se repetem em muitos e aliás diversos
conjuntos fónicos, emprestando assim aos materiais fónicos indi­
vidualmente diversos a aparência de identidade. Correlativamente
deveria admitir-se que há selecção na percepção do material
fónico: muitas partes e características do material fónico con­
creto ouvido ignoram-se como se não existissem e as restantes,
em contrapartida, são especialmente tidas em conta e seleccio­
nadas, passando assim para o primeiro plano e ocupando, de
certo modo, o lugar de todo o material fónico !.
Consideramos esta concepção errada. Quando ouvimos deter­
minada palavra a nossa atenção não se fixa em certas partes
especialmente seleccionadas do material fónico concreto ouvido,
que são, por sua vez, concretas e individuais como este, mas
numa forma fónica típica. Esta oferece-se-nos apenas no material
fónico concreto. É neste que ela se dá e se mantém, ainda que
muitas vezes sucedam nesse material concreto diferenças consi­
deráveis. Ao visarmos realmente com atenção as palavras a
forma fónica típica não se apreende como o que hic et nunc
se faz ouvir. É precisamente esta forma fónica invariável rigo­
rosamente idêntica2 na pronúncia repetida da mesma palavra

1 Alguns meses depois da publicação deste livro (em princípios de


Dezembro de 1930), K. Biihler publicou uma conferência sob o título
Phonetik und Phonologie, Travaux du Cercle Linguistique de Prague, 1931,
que trata de problemas análogos. Cf. ainda Axiomatik der Sprachwissen-
schaften, do mesmo autor, Kantstudien, vol. 38, n.os I e II, 1933.
1 H. Spiegelberg, na sua recensão na «Zeitschrift fiir Aesthetik und
allgemeine Kunstwissenschaft», vol. LX X V , pôs dúvidas quanto a esta
identidade, referindo-se a determinados perigos teóricos que dela parecem
derivar. A esse respeito é preciso salientar que se trata, por assim dizer,
de umá identidade meramente qualitativa e não «num érica» (entendida
na individualidade da concreção) desta forma. Que essa identidade quali­
tativa é «concretizada» e aparece no diverso material fónico concreto e
deste modo, por assim dizer, se «m ultiplica» não se pode negar nem
duvidar. É um caso especial do problema geral da «participação» que
não pode ser aqui tratado temáticamente.
55

que se chama «o mesmo fonema» de uma palavra. Não é nenhuma


«selecção» de qualidades ou de partes do material fónico con­
creto, mas constrói-se sobre este, chega nele à sua auto-apresen-
tação e concretiza-se nele. A forma fónica típica não se deve
identificar nem com este material fónico nem com a sua própria
concreção individual de forma porque ela é uma e a mesma,
enquanto o material fónico que suporta a concreção da forma
é diverso e variado. Portanto, não deve ser considerada como
algo de real. Por sua essência, o real não pode aparecer com
a mesma identidade em muitos indivíduos ou em acontecimentos
reais individuais. Por outro lado, seria naturalmente falso ver
no fonema enquanto forma fónica um objecto ideal autónomo
no seu ser situado ao mesmo nível, p. ex., das objectividades
matemáticas. Dever-se-ia então admitir que nós conhecemos por
descoberta essas formas significativas no sentido de unidades
intemporais e imutáveis e as encontramos já simplesmente exis­
tentes, como acontece com as objectividades matemáticas ou
essencialidades puras. Um elemento formal significativo da pala­
vra forma-se indubitàvelmente no decurso do tempo sob a
influência de várias condições reais e culturais e está sujeito
com o mudar do tempo a múltiplas alterações e modificações.
Não é real e todavia apoia-se na realidade, sofrendo da muta-
bilidade desta. A mudança da forma significativa é em princípio
diferente da alteração do material fónico concreto, que um dia
surge, dura e desaparece para sempre. Enquanto a palavra é
pronunciada inúmeras vezes, e deste modo o material fónico
concreto é sempre novo, a «form a significativa» permanece a
mesma. Uma viagem radical da atmosfera cultural de uma época
ou uma modificação das circunstâncias externas em que deter­
minada palavra se emprega podem também trazer mudanças à
forma significativa.
Levar-nos-ia longe de mais estudar isto nos seus pormeno­
res. Mais importante é para nós o problema da raiz da diferença
entre a forma significativa e o material fónico concreto. A este
respeito parece-nos que o uso de um material fónico como
portador1 de uma e mesma significação leva a destacar do
material fónico concreto o fonema enquanto forma fónica idên­
tica. A significação da palavra exige um invólucro externo em
que possa atingir a sua «expressão». O emprego de determinada

1 Isto não é bem exacto porque o portador de uma significação não


é o material fónico concreto mas o elemento formal significativo.
56

significação no meio de uma multiplicidade de outras significa­


ções diferentes relacionadas entre si de vários modos leva a que
seja necessário estabelecer uma relação clara entre significações
e expressão externa. É portanto compreensível escolher «para a
expressão» de uma e a mesma significação algo que seja tão
idêntico como ela própria é. Mas tanto a natureza do material
concreto (acústico, óptico, etc.) que se pode empregar para a
constituição do «fonema» como, por outro lado, a quantidade,
em princípio ilimitada, de casos em que uma e a mesma signi­
ficação pode aparecer em contextos diferentes tornam impossível
que a expressão externa de uma e a mesma significação seja
qualquer objecto individual ou um acontecimento real. Apesar
disso, é inevitável servirmo-nos de um material concreto em
casos singulares em que não é o mesmo mas apenas semelhante
e constitui portanto não o «fonema significativo» mas somente a
base sensível para a concretização de uma e a mesma forma
típica que então funciona como «fonema significativo». Esta
forma do fonema é, por assim dizer, «outorgada» ao material
fónico concreto pela significação idêntica, chegando por esta via
a manifestar-se. Essa mesma forma é pertença da significação
e sua portadora.
Esta concepção é ainda confirmada pelo facto de em pala­
vras que — na nossa expressão incorrecta— têm o «mesmo
fonema» e significações diversas o fonema significativo, bem
examinado, não ser em geral rigorosamente idêntico e de apre­
sentar, pelo contrário, diferenças sensíveis. O fonema significativo
quando tem outro sentido não só é pronunciado em geral de
modo algo diferente sob o aspecto puramente fonético, mas traz
consigo também determinadas características diferenciadoras que,
embora sejam ainda características suas, todavia transcendem o
âmbito meramente fonético (ou óptico). Estes caracteres da
forma são como reflexos dignos de atenção que se desprendem
da significação sobre o fonema l. Assim como, por um lado, a
diversidade da significação provoca diversidade na forma signi­
ficativa verbal aparentemente «a mesma», assim, por outro, a
identidade da significação traz consigo a identidade do elemento
significativo da palavra, obrigando-nos a passar do individual

1 O exemplo conhecido de J. Stenzel — «o Senhor deu, o Senhor tirou»


e «o senhor esqueceu o seu chapéu-de-chuva»— tem aqui lugar. Cf. J. Sten­
zel, Sinn, Bedeutung, Begriff, Definition, Jahrbuch für Philologie, vol. I,
pp. 160 e segs. Também na sua Philosophie der Sprache '(1935), Stenzel
apresenta bons exemplos deste caso. Cf. pp. 16-17.
57

concreto à forma do fonema não concreta, mas que no concreto


simplesmente se manifesta *.
O que agora no caso singular pertence ao fonema signifi­
cativo não se pode generalizar porque a sua constituição depende
de circunstâncias muito diversas. Em qualquer caso seria errado
julgar-se que só importaria aqui determinada ordem de sílabas,
ainda que esta em geral tenha indubitàvelmente a função mais
importante. Conforme ensina a experiência, também a graduação
tónica da pronúncia das sílabas singulares pode fazer parte da
«form a significativa» (p. ex., o ie agudo na palavra alemã Liebe).
Por vezes a mera mudança de tom, mantendo-se a ordem das
sílabas, pode também originar diferenças na forma significativa
e ainda na significação a ela ligada2. Finalmente, podem per­
tencer ainda ao fonema significativo características que pela sua
essência já não são meramente fónicas mas, embora inerentes
ao som, já dependem directamente do conteúdo da significação
correspondente.

1 Por esta razão parece-me incorrecto falar, como geralmente se fala


(cf. recentemente ainda E. Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen,
vol. I, Die Sprache, Berlim, 1923, passim), da forma significativa verbal
como «aspecto sensível» da língua, significando aqui «sensível» o «dado
na simples percepção externa». A form a significativa no sentido rigoroso
nunca é dada na simples percepção. Ao conhecimento perceptivo deve
acrescentar-se ainda uma apreensão especial cujo correlato intencional é
precisamente a forma significativa. Parece que já E. Husserl se refere
à diferença entre o material fónico concreto e o elemento formal signi­
ficativo nas Investigações Lógicas ao afirmar: «A idealidade da relação
entre a expressão e a significação mostra-se, quanto aos dois membros,
imediatamente no facto de ao perguntarmos pela significação de qualquer
expressão entendermos evidentemente por expressão não esta produção
fónica hic et nunc exteriorizada, o som passageiro que nunca se repete
idénticamente. Referimo-Tios à expressão in specie.» ( l. c., p. 42, vol. II.)
Só é preciso observar que a forma significativa não é nenhuma «espécie»
no sentido husserliano daquela época porque não é nenhum objecto ideal,
intemporal.
2 Cf. E. Cassirer, ob. cit., p. 141, «(...) são especialmente as línguas
do Sudão que pelo tom diferente das sílabas, pelo tom agudo, médio ou
grave ou por tonalidades compostas, como a ascendente de grave a agudo
ou descendente de agudo a grave, podem exprimir os mais variados
cambiantes de significado. Em parte são diferenças etimológicas que deste
modo se indicam, i. é, a mesma sílaba serve, segundo a sua tonalidade,
para designar coisas ou acontecimentos completamente diversos; em parte
são determinadas distinções especiais e quantitativas que se exprimem
pela diferença de tom silábico, exprimindo, p. ex., palavras de tom agudo,
grandes distâncias, palavras de tom grave, a proximidade, ou as primeiras
a velocidade e as segundas a lentidão».
58

A nossa concepção de fonema significativo não é invalidada


pelo facto de uma e a mesma palavra, ao ser empregada em
frases e períodos diferentes, poder sofrer modificações secun­
dárias na sua forma significativa conforme o lugar que ela
ocupa dentro de uma unidade superior de sentido e conforme
a função que neste lugar lhe cabe. (Interessam aqui, p. ex., as
acentuações prescritas pelo sentido da frase.) Este facto não é
indicativo da não-existência de «fonemas significativos» na nossa
acepção nem de só lidarmos com o material fónico que cons­
tantemente varia, mas mostra-nos únicamente que urna e a
mesma forma de fonema pode conjugar-se sob certas circuns­
tâncias com qualidades secundárias mas igualmente típicas da
forma, podendo assim exprimir outros cambiantes da signifi­
cação relacionada com a forma significativa do fonema. A análise
mais pormenorizada da estrutura da significação, que será rea­
lizada mais adiante, evidenciará também que função desempe­
nham estas características fónicas variáveis K
Para refutação da concepção de fonema significativo por
nós rejeitada deve ainda acrescentar-se o seguinte: Não é ver­
dade que as qualidades do material fónico concreto, variáveis
de caso para caso e que não exercem influência alguma sobre
a concretização da forma significativa, não sejam notadas ou
captadas por nós quando as ouvimos. Interessam-nos vulgarmente
pouco porque na tendência primária para a captação da signi­
ficação apenas tem importância a forma significativa da palavra.
As particularidades do material fónico concreto todavia são
sempre percepcionadas simultáneamente por nós e desde que se
afastem um pouco do tom normal de falar também reparamos
nelas e por vezes até as percebemos com plena atenção2. A dife­
rença entre a apreensão da forma significativa e a das parti­
cularidades do material fónico concreto corresponde à diferença
entre as funções que a forma significativa já constituída tem
em confronto com as particularidades variáveis do material
fónico concreto no emprego vivo das palavras como meios de
compreensão recíproca. A forma significativa caracteriza a pala­
vra respectiva por si só e determina a sua significação na

1 Problema especial que não é para tratar aqui constitui a pergunta


pelo modo como a forma idêntica do fonema se mantém nas variações
que a palavra sofre na declinação ou conjugação. Que assim realmente
acontece é um argumento em favor da concepção que defendemos.
A mudança fonética da palavra acompanha a correspondente variação do
sentido.
2 Nestes casos ressalta melhor a diferença entre a form a significativa
da palavra e o material fónico concreto.
medida em que a captação dessa forma pelo ouvinte dirige a
compreensão para a significação correspondente e leva à reali­
zação da intenção significativa do sujeito da compreensão. Assim,
a luz da atenção do sujeito — no caso vulgar da compreensão —
incide, por assim dizer com a significação compreendida, sobre
o objecto por esta determinado. Em contrapartida, as particula­
ridades variáveis do material fónico concreto não contribuem
em nada de essencial para esta função da palavra. A entoação,
quer grave, quer aguda, de uma palavra não afecta a significação,
o sentido racional da palavra, a não ser que a tonalidade faça
parte, de antemão, da respectiva forma significativa da palavra.
Por outro lado, estas particularidades são importantes para a
função de notificação 1 que a palavra falada tem na comunicação
viva; além disso, podem exercer influência importante sobre a
constituição do conteúdo psíquico concreto total que se produz
no ouvinte ao captar a palavra, como ainda sobre a atitude dos
interlocutores. Uma e a mesma palavra pronunciada ora em tom
áspero e desagradável, ora de uma maneira suave e eufónica,
exprime, p. ex., num caso a indelicadeza, no outro a amabilidade
da pessoa que fala. Por outro lado, provoca na pessoa a quem
a palavra é dirigida estados emocionais nos dois casos inteira­
mente diferentes e origina diferentes atitudes (compare-se, p. ex.,
o tom «áspero» de uma ordem com o cortês de um convite, etc.).
Naturalmente, nos dois casos o puro fonema significativo tam­
bém não deixa de ter o seu papel e por esta razão distinguiremos
tipos diversos de palavras. Contudo, continua a ser a função
primária e essencial da própria forma significativa determinar
a significação da respectiva palavra.

§ 10. Diversos tipos de fonemas significativos e as suas


funções

Se considerarmos as palavras abstraídas do uso vário e da


função que têm na comunicação viva dos indivíduos psíquicos
e atendermos apenas à ordenação unívoca de formas significa­
tivas e significações num sistema terminológico é válida a afir­

1 Sobre a «função da notificação», cf. E. Husserl, Logischen Unter-


suchungen, vol. II, l.a Investigação. Anteriormente a Husserl, K. Twar­
dowski distinguiu as funções diversas da palavra (especialmente dos
nomes), cf. Z u r L eh re v o m In h a lt und Gegenstand der V orstellungen,
Viena, 1894. N a sua S p rachtheorie, K. Bühler empregou para esta função
o termo de «função expressiva», que aliás também se encontra já em
Twardowski.
60

mação de que a vinculação de determinado fonema a determinada


significação é inteiramente casual e arbitrária. Qualquer fonema
pode em princípio ligar-se a qualquer significação. Depõe a favor
disto, v. gr., o facto de uma e a mesma significação em línguas
diferentes se vincular a fonemas significativos mais ou menos
diferentes. Entretanto, dentro de uma e a mesma língua viva
e do seu múltiplo uso em diversas situações da vida muitos
fonemas parecem, por assim dizer, especialmente apropriados
para serem portadores de significações determinadas e, nesta
ordem de ideias, exercerem funções lingüísticas especiais. Natu­
ralmente, esta predisposição não tem o seu fundamento nas
qualidades meramente fónicas divorciadas da vida concreta do
fonema significativo ou no conteúdo meramente racional da
significação da palavra. As palavras e particularmente as suas
formas significativas sofrem — como é do conhecimento geral —
uma evolução histórica intimamente relacionada com a história
da vida inteira de uma colectividade humana. É precisamente
nela que residem as razões de muitas palavras nos parecerem
particularmente apropriadas para — dentro de uma e a mesma
comunidade lingüística e de vid a — terem determinada carga de
significação e serem não apenas, por assim dizer, de antemão
«mais compreensíveis», mas conterem em si ainda diversas pos­
sibilidades particulares de emprego \

1 Sobre estas considerações, cf. M. Dessoir, Aesthetik, p. 356: «A pos­


sibilidade de encontrar objectos, propriedades ou estados em toda a sua
condição sensível é actualmente explicada pelo facto de o fonema primitivo
ser um gesto fónico e portanto, análogamente a outros gestos, a exterio­
rização da impressão causada pelo objecto.» Cf. ainda W. Wundt, Volker-
psychologie, vol. I, 2, p. 607. Alguns anos depois de o meu livro aparecer,
Julius Stenzel escreveu na sua Filosofia da Linguagem (1935): «Ainda que
se possa pressupor a relação necessária entre o sentido e o sinal, o
conteúdo do sentido intencionado pode ser tanto quanto possível dissociado
de toda a «casualidade» dos sinais. Isto sucede com a maior facilidade
onde o sistema de sinais for livremente fixado, na linguagem matemática,
na medida em que relações matemáticas podem ser «construídas», i. é,
definidas na sua essência e libertadas de tudo o que é casual. Seja-nos
lícito abstrair aqui das dificuldades que mesmo neste caso a «intuição»,
os traços intuitivos, oferecem porque pelo contraste pretende-se apenas
designar a situação geral inteiramente diversa em que, não havendo
simbolização livre, a expressão forma-se no e com o sentido intencionado
independentemente de toda a arbitrariedade, caso este que, por sua vez,
é mais evidente na linguagem natural. Esta relação mais estreita entre
o sentido e a expressão torna-se tipo paradigmático de todas as possi­
bilidades superiores da expressão que se realizam na linguagem poética
e nas outras regiões da expressão estética dentro da estruturação da
cultura.» (L. c., p. 11.)
61

Sob este aspecto podem distinguir-se diversos tipos de pala­


vras — e especialmente de formas significativas — , alguns dos
quais particularmente importantes para a estruturação da obra
literária. Para começarmos pelo tipo que menos diz respeito ao
uso em obras de arte literária mencionemos antes de mais as
palavras «sem vida», «mortas», cujo expoente mais relevante são
os «term os» científicos de uma terminologia científica artificial­
mente criada. Toda a sua função limita-se a ter significados
claros inequivocamente determinados e a transmiti-los no enten­
dimento recíproco. O seu fonema significativo é irrelevante para
a sua função porque em princípio pode ser substituído por
qualquer outro. Precisamente por esta razão é necessário fixá-lo
através de uma convenção conscientemente estabelecida. É carac­
terístico neste caso que se não fixem sem regra alguma formas
significativas verbais, mas que se constitua sempre um sistema
inteiro de «term os» baseado num princípio de unidade. Neste
caso o ideal é formar tais lavras ou «sinais» que a sua forma
exterior reflicta as relações entre os «conceitos» correspondentes
(cf. a ideia de uma «ars combinatoria» de Leibniz, a «linguagem
conceptual» da logística moderna, etc.). O fim a atingir traduz-se
na tendência para se libertar o mais possível da apreensão intui­
tiva dos objectos correspondentes substituindo-a pela combinação
dos termos. Para quem desconhecer o princípio da formação
dos termos e as correspondentes definições nominais esses termos
não são de modo algum compreensíveis ou pelo menos não o
são no sentido em que se empregam na respectiva ciência. Mas
também na linguagem corrente quotidiana há numerosas pala­
vras que, por assim dizer, desceram até ao nível dos termos
científicos: os lugares-comuns sem vida, repetidos irreflectida-
mente, privados da função de estabelecer a relação intuitiva
entre quem fala e os objectos correspondentes.
A todas estas palavras é preciso opor as «vivas», e em espe­
cial as de «vida plena», «as vigorosas», que de preferência
se empregam na comunicação directa da vida quotidiana. Entre
estas sobressaem as palavras cuja forma significativa é suscep­
tível de exercer a função de «expressão» imediatamente com­
preensível, tanto no sentido de «notificação» como no de «expres­
são do sentido intencionado». O problema aqui não é o de a
pessoa a quem tais palavras se dirigem saber de qualquer modo
e por meio de uma «intenção vazia»— no dizer de Husserl— que
o locutor tem precisamente estas vivências porque este efeito
pode também ser produzido pelas palavras inteiramente mortas,
mas o de as características especiais dos fonemas significativos
— como aliás também o «tom » em que são pronunciados —
62

revelarem as vivências concretas que o locutor está a experi­


mentar precisamente naquele momento de maneira que estas
sejam dadas em si mesmas ao ouvinte de modo intuitivo, sem
auxílio de quaisquer conclusões. As vivências ou os estados psí­
quicos do locutor são neste caso, por assim dizer, «postos à vista».
Aos tipos expostos juntam-se outros de palavras «vivas» que
se distinguem pelo facto de as características assentes na qua­
lidade puramente fonética da forma e que do significado recaem
sobre o fonema se agravarem mais nitidamente neste e o colo­
rirem, por assim dizer, com o «quale» específico do objecto
(p. ex., todas as palavras «obscenas», «grosseiras», etc.). Assim,
o primeiro plano aqui não é ocupado pela função expressiva
(notificação) mas pela actualização da relação entre aquele que
apreende semelhante palavra e o objecto determinado pela sig­
nificação da palavra. Tais palavras produzem no ouvinte vivas
representações intuitivas dos respectivos objectos, podendo faci­
litar sensivelmente a sua apreensão intuitiva. Com o seu emprego
variados «aspectos» dos respectivos objectos são reactualizados
nos modos de representação, aspectos estes que quase nos per­
mitem «ver» os objectos \ Poder-se-ia dizer que uma das suas
funções mais importantes reside em ter à disposição imediata
os aspectos correspondentes aos objectos visados e em dar aos
objectos uma plenitude intuitiva.
Que a este respeito são as características especiais do fonema
significativo que desempenham função essencial e não a signi­
ficação correspondente mostra-o da melhor forma o facto de
ser possível evitar o efeito especial, p. ex., das palavras obscenas
empregando outras com a mesma significação mas com um
fonema neste aspecto neutro quando se trata de dizer algo de
delicado de modo o menos «perigoso» possível.
Estas distinções das palavras fundadas no tipo da sua forma
significativa têm função importante — como se pode mostrar e
como também é de esperar— na estruturação da obra literária.
Do tipo das palavras nela empregadas não só depende o carácter
especial do estrato fónico da respectiva obra — o que natural­
mente se espelha no carácter total da ob ra— mas também o
modo de o estrato lingüístico exercer a sua função em relação
aos outros estratos. Teremos ainda de voltar a tratar deste
assunto.
Finalmente, é preciso ainda observar o seguinte: o próprio
conteúdo meramente fonético do fonema, ou melhor, o fonema

1 Sobre os «aspectos», cf. o cap. 8.° do presente livro.


63

significativo total pode conter qualidades que sejam estética­


mente relevantes. Assim, é freqüente distinguirem-se, p. ex., pala­
vras (mais precisamente fonemas significativos) que soam «bem »
e outras «m al» l. Há ainda palavras «amenas» e «graves», pala­
vras que soam «ridiculamente» e outras «sèriamente», palavras
que soam «solene» e «patéticamente» e outras «despretensiosa»
e «simplesmente» — distinções e características estas que estão
gravadas na própria forma significativa da palavra, admitindo-se
todavia que se encontrem quer intimamente relacionadas com
as significações correspondentes, quer dadas às palavras de pre­
ferência através das modalidades da pronúncia, através do
seu «tom ».

§ 11. Formações fónico-lmguísticas de ordem superior


e suas características

A palavra isolada é apenas um elemento da linguagem que


é provável ter sido relativamente tarde apreendido na sua deli­
mitação e apresentado como um todo em si mesmo. Na linguagem
viva e bem assim nas obras literárias, porém, nunca ou quase
nunca aparece isolada. Nos casos em que parece surgir isolada
como algo que se basta a si mesmo é apenas uma abreviatura
que substitui uma frase inteira ou até um período. É que a
formação verdadeiramente autónoma da linguagem não é cons­
tituída pela palavra isolada, mas sim pela frase2. Não é, portanto,
a mera acumulação de palavras que leva a grupos verbais espe­
ciais, designados como «frases» porventura apenas para abreviar;
pelo contrário, é a frase que na sua qualidade de unidade de
sentido e de formação inteiramente nova em relação às palavras
assinala uma estrutura em si que, em última análise, se reduz

1 Sobretudo comparando diversas línguas sob este aspecto vê-se que


todas dispõem do seu material fonemático-significativo de «belezas» dife­
rentes. O mesmo se evidencia nitidamente quando se comparam as «pro­
núncias» diversas de uma e a mesma língua (p. ex., da francesa). Nestes
casos sempre se pressupõe determinada maneira de pronunciar como
a «própria», a «ideal», julgando-a particularmente apropriada para exprimir
as belezas inerentes ao material fonemático-significativo da respectiva
língua. Naturalmente, em todas as línguas há nos fonemas de palavras
individuais múltiplas variações gravadas por características locais. Todavia
isso nada prova contra a nossa concepção de fonema significativo.
2 Mais tarde, porém, verificar-se-á que a frase também é uma for­
mação apenas relativamente autónoma quando aparece como parte inte­
grada num período. Cf. § 23.° do presente livro.
64

a palavras como elementos relativamente dependentes da frase \


Se, porém, a frase é urna nova formação relativamente às pala­
vras singulares é-o meramente graças à estrutura particular do
conteúdo do seu sentido. Por outras palavras: Há indubitàvel-
mente «fonemas significativos» como formas típicas e unas de
palavras mas não há «fonemas de frases» no mesmo sentido.
É certo que a unidade de sentido da frase e bem assim as
particularidades das suas funções produzem também a relação
mútua dos fonemas das palavras de uma fra se2 e formam uma
melodia característica da frase como tal, que aliás admite ainda
várias modificações3. Apesár disso, as frases quanto ao seu
aspecto puramente fónico-linguístico não constituem nenhuma
formação equivalente ao fonema significativo, e sobretudo
não constituem nenhum elemento fónico com que à semelhança
do fonema se operaria e que poderia ser empregado na consti­
tuição de totalidades de outra espécie 4. É certo que na linguagem
corrente quotidiana se constituem sem dúvida muitas «frases»
que parecem ser no aspecto fónico algo uno análogo ao fonema.
Assim, p. ex., o cumprimento «Bom dia» ou em inglês «H ow do
you do?» soa quase como uma única palavra. Bem visto o caso,
trata-se de frases abreviadas não pronunciadas integralmente.
A unidade do seu sentido lança uma aparência de unidade sobre
a sua correspondente multiplicidade fonemática precisamente

1 Cf., p. ex., W. v. Humboldt: «N a realidade, o discurso não é composto


por palavras que o precedem mas são as palavras que, pelo contrário,
resultam da totalidade do discurso.» ( Ueber die V erschiedenheiten des
menschlichen Sprachbaus, Obras, ed. da Academia de Berlim, V II, I, 72.)
2 Cf. adiante, pp. 70-71.
3 À melodia da frase referiu-se recentemente H. Ammann, Die men­
schliche Rede, vol. II, Lahr i. B., 1928. É esta a melodia da frase que
também J. Stenzel (l. c.) tem em vista. Quando, .porém, Stenzel afinma
que «é possível construir uma teoria da frase apenas a partir da sua
melodia, sendo só preciso conhecer a melodia da frase na sua relação
imediata.com a ordem articulada dos significados» (ob. cit., p. 188), vai
certamente longe de mais. Deve, porém, concordar-se com Stenzel quando
escreve mais tarde (Filosofia da Linguagem, 1935): «Portanto, a forma
acústica da linguagem não só é essencial nos sons articulados isolados
mas em toda a frase formada pela energia una da doação de sentido.
Esta energia — eu falarei adiante da «operação constitutiva de frases»! —
que, portanto, visa de antemão a totalidade da frase não tem importância
apenas para a esfera patética e emocional, pois na «articulação» rítmica
de cada frase está fundada a «supervisibilidade» da mesma. Quem ao
ler em voz alta não abrange o todo não «compreende» a frase na realização
concreta do seu sentido e não é compreendido.» (Ob. cit., p. 17.)
4 Cf. em contrapartida as totalidades realmente fónicas que trans­
cendem a unidade fónica da palavra e das quais tratamos adiante, p. 68.
porque o seu sentido, por assim dizer «comprimido», concentrado
na abreviatura não revela a articulação que aparece numa frase
plenamente desenvolvida e pode acentuar as delimitações dos
fonemas significativos singulares. Se, porém, a frase é plenamente
desenvolvida ou pronunciada então os fonemas significativos
constituem uma multiplicidade formada de elementos autónomos.
Apesar desta situação, a seqüência de fonemas leva à cons­
tituição de certas formações fónicas novas e de fenómenos
fónicos ou características que o fonema isolado não seria capaz
de produzir. Por outro lado — como já foi notado— , a unidade
e a estruturação particular do sentido da frase também não
deixam de ter conseqüências para as correspondentes multipli­
cidades fonemático-significativas. Nestas duas direcções devem
completar-se as, considerações do parágrafo anterior.
Começando pelo primeiro grupo dos fenómenos fónico-lin-
guísticos 1 notaremos antes de mais que a seqüência de fonemas
significativos produz determinadas características secundárias
construídas sobre eles. É certo que tais fonemas quando singu­
lares se modificam ao aparecerem integrados em determinada
multiplicidade, não no sentido de um fonema se transformar
noutro numéricamente diferente pelo facto de determinado fo­
nema o preceder e outro o seguir. Não obstante — se é permi­
tido assim dizer — , por vezes aparecem neles características
relativas que têm a sua origem na vizinhança de outros fonemas
significativos. Interessam a propósito sobretudo os momentos
puramente fónicos das formas significativas, mas os restantes
momentos podem não só constituir a base destas modificações
secundárias como até aparecer à laia de modificações. Quando,
p. ex., a um fonema de sons suaves se segue outro notoriamente
mais agudo e áspero, a acentuação da agudeza deste último
aparece como fenómeno especial de contraste. Situação análoga
acontece quando numa frase constituída só por palavras «finas»
surge de repente uma palavra «grosseira» não só pela significação
mas ainda pela forma significativa. Neste caso soa muito mais
grosseiramente do que em vizinhança fonemática menos «fina».
Há, como é natural, grande número destas características
«relativas».
Muito mais importantes do que estes são aqueles fenómenos
fónico-linguísticos inteiramente novos em relação aos fonemas
significativos e caracterizadores de um todo fonemático múltiplo.

' Cf. sobre este assunto Th. Lipps, Grund.legu.ng der Aesthetik, Leipzig,
1903, pp. 487492.
66

Figuram entre estes sobretudo o ritmo e o andamento. Limi­


tando-nos aqui unicamente a ritmos que se baseiam no material
fónico o ritmo consiste, como é sabido, na repetição de deter­
minada seqüência de sons acentuados e não-acentuados. É rela­
tivamente independente quer da altura absoluta ou relativa dos
sons, quer ainda da restante qualificação do material fónico.
«O mesmo» ritmo pode ser produzido tanto pelo material fónico-
-linguístico como ainda pelos sons característicos de um ou outro
instrumento musical e ainda pelo tocar de timbales ou por
outros ruídos. Naturalmente, o próprio ritmo não se identifica
com esta seqüência de acentos. É uma qualidade específica da
form a 2 que só na repetição daquelas seqüências se constitui.
Nesta matéria há dois tipos fundamentais e diversos de
qualidades rítmicas: um é o tipo de qualidades cuja constituição
exige uma repetição rigorosamente regular de uma seqüência
sempre a mesma de acentos; o outro é o daquelas que podem
prescindir precisamente desta regularidade rigorosa. Neste aspecto
estas últimas pressupõem, pelo contrário, certo grau de varia­
bilidade. Chamamos às primeiras ritmos «regulares» e às segun­
das ritmos «livres». Só em versos que exigem a repetição rigorosa
da mesma ordem chegam a constituir-se qualidades rítmicas da
primeira espécie, enquanto no chamado verso «livre», e mais
ainda nos vários tipos de prosa, são já os ritmos livres que
interessam. Naturalmente, uma obra literária não precisa de ser
escrita no mesmo ritmo em todas as suas partes para em rigor
ser ritmicamente caracterizada. Pelo contrário, a variação rítmica
dentro de certos limites produz caracteres rítmicos de ordem
superior. Só não deve aparecer com demasiada frequência.
Bem examinados, todos os textos literários são dotados de
qualidades rítmicas. Há contudo diversos graus de expressividade
e intensidade nestas qualidades, sobretudo quando pertencem
aos ritmos «livres». Se, porém, um ritmo tem a qualidade de
ser muito pouco intenso, discreto ou pouco marcado, ou se, ao
contrário, é demasiado complicado e «d ifícil», mal se toma
consciência da sua particularidade. Por esta razão somos às

1 H á também um ritmo dos movimentos visuais ou sentidos inter­


namente, fenómenos rítmicos no desenho e na arquitectura, etc. Cf.
O. Walzel, Wechselseitige Erhellung der Künste (1917) e as observações
por ele referidas de Schmarsow, Pinder, Russack, etc. Para nós esta
questão tem importância secundária.
2 Que o ritmo é «form a» afirma-o também J. Stenzel no artigo citado,
ob. cit., p. 175.
67

vezes inclinados a negar-lhe completamente a existência. A este


respeito é preciso ainda distinguir:
1.° O ritmo que, por assim dizer, é prescrito por determinado
conjunto fonemático-significativo e lhe é imánente.
2° Aquele que em determinada leitura é mais ou menos
artificialmente produzido pela maneira de recitar e pode ser
imposto ao respectivo texto. O ritmo imposto pode desfigurar
ou modificar e ocultar inteiramente o ritmo imánente \ A iden­
tificação não justificada destes dois casos diversos, o facto de
o ritmo imposto poder assinalar grandes diferenças nas leituras
singulares do mesmo texto e, por fim, ainda a dependência deste
da arbitrariedade do leitor fácilmente podem levar à opinião
errada de que a própria linguagem da obra literária está privada
de toda a qualidade rítmica. De facto, a selecção e a ordem das
formas significativas definem as qualidades rítmicas do texto
e impõem determinadas exigências quanto ao modo da sua reci­
tação. É certo que estas podem deixar de ser cumpridas no
caso individual mas isto leva à deturpação do estrato fónico-lin-
guístico da respectiva obra, podendo por vezes contradizer de
tal modo a sua essência que os restantes estratos durante a
leitura não cheguem a ter expressão.
É preciso distinguir entre o ritmo da linguagem únicamente
produzido pelas particularidades do seu aspecto fónico e aquelas
características rítmicas que são realizadas pelo sentido das frases.
Destas trataremos um pouco mais adiante.
Os ritmos diferentes e as características rítmicas são por­
tadores de um novo fenómeno fónico-linguístico, o andamento.
Por andamento não entendemos a velocidade objectiva, arbitrária
e variável da recitação na leitura individual, mas determinado
carácter do aspecto fonemático-significativo da linguagem, p. ex.,
o da «rapidez» ou o da «lentidão», como ainda o da «leveza»
ou o da «gravidade pesada». Este carácter é condicionado por
particularidades do ritmo imánente.ao texto e é produzido por
uma velocidade predeterminada pelo ritmo e que lhe é «própria».
Como sabemos da música, o mesmo ritmo admite diferentes
velocidades objectivas sem que a sua variação o transforme
noutro ritmo. Apesar disso há certos limites — aliás só vaga­
mente determinados — dentro dos quais a velocidade da recitação
pode mudar e cuja transgressão parece tornar a velocidade
«inadequada» ao respectivo ritmo, «não-natural» porque traz
consigo características de andamento que estão em conflito e

1 Se isto é possível em todo e qualquer caso não o queria decidir aqui.


desarmonia com a respectiva qualidade rítmica da forma l. Por
esta razão e no sentido definido é lícito afirmar que um certo
ritmo «predetermina» e exige velocidades objectivas na seqüência
dos sons. Apesar disso, podem naturalmente empregar-se na
leitura individual velocidades que originam características de
andamento em desarmonia com a respectiva qualidade rítmica.
Em geral, porém, esta possibilidade não diz respeito à própria
obra literária mas apenas às suas leituras individuais e só existe
se totalmente abstrairmos da questão de a leitura individual
traduzir fielmente ou não as características particulares da pró­
pria obra. Desde que, porém, se trate de uma tradução fiel das
particularidades da obra o âmbito das possibilidades que neste
caso há é essencialmente reduzido. Por outro,lado, a produção
dos mencionados fenómenos desarmónicos pode ser exigida por
meios apropriados da mesma obra, p. ex., quando numa obra
«dramática» o «texto secundário»2 «inform a» que um protago­
nista deve falar «muito depressa» ou «muito devágar» para
produzir um efeito de contraste que faz parte da estruturação
da obra.
O aparecimento das diversas características de andamento
depende de as palavras incluídas numa frase ou num período
terem fonemas significativos breves ou longos (monossilábicos
ou polissilábicos) ou fonemas que segundo a qualidade da sua
forma exigem uma pronúncia breve ou longa. Por fim, o anda­
mento aparece ainda relacionado com o sentido das frases e
da sua articulação em períodos. Assim, p. ex., frases curtas
implicam também um andamento mais rápido. Por outro lado,
uma série de «relações objectivas»3 em rápida mutação que são
determinadas pelo significado das frases tem incidências sobre
o aspecto fónico da linguagem, modificando as características
de andamento unicamente determinado por este aspecto.
A existência de um ritmo «regular» leva à constituição de
unidades fónicas de ordem superior, como o são, p. ex., o «verso»
e a «estrofe». Estas unidades dependem do material fonemático
das palavras apenas na medida em que a seqüência dos fonemas
significativos determina o ritmo. Essas unidades não podem ser
equiparadas à unidade fonemático-significativa. Ao mesmo tempo
devem ser distintas do todo relacionai das formas significativas

1 Com a maior facilidade esta interdependência de andamento e ritmo


pode ser exemplificada na métrica grega.
1 Cf. adiante, § 30.°, 6.
3 Cf. adiante, § 22.°
69

produzido pelas unidades de sentido. As unidades do «verso»,


p. ex., poderiam existir ainda na completa ausência do sentido,
como, p. ex., acontece em leituras individuais que consistem
num «recitar sem sentido»; neste caso desaparece o carácter da
relação mútua das palavras. As duas produções de unidades
podem, aliás, em princípio cruzar-se.
Outro grupo de particularidades fónico-linguísticas é cons­
tituído por diferentes «melodias» e características melódicas.
São sobretudo condicionadas ou constituídas pela seqüência das
vogais1 que aparecem nos fonemas significativos e implicam
determinada altura tonal. Assim, é natural que na constituição
das características melódicas a «rim a» e a «assonância» desem­
penhem função importante. São também essenciais para elas as
qualidades relativas, já atrás discutidas, dos fonemas significa­
tivos individuais que resultam da sua vizinhança fónico-linguís-
tica. Constituem, por assim dizer, o início de uma organização
dos distintos fonemas verbais para formações de ordem superior
e especialmente para melodias de espécies diversas. Qualquer
língua viva e, num grau ainda superior, qualquer dialecto têm
as suas qualidades melódicas características. Pode dizer-se que
a linguagem de quase todos os indivíduos tem um cunho melódico
próprio (em que desempenha papel significativo a diferença de
categoria e classe). Isto tem naturalmente importância quando
a linguagem viva é usada como material da realização de uma
obra literária. Neste aspecto as obras individuais distinguem-se
acentuadamente umas das outras, visto que as particularidades
melódicas da linguagem viva do autor também em geral se
manifestam nas suas obras. Pertence outrossim à arte do poeta
dominar e usar artisticamente as diversas qualidades melódicas
da língua com o objectivo ou de belezas puramente melódicas do
texto ou dos múltiplos fins de apresentação a que mais adiante
nos vamos expressamente referir.
Por fim, precisamos de tratar ainda de uma particularidade
muito especial do aspecto fónico da linguagem que reside na
seqüência de determinados fonemas-significativos. Trata-se de
características que já são puramente fónicas mas se apoiam
e manifestam nas qualidades puramente fónicas da seqüência
dos fonemas significativos e nas formas nela produzidas (como
na espécie de ritmo, de andamento, de melodia, de tonalidade

1 Cf. os estudos respectivos a que se procedeu na psicologia empírica,


p. ex., Gesa Révész. Cf. a esse respeito, p. ex., Dessoir, Aesthetik und
Allgemeine Kunstwissenschaft, p. 385.
70

dos fonemas singulares, etc.). São as várias «qualidades» emo­


tivas ou de «disposição», como, p. ex., «triste», «melancólico»,
«alegre», «grandioso», e t c . A sua aparição também pode ser
condicionada e influenciada pelo sentido das formas significativas
das palavras 2. Contudo — como é por de mais evidente no caso
de obras musicais — , também podem ser produzidas exclusiva­
mente pelo material fónico. Muitas vezes, p. ex., não é preciso
entendermos um poema dito numa língua estrangeira para per­
cebermos nitidamente as características que a este respeito
interessam.
Por sua vez, o modo de dizer um poema, p. ex., pode exercer
influências sobre o aparecimento destas qualidades emotivas ao
modificar deste ou daquele modo o material fónico concreto.
Por outro lado, também a disposição em que o ouvinte se
encontra pode perturbar ou favorecer a «manifestação» destas
qualidades. Seria, porém, erro julgar-se que o aspecto fónico
da linguagem de urna obra literária a este respeito fosse intei­
ramente neutro e que as qualidades emotivas seriam apenas
— como se d iz — «projecções» arbitrárias do leitor ou do ouvinte
sobre a obra. Os casos em que falamos com pleno direito de
um modo de leitura neste aspecto «falso» ou em que, apesar
desta ou daquela disposição subjectiva com que nós começamos
a ler ou a ouvir a respectiva obra, certas «qualidades emotivas»
inteiramente contrárias a esta disposição nos são directamente
impostas são a meu ver suficientemente evidentes para provar
o contrário. Da maneira mais nítida sentimos a existência das
«qualidades emotivas» manifestadas no aspecto fónico da lin­
guagem precisamente naqueles casos em que há antagonismo
entre elas e aquelas qualidades que se manifestam noutros estra­
tos da obra literária.
Passando agora para o segundo grupo dos fenómenos fónico-
-linguísticos que são os condicionados pela significação das frases
encontramos em primeiro lugar as modificações secundárias, já

1 A estas «qualidades emotivas» refere-se Max Scheler no seu estudo


Zum Phaenomen des Tragischen. Trata aqui de «qualidades emotivas» que,
p. ex., podem ser inerentes a uma paisagem. Essas qualidades aparecem
também em diferentes formações fónico-linguísticas.
2 W. Wundt escreve na sua Voelkerpsychologie, I 1., p. 326: «Chama-se
metáfora fónica a uma relação entre o som lingüístico e o seu significado,
que se impõe à consciência porque o tom emotivo do som tem afinidade
com a emoção associada à representação imaginativa significada.» Isto é
uma formulação que hoje não aprovaríamos, mas objectivamente con­
siderada incide, na intenção de Wundt, precisamente sobre aquilo que
aqui temos em vista.
71

atrás mencionadas, das formas significativas individuais1 que


resultam de as palavras correspondentes terem funções diferentes
no todo da frase. Trata-se, na maioria dos casos, da acentuação
(de sublinhar) daquelas palavras sobre cujo significado incide
a ênfase de toda a frase e depois também da mútua relação de
várias palavras e da sua delimitação em relação a outros grupos
verbais. Estes — que na linguagem escrita têm os seus correlatos
nos diferentes sinais da pontuação — assinalam uma multiplici­
dade total de tipos diferentes de delimitação conforme se trata
de uma frase completa ou apenas de um membro seu. Em geral
são produzidos por pausas intercalares, de extensão diferente,
e também pelo modo de pronunciar a última palavra que precede
a pausa. As palavras correlacionadas, ao contrário, são pronun­
ciadas, na medida do possível, imediatamente sem interrupção2.
Naturalmente, aqui não atendemos aos casos individuais das
leituras singulares mas aos fenómenos fónico-linguísticos típicos
que pertencem à multiplicidade de fonemas significativos. A sua
relação com o aspecto fónico da obra literária resulta precisa­
mente de eles serem condicionados pelo significado das frases.
Reflectem — se assim é permitido dizer — no material fónico-
-linguístico muitas particularidades dos sentidos das frases e é
a sua existência que melhor nos revela a íntima correlação dos
dois aspectos diversos da linguagem: o fónico e o semântico3.

§ 12. O âmbito das formações fónico-linguísticas


pertencentes à obra literária

Chegou o momento de se responder à pergunta pelo elemento


fónico-linguístico constitutivo da obra literária. A própria dis­
tinção atrás feita entre o material fónico concreto e o elemento
formal significativo faz supor que o material fónico concreto
seja para eliminar da obra literária. Com efeito, ele constitui
apenas o substrato fónico das formas significativas concretizadas
nas leituras singulares e dos outros fenómenos fónico-linguísticos
indicados no parágrafo precedente. Mas pode também pergun­
tar-se se a forma significativa na nossa acepção deve ser conside­
rada elemento constitutivo da obra literária. Assim, E. Kucharski
parece ser da opinião de que o aspecto fónico não pertence à
obra literária, visto que ele, por um lado, nem sequer reconhece

1 Cf. atrás, p. 57.


2 Parece que a tudo isto (embora não só a isto) se refere J. Stenzel
ao falar da «meíodia da linguagem».
3 A esse respeito Stenzel tem perfeitamente razão.
72

a linguagem como matéria da obra literária e, por outro lado,


também diz expressamente que pelo aspecto fónico da linguagem
se introduz um factor em princípio alheio à essência da poesia,
o da sensação \ Julgamos esta opinião insustentável, constituindo
apenas uma tentativa inadequada para sair da situação emba­
raçosa que para o autor citado resulta da suposição errada de
que a essência das obras literárias reside nas vivências. Nós, em
contrapartida, julgamos dever afirmar que o elemento formal
significativo não deve ser eliminado da estrutura da obra lite­
rária, pelo menos quando se trata de obras que pertencem à
primeira série dos exemplos por nós escolhidos2. Isto, porém,
não pode ser provado pela simples razão de todas as obras lite­
rárias que conhecemos de facto conterem um estrato de formas
significativas, porque a nossa pergunta não incide sobre os factos
concretos mas sobre o que pertence à essência. Além disso, não
seria lícito invocarmos aqui este facto porque ainda não foi
decidido o problema se, p. ex., as obras cinematográficas devem
ser contadas entre as literárias. A decisão só pode dar-se depois
de positivamente assinaladas as funções do aspecto fónico da
linguagem na obra literária bem como o carácter imprescindível
de tais funções. Antes de passarmos a este assunto devemos
observar que a obra literária ficaria privada de elementos impor­
tantes, por vezes indispensáveis, se o aspecto fónico da lingua­
gem ficasse reduzido apenas às formas significativas. Dele fazem
parte ainda outras qualidades formais fónicas típicas. Entre
estas interessam sobretudo aquelas que são concretizadas pelos
diferentes modos de pronúncia das palavras e exercem a função
de «exprim ir» os estados psíquicos que o locutor está precisa­

1 Cf. I. c., p. 35. Kucharski parece, aliás, tomar uma posição seme­
lhante à de Eduard von Hartmann na Philosophie des Schõnen, pp. 715
e segs.: «(...) que é apenas do significado da palavra que o efeito poético
como tal depende e não da beleza da linguagem e da dicção bela. Quando
o efeito é reforçado por estas trata-se do acréscimo de um efeito estético
extrapoético ao poético, portanto do efeito composto de uma obra de arte
formada de várias artes», é claro que von Hartmann aqui parte de um
conceito de «poético» que não é o resultado da análise concreta das obras
poéticas. Por conseguinte, vê-se forçado a considerar estas obras «com­
postas», como se houvesse ou pudesse haver obras poéticas privadas do
estrato fónico-linguístico e a que seria necessário juntar outra «arte»
(a música?) para criar assim «obras de arte compostas». H á naturalmente
obras de arte «compostas» — como, por exemplo, as canções ou a ópera— ,
mas neste caso o factor música entra em colaboração num sentido com­
pletamente diferente da que o estrato fónico-linguístico pode emprestar
ò obra de arte puramente literária.
: Cf. atrás, p. 23.
73

mente a viver. Estas qualidades formais são importantes naquelas


obras em que se apresentam pessoas a falar \ como acontece,
p. ex., em todas as obras dramáticas. Há diversas qualidades
formais do tom em que se fala: p. ex., o tom «lamentoso» e o
«alegre», o «v iv o » e o «fatigado», o «afectivo» e o «sereno» da
fala. Por outro lado, há qualidades formais do tom em que nos
dirigimos a outros como, p. ex., um tom «enérgico» e outro
«benigno», um tom em que se fala com outros «dum modo
altivo», «amável», «rabugento», «carinhoso», «rancoroso», etc.
Naturalmente, referimo-nos aqui às próprias qualidades fónicas
formais, mas estas estão tão fortemente relacionadas com aquilo
que directamente exprimem que só as podemos designar, por
assim dizer, sub specie daquilo que é exprimido. Estes poucos
exemplos bastam para tomar compreensível o nosso escopo.
Vamos chamar-lhes qualidades manifestativas porque é nelas
que se tornam «manifestos» os estados psíquicos ocultos do
locutor. Se as eliminássemos das obras respectivas deturparíamos
muitas obras de tal modo que os seus elementos mais impor­
tantes talvez nem sequer se conseguissem constituir. Pode, porém,
haver ainda obras ou pelo menos partes delas em que não
existem qualidades manifestativas deste género, como, p. ex.,
acontece nas descrições frias, «objectivas», de paisagens e acon­
tecimentos 2.
Além das qualidades manifestativas já descritas, também os
fenómenos fónico-linguísticos discutidos no parágrafo precedente,
tais como o ritmo, o andamento, a melodia, as produções de
unidades significativas ou rítmicas, etc., podem pertencer à obra
literária, mas sempre e unicamente no sentido de determinadas
qualidades formais típicas e não como casos acidentais que
apenas se dão no material fónico concreto. Estas formações
fónico-linguísticas não precisam de aparecer em todas as obras
literárias; surgem numa obra quando são exigidas pela multi­
plicidade e ordenação das formas significativas que as condi­
cionam. São, por assim dizer, apenas fenómenos derivados dos
elementos primários do aspecto formal significativo da linguagem.

1 Sobre o conceito da «apresentação» veja-se adiante, § 29.°


2 H á aliás outro problema especial, o dos meios de que o poeta
dispõe para integrar semelhantes qualidades manifestativas na obra e as
transmitir ainda ao leitor. Neste caso a situação é muito mais complicada
do que quando se trata da mera fixação de uma multiplicidade de formas
significativas determinadas pelo recurso aos sinais gráficos. Seja, porém,
qual for a solução desta tarefa (ainda trataremos dela) isso em nada
modifica o facto por nós registado.
74

Determinado assim o âmbito daquilo que de entre as for­


mações e características fónico-linguísticas, a nosso ver, faz
parte ou pode fazer parte da obra literária podemos passar
para a fundamentação desta nossa posição assinalando as fun­
ções que tais elementos desempenham na obra.

§ 13. A função do estrato fónico-Iinguístico


na estruturação da obra literária

As formações e as características fónico-linguísticas anali­


sadas desempenham funções significativas na estruturação da
obra literária de dois modos diferentes: em primeiro lugar, graças
à multiplicidade das suas qualidades e características constituem
um elemento especial estrutural da obra; em segundo lugar,
desempenham função própria no desenvolvimento e em parte
também na constituição dos seus restantes estratos.
No primeiro caso enriquecem a obra na sua totalidade com
material próprio trabalhado e com qualidades próprias de valor
estético que, juntas às restantes qualidades de valor provenientes
dos outros estratos da obra, constituem aquela polifonia parti­
cular da obra literária cuja existência atrás anunciámos. O facto
de as formações e as características fónico-linguísticas terem
«voz própria» nesta polifonia tem a sua melhor prova na modi­
ficação radical que toda a obra sofre quando é traduzida para
uma língua «estranha». Por mais fiel que seja a tradução e por
maior que seja a semelhança das qualidades fónicas nunca se
conseguirá que a tradução neste aspecto seja inteiramente igual
ao original porque a diferença das formas significativas singu­
lares traz inevitàvelmente consigo outras formas e características
de natureza fónico-linguística. Além disso, o aspecto fónico da
linguagem não é irrelevante para o artisticamente valioso. Muitas
das suas qualidades e das suas formações levam à constituição
de características bem particulares que geralmente designamos
pelos termos «belo», «feio», «engraçado», «vigoroso», «poderoso»
e outros \ Estes termos, porém, não conseguem traduzir toda

1 A necessidade de certa atitude e concepção da parte do sujeito


cognoscente para a constituição de tais características, além da funda­
mentação em determinada multiplicidade de qualidades fónicas, é um
problema especial que não será aqui solucionado. Se, porém, estas dife­
rentes condições subjectivas a salientar se cumprem as características
mencionadas são assinaladas nas formações fonéticas como algo a elas
aderente.
75

a multiplicidade de características estéticamente relevantes e


diferentes entre si. Pode ser verdade que em todos aqueles casos
em que, p. ex., falamos de «beleza» se encontre um momento
comum. Geralmente, porém, não é este momento comum que
interessa, mas reportamo-nos nesses casos ao carácter concreto
e pleno que adere à obra de arte individual e então o termo
pouco se adequa ao objecto dado. Não há só «belezas» diferentes,
mas também tipos diferentes de beleza que se diferenciam
segundo a espécie das qualidades subjacentes e suas variedades.
Uma igreja románica, p. ex., não é apenas «bela» em sentido
especificamente diferente do de uma catedral gótica, mas tam­
bém as «belezas» que uma produção fónica e em especial uma
obra musical podem revelar são tipicamente diferentes, pela sua
própria natureza, da beleza, p. ex., de qualquer obra de arte
arquitectónica. E igualmente as várias «características de beleza»
que se constituem sobre o substrato de combinações e seqüências
fónicas em duas línguas diferentes (p. ex., na alemã e na fran­
cesa) são inteiramente heterogéneas, segundo a plenitude do
seu conteúdo, em relação àquelas características de beleza que,
p. ex., uma situação trágica ou também a imponência de uma
figura podem manifestar. E esta heterogeneidade radica preci­
samente na heterogeneidade daquelas qualidades fundadoras des­
tas características que a produção fónico-linguística pode ter
no primeiro caso e o estado anímico no segundo. Se chamarmos
— não de todo adequadamente como muitas vezes acontece —
«m atéria» às produções ou qualidades fundadoras das caracte­
rísticas de beleza podemos dizer que os tipos principais funda­
mentalmente heterogéneos de características de beleza dependem
das particularidades da «m atéria» e diferenciam-se de acordo
com ela. O mesmo se diga também de cada uma das caracterís­
ticas mais heterogéneas e estéticamente relevantes que foram
denominadas pelos termos atrás enunciados K
O aparecimento de uma multiplicidade convenientemente
seleccionada de tais características numa e a mesma obra leva
à constituição de características estéticamente relevantes de
ordem superior a certos momentos sintéticos particulares que,
em última análise, constituem o específico de uma obra de arte:
o seu valor artístico.

1 Acerca do conceito de característica da beleza, ou mais geralmente


das qualidades de valor e suas variações específicas, cf. Max Scheler, Der
Formalismus in der Ethik und materiale Wertethik, cap. I, § 1.°, Gueter
und Werte (Jahrbuch fuer Philosophie, vol. I, pp. 412 e segs.).
76

A obra de arte literária é, pois, um produto multistratificado;


isto significa nesta altura sobretudo que a «matéria», cujas
particularidades levam à constituição de características estéti­
camente relevantes, é composta de vários elementos constitutivos
heterogéneos, de «estratos». A matéria de cada um dos estratos
origina a constituição de características estéticas próprias ade­
quadas à espécie de matéria. Por conseguinte, obtém-se, ou pelo
menos pode obter-se, a constituição de características estéticas
sintéticas de ordem superior e não só dentro de cada um daque­
les grupos de características próprias dos estratos singulares
como ainda em sínteses ainda mais elevadas de momentos esté­
ticos de grupos diversos. Por outras palavras: em obras de arte
literária a multistratificação da «m atéria» leva a uma polifonia
curiosa de características estéticas de tipos heterogéneos em que
as características pertencentes a tipos diversos não se justapõem,
por assim dizer, estranhamente mas tecem entre si diferentes
relações. Assim, surgem sínteses, harmonias e desarmonias intei­
ramente novas nas variações possíveis e mais diversas Cada
uma destas harmonias sintéticas contém os elementos que levam
à produção sintética de tal maneira que aqueles não desaparecem
nos momentos sintéticos mas tornam-se sob estes, por assim
dizer, em si mesmos sensíveis e transparentes. O todo é preci­
samente uma polifonia.
Participam nesta polifonia, enriquecendo-a, as características
estéticas que chegam a constituir-se no estrato fónico lingüístico.
Ao mesmo tempo, porém, conduzem à produção de harmonias
especiais de características sintéticas de valor estético só possíveis
quando existe o estrato fónico-linguístico na totalidade da obra.
Este facto oferece-nos um argumento importante para demons­
trar que o estrato fónico-linguístico não é simples meio de reve­
lação da obra literária, mas pertence-lhe de tal modo que a sua
não-existência na obra acarretaria uma profunda modificação.
A polifonia da obra, neste caso, não só ficaria privada de uma

1 Surgem aqui em especial os problemas da relação entre as parti­


cularidades e características estéticas do estrato fónico-linguístico (entre
cias o metro, a forma do poema, as características estéticas da melodia
do verso, etc.) e as particularidades do mundo apresentado e ainda dos
momentos de valor estético que nele aparecem. Mais adiante entraremos
em pormenores a este respeito. Essas relações já foram consideradas e
analisadas relativamente cedo, p. ex., por W. Schlegel (Gesammelte Sch-
riften, vol. II), facto com razão salientado por Oskar Walzel no seu livro
Gehàlt und Gestalt des Dichtwerkes (cf. I. c., pp. 182 e segs.).
77

«vo z» mas deveria ser totalmente nutra, porque êntão outros


tipos de harmonias necessàriamente se formariam.
Se, porém, o estrato fónico-Iinguístico só pelo enriquecimento
e pela modificação da polifonia da obra contribuísse para a sua
estruturação a sua ausência ainda não impossibilitaria a exis­
tência da obra literária. A situação apresenta-se diferente quando
se toma em consideração a função desse estrato para a revelação
e em parte também para a constituição dos restantes estratos
da obra.
Estas funções devem ser consideradas sob dois aspectos
diferentes: sob o ponto de vista puramente ontológico, pondo
a descoberto o que o estrato fónico-Iinguístico realiza para a
existência dos outros estratos; sob o aspecto fenomenológico,
tendo em vista a função que ele desempenha quanto à doação
e manifestação de toda a obra a um sujeito psíquico.
No primeiro caso, o estrato fónico-Iinguístico e particular­
mente a multiplicidade das formas significativas constituem o
invólucro externo, fixo, da obra literária em que todos os seus
estratos restantes encontram a base externa ou — se quisermos —
a sua expressão extrínseca. O fundamento próprio constitutivo
da obra literária individual reside certamente no estrato das
unidades de significação de grau inferior e superior. Mas as
significações estão por essência relacionadas com formas signi­
ficativas l. É certo que isso não se pode afirmar a respeito de
determinadas formas significativas de facto relacionadas com as
significações porque uma e a mesma significação pode em prin­
cípio relacionar-se com formas significativas diferentes, p. ex.,
em línguas diferentes. Pertence à ideia de significação estar
ligada a qualquer forma significativa (ou a qualquer sinal verbal
de natureza visual, acústica, táctil) e ser por isso a sua signifi­
cação. Encontra nessa forma o seu invólucro externo, a sua
«expressão», o sêu portador exterior. Sem uma «form a signifi­
cativa» (no sentido, agora ampliado, de um factor formal qua­
litativo de qualquer género) a significação não poderia de modo
algum existir. Nesta ordem de ideias, determinada matéria formal
significativa que uma obra literária possui em determinada língua
(alemã, francesa) certamente não é por essência indispensável.
Com a ausência, porém, de toda a matéria formal significativa
o estrato das unidades de significação deixaria de existir e com
ele ruiriam necessàriamente também os restantes estratos da

1 Cf. as investigações seguintes (cap. 5.°).


78

obra literária, pelo menos na forma que lhes é característica


na obra de arte literária K
O estrato formal significativo precisamente. por constituir
o involucro externo indispensável do estrato das unidades de
significação, e portanto da obra inteira, desempenha função
essencial na captação da obra por um sujeito psíquico. Ainda
que as formas significativas sejam apenas o «involucro», e por­
tanto algo que na sua matéria é essencialmente distinto dos
restantes elementos da obra (de maneira que, numa atitude
inadequada do leitor, lhe «encubram» e ocultem todos os
outros aspectos da obra), podem, contudo, como portadoras das
significações revelar toda a obra. A função essencial das formas
significativas reside, sob este aspecto, em «determinar» as signi­
ficações correspondentes uma vez fixada a coordenação dessas
formas e das significações. Isto quer dizer: quando determinada
forma significativa é captada por um sujeito psíquico esta cap­
tação leva imediatamente à execução de um acto intencional
que incide sobre o conteúdo de uma certa significação. Esta
não é dada como objecto mas é posta em função e este entrar-
-em-função leva, por seu lado, a que seja intencionalmente visada
a respectiva objectividade pertencente à significação da palavra
ou ao sentido da frase, o que permite a manifestação das outras
camadas da obra literária.
Além desta função «determinante» das significações corres­
pondentes, primária e própria das formas significativas, estas,
ou — com mais rigor — pelo menos muitas delas, exercem ainda
outras funções na revelação da obra literária. Assim, as formas
significativas «vivas» fazem que a objectividade pertencente à
sua significação não seja apenas visada de modo vazio, mas
«representada» nos aspectos correspondentes de maneira ple­
namente intuitiva. O aparecimento de semelhantes palavras vivas
e vigorosas determina também a selecção dos múltiplos aspectos
sob que os objectos apresentados devem aparecer2. Não só o
modo de estes objectos aparecerem é co-determinado pelo estrato
formal significativo mas a constituição de vários elementos das
objectividades apresentadas também só se consegue, em certos
casos, pelo emprego de determinados meios fónico-linguísticos.
Em todos os casos em que a palavra não se reduz apenas a

1 Só não. se devem confundir as unidades de significação com o


sentido ideal de um conceito, como agora quase sempre acontece. Cf. as
considerações seguintes (cap. 5.°).
2 Cf. adiante, cap. 8.°, e Th. A. Meyer, Das Stilgesetz der Poesie,
pp. 160 e segs.
79

determinar o sentido mas exerce simultáneamente a «função de


notificação» (na acepção de E. Husserl), portanto sobretudo nas
obras «dramáticas», o material formal significativo e particular­
mente as várias qualidades manifestativas do tom em que as
palavras são pronunciadas desempenham a função insubstituível
de «manifestar» vários estados psíquicos das personagens inter­
pretadas. Só por este meio a sua vida psíquica concreta, irre­
dutível a pensamentos e a pensados, chega a constituir-se. Se as
formas significativas das palavras desaparecessem de tal modo
que as correspondentes unidades de significação ficassem, por
assim dizer, nuas (se isto fosse possível), do protagonista inter­
pretado saberíamos que pensa isto ou aquilo, através de descri­
ções adequadas poderíamos saber concretamente diferentes coisas
sobre a sua constituição e mutabilidade psíquicas, mas o indizível
da sua vida psíquica, que se subtrai à definição abstracta e se
pode mostrar intuitivamente em qualidades manifestativas, fica­
ria apesar disso indeterminado. Assim, a existência do estrato
fónico-linguístico na obra literária leva a completar de maneira
importante o estrato dos objectos apresentados e sem este com­
plemento as obras literárias individuais deveriam ser essencial­
mente outras. Deste modo podemos chegar ao aperfeiçoamento
último das funções já examinadas das formas significativas que
está na «determinação» das unidades de significação. É que
muitas vezes a doação simultânea dos estados psíquicos mani­
festados precisa exactamente o sentido das frases pronunciadas
e por isso este sentido ou chega à sua perfeita formação ou
sofre determinada modificação K Assim, p. ex., uma frase pro­
nunciada com a mesma variedade de formas significativas muda
de sentido segundo é pronunciada — graças às qualidades fónicas
manifestativas — ora com a máxima fúria ora em perfeita calma
mas com malícia sublimada e porventura ironia maldosa.
Também as diversas formações e características fónico-lin-
guísticas e formal-qualitativas de ordem superior, a que atrás
nos referimos, exercem função insubstituível quer na determi­
nação do sentido, quer na constituição dos restantes estratos
da obra, contribuindo sobretudo para a constituição dos momen­
tos irracionais das objectividades apresentadas. O significado
desta função, todavia, só posteriormente poderá ser esclarecido
mais exactamente por n ós2. Por enquanto e resumindo, podemos
em todo o caso dizer que o estrato fónico-linguístico representa

1 Cf. a este respeito as observações interessantes, ainda que fortemente


psicologistas, de Th. A. Meyer, Das Stilgesetz der Poesie, pp. 19 e segs.
2 Cf. adiante, §§ 47.° a 50.°
80

um constitutivo essencial da obra literária; a sua ausência impli­


caria que a obra literária inteira deixava de existir porque as
unidades de significação forçosamente exigem um material formal
significativo. Se esse estrato fosse estruturado de modo diferente
daquele que de facto possui em determinada obra esta experi­
mentaria modificações radicais. Se, por fim, não contivesse em
si elementos especiais valiosamente qualificativos a polifonia da
obra ficaria empobrecida num elemento importante. Portanto,
este primeiro estrato externo da estruturação da obra de arte
literária não constitui simplesmente um meio de acesso à obra
nem um «factor estranho à essência da poesia», mas ao contrário
um elemento indispensável da obra de arte literária.
Capítulo 5

O estrato das unidades de significação

§ 14. Nota prévia

As investigações subsequentes destinam-se a salientar as


formas e funções muito variadas que em conjunto constituem
o segundo estrato da obra de arte literária, o das unidades de
significação. Devem particularmente definir todos aqueles
factores deste estrato cujo conhecimento nos possibilita com­
preender a função das unidades de significação na obra literária.
Ao mesmo tempo, é preciso esclarecer a essência geral do signi­
ficado da palavra e das unidades superiores de significação na
medida em que isto é necessário para a solução do problema
da idealidade das unidades de significação. Como aqui não pode­
mos apresentar uma teoria extensa das unidades de significação,
é evidente que devemos deixar sem resposta várias questões que
se impõem e limitar-nos apenas a esboçar diversos aspectos.

§ 15. Os elementos da significação da palavra

Sem por enquanto nos ocuparmos da própria essência da


significação da palavra, queremos agora distinguir os diversos
elementos que podem aparecer na significação de uma palavra
e determinar a sua correlação.
Se compararmos diversas significações de palavras notamos,
em primeiro lugar, que nem todas as significações de palavras
são igualmente estruturadas: assim, há, por um lado, palavras
como «mesa», «rubor», «preto» e, por outro lado, palavras e
partículas outrora chamadas «sincategoremáticas» e quase não
estudadas que na recente literatura lógica — particularmente a
partir de E. Husserl1— estão a ganhar cada vez mais importância

' Cf. Logischen Untersuchurigen, vol. II, Investigações I e IV.


82

e a que A. Pfaender chama «conceitos funcionais» *. Trata-se


neste caso de palavras como, p. ex., «e », «ou», «é » e outras deste
género. Tanto as palavras do primeiro grupo como as do segundo
têm uma significação cuja estrutura é completamente diversa
nos dois casos. Por falta de expressão melhor designaremos as
palavras pertencentes ao primeiro grupo por «nomes» e as signi­
ficações correspondentes por «significações normais da palavra»2.
Começamos por estas.

a) A significação dos nomes

Chamando por enquanto «significação» 3 a tudo quanto está


ligado à forma significativa verbal e constitui com ela uma
«palavra», podemos distinguir na significação de um nome os
seguintes elementos diversos desde que o nome seja isolado e
portanto não seja considerado como parte de uma frase:

1. o factor de direcção intencional,


2. o conteúdo material,
3. o conteúdo formal,
4. o momento da caracterização existencial,

e por vezes ainda:

5. o momento da posição existencial.

Naturalmente, não se deve julgar que a significação de um


nome constitua soma ou multiplicidade de elementos dissociados
uns dos outros e apenas vinculados artificialmente de qualquer
modo. Pelo contrário, esta significação constitui uma unidade
de sentido em que há a distinguir vários momentos intimamente

1 Cf. A. Pfaender, Logik, Jahrbuch für Philosophie, vol. IV. Se aqui


será inteiramente lícito falar de «conceitos» mostrar-se-á mais adiante.
2 Pfaender, na sua Logik, chama-lhes «conceitos de objectos». Como
nós nas considerações que se seguem pretendemos distinguir entre as
significações das palavras e os «conceitos», queremos evitar este termo.
3 Para excluir todos os mal-entendidos é preciso acentuar particular­
mente que nem as vivências ou os estados psíquicos concretos do locutor,
notificados no fonema significativo, nem os aspectos da correspondente
objectividade, «postos à disposição» do mesmo fonema, pertencem à «sig­
nificação» da palavra. Também não estão vinculados à form a significativa
fonemática e não pertencem à unidade da palavra, mas só chegam a ter
importância quando a palavra é empregada com funções diversas na
comunicação lingüística viva. Cf. a este respeito Husserl, Logischen Unter-
suchungen, vol. II, Investigação I.
83

relacionados entre si e de diverso modo dependentes uns dos


outros. Isto diz muito particularmente respeito à relação estreita
entre os conteúdos material e formal do nome. Foi precisamente
por esta relação íntima que a diferença dos elementos da signi­
ficação nominal por nós reunidos quase sempre passou desper­
cebida.
Quando um nome aparece como parte de uma unidade
superior de significação e em especial de uma frase há na
plenitude do seu significado ainda um sexto grupo de elementos,
que é o dos elementos apofântico-sintácticos. Destes só mais
tarde trataremos.
Ad 1) Se escolhemos, p. ex., expressões como a) «o centro
da Terra» e b) «uma mesa» notamos que cada uma delas se
refere a um objecto, designa um objecto, dirige-se para ele, mas,
por outro lado, só o faz porque na sua significação contém
momentos que, por assim dizer, decidem de que espécie ou de
que qualidade de objecto se trata (precisamente de uma «mesa»
e do «centro da Terra»). Chamamos conteúdo material da signi­
ficação da palavra àqueles momentos desta significação que
determinam o objecto qualitativamente, chamando, em contra­
partida, factor da direcção intencional àquele momento em que
a palavra se «refere» precisamente a este objecto e a nenhum
outro ou — noutros casos — a um tal objecto
Notamos imediatamente que o factor de direcção intencio­
nal da expressão nominal pode variar. Assim, pode ser unirra-
diado, como nos dois exemplos citados, e também multirradiado
de um modo determinado ou indeterminado. Assim, é indeter­
minadamente multirradiado na palavra «homens», mas, ao con­
trário, determinadamente multirradiado na expressão «os meus
três filhos» — e igualmente na forma dual que ainda se conserva

1 Nas suas Logischen Untersuchungen, Husserl distingue entre «signi­


ficação» e «referência a um objecto» (/. c., vol II, Investigação I, §§ 12.°
e 13.°). Se entendo bem Husserl, ele tem em vista precisamente aquilo a
que eu chamo aqui o conteúdo material e o factor de direcção intencional.
Todavia, nem todos os seus exemplos condizem com' a minha distinção.
Segundo Husserl, só a «significação» no sentido que lhe dá constitui a
essência da expressão, o que só é verdade na medida em que nem todas
as significações assinalam um factor de direcção intencional. Para expres­
sões nominais, porém, este facto é essencial. Devia examinar-se ainda
mais pormenorizadamente a relação entre o factor de direcção nominal
e a função de nomear que, entre outros, K. Twardowski (cf. Zur Lehre
vom Gegenstand und Inhalt der Vorstellungen, pp. 11 e segs.) opõe às
funções de exprimir e de «significar». Segundo Twardowski, a função de
significar baseia-se no facto de o nome sugerir ao ouvinte uma vivência
imaginativa. Nada tem que ver com a «significação» na minha acepção.
84

em algumas línguas !. Por outro lado, o factor da direcção pode


ser constante e actual ou variável e potencial. O primeiro aparece
em palavras como «o centro da Terra», «a capital da Polônia»
e outras semelhantes, mas também na expressão «o triângulo»
(no sentido de uma ideia universal), quando, portanto, a palavra
designa um objecto real ou ideal (ou uma ideia) completamente
determinado quanto ao número. Se, pelo contrário, tomamos a
palavra «m esa» no sentido de «uma mesa» o seu factor de direc­
ção é potencial e variável. Vemos com mais clareza que neste
caso é apenas potencial, mas pode ser actualizado quando em­
pregamos a palavra «mesa», p. ex., a respeito de determinado
objecto individual e à pergunta «O que é isto?» respondemos:
uma «mesa» 2 (aqui «uma mesa» não é entendida como exemplar
da classe «mesa», mas como este objecto individual que está aí
é captado e denominado como é em si mesmo através de um
«esquema» 3). A palavra «mesa» pode, porém, aplicar-se a diversos
objectos individuais e é precisamente nisto que se revela a varia­
bilidade do seu factor de direcção 4. Naturalmente, este é poten­
cial e variável enquanto a palavra se não aplicar a um objecto
completamente determinado. Com esta aplicação o factor con­
verte-se em actual e estabilizado.

1 A. Pfaender distingue entre «conceitos individuais» e «conceitos plu­


rais». Não distingue, porém, o factor da direcção intencional dos outros
elementos da significação, de modo que em Pfaender não há clareza acerca
da base da distinção entre conceitos individuais e plurais.
2 Este facto já é apontado por E. Husserl nas suas Logischen Unter-
suchungen, ainda que não fale em factor de direcção.
3 Cf. a este respeito as minhas observações nas Questões Essenciais,
pp. 31 e segs.
4 Relaciona-se com isto a questão da definição dos chamados nomes
«universais» ou conceitos objectivos. Desde Berkeley até aos nossos dias
é tradicional definir-se o conceito «universal» como aquele que designa
mais do que um objecto. É isto que geralmente é afirmado pelos lógicos
contemporâneos, p. ex., na Polônia por T. Kotarbinski nos seus Elementy
teorii poznania, logiki formalnej i metodologii (Elementos da teoria do
conhecimento, de lógica formal e de metodologia, 1929). A. Pfaender afirma
com razão que só os conceitos plurais designam mais do que um objecto.
Os chamados nomes universais, em contrapartida, não são em geral con­
ceitos plurais e devem definir-se de outro modo. Um nome é precisamente
«universal» quando designa qualquer objecto (qualquer indivíduo) de uma
classe de objectos unívocamente definida pelo conteúdo material do nome.
Ao contrário, um nome é «individual» quando designa um indivíduo uní­
vocamente definido pelo seu conteúdo material (centro da Terra) ou um
grupo unívocamente definido de indivíduos (os quatro irmãos do rei Casi­
miro, o Grande). Neste último caso é ao mesmo tempo individual e plural.
85

O factor de direcção intencional existe em todas as signi­


ficações nominais das palavras, aparece tanto nos substantivos
como nos adjectivos, mas falta em quase todas as palavras
meramente funcionais como, p. ex., «e», «ou » e semelhantes.
A sua espécie — constante ou variável, etc. — depende do con­
teúdo material da significação nominal da palavra. Só quando
este conteúdo determina o objecto intencional da significação
com propriedades que — se correspondem a um objecto — o
definem de modo perfeitamente unívoco como individuo o factor
de direcção pode ser constante e actual devido à própria signi­
ficação. É, porém, sempre variável e potencial quando o conteúdo
material da significação da palavra determina o objecto («m esa»)
por um momento (o da sua condição de mesa) que, embora
pertença à natureza constitutiva individual do objecto, não pode
só por si constituí-la *. O conteúdo material não pode neste caso,
por assim dizer, forçar por si mesmo a actualidade e constância
do factor de direcção, de modo que só determinada aplicação
da palavra a um caso concreto leva a essa actualidade e cons­
tância. É particularmente importante para o problema do modo
de ser das unidades de significação que se possa chegar e real­
mente se chegue, por um emprego de palavra, a tal mudança
da sua significação plena. Mais adiante indicaremos ainda outras
transformações deste género. Os limites de variabilidade de um
factor variável de direcção são precisamente aquilo que de facto
se tinha em vista ao falar da «extensão» de um «conceito» e
que se identificava de modo totalmente errado com a zona dos
objectos subordinados ao «conceito» 2.
Ad 2) O conteúdo material, por nós assim chamado porque
determina os modos qualitativos do objecto, é igualmente e em
primeiro lugar característico dos nomes e não aparece nas pala­
vras meramente funcionais3. O seu trabalho reside na função
de determinação. Pode exercê-la só porque por essência é pensar
intencional4. Pertence à essência do pensar intencionar objectivo
«projectar» pelo seu acto e em sentido figurado «criar» algo

1 Pertence aos momentos «duplamente dependentes» da forma ime­


diata do objecto, cf. Questões Essenciais, pp. 62 e segs.
2 Pressupostas as nossas distinções, poderíamos também definir
assim: um nome é universal quando o seu factor de direcção é variável
e potencial, mas é individual quando o seu factor de direcção, devido à
sua significação, é constante e actual.
3 N a acepção de A. Pfaender, cf. Logik, pp. 299 e segs.
4 A origem e a espécie desta intencionalidade é um problema especial
de que trataremos mais adiante. Cf. § 18.“
86

diferente de si mesmo — o «objecto intencional» como tal. A fun­


ção do conteúdo material reside em determinar este objecto
quanto ao seu carácter qualitativo K O conteúdo material, por
outras palavras, «atribui» ao objectivo intencional determinadas
características materiais, « criando»-o assim juntamente com o
conteúdo formal da significação nominal. Poder-se-ia dizer que
em cada um destes conteúdos materiais há um momento de
sic iubeo, de «assim seja desta ou daquela maneira determinada».
O modo da determinação qualitativa do objecto puramente inten­
cional da significação nominal da palavra depende exclusivamente
do conteúdo material da sua significação nominal2. Ou exami­
nando o mesmo caso sob outro aspecto: o objecto puramente
intencional, que por essência pertence à significação nominal da
palavra, quanto ao seu carácter qualitativo ostenta únicamente
aqueles momentos que lhe são atribuídos no conteúdo material
da significação. O factor de direcção intencional do nome — se
considerarmos a respectiva expressão nominal puramente em si,
i. é, antes de qualquer aplicação possível a algo real ou ideal­
mente existente— refere-se precisamente a este objecto deter­
minado pelo conteúdo m aterial3 e na sua direcção depende
inteiramente deste conteúdo.
Deve notar-se ainda o seguinte. Não é necessário que o
conteúdo material da significação nominal da palavra determine
o objecto intencional exclusivamente por momentos ínfimos, não
mais diferenciáveis. Pelo contrário, é possível que ao lado de
momentos intencionais que o realizem apareçam ainda outros
que revestem o objecto de momentos genéricos de ordem supe­
rior. Também é possível que o objecto seja determinado inten­
cionalmente apenas por momentos específicos sem que ao mesmo
tempo as diferenças ínfimas sejam explicitamente indicadas.
Na expressão «coisa de cor», p. ex., o seu conteúdo material
determina o objecto intencional apenas no sentido de se tratar
de uma coisa, e de uma coisa de cor; a cor, porém, a atribuir

1 A expressão «carácter qualitativo» é empregada aqui num sentido


muito lato que abrange todas as características dos objectos que não
pertencem à sua «form a» no sentido analítico-formal da ontologia formal
como E. Husserl a entende.
2 Esta proposição não está formulada com toda a correcção. Pode
obter-se uma concepção mais rigorosa depois da introdução da distinção
entre o objecto intencional e o seu conteúdo, visto que a proposição só
vale com respeito ao aspecto qualitativo deste conteúdo. Cf. adiante,
§§ 20.° e 21.°
3 N a projecção intencional deste objecto participa por essência tam­
bém o conteúdo formal da expressão nominal. Cf. adiante, p. 87.
87

a esta coisa não é em sentido algum indicada na significação.


Mas que deva ter qualquer das qualidades da cor está implicado
no facto de essa coisa ser «colorida». Portanto, deve existir no
conteúdo material da respectiva significação da palavra, por
um lado, o momento que determina o objecto intencional no
sentido de este ser «de cor» e, por outro, aquele momento que
determina tenha «qualquer» cor definida. Os momentos agora
comparados do conteúdo material distinguem-se essencialmente
porque o primeiro determina o objecto por urna constante fixa,
unívocamente delimitada, enquanto, o segundo lhe atribui uma
indeterminação muito particular que pode ser removida aperias
de um modo prescrito pelo respectivo momento constante («colo­
rido»), i. é, por um momento qualitativo ínfima claramente esta­
belecido (p. ex., «vermelho» de um cambiante muito bem
determinado) pode ser mudada num ser determinado. Vamos
chamar momentos «constantes» àqueles momentos do conteúdo
material de que é paradigma o primeiro momento. Àqueles,
porém, que pertencem ao segundo tipo chamamos «variáveis»
surgidas no conteúdo material precisamente porque um momento
deste género não só confere indeterminação ao objecto inten­
cional, mas admite (traz consigo) ao mesmo tempo uma varia­
bilidade de momentos individuais possíveis que podem eliminar
o estado de indeterminação K
É um problema especial, que não tencionamos resolver aqui,
o de saber se em todas as significações nominais de palavras
devem entrar, ao lado das «constantes», também variáveis do
conteúdo material e se o modo de aparecimento das variáveis
é igual ao das constantes. Seja como for, em todo o caso é
importante que possam aparecer variáveis no conteúdo material
da significação nominal. Só quando tomada em consideração a
sua existência é lícito resolver vários problemas lógicos impor­
tantes como, p. ex., o problema da ordenação de diferentes
«conceitos» — como em geral se d iz— segundo o grau da sua
universalidade2. A não-consideração das «variáveis» levou tam­
bém, entre outros erros, a uma concepção inteiramente equivo­
cada do «conteúdo» de um «conceito». Ao falar-se do «conteúdo
do conceito» tinha-se em vista exclusivamente o âmbito das

1 As variáveis nem sempre precisam naturalmente de determinar as


espécies ínfimas de qualidades, mas sim os momentos da espécie de
qualquer modo inferior àquela que é determinada por uma constante
correspondente.
2 Trata-se aqui da universalidade relativa, que se não deve confundir
com a universalidade absoluta atrás definida (p. 84).
88

«constantes» do conteúdo material de uma significação nominal


da palavra e julgava-se com isto ter esgotado o conteúdo com­
pleto do conceito, o que levou a vários erros consideráveis.
O «conteúdo do conceito» foi nestas circunstâncias definido de
modo inteiramente absurdo como âmbito das «características
comuns» dos objectos abrangidos pelo conceito.
Finalmente, é preciso acentuar que a variabilidade do factor
da direcção intencional de um nome está intimamente relacionada
com as «variáveis» que aparecem no seu conteúdo material.
O factor de direcção é sempre variável quando neste conteúdo
haja qualquer «variável» que pertença à definição da natureza
individual constitutiva do objecto, caso uma qualidade indivi­
dualizante não seja ao mesmo tempo determinada no conteúdo
material por uma função especial do nome composto. É este
sempre o caso quando o objecto intencional é percebido através
de um momento duplamente dependente da sua natureza, um
«esquema», de maneira que a condição anteriormente referida
da variabilidade do factor de direcção (cf. pp. 84 e segs.) é equi­
valente à que acaba de ser indicada. Se, ao contrário, o con­
teúdo material de um nome individual deve constar apenas de
constantes é um problema que deve aqui ficar em suspenso.
Ad 3) Se a significação nominal da palavra não contivesse
nada mais do que o conteúdo material e o factor de direcção
intencional, estes, juntos, ainda não poderiam projectar nenhum
objecto e muito em particular nenhum objecto do tipo «coisa
individual». É que faz parte da essência de qualquer objecto
realmente ideal ou só intencional possuir não apenas certa
multiplicidade de determinações qualitativas do modo de ser,
mas ostentar ainda uma estrutura formal característica. E esta
estrutura varia conforme se trata de um objecto (de uma «subs­
tância») autónomo no seu ser, nomeadamente de uma «coisa»
ou, p. ex., de uma qualidade ou de um estado ou coisas seme­
lhantes. Com efeito, estas objectividades são também visadas em
significações nominais de palavras enquanto estruturadas for­
malmente de diversos modos. Assim, é necessário supor ao lado
do «conteúdo material» ainda um «conteúdo form al» destas
significações. Se até agora isto quase nunca aconteceu, ficando
assim a significação nominal da palavra reduzida apenas ao seu
conteúdo material, a razão está no modo particular como o
conteúdo formal aparece na totalidade da significação nominal
da palavra. Sob este aspecto ele distingue-se radicalmente do
conteúdo material. Observando nós, p. ex., a significação com­
posta das palavras «um triângulo equilátero», o seu conteúdo
material consiste numa série de momentos intencionais entre si
relacionados para formarem ama unidade de sentido. Estes
momentos individuais, que determinam os traços distintos da
objectividade correspondente, podem ser assinalados na signifi­
cação isoladamente, cada um de per si, como elementos parti­
culares. Não é este, em geral, o caso dos momentos do conteúdo
formal. A estrutura formal do objecto (p. ex., do triángulo, da
mesa) em geral não é visada explicitamente no significado nomi­
nal da palavra do mesmo modo que as suas determinações
materiais. Apesar disso, os momentos da estrutura formal são
simultáneamente intencionados mas de um modo funcional. Pode­
mos dizer que a significação nominal da palavra perante o seu
objecto qualitativamente determinado pelo conteúdo material
(o qual só por este conteúdo ainda não é «objecto») exerce
uma função estruturante ao tratar o determinado pelo conteúdo
material como uma unidade formalmente estruturada, p. ex.,
como uma «coisa», uma «qualidade de alguma coisa», um «pro­
cesso», e assim por diante. Este «tratar algo como uma coisa»
(ou como uma qualidade de algo) é o que no caso normal cons­
titui o «conteúdo form al» da significação nominal. Decerto
é possível que o conteúdo formal geralmente existente apenas
de modo funcional seja por assim dizer explicitado de maneira
que o traço correspondente da estrutura formal do objecto se
pense explicitamente do mesmo modo que as suas determinações
materiais. (É este, p. ex., o caso da significação nominal com­
posta das palavras: «a determinação vermelha da coisa mesa».)
É este o modo, por assim dizer, anómalo de aparecimento do
conteúdo formal da significação nominal da palavra. A possibi­
lidade de semelhante «explicação» prova também da melhor
maneira que o conteúdo formal existe na significação nominal
da palavra.
Ad 4) e 5) Por fim, aparece sempre de modo funcional e por
vezes também explícito na significação nominal da palavra um
momento existencial de caracterização. No significado da expres­
são «capital da Polônia», p. ex., a cidade não é só visada como
«capital», etc., mas também como algo que é «real» segundo
o seu modo de ser. E análogamente, o objecto da significação
«triângulo equilátero» — no sentido matemático— é concebido
como algo idealmente existente. Este momento da caracterização
existencial não deve, porém, confundir-se com o momento da
posição existencial. Assim, p. ex., o nome «Ham let» (no sentido
da figura do drama de Shakespeare) significa um objecto que
nunca teve nem terá existência real, mas se acaso existisse per­
tenceria às objectividades do modo existencial «realidade». Há
contudo um momento de caracterização existencial na plenitude
90

da significação deste nome, mas falta-lhe absolutamente a posição


existencial de realidade. A expressão «capital da Polonia», em
contrapartida, pode usar-se de modo que na sua significação a
posição existencial de realidade apareça ao lado do momento
de caracterização existencial. Neste caso o seu objecto não só é
pensado como real segundo o modo de ser, mas ao mesmo tempo
como existindo de facto realmente. Também podemos usar a
expressão «H am let» de modo a conter além do momento da
caracterização existencial ainda o de uma posição existencial
particular que, embora não ponha o objecto correspondente na
realidade espaço-temporal de facto existente, o situe contudo na
«realidade» fictícia criada pelo conteúdo da significação do drama
shakespeariano. Aqui há situações particularmente difíceis que
adiante serão estudadas. Por enquanto trata-se apenas de dis­
tinguir os dois elementos existenciais: o momento da caracte­
rização existencial e o da posição existencial e de salientar a
sua existência potencial já nas próprias expressões nominais e
não só em proposições ou em juízos.
Os momentos ou grupos de momentos da significação nomi­
nal da palavra que distingui encontram-se em dependência fun­
cional mútua e diferente, de modo que, p. ex., uma distinção no
conteúdo material pode implicar distinção correspondente no
conteúdo formal. Sob este aspecto vigoram determinadas leis
a priori que não podem ser aqui examinadas pormenorizadamente.
Como se mostrará em seguida, a distinção dos diferentes
momentos contidos numa significação nominal ainda não é sufi­
ciente para a sua caracterização nominal. Esta distinção é,
porém, indispensável para progredir nesta caracterização em
confronto com outros tipos de unidades de significação.

b) A diferença entre nomes e palavras funcionais

Para nos aproximarmos da essência da expressão nominal


começamos por confrontá-la com as «palavras funcionais».
À primeira vista a distinção entre duas espécies de palavras
parece muito fácil de efectuar na medida em que, em primeiro
lugar, as expressões nominais se distinguem na sua significação
pela existência do factor de direcção e do conteúdo material,
que faltam às palavras funcionais, e, em segundo lugar, estas
exercem funções diversas enquanto as expressões nominais não
podem exercer nenhuma função.
Entretanto, esta distinção não é assim tão fácil de efectuar.
É que, em primeiro lugar, há entre as palavras puramente fun­
91

cionais algumas cuja função reside sobretudo em ter na sua


significação um factor de direcção intencional: são aquelas pala­
vras funcionais «demonstrativas» distinguidas por A. Pfaender e
que aparecem em formas diversas como, p. ex., «este», «aquele»,
«aqui», etc. Se este factor de direcção é variável ou constante
e em que direcção aponta isso depende apenas das outras signi­
ficações nominais de palavras em que aparece integrado !. Por
outro lado, também não é verdade que palavras funcionais não
possuam conteúdo algum material nem tão-pouco algo que lhe
seja análogo. Pois tal conteúdo têm-no todas aquelas palavras
funcionais de que Pfaender com razão afirma estabelecerem uma
relação «real» entre os objectos. Se, p. ex., considerarmos a
expressão «junto de» isoladamente o seu significado por si só
não determina nenhum objecto no seu carácter qualitativo, não
lhe atribui nenhuma propriedade, porque ela não «projecta»
nenhum objecto. Quando, porém, um objecto é «projectado»
pela significação nominal de uma palavra relacionada com a
respectiva palavra funcional, v. gr., na expressão «a cadeira
junto da mesa», a expressão «junto de» caracteriza o objecto
do nome correspondente quanto à sua situação no espaço rela­
tivamente a outro objecto. Existe, portanto, neste caso um aná­
logo do conteúdo material de uma significação nominal da
palavra. Finalmente, também não é verdade que as significações
nominais das palavras não possam exercer quaisquer funções
em relação aos seus objectos. Em geral, contêm já de modo
funcional o conteúdo formal. As funções próprias das significa­
ções nominais, porém, só se evidenciam nitidamente quando a
significação nominal da palavra aparece como parte de uma
significação nominal composta2. Tomemos, p. ex., a expressão
«a bola vermelha lisa», considerando as mudanças que se passam
nas significações das palavras «vermelha» e «lisa», tomadas a
princípio isoladamente, quando se transformaram em elementos
constitutivos da referida expressão composta. Cada uma destas
palavras tem, no seu isolamento, ao lado do próprio conteúdo
material e formal ainda um factor de direcção que visa o seu
objecto próprio. Desde que se tornam elementos constitutivos

1 Cf. a este respeito também as observações de Husserl sobre as sig­


nificações «ocasionais» ( Logischen Untersuchungen, vol. II, Investigação I).
: As significações nominais das palavras exercem funções muito espe­
ciais — sintácticas — quando são partes de uma frase. Deve, contudo,
salientar-se que estas funções já são possíveis em expressões nominais
compostas que não constituem partes de uma frase inteira.
92

da referida ¡expressão composta exercem funções bem determi­


nadas em relaçáo aos seus objectos. Sobretudo o seu factor de
direcção é neste caso estabilizado e actualizado de um modo
particular, absoluta ou apenas relativamente é que incide sobre
o mesmo objecto indicado pela palavra «bola». Se o factor de
direcção desta palavra já está estabilizado 2 também está o factor
de direcção da palavra «vermelho» (ou «liso ») e alcança assim
a sua plena actualização. Se, porém, o factor da direcção do
substantivo é ainda variável o resultado é uma «confluência»
de todos os três factores de direcção. Esta confluência deve-se
a duas circunstâncias diferentes. Em primeiro lugar, obtém-se
uma modificação dos limites de variabilidade dos factores de
direcção de todas as palavras que aparecem na respectiva expres­
são, no sentido de se restringirem mütuamente os limites de
variabilidade a princípio diferentes, resultando daí um único
limite de variabilidade do factor de direcção de toda a expressão
composta. Em segundo lugar, esta adaptação mútua dos limites
individuais de variabilidade só é possível pela fusão simultânea
dos respectivos factores num só, de maneira que toda a expres­
são se dirige para um único objecto no caso de o factor de
direcção ser unirradiado e se estabilizar. Porém, esta fusão dos
factores de direcção num só constitui, por assim dizer, apenas
a expressão extrínseca de uma unificação muito mais profunda
das três produções de significação numa única unidade, unifi­
cação esta que por sua vez radica nas funções especiais exerci­
das pelos atributos que aparecem como adjectivos. Se, p. ex., a
palavra «vermelho» é tomada isoladamente ela projecta, por
meio do seu conteúdo material e formal, um objecto qualitati­
vamente determinado apenas pela qualidade do «vermelho» mas
ao mesmo tempo indeterminado a respeito da sua natureza,
portanto acerca daquilo que ele e 3. A significação plenamente

1 Se estas palavras são consideradas isoladamente o seu factor de


direcção é variável e potencial.
2 É preciso notar que para isto ainda não basta o artigo definido.
Por esta razão, o artigo definido é sublinhado na língua alemã quando
se pretende que a expressão respectiva tenha um factor de direcção
completamente estabilizado.
1 Sob este aspecto, a palavra «vermelho» isolada é diferente da pala­
vra «vermelho» predicada quando esta aparece, p. ex., na frase «a bola
é vermelha». N o segundo caso a palavra — por si m esm a— não projecta
nenhum objecto próprio. A sua significação não é autónoma. É, porém,
autonomizada pela palavra «é » e pelo sujeito da frase. Neste caso exerce
a função de determinar a característica que é atribuída ao objecto do
sujeito por todo o predicado.
93

desenvolvida, mas por isso mesmo indubitàvelmente modificada,


da palavra «vermelho» pode, portanto, ser indicada pela expres­
são «algo vermelho». Sob este aspecto a sua significação é depen­
dente no sentido de exigir um complemento que determine o
suporte da essência desse objecto. Porém, desde que se encontre
relacionada com o substantivo «a bola» não tem objecto inten­
cional próprio, e não o tem precisamente por exercer uma função
inteiramente determinada em relação ao seu objecto. Acrescen­
tada como «atributo» ao substantivo trata o seu próprio objecto
intencional como se este fosse o projectado pelo substantivo e
definido na sua natureza como «bola». A função do adjectivo
consiste aqui portanto: 1) na identificação do seu objecto inten­
cional com o do substantivo e, simultáneamente, 2) na qualifi­
cação mais pormenorizada do substantivo pelo momento «ver­
melho», de modo que ele sofre uma modificação correspondente
ao ser portador, como correlato da expressão toda «bola vermelha
lisa», destas mesmas determinações qualitativas que no apareci­
mento isolado dos respectivos atributos foram determinações
•qualitativas dos seus objectos intencionais K
O nosso exemplo mostra, portanto, que as significações
nominais das palavras podem exercer determinadas funções em
relação às objectividades correspondentes. Por conseguinte, tam­
bém não é possível fazer a distinção entre significações nominais
e funcionais das palavras sob o aspecto do exercício e do
não-exercício daquelas funções, não ficando por isso a essência
das significações nominais das palavras plenamente esclarecida.
Com certeza surge a ideia de que seria possível fazer a distinção
entre as duas espécies de significações a partir da diferença
das funções por elas exercidas. Todavia, a grande multiplicidade
das funções a considerar e a complexidade das suas espécies e
relações específicas acarretar-nos-iam grandes dificuldades à solu­
ção do problema. Assim, é muito mais indicado ver esta dife­
rença condicionada sobretudo pela particularidade do conteúdo

1 A. Pfaender foi o primeiro a chamar a atenção, na sua Logik (/.


c., pp. 306 e segs.), para o facto de as significações nominais das palavras
(«conceitos de objectos» na terminologia dele) exercerem determinadas
funções em relação aos seus objectos. As funções por mim atrás assina­
ladas são, porém, diferentes das que Pfaender tem em vista. Também
não posso concordar com os pormenores da sua concepção. Levar-nos-ia,
porém, muito longe discutir estes pontos expressamente. A seguir voltarei
ainda a referir-me ao que considero verdadeiro na concepção de Pfaender.
94

formal das significações nominais. Enquanto estas determinam


(«projectam »), com a cooperação essencial do conteúdo formal,
sobretudo um objecto intencional, exercendo diferentes funções
só nestes objectos já constituídos, as palavras «funcionais» não
são capazes de projectar intencionalmente e desde si mesmas
um objecto. Só exercem várias funções apenas formal ou também
materialmente determinantes de objectividades que são projec-
tadas por outras significações, geralmente nominaisl. Assim,
parece que o conteúdo formal, produtor dos objectos das expres­
sões nominais, é o que as torna precisamente nominais e que,
portanto, é correcto caracterizá-las com Pfaender como «con­
ceitos de objectos». Entretanto novas dificuldades surgem quando
se considera que, em primeiro lugar, as expressões nominais
podem em boa parte distinguir-se umas das outras pelos seus
conteúdos formais (podem aparecer nelas conteúdos formais que
projectam a estrutura formal da coisa, da qualidade, do estado,
do processo, da actividade, da relação, etc.) e, em segundo lugar,
pelo menos alguns destes conteúdos formais podem aparecer
em significações de palavras radicalmente diferentes das expres­
sões nominais, a saber, nas expressões meramente verbais. A res­
peito do primeiro caso é muito vantajoso fazer contrastar as
expressões nominais com as verbais, o que nos será útil ainda
pela razão de assim nos prepararmos, ao mesmo tempo e da
melhor maneira, para a captação da essência da frase.
Outro ponto de distinção a indicar entre as significações
nominais das palavras e as palavras funcionais consistiria na
necessidade de discriminar na significação de um nome muitos
elementos heterogéneos, enquanto esta variedade não existe nas
significações das palavras funcionais, pois cada uma destas pala­
vras parece exercer uma única função. Entretanto, é de novo
problemático se será possível afirmar isto em geral considerando
que há muitas palavras funcionais que exercem ao mesmo tempo
várias funções (como o «é » na frase categórica, que geralmente
exerce tanto a função afirmativa como ainda a predicativa).
Acontece, porém, que é sempre possível manter separadas em
casos como este as funções individuais e remeter cada uma
delas para outra palavra funcional, o que não é possível tra­

1 É esta a razão por que a ligação de palavras apenas «funcionais»,


como, p. ex., «e», «ou», «é», não conduz a nenhuma unidade de significação.
95

tando-se de um nome. Assim, não se pode, p. ex., formar signi­


ficações nominais que contivessem somente o conteúdo material
sem qualquer conteúdo formal e sem o factor da direcção
intencional. A plena significação de um nome parece, por con­
seguinte, constituir um todo intrínsecamente coerente, composto
por elementos heterogéneos mas convenientemente seleccionados,
enquanto nada disto aparece nas palavras funcionais.

c) A significação do verbo finito

Vamos estudar agora o verbo finito isolado em qualquer


forma definida, como, p. ex., «escreve», «está», «vou», «ama-
tur», etc. Haverá na plenitude da sua significação os mesmos
elementos heterogéneos cuja existência nas significações nominais
de palavras demonstrámos?
É antes de mais indubitável que devemos falar também de
um «conteúdo material» do verbo finito. Tomando dois verbos
de «form a gramatical» exactamente a mesma, p. ex., «fala » e
«anda», o «conteúdo material» é — formalmente falando — aquilo
por que as significações destas palavras se distinguem. Em ambas
as palavras trata-se — como é comum dizer-se— de uma «acti­
vidade», mas diferente em cada uma delas, materialmente deter­
minada de outro modo. Em contrapartida, nas palavras «anda»,
«andou», «andaremos», etc., apesar da diferença da «form a gra­
matical» aparece algo idêntico: em cada um dos casos trata-se
de uma actividade de espécie exactamente idêntica. Por outras
palavras: o conteúdo material do verbo finito é aquele elemento
da sua significação plena que decide de que actividade, de que
qualidade de actividade em cada um dos casos se trata. Por
conseguinte, parece de início que entre o conteúdo material da
significação nominal de uma palavra e o de um verbo finito
não há diferença. A favor disto parece depor também o facto
de a comparação das palavras «fala» e «falar» nos induzir a
fixar um elemento idêntico, i. é, de em ambos os casos se tratar
de uma actividade de espécie exactamente idêntica. Residiria,
portanto, a diferença entre as duas espécies de palavras sim­
plesmente em aparecer nas suas significações outro conteúdo
form a l? Não será, porém, o conteúdo formal dentro da signi­
ficação da palavra o que determina a estrutura formal do
intencionalmente visado, e não terá o visado intencionalmente
96

pelas palavras «fala» e «falar» a mesma estrutura formal, pre­


cisamente a de uma «actividade»? É certo que ela é visada uma
vez «substantivamente», outra vez «verbalmente»; mas não será
esta uma circunstância de natureza meramente «gramatical»,
absolutamente irrelevante para a significação das palavras?
A ninguém ocorrerá que se trata, ao empregar a palavra «o escre­
ver», de uma coisa só porque a palavra é um «substantivo».
E igualmente ninguém se lembra de julgar que se trata de uma
actividade quando alguém diz «o céu azuleja» \ Apesar da
«expressão» verbal «meramente gramatical», o azul do céu é
aqui considerado uma qualidade sua; aparece neste caso num
«verbo» um conteúdo formal que é freqüente aparecer em signi­
ficações nominais de palavras. Não haverá, pois, nenhuma dife­
rença essencial entre as significações nominais e verbais das
palavras? 2
Isto deve ser firmemente negado, ainda que algumas das
afirmações alegadas sejam verdadeiras. Resultam, porém, de
uma análise superficial dos dois tipos de significações. Antes
de mais deve observar-se que a significação nominal da palavra
contém um factor de direcção intencional, enquanto no verbo
finito semelhante factor de direcção, que indicaria a actividade
qualificada pelo conteúdo material do verbo (p. ex., «escreve»),
falta completamente3. A ausência ou a presença deste factor

1 É certo que este exemplo é uma expressão pouco usual na linguagem


viva. Quando em alemão se usam na linguagem viva expressões verbais
(«os prados reverdecem») o seu sentido é considerado como verbal.
2 Naturalmente, não tenciono eliminar esta distinção em relação ao
aparecimento de conteúdos formais análogos. Há, com efeito, investiga­
dores que a negam. A. Marty, p. ex., não vê distinção nenhuma na signi­
ficação das duas espécies de palavras, procurando-a apenas na «form a
exterior e interior da língua» (cf. Satz und Wort). É certo que Marty entende
por «significação» uma vivência psíquica, portanto algo que nada tem a
ver com a significação na nossa acepção.
3 Note-se que entendo aqui o verbo finito em função puramente
verbal, limitando-me a estudá-lo apenas sob este aspecto. É possível em­
pregar o verbo finito também com função nominal. Neste caso, a propo­
sição que acaba de ser formulada não vale. Se à pergunta: «O que é que
ele faz?» respondo: «Escreve», denomino assim apenas a actividade já
projectada pela própria pergunta e pressuposta como existente, indico
o seu quê ainda indeterminado. Neste caso, o verbo «escreve» tem um
factor de direcção pronunciadamente intencional para a actividade exer­
cida. Que o verbo finito dispõe de um factor de direcção, embora inteira­
mente diferente, mesmo no uso meramente verbal mostraremos em breve.
97

de direcção é simples indício da distinção mais profunda das


duas espécies de significação. Esta distinção reside no tipo
inteiramente diferente da intencionalida.de, no modo como os
correlatos intencionais são intencionalmente criados pelas cor­
respondentes significações. Se a este respeito confrontarmos,
p. ex., as palavras «o escrever» e «escreve» (portanto, palavras
com o conteúdo material e formal exactamente o mesmo) esta
distinção salta logo à vista. No primeiro caso é «projec-
tada» determinada actividade (ou, noutras expressões nomi­
nais, uma «coisa», uma «qualidade», um «estado», etc.) como
algo acabado e por ser acabado como ente, como algo em si
determinado e delimitado desta ou daquela maneira e, por ser
determinado, abrangido de uma só vez como um todo; assim
projectada, essa actividade é posta diante e oposta à palavra
significativa (ou ao EU que emprega a palavra e percebe as
intenções nela contidas). Só nesta oposição 1 é que a actividade
ou o «objecto» respectivo da significação nominal se torna
o ponto de encontro directo do factor de direcção intencional2.

1 Cf. a «posição de distância» que Hedwig Conrad-Martius considera


como característica do modo de doação objectiva. Cf. Zur Ontologia und
Erscheinungslehre der realen Aussenwelt, Jahrbuch für Philosophie,
vol. III, p. 470.
2 A. Pfaender, que neste assunto apenas tem em vista os «conceitos
principais» — na sua terminologia— enquanto nós pretendemos determinar
todas as significações nominais das palavras, portanto também alguns
dos seus «conceitos secundários», diz {Logik, l. c., pp. 307 e segs.): «Os con­
ceitos principais, portanto, não se caracterizam por se referirem a objectos
autónomos, pois num conceito principal pode ser ao mesmo tempo visada
intencionalmente a dependência do objecto a que se refere. (...) Pelo con­
trário, o comum e decisivo é que os conceitos principais mentalmente
contornem e delimitem com rigor o objecto visado, seja ele autónomo
ou não, o isolem em si mesmo, numa palavra, o completem ou substan­
tivem e mentalmente.» E Pfaender acrescenta: «Se chamamos a esta forma
de autonomia categoria lógica, esta categoria lógica deve ser rigorosamente
distinta da categoria real da “coisa” .» (L. c., p. 308.) É com certeza correcto
que Pfaender faça esta última distinção e insista em que as objectividades
de estrutura formal muito diferente podem ser determinadas por signifi­
cações nominais das palavras e, por conseguinte — depois da introdução
das nossas distinções e da nossa terminologia— , às significações nominais
das palavras não é essencial possuir determinado conteúdo formal que
projecte a estrutura da coisa. Não é, porém, suficiente confrontar aqui
«autonomia» e «heteronomia» e ainda afirm ar que algo de «realmente»
dependente se torna «mentalmente» autónomo, sobretudo porque não é
claro como e por que meio uma e a mesma objectividade pode ser abran­
gida por «categorias» tão contrárias uma à outra.
98

Portanto, não é este ou aquele constitutivo do conteúdo


formal e material de uma significação da palavra que decide
sobre o facto de uma significação ser «nominal», mas sim o
modo de projectar, de criar, o tipo particular da intencionalidade
destes conteúdos (que se reflecte nas características há pouco
indicadas do correlato). E este modo, este tipo, também pode
ser caracterizado, sob outro aspecto, como um projectar estático,
através do conteúdo formal, de um esquema formal «acabado»
(qualquer que seja a variação) que, através do conteúdo material,
por assim dizer, de novo «estáticamente» é «preenchido» com
momentos qualitativos. Naturalmente, a expressão «preencher»
um esquema é apenas uma imagem que se não deve entender
no sentido de haver momentos qualitativos privados de qualquer
estrutura formal e esquemas formais sem qualquer determinação
qualitativa. Ambos são inseparáveis. Apesar disso, a expressão
figurativa de preenchimento e atribuição estáticos justifica-se
aqui plenamente por caracterizar o modo especial da intencio­
nalidade nominal. Este modo nominal da determinação inten­
cional não é o único possível. Outro modo encontra-se precisa­
mente nas impressões puramente verbais. O modo nominal de
determinação, porém, possibilita o factor de direcção intencional
directamente indicativo — daqui em diante por nós designado
como «n om in al»— e arrasta-o necessàriamente consigo. É que
a significação nominal da palavra é uma unidade orgánicamente
estruturada, em que todos os elementos não só pertencem uns
aos outros pelo sentido e mütuamente se condicionam mas em
que todos «actuam» — se for permitido o term o— também
«num único sentido». O resultado total da cooperação de todos
os seus elementos que assim funcionam é precisamente aquilo
a que se pode chamar a «objectivação» do intencionalmente
visado como tal e é característico da função denominadora da
expressão nominal. A «objectivação» — que Pfaender tem pro-
vàvelmente em vista ao falar da «substantivação»— nem se rela­
ciona nem contradiz a respectiva estrutura formal da objecti-
vidade intencional projectada pelo conteúdo formal. Tratando-se,
p. ex., de uma actividade a objectivação reside meramente em
captar esta actividade estáticamente no seu ser-activo como
sujeito de características especiais, como um «ser assim ao acon­
tecer». Não se relaciona com a estrutura formal da respectiva
objectividade porque, p. ex., a mesma actividade também pode
ser projectada de outro modo — precisamente pelo verbo finito.
99

Não contradiz também essa estrutura formal porque tudo é


«sujeito de características», na medida em que é algo, portanto
na medida em que é, independentemente de ser em si mesmo
acontecimento, actividade, estado, relação ou enfim coisa subs­
tancial totalmente concluída, autónoma no seu ser. Só não é
necessário que esse algo seja percebido no seu «ser sujeito».
A significação nominal da palavra pelo tipo particular da sua
intencionalidade só faz, por assim dizer, ressaltar este «aspecto»
sem modificar nada na estrutura particular formal projectada
pelo respectivo conteúdo formal
Em contrapartida, o caso de um verbo finito é inteiramente
diferente. A significação, p. ex., do verbo «escreve» não induz
à captação de algo enquanto sujeito de características. Por isso,
não só lhe falta o factor de direcção directamente indicativo,
mas também o conteúdo material desta significação determina
qualitativamente a actividade respectiva de um modo total­
mente diferente do que sucede no caso do conteúdo material
nominal. Quando um sujeito de características não é projectado
ou quando algo não é apresentado sob o aspecto de um sujeito
de características também a qualificação não é efectuada no
aspecto da qualificação de um sujeito de características. Con­
tudo, também no verbo finito se efectúa uma qualificação, de
maneira que a seu respeito tem plena justificação falar-se
de «conteúdo material». Só o modo da qualificação deve ser
inteiramente diverso. Pergunta-se apenas que modo seja este.
Na expressão nominal «o escrever» é captada estáticamente
— como dissemos — uma actividade enquanto «ente de modo

1 N o vol. II do meu livro publicado em 1947/48 em língua polaca,


A discussão acerca da existência do Mundo, demonstrei que uma activi­
dade, ou, numa expressão mais geral, um processo ou uma relação, tem
uma curiosa estrutura dupla. Assim, um processo é, por um lado, uma
totalidade de fases concebida em crescimento que se seguem umas às
outras e, por outro lado, é um sujeito estruturalmente único de proprie­
dades que no decurso das fases que se seguem umas às outras ganha
qualidades sempre novas, não chegando nunca à plenitude da sua cons­
tituição durante o decurso do processo. A análise aqui apresentada da
distinção entre significações nominais e puramente verbais está de acordo
com isto.
100

determinado». Em comraposrçao, nao e este de modo algum o


caso da palavra «escreve». Aqui a actividade é — se nos é per­
mitido empregar a palavra — dinámicamente desenvolvida como
algo que acontece, que está a ser, ou melhor, como um acon­
tecer, um devir, um realizar-se \ Desenvolve-se então e é apre­
sentada no seu carácter de puro suceder, sem ser captada como
algo, como sujeito de características. O «desenvolver-se no puro
suceder» é a operação específica do verbo finito. Este puro
suceder é naturalmente desenvolvido como algo de determina­
damente qualificado e o facto de assim acontecer depende exclu­
sivamente do conteúdo material do verbo. O que distingue o
conteúdo material e formal do verbo finito do da significação
nominal de uma palavra e exclui a presença do factor nominal
de direcção intencional não é nem esta própria qualificação nem
tão-pouco o constitutivo do conteúdo formal do verbo (que no
caso geral projecta a estrutura formal de um suceder, de uma
«actividade») — porque ambos podem aparecer também no sig­
nificado nominal de uma palavra — mas o modo inteiramente
próprio do desenvolvimento. Só este modo especial de desenvol­
vimento «no puro acontecer» torna também compreensível que
os verbos finitos possam aparecer em diversas «formas tempo­
rais» e desenvolver a respectiva «actividade» ora como algo que
está a acontecer «agora» (ou, mais exactamente, como o acontecer
agora, qualificado por determinação material), ora como o ter

1 Lutamos a este respeito com uma dificuldade inevitável de expressão


lingüística. É que ao analisarmos a significação do verbo finito e o seu
correlato intencional devemos chamar a atenção do leitor para aquilo
que temos em vista, e isto acontece forçosamente por uma indicação
denominadora. Ao procedermos assim temos de nos servir de significações
nominais das palavras e introduzir, por conseguinte, o modo objectivador
L. intencionalidade, que atribui ao correlato intencional de um verbo finito
j.Tecisamente aquilo que no emprego simples do verbo finito não existe
u que é necessário eliminar quando se trata da reprodução fiel da situação
existente no verbo finito. Em rigor, esta situação não pode ser indicada
por qualquer significado nominal das palavras e só pode ser p^ercebida
tuitivamente penetrando no sentido do verbo finito. Por isso, todas as
nossas maneiras de falar são apenas meios técnicos para facilitar ao leitor
^r.La penetração intuitiva e pretendem ter o valor de «determinações» rigo­
rosas da situação a intuir.
101

acontecido no passado determinadamente qualificado, e tc .1 Em


significados nominais de palavras este desenvolvimento de mera
caracterização temporal não é possível. É certo que podemos
falar de um «acontecimento passado», de um «estado actualmente
existente» e até de uma «casa que agora existe», mas isto só é
possível porque no conteúdo material de uma significação nomi­
nal composta aparece um momento especial que propriamente
determina, do ponto de vista do tempo e à maneira do nome,
a objectividade projectada como absolutamente intemporal pelos
restantes elementos do conteúdo material e formal. Por conse­
guinte, nem no conteúdo material nem no formal da significação
verbal aparece tal elemento e apesar disso o elemento temporal
é eo ipso introduzido pelo modo especial da intencionalidade

1 Esta intencionalidade especial do «desenvolver» no acontecer tem­


poral é talvez a que Pfaender tem em vista ao escrever dos «conceitos de
acção» na sua acepção estas frases a princípio difíceis de compreender
e em rigor insustentáveis: «Distinguem-se, porém, essencialmente dos con­
ceitos atributivos por mentalmente vestirem da forma de um agir tem­
poralmente distendido o objecto concebido como dependente. Contudo
não afirmam de modo algum que o próprio objecto seja um agir, não lho
acrescentam realmente.» [Logik, 1. c., p. 311.) Julgo insustentáveis estas
frases porque 1) os «conceitos de acção» (verbos finitos) não «projectam »
objectos, sujeitos de características; este «aspecto» da «actividade» desen­
volvida (do acontecer) permanece aqui oculto ou, quando nos cingimos
rigorosamente ao puramente intencional, não determinado; 2) nem os
conceitos, na acepção de Pfaender, nem as significações das palavras
como tais podem «afirm ar» alguma coisa. Por outro lado, Pfaender tem
razão ao observar que nem os correlatos intencionais do verbo finito
precisam de ter a estrutura formal da actividade (cf. «o céu azuleja», um
exemplo de Pfaender) nem esta estrutura formal depende de qualquer
modo da especial intencionalidade de desenvolvimento do verbo nem é
afectada por ela. Quanto ao modo de desenvolvimento, são notáveis a
este respeito as proposições de H. Lotze na sua Logik: «Para pensarmos
na sua plenitude o sentido dos verbos que acabámos de alegar como
exemplo é preciso associarmos vários conteúdos singulares através de um
movimento da nossa representação, movimento esse que decerto só existe
expressamente no tempo, mas todavia é independente de todo o curso
temporal a respeito do que significa ou pretende exprimir. Num a palavra:
O sentido geral da forma verbal não é um acontecer mas sim uma relação
entre vários pontos de referência, e esta relação pode ocorrer tanto entre
conteúdos que existem conjunta e intemporalmente apenas no mundo do
pensamento como entre aqueles que pertencendo à realidade são suscep­
tíveis de uma modificação temporal.» (L. c., pp. 18 e segs.) É certo que
não é lícito falar-se de um «movimento da nossa representação» nem de
relações entre vários pontos de referência. Todavia parece-me haver nisto
uma espécie de pressentimento daquilo a que eu atrás chamei «desen­
volver» uma actividade.
102

característica dos verbos finitos K Por outras palavras, este modo


de apresentação, com a forma do acontecer, temporal e de qual­
quer forma sempre originalmente caracterizador é a função
própria do verbo finito, função essa que, ao mesmo tempo,
distingue essencialmente o modo de aparecimento e realização
dos conteúdos verbais, materiais e formais de outras unidades
de significação.
A distinção entre significações nominais e verbais de palavras
ainda mais nitidamente ressaltará quando se considere que todo
o verbo finito tomado isoladamente tem uma significação que
precisa de complemento (significação «dependente» no sentido
de E. Husserl)2, enquanto pelo menos pode haver significações
nominais autónomas. Este facto por si só já indica que o verbo
finito se distingue pela pertença particular a uma unidade supe­
rior de sentido — que é a frase — , de maneira que isolado é o
resultado de uma abstracção especial. A necessidade de comple­
mento do verbo finito isolado revela-se num elemento particular
do verbo finito, análogo ao factor nominal de direcção inten­
cional, e que é preciso salientar agora.
Uma das razões de um verbo se tornar verbo finito é — como
os gramáticos dizem — aparecer em determinada «pessoa» e
«número». A este respeito, como se sabe, são ainda possíveis
as duas seguintes formas diferentes: ou o simples amat, legi­
mus, etc., ou então o normal, p. ex., na língua alemã «ele escreve»,
«nós vamos», etc. Quanto a isto é preciso ter em conta sobretudo
que tanto «am o» como «eu penso» (ou «ele escreve») podem ser
empregados e entendidos de dois modos absolutamente diversos:
primeiro, como frase; segundo, como verbo finito isolado. Como
se apresenta a situação no primeiro caso só mais adiante estuda­
remos (§ 19.°). Aqui é preciso salientar que é perfeitamente pos­
sível considerar «am o» e «ele escreve» não como frases mas
como verbos isolad.os, p. ex., ao procurar esclarecer a distinção
do sentido de duas formas latinas como «amabam» e «amarem»
ou ao ensinar a alguém a forma alemã da terceira pessoa do
singular dizendo: «ele pensa». Neste caso, nem «ele» é empregado
como sujeito de uma frase nem «pensa» como o seu predicado.
As palavras «eu», «tu», «ele» («ela») explicitam apenas determi­
nado elemento da significação do verbo finito, necessàriamente
contido na sua plenitude significativa e que fica implícito nou­
tras línguas. Este elemento não deve ser identificado com o

1 Também a form a do participio não declinável é apenas possível


como modo do desenvolvimento verbal, intencional, universal.
2 Cf. A. Pfaender, Logik, p. 312.
103

sujeito de uma frase. Se não houvesse nenhuma diferença entre


«eu penso» como frase e «eu penso» como verbo finito isolado
(ou entre o sentido de «eu» em ambos os casos) seria comple­
tamente incompreensível porque é possível dizer, p. ex., em
latim: «C. J. Caesar exercitum contra hostem misit» sem que
houvesse um sujeito duplo nesta frase. Seria igualmente inex­
plicável porque se diz, p. ex.: «Exercitus Romanus hostem vicit»
em vez de dizer simplesmente «hostem vicit» se a palavra «vicit»
já contivesse o sujeito da frase r. Se não estou em erro, a forma
latina do «venit» isolado é mais adequada ao seu significado
do que a alemã «ele (ela) vem » porque esta forma vai, por assim
dizer, demasiado longe ao explicitar determinado elemento da
significação verbal dando-lhe, pelo emprego de uma palavra
especial, a aparência de um «conceito de sujeito» de urna frase
— para usarmos o termo de Pfaender — alheio a este elemento
da significação ou representando um complemento ilícito dele.
A significação completa de um verbo estimula na verdade a
linguagem a explicitar o elemento nela contido, que em muitas
línguas apenas se exprime na «form a gramatical» da «pessoa»
por uma palavra especial, no caso presente com função demons­
trativa. O elemento que neste caso força a explicitação é um
factor demonstrativo, ou melhor, remissivo, imánente a todos
os verbos finitos. A acção desenvolvida pelo conteúdo material
e formal do verbo aparece aqui de antemão pensada como exer­
cida por qualquer sujeito da acção 2. Este factor remissivo pro­
cura, por assim dizer, qualquer sujeito (executante) (passivo ou
activo) da acção. O verbo «am at» diz-nos, por assim dizer, que
deve haver alguém que «am a» desde que este «am ar» tenha de
se realizar, de acontecer. Mas isto ainda não significa que
este «procurar» um sujeito tenha alcançado o seu fim, por outras
palavras, que haja um executante que o realize e que a respectiva
actividade dele dimane, por ele seja originada, executada ou
sofrida. Este fim só se consegue ná frase. No verbo finito isolado,

1 É certo que nos textos latinos podemos encontrar muitas frases


da forma de «hostem vicit». Em primeiro lugar, porém, são frases niti­
damente elípticas, cujo sentido é completado pelo contexto das frases
que se seguem; em segundo lugar, aparecem como frases, de maneira que
o leitor desde o princípio conta com a função das palavras «vicit»,
«am o», etc., que só na frase podem desempenhar. Que a possam exercer
não o pretendemos negar. Afirmamos apenas que neste caso a significação
é diferente da que têm quando são isoladas. E é sobre este último caso
que incide o nosso estudo.
: É preciso distinguir rigorosamente o sujeito de uma acção (activa
ou passiva) do sujeito das características.
104

porém, este "sujeito não só não é determinado mais explicitamente


(trata-se sempre de qualquer «ele», «ela»), mas nem sequer é
posto. É apenas exigido; indica-se aqui o sujeito da acção en­
quanto exigido. Assim, a acção a desenvolver-se é apresentada
sempre «puramente no acontecer» e não como uma acção «na
realidade» exercida pelo respectivo sujeito. Na existência do
factor de procura remissiva, a que chamaremos factor de direc­
ção verbal, surge nitidamente a dependência de qualquer verbo
finito isolado. Este factor do verbo isolado é sempre variável
e potencial, deixa o sujeito da acção indeterminado e, por assim
dizer, não o alcança. O sujeito da acção é apenas determinado
quanto ao número pela simples forma do verbo finito, quer se
trate de um só ou de uma pluralidade de sujeitos. Esta plura­
lidade, por sua vez, pode ficar indeterminada, como acontece
110 «plural», ou pode ser exactamente determinada, como sucede
no dual. Em função disto diferencia-se o factor de direcção verbal
remissiva. Distinguem-no do factor nominal de direcção os
seguintes aspectos: 1) nunca se pode converter, no isolamento
cio verbo, num factor constante, actual, que alcance o objecto
activo (o que é possível nos significados nominais, isolados, das
palavras); 2) não incide sobre a acção desenvolvida pelo con­
teúdo material e formal do verbo, remetendo, pelo contrário,
precisamente para algo inteiramente diferente d ela 1.
Assim, cremos ter salientado e assegurado a diferença entre
as significações nominais e verbais das palavras 2.

§ 16. Estado actual e potencial da significação


da palavra

Notamos que a mesma palavra — e com significação idên­


tica — pode todavia ser empregada de modo diferente em casos
diversos, de maneira que apesar da identidade da significação

1 A. Pfaender não distingue o factor de direcção verbal, mas parece


que não deixa de ter em vista a situação por nós escrita ao afirmar:
«O objecto visado pelo conceito de acção é concebido de modo depen­
dente e unidimensional e está relacionado na forma activa do conceito
da acção com o sujeito mental da acção e na forma passiva com o objecto
da acção enquanto objecto que lhe oferece pleno apoio mental.» (Logik,
p. 312.)
2 As nossas distinções referem-se apenas às diferenças da estruturação
e das funções das significações das palavras, não considerando a questão
de estas diferenças concordarem, no sentido genético-linguístico, com as
diferenças entre as categorias de palavras que de facto se produziram
nas línguas singulares.
105

é possível verificar-se uma modificação níTitfca dusta. Dizemos,


p. ex.: «a palavra “ quadrado” significa (i. é, na nossa termino­
logia: tem o conteúdo material de) um paralelogramo equilátero
rectangular» (1). Mas podemos também dizer: «Um paralelogramo
equilátero rectangular com lados de qualquer comprimento» (2)
ou ainda: «Um quadrângulo equilátero rectangular com dois
pares de lados paralelos de qualquer comprimento» (3). Com
tais expressões indicamos a «significação» da palavra. E indu-
bitàvelmente todos devem admitir que a palavra «quadrado» tem
uma significação. Mas pergunta-se: Qual das três indicadas?
Porventura todas? Ou talvez nenhuma? E o que é que se pretende
dizer ao falar em «ter» uma significação ou em «significar»?
É que a palavra «quadrado» tem a sua significação própria e
as palavras diferentes que na sua variedade pretendem indicar
a significação da palavra «quadrado» têm todas as suas próprias
significações. Portanto, não se pode tratar aqui apenas de uma
só significação 1 mas de várias, que num sentido ainda por deter­
minar são todas «o mesmo». Que não sejam «o mesmo» em
todos os aspectos resulta já de a significação da palavra «qua­
drado» diferir das significações das expressões (1) a (3) pelo
menos na medida em que estas formam unidades de sentido
compostas, enquanto isso não se pode dizer no mesmo sentido
acerca da significação da palavra «quadrado». A que se refere
aqui a «mesmidade» destas significações e o que quer ela dizer?
E finalmente: entendemos realmente pela palavra «quadrado»
as significações compostas das expressões referidas ao pronun­
ciarmos, v. gr., a frase: «o quadrado tem duas diagonais iguais»?
Tentar-se-á talvez solucionar o problema presente observando
que, embora se trate de duas significações diferentes, estas não
deixam de ser «equivalentes» porque se referem a um e ao mesmo
ob jecto2. Entretanto, esta solução não é acertada. É verdade
que as duas significações se referem ao mesmo objecto no sen­
tido de terem um factor intencional de direcção idénticamente
orientado. Contudo, as expressões (1) «o quadrado» e (2) «um
paralelogramo com duas diagonais iguais e verticais» referem-se
igualmente ao objecto idénticamente o mesmo, desde que por
«objecto» se entenda «objectum materiale», e não obstante têm
significações diversas num sentido inteiramente diferente do
que é possível afirmar-se a respeito das significações atrás con­

' Como acontece, p. ex., com as palavras «mesa», «la table», «men­
sa», etc.
2 E referem-se ao mesmo objecto que transcende a significação e o
seu objecto intencional.
106

frontadas. Portanto, a referência a um mesmo objecto «material»


não é suficiente para a equivalência das significações.
Também o recurso eventual aos «objectos form a is»1 das
significações examinadas não resolve o problema. É certo que
nas expressões «o quadrado» e nas de (1), (2) ou (3) o objecto
formal é idêntico no sentido de se poder mostrar mediatamente,
pelo recurso ao objecto material correspondente, que os factores
de direcção das duas significações são idénticamente orientados.
Se, porém, se entende por «objecto form al» de uma significação
algo que possui exclusivamente aquelas propriedades qualitativas
que lhe são atribuídas explicitamente no conteúdo material da
significação os objectos formais das significações examinadas
são diversos precisamente na medida em que estas próprias
significações o são. Enquanto o objecto formal da palavra
«o quadrado» é algo de exclusivamente constituído pela quadra­
tura como momento qualificativo da sua natureza, o «paralelo-
gramo equilátero rectangular» é constituído por uma «,“°o?»/
im ediata»2 completamente diferente (a saber, pela «qualidade
de paralelogramo») e, além disso, é caracterizado por duas notas,
o ser equilátero e rectangular. Sempre que algo é constituído
pela quadratura, necessàriamente — graças às relações a priori
entre as essencialidades correspondentes — deve ser um para­
lelogramo e distinguir-se pelas duas características mencionadas.
Mas é esta uma situação ontológica que existe independentemente
do modo de determinação puramente significativo do objecto
intencional projectado pela significação. O objecto formal da
primeira significação, em contrapartida, é captado de um modo
diferente (quer a respeito da sua natureza qualitativa, quer em
relação à sua estrutura formal) do modo da segunda significação
e sob este aspecto os dois objectos formais diferem um do
outro. A suposta «mesmidade» das significações examinadas não
se deixa reduzir à mesmidade dos seus objectos formais.
Dir-se-á talvez que a significação da palavra «o quadrado»
implicitamente contém em rigor «o mesmo» a que a segunda
expressão explicitamente se refere. Mas só poderíamos concordar
com isto se soubéssemos o que no nosso caso estes «implicita­
mente» e «explicitamente» querem dizer e se tivesse sido de­
monstrado que realmente a primeira significação pode ser trans­
posta para a segunda através de uma «explicitação» (num sentido

1 Cf. A. Pfaender, Logik, pp. 273 e segs.


2 Cf. J. Hering, Bemerkungen iiber das Wesen, die Wesenheit und die
Idee, Jahrbuch für Philosophie, vol. IV, pp. 27 e segs.
107

ainda por definir). Vejo que se trata, aquí, por um lado,


de duas significações diversas pertencentes a um e o mesmo
conceito ideal da mesma objectividade e, por outro lado, também
de dois modos diversos, como os elementos de urna e mesma
significação podem aparecer \ É que faz parte do conceito de
quadrado ser constituido pela quadratura como momento qua­
litativo da sua natureza constitutiva e, por outro lado, abranger
por essência na sua natureza eo ipso o momento duplamente
dependente de «ser paralelogramo» e de possuir necessàriamente,
ao mesmo tempo, os atributos de «rectangular» e «equilátero».
Também a essencialidade «quadratura» é urna essencialidade
deduzida, equivalente à multiplicidade precisamente ordenada
das essencialidades de «paralelogramo», «rectángulo» e «equi­
lá te ro »2. A significação da palavra «o quadrado» contém no seu
conteúdo material actualmente apenas urna parte daquilo que
está contido no conceito de quadrado ou na ideia de «o qua­
drado»; em contrapartida, a significação da expressão «parale­
logramo equilátero rectangular» contém hoje outra parte
do conteúdo do mesmo conceito, mas de tal natureza que essa
parte permite ao objecto do conceito constituir-se por urna
multiplicidade de essencialidades equivalente à quadratura. Além
disso, estas duas significações contêm — de um modo todavia
absolutamente diferente, potencial — algo que o conceito ideal
do quadrado também contém; a saber, o facto de o quadrado
possuir lados de «qualquer comprimento absoluto», o que só
aparece actualmente nas significações compostas de (2) e (3).
Por outras palavras: toda a significação de uma expressão nomi­
nal não composta que no seu conteúdo formal se refere a algo
da estrutura objectiva é uma actualização de uma parte do
sentido ideal que o conceito da objectividade correspondente
contém, caso exista semelhante conceito. Esta actualização rea­
liza sobretudo o conteúdo material e formal de significação.
Para todos os conceitos ideais há várias significações de palavras
da mesma objectividade. O que é actualizado, de qualquer forma,
do sentido ideal do conceito forma o estado actual da signifi­

' Também Pfaender (cf. Logik, pp. 272 e segs.) distingue entre «con­
ceito» e «conteúdo de significação» de uma palavra. Eu não poderia dizer
com Pfaender que os conceitos podem ser conteúdos de significação de
palavras. Também não é claro se Pfaender considera o conceito como
uma objectividade ideal porque as suas afirmações concretas a este res­
peito são contraditórias.
2 Sobre todas estas considerações, cf. as observações respectivas nas
minhas Questões Essenciais, cap. V, nomeadamente § 26.u
108

cação. O que além disso o respectivo conceito ainda contém e


imediatamente se segue ao estado actualizado constitui o estado
potencial da respectiva significação, portanto algo que igualmente
pode ser actualizado sem que seja preciso transformar de qual­
quer modo o estado já actual da significação. A transposição
do estado potencial de uma significação nominal para o estado
actual modifica, portanto, a significação plena da palavra; toda­
via, esta modificação reside apenas num enriquecimento do
constitutivo actual do seu conteúdo material, que também se
pode conjugar com uma modificação do seu conteúdo formal.
Se esta transposição do estado potencial para o actual sucede
de modo que todos os elementos novamente actualizados, sobre­
tudo do conteúdo material, encontram «expressão» própria, i. é,
são «revestidos» de uma multiplicidade correspondente de pala­
vras ou de uma só palavra, o estado novamente actualizado apa­
rece «explicitamente» na significação da expressão respectiva e
assim chegamos por este caminho a uma expressão nominal
composta. A transformação do estado potencial em estado actual
pode efectuar-se também de modo que tanto a significação que
ainda contém um estado potencial como aquela que já o contém
(ou contém pelo menos parte dele) em forma actualizada são
vinculadas ao mesmo fonema significativo (ou à mesma multi­
plicidade de fonemas desta espécie). A parte de novo actualizada
do estado actual não encontra, portanto, neste caso expressão
própria correspondente. Então, este estado está contido «im pli­
citamente» na significação correspondente da palavra. Se a sig­
nificação nominal da palavra não se refere a essencialidades
originárias simples tem um estado actual e outro potencial. Por
outro lado, qualquer palavra nominal isolada ou uma expressão
nominal composta pode ter uma significação que aparece de
forma implícita ou explícita.
Parece ser indubitável que há aparecimentos implícitos de
elementos potenciais das significações nominais das palavras.
Desde que não consideramos a possibilidade da referência a
vivências do leitor que compreende o texto e nos limitamos
meramente ao conteúdo deste surge a dificuldade de como, ape­
nas em razão do texto, nos podemos certificar de que o texto
e nomeadamente as significações nominais das palavras que nele
entram contêm um estado potencial implícito. É que no mero
fonema da palavra não há nenhum vestígio disto. Na linguagem
viva e particularmente na declamação os elementos potenciais
não explicitados da significação podem evidenciar-se na entoa­
ção. Na leitura silenciosa, porém, nada disto há. Parece que
surgem dificuldades particulares no caso de textos artísticos
109

puramente literários, em que não é possível apelar para resul­


tados cognoscitivos.
Neste estado de coisas podem ser úteis duas fontes de
recursos. Primeiro, pode recorrer-se ao sistema de significações
da respectiva língua. Neste sistema as palavras singulares, par­
ticularmente os nomes, têm a sua plena significação precisamente
graças às diferentes relações que a palavra em causa mantém
com outras escolhidas. Geralmente, apenas uma fracção da ple­
nitude desta significação é actualizada ficando o resto potencial
e implícito. Contudo, é sempre possível uma explicitação cor­
respondente ou, pelo menos, considerá-la como possível. Em
segundo lugar, as palavras singulares de determinada obra lite­
rária aparecem várias vezes em contextos diferentes que, por
assim dizer, sugerem que momentos potenciais da significação
são ou devem ser implicitamente co-intencionados por essas
palavras. Estas duas circunstâncias permitem-nos distinguir nos
elementos potenciais das significações das palavras aqueles ele­
mentos «potenciais» cuja potencialidade, por assim dizer, não
passa de mera possibilidade e aqueles elementos «potenciais»
da significação da palavra que embora ainda não actualizados
aproximam-se, por assim dizer, desta actualização ao serem
«sugeridos». Se chamarmos à primeira potencialidade «vazia» e
à segunda «preparada» podemos dizer: quanto melhor for o
conhecimento do vocabulário e das combinações possíveis de
palavras da respectiva língua e quanto mais activo for o auxílio
prestado pelos contextos em que a respectiva significação apa­
rece na obra correspondente tanto mais rico é o estado dos
elementos «de potencialidade preparada» desta significação.
Quais as propriedades da actividade dos contextos de que este
estado depende é outro problema de que não nos podemos aqui
expressamente ocupar. Não há dúvida alguma de que os textos
das obras literárias individuais sob este aspecto assinalam gran­
des diferenças. Em todo o caso, é claro que é impossível
apreender o estado potencial e particularmente o potencial pre­
parado da significação isolando a palavra do contexto. A refe­
rência a estas potencialidades constitui também para nós a pas­
sagem da consideração das palavras singulares para o estudo
de unidades coerentes de significação de ordem superior.
Chegamos ao conhecimento dum objecto e coerentemente
à captação do seu conceito ideal numa multiplicidade temporal­
mente distendida de operações cognoscitivas \ Quanto mais pro­

1 O que se passa neste caso com o conhecimento das essencialidades


originais não o pretendo discutir aqui.
110

gredirmos no conhecimento tanto mais penetraremos no conteúdo


do conceito ideal da respectiva objectividade. Nesta ordem de
ideias opera-se também uma transformação da correspondente
significação nominal da palavra. O seu estado actual, a princípio
relativamente pobre, vai-se progressivamente enriquecendo na
medida em que o estado potencial se for actualizando. Se pas­
sarmos da significação simples da palavra para significações
cada vez mais compostas, outro estado actual muito mais rico
da mesma significação assume forma explícita substituindo-se
ao estado actual a princípio pobre. Empregando-se, porém, cons­
tantemente o mesmo fonema significativo a significação corres­
pondente torna-se mais rica mas permanece sempre na forma
implícita. Com a maior facilidade nos apercebemos desta trans­
formação da significação de uma e a mesma palavra, p. ex., na
leitura de uma obra científica. Mas também é fácil persegui-la
na história de uma ciência. Também em obras de arte poética
podem observar-se no decurso de fases sempre novas da obra
as transformações que a respeito do estado actual e potencial
das significações singulares das palavras se realizam. Parece
então que pelo menos em muitas obras o estado dos elementos
potenciais preparados das significações das palavras aumenta
consideràvelmente no decurso da evolução de fases ou partes
sempre novas da obra. Com isto antecipamos já considerações
posteriores a respeito da obra de arte literária.
Nestas diversas transformações do estado actual e potencial
das significações da palavra podem surgir vários modos especiais
de transformação. Pode, p. ex., acontecer que o estado actual
de uma significação seja a actualização dos elementos não de
um único conceito, mas de dois (ou mais) por nós ainda não
discriminados. O estado potencial desta significação (de que a
princípio quase não tomamos consciência) pode então conter
em si elementos constitutivos a cuja multiplicidade integral não
corresponde nenhum conceito ideal e uno. Só com a marcha
ulterior do conhecimento e a transformação correlativa do estado
potencial em actual tomamos consciência de que embora haja
uma única significação temos dois conceitos diversos. Neste caso
sucede o que geralmente se classifica de «distinção de conceitos»
e que efectivamente deriva da divisão de uma significação até
então considerada como una em duas ou mais significações
diversas. A significação original dividida é então rejeitada como
«não-objectiva» ou até contraditória. No caso de esta «divisão»
se não efectuar, apesar de o estado novamente actualizado ser
actualização de conceitos diversos, encontramo-nos perante uma
forma especial de significações de palavras «não-objectivas» ou
111

contraditórias. Pode acontecer que ao empregar tal palavra ora


se vise intencionalmente na realidade apenas uma parte do
estado novamente actualizado e precisamente aquela que pertence
ao conceito A, ora a outra parte deste estado novamente actua­
lizado, ou seja, aquela que pertence ao conceito B. O estado,
que em ambos os casos se repete, de momentos de conteúdo
induz-nos ao desconhecimento deste facto de maneira a conti­
nuarmos convencidos de que se trata de uma e a mesma signi­
ficação sob todos os seus aspectos. No caso referido trata-se
de palavras com duas ou mais significações cuja pluralidade
significativa se furta à nossa vista. Enriquecido por fim o estado
actual, originàriamente pobre de conteúdo, de uma significação
pertencente a um único conceito podem também ainda, depois
de todo este processo terminado (no caso de o processo cognos­
citivo ficar durante algum tempo interrompido e as nossas signi­
ficações nominais de palavras se «cristalizarem»), surgir trans­
formações do estado actual das significações na medida em que
a mesma palavra em casos diversos é empregada num estado
actual mais ou menos rico. Neste contexto, pode oscilar também
o grau da «implicação» das significações da palavra.
É claro que nestas transformações interessa, em primeiro
lugar, o conteúdo material da significação. Outro tanto pode
acontecer a respeito do seu conteúdo formal. Deve ainda con­
siderar-se que precisamente por ser funcional o conteúdo formal
pertence geralmente também ao estado potencial da signi­
ficação K Só um exame especial da estrutura formal do res­
pectivo objecto ou emprego da palavra numa frase faz
que o conteúdo formal passe ao estado actual da significação
em que as funções correspondentes no uso da significação ou
são apenas conscientemente realizadas ou de modo especial
objectivadas. Mas isto levar-nos-ia longe de mais.

§ 17. As significações das palavras como elementos da


frase e as suas transformações correspondentes

A palavra singular isolada, a cujo aspecto significativo dedi­


cámos as investigações anteriores, não entra assim nas obras
literárias — como atrás já foi notado — mas aparece integrada
como elemento da frase e por vezes — mas neste caso essencial­
mente transformada — também como uma frase inteira.» O seu
isolamento é indubitàvelmente o resultado de uma operação

1 Isto diz sobretudo respeito a significações isoladas de palavras.


112

artificial efectuada para fins de estudo. Procurámos, porém,


conduzi-la de modo a não resultar nenhuma deturpação essencial
das unidades de significação e, ao mesmo tempo, a salientarem-se
as estruturas fundamentais dos seus diversos tipos. Contudo,
não se pode negar que se dão transformações consideráveis
nas significações das palavras pelo seu isolamento ou pela rein­
tegração na frase inteira. É nosso propósito imediato estudar
agora estas transformações e em especial mostrar a que trans­
formações uma e a mesma palavra está sujeita na sua signifi­
cação e segundo os diversos lugares que ocupa na frase. Estas
transformações resultam do facto de a palavra isolada não apa­
recer simplesmente numa frase (como, p. ex., uma coisa aparece
numa classe de coisas) enriquecendo o conjunto sintáctico com
mais um elemento de significação, mas exercer ao mesmo tempo
esta ou aquela função na frase. Como estas funções são muito
numerosas e variadas podemos tratar apenas de algumas delas
como exemplos.
A integração das significações das. palavras na frase arrasta
consigo uma transformação estrutural de cada uma delas.
Comparemos os dois exemplos seguintes:

1. a multiplicidade de palavras: «Cada. Corpo. É. Pesado.»


e
2. a frase: «Cada corpo é pesado.»

Notamos imediatamente que enquanto em 1. cada signifi­


cação da palavra constitui um todo em si fechado este isolamento
é rompido em 2. A palavra singular como elemento da frase não
deixa de ser o que é e, apesar disso, a sua estrutura sofreu uma
transformação sensível. A significação de uma palavra liga-se
em sentido quase literal a outras significações e mais ainda
estas unem-se entre si para formar uma única unidade de sen­
tido, em que não desaparecem por completo mas perdem apenas
a sua delimitação estanque e recíproca. E só esta sua união
torna possível a constituição de algo que se chama «frase».
O modo como o «hermetismo» das significações singulares das
palavras se rompe na frase é uma questão à parte que não
pode ser aqui examinada nos seus pormenores. Como exemplo
de uma análise inicial pode servir aqui o exame já feito das
funções que as palavras singulares exercem numa expressão
nominal composta *.

1 Por que operações subjectivas se efectúa esta transformação estru­


tural é outra questão de que não podemos tratar aqui pois abstraímos
agora de todos os problemas fenómenológicos.
113

As transformações, porém, a que estão sujeitas as signifi­


cações das palavras e particularmente as significações nominais
na frase ultrapassam em muito o aspecto puramente estrutural.
Comparemos as seguintes frases:

1. C. J. César, o cônsul romano, transpôs o Rubicão.


2. O cônsul romano exercia no Estado Romano grande
influência nos negócios políticos.
3. L. Bruto matou precisamente o cônsul romano.

Comparemos a significaçao plena da expressão «o cônsul


romano» nestas frases com aquela que possui quando aparece
completamente isolada, 4. Em todos estes quatro casos o con­
teúdo material da sua significação é inteiramente idêntico.
Ao contrário, a respeito dos restantes componentes da sua
significação plena existem diferenças sensíveis. Quanto ao factor
de direcção intencional este é variável e potencial nos casos 2.
e 4., sendo os limites da sua variabilidade determinados pelo
conteúdo material da expressão. Em contrapartida, nos casos 1.
e 3. esse factor é actual e constante. Existe contudo uma dife­
rença entre estes dois últimos casos quanto ao factor de direc­
ção. Enquanto, graças à função especial desta expressão na
frase 1., o factor não só indica um cônsul romano individual­
mente determinado mas ao mesmo tempo designa aquele, que
é precisamente C. J. César, de maneira que em última análise
este constitui o ponto final da sua direcção, na frase 3. também
se dirige para um objecto individualmente determinado mas
repousa nele porque do conteúdo da frase resulta indubitàvel-
mente que Bruto só podia matar um cônsul individualmente
determinado, mas não ressalta claramente da frase que o cônsul
foi precisamente C. J. César. Só quando relacionássemos a frase 3.
com outras (ou com os nossos conhecimentos históricos) o factor
de direcção intencional seria absolutamente igual àquele que
aparece na frase 1.
Esta particularidade do factor de direcção na frase 1. faz
que as duas expressões «C. J. César» e «o cônsul romano» nesta
frase se refiram a um e o mesmo objecto, ainda que os seus
conteúdos materiais nada tenham de comum. Formam assim uma
unidade de significação de ordem superior cuja constituição tem
a sua base na função particular lógico-gramatical de aposto que
a expressão «o cônsul romano» desempenha nesta frase. Assim,
realiza-se pelas duas partes uma coincidência curiosa dos objec­
tos intencionais das expressões. Nada disto há nos outros casos.

8
114

Também a respeito de conteúdo formal da expressão estu­


dada podem assinalar-se diferenças significativas nestes casos
diversos. Reparemos no seguinte: considerando nós a expressão
estudada isoladamente, o seu conteúdo formal abrange aquele
momento que determina o objecto intencionado como portador
autónomo em relação às qualidades que lhe advêm (nomeada­
mente à de ele ser cônsul romano). No caso 2. este momento
é modificado. Continua a tratar-se de um portador autónomo
de qualidades mas esta condição de portador entrelaça-se com
o momento particular que a estrutura formal do objecto neces-
sàriamente assinala, uma vez que este é tratado como sujeito
de um predicado explícito com ele relacionado, como precisa­
mente acontece na frase 2. O mesmo momento da expressão 4.
é modificado de um modo muito diferente no caso 1.: o objecto
determinado pela palavra «cônsul» aparece aí certamente como
portador de qualidades mas, ao mesmo tempo e de certo modo,
já não é portador autónomo. A expressão «o cônsul romano»
perdeu neste caso, por assim dizer, o próprio objecto autónomo.
O último portador autónomo, que é ao mesmo tempo sujeito
do predicado, é determinado pelo nome de «C. J. César»; é ainda
este que é «cônsul romano», por outras palavras, é ele que
desempenha um papel particular que mais exactamente o cons­
titui cônsul romano. Este papel encontra nele o fundamento do
seu ser, está nele ontològicamente fundado.
Outra modificação ainda do mesmo momento do conteúdo
formal da expressão estudada aparece no caso 3. Aqui também
o objecto correspondente é captado como portador autónomo
das suas qualidades, mas ao mesmo tempo apresenta-se como
objecto sobre que incide uma acção. Assim, o portador de qua­
lidades é transformado em sujeito que sofre as acções que lhe
são dirigidas. Esta modificação provém da função lógico-grama­
tical do acusativo que a respectiva expressão exerce nesta frase
e relaciona-se imediatamente com o conteúdo material e a fun­
ção do predicado «matou». Esta relação é tão estreita que a
expressão «o côilsul romano» (no acusativo) seria essencialmente
dependente se aparecesse plenamente isolada (portanto não inte­
grada na frase). A modificação a que acabámos de nos referir,
proveniente da função sintáctica da expressão, é portanto tão
radical que transforma uma expressão nominal autónoma em
dependente, marcando-a, portanto, essencialmente como membro
de uma unidade superior de sentido.
115

É preciso notar que as modificações indicadas do conteúdo


formal, no fundo, significam um enriquecimento seu. Todas
e.as provêm das funções especiais que as significações nominais
23.s palavras exercem na frase e são essenciais a estas funções.
Se estas funções desaparecerem as modificações estudadas tam­
bém deixarão de existir. O emprego da palavra isolada na estru-
rjração da frase introduz várias modificações e momentos nas
suas significações plenas que são alheios à palavra isolada.
Se, portanto, nos encontramos perante a significação nominal
de uma palavra que constitui um membro de uma frase devemos
distinguir rigorosamente entre aqueles momentos do seu con-
:eúdo formal que ela conservaria mesmo isolada e aqueles que
só as funções sintácticas nela produzem. Esta distinção é de
importância particular quando se passa para os correlatos inten­
cionais das significações das palavras e se investiga a estrutu­
ração formal das objectividades intencionais simples enquanto
distinta da das «relações objectivas», dos «factos», etc.
Mostrar-se-á a seguir que também o conteúdo material da
significação nominal da palavra pode ser sujeito de várias trans­
formações (em parte já indicadas atrás) quando é usado na
estruturação de frases. Estas transformações, porém, geralmente
só aparecem numa multiplicidade de frases correlacionadas.
Remetemos por isso o seu estudo para altura própria dentro
do plano do nosso livro (§ 23.°).

§ 18. Significações de palavras, frases e períodos como


produtos de operações subjectivas

As investigações realizadas nos* últimos três parágrafos não


só pretendiam familiarizar-nos com os traços essenciais das
significações das palavras e da sua estrutura, mas tinham tam­
bém o propósito de chamar a atenção para uma série de
factos que devem ser tidos em conta quando se trata de salientar
a ideia universal da significação da palavra e nomeadamente
quando se quer resolver o problema do seu modo de ser.
Nas investigações modernas das unidades de significação
podem distinguir-se principalmente duas concepções radicalmente
opostas: a psicologista, predominante entre os lógicos dos últi­
mos decênios do século xix, e a «idealista» — se é lícito cha­
mar-lhe assim — , cujo representante mais significativo é Edmund
116

Husserl nas suas Logischen Untersuchungen A sua crítica con­


vincente do psicologismo lógico parece ter superado definitiva­
mente a teoria segundo a qual as significações das palavras
(«conceitos», como então geralmente se dizia) e as frases seriam
estados ou elementos psíquicos da corrente concreta de vivências.
E aínda que o próprio Husserl rio vol. I I das Logischen Unter­
suchungen proceda à análise da «significação» a partir da inves­
tigação da essência dos actos intencionais da consciência — por­
tanto fenomenològicamente— , a sua teoría contudo culmina na
afirmação de que as significações são «espécies ideais» de um
tipo especial. Parecia também ser esta a única solução possível
do problema desde que se não quisesse recair nos equívocos do
psicologismo. Entretanto, pode perguntar-se . se Husserl aqui
— pelo menos na época das Logischen Untersuchungen — não
teria ido longe de m ais2. É que independentemente do modo
como se formou a doutrina das objectividades ideais e das «essen­
ciais» no próprio Husserl (posteriormente às Logischen Unter-

1 Nos anos trinta a concepção lógico-fisicalista da linguagem ganhou


grande popularidade propagada pelo «Círculo de Viena». Realmente, eu
já tinha encontrado as teses fundamentais desta concepção em Varsóvia
no ano de 1919. Reinava entre os cultores locais da logística como Les-
niewski, Tarski, etc. Mas só no princípio dos anos trinta se chegou a uma
aliança teórica entre o grupo logístico de Varsóvia (ao qual pertenciam
também Ajdukiewicz e outros) e os representantes do Círculo de Viena.
O ano de 1934 (Congresso de Filosofia em Praga) foi o ponto culminante
desta aliança e também da actividade da cortcepção «fisicalista» da lingua­
gem (com traços de «operacionismo»). Depois do congresso de Praga e da
publicação do tratado de Tarski sobre o conceito de verdade as relações
entre os defensores polacos da logística e o «Círculo de Viena», por um
lado, afrouxaram e, por outro, quanto à concepção de linguagem gerou-se
uma posição essencialmente modificada. Levar-nos-ia longe de mais entrar
quer nos pormenores de toda a concepção, quer nas várias modificações
que ela sofreu nos últimos decênios até às publicações recentes de Carnap
e Wittgenstein. Pronunciei-me contra a concepção original, convencional e
fisicalista das formações lingüísticas, dominante até ao ano de 1934, pri­
meiro (quanto às minhas publicações no estrangeiro) numa conferência
proferida no Congresso de Praga e depois num artigo algo ampliado na
Revue Philosophique, Essai logistique d'une refonte de la philosophie
(1936). Para este remeto o leitor interessado. Parte dos meus contra-argu-
mentos apareceu já no § 9.° deste livro.
2 Como soube, primeiro, por uma carta do Professor Husserl e depois,
durante a minha estadia em Friburgo, em 1927, o meu venerando mestre
oralmente me asseverou, ele abandonou a sua posição lógica de outrora,
apresentando, no ano de 1922, uma «Lógica Transcendental». Infelizmente
não conheço estas lições e, por conseguinte, também não posso dizer se
as afirmações que no presente livro desenvolvo são afins das de E. Husserl.
Prefácio.
117

suchungen) e nos seus discípulos \ a identificação das significa­


ções das palavras com «espécies ideais» de um tipo especial
(segundo a explicação do próprio Husserl) devia implicar a sua
intemporalidacLe e, por conseguinte, a sua absoluta invariabili-
dade. Como seria neste caso compreensível que uma e a mesma
significação de uma palavra — como julgamos ter acabado de
demonstrar— pudesse unir-se ora com umas significações ora
com outras numa unidade de ordem superior, aparecer em luga­
res diferentes da frase e submeter-se a diversas modificações
do factor de direcção intencional e do conteúdo formal, adqui­
rindo até modos diversos de actualidade ou de potencialidade
de explicitação e implicação? Será então lícito considerá-la ainda
como espécie ideal e equipará-la porventura às essencialidades
ideais ou às ideias? Por outro lado, será permitido considerar
as significações das palavras, pela única razão que acaba de ser
alegada, como realidades psíquicas e componentes do ser psíquico
ou das vivências da consciência? Ou será porventura lícito negar
por completo a existência de unidades ideais de sentido, de
conceitos ideais?
Que nem a solução psicológica nem a idealista são susten­
táveis mostram-no também as dificuldades insolúveis surgidas
quando no princípio do livro formulámos o problema do modo
de ser e da idealidade da obra literária2. Qual será, pois, o teor
da nova solução positiva?
Antes de mais nada é preciso atender ao seguinte:
1) Nas diversas transformações de significação plena de uma
palavra, a que atrás nos referimos, não se trata de aconteci­
mentos psíquicos ou subjectivos da consciência que se passam
ou podem passar-se ao pensarmos numa frase ou na significação
de uma palavra. Estes acontecimentos subjectivos da consciência,
que podem eventualmente ser paralelos às transformações des­
critas, de modo algum foram acima mencionados. Também
podem ser ainda muito diversos numa e a mesma frase. É que
os conteúdos concretamente vividos da consciência podem dis-
tinguir-se consideràvelmente uns dos outros, quer no que se

1 Cf. em particular os estudos de W. Schapp, J. Hering, H. Conrad-


-Martius e ainda as minhas Questões Essenciais.
2 Estas dificuldades, de que já no ano de 1918 tomei consciência ao
começar a escrever um diálogo sobre a obra de arte literária, foram tam­
bém o primeiro passo para a intuição de que é preciso abandonar o ponto
de vista «idealista» na concepção das significações das palavras. A prin­
cípio, porém, fui longe de mais na direcção oposta, de modo que na época
em que escrevi as Questões Essenciais (1923) estava inclinado a negar
absolutamente a existência das significações ou dos conceitos.
118

refere à explicitação concreta mais ou menos extensa do con­


teúdo material das significações correspondentes das palavras,
quer a respeito do modo como o seu conteúdo formal é concre­
tamente pensado independentemente das múltiplas modificações
claras e confusas que a esse respeito são possíveis. Em contra­
partida, falámos exclusivamente de transformações que se pas­
sam nas próprias significações quando estas ocupam lugares
diversos numa frase ou em diversas frases e que resultam da
análise do conteúdo total da significação de uma frase (ou de
uma palavra) ainda que não saibamos do que se passa concre­
tamente na consciência do locutor. Apesar da diversidade das
duas séries de transformações — por um lado, das unidades de
significação e, por outro, das vivências concretas da consciência —
existe a possibilidade de no caso de uma frase termos de lidar
com algo que, segundo o seu modo de ser e ainda segundo as
determinações do conteúdo e forma, está remetido para a exe­
cução de determinadas operações da consciência. Mas ainda no
caso de esta possibilidade se revelar como um facto a frase com
todas as suas partes e momentos forma uma unidade encerrada
em si mesma que não pode ser identificada com quaisquer con­
teúdos concretos da consciência ou suas partes reais. Somente
aqueles factos que se podem descobrir nesta unidade nos deverão
fornecer o material para a solução do problema da sua ideali-
dade ou da sua variabilidade e, portanto, da sua relação com
operações concretas da consciência que se realizam no decurso
do tempo.
2) Pergunta-se em que medida é lícito falar-se nos casos
discutidos da mudança de uma e a mesma significação da pala­
vra e logicamente se não seria mais correcto afirmar que as
significações das palavras são absolutamente invariáveis, enquanto
nós, os que pensamos, passamos de uma significação para outra
ao servirmo-nos das significações das palavras para a construção
das frases. Se de facto assim fosse o argumento contra a con­
cepção idealista das significações das palavras desapareceria e
então toda a realidade se nos afiguraria (aparentemente) muito
mais simples í.
Entretanto, esta proposta de solução leva a consideráveis
dificuldades. Sobretudo seria preciso supor-se uma variedade
muito mais numerosa de significações do que na hipótese das
mudanças de significações por nós afirmadas. Em vez de uma

' Foi esta a solução que Husserl tentou nas suas Logischen Untersu-
chungen a respeito das «significações ocasionais».
119

só significação da palavra «mesa», p. ex., seria preciso admitir


tantas significações diversas, ainda que afins, quantas as modi­
ficações desta significação nos diversos casos do seu emprego K
Seria também errado neste caso julgar-se que uma e a mesma
palavra pudesse ter funções diversas ao ser empregada em frases
diferentes. Deveríamos, pelo contrário, admitir que apenas um
e o mesmo fonema significativo está ligado a significações diver­
sas e é, portanto, semánticamente polivalente. Isto em si ainda
não seria absurdo. Já seria, porém, mais grave que tivéssemos,
consequentemente, de falar também de duas significações quando
se trata apenas da diferença do estado actual ou potencial de
uma significação. Assim, não só chegaríamos a uma multiplicação
enorme de significações mas seria também impossível indicar
exactamente em que consiste uma significação segundo os seus
elementos singulares, visto que só seria possível realizar isto
recorrendo a outras significações diferentes dela. Também uma
palavra isolada teria uma segunda significação diferente da que
teria quando aparece na frase (em conseqüência das diferenças
estruturais atrás indicadas). Neste caso haveria, por um lado,
palavras que por sua essência apenas poderiam aparecer numa
determinada frase, inseparáveis do seu contexto, e, por outro
lado, palavras que nunca poderiam ser elementos de uma frase.
Nesta ordem de ideias deveríamos supor uma multiplicidade
infinita de frases que de antemão estariam «prontas», sendo por
nós apenas descobertas. Mostrar-se-á, porém, que o conteúdo
total do sentido de uma frase está sujeito a várias modificações,
por vezes essenciais, únicamente pelo facto de a respectiva frase
aparecer em determinado lugar dentro de uma multiplicidade
ordenada de frases. Se aparecesse noutro lugar ou dentro de
outra multiplicidade de frases o seu conteúdo de sentido seria
outro. Dever-se-ia portanto — em conseqüência da tentativa de
solução por nós refutada— falar, neste caso, também de duas
«frases em si» ideais e diferentes. Por fim, seria preciso consi­
derar como formações acabadas, ideais, de existência intemporal
todos aqueles conjuntos de frases que graças ao seu conteúdo
total de sentido e à ordem da sua seqüência constituem um
contexto de sentido de ordem superior (contexto sintáctico),
enquanto não deixa de ser evidente que é possível formar, de
qualquer maneira, a partir de tal contexto sintáctico grande
número de outros conjuntos de frases pela modificação da ordem

1 Seriam, portanto, significações inteiramente diferentes: «a mesa»,


«um a mesa», «compro uma mesa», «estou sentado à mesa», «a minha mesa
é grande», etc.
120

dos membros. Se estivesse certa a tentativa de solução por nós


combatida seria preciso considerar um escritor não como o
autor da sua obra mas apenas como descobridor de contextos
sintácticos.
Neste caso não seria absurda a ideia de as significações das
palavras e todas as unidades de sentido de ordem superior serem
produtos ideais invariáveis e de se efectuarem transições apenas
temporais de uma unidade de sentido para outra. Mas nem tudo
que não é absurdo é eo ipso verdadeiro. Se conseguíssemos mos­
trar que existem não somente transições de significações ou de
frases para frases mas operações subjectivas realmente consti­
tutivas de frases disporíamos de um argumento decisivo para
afirmar que as unidades de significação de ordem superior e
inferior não são espécies ideais.
3) Se, porém, as significações das palavras e as unidades
de sentido de ordem superior não são nem elementos do ser
psíquico, ou da consciência concreta, nem espécies ideais de um
tipo especial, e se todavia a sua existência não pode ser negada,
isto revela sobremaneira — porque de antemão é evidente que
as unidades de significação não são objectividades físicas— que
a divisão habitual de todas as objectividades em «reais» e «ideais»
não é completa. É, portanto, necessário supor ainda outro tipo
de objectividades. Por outro lado, também não é necessário
negar a existência de conceitos ideais. Só é preciso distinguir
rigorosamente entre estes e as unidades de significação.
4) Não pode ser nossa tarefa oferecer aqui uma análise feno-
menológica das operações subjectivas de que provêm as unidades
de significação de ordem inferior ou superior. Bastará apontar
os seguintes factos:
O essencial da palavra reside em ter uma significação e, em
virtude desta, ou em referir-se intencionalmente a um objecto,
determinando-o material e formalmente, ou em exercer determi­
nadas funções intencionais em relação ao objecto já intencio­
nalmente projectado. Esta referência intencional vinculada ao
fonema significativo não é — como atrás já se observou— ne­
nhuma qualidade fónica desse fonema; comparada com ele é
de natureza completamente heterogénea e contudo não deixa
de lhe estar ligado. É precisamente esta heterogeneidade que
torna impossível ao fonema significativo relacionar-se, por assim
dizer, por força própria (graças às qualidades que lhe compe­
tem) com a referência intencional ou exercer as diversas funções
intencionais. Quando se estabelece esta vinculação, ou melhor,
quando o fonema significativo é portador de significação isto
só é possível por esta função lhe ser, por assim dizer, extrinse-
121

camente imposta e atribuída. Esta atribuição só pode ser efec­


tuada por um acto subjectivo d í consciência. De facto, conhe­
cemos tais actos de consciência em que outorgamos um sentido,
uma significação a um fonema significativo. Algo a princípio
desprovido de sentido, que de modo algum é transcendente a si
mesmo, é empregado como suporte exterior de algo que lhe é
heterogéneo quando, p. ex., intencionalmente nos referimos a
um objecto (nomeadamente a um objecto ausente) e então trans­
formando o material fónico em fonema significativo fazemos
deste o «nom e» do objecto intencionalmente visado. A referência
intencional contida na significação é, por assim dizer, o reflexo
do pensar intencional contido no acto doador de significação
A intencionalidade da palavra é uma intencionalidade emprestada
pelo acto correspondente. Enquanto a referência intencional
contida no acto da consciência constitui um momento concreto,
real do acto, partilhando com este do seu modo de ser absoluto
e autónomo (existindo no mesmo sentido que o próprio acto),
a referência intencional outorgada à palavra não é apenas algo
inteiramente transcendente ao acto da consciência mas ao mesmo
tempo algo que existe de um modo inteiramente diferente, modo
esse cuja objectividade em si mesma remete para outro ser em
que tem a sua origem e de que depende. Aqui, o acto de cons­
ciência cria propriamente algo que anteriormente não existia,
embora nada consiga criar que uma vez criado possa existir
com autonomia no seu próprio ser. O criado neste caso em
comparação com o ser real, o ser ideal e finalmente o da pura
consciência é apenas algo análogo à «aparência», algo que apenas
pretende ser alguma coisa sem todavia o ser no sentido da
autonomia rea l2.
Qualquer significação da palavra tomada isoladamente é uma
unidade de sentido em si mesma acabada. Apesar disso, a grande
maioria delas — como as nossas análises demonstraram — en­
cerra uma multiplicidade de elementos heterogéneos, em espe­
cial quando se trata da significação nominal composta de
uma palavra. Estes elementos são seleccionados pelo acto de
consciência doador de significação de entre todos os elementos
possíveis e reunidos numa unidade. Geralmente, isto sucede
numa multiplicidade discreta de actos de consciência, de maneira

1 Cf. E. Husserl, Logischen Untersuchungen, vol. II, Investigações I


c V.
2 Ainda trataremos mais pormenorizadamente da questão (pp. 143
c segs.). Cf. o nosso estudo Bemerktmgen zum Problem Idealismus-Rea-
lismus (Festschrift für E. Husserl) e o § 20.° deste livro.
122

que a significação só gradualmente se forma e transforma até


chegar um momento em que está diante de nós como algo aca­
bado que já não se encontra em viva produção, formando com
o fonema significativo uma «palavra» que podemos empregar
tantas vezes quantas quisermos em ocasiões diversas como idén­
ticamente a mesma, i. é, mais precisamente, com o mesmo fonema
significativo e o mesmo conteúdo de sentido.
Aliás, a constituição consciente e intencional de significações
isoladas é relativamente muito rara. Normalmente empregamos
as significações de palavras já existentes para a construção de
frases ao pensarmos as frases inteiras e períodos. Pensando no
conjunto sintáctico a construir encontramos sem mais nada as
significações das palavras; estas apresentam-se e acomodam-se
à ordem e síntese que lhes impomos. É que a operação original
da constituição lingüística é a da constituição sintáctica. Que
há tais operações subjectivas constituintes de frases revela-se
melhor nos casos em que a urna frase já começada, por assim
dizer no decurso da sua formação ou mesmo no último momento,
lhe damos forma diferente da que estivera inicialmente na nossa
intenção ou quando, p. ex., tendo já concebido um «pensamento»
procuramos apenas uma formulação sintáctica que lhe seja ade­
quada, o mais possível simples e transparente, e trabalhamos
várias vezes a frase originàriamente planeada (e talvez também
já escrita) até que a frase «acabada» é finalmente pronunciada
ou escrita. Não só a frase modificada mas urna frase qualquer
é constituida por uma operação subjectiva temporalmente ex­
tensa. A frase é precisamente o correlato de urna tal operação,
que admite modos diversos e que na sua execução não só aplica
as significações das palavras mas também as constitui e lhes
dá forma de modo a resultar delas uma unidade de sentido de
ordem superior. À frase a constituir subjaz, por assim dizer,
um esquema formal vazio delineado pelo tipo geral da operação
constituinte, que é preenchido no acto uno dessa operação pro­
dutora de. frases por significações correspondentes de palavras
possuidoras de um conteúdo material e constitui só então uma
frase com sentido. A operação mental produtora de frases é
precisamente aquela que origina nas significações singulares
possíveis as transformações atrás analisadas adaptando-as ao
esquema fundamental e ao tipo de frase a constituir e estabele­
cendo a unidade da frase. Se não houvesse tais operações tam­
bém não haveria frases. Por conseguinte, as transformações das
significações singulares das palavras na frase que sucedem vin­
culadas à construção da frase são também inteiramente relativas
123

à execução destas operações, nascem nela no sentido autêntico


da palavra. Mas é precisamente por isso mesmo que tanto a
frase inteira como as partes orgánicamente correlacionadas que
nela aparecem constituem algo que não se encontra na esfera
puramente ideal dos «conceitos» e sobretudo das objectividades
ideais, esfera essa em que as objectividades se furtam a toda a
actividade espontânea do sujeito consciente e resistem a qual­
quer tentativa de modificação. A frase inteira com todos os
elementos significativos que nela aparecem é «instituída» — para
empregarmos um termo de Husserl — pela operação construtora
de frases e é, por assim dizer, transportada no seu ser por esta
operação. Em que sentido podemos falar aqui do «ser» da frase
é uma questão que só terá resposta quando integrada noutras
questões análogas (cf. cap. 11.°). Por enquanto, talvez as obser­
vações já feitas nos façam compreender que a frase nem tem
em si própria a origem do seu ser nem tem autonomia no sen­
tido de possuir durante a sua existência em si mesma o funda­
mento desta existência. Mas precisamente por isso mesmo as
frases e — como não tardará a mostrar-se — , em escala ainda
maior, as multiplicidades de frases conexas são acessíveis às
operações transformadoras subjectivas da consciência, não se
subtraindo às tentativas de modificação como sucede às objec­
tividades ideais em sentido rigoroso. Não só podem «nascer»
como também ser transformadas pelas correspondentes opera­
ções mentais subjectivas e conjugadas para constituírem uni­
dades superiores ou, finalmente, podem ser aniquiladas, por
assim dizer, eliminadas do mundo por operações mentais «rejei-
tantes» inteiramente determinadas \
A operação mental construtora de frases que segundo as
suas qualidades peculiares produz frases diversamente estrutu­
radas pode efectuar-se de dois modos fundamentalmente dife­
rentes: ou na forma de uma operação original realmente cons­
trutora de frases ou apenas na forma de uma operação imitativa
ou reactualizadora correspondente à original e todavia essen­
cialmente modificada. Só a operação do primeiro modo é real­
mente criadora e exige para a sua realização uma actividade
espontânea muito especial do sujeito consciente; em contrapar­
tida, a operação sintáctica imitativa só reactualiza o que já fora

1 Uma investigação lógica de orientação noética teria de estudar exac­


tamente a estrutura essencial da operação mental construtora de frases
e de salientar também as modalidades possíveis desta operação. Seria o
oposto da «apofântica das frases» de orientação noemática no sentido
de Husserl.
124

criado, podendo realizar-se também numa atitude puramente


receptiva do Eu.
A operação construtora ou imitativa de frases, porém, na
maioria dos casos é apenas uma fase relativamente dependente
de uma operação subjectiva mais ampla de que resultam já não
frases singulares desconexas mas sim períodos inteiros ou mul­
tiplicidades de períodos *. Se, p. ex., apresentamos uma «prova»
ou desenvolvemos uma teoria científica ou apenas contamos
um acontecimento geralmente temos desde o princípio em mente
o todo que devemos «desenvolver» antes de formarmos as frases
singulares em que o todo será «desenvolvido». Esta orientação
mental no sentido do todo pode ter formas diversas de uma
captação (representação) implícita mais ou menos consciente
do todo. Vem-nos à mente determinado «tem a» que está diante
de nós como algo que «deve ser tratado», que deve ser «desen­
volvido» e que se une ao impulso de efectuar este desenvolvi­
mento. Se cedemos a este impulso o tema transforma-se numa
multiplicidade de frases que formamos sucessivamente e sempre
em relação ao tema. Então, o mesmo tema pode ser «desenvol­
vido», «apresentado» de vários modos. Cada um deles exige
outra ordem de frases, que devem ser diferentemente «form u­
ladas» de acordo com a ordem escolhida. Assim, a respectiva
operação construtora de frases, por um lado, obedece à directriz
daquilo que ainda deve ser exposto e, por outro, está sujeita à
pressão daquilo que já foi apresentado e, portanto, relativamente
dependente e suportada pelo impulso original para desenvolver
um tema. Mas mesmo quando não temos nenhum tema proposto
que apenas teríamos de «desenvolver» pode uma determinada
operação mental construtora de frases ser de tal maneira que
encerre, por assim dizer, em si germes para desenvolvimento
ulterior. Neste caso arrasta consigo uma multiplicidade de outras
operações produtoras de frases em que um tema começa por
se cristalizar, conduzindo à formação de determinada «narração»,
de uma «prova» e coisas semelhantes. Aqui também as operações
mentais individuais produtoras de frases obedecem ao impulso
geral e são motivadas pelos precedentes e adaptadas nos seus
pormenores ao objectivo vagamente ideado, só que neste caso
em nenhuma fase actual fica inequivocamente estabelecido que
operações subjectivas se seguirão umas às outras. Embora este
objectivo se nos apresente obscura e indeterminadamente há

1 Quais as condições que devem ser satisfeitas pelas frases para poder
resultar uma multiplicidade coerente de frases discutiremos mais adiante
(§ 23.°).
125

sempre a tendência para realizar a operação produtora de frases


que acaba actualmente de ser efectuada como algo que será
seguido ainda por outras operações ou — caso se trate da cons­
tituição da «últim a» frase — para a constituir precisamente como
«term o» de uma multiplicidade coerente de frases. O fenómeno
conhecido por «interrupção» — quando porventura alguém nos
dirige a palavra enquanto estamos a falar, a ler ou a escrever —
só é possível precisamente porque a formação actual da frase
constitui apenas uma fase de uma operação mais ampla cujas
frases subsequentes, embora ainda não realizadas e frequente­
mente ainda não predeterminadas, de qualquer modo já se
anunciam como iminentes, influenciando o já realizado actual­
mente.
Corresponde a cada uma destas operações < mentais mais
amplas, cujas fases transitórias são formadas pelas operações
individuais produtoras de frases, uma multiplicidade coerente
de frases que é uma unidade de sentido de ordem superior:
uma narração, uma prova ou coisa semelhante K A sua estrutura,
o tipo de conexão das frases singulares, a ordem destas, etc.,
dependem absolutamente do decurso inteiro das operações sub­
jectivas que estão na sua base e são-lhes relativas. Pode narrar-se
«o mesmo» de modos diversos, mas cada uma destas narrações
constitui uma objectividade em si mesma que só existe porque
foi formada precisamente de um modo e não de outro. E seria
ridículo julgar-se que todas as maneiras diversas de tratar
«o mesmo tema» existiriam, por assim dizer, desde todo o sempre
como objectividades ideais, enquanto durante a narração temos
a consciência inteiramente nítida de a podermos realizar de
outro modo diferente e de estar em nosso poder, caso não seja­
mos perturbados por circunstâncias extrínsecas, dar à narração
esta ou aquela forma. A «narração» deste modo produzida, a
«prova», a «teoria», etc. — entendidas puramente como unidades
de sentido de ordem superior, como multiplicidade de frases
conexas — , não podem, portanto, ter qualquer pretensão a uma
autonomia real menos ainda do que as frases isoladas. Daqui
não se segue de modo algum que estejamos inteiramente livres
e apenas obrigados a obedecer ao impulso criador ao realizar
uma operação mental original que produz um complexo de
frases. A respeito da limitação da nossa liberdade existem dife­
renças consideráveis nas operações mentais subjectivas que pro­
duzem os diversos tipos possíveis de conjunto de frases. Assim

1 Cf. adiante, § 23.°


126

como, por um lado, nunca somos inteiramente livres, por outro,


também nunca estamos inteiramente vinculados aos limites da
mais rigorosa teoria, podendo formá-la e transformá-la de modos
diversos. E precisamente a possibilidade (e o facto) de urna tal
transformação mostra da melhor maneira que as «teorías» por
nos elaboradas (entendidas como multiplicidades de frases) não
são objectividades ideais. Corroborá-lo-ão ainda as investigações
seguintes sobre as frases e os períodos.
A solução provisória do problema que nestes parágrafos
nos preocupa é, portanto, do teor seguinte: O estrato da obra
literária, estruturado por significações de palavras, frases e
períodos, não tem um ser ideal autónomo mas é relativo a
determinadas operações subjectivas da consciência quer pela
sua gênese, quer pelo seu ser \ Por outro lado, não deve ser
identificado com nenhum «conteúdo psíquico» concretamente
vivido nem tão-pouco com qualquer ser rea l2. Estamos aqui
perante algo de muito específico a cujo esclarecimento mais
profundo, particularmente em relação ao seu modo de ser, vamos
proceder.
Devemos penetrar mais profundamente no estrato das uni­
dades de sentido para revelarmos a sua função na obra literária.

1 Pode, naturalmente, duvidar-se de que em todas as espécies desses


períodos se trate sempre de meras opções mentais, como se não fosse
possível interferirem outros factores, porventura emotivos. É, porém, certo
que não pode faltar uma operação mental, ainda que ela própria provenha
de impulsos subjectivos mais profundos e a eles se adapte.
2 K. Twardowski, que no seu tratado Zur Lehre vom Inhalt und
Gegenstand der Vorstellungen (1894) se baseia inteiramente no psicologismo
quanto à significação da palavra, tentou mais tarde, no tratado Sobre
actividades e formações (em língua polaca, 1911), modificar a sua posição
a respeito desta questão. Concebe então a significação como produto das
funções psíquicas. Contudo, não percebo bem que género de produto seria
e o que é que Twardowski entende por «significação». Assim, não sei
dizer qual a relação entre a minha concepção e a posição de Twardowski.
Uma coisa, porém, parece-me estar certa: que Twardowski nem aceita a
intencionalidade deduzida da significação da palavra (considera a signifi­
cação antes como um dos seus «objectos universais» que consta de todos
os momentos «comuns» dos «conteúdos» psíquicos das respectivas vivências
do pensamento) nem falaria de uma dependência no ser da significação
da palavra uma vez constituída. Como eu não posso concordar com a
concepção do «objecto universal» nem entender completamente a sua con­
cepção da significação da palavra queria limitar-me aqui a assinalar que
entre a posição de Twardowski e a minha existe apenas a afinidade de
em ambos os casos a significação ser considerada como produto de ope­
rações subjectivas.
127

§ 19. Característica geral da fra s e 1

Acabámos de falar de frases e períodos como correlatos de


determinadas operações intencionais subjectivas sem nos ocupar­
mos em pormenor com a estruturação destas objectividades.
É preciso tratar agora deste aspecto na medida em que interessa
aos nossos fins.
Em obras literárias podem, em princípio, aparecer frases
de todos os tipos possíveis. Podem até aparecer frases «muti­
ladas», não construídas até ao fim (por exemplo, no diálogo de
um drama). Geralmente, estas espécies diversas de frases- são
designadas segundo aquilo que — como se d iz— elas «expri­
mem» 2. Todavia pode duvidar-se da verdade do fundamento
desta divisão. Podemos servir-nos aqui deste modo de falar.
Assim, encontram-se em obras literárias frases que exprimem
«juízos», «interrogações», «desejos» ou «imperativos». Além disso,
podem aparecer frases com diversas modificações, como, p. ex.,
se manifestam na oposição da «oratio recta» e «oratio obli­
qua», etc.
Sem aprofundarmos o estuco destes tipos individuais de
frases queremos, pelo menos de relance, proceder a uma carac­
terização geral da frase como tal para a esta base circunscre­
vermos a sua função na obra literária. Esta caracterização deve
ser orientada em três sentidos diversos, incidindo: 1.°, sobre o
que a frase é em si mesma; 2.°, sobre o que ela produz puramente
em si mesma na sua qualidade de objectividade de estruturação
peculiar; 3.°, sobre os serviços que presta aos indivíduos psí­
quicos em relação à sua vida e às suas vivências,
Ad 1. Como as palavras singulares, as frases também são
formações de dois estratos em que devemos distinguir a) o estrato

1 Quando redigi este parágrafo no ano de 1927 e quando o meu livro


apareceu em Dezembro de 1930 ainda o tratado de J. Ries Was ist ein Satz?
(Beitrãge zur Grundlegung der Syntax, Heft III, Praga, 1931) não estava
publicado. Li este tratado só muitos anos mais tarde, no início da última
guerra, e encontrei nele várias coisas que se aproximam daquilo que eu
aqui desenvolvi, apesar de o tratado ser da autoria de um investigador
da linguagem e nomeadamente de um gramático, que naturalmente tenta
estudar a frase sob outro aspecto. Não posso entrar aqui em pormenores
acerca deste ponto.
2 Assim, p. ex., Wundt divide as frases em: 1.° exclamativas, 2.° comu­
nicativas e 3.° interrogativas; A. Marty, ao contrário, em discursos: 1.° co­
municativos, 2° emotivos e 3.° fictícios, etc. A este respeito encontram-se
observações muito interessantes em K. Brugmann, em Die Syntax des
einfachen Satzes im Indogermanischen (cf. Die Gestaltungen des Satzes
nach der seelischen Grundfunktion, pp. 187 e segs).
128

fónico-linguístico e b) o conteúdo de sentido. Como já anterior­


mente se observou, não há nenhum «fonema significativo de
frase» que fosse uma unidade equiparável ao fonema significa­
tivo da palavra. Se a frase se apresenta como unidade deve-o
simplesmente à unidade do seu conteúdo de sentido, que devemos
agora caracterizar mais de perto.
Este conteúdo é uma unidade funcional-intencional de sen­
tido estruturada como um todo completo através de uma multi­
plicidade de significações de palavrasl. As significações .das
palavras integram-se nele como seus elementos; contudo,
não é uma simples soma ou multidão de significações, mas
sim uma objectividade inteiramente nova em relação a estas,
com qualidades próprias. Como esse conteúdo é precisamente
constituído por significações de palavras, a estas deve uma série
de qualidades. Assim, ele é antes de mais uma unidade intencional,
i. é, uma unidade que se refere a algo diferente dele e a si própria
se transcende. Somente a maneira como ela a si própria se
transcende é diferente daquela que se dá nas palavras isoladas.
Por outro lado, esse conteúdo é, como dissemos, uma unidade
funcional porque na sua totalidade exerce, segundo a sua essên­
cia, uma função que resulta das funções dos seus elementos.
Mais exactamente: ele exerce uma função que prescreve quais
as funções que as significações das palavras (ou as palavras)
que nele aparecem devem exercer para poderem aparecer como
elementos seus. Só a determinação destas funções e do modo
particular da intencionalidade da frase salientará o que é a
esta essencial. Antes de aprofundarmos este assunto é preciso
afastar uma objecção.
Dissemos que a frase2 é construída sobre uma multiplicidade
de significações de palavras. Entretanto, há as frases constituídas
por uma só palavra, como, p. ex., «F ogo!» ou também o latim
«Am o», etc. Não queremos fazer ressuscitar a controvérsia acerca
das frases «sem sujeito». Seja qual for o caso destas, tanto a
frase «F ogo!» como «A m o» contêm em si uma multiplicidade
de significações de palavras. Apenas fonéticamente parecem con­

1 Pretendemos insinuar com isto, p. ex., que empregamos a palavra


«frase» em sentido restrito e por isso a «frase subordinada» é parte de
uma frase e não uma frase propriamente dita. Ao todo completo da frase
ou do conteúdo do seu sentido referiram-se muitos autores como, p. ex.,
Wundt, Delbrück, Marty, Bühler. Cf. entretanto as modificações que a este
respeito nas frases resultam do respectivo conjunto (§ 23.°).
2 Por comodidade empregamos aqui e mais adiante frequentemente
o termo mais breve «frase» em vez do mais exacto: «o conteúdo de
sentido da frase». Isto, porém, não pode levar a mal-entendidos.
129

sistir numa única palavra. Em qualquer frase deste género apa­


recem os «sinais de pontuação», que pela sua função não passam
de diversas pequenas palavras dependentes, funcionais. A palavra
«fo g o » naturalmente não constitui nenhuma frase, mas a expres­
são «Fogo!», com ponto de exclamação, constitui — como Marty
com razão observa — uma frase inteira. O ponto de exclamação
exerce neste caso uma função especial, bastante complicada e
rica l. A frase «A m o» abrange até três elementos de significação,
visto que neste caso é plenamente lícito explicar-se: «Ego amo».
Coisas análogas poderiam demonstrar-se em todos os outros
casos não obstante as muitas frases constituídas por uma única
palavra, que são nitidamente elípticas e cujo sentido se completa
pelo contexto das frases que se seguem. Seja como for, em
qualquer caso as frases constituídas por uma única palavra
representam apenas um caso excepcional e ao mesmo tempo um
caso-limite de frases. Em contrapartida, a maioria das frases que
aparecem é constituída por várias palavras não só segundo
a sua significação mas também fonéticamente. Vamos examinar
estas frases.
K. Biihler no seu artigo Kritische Musterung der neueren
Theorien des Satzes 2 distingue três espécies principais de frases:
a frase notificativa, a libertadora e a apresentativa, identificando
a última com a enunciação. A frase apresentativa deve «tornar
presente» uma relação objectiva; quanto à função de apresen­
tação, apenas sabemos por experiência que é uma ordenação
de palavras a objectos e de frases a relações objectivas. Tanto
os objectos como as relações objectivas são aqui concebidos
como elementos da realidade 3. Não quero discutir se realmente
há estas três espécies de frases a ponto de cada frase exercer
apenas uma só destas funções distintas, embora me pareça que
cada frase exerce — ou pelo menos pode exercer — todas estas
funções e que neste aspecto as frases singulares só se distinguem
pelo predomínio ora de uma ora de outra função. Muito mais
importante é salientar que a função de «apresentação» — cor­
rectamente entendida'— não deve faltar de qualquer modo em
nenhuma frase e constitui a base indispensável de outras funções
da frase. Ao mesmo tempo, é preciso pôr verdadeiramente a
descoberto a essência da «apresentação». Que neste caso não se

' Cf., p. ex., o artigo de F. Neumann na homenagem a Husserl,


Halle, 1929.
2 Indogermanisches Jahrbuch, vol. VI, Berlim, 1920, pp. 1-20.
J Bühler não o diz expressis verbis, mas é este indubitàvelmente o
sentido das suas observações.
130

possa tratar de uma simples «ordenação» a objectos e relações


objectivas resulta já de, em primeiro lugar, haver muitas frases
— e enunciações — 1 que não revelam nenhuma «ordenação» a
objectividades reais (ou ainda ideais)2 e de, em segundo lugar,
a frase não poder exercer esta função por si própria caso
somente esta «ordenação» a algo de objectivamente existente a
caracterizasse. Por outras palavras, a própria frase deve ter as
qualidades que estabelecem a sua «ordenação» a quaisquer
objectividades determinadas (e por vezes também a objectivida­
des de existência real ou ideal). Depois das observações prece­
dentes é evidente que devemos procurar esta qualidade na
intencionalidade do sentido da frase3. Esta deve distinguir-se
da intencionalidade das significações singulares e isoladas das
palavras, visto que de outra maneira não existiria distinção
essencial entre palavras e frases. Esta distinção, porém, parece
ser precisamente o resultado mais seguro das investigações lin­
güísticas e lógicas até agora realizadas. Esta intencionalidade
especial da frase não deve ser estudada naquelas frases que
têm pretensão à verdade e mantêm, portanto, uma relação muito
especial com objectividades existentes (reais ou ideais). É que
neste caso fácilmente tomaríamos por propriedade essencial da
frase muitos dados que apenas têm validade para o juízo (no
sentido lógico).
Todas as frases são — como já se disse— o resultado de
uma operação subjectiva construtora. Geralmente, esta operação
serve outras que a modificam a ela mesma e o seu produto.
Assim pode, p. ex., estar ao serviço de uma operação cognosci­
tiva ou de um mero entendimento recíproco entre vários indi­
víduos psíquicos. Pode também ser usada como meio de influir
noutros indivíduos psíquicos (na agitação política, etc.) ou sim­
plesmente com o fim de fixar os resultados de um processo
arbitrário da fantasia. Finalmente, pode ser uma seqüência intei­
ramente espontânea proveniente da realização de determinados
processos psíquicos na qual estes encontram a sua «expressão»
lógico-linguística. Se, p. ex., essa operação serve o conhecimento

1 Portanto, frases que, segundo a explicação do próprio Bühler, exer­


ciam a função de apresentação de tal modo que lhes chama precisamente
«frases apresentativas».
2 Pertencem a estas, em rigor, todas as enunciações falsas, mas, em
primeiro lugar, todas as frases que se referem a objectividades puramente
fictícias.
3 A não ser que queiramos recair na concepção absurda segundo a
qual haveria, por um lado, fonemas sem sentido e, por outro, apenas
vivências psíquicas que deveriam constituir a «significação» dos primeiros.
131

de algo real é geralmente efectuada com base na percepção


intuitiva de relações objectivamente existentes e nas suas fases
adapta-se mais ou menos exactamente ao conteúdo destas. Assim,
vincula-se a diversos momentos que não lhe são essenciais. Desta
maneira combina-se com um momento intencional especial por
cuja virtude o sujeito realizador da operação não só se «dirige»
a comportamentos de coisas na realidade existentes, mas julga
encontrá-los e crê ter-se arreigado na realidade pelo seu olhar
intencional exacto. A frase que assim chega a formar-se atinge
um momento intencional correspondente que transcende o cor­
relato puramente intencional pertencente — como em breve se
demonstrará — a qualquer frase e pretende «encontrar» uma
relação objectiva realmente existente. Com isto o correlato
puramente intencional da frase é, de modo particular, intencio­
nalmente transposto para a realidade e é não só identificado com
uma relação realmente existente mas ao mesmo tempo posto
com ela como realmente existente. A própria frase, porém
— enquanto, por assim dizer, lugar em que esta posição tem a
sua origem (aliás apenas secundária) — , enriquece-se ainda com
outro momento: pretende ser «verdadeira», numa palavra, tor­
na-se um «ju ízo» em sentido lógico que está sujeito à valoração
segundo o «verdadeiro» e o «falso». Tudo isto desaparece quando
nós desvinculamos a operação produtora de frases dos serviços
que presta ao conhecimento. Se, ao contrário, empregarmos uma
frase para o entendimento recíproco com outro indivíduo psí­
quico, p. ex., sobre certas situações em cuja existência real
ambos não acreditamos (portanto, se não «pronunciarmos» nem
«ouvirm os» nenhum juízo), a frase pronunciada está isenta dos
momentos atrás discutidos, mas ganha outro momento inten­
cional: é na sua totalidade «dirigida» a alguém. Ainda que isto
não tenha em nada modificado o seu conteúdo de sentido,
todavia não aparece como pura frase mas como uma «alocução»
ou uma «resposta».
Estes exemplos bastarão para nos convencermos de que
quando pretendemos analisar a frase puramente em si mesma
devemos considerá-la exclusivamente como produto da operação
construtora despojada de todas as restantes funções e finali­
dades K

1 É duvidoso se conseguiremos libertar a operação construtora de


frases de outras operações e funções em que geralmente aparece enredada
e isolá-la por completo. Mas isto também não é indispensável para o
nosso fim. Basta contemplar essa operação em si mesma enquanto ao
mesmo tempo outras funções às quais eventualmente possa estar associada
se fazem, por assim dizer, variar e são tratadas como arbitrárias.
132

Comeceijios por uma frase «categórica» muito simples da


forma «S é p » (p. ex., «esta rosa é vermelha» e «passa um carro»).
Não a consideremos como «expressão» de um juízo acabado e
limitemo-nos meramente àquilo que a própria frase exprime
pelo seu conteúdo de sentido, portanto sem se aplicar a uma
situação determinada intuitivamente dada ao sujeito cognoscente
e radicada na esfera real. Dissemos atrás que, segundo o seu
conteúdo de sentido, a frase é uma unidade funcional-intencional
que em si oculta uma intencionalidade especial e exerce, uma
função especial. O que significa isto no caso do exemplo dado?
«Passa um carro». Distinguimos nesta unidade de sentido,
por um lado, um nome: «um carro» e uma expressão verbal:
«passa». Já anteriormente observámos que as significações destas
duas expressões não aparecem superficialmente justapostas. Como
se relacionam neste caso para formar uma unidade? O nome
«um carro» designa um objecto, particularmente uma coisa,
denomina-o porque o seu factor de direcção nominal visa um
objecto. Para que ele possa dirigir-se ao objecto este deve ser
determinado, projectado pelo conteúdo material e formal. O pri­
meiro trabalho deste nome reside portanto na projecção nominal
de um objecto. A expressão «passa» tomada isoladamente expli­
cita uma actividade e pelo seu factor de direcção verbal remete
para um sujeito da actividade. Como membro da frase essa
expressão não o «procura» — simplesmente como aconteceria se
aparecesse isolada— mas, por assim dizer, neste caso já o encon­
trou precisamente no objecto projectado pelo nome «um carro».
Deste modo sucedem três factos: 1.°, a actividade desenvolvida
é agora apresentada como realizada por este objecto e por ele
efectuada; 2.°, o objecto projectado pelo nome torna-se por isso
um sujeito de actividade e, mais precisamente, um sujeito daquela
actividade que é desenvolvida pelo verbo finito, mas só por isso
ainda não é denominado como tal; mas há ainda mais: 3.°, tor­
na-se um sujeito de actividade que é concebido precisamente
enquanto realizador da respectiva actividade \ Já não se encon­
tram justapostos um sujeito de actividade ou uma actividade,
por assim dizer, sem sujeito, mas estabeleceu-se uma unidade:
«passa um carro» 2.

1 São duas coisas diversas ser simplesmente um sujeito de activi­


dade ou ser um sujeito de actividade que está a exercer a sua actividade:
p. ex., conceber alguém apenas como professor ou como professor que
c- íd a exercer o seu magistério.
2 À unidade da frase refere-se recentemente H. Ammann ( Menschliche
Rede, vol. II). Esta mera afirmação não é, porém, suficiente enquanto
' demonstrar como é possível produzir a unidade da frase.
133

É preciso notar: a frase «passa um carro» (1) e a expressão


nominal «um carro passando» (2) não são idênticas na signifi­
cação. Em (2) denomina-se um objecto que exerce determinada
actividade, i. é, o factor de direcção nominal refere-se aqui a
um objecto que de antemão (a saber: pelo conteúdo material
da significação composta) é determinado como «passando». Aqui
não se diz que passa, mas o objecto aparece revestido de uma
característica particular que lhe advém da actividade por ele
exercida e em conseqüência do seu exercício. Na frase «passa
um carro» o carro não é projectado e denominado pelo nome
como já revestido desta característica. Neste caso é meramente
projectado e denominado como um «carro» e só porque a acti­
vidade desenvolvida pelo verbo radica nele graças ao factor de
direcção verbal a actividade e com ela o próprio sujeito expli­
citam-se na execução desta actividade de modo verbal mas, como
se mostrará a seguir, não puramente verbal K

1 Cf. a este respeito Herling, Die Syntax der deutschen Sprache: «N a


frase a relação aparece como acontecendo; na palavra, porém, como já
acontecida. Em “ a ave voa” a relação acontece realmente; em “ a ave
voando” a relação entre voar e a ave é designada como já efectuada.»
(cit. por J. Ries, Was ist ein Satz?) Ries acrescenta: «O que a exposição
de Herling quer dizer é isto: a frase é o efeito lingüístico de um acto
psíquico na sua realização presente, o grupo (reduzido) de palavras é a
expressão do resultado de tal acto anteriormente feito. N a frase a asso­
ciação de imagens é, por assim dizer, vivida (ou vivida de novo) como
acontecendo nesse momento, enquanto no grupo de palavras é aprendida
e apresentada como existindo já concluída na consciência.» (L. c., p. 69.)
De modo diferente investiga esta distinção J. Kurytowicz no seu tratado
Les structures fondamentales de la langue: proposition et groupe des mots
(Studia Philosophica, vol. III, Cracovia, 1947). Julgo, porém, que a distinção
tem outras raízes. N o segundo volume do meu livro Der Streit um die
Existenz der Welt tentei conceber na sua forma a essência do processo
de modo distinto do objecto (particularmente da coisa) permanente no
tempo e verificou-se então que é necessário distinguir o processo enquanto
se desenvolve temporalmente à maneira de um todo crescente de fases
c enquanto objecto que neste desenvolvimento se constitui (como sujeito
de qualidades). Á esta distinção corresponde a que existe entre a frase
e o grupo de palavras, em que um nome é associado a um tributo. A frase
capta o processo precisamente na sua form a originária de um todo fásico
em desenvolvimento, enquanto o grupo de palavras o apreende como um
objecto especial. Isto sucede já naturalmente na distinção entre a con­
cepção puramente verbal de «voa» e a nominal de «o voo de...». Pode,
naturalmente, perguntar-se se a distinção formal entre o processo como
sujeito de qualidades e como um todo fásico em desenvolvimento é origi­
nária, de modo que a distinção entre as formações lingüísticas tratadas
c apenas o seu reflexo lingüístico, ou se, ao contrário, tal distinção é
intencionalmente introduzida no ente através das diversas produções lin­
güísticas. Isto é um problema que ultrapassa amplamente o nosso tema.
134

A função agora descrita do verbo finito na frase analisada


esclarece a estrutura do conteúdo de sentido desta frase, mas
apenas desde o ponto de vista do verbo na forma predicativa.
É possível também elucidar a mesma situação desde o ponto
de vista do nome «um carro»: neste caso não é um mero nome,
mas funciona como sujeito da frase. Isto significa duas coisas:
1) O nome não só denomina um objecto, mas capta-o ao mesmo
tempo como algo que é portador quer de uma qualidade ainda
a atribuir-lhe, quer de uma actividade a exercer (na frase pre­
sentemente analisada trata-se, naturalmente, apenas da segunda
modalidade). O nome «prepara», por assim dizer, o objecto
denominado para exercer esta função ou outra; e sómente assim
«preparado» o objecto pode servir de termo do factor de direc­
ção verbal que o procura. E vice-versa, pode por isso mesmo a
actividade desenvolvida pelo verbo finito radicar no objecto.
Imaginemos que em lugar do nome aparece urna partícula mera­
mente funcional, p. ex., a palavra «e », de maneira que neste caso
a frase seria «e passa». Aqui o factor de direcção verbal, remis­
sivo na sua procura, não encontra precisamente objecto algum
susceptível de exercer a respectiva actividade; passa, por assim
dizer, diante da forma de ligação estabelecida pela partícula «e »
e transcende necessàriamente toda a formação projectada pela
expressão «e passa». Por isso mesmo é que esta formação é
dependente e a própria expressão se oferece como uma parte
que pretende ser completada por algo. 2) O nome que ocupa o
lugar do sujeito da frase funciona simultáneamente como o
factor de significação que satisfaz a necessidade de complemento
do verbo na forma predicativa. Possibilita ao factor de direcção
verbal, que procura remetendo e, quando isolado, é potencial,
actualizar-se e fundir-se com o seu próprio factor de direcção
nominal. Assim, torna também possível ao verbo finito exercer
sobretudo a função de explicitar a actividade enquanto prove­
niente de um sujeito dinâmico.
Pode, portanto, dizer-se que tanto o nome enquanto sujeito
da frase como o verbo finito na forma predicativa exercem fun­
ções que — numa expressão figurativa— apenas se esperam
mütuamente para, apoiando-se uma à outra, se realizarem ple­
namente e nesta sua actuação não só estabelecerem a unidade
do conteúdo de sentido da frase mas também levarem a frase
inteira a exercer a função nelas fundada. No exemplo apresen­
tado esta função da frase reside exclusivamente na explicitação
nominal-verbal muito peculiar de uma actividade exercida pelo
dinamismo de um sujeito. É certo que se pode objectar com
135

razão que nem em todos os casos se trata do desenvolvimento


de uma actividade, como no outro exemplo: «Esta rosa é ver­
melha». O predicado «é vermelha» desempenha aqui a função
de atribuição de uma característica K Mas este predicado exerce
também a sua função do mesmo modo verbal que o exemplo
anteriormente analisado. Explicita o «ter» a característica «ver­
melho» por assim dizer existente no interior de um objecto2.
O conteúdo formal da expressão «é vermelha» não contém neste
caso o momento que projecta a estrutura da actividade, mas
outro essencialmente diferente que apreende o «vermelho» na
estrutura particular de «pertencer a algo como característica».
Em contrapartida, conserva-se a função verbal-predicativa desta
expressão. Juntamente com o conteúdo formal do predicado,
diferente neste caso, o nome que desempenha a função de sujeito
da frase não projecta nenhum portador da actividade, mas um
sujeito receptor dessa característica. Precisamente pelo facto de
se modificar a função do sujeito da frase conforme o predicado
que nela entra se mostra como os elementos do conteúdo de
sentido da frase se harmonizam e nesta harmonia formam uma
unidade de sentido, de modo que em qualquer caso se exerce
a mesma função total da frase, i. é, a de uma explicitação nomi-
nal-verbal de uma «relação objectiva» 3.

1 Abstraímos aqui da «função afirmativa» da «cópula» — cf. Pfaender,


Logik, l. c., p. 182— porque analisamos apenas uma frase enunciativa e
não afirmativa.
2 Parece-me duvidoso se a chamada «frase puramente nominal» muitas
vezes empregada em diversas línguas indo-europeias se distingue, pelo
seu conteúdo de sentido, da frase agora analisada que contém a «cópula».
Eu poderia ver uma diferença entre elas apenas pelo facto de o predicado
da frase puramente nominal exercer a sua função verbal de modo implícito,
enquanto precisamente nas frases do segundo tipo a função verbal está
explicitada. K. Brugmann tem certamente razão ao afirm ar que a frase
puramente nominal não é uma formação elíptica (/. c., p. 62).
3 Ao correlato da enunciação como síntese de duas espécies de inten­
cionalidade — nominal e v erb al— chama o autor «Sachverhalt» e precisa
que não é um objecto nem uma relação verbal. Em seguida, no parágrafo 22,
distingue entre «Sachverhalt» puramente intencional, fundado na respectiva
frase, e «Sachverhalt» objectivamente existente ou realizado nas coisas.
Não se pode negar a dificuldade de tradução deste termo filosófico alemão
e, apesar da versão francesa «état de choses» e da inglesa «State of affairs»,
propomos uma tradução portuguesa diferente. Tratando-se de «Sachverhalt»
puramente intencional vertê-lo-emos por «relação objectiva» visada pela
síntese da intencionalidade nominal-verbal da enunciação, pois não parecem
dever traduzir-se por «état de choses» ou «state of affairs», p. ex., as
relações matemáticas. Por outro lado, a expressão «relação objectiva»
segue mais de perto a composição do termo alemão «Sachverhalt». Quando
136

Com isto ficaria descrita em perífrase uma das funções


essenciais e em qualquer caso para nós a mais importante da
enunciação. Esta é em si mesma uma unidade de sentido cuja
particularidade consiste no desempenho da função que acaba
de ser referida K Nela revela-se ao mesmo tempo a espécie
peculiar da intencionalidade do sentido da frase, que ainda
devemos sumàriamente caracterizar. Esta intencionalidade nem
é só nominal, directamente determinante ao designar, nem pura­
mente verbal e explicitante, mas de tipo inteiramente específico.
Fazer ressaltar na sua pureza e tornar intuitivamente apreensível
a sua particularidade exigiria extensas análises apropriadas.
Por isso, contentamo-nos agora com a indicação de que ela con­
siste numa síntese peculiar das duas espécies diferentes — nomi­
nal e verbal — de intencionalidade. Nesta síntese prevalece
sempre o momento verb al2. O seu correlato também é inteira­
mente singular: não é nenhum «objecto» mas também não é
nenhuma pura «relação» (que seria projectada sem ser relação
de algo) correspondente ao verbo finito isolado. É uma «relação
objectiva», como acertadamente foi dito por vários autores3.
Ad 2) A operação da frase baseia-se na sua função total:
ela cria intencionalmente um correlato da frase e, ao mesmo
tempo, uma «ordenação» a ele. Note-se que a «relação objectiva»
criada e explicitada pela frase é transcendente ao conteúdo de
sentido da frase, mas não deixa de lhe pertencer essencialmente.
Por outras palavras, na sua existência é, por essência, relativa
à frase ou ao seu conteúdo de sentido e encontra nela o fun­

surge «Sachverhalt» objectivamente existente ou realizado então traduzi­


mos por «comportamento de coisas», conservando deste modo a ideia
originária de relação que se concretiza na variada gama das auto- c hetero-
-relações, base de todos os comportamentos. (N. T.)
' Se se tratasse de uma teoria completa da frase seria preciso mostrar
expressamente que esta função é exercida por qualquer frase seja qual
for a sua forma ou conteúdo. Certamente não é tarefa fácil mostrar, por
um lado, as modificações e complicações tão variadas desta função e, por
outro, a sua identidade em todas estas variações. Isto, porém, desviar-nos-ia
demasiado do nosso tema principal.
2 A este respeito tem razão Fr. Neumann quando considera o verbo
como o elemento construtor da frase; cf. Die Sinneinheit des Satzes und
c!as indo germanis che Verbum, Homenagem a Husserl, pp. 297 e segs.
J Não sei dizer quem introduziu este termo. Em todo o caso ganhou
direitos de cidadania na linguagem filosófica a partir das investigações
realizadas pelo fenomenólogos — Husserl, Reinach, Pfánder. A. Meinong,
que anteriormente a Reinach estudou os correlatos intencionais da frase,
usa o termo «Objektiv». Também K. Stumpf emprega o termo «Sach­
verhalt».
137

damento do seu ser. Portanto, não há «réláCcTO OtTfettiva» expli­


citada sem frase e não há frr.se sem o seu correlato explicitado.
Deve ainda observar-se que esta «relação objectiva» criada e
desenvolvida pela frase tem de se distinguir rigorosamente do
«comportamento das coisas» existente objectivamente em qual­
quer esfera de ser independente da frase e nela radicada'.
Chamaremos também à primeira «relação objectiva puramente
intencional» ou «correlato puramente intencional da frase». Mais
adiante veremos que ambas se podem «relacionar» e assim a
frase receberá também uma «ordenação» a um «comportamento
de coisas» objectivamente existente (cf. §§ 22.° e 25.°).
Ad 3) Finalmente, qualquer frase pode exercer a função de
«notificação» e de «libertação»' no discurso comunicativo de
um modo mais ou menos expresso e evidente. Que nem todas
as frases devem necessàriamente exercer essas funções mos­
tram-no da melhor maneira aqueles casos em que formamos
frases sem as «dirigir» a ninguém ou sem as manifestar mesmo
de um modo inteiramente inadvertido3. Só aquelas frases em
que a função de libertação é salientada graças aos seus conteúdos
especiais de sentido perdem o seu «sentido» próprio (i. é, neste
caso, o seu «fim ») quando são formadas num pensamento soli­
tário e não exteriorizado.
Para mais fácilmente descrevermos algumas situações im­
portantes para 0 nosso objectivo intimamente relacionadas com
a estruturação e a operação da frase e dos períodos será útil
rsferirmo-nos já a alguns aspectos concernentes à estruturação
do correlato puramente intencional da frase e da objectividade
puramente intencional, embora estes já façam propriamente parte
do estrato seguinte da obra literária.
Destes aspectos vamos agora tratar.

§ 20. O objecto puramente intencional de um simples


acto intencional

Entendemos por objectividade puramente intencional4 uma


objectividade «criada» em sentido figurado por um acto de

1 Cf. as minhas Questões Essenciais, pp. 3 e segs.


2 Cf. K. Bühler, l. c.
■ O mesmo problema, exagerado quanto à essência da significação,
foi pormenorizadamente tratado por E. Husserl, Logischen Untersuchungen,
vol. II, Investigação I.
4 Sobre objectos intencionais, cf. sobretudo E. Husserl, Ideen zu einer
reinen Phaenom enologie, passim.
138

consciência ou uma multiplicidade de actos ou, em última aná­


lise, por uma formação lingüística (p. ex., a significação da
palavra, a frase) portadora da intencionalidade outorgada exclu­
sivamente em virtude da intencionalidade a eles imánente, ori­
ginal ou apenas outorgada, tendo essa objectividade a origem
do seu ser e de todo o seu modo de ser nestas objectividades
mencionadas. Em que sentido será lícito falar aqui de operação
«criadora» do acto da consciência e, correlativamente, de um
«ser criado» e de um ser de objectividade puramente intencional
teremos a seguir oportunidade de examinar com maior exacti-
dão (pp. 142 e segs.). Por enquanto, a definição agora dada apenas
servirá para distinguir as objectividades puramente intencionais
segundo a ideia das objectividades autónomas no seu s e r1 em
relação à consciência. Para estas últimas é inteiramente acidental
(caso realmente existam) ser o ponto de incidência de um acto
da consciência e, portanto, ser de um modo secundário objec­
tividades «também intencionais».
A palavra «intencional», tão frequentemente empregada na
literatura moderna, é ambígua. Por um lado, chama-se «inten­
cional» àquilo que encerra em si uma «intenção». Neste sentido,
p. ex., os actos de consciência são «intencionais». Quando houver
perigo de um equívoco empregaremos nesse caso em vez de
«intencional» a expressão «de intenção» (p. ex., «acto de inten­
ção»). Por outro lado, chama-se «intencional» aquela objectivi­
dade que constitui o ponto de incidência de uma intenção. Neste
último sentido devem distinguir-se ainda as objectividades «pura­
mente intencionais» e as «também intencionais». A esta distinção
pretendem corresponder as definições apresentadas no início do
parágrafo presente. Por fim, devemos distinguir ainda entre as
objectividades «puramente intencionais» as «pura e originària-
mente intencionais» e as «pura e derivadamente intencionais».
As primeiras têm a origem do seu ser e do modo de ser direc­
tamente nos actos concretos da consciência realizados por um
Eu, as outras devem o seu ser e o modo de ser às formações
que ocultam em si uma intencionalidade «emprestada», nomea­
damente às unidades de significação de ordem diversa. Como
tais produções remetem para a intencionalidade originária dos
actos de consciência as objectividades pura e derivadamente

1 Cf. as minhas Bemerkungen zum Problem Idealismus-Realismus,


Homenagem a E. Husserl.
139

intencionais têm a última raiz do seu ser nos actos da cons­


ciência \
As objectividades puramente intencionais são «transcenden­
tes» aos actos correspondentes e a quaisquer outros actos da
consciência no sentido de nenhum elemento (ou momento) real
do a cto2 ser um elemento da objectividade puramente intencional
e vice-versa. Apesar disso pertencem aos actos correspondentes
em que têm a sua origem e constituem um «correlato intencional»
destes actos que dimana da essência do acto da consciência’ e
é, neste sentido, necessário.
Um caso especial das objectividades puramente intencionais
é constituído pelos objectos pura e originàriamente intencionais
que pertencem a um simples acto intencional (ou a uma multi­
plicidade deles). Destes trataremos em primeiro lugar.
Antes de mais é preciso distinguir em qualquer objecto
puramente intencional entre o conteúdo e a estrutura que o
caracteriza como puramente intencional. Poder-se-ia falar também
do seu conteúdo e do objecto puramente intencional ou, final­
mente, opor ao seu conteúdo as características específicas da
intencionalidade 3. Em pormenor trata-se do seguinte:
Escolhamos, para simplificar, o objecto puramente intencio­
nal de um simples acto intencional em que «apenas representa­
mos» determinada «mesa». Pertencem ao conteúdo deste objecto:
1.° a estrutura formal da coisa, 2.° a totalidade das determinações
materiais que nesta estrutura qualificam o todo como uma
«mesa», 3.° aquele carácter do ser da mesa segundo o qual a
representamos como «r e a l»4 ou como totalmente fictícia. Na

1 Tanto a própria intencionalidade como ainda os objectos puramente


intencionais não foram naturalmente descobertos por mim. Sem as inves­
tigações de E. Husserl, A. Pfânder e, em última análise, de Fr. Brentano
e K. Twardowski nunca esta ideia me teria 'ocorrido. A seguir tento apenas
fazer ressaltar mais precisamente a essência das objectividades puramente
intencionais e libertar o seu «conceito» de muitas impurezas. Max Scheler
distingue entre objectos «puramente intencionais» e «também intenciqnais»,
cf. o artigo Idealism us-Realism us, Philosophischer Anzeiger II, 3.
2 No sentido de E. Husserl (Logischen Untersuchungen, vol. II). Sobre
a transcendência dos objectos intencionais, cf. E. Husserl, Ideen zu einer
reinen Phaenom enologie, §§ 41.° e 42.°
3 Nas minhas Questões Essenciais, em que estudei um caso especial
das objectividades puramente intencionais correspondentes às frases (deno-
minei-as: objectos formais do juízo ou da interrogação), falei em vez do
conteúdo e da estrutura do objecto intencional da sua «m atéria» e «form a»,
pelo que tive de me haver com o sentido inevitàvelmente duplo destes
termos. Cf. /. c., pp. 3, 8 e segs.
4 Mais precisamente «intencionada» como real.
140

estrutura formal da coisa aparece neste caso como seu momento


principal o portador autónomo de qualidades reais ou caracte­
rísticas que através de um momento qualitativo (a «condição
de mesa») como «,uop-r-?/» 1 imediata se transforma na natureza 2 do
respectivo objecto. Mas este portador de qualidades da «mesa»
intencionalmente visada constitui apenas um ponto por assim
dizer característico do conteúdo do respectivo objecto puramente
intencional e é diferente do portador do mesmo objecto. É que
o respectivo objecto puramente intencional como tal tem um
portador próprio e específico das suas qualidades ou caracterís­
ticas diferentes daquelas que aparecem no seu conteúdo e per­
tencem à «mesa» visada. É próprio das primeiras qualidades,
p. ex., o objecto puramente intencional ser apenas algo «inten­
cionalmente visado» que necessàriamente pertence ao respectivo
acto de consciência e encerrar em si um «conteúdo» (precisa­
mente este conteúdo determinado), etc. Há, por conseguinte,
uma duplicidade curiosa de aspectos e de «suportes» na estru­
turação do objecto puramente intencional constituindo por si
mesma uma particularidade formal característica do objecto
puramente intencional (não pertencendo, portanto, ao seu con­
teúdo), particularidade essa que nos objectos individuais e autó­
nomos no seu ser relativamente aos actos da consciência não
só é inexistente mas, por çssência, excluída.
O falar de dois portadores existentes no mesmo objecto
puramente intencional deve ser correctamente entendido. Em
princípio, entre os dois portadores distintos a primazia onto-
lógica cabe àquele que é portador das qualidades do objecto
puramente intencional como tal. Em contrapartida, o segundo
portador (o das qualidades «da mesa») desempenha no objecto
puramente intencional como tal apenas a função subordinada
de um momento distinto no quadro do seu conteúdo. Se ter
um conteúdo é uma qualidade do objecto puramente intencional3
o «portador da mesa» pertence ao âmbitQ do possuído pelo
objecto e não exerce nele qualquer função de- portador. Exerce-a
apenas em relação aos outros momentos de conteúdo (as qua­

1 Cf. J. Hering, B em erkungen über das Wesen, die W esenheit und die
Idee, Jahrbuch für Philosophie, vol. IV.
2 Cf. as minhas Questões Essenciais, cap. 2.°
3 Seria naturalmente errado considerar este conteúdo cm si m esm o
como qualidade do objecto puramente intencional. Mas também é difícil
considerar este conteúdo como parte deste objecto no sentido em que
um pé é parte da mesa. Trata-se aqui de situações muito particulares que
deveriam ainda ser investigadas em si mesmas.
141

lidades da «mesa» intencionada) e só o «fa z» num sentido


muito modificado (que mais adiante será aprofundado) \ p. ex.,
para se distinguir da função de portador de um objecto autó­
nomo no seu ser. Mais ainda: para pôr em evidência os dois
portadores é preciso um modo especial de realização do acto
intencional. Em geral quase não vemos directamente as estru­
turas e as características da intencionalidade do objecto pura­
mente intencional nem em especial o seu portador. De preferência
dirigimo-nos directamente para aquilo a que atrás chamámos
o «conteúdo» e não o temos neste caso diante de nós como
conteúdo mas simplesmente como algo de objectivo cujo por­
tador suporta, como momento, precisamente o conteúdo do
respectivo objecto puramente intencional. Sob o aspecto do
«quid» deste momento não é visado intencionalmente apenas o
conteúdo do respectivo objecto intencional (como em rigor devia
ser), mas o objecto intencional total. Por outras palavras, nestes
casos este momento qualificado por uma p-oovi) imediata desem­
penha precisamente a função do portador por assim dizer pró­
prio do objecto intencionado, enquanto o auténtico portador
do objecto puramente intencional permanece num estado latente
quase oculto. Só um modo especial de realização do acto de
consciência que, por assim dizer, esgote a actividade plena desse
acto põe em total evidência o verdadeiro portador do objecto
intencional e transfere de um para o outro as relações dos dois
portadores no sentido das observações atrás desenvolvidas.
Sentir-nos-emos talvez inclinados a negar estas modificações
dignas de nota e existentes apenas em objectividades puramente
intencionais e que sucedem por variação do modo de realização
do simples acto intencional e, nesta ordem de ideias, estaremos
dispostos a negar também a existência de um duplo portador.
É que na atitude natural da vida diária perante as objectividades
autónomas no seu ser somos inclinados a estender a todas as
objectividades a estrutura objectiva encontrada naquelas e a
refutar como absurda a afirmação da existência dos dois por­
tadores. Admitir-se-ia, quando muito, que uma aparência desta
existência nos objectos puramente intencionais resultaría do
facto de realizarmos uma nova objectivação quando, em vez de
exercermos simplesmente um acto de intenção, nos dirigimos
intencionalmente, num acto segundo, ao correlato do primeiro
acto. Neste caso, porém — dir-se-ia — , não tratamos, no fundo,

1 Cf. cap. 7.°, § 33.°


142

de um objecto puramente intencional mas de dois objectos


diversos, e cada um de per si teria o seu portador.
A isto respondemos: em principio, é naturalmente possível
sujeitar o correlato intencional de um acto de intenção a urna
nova objectivação, por assim dizer, de ordem superior. Mas esta
não é necessária para apreendermos o objecto puramente inten­
cional na sua dupla estrutura peculiar. Por outro lado, esta
estrutura bifacial não é produzida em primeiro lugar por uma
objectivação de duplo grau. Para apreender a dupla estrutura
basta realizar o simples acto intencional de um modo um pouco
modificado que ponha em evidência a operação plena do acto,
de maneira que as características e estruturas especificamente
intencionais passem do seu estado latente geralmente quase
oculto para plena luz. Naturalmente, volta-se também neste caso
o olhar para estas características. Mas isto visa apenas escla­
recê-las e não se deve confundir com um acto autónomo de
captação que projectasse um objecto próprio puramente inten­
cional. Quando, pelo contrário, realizamos um segundo acto
intencional dirigido para o objecto intencional de um primeiro
então não há um objecto simples puramente intencional nem
dois objectos deste género, mas sim um correlato puramente
intencional de dois actos de construção sobreposta 1 que assinala
uma estrutura formal muito mais complicada do que a do
objecto simples puramente intencional.
Os esclarecimentos e as modificações que se passam na
variação da maneira de realizar o acto no âmbito do objecto
puramente intencional chamam-nos em primeiro lugar a atenção
para a essência particular do objecto puramente intencional.
Eles mostram na verdade em que medida o objecto depende
dos actos da consciência, de que modo a mínima variação, quer
no modo de realização, quer no conteúdo de sentido do acto
forçosamente produz uma modificação na totalidade do objecto
puramente intencional correspondente. Por outras palavras, mos­
tra-se aqui nitidamente que o objecto puramente intencional
na totalidade do seu ser e do modo de. ser — apesar da sua
transcendência— está dirigido para o ser e o modo de ser do
acto correspondente da consciência. Ele resulta da realização
de actos de consciência bem especificados que levam à «cons­

' De tal modo é assim que o acto intencional por assim dizer « infe­
rior», ao lado do seu correlativo intencional e enquanto essencialmente
vinculado a este, se torna também um objecto intencionalmente visado
ainda que não seja lícito considerá-lo como um objecto puramente inten­
cional.
143

tituição» de um todo que transcende estes actos. Mas precisa­


mente neste «estar-dirigido-para-actos-de-consciência», neste «per-
manecer-perfeitamente-na-esfera-de-poder-do-eu-consciente» e, por
outro lado, na falta de uma autêntica força criadora da cons­
ciência pura deste tipo que nós, os seres humanos, somos capa­
zes de realizar nas nossas vivências é que reside a última razão
de o objecto puramente intencional como tal ser em si mesmo
um «nada» no sentido da autonomia no ser, de por si próprio
nem poder existir ném modificar-se. É — como dissemos — «pro­
jectado», «criado» pelo pensar intencional; este criar, porém,
segundo a própria essência do acto de pensamento intencional,
não é auténtico criar, produzir, quer dizer, não é um produzir
em que o «criado» contivesse em si mesmo de modo imánente
as determinações que lhe são atribuídas pelo acto. São-lhe mera­
mente atribuidas e este atribuir não é criador no sentido de
poder «corporizar» no objecto as determinações que lhe são
atribuídas e particularmente ao seu conteúdo. Por «possuir»
determinações apenas intencionalmente «atribuidas» o objecto
puramente intencional nada contém no seu conteúdo que pudesse
fornecer-lhe um fundamento próprio do seu ser. É, em sentido
próprio, heterónomo no seu ser \ A este respeito os dois por­
tadores por nós discriminados também não são portadores em
sentido auténtico. O objecto puramente intencional não é ne­
nhuma «substância». Se fosse lícito exprimir-se assim, muitos
momentos atribuidos ao objecto puramente intencional apenas
aparentam ter a condição de «portador», parecem desempenhar
uma função que por essência não são capazes de realmente
desempenhar porque para isto é indispensável a autêntica ima­
nência das determinações próprias do respectivo objecto. Só os
momentos formais e qualitativos imanentemente contidos em
sentido autêntico num objecto o podem determinar e dar-lhe
esta ou aquela forma determinada. O objecto puramente inten­
cional não é «determinado» em sentido rigoroso pelo menos
quanto ao seu conteúdo. Em paralelo com qualquer objectividade

1 Sobre a heteronomia e a autonomia no ser cf. o meu estudo Bemer-


kungen zum Problem Ideálismus-Realismus, l.c., p. 165. Onde nós falamos
de «heteronomia no ser» Hedwig Conrad-Martius fala da «caducidade imá­
nente». A propósito da análise do modo de ser do meramente alucinado
ela diz: «O imanentemente caduco não chega “ a si próprio” , mas fica
radical e nuclearmente “mergulhado” nó espírito que apenas o produz
nos seus aspectos, portanto sem essência, e não é propriamente “ intro­
duzido na existência".» Cf. Reálontologie, Jahrbuch für Philosophie, vol. V I,
p. 185.
144

autónoma no seu ser ele é uma «aparência», mas uma aparência


que não tem a sua razão de ser numa esfera real que transcende
a consciência pura, mas uma «aparência» que tem a origem do
seu ser e do modo de ser aparente na intenção projectiva (na
«doação de sentido» no dizer de Husserl) do acto intencional K
Por outro lado, o objecto puramente intencional não é todavia
um nada absoluto, um nada que em nenhuma esfera de ser
tivesse o seu ponto de apoio e articulação. Teremos ainda opor­
tunidade de tratar disto.
Por enquanto convém ainda recordar2 que todo o acto
intencional «tem », na verdade, o seu objecto próprio puramente
intencional e que apesar disso uma multiplicidade discreta de
actos pode também ter um e o mesmo objecto puramente
intencional. Neste caso o òbjecto é individualmente o mesmo,
i. é, o portador do seu conteúdo é intencionado como idéntica­
mente o mesmo. Contudo, o conteúdo pode modificar-se pelo
menos no sentido de, em caso de nova intenção, se tornar por­
tador de certa «qualidade de notoriedade». As modificações
podem, porém, ser muito mais amplas e radicais: ou se limitam
a uma determinação mais pormenorizada e continuada ou con­
duzem até a uma determinação diferenciadora, mais precisa­
mente, à transformação do conteúdo. É, naturalmente, um pro­
blema que se não pode aqui aprofundar saber que determinações
diferenciadoras são possíveis num «quid» já estabelecido e fixado
do respectivo objecto puramente intencional. Basta aqui obser­
var que o âmbito destas possibilidades é nas objectividades
puramente intencionais diferente do que existe nas objectividades
autónomas no seu ser e também intencionais. Assim, não há,
p. ex., nenhum «ferro de madeira» real ou um «quadrado re­
dondo» ideal, enquanto objectos puramente intencionais com
estes conteúdos são inteiramente possíveis ainda que não possam
ser representados intuitivamente. Se o sujeito consciente se
quiser mover no quadro da representabilidade intuitiva é vin­
culado a determinados limites traçados pelo «quid» do conteúdo—
isto certamente apenas pela própria resolução de perseverar no
objecto puramente intencional uma vez visado («instituído», no
dizer de Husserl). Desde que, porém, abandone esta resolução

1 É extremamente difícil descrever com exactidão este carácter apa­


rente porque todas as expressões que poderíamos usar, graças ao seu
emprego usual na designação de objectividades autónomas no seu ser
estão adaptadas, .no seu conteúdo de sentido, às situações existentes nas
esferas ontològicamente autónomas.
2 Cf. E. Husserl, Ideen, passim.
145

os limites dentro dos quais é frvrc f4orgnm sp, p* ex., de maneira


a poder mover-se livremente dentro dos limites prescritos por
um tipo especial da objectividade (p. ex., o das objectividades
«reais»). Um caso-limite destas possibilidades que se não deve
postergar é constituido pela «destituição» dum objecto puramente
intencional de inicio instituido: o objecto é declarado «aniqui­
lado», «não mais existente» num acto especial em que o correlato
intencional de tal acto anulador encerra em si situações dignas
de toda a atençãol. É particularmente interessante que um
objecto uma vez «destituído», «anulado», possa ser de novo
intencionalmente visado como anulado.
Em objectos puramente intencionais que correspondem a
uma multiplicidade de actos discretos concernentes ao «quid»
do seu conteúdo idénticamente o mesmo produz-se uma «trans­
cendência» peculiar que não deve ser confundida com a trans­
cendência atrás (p. 139) verificada de todo o objecto puramente
intencional em relação aos actos correspondentes. O seu tipo
depende do tipo do objecto concebido sob o aspecto do conteúdo.
Por exemplo: inventamos — ao traçar o plano de um romance —
um jovem que pela sua índole não está preparado a triunfar
em certas situações difíceis da vida. Entretanto, sobrevém um
acontecimento fatídico em que ele se vê obrigado a contar
apenas consigo mesmo. As graves lutas internas e externas por
que tem de passar desenvolvem nele uma força nova, antes talvez
existente em si apenas em germe, de modo que ele, por fim,
completamente mudado, sai da crise como homem maduro e
vigoroso. Para podermos conceber tudo isto nos seus porme­
nores devemos realizar toda a multiplicidade de actos intencio­
nais em que o «herói» é ideado como idénticamente o mesmo

' Em oposição a isto, H. Conrad-Martius (cf. Realontologie, l. c., p. 182)


afirma: «Ham let — uma vez poéticamente criad o — não pode ser aniqui­
lado porque não possui um ser próprio aniquílável». Naturalmente, o
Hamlet ■shakespeariano não pode ser *<aniquilado» como um ser humano
real precisamente por ele não ser autónomo no seu ser. Isto, porém, não
exclui que Hamlet possa ser despojado do seu ser em certo sentido apa­
rente e mesmo heterónomo por um «não» intencional. O poeta fá-lo fre­
quentemente nas suas criações, que rejeita ou abandona como algo que
não satisfaz a sua vontade artística. H. Conrad-Martius distingue, aliás,
entre o Hamlet poéticamente criado e um objecto de pura alucinação
vendo uma afinidade essencial, quanto ao seu modo de ser, entre o poéti­
camente criado e as objectividades ideais como, p. ex., um triângulo.
A meu ver sem razão suficiente. Isto, porém, só poderia demonstrar-se
através de uma ontologia existencial sistemáticamente desenvolvida (cf. o
meu livro Streit um die Existenz der Welt, onde procurei também apresen­
tar uma análise aprofundada do objecto puramente intencional).

10
146

(a mesma personagem) apesar de aparecer sucessivamente em


situações sempre novas, de qualquer modo algo modificado e
atravessando estados psíquicos diversos. Então, nos actos sin­
gulares que aparecem «mais tarde» na multiplicidade de actos
o «h erói» não só se apresenta revestido daquelas determinações
explicitamente intencionadas pelo respectivo acto mas, simultá­
neamente, como aquele que «anteriormente» fora «outro» e
passara precisamente por determinadas vicissitudes e não por
outras quaisquer, etc. Mas não só relativamente àquilo que
«anteriormente» foi e às qualidades que então «teve», mas ainda
em relação às suas qualidades «actuais», o «h erói» é intencio­
nalmente visado de tal modo que o âmbito das suas qualidades
não se esgota naquilo que é explicitamente intencionado por
qualquer acto. A totalidade do conteúdo deste objecto puramente
intencional transcende, portanto, em várias direcções aquilo que
corresponde ao conteúdo explícito da intenção de qualquer acto
singular e que constituiria o conteúdo do objecto puramente
intencional exclusivamente pertencente ao respectivo acto (no
caso de os actos restantes não existirem). O conteúdo total do
objecto idénticamente visado por muitos actos «transcende» o
conteúdo do objecto que pertenceria a um acto intencional iso­
lado. Ou sob outro aspecto: porque o acto singular, no nosso
caso, não é isolado e aparece em determinado lugar da multi­
plicidade de actos temporalmente distendida como seu membro
o conteúdo intencional determinado apenas pelo constitutivo
explícito da intenção transcende-se a si próprio em direcção aos
restantes momentos do conteúdo total do objecto intencional
idénticamente visado em muitos actos. Nisto reside uma inten­
cionalidade particular do conteúdo. A sua origem e a sua pos­
sibilidade são problemas fenomenológicos especiais que neste
momento não podem ser tratados.

§ 21. Os correlatos pura e derivadamente intencionais


das unidades de significação

Não podemos tratar aqui dos diversos tipos de objectivida­


des pura e ociginàriamente intencionais que correspondem a
actos de consciência de construção diversa. São- mais importantes
para o nosso fim as modificações que distinguem das objectivi­
dades originais as pura e derivadamente intencionais criadas
pelas significações das palavras.
Tanto as palavras isoladas como as frases inteiras distin-
guem-se — como já foi dito — pela intencionalidade outorgada,
147

que lhes é cedida pelos actos de consciência. Isto permite às


objectividades puramente intencionais libertarem-se, por assim
dizer, do contacto imediato com os actos da consciência concebi­
dos na sua realização, conseguindo assim relativa autonomia em
relação a estes. Como puramente intencionais as objectividades
«criadas» pelas unidades de significação continuam a ser hete-
rónomas e dependentes no seu ser, mas esta sua relatividade
ontológica remete directamente para a intencionalidade imánente
às unidades de significação e só mediatamente para a dos actos
da consciência.
Por esta deslocação da sua relatividade ontológica obtêm
determinada primazia em comparação com as objectividades
püra e originàriamente intencionais. Enquanto estas são pro­
duções «subjectivas» no sentido de na sua originalidade serem
apenas imediatamente acessíveis àquele sujeito consciente rea­
lizador dos actos que as criaram e de não poderem ser isoladas
dos actos concretos a que necessàriamente pertencem, as pri­
meiras na sua qualidade de correlatos de unidades de signifi­
cação são «intersubjectivas»: podem ser intencionalmente visadas
ou aprendidas como idénticamente as mesmas por diversos
sujeitos conscientes. Isto tem a sua razão no facto de as palavras
(as frases) e particularmente as significações das palavras (os
conteúdos de sentido das frases) serem intersubjectivas (cf.
cap. 14.°).
Através desta separação dos actos concretos da consciência
realizados na vida e plenitude originárias os correlatos inten­
cionais das unidades de significação sofrem ainda outras modi­
ficações diversas, entre as quais uma é particularmente impor­
tante para a estruturação da obra de arte literária. Consiste
numa certa esquematização do seu conteúdo. As objectividades
originárias puramente intencionais são geralmente intencionadas
em actos que se entrelaçam com diversas outras vivências da
consciência. Assim, o acto intencional constrói-se geralmente
sobre diversos conteúdos intuitivos, une-se estreitamente com
frequência a diversas tomadas de posição teóricas e práticas e
é ainda muitas vezes acompanhado de vários sentimentos e
actos volitivos, etc. Tudo isto leva a que o objecto puramente
intencional correspondente atinja plenitude e vida no seu con­
teúdo e eventualmente se revista de várias características emo­
cionais e valiosas que transcendem aquilo que é projectado pelo
mero conteúdo de sentido do simples acto intencional mas,
apesar disso, pertencem à plenitude de conteúdo do objecto
puramente intencional correspondente, que neste caso constitui
o correlato da totalidade das vivências da consciência em pleno
148

desenvolvimento precisamente no mesmo sentido em que a parte


do conteúdo intencional exclusivamente determinada pelo con­
teúdo do acto de intenção*. O conteúdo de sentido do acto
intencional também pode, naturalmente, ser de tal forma cons­
tituído que o objecto puramente intencional correspondente seja
visado no seu conteúdo como revestido destas diversas carac­
terísticas ou representado no material intuitivo especial, não
conseguindo, porém, só por isto a plenitude e a vida intuitiva.
Geralmente, estes diversos momentos da intenção não são abran­
gidos pelo conteúdo do acto intencional; apesar disso, porém,
o objecto originário intencional correspondente obtém carácter
intuitivo, plenitude e qualidades emocionais dos outros elementos
da vivência total em que esse acto intencional está integrado
ou recebe as suas características intencionais, emocionais ou
volitivas do fundo da vivência que rodeia o respectivo, acto inten­
cional. Neste caso é certo que não são explicitamente abrangidas
pelo conteúdo mas existem neste «não-temàticamente», na ex­
pressão de Husserl.
Desde que o objecto puramente intencional perca o seu
contacto imediato com a vivência (i. é, quando é um objecto
intencional derivado) e encontre o seu apoio ontológico imediato
na intencionalidade cedida pela significação de uma palavra
(ou pelo conteúdo de sentido de uma frase) perde tanto a sua
qualidade intuitiva e imaginativa como ainda as várias caracte­
rísticas emocionais e valiosas, visto que a significação da palavra
em toda a sua plenitude também só abrange aquilo que corres­
ponde exactamente ao conteúdo do simples acto intencional2.
Do objecto puramente intencional originàriamente visado resta,
por assim dizer, apenas um esqueleto, um esquema. É esta uma
circunstância particularmente melindrosa para a obra de arte
literária em que penetram as objectividades pura e derivada­
mente intencionais e levanta-se a pergunta se será possível recom­
pensar a perda que para a obra de arte literária assim resulta
por meio de outros elementos não-significativos da obra de arte
literária. Mais adiante veremos que verdadeiramente assim é.
Aliás, já reunimos, em parte, nas alusões precedentes o material
a este respeito relevante.

1 Parece que é a este conteúdo ou a esta parte .do conteúdo que


E. Husserl se refere ao falar do «núcleo noemático». Cf. Ideen, § 99.°
2 Desde que se trate, naturalmente, da significação de uma palavra
em cujo conteúdo material não estejam determinadas características deste
género.
149

§ 22. O correlato puramente intencional da frase

O correlato puramente intencional da frase 1 difere em muitos


aspectos dos correlatos puramente intencionais dos simples actos
de intenção ou das significações nominais das palavras. Trata-se,
portanto, agora de circunscrever mais exactamente a estrutura
particular dos correlatos intencionais das frases e nomeadamente
das «relações objectivas». Naturalmente, temos de nos limitar
aqui — como em muitos outros passos do livro presente — apenas
a análises de exemplos sem pretendermos apresentar uma teoria
geral que tomasse em consideração todos os pormenores e todos
os casos possíveis. Ao começarmos por nos limitar aos correlatos
das frases afirmativas é preciso sobretudo distinguir — como já
no § 19.° se observou— entre correlatos puramente intencionais
de frases e o «comportamento das coisas», «objectivo» eventual­
mente existente que pode dar-se numa esfera de ser realmente
autónoma em relação à frase2. Enquanto o «comportamento
objectivo das coisas» — caso ele exista— tem o seu lugar onto-
lógico nos objectos existentes e penetra com o respectivo objecto,
como membro não rigorosamente isolado, na esfera de ser cor­
respondente e é por nós apenas descoberto no acto de julgar,
a «relação objectiva» puramente intencional não só tem o fun­
damento do seu ser na respectiva frase afirmativa cujo conteúdo
de sentido a produz, «pertencendo-lhe» por essência como seu
correlato, mas é ao mesmo tempo — no caso de uma frase soli­
tária— um todo isolado e concluído. Semelhante «pertencer»,
qualquer «estar vinculado» à frase, em contrapartida, não se
encontram no comportamento das coisas objectivamente exis­
tentes. Para este é absolutamente acidental ser «atingido» pelo
conteúdo de sentido da frase. Entre ele e a frase correspondente
não há nenhuma conexão intrínseca essencial e muito menos
ontológica. Só por esta razão pode haver frases e até frases

1 Nos últimos decênios foram principalmente estudados os correla­


tos intencionais das frases afirmativas, falando-se então de «relações
objectivas». Como procuro aqui um termo utilizável para designar o corre­
lato de qualquer frase (o que, no caso do termo «Sachverhalt», já não
sucede, p. ex., relativamente aos correlatos das frases interrogativas) pre­
firo o termo geral de «correlato puramente intencional da frase». Neste
caso «relações objectivas», «problem as», etc., constituem casos especiais
deste correlato. (Cf. as minhas Questões Essenciais, cap. I, pp. 10 e segs.)
2 Nas minhas Questões Essenciais falei em objecto «form al» e «m a­
terial» ao juízo (cf. /. c., pp. 3 e segs.).
150

afirmativas a ^ue não «corresponde» nenhum comportamento


de coisas objectivo \ É que urna frase não «tem », em rigor, um
comportamento de coisas objectivo. «T em » — e por essência —
meramente a «relação objectiva» puramente intencional ou (fa­
lando em geral) o correlato puramente intencional da frase, em
que o «tid o » não constitui parte alguma da frase2.
Pela sua essência, os comportamentos objectivos de coisas
só podem corresponder directamente às proposições afirmativas.
(Como é que este «corresponder» se origina e sobretudo é possível
vê-lo-emos mais adiante.) Em contrapartida, semelhante corres­
pondência directa é completamente excluida das frases interro­
gativas reais pelo seu sentido3. O mesmo sucede às frases impe­
rativas, optativas, etc. Se dou a uma pessoa esta ordem: «Dá-me
um copo de água!» e se ela a seguir e de facto mo dá, aquilo
que fez é certamente o cumprimento da ordem recebida mas
não é, em sentido rigoroso, «o (que foi) ordenado». «O (que foi)

1 Se este caso aparece numa frase afirmativa (um «juízo») estamos


perante uma frase afirmativa «falsa».
2 Das «relações objectivas» trataram, entre os fenomenólogos, nomea­
damente E. Husserl (Logischen Untersuchungen, passim), A. Reinach (Zur
Theorie des negativen Urteils, Münchener Abhandlungen, pp. 217 a 235), e
A. Pfaender (Logik, Jahrbuch für Philosophie, vol. IV, pp. 174 a 176, 185 a
189, 221 e segs.). Da restante literatura interessam A. von Meinong (espe­
cialmente Ueber Annáhmen, passim) e C. Stumpf (Erscheinungen und
psychische Funktionen, 1907). Em nenhum dos autores citados encontro
uma distinção conscientemente feita e levada até aos seus pormenores entre
o comportamento das coisas objectivamente existentes e o puramente
intencional. E. Husserl e A. Reinach entendem por «Sachverhalt» o com­
portamento das coisas objectivamente existente. Especialmente em Reinach,
isto é bem evidente. Em contrapartida, Pfaender (e talvez também Meinong)
entendem por «Sachverhalt» uma «relação objectiva» puramente inten­
cional. Nestes dois autores encontram-se, todavia, também passos que
fazem supor que eles distinguem entre as «relações objectivas» puramente
intencionais e as objectivamente existentes. Meinong fala a este respeito
de «objectivos reais», Pfaender do «auto-relacionar-se» do objecto (Logik,
pp. 221 e segs.). Quanto a Meinong, que, como se sabe, emprega o termo
«objectivo», a sua teoria não tem unidade. Por conseguinte, é muitas vezes
difícil saber o que ele tem propriamente em vista. A objecção de Reinach,
de que Meinong opera com um conceito obscuro de frase e chega, por
isso, a uma concepção equivocada, tanto do «objectivo» como da sua re­
lação com a frase, é certamente justa, ainda que haja diversos passos em
Meinong que se aproximam do ponto de vista de Reinach. As minhas
observações seguintes procuram 'transcender a produção literária já exis­
tente e, em muitos pontos, afastam-se das teorias anteriormente apresen­
tadas. A discussão destas levar-me-ia aqui longe de mais.
3 Cf. as minhas Questões Essenciais, cap. I, § 3.°
151

ordenado» como t a l1 não pode existir em nenñüm mundo autó­


nomo no seu ser ou real. O cumprimento da ordem efectua-se
realizando uma «relação objectiva» (ou uma multiplicidade de
relações). Uma vez realizada pode tornar-se o «objecto material»
de urna frase afirmativa e relacionar-se com a ordem recebida
como sua «execução». Mas o que então se realiza não é «o (que
foi) ordenado» como tal, mas sim uma «relação objectiva» cuja
realização todavia é conseqüência da obediência de alguém que
recebeu, e entendeu a ordem. A «relação objectiva» realizada
não tem em si própria um carácter especial de imperativo e
distingue-se, portanto, do «ordenado» como tal a que esse carác­
ter é essencial. Não há característica alguma com «form a de
imperativo» que pudesse distinguir uma «relação objectiva» real
independentemente de todas as intenções da consciência ou da
frase. Pertence ao sentido do imperativo que aquilo que por
ele é ordenado ainda não exista mas se tenha «de realizar».
O «ordenado» como tal é um «ter de se realizar» relativamente
ao imperativo e, na realidade, nada há que exista e simultánea­
mente se tenha apenas «de realizar». Assim, o «ordenado» como
tal não pode ser efectivamente realizado. É apenas o correlato
puramente intencional de uma frase imperativa ou de um acto
subjectivo de intenção. Portanto, não há nenhum comportamento
de coisas objectivo que exacta e directamente corresponda à
frase im perativa2.

1 «O (que foi) ordenado», como tal, deve distinguir-se, por um lado,


do «dever» objecti vãmente existente que recai sobre aquele que é obri­
gado a obedecer à ordem dada, por outro, da vivência deste dever e, final­
mente, do correlato puramente intencional desta vivência.
2 Precisamente em casos como o «problem a», o «ordenado», etc., vê-se
com m aior nitidez que os correlatos puramente intencionais das significa­
ções ou das frases não são construções científicas arbitrárias e cómodas,
mas devem ser, necessàriamente, reconhecidos e aceites no seu «ser» espe­
cífico. Só agora — quase trinta anos após a publicação deste livro — se
investiga, sob vários aspectos, o problema do modo de ser de várias objec­
tividades. Assim, em 1958, Etienne Sourriau (que, aliás, em 1943, publicou
um livro: Les différents modes d'existence) deu à estampa um tratado
sobre o modo de ser do que «se tem de realizar», «de fazer», numa fase
essencialmente ampliada. A sua exposição é, indubitàvelmente, interessante
e contém várias observações correctas mas falta a toda a reflexão um
fundamento ontológico-existencial satisfatório, visto que não foram sufi­
cientemente salientados os momentos existenciais nem os modos de ser.
Cf., a este respeito, o vol. I do meu livro Der Streit um die Existenz der
Welt. Fenómeno análogo se regista nos últimos anos nos Estados Unidos
da América. Vários autores descobrem, novamente, problemas do modo
de ser, da estrutura e da identidade da obra de arte.
152

Em resumo: cada frase «tem » pela própria essência um


correlato pura e derivadamente intencional, mas só a frases de
tipo determinado e especiat é que correspondem comportamentos
de coisas objectivamente existentes. Mais adiante convencer-nos-
-emos de que mesmo frases que têm a forma de proposições
afirmativas podem ser modificadas de tal modo que, ao contrário
dos autênticos «juízos», não pretendem incidir sobre um com­
portamento de coisas objectivo.
N o correlato puramente intencional da frase é preciso dis­
tinguir entre o seu conteúdo, a estrutura intencional e o modo
de ser — no mesmo sentido, em que esta distinção é necessária
em qualquer objectividade puramente intencional. Aqui, a dis­
tinção resulta até muito mais imperiosa do que nos objectos
puramente intencionais do simples acto intencional (ou das
significações nominais das palavras). Se aqui não se quisesse
proceder a essa distinção dever-se-ia admitir que os correlatos
puramente intencionais das frases contêm em si momentos con­
traditórios. Por exemplo: o correlato puramente intencional da
frase tem — precisamente enquanto intencional— sempre um e
o mesmo modo de ser heterónomo. Entretanto, o carácter onto-
lógico do conteúdo do correlato puramente intencional de uma
frase é diferente conforme se trata de um tipo diferente de frase.
Assim, o conteúdo é caracterizado como «existente» numa frase
judicativa, como «dúbio» numa frase interrogativa, etc. E até
dentro das próprias proposições afirmativas (mais precisamente
das «frases judicativas») existem a este respeito diferenças con­
sideráveis e incompatíveis entre si. Aparece, p. ex., no conteúdo
do correlato intencional de uma proposição afirmativa categórica
o carácter ontológico do ser incondicional e simples; num juízo
hipotético, ao contrário, este carácter é inteiramente diferente
pois é precisamente o de um ser de uma ou outra maneira
condicionado; num' juízo problemático, por sua vez, é um «ser
provável», um «ser possível», etc. Por outro lado, p. ex., no
conteúdo do correlato da frase «Friburgo está situado em Baden»
aparece o carácter de um modo especial de ser a que chamamos
realidade, enquanto tal carácter de modo algum existe no con­
teúdo do correlato da frase «As diagonais do quadrado cruzam-se
em ângulo recto», mas é substituído, se assim se pode dizer,
pelo carácter do ser ideal. São todos eles caracteres do ser
rigorosamente distintos do carácter do ser intencional e incom­
patíveis com ele. Além disso, o conteúdo do correlato puramente
intencional da frase tem uma construção formal que lhe é
própria na sua qualidade de correlato de uma frase (no caso
da proposição afirmativa é a estrutura particular da «relação
153

objectiva», no caso de uma frase interrogativa a do «pro­


blema», etc.) e que é por essência distinta da simples estrutura
objectiva, própria também do correlato puramente intencional
da frase enquanto tal Se o correlato puramente intencional
da frasè não fosse — como todas as objectividades puramente
intencionáis— «bifacial» e se, na sua qualidade de objectividade,
não tivesse portador próprio e características próprias que não
podem ser equiparadas aos momentos que aparecem no seu
conteúdo seria impossível que todas as características e estru­
turas aparecessem num mesmo objecto. Só a distinção por nós
efectuada entre o correlato da frase como tal e o seu conteúdo,
bem como o modo de ser do «meramente atribuído» e «meramente
visado» que é essencial às objectividades puramente intencionais,
tornam compreensível para nós a existência destas características
e estruturas que reciprocamente se excluem.
No conteúdo do correlato puramente intencional da frase
é preciso distinguir por sua vez entre a matéria, a estrutura
formal e as características existenciais. Pode suceder que uma
«relação objectiva» e um problema tenham exactamente a mesma
matéria e se distingam todavia um do outro pelas suas carac­
terísticas ontológicas. Se, p. ex., pergunto: «O ferro é duro?»,
verificando a seguir: «O ferro é duro», a matéria dos dois con­
teúdos puramente intencionais do correlato é exactamente a
mesma. Aquilo mesmo por cuja existência se pergunta é posto
como existente na respectiva proposição afirmativa. Com isto
modifica-se o carácter ontológico do correspondente conteúdo
do correlato 2. Análogamente, há também relações objectivas com
matéria idêntica e forma diversa de conteúdo e, por outro lado,
«relações objectivas» com a mesma forma e matéria diferente
de conteúdo. Podem servir como exemplo do primeiro caso os
correlatos das frases: «A casa que se ergue no outro lado da rua
tem quatro andares» e «A casa erguida no outro lado da rua
tem quatro andares»3. O segundo caso pode ser exemplificado
pelos correlatos das frases: «Esta rosa é vermelha» e «Este cão

1 Já chamei a atenção para este ponto nas minhas Questões Essenciais


ao pôr em contraste as «relações objectivas» e os problemas.
2 Esta «relação objectiva» é visada como real, embora, tomada mera­
mente como correlato intencional da frase respectiva, é simplesmente algo
apenas intencionado e, portanto, ontològicamente heterónomo.
3 Além das diferenças puramente formais, aparecem neste caso ainda
diferenças no modo de se desenvolver «a relação objectiva» na medida
em que, em lugar da oração relativa que desdobra em frase o «estar do
outro lado da rua», surge o adjectivo que constitui parte do significado
nominal do sujeito na segunda frase.
154

é pardo». A matéria deve ser na generalidade dos casos oposta


à estrutura formal, mas observe-se que são apenas casos excep­
cionais aqueles em que dois conteúdos de correlato com matéria
inteiramente idêntica divergem somente em virtude da estrutura
formal. A regra geral é antes o caso oposto, em que os conteúdos
de correlatos da mesma estrutura formal têm matéria diversa.
Apesar de certa variabilidade da matéria com a mesma forma
de conteúdo (e vice-versa) pode, contudo, dizer-se que em geral
existe uma relação funcional de dependência entre a estrutura
formal e a matéria do conteúdo. Quais as normas que a este
respeito vigoram não pertence ao nosso trabalho investigar.
Sem desenvolver aqui uma concepção geral da forma do
conteúdo de um correlato puramente intencional da frase, vamos
demonstrar no caso especial da «relação objectiva» como esta
forma se distingue da estrutura formal de um simples objecto
Se abstrairmos das várias características ontológicas em que
pode figurar a «relação objectiva» que aparece no conteúdo de
um correlato intencional de uma enunciação, o todo restante
é, tanto material como formalmente, determinado. É, natural­
mente, impossível isolar somente a forma pura ou a matéria
pura. Só uma operação de variação (para empregarmos aqui a
palavra exacta de E. Husserl) graças à qual deixamos modificar
as determinações materiais, tornando-as assim variáveis, nos
permite pôr em evidência a estrutura formal de uma relação
objectiva.
Tomemos como exemplo o correlato intencional da frase:
«Esta rosa é vermelha». Deve notar-se, em primeiro lugar, que
a estrutura formal particular da «relação objectiva» não pode
ser apreendida na sua pureza quando se diz — como até agora
geralmente se disse— que ela não passa do «ser vermelho da
rosa». Abstraindo desde já de que esta expressão nominal é
formulada de tal modo que faz sobressair o momento ontológico,
ou, mais precisamente, o existencial (como se a «relação objec­
tiva» precisamente por isto se distinguisse de um simples
objecto), esta expressão é uma expressão nominal e introduz
no seu correlato intencional justamente aquele momento formal
que é característico de simples objectos. Assim, a estrutura
formal é própria da «relação objectiva» e fica até certo grau'
velada ou, pelo menos, contaminada. A «relação objectiva» só
é perceptível na sua estrutura pura não quando a designamos
pelo nome, mas quando, realizando uma operação construtora

1 Emprego aqui a palavra «objecto» no mesmo sentido dé A, Reinach.


Esta corresponde — se bem entendo M einong— ao seu termo «Objekt».
155

da frase, a explicitamos de um modo nominal-verbal e então,


por um acto de atenção paralela, dirigimos o olhár para a sua
estrutura formal sem a objectivar Então vemos que a estrutura
formal da «relação objectiva» (ou, com maior generalidade, do
correlato da frase) se distingue, em princípio, da estrutura de
um objecto simplesmente intencionado.
Ponderemos este problema com um pouco mais de exacti-
dão: «Esta rosa é vermelha». Realizando nós efectivamente a
respectiva operação construtora da frase, intencionalmente somos
dirigidos, sem dúvida, antes de mais para esta rosa como um
objecto (e neste caso particular como uma coisa), mas todavia
não exactamente do mesmo modo como no simples acto pura­
mente nominal2 de representar ou visar. Neste último caso a
rosa aparece como algo concluído, apreendido «desde fora» num
único relance, não se abrindo no isolamento em que permanece.
Neste caso não penetramos — em sentido figurado — no respec­
tivo objecto, mas captamo-lo como unidade determinada por
vários momentos qualitativos diversos mas contudo indivisa e
não oposta aos seus modos qualificativos individuais. Além disso,
«acabamos» de visar intencionalmente (ou de percepcionar) o
objecto, enfrentando-o simplesmente como totalidade não aberta.
De modo algum serve esse objecto de ponto de partida para
algo de diferente independentemente de este algo de diferente
nele estar contido ou o transcender. O objecto «esta rosa» apre-
senta-se-nos de um modo inteiramente diferente quando aparece
como elemento de uma «relação objectiva» desenvolvida numa
frase. É certo que neste caso também é «representado», i. é,
permanece «no olhar» e não perde o seu acabamento no sentido
de ser privado dos seus lim ites3.
Apesar disso, aparecem neste caso nítidas modificações. No
desenvolvimento da. «relação objectiva» o ob jecto4 «esta rosa»
serve-nos sobretudo de ponto de partida para algo diferente.
Ou falando de modo puramente ôntico: ele funciona na «relação

1 Abstraímos aqui da apreensão imediata, não abstracta nem «signi-


tiva» de uma «relação objectiva» que também é possível. Cf. A. Reinach,
1. c., pp. 225 e segs.
2 Cf. a nossa exposição anterior sobre a frase, em que acentuámos
que também o objecto-sujeito — a nossa terminologia— é intencionado de
um modo nominal-verbal.
3 Não se trata, naturalmente, de uma «limitação» em sentido espacial,
ainda que esta limitação espacial possa ser, para objectos espaciais, também
um segundo constitutivo da limitação a que nos referimos.
4 Explicaremos em seguida em que sentido é que a este respeito se
pode falar de «objecto».
156

objectiva» como ponto de apoio daquilo que nela aparece de


outro modo. Em certo sentido o objecto faz párte da «relação
objectiva» como seu elemento real mas, por outro lado, pode
afirmar-se que a total «relação objectiva» (no caso presente
quando temos, portanto, de lidar com uma proposição enun­
ciativa categórica do tipo «S é p » ) 1 acontece no próprio objecto
e dentro dos seus «lim ite s »2. Isto ficará claro (e assim elimi-
nar-se-á certo sentido duplo em que se fala do objecto «esta
rosa») logo que passemos aos modos diversos em que o objecto
«esta rosa» se apresenta nas suas relações. Primeiro que tudo
é preciso observar-se que este objecto entendido como elemento
da relação objectiva se abre de um modo singular embora per­
maneça ainda uma totalidade delimitada. Aparece-nos, neste
caso, de antemão como algo acessível «desde dentro» e aberto.
Ao desenvolvermos a correspondente relação objectiva não fare­
mos precisamente outra coisa senão utilizar .a sua «abertura»
e penetrar intencionalmente nele próprio, no seu «interior». Esta
«abertura», em geral, não é nenhum momento ôntico, nenhum
modo ôntico de comportamento do próprio objecto autónomo
no seu ser. Em geral, este é insensível3 às diferenças entre

1 É preciso chamar a atenção para a grande multiplicidade de tipos


de «relações objectivas», cuja compilação nos é oferecida pela Logik de
A. Pfaender. A diferença do tipo de «relação objectiva» leva, naturalmente,
a modificações diferentes da estrutura formal do conteúdo, de que não
podemos tratar aqui com desenvolvimento.
1 Falar do «acontecer» de uma «relação objectiva» propriamente só
se justifica quando se trata de comportamento de um objecto temporal­
mente existente. Nas objectividades ou nas «relações objectivas» ideais,
o termo tem sentido figurado. Contudo, mesmo a respeito dos objectos
temporais, é preciso tomar-se em consideração que este «acontecer» não
deve ser entendido no sentido de um processo. Pelo contrário, cada pro­
cesso pressupõe «relações objectivas» já existentes. O facto de, apesar
disso, ser lícito falar com razão do «acontecer» de uma relação objectiva
de um objecto temporal tem o seu fundamento nas modificações parti­
culares, a que todo o ser temporal, portanto primàriamente qualquer
«relação objectiva» temporalmente existente, está sujeito pela sua condição
temporal. Cf., a este respeito, as considerações extraordinàriamente inte­
ressantes de H. Conrad-Martius, Die Zeit, Philosophischen Anzeiger, vol. II.
3 Isto vale sobretudo a respeito de objectos «sem vida», «mortos».
Quando, p. ex., se trata de indivíduos psíquicos há certamente diferentes
modos de comportamento em que se «abrem » ou «se fecham em si pró­
prios» frente a outros indivíduos psíquicos cognoscentes ou em comuni­
cação com eles. Neste caso Max Scheler fala de «esferas íntimas». Cf. Viesen
und Formen der Sympathie. Pode aliás haver também um «fechar-se
perante si próprio», como o provam não só numerosos casos patológicos
mas também muitos casos inteiramente normais.
157

«estar aberto» e «estar fechado em si mesmo», embora estas


diferenças se fundam na estrutura ôntica do objecto. No caso
presente trata-se apenas de nós, por assim dizer, «abrirmos» o
objecto quando procuramos apreender uma relação objectiva.
A operação construtora de frases é — nas suas diversas m odifi­
cações, mas principalmente naquela que leva a uma proposição
afirmativa categórica— um modo de «abrir» um objecto (parti­
cularmente uma coisa) que a princípio nos é dado desde fora
na sua totalidade. Quando, porém, este se apresenta como já
«aberto» estamos suficientemente preparados para desenvolver
ou apreender uma relação objectiva, tendo neste caso de o
tratar como «aberto». Neste momento já não o apresentamos
mais de um modo puramente «objectivo». É que a uma doação
simplesmente objectiva (nominal) não pertence apenas o «estar
fechado» no sentido delimitado, mas também no sentido de o
sujeito consciente a quem é dado o objecto o apreender ou
visar de um relance apenas «desde fora».
Com isto delimita-se também o sentido em que o objecto
«esta rosa» «aparece» na relação objectiva e constitui nela uma
parte real apesar de, ao mesmo tempo, a relação objectiva se
«d ar» dentro dos limites do objecto-sujeito. Para o demonstrar
é preciso, em primeiro lugar, informarmo-nos melhor a respeito
de outros elementos da relação objectiva. Dizemos: «Esta rosa
é vermelha». Aparece, portanto, nesta relação objectiva ainda
um momento «vermelho». Mas este não é na relação objectiva
nem em qualquer caso um objecto em si mesmo. É algo que,
pela sua essência, não pode ser ens mas apenas entis, para
empregarmos a oportuna expressão escolástica. Como tal, é
distinto da própria «rosa». Por outro lado, é neste caso preci­
samente algo que está «contido» na rosa e lhe «advém » segundo
o sentido da frase. E é nesta qualidade de «contido», de
«adveniente», que pode existir. Enquanto algo de essencialmente
dependente, que tem o ponto de apoio da sua existência noutra
coisa (na rosa) e apenas por esta existe na unidade de um todo,
este momento «vermelho» — da mesma maneira que «esta rosa» —
constitui uma parte real da relação objectiva. Não é, porém,
algo que apenas lhe «pertence» ou lhe «advém » mas, ao mesmo
tempo, algo que lhe é próprio de tal modo que está contido no
respectivo objecto como determinante, que lhe dá a forma e o
delimita como «objecto' vermelho». Este «estar-contido determi­
nante» é o específico de qualquer «característica», de qualquer
158

«propriedade» como tal. Pode dizer-se com a mesma razão que


só determina o objecto enquanto nele está contido como só
está contido nele na medida em que o determina.
Com que sentido aparece o objecto «esta rosa» na presente
relação objectiva? Como «rosa vermelha» ou como «rosa» com
todas as suas qualidades e características excepto este momento
«vermelho» ou, finalmente, num terceiro sentido ainda por
determinar?
Como se verá, é de todos os três modos que ele aparece e
é uma situação especialmente característica da estruturação for­
mal da relação objectiva que assim sucede. Principiando pelo
último dos sentidos indicados, é claro que se pode falar de
«esta rosa» no sentido de se ter, por assim dizer, em vista
apenas a rosa «em si mesma», i. é, como portadora de várias
qualidades, determinada realmente como «rosa» pela natureza
do objecto mas abstraindo, ao mesmo tempo, das determinações
qualitativas destas qualidades K Falando-se de um «portador»
(«Substantia») já está determinado que este o é apenas relati­
vamente a quaisquer qualidades e outras determinações. Perante
um portador não é possível abstrair das qualidades que lhe
pertencem e por ele são «sustentadas» como se estas desapare­
cessem por completo. Só é possível deixarmos de considerar
quais são precisamente essas qualidades, quer dizer, só podemos
abstrair das suas determinações qualitativas. Na nossa relação
objectiva «esta rosa» exerce sobretudo a função de um suporte
qualitativamente determinado como «rosa» e em especial — rea­
lizado o desenvolvimento da respectiva relação objectiva— como
portador precisamente daquele momento determinante por que
a rosa é exactamente «vermelha». Sob este aspecto, a «rosa»
assim entendida aparece como algo de oposto ao momento «ver­
melho» que lhe advém. Esta oposição, que tem o seu fundamento
na diferença das funções de «ser-portador» e de «ser-qualidade»,
é superada justamente pela essência destas duas funções. É pre­
cisamente na superação desta oposição radical que reside a
essência específica da relação objectiva, que só pela intenciona-

1 A respeito do conceito de «natureza» e mais precisamente da «natu­


reza constitutiva individual do objecto», cf. as minhas Questões Essenciais,
p. 27. É de salientar que ao introduzir este conceito refutamos simultá­
neamente a concepção do «portador indeterminado», com razão combatida
pelos empiristas ingleses. Só que eles, ao mesmo tempo, absurdamente
rejeitaram ainda toda e qualquer ideia de um portador porque não viram
a essência da qualidade nem a essência inteiramente diferente da natureza
do objecto.
159

lidade da frase atinge o seu pleno de senvol^imen-t-Q .Q u e a rosa,


enquanto portador realmente determinado segundo a sua cons­
tituição natural, seja precisamente o portador desta determinação
de vermelho outra coisa não significa do que: esta rosa é
vermelha. Ao apreendermos um objecto na oposição radical à
sua determinação e, ao mesmo tempo, na superação desta opo­
sição pelas duas funções indicadas apreendemos determinada
relação objectiva na sua forma peculiar explícita e plenamente
desenvolvida. Com esta superação o «vermelho» torna-se «pró­
prio» da «rosa», é incluído na sua região ontológica, e ainda
que nesta mesma relação objectiva não se colha, por assim
dizer, o «resultado» desta inclusão (pelo que ele estaria aí como
«incluído» e «contido», como sucederia na significação nominal
e adjectiva de uma palavra) tudo já está preparado para isto
precisamente pelo desenvolvimento da relação objectiva corres­
pondente. Na própria relação objectiva esta inclusão — como é
concebida no próprio acto de realização e como se realiza no
desenvolvimento das duas funções de «ser-portador» e «ser-qua-
lidade» — é posta em exposição. Na efectuação desta exposição
é que reside — como atrás já se observou mas talvez só agora
se tornou completamente evidente — a função específica da frase.
Falar da «função» de portador é naturalmente uma expressão
figurada de cujo sentido é necessário eliminar rigorosamente
todos os momentos de qualquer «actividade» ou «acontecimento».
Pelo facto de esta rosa ser vermelha nada «acontece». Se qui­
sermos, trata-se aqui de uma relação puramente estática que,
apesar disso, como correlato da frase atinge na sua pura exis­
tência o desenvolvimento e exposição nominal-verbal, enquanto
numa intenção «objectiva» puramente nominal essa relação não
é visível no seu desenvolvimento mas manifesta-se apenas na
forma objectiva «acabada», constituída pela sua existência (i. é,
na forma total de algo determinadamente qualificado). Neste
caso o objecto opõe-se-nos como unidade desenvolvida em si
mesma que nós apenas «desde fora» apreendemos.
A superação que se realiza na relação objectiva da oposição
entre a «rosa» como portadora e «vermelha» como sua determi­

1 Aqui é preciso especialmente salientar que esta «superação» é algo


de existente no próprio ente, que é apenas descoberto na sua origem pelo
desenvolvimento da relação objectiva mas não é criado pela função predi­
cativa (no caso de, naturalmente, se tratar de um comportamento de coisas
objectivamente existente). Esta superação é, por assim dizer, a pura
expressão das duas funções de «ser-portador» e «ser-qualidade» essencial­
mente constitutivas de um objecto e necessàriamente relativas uma à outra.
160

nação implica em si necessàriamente que «esta rosa» apareça


na relação objectiva presente de um modo curiosamente poten­
cial-actual: i. é, como esta rosa determinada pelo «vermelho».
No modo «potencial», porque nesta relação objectiva ela ainda
não aparece como «rosa vermelha», necessita de uma «objecti­
vação» nominal especial que, por assim dizer, tome em conta
o «resultado» desta relação objectiva para que esteja perante
nós como «rosa vermelha». Não há dúvida de que nesta objec­
tivação se impõe também certa forma «lógica» ao objecto que
é reflexo da ligação «adjectiva» da palavra «vermelho» com a
palavra «rosa». Não se deve, porém, julgar que esta objectivação
transforme de qualquer modo ônticamente o objecto ou se lhe
dirija de um modo impróprio, como se a relação estática própria
do objecto entre o portador e a qualidade (numa expressão
mais geral: a determinação) só fosse própria do objecto na forma
como se nos apresenta na apreensão da relação objectiva e como
se o objecto «rosa vermelha» tivesse de ser relativo à objecti­
vidade que o «constitui». Que assim não é indica-o precisamente
aquele curioso modo potencial-actual como esta «rosa vermelha»
se mostra na relação objectiva. Na medida em que esta rosa
é vermelha a superação da oposição entre «rosa» como portadora
e «vermelha» como qualidade é realizada, a rosa é actualmente
uma rosa vermelha mas é apreendida nesta actualidade apenas
limitadamente, sendo portanto afectada no seu modo de aparecer
por um momento de potencialidade.
«Esta rosa» apresenta-se, porém, na referida relação objec­
tiva ainda noutro sentido: como rosa revestida de todas as suas
qualidades menos aquela que a faz precisamente «vermelha».
Esta mesma rosa que cheira é macia, etc., é vermelha. É certo
que isto não é explicitamente visado no caso presente e por
isso não atinge um desenvolvimento explícito na correspondente
relação objectiva. Apesar disso, todas as suas qualidades (conhe­
cidas) são implícita e potencialmente co-visadas quando se fala
de uma rosa e particularmente desta rosal. Por isso e apenas
nesta medida a rosa como tal manifesta-se potencialmente nesta
relação objectiva. Daí resulta uma conseqüência para nós par­
ticularmente importante: porque toda a qualidade pertencente
a um objecto, por assim dizer, oculta em si uma determinada
relação objectiva que apenas se manifesta mediatamente de forma
envolvida — em sentido figurado — no objecto revestido da

1 Lembramos a propósito a distinção que fizemos entre os elementos


«actuais» e «potenciais» da significação de uma palavra. Cf. atrás, pp. 107 ss.
161

respectiva qualidade (p. ex., na «rosa macia»), da relação objectiva


justamente desenvolvida partem, por assim dizer, directrizes
para outras relações objectivas pertencentes ao mesmo objecto
(esta rosa) que apenas precisamos de seguir para igualmente
desenvolvermos essas relações *. Pode dizer-se que o objecto
— tal qual se mostra ao penetrarmos no seu «interior» — é ape­
nas uma multiplicidade determinadamente circunscrita e regulada
de relações objectivas que se unem no mesmo portador, das
quais nós, em cada caso, expomos com especial desenvolvimento
apenas uma e assim a delimitamos, até certo ponto, das outras.
Quando num acto nominal nos dirigimos ao objecto visamos
assim a esfera total do ser, que é demarcada por uma multipli­
cidade unida de relações objectivas mutuamente entrelaçadas,
num só relance e desde de fora como um todo uno e qualificado
de diversos modos, tomando esta totalidade sub specie da natu­
reza constitutiva («rosa») que imediatamente qualifica o portador
comum de todas estas relações objectivas agora já envolvidas
e invisíveis. O ser de «esta rosa» é, explicitamente entendido,
a coexistência de todas as relações objectivas unidas pelo por­
tador, que nelas aparece sempre idêntico. Só quando restringimos
o sentido da palavra «objecto» ao portador de qualidades é
lícito dizer-se que o. objecto subjaz a todas estas relações objec­
tivas e as fundamenta. O objecto, porém, fundamenta-se única
e exclusivamente na medida em que desempenha em cada uma
delas «a função de» portador. Sem estas relações objectivas
nem sequer poderia existir. Portanto, pode dizer-se que o simples
portador é algo tão ontològicamente dependente como o é um
«acidente» 2. Só com todos os seus «acidentes» (qualidades, mo­
mentos, etc.) é que ele constitui uma zona ontológica autónoma,

1 Ou entendendo pela expressão «esta rosa» a rosa com todas as suas


qualidades e todos os seus momentos: para outras relações objectivas a
ela imanentes e nela envolvidas.
2 H. Conrad-Martius escreve na sua Realontologie, § 14.°: «Tam bém
o portador real, portanto aquele que se constitui entidade real por uma
essência fàcticamente imposta, não é algo que abstraído da essência que
lhe foi imposta e sem ela pudesse por si mesmo ser posto e pressuposto.»
(Cf. I. c., p. 169.) A isto devo acrescentar que está inteiramente certo, mas
o «portador» na acepção de H. Conrad-Martius é apenas uma form a pura
que naturalmente não pode existir sem a «essência» que nela figura, i. é,
na minha terminologia, sem a natureza individual, e, portanto, é ontolò­
gicamente dependente. Mas eu afirmo a este respeito algo mais: Ainda
que o «portador» seja entendido já com a sua «essência» (natureza) não
deixará de ser ontològicamente dependente em relação às determinações
por «ele» sustentadas, i. é, às qualidades pertencentes ao objecto.

ii
162

um «indivíduo» que não seria possível se nele não exercesse a


função de portador.
Na multiplicidade das relações objectivas (e com maior
razão ainda na dos correlatos intencionais das frases) encon­
tram-se — como atrás já se disse— modificações muito variadas
da estrutura que acabámos de descrever. Não as podemos ana­
lisar aqui. Devemos, porém, acrescentar algo para eliminar uma
possível objecção. Perguntar-se-á: A penetração no interior do
objecto — no sentido de uma zona ontológica autónoma— é
característica de qualquer relação objectiva? O que se passa
com os correlatos de frases como «um carro passa», «o meu
cão ladra», etc.?
Concedemos que -nestes casos não se dá uma penetração
no interior do objecto-sujeito como no exemplo atrás analisado.
Como indivíduo acabado, não «aberto», o objecto-su jeito realiza
aqui uma acção. Apesar disso, não é intencionado enquanto
repousa em si mesmo e permanece nos seus limites ontológicos
como acontece num acto intencional simplesmente objectivo e
puramente nominal. É certo que não penetramos nele, mas ele
ultrapassa de certo modo a zona do seu próprio ser, participa
pelo menos num acontecimento ou executa uma acção. Assim,
abre-se, por assim dizer, uma fenda num ponto da esfera global
do seu ser pela qual conseguimos atingir o seu interior ao expli­
citarmos, p. ex., a relação objectiva «um carro está passando» K
Mas abstraindo ainda desta possibilidade, o objecto diversamente
qualificado e apreendido na totalidade dos modos qualificativos
desde o início e num só relance aparece como portador de uma
actividade por ele exercida, de maneira que esta encontra nele
não só o fundamento do seu ser como também o seu ponto de
origem. A actividade não recai, por isso, na esfera ontológica
do portador mas sim na sua esfera de acção. Por conseguinte,
temos perante nós o objecto-su jeito como algo que se desenvolve
numa determinada direcção da sua esfera de acção. Que este
círculo possível de acção pertence também ao objecto e é con­
dicionado na sua configuração definitiva pelo modo de ser global
do ifiesmo objecto manifesta-se precisamente no facto de poder­
mos passar da frase posta de início «um carro passa» para a
frase também plenamente válida «um carro está passando» ou,
na expressão existencial, «existe um carro que passa».

1 Este modo de exprimir não é normal em alemão, mas outras línguas


(p. ex., a inglesa) conservam-no. Não se trata aqui de expressões lingüísticas
usuais mas de formas de significação e da sua expressão em princípio
possível.
163

Apesar das diferenças notáveis referidas tratamos também,


no caso dos exemplos agora analisados, da relação de um objecto,
com a diferença de que neste caso atinge desenvolvimento nomi-
nal-verbal não uma relação do portador de qualidades à sua
qualidade mas a relação de um portador de actividade, de qual­
quer modo qualificado num mundo objectivo circundante, a
uma linha de acção situada na sua esfera global de actividade.
Assim como no exemplo anteriormente analisado «esta rosa é
vermelha» se manifesta de modo potencial-actual uma «rosa
vermelha», assim na relação objectiva «um carro passa» se
mostra de um modo potencial-actual «um carro passando» de
tal modo que procedemos imediatamente a esta transição e
podemos visar o objecto nominalmente ou desenvolvê-lo de um
modo relacional-objectivo. Se efeçtuarmos realmente esta tran­
sição estendemos, por assim dizer, a esfera ontológica pura do
objecto por uma linha da sua zona de acção e captamos nomi­
nalmente o todo.
A análise que acabamos de fazer da estrutura da relação
objectiva orientou-se sobretudo por relações objectivas autóno­
mas no seu ser. O que foi dito conserva também a sua validade
com respeito a correlatos puramente intencionais da enunciação,
com a diferença de neste caso tudo se referir à estrutura formal
do conteúdo deste correlato, sendo esta estrutura, como ainda
a qualificação material que nela surge, apenas algo de meramente
intencionado e ontològicamente heterónomo. O paralelismo que
acaba de verificar-se entre as relações objectivas autónomas no
seu ser e as puramente intencionais não deve, porém, levar à
conclusão errada de que tudo o que é válido em geral a respeito
das relações objectivas ontològicamente autónomas conserva o
seu valor também quanto aos correlatos puramente intencionais
das frases e vice-versa. Para nos limitarmos aqui apenas a algu­
mas diferenças fundamentais entre elas acrescentamos o seguinte:
As relações objectivas ontològicametite autónomas para pode­
rem simplesmente existir devem satisfazer a uma série de con­
dições que se não exigem dos conteúdos das relações objectivas
puramente intencionais. Não só devem satisfazer as leis que
resultam em geral da estruturação de qualquer objectividade
(portanto, a legalidade «analítico-formal» no sentido de Husserl),
mas também cumprir as leis essenciais que dominam na região
material a que pertence a matéria da respectiva relação objec­
tiva. Tratando-se, porém, de uma relação objectiva que deve
existir num mundo de facto existente e a diversos títulos contin­
gente é preciso realizar, além disso, diversas condições «aciden­
tais» sobre que nos informa a correspondente «experiência»
164

(no sentido restrito da palavra) e que têm a sua expressão,


p. ex., nas leis da física, da química, etc. Tudo isto não é neces­
sário para os conteúdos de relações objectivas puramente inten­
cionais. Enquanto, p. ex., não é possível, por razões ontológico-
-formais, que uma relação objectiva ontològicamente autónoma
e existente na esfera dos objectos contenha em si elementos
materiais que reciprocamente se excluem, uma relação objectiva
puramente intencional entre elementos contraditórios é perfei­
tamente possível. Igualmente, uma relação objectiva realmente
existente deve, para existir, ser determinada de um modo per­
feitamente claro. Não é este, porém, o caso do conteúdo de
correlatos puramente intencionais da frase. Se uma frase é
equívoca no seu conteúdo de sentido a sua ambigüidade reflecte-se
também no conteúdo do correlato correspondente puramente
intencional numa complexidade curiosamente opalizante. Isto
afecta sobretudo a matéria, mas relacionada com esta também
a estrutura formal apresenta uma complexidade especial. Em
muitos casos é extremamente difícil analisar devidamente estas
situações complexas, sobretudo quando a ambigüidade da res­
pectiva frase não aparece claramente, de modo que a princípio
a frase parece ser unívoca. Quando, porém, a ambigüidade da
frase é suficientemente evidente a complexidade ou a pluristra-
tificação ressalta nitidamente do conteúdo puramente inten­
cional do correlato. A ambigüidade de uma frase, como se sabe,
pode dar-se quer ao nível das palavras singulares que nela apa­
recem, quer na complexidade da construção da frase e por isso
também na sua ambigüidade. Podemos «le r» uma frase deste
género de modos diversos e obter assim de todas as vezes uma
frase diferente (então já unívoca); contudo, nem as palavras
singulares nem a construção da frase nos autorizam a preferir
qualquer destas leituras. A frase equívoca, porém, também não
deve identificar-se com a multiplicidade das frases unívocas
obtidas por «interpretação». É precisamente característico das
frases ambíguas permitir uma pluralidade de «interpretações» 1
sem excluir ou preferir decididamente qualquer delas: Como,
porém, todas as interpretações «possíveis» são admissíveis e
igualmente legítimas a «opalização» do conteúdo puramente
intencional do correlato é também complexa e encerra em si
elementos opostos. Como isto é impossível quando se trata de
uma relação objectiva ontològicamente autónoma e existente

1 Para escolher entre elas e eliminar assim a ambigüidade é preciso


— se for possível — recorrer a outras frases do contexto, mas mesmo assim
muitas vezes não se consegue um sentido unívoco.
T65

na esfera dos objectos e como, em geral, a esfera dos correlatos


puramente intencionais passa despercebida, seríamos talvez incli­
nados a defender a concepção de que às frases ambíguas não
corresponde um único correlato mas sim uma pluralidade deles
cujo ámbito é exactamente determinado pela quantidade das
interpretações possíveis. Neste caso os correlatos singulares
constituiriam uma multiplicidade discreta cujos membros perten­
ceriam a outras frases. Assim, seriamos induzidos a afirmar que
uma frase equívoca não tem, a bem dizer, correlato puramente
intencional próprio, mas deve tornar-se unívoca para o obter.
Esta concepção, porém, ignora ou procura precisamente
eliminar aquilo que é indispensável esclarecer: a própria ambi­
güidade. Negar a uma frase ambígua qualquer correlato pura­
mente intencional próprio significa, no fundo, atender não aos
correlatos puramente intencionais mas sim às relações objectivas
ontològicamente autónomas e na realidade existentes, que, natu­
ralmente, não podem ostentar semelhante complexidade opali-
zante. Significa também ignorar as diferenças relevantes que
existem entre objectividades puramente intencionais e outras
quaisquer ontològicamente autónomas e chegar deste modo fá­
cilmente a concepções erradas destas últimas. É preciso acentuar
mais uma vez que toda a frase — incluindo as absurdas e ambí­
guas — possui um correlato puramente intencional próprio. Não
é, de modo algum, verdade que o correlato puramente intencional
de uma frase ambígua consista numa multiplicidade de correla­
tos de frases distintos uns dos outros. Pelo contrário, há um
único correlato e, mais exactamente, um único conteúdo de
correlato, precisamente em estado de «opalização». Isto resulta
já do facto de uma frase (e ainda uma palavra singular)
só ser ambígua quando no seu conteúdo de sentido contiver,
além dos elementos equívocos, ainda outros que o não são.
O entrelaçamento de elementos semânticos unívocos e equí­
vocos leva a uma frase ambígua. Paralelamente, o conteúdo
puramente intencional do seu correlato é estruturado de modo
a possuir um fundo de elementos «comuns», a que apenas numa
curiosa multirradiação se vinculam os outros elementos que são
correlatos das expressões ambíguas. E apenas se vinculam pre­
cisamente porque só existe uma coneatenação livre, não defini­
tivamente fixada, entre os elementos unívocamente determinados
(«com uns») do conteúdo e aqueles que pertencem às expressões
ambíguas. Nisto se baseia o carácter «m ulticolor», «opalizante»,
do conteúdo total do correlato.
A existência de semelhantes correlatos de frase, puramente
intencionais e «opalizantes», é de importância especial para a
166

«apreensão da essência da obra literária. Por enquanto limita-


mo-nos a observar que há um tipo especial de obras de arte
literária, cujo carácter fundamental e encanto particular reside
em conter ambigüidades. São avaliadas pela fruição das caracte­
rísticas estéticas baseadas no «colorido», na «opalização», e
perderiam o seu atractivo particular se porventura pretendês­
semos «emendá-las», eliminando a ambigüidade (o que, aliás, é
freqüente em traduções más) As análises que acabámos de
fazer, das relações objectivas puramente intencionais, permitir-
-nos-ão compreender as situações e os problemas que novamente
surgem numa multiplicidade de frases correlacionadas. Deste
assunto ocupar-nos-emos em seguida.

§ 23. Conexões de frases. As unidades superiores


de sentido que nelas se constituem

Em princípio, não está excluído que várias frases se sigam


umas às outras sem qualquer conexão. Sendo assim, podem
mudar-se arbitràriamente ou ser substituídas por outras; em
qualquer caso, a sua ordenação não é determinada pelo seu
conteúdo de sentido. Neste caso, cada frase não só contém um
«pensamento» uno mas também o «pensamento» fica definiti­
vamente concluído em cada frase e começa outro inteiramente
novo que nem se relaciona com o anteriormente dito nem se
refere ao que se vai seguir. Assim, p. ex., pessoas alienadas
podem falar, por vezes, durante horas sem ninguém conseguir
adivinhar através do conteúdo de sentido das frases porque
foram precisamente estas as frases proferidas e porque o foram
nesta seqüência2. Contudo, a seqüência de semelhantes frases
desconexas constitui uma anomalia. A própria seqüência de frases
exige, até certo ponto, que sejam de antemão consideradas não
como partículas mortas justapostas mas como membros de uma
totalidade superior. Desde o princípio que estamos orientados

1 Reside nisto também uma das principais dificuldades ida tradução,


ou seja, não só não eliminar as ambigüidades existentes no original, mas
ainda de atender a que a tradução contenha as mesmas ambigüidades que
aparecem no original.
2 Todavia será possível procurar e descobrir este «porquê» na parti­
cular disposição psicopatológica do locutor. Neste caso, porém, as frases
proferidas são sobretudo consideradas na sua função de notificação como
«sintomas» de determinada doença.
167

no sentido de não só percebermos as frases singulares mas


também de as tomarmos apenas como «compassos» e de apreen­
dermos, pela realização das concatenações existentes entre elas,
o todo que nelas se funda 1. Se as conexões a princípio ficam
imperceptíveis procuramos descobri-las e ficamos admirados
quando não se descobrem, como acontece, p. ex., no caso do falar
de um doido.
Portanto, não há dúvida de que em casos normais seme­
lhantes conexões existem entre as frases que se seguem umas
às outras 2. A este respeito surgem as seguintes questões:
1.° O que é uma conexão de frases?
2° Quais são as propriedades das frases singulares em que
ela se baseia (pelas quais é produzida)?
3.° Levará a existência de conexões de frases à constituição
de algo inteiramente novo e., em caso afirmativo, o que é este
novo?
4.° Haverá tipos diferentes de conexões de frases, e, caso
haja, quais são?
5.° Manifesta-se a diferença de tipos de conexões de frases
nas particularidades do todo que novamente se constitui e de
que modo?
Contudo, a formulação destas questões pressupõe que as
frases singulares são o que é primário e basilar e o que sobre
elas se constrói e constitui é o todo, v. gr., de uma «narração»,
de uma «prova», etc. Podemos ainda deparar com a opinião
oposta de que, precisamente ao contrário, o todo é o primeiro,
o determinante e constitutivo e as frases singulares são o deter­
minado e constituído pelo sentido da totalidade. Não levarão
precisamente a semelhante concepção as nossas próprias obser­
vações, atrás feitas, acerca da relativa dependência da operação
construtora de frases? Não estaremos, portanto, a contradizer-nos
a nós mesmos?
Tanto quanto vemos, as duas concepções — correctamente
entendidas — têm razão e não se contradizem uma à outra porque
se referem a situações diferentes. Falar de «constituição» pode
ter aqui dois significados conforme o aspecto sob que a totali­
dade, p. ex., de uma narração é considerada. Esta totalidade
pode ser considerada quer «no processo de realização» segundo
o modo como procede das operações subjectivas, quer como algo

1 Precisamente nisto se mostra que nós com razão apresentamos a


operação construtora de frases como apenas relativamente autónoma em
casos «normais».
2 Insiste nisto Th. A. Meyer, l. c., pp. 18 e segs.
168

já concluído que somente podemos apreender compreendendo


as frases singulares nele integradas. No primeiro caso pode
adm itirle que a totalidade, em certo sentido, é mais originária.
Tanto na redacção de uma obra literária como ainda frequen­
temente na linguagem viva (nomeadamente em discursos mais
extensos, p. ex., parlamentares, em conferências científicas — caso
não tenham sido escritos antes, como é claro) a chamada «con­
cepção» do todo tem a primazia, é o que primeiro existe. É ela
que determina como se devem formar as frases singulares e a
ordem da sua seqüência. Ou, por outras palavras: No conteúdo,
na forma e até na expressão fónico-linguística as frases singu­
lares são concebidas únicamente em função do que deva ser
o todo. Sob este aspecto seria a totalidade que contribuiria
para a constituição das frases singulares ainda que estas, em
última análise, devam ser constituídas em si mesmas por ope­
rações construtoras de frases. Ou, em termos subjectivos: o
impulso original para criar determinada totalidade (um «dis­
curso», uma «narração», um «drama», etc.) é o portador das
operações singulares construtoras de frases e influi na sua rea­
lização. Sob esta perspectiva, o que está na base e é determinante
não é a própria totalidade já formada mas apenas a sua «con­
cepção», um esboço mais ou menos exacto daquilo que se
pretende formar. Em geral, a obra finalmente criada distingue-se
consideràvelmènte daquilo que o autor começou por idealizar e
projectar. É que a totalidade da obra — por mais nítida e exacta
que seja a sua concepção — só se desenvolve com a fixação das
frases singulares e afasta-se então mais ou menos do original­
mente projectado. Quantas vezes o autor não sabe o que será
feito da sua obra e como se transformará «nas suas mãos».
Parece-me certo apenas que é necessária uma determinada pers­
pectiva de algo que transcende a respectiva frase singular
formada K A situação apresenta-se de modo diferente quando
a obra inteira2 está presente como um produto concluído. Neste
caso, as frases singulares são a base e o que deve existir «p ri­
meiro» para que a totalidade se possa simplesmente constituir.
Neste caso, a obra toda é a realidade dependente que resulta

1 Pierre Audiat tem razão ao falar da gênese da obra literária e ao


exigir uma «biografia» desta obra (como mais tarde veremos, é possível
falar-se de «biografia» num sentido inteiramente diferente e mais adequado,
cf. cap. 13.°). Equivoca-se apenas ao identificar a obra constituída com as
operações subjectivas de que provém e que ela, por outro lado, transcende.
2 A expressão «obra inteira» refere-se, em primeiro lugar, ao texto
global com seu sentido. Mostrar-se-á, porém, que também se pode falar
assim relativamente à obra total em todos os seus estratos.
169

do conteúdo total de sentido e da ordenaçáo das frases singulares.


Não se deve, porém, esquecer que as frases singulares já apa­
recem em determinada seqüência e em conexões definidas e, por
conseguinte — como se mostrará em seguida — , todo o seu
conteúdo de sentido (e em alguns casos até o aspecto fónico-
-linguístico) não é exclusivamente determinado pelas significações
das palavras que surgem na frase respectiva (tomada isolada­
mente), mas muitas vezes é de perto configurado e em vários
aspectos modificado pelos conteúdos de sentido de outras frases
(precedentes) K
A situação é ainda essencialmente a mesma quando entramos
em contacto com urna obra literária. Aquilo que de inicio está
perante nós e devemos plenamente exaurir quanto ao seu con­
teúdo e forma para penetrarmos na obra inteira são as frases
singulares. Estas não nos podem ser dadas todas de uma só
vez, mas devemos conhecê-las e compreendê-las sucessivamente2.
Ainda a este respeito, as frases singulares têm o primado e são
elementos determinantes e a obra inteira, ao contrário, é o que
por elas é constituído. Como, porém, todas as nossas análises
têm por objecto a obra literária concluída e nós só recorremos
às operações subjectivas quando o conteúdo encontrado na pró­
pria obra a isso nos obrigue temos pleno direito a pôr as cinco
questões atrás formuladas3. Passemos agora à sua resposta.
Ad 1.° Comparemos dois exemplos:

A. 1) «Os automóveis fazem um barulho insuportável.»


2) «Friburgo está situado em Baden.»
B. «Meu filho teve boas notas no liceu. Está muito
contente e brinca alegremente no jardim.»

Sem reflectirmos muito, diremos que no caso A não há


nenhuma conexão entre as duas frases, ao contrário do que
sucede no caso B 4. Está certo, mas o que é que propriamente
sucede quando há conexão entre as frases? Se considerarmos
primeiramente o caso A temos perante nós duas frases cujos
conteúdos de sentido não constituem apenas unidades autónomas

1 Ou, noutra expressão mais correcta: As frases articuladas com deter­


minada frase decidem muitas vezes o sentido em que se devem entender
as palavras que nessa frase aparecem.
2 Isto obrigar-nos-á, aliás, mais tarde a um modo inteiramente dife­
rente de considerar a obra literária, cf. cap. 11.
3 Cf. atrás, p. 167.
4 A conexão apresentar-se-ia ainda mais nitidamente e estreitar-se-ia
mais se a frase B 2 tivesse a formulação seguinte: «Por isso ele está muito
contente e brinca alegremente no jardim ».
170

de sentido mas, ao mesmo tempo, unidades em si tão herméticas


que nenhum elemento de significação da primeira frase passa
pela unidade de sentido desta frase para qualquer outra pro­
dução significativa e vice-versa. Precisamente esta transcendência
de um elemento de significação para além do conteúdo de sentido
da própria frase sucede na segunda frase do caso B. Conside­
remos, em primeiro lugar, esta frase como se estivesse comple­
tamente isolada e em especial se não se seguisse à frase B1, e
então temos simplesmente:

C. «E le está muito contente e brinca alegremente no


jardim.»

Pelo seu sentido, esta frase distingue-se nitidamente da


frase B2. É intencionalmente visado pela frase um «ele» qualquer
que «está contente, etc.» mas que, de resto, não conhecemos
de perto e fica indeterminado. Na frase B2, em contrapartida,
este «ele» tem uma significação inteiramente diferente: refere-se
idénticamente ao mesmo objecto determinado pela expressão
«mèu filho» e do qual, no momento em que B1aparece concluído,
ainda sabemos que teve boas notas no liceu. A palavra «ele»
projecta em B2 não apenas (como em C) um elemento — sujeito
aliás indeterminado na relação objectiva correspondente, mas
ao mesmo tempo transpõe este elemento,— sujeito para o da
relação objectiva que não pertence a B2 (ou, mais exactamente,
a C) mas a B1. Ou, por outras palavras: a significação da palavra
«ele» em B2 transcende a relação objectiva projectada por esta
frase quando isolada (portanto por C) em direcção a outra relação
objectiva estranha. Esta palavra, porém, só consegue este efeito
porque a plenitude da sua significação está sujeita a uma modi­
ficação, i. é, quando de início é de tal modo pensada («ele» — o
mesmo que é meu filho, etc.) que a sua significação se articula
com um elemento significativo da frase precedente B1 e penetra,
graças a esta relação, com o seu factor de direcção na relação
objectiva «estranha». Mais ainda: B2 é em tal conjuntura geral­
mente entendido de modo que o seu conteúdo de sentido encerra
uma existência potencial de significações que pode ser actualizada
e explicitada acrescentando-se as palavras «por isso». Assim,
um elemento significativo de B2, pela sua vinculação ao conteúdo
total de sentido de B1, intervém, por sua vez, na relação objec­
tiva de B1 caracterizando-a ao mesmo tempo como causa e, por
outro lado, a relação objectiva desenvolvida por B2 como seu
efeito. Sempre que o conteúdo de sentido de uma frase $ (quer
totalmente, quer por um elemento significativo que a compõe)
se relaciona com um elemento significativo ou com a totalidade
171

do conteúdo de sentido de outra frase a e transcende a própria


relação objectiva na direcção de outra (a da frase a) está dado,
por assim dizer, o primeiro passo e criada a base indispensável
para se estabelecer uma conexão entre as duas frases. Seria,
porém, errado afirmar-se que já se estabeleceria com isto urna
conexão e que esta residiria precisamente nesta relação e trans­
cendência. Pode dar-se, p. ex., o caso seguinte:

D. «A criança chora. Ela tem duas diagonais iguais


perpendiculares uma à outra.».

Ao lermos estas frases esperamos no começo da segunda


que continue a tratar-se da criança que chora. Todavia, a con­
tinuação da segunda frase destrói esta expectativa: verifica-se
que não há nenhuma conexão entre as duas frases e que estas
apenas se seguem uma à outra por uma razão inteiramente
incompreensível. O elemento de significação, a princípio trans­
cendente, da palavra «ela» nem pode, neste caso, articular-se
com um elemento significativo nem com todo o conteúdo de
sentido da frase D1 porque o sentido dos restantes elementos
semânticos de D2 o impede: aquele «ela» que tem ou deve ter
duas diagonais iguais perpendiculares uma à outra não pode
referir-se a nenhuma criança «criança» mas apenas a um qua­
drado. Portanto, só há uma conexão entre duas frases quando
realmente se conseguiu vincular um elemento significativo de
uma frase com o conteúdo de sentido (ou com um elemento
semântico) da outra e quando, em conseqüência disto, os corre­
latos puramente intencionais correspondentes se interpenetram
numa união realizada. A conexão entre duas frases reduz-se a
uma vinculação assim conseguida do conteúdo de sentido de
uma frase com o de outra. O característico neste caso é que
os conteúdos de sentido das duas frases, apesar da concatenação
realizada, não perdem nem a sua unidade nem o seu carácter
de totalidade. As duas frases, ainda que articuladas, continuam
a ser duas frases diferentes e cada uma delas desenvolve uma
relação objectiva própria. A sua autonomia, porém, não se apre­
senta como absoluta pois o seu «estar-em-conexão» realiza-se
apenas com diversas modificações da totalidade dos seus con­
teúdos de sentido e estas modificações sucedem sempre sob a
directriz do conteúdo de sentido da outra frase (ou vice-versa) \

1 Verificamos da melhor maneira que tais modificações de sentido


realmente acontecem quando as frases conexas são arrancadas ao seu
contexto e analisadas no seu conteúdo de sentido como inteiramente
isoladas.
172

Ambos os conteúdos de seritido adaptam-se, por assim dizer,


um ao outro mas a sua adaptação não vai até ao ponto de as
duas frases deixarem de ser frases, i. é, unidades de sentido
especiais e funcional-intencionais.
O «transcender» de um elemento de significação pode resultar
ou da frase precedente ou da seguinte ou ainda dàs duas frases
ao mesmo tempo. Por outro lado, pode haver uma conexão de
várias frases e, na verdade, esta aparece realmente com fre­
quência. A transcendência e vinculação dos elementos de signi­
ficação de várias frases, a concatenação realizada dos seus vários
conteúdos de sentido passam, neste caso, por diversas compli­
cações especiais que nesta altura não queremos aprofundar.
Só é preciso salientar que pode existir uma conexão entre várias
frases, por vezes muito numerosas, o que não exclui que se
constituam de quando em quando grupos de frases em vinculação
mais estreita e que os grupos de frases assim constituídos por
sua vez entrem numa conexão mais ampla e extensa.
Ad 2.° Como é possível que frases singulares que também
são em si mesmas unidades totais de sentido se transcendam
ainda a si próprias e formem juntas uma conexão com sentido?
Como se colige de afirmações antecedentes, deve haver nelas
elementos de significação que tenham esta função. São sobre­
tudo muitas (mas nem todas) das palavras puramente funcionais 1
anteriormente estudadas, como, p. ex., «e », «também», «assim»,
«porque», «por isso», «em contrapartida», «por outro lado»,
«isto», «o mesmo», «nisto», «além disso», «contanto que», etc.,
mas também algumas palavras de conteúdo material, como, p. ex.,
«a seguir», «atrás disto», «quando», «durante», etc.2 Na maioria
dos casos, várias destas palavras aparecem nas frases — em
combinações diversas com significações nominais das palavras —
e só a realização total da sua função leva ao estabelecimento
de uma conexão entre as respectivas frases. Estamos, p. ex.,
perante uma conexão estabelecida por uma palavra puramente
funcional quando depois de uma afirmação se segue outra frase
(principal) que comece por «pois». Este «pois» caracteriza o
enunciado nesta frase como uma «justificação» da frase prece­

1 Cf. A. Pfaender, Logik, parte II, caps. V I I I e X.


2 Para uma teoria completa das conexões entre frases seria natural­
mente indispensável determinar com exactidão o âmbito daquelas palavras
funcionais que podem estabelecer uma conexão entre frases singulares.
A estas deviam opor-se aquelas que não têm essa função, como, p. ex.,
«é», «em », «de», etc. Seria também necessário resolver a questão das qua­
lidades que devem ter as palavras que produzem uma conexão de frases
para poderem desempenhar esta função.
173

dente e põe as duas frases em conexão estreita e determinada.


A frase precedente, que a princípio aparece como unidade de
sentido auto-suficiente e perfeitamente autónoma, é assim ex post
caracterizada como algo dependente e fundamentado. Esta carac­
terização, porém, vai de par com uma modificação nítida do
conteúdo de sentido da frase: não que algo completamente dife­
rente se afirmasse só pelo facto de uma relação objectiva deter­
minada se desenvolver de um modo materialmente diferente,
mas a modificação realiza-se no sentido de o momento primei­
ramente incluído no conteúdo de sentido da posição «categórica»
pura e simples da relação objectiva se transformar num momento
cujo sentido pode ser explicitado pelas palavras «é assim porque».
O aparecimento destas palavras funcionais não é necessário
para se estabelecer uma conexão entre frases. Quando, p. ex.,
em duas frases diferentes (e que por vezes não se seguem ime­
diatamente uma à outra) aparece o mesmo sujeito a que se
referem predicados diferentes as duas frases estão em conexão
mútua. Neste caso nem sequer é necessário que nas duas frases
o significado nominal exactamente o mesmo, i. é, revestido do
mesmo conteúdo material da palavra, ocupe o lugar do sujeito.
Um nome pode ser substituído na segunda frase, p. ex., por um
pronome ou por uma expressão nominal que determine o mesmo
objecto por outras qualidades. O que neste exemplo é indispen­
sável é só que o factor de direcção intencional tenha em ambos
os casos um sentido absolutamente idêntico. Em casos como
estes revela-se da melhor maneira que a seqüência imediata de
duas frases por si mesma não é suficiente para estabelecer uma
conexão entre elas, mas contribui para o seu estabelecimento
com outros factores já existentes e determinantes de uma cone­
xão. Essa seqüência dá a sua contribuição ao conduzir a uma
modificação muito determinada do sentido da frase seguinte.
Se, p. ex., digo: «E le está alegre e brinca no jardim » o factor
de direcção intencional da palavra «ele» é potencial e variável,
de sorte que esta frase pode ser «aplicada» a inúmeros casos
diversos. Se, porém, esta frase se seguir imediatamente à frase
«O meu filho teve boas notas no liceu» o factor de direcção
já se encontra actualizado e estabilizado e refere-se exactamente
ao mesmo objecto que é designado pela expressão «meu filho» l.

1 Pressupõe-se, naturalmente, que o factor de direcção desta última


expressão também já se encontre estabilizado e se refira, por conseguinte,
a um indivíduo definido. N o caso oposto (quando, portanto, não está de
modo algum estabelecido de que filho se trata) o raio de direcção do
pronome é variável dentro dos mesmos limites da expressão «m eu filho».
174

Contribui neste caso para estabelecer a conexão não só a mera


seqüência imediata das frases mas ainda a situarão da frase
dentro da seqüência1. Quando, p. ex., dizemos: «E le está ale­
gre, etc.», «O meu filho teve boas notas» nada se modificou nestas
frases quanto à pura expressão em confronto com o caso ante­
riormente analisado. Todavia não existe agora nenhuma conexão
entre as frases. O factor de direcção da palavra «ele» é agora
puramente potencial e ilimitadamente variável e é absolutamente
impossível depreender do conteúdo de sentido destas frases que
«e le » seja precisamente «meu filho». Outro exemplo em que a
seqüência das frases em determinada ordem contribui para esta­
belecer uma conexão: Alguém conta: «O senhor X não percebe
nada âe guiar automóveis. Ao mesmo tempo, tem falta de jeito
e é muito leviano. Levou ontem duas pessoas das suas relações
no seu carro, deu um passeio até Y e no caminho atropelou
duas crianças. Ambas morreram. Um pateta como este pode
causar tanta desgraça.» Só a ordem determinada das frases faz
que a expressão «um pateta como este» se refira ao senhor X
e a palavra «ambas» às crianças mortas e não às pessoas das
relações do senhor X. Se, porém, mudarmos a ordem das frases
o seu sentido ficará modificado e pode também desaparecer a
conexão das frases ou, pelo menos, ser deturpada de tal forma
que embora saibamos que há uma conexão qualquer será pre­
ciso estabelecer primeiramente uma ordem correspondente para
esta conexão aparecer em forma adequada e ressaltar com
nitidez.
Não é necessário que as expressões nominais determinantes
da conexão ocupem sempre o lugar do sujeito da frase. Por
exemplo: «O ladrão apercebeu-se de nós e tentou escapar-se.
Fugiu depressa. Mas nós apanhámo-lo e recuperámos os nossos
objectos.»
Finalmente, a conexão pode ainda ser estabelecida por meio
da forma das frases (a forma é aliás indicada geralmente por
uma-palavra funcional ou um sinal de pontuação). Exemplifi­
cando: uma pergunta postula que a frase seguinte lhe corresponda
como «resposta» (mas não é preciso que este postulado seja
sempre cumprido). O mesmo sucede ao falar e replicar: «Dá-me
um copo de água» e a resposta é esta: «A água aqui é muito
má» — e assim por diante.

1 Não é esta uma norma geral. Pode haver frases conexas indepen­
dentemente da ordem da sua seqüência.
175

Ad 3.° As análises a que procedemos — por mais incom­


pletas que sejam — revelam-nos com nitidez suficiente que as
frases que estão em mútua conexão constituem uma totalidade
absolutamente nova que não pode ser equiparada a uma mera
multiplicidade, a uma aglomeração de frases (isoladas). Esta
totalidade pode ser, segundo os casos, uma «narração», um
«argumento», uma «teoria», etc., e tem em cada caso qualidades
próprias e características irredutíveis às qualidades das frases
componentes da respectiva totalidade e que também não são
próprias de uma aglomeração de frases inteiramente desconexas.
Ainda não estamos suficientemente preparados para formularmos
uma definição geral satisfatória da totalidade constituída por
frases conexas. Serão, porém, úteis a este respeito algumas
observações. Por exemplo, cada uma destas totalidades tem uma
estrutura de composição própria que, embora dependente dos
conteúdos de sentido e da ordem da seqüência das frases e, final­
mente, da espécie da sua conexão, não é idêntica a nenhuma
qualidade das frases isoladas. Há grande multiplicidade de tipos
diversos de estruturas deste género. Assim, p. ex., pode ofere­
cer-se no «início» de uma obra uma «exposição» que desenvolve
a «pré-história»; em seguida vem, em primeiro lugar, a descrição
própria dos acontecimentos por ordem cronológica até ao seu
ponto culminante e ao seu termo. O resultado especial deste
ou de outro género de «composição» é uma dinâmica da obra
diversamente estruturada e, por outro lado, uma transparência
e singeleza de composição ou, ao contrário, uma complicação
e certa excentricidade e artificialidade, etc. — todas elas quali­
dades da totalidade e não das frases singulares. Ainda que se
deva admitir que a frase singular também tem uma estrutura
de composição e pode ainda ser caracterizada por certa dinâ­
mica, etc., estas qualidades são, em todo o caso, apenas análogas
e não exactamente as mesmas ou porventura idênticas.
Ad 4 ° Como resulta das afirmações anteriores, há vários
tipos de conexões possíveis entre as frases. Assim, pode haver
conexões completamente livres e não sistemáticas, como apare­
cem, p. ex., numa seqüência de frases formadas por uma asso­
ciação livre, irregular e caprichosa. Por outro lado, as conexões
podem ser muito estreitas, como, p. ex., acontece no caso de
uma teoria rigorosa e dedutiva. Podem ser imediatas ou, em
grau superior ou inferior, mediatas, aparecer sob forma explícita
ou implícita, etc. Não é este o lugar para uma análise porme­
norizada de tudo isto. Não queria, porém, deixar de chamar a
atenção para a diferença que existe entre conexões puramente
reais e conexões estabelecidas ou eventualmente expressas por
176

diversas funções lógicas que aparecem nos conteúdos de sentido


das frases ou são exercidas pelas próprias frases \ Exemplifi­
quemos com duas proposições geométricas: «O quadrado é um
paralelogramo equilátero. As suas diagonais dividem-se em partes
iguais e são iguais uma à outra.» Estas frases estão numa conexão
mútua que é puramente real. Mesmo quando intercalamos uma
terceira frase entre as duas, porventura para estreitar esta
conexão: «Todos os paralelogramos rectangulares e equiláteros
têm duas diagonais iguais que se dividem em partes iguais»,
a conexão é puramente real como a princípio. Só quando à
primeira frase fazemos seguir a segunda com esta forma: «As
suas diagonais dividem-se em partes „ iguais e são iguais uma
à outra porque todos os paralelogramos rectangulares e equi­
láteros possuem tais diagonais» chegamos, por um lado, à
expressão explícita de uma conexão lógica especial entre estas
frases graças à função lógica da palavra «porque» e, por outro,
as respectivas relações objectivas adquirem novos momentos
intencionais que não só põem em conexão necessária as duas
relações objectivas mas, ao mesmo tempo, caracterizam as suas
funções no complexo de relações objectivas que assim se cons­
titui. Todas as «provas», toda a sistematização (p. ex., a axioma-
tização) de resultados científicos reside essencialmente na cir­
cunstância de conexões puramente reais serem reveladas no
seu rigor e carácter estrito mais ou menos acentuados por meio
de funções e operações lógicas e de, ao mesmo tempo, se atribuir
às frases uma actividade lógico-operativa e a função operativa
correspondente.
Ad 5.° Todas as diferenças aqui referidas da espécie de
conexões entre frases são importantes no que respeita às qua­
lidades e, geralmente, ao tipo dé totalidade (das unidades de
sentido de ordem superior) constituído por conexões de frases.
A espécie de conexão que predomina em cada frase de um
conjunto e ainda a selecção das espécies de conexões que apa­
recem numa totalidade de ordem superior caracterizam esta
última de modo peculiar. E vice-versa: se uma totalidade deve
ser constituída por determinada espécie e qualidades a sua
espécie e o âmbito das suas qualidades prescrevem o círculo
das espécies de conexões de frases nela «possíveis» ou a pre­
ponderância de determinado tipo de conexão de frase. No caso
de algumas conexões se encontrarem integradas numa totalidade
e não se harmonizarem com o tipo desta totalidade este tipo

1 Cf. a este respeito Th. A. Meyer, l. c., pp. 210 e segs.


177

ou não poderá chegar a ter expressão pura ou constituir-se-á


em intenção uma totalidade de tipo inteiramente diferente que
por sua vez se harmonize com as conexões singulares. Imagi­
nemos, p. ex., que se intercalariam num passo de uma narração
simples de um pequeno evento da vida — como, por ex., o de
uma pequena «n o v e la »— os mais importantes pressupostos psi­
cológicos gerais que tornam aquele acontecimento possível e que
se desenvolveriam numa ordem lógica rigorosa conforme as
relações lógicas que entre eles predominam (além de muitos
outros passos da narração elaborados com todo o rigor lógico),
então o carácter da narração singela ficaria destruído. Mas
também com isto ainda não se atingiria o tipo de um tratado
psicológico rigorosamente científico. O que obtemos é um todo
multicolor revestido de qualidades não-concordantes, um monstro
que de facto «não serve para nada».
Como se vê, abrem-se aqui amplas perspectivas para formas
especiais e estruturas das obras literárias, perspectivas essas
que até agora quase se não pressentiram nas investigações da
ciência da literatura ñem na teoria das ciências e cuja investi­
gação sistemática seria muito importante por várias razões.
Aqui devemos contentar-nos com a alusão a estas perspectivas.

§ 24. Os correlatos puramente intencionais das unidades


de sentido de ordem superior que se constituem
em frases conexas

Lancemos ainda um olhar sobre os correlatos puramente


intencionais pertencentes às frases conexas ou às unidades de
sentido de ordem superior que nelas se constituem.
Tomemos como exemplo as duas frases seguintes: «A minha
máquina de escrever tem 43 teclas. As teclas da minha máquina
de escrever são fáceis de manipular.» Os seus correlatos pura­
mente intencionais são, segundo o seu conteúdo, duas relações
objectivas diferentes que se «referem » à mesma máquina de
escrever. Este «referir-se» pode ter aqui dois significados con­
forme as duas frases se entenderem ou como afirmativas («ju í­
zos») ou simplesmente enunciativas. No primeiro destes casos
as duas relações objectivas «referem-se» à mesma máquina de
escrever real que existe de modo ontològicamente autónomo e
quase ao mesmo tempo nos é dada numa percepção. Isto acon­
tece porque o factor de direcção intencional contido na expressão
nominal «minha máquina de escrever» transcende, por assim
dizer, o objecto puramente intencional incidindo sobre o res-

12
178

pectivo objecto que existe de modo ontològicamente 1 autónomo.


Quando, porém, abstraímos da «referência» mencionada e toma­
mos as duas relações objectivas simplesmente como correlatos
intencionais de simples frases enunciativas estas relações «refe-
rem-se» (e em primeiro lugar) ao objecto puramente intencional
projectado pela significação da expressão «minha máquina de
escrever». No exemplo presente esta referência é um pouco
diferente em cada urna das relações objectivas. No conteúdo
da primeira relação objectiva a referência reside no facto de a
máquina de escrever aparecer como parte dessa relação e exercer
a função de sujeito possuidor de determinadas partes. Assim,
o resto do conteúdo refere-se, por assim dizer, à máquina de
escrever como seu portador e nomeadamente são as «teclas»
que estão contidas como partes na zona ontológica da máquina
de escrever. No segundo caso, ao contrário, a função de portador
não é exercida pela máquina de escrever mas pelas suas teclas.
Aparecendo estas de antemão no conteúdo do correlato como
teclas da máquina de escrever, a função de portador que exer­
cem em relação à qualidade «fáceis de manipular» é modificada
de modo significativo em comparação com a função de portador
que exerceriam se elas próprias não fossem partes de um todo
que não é nenhuma «tecla» mas constituíssem um objecto onto­
lògicamente autónomo. Na verdade, as próprias teclas é que
são «fáceis de manipular», mas como são partes pertencentes
à máquina, ainda que desmontáveis, é em última análise a própria
máquina de escrever que é constituída de forma a possuir teclas
fáceis de manipular. Por conseguinte, invade a função portadora
das teclas uma relativa dependência com respeito ao todo de
que as teclas são partes. Ao mesmo tempo, esta modificação da
função portadora remete para a própria máquina de escrever
e assim a relação objectiva total fica-lhe mediatamente «referida».
Se, porém, nas duas frases só aparecesse a expressão «máquina
de escrever» ou mesmo «a minha máquina de escrever» sem
ficar claro que é o mesmo indivíduo que a possui e fala de uma
e a mesma máquina as relações objectivas desenvolvidas pelas
frases tomadas isoladamente não se reportariam ainda à mesma
máquina. Só porque existe uma conexão entre estas frases elas
referem-se a uma e a mesma máquina (intencionalmente visada).
Com isto estabelece-se também algo de novo que modifica fun­
damentalmente a referência das duas relações objectivas: uma

1 Relacionadas com isto aparecem ainda peculiaridades nas relações


objectivas puramente intencionais;, de que trataremos mais profundamente
no parágrafo seguinte.
179

conexão real e ontológica entre elas. Apesar de toda a sua dife­


rença elas existem, neste caso, dentro do círculo ontológico
fechado de um e o mesmo objecto, pertencem-lhe, por isso, em
primeiro lugar e ainda, pela mesma razão, uma à outra. A segunda
relação objectiva não aparece enquadrada na primeira, não a
condiciona e também não é exigida por ela. No caso, porém,
de a primeira relação objectiva não existir a segunda também
não poderia existir. Por esta razão, trata-se neste caso de uma
conexão livre entre as duas relações objectivas. Pode haver,
naturalmente, tipos muito variados de conexões ontológicas entre
duas relações objectivas. Seja como for em pormenor, a nós
interessa-nos simplesmente o facto de se efectuarem tais conexões
entre as relações objectivas enquanto correlatos de frases conexas
e de estas conexões ontológicas serem permitidas e na maioria
dos casos exigidas pela própria estrutura dos conteúdos dos
correlatos das frases (e, em particular, das relações objectivas).
Quando há muitas frases que por conexão se referem a um e
o mesmo objecto (p. ex., na descrição de um objecto) as relações
objectivas correspondentes formam — em linguagem figurada —
uma «rede» em que o respectivo objecto é «apanhado». Uma rela­
ção objectiva liga-se deste ou daquele modo a uma segunda ou
é vinculada a esta por uma terceira, entrelaçam-se de vários
modos outras relações objectivas e assim se desenvolve um
campo de relações objectivas conexas todas existentes dentro
do mesmo objecto e constituindo na sua concatenação o âmbito
ontológico delimitado do respectivo objecto. E vice-versa: a
extensão do âmbito ontológico de um objecto é directamente
proporcional à multiplicidade total das relações objectivas que
lhe são exclusivamente «referidas». Naturalmente, deve ter-se
em conta que o objecto com um todo, pode ter múltiplas relações
com outros objectos, e assim o círculo das relações objectivas
que a ele se «referem » também sofre alargamento significativo.
Mas estas relações objectivas não se referem só a este objecto
mas ainda a outros objectos, de maneira que gradualmente se
desenvolve um campo inteiro das mais variadas relações objec­
tivas em que se «apanha» uma multiplicidade de objectos, um
sector de determinada esfera do Ser. Ou, mais exactamente: um
determinado objecto ou uma multiplicidade inteira de objectos
e seus destinos fazem a sua apresentação numa multiplicidade
de relações objectivas concatenadas K Quando, ao compreender
(ou enunciar) frases conexas e sucessivas, vemos como que desen­

1 Cf. as investigações no § 29.°


180

volver-se diante de nossos olhos uma multiplicidade de relações


objectivas penetramos no «interior» do respectivo objecto, che­
gamos a conhecê-lo do mesmo modo que os acontecimentos em
que ele e outras objectividades participam. Correlativamente, o
objecto apresenta-se no seu modo de ser próprio através das
múltiplas relações objectivas. Apresenta-se-nos, porém, aqui de
um modo muito diverso do que acontece quando o objecto nos
é oferecido simplesmente na percepção ou ainda numa apreensão
imediata (portanto, não abstracta nem «significativa») da relação
objectiva. Trata-se aqui de um modo especial como as relações
objectivas puramente intencionais desenvolvidas por frases cone­
xas formam entre si uma união: apesar de se religarem mütua-
mente e de permanecerem muitas vezes em conexões ontológicas
estreitas e rigorosas, não deixam, contudo, de ser até certo grau
delimitadas, não se confundem nem se amalgamam em todos
os aspectos. Já na apreensão originária imediata de um com­
portamento de coisas, objectivo e autónomo no seu ser, este é
intencionalmente isolado pelo acto de apreensão da totalidade
una do objecto em que ele — numa expressão puramente ôntica —
está mergulhado. Este isolamento é acompanhado por uma deli­
mitação, uma separação (trata-se aqui precisamente de saber se
é apenas intencional) da totalidade restante do modo de ser do
respectivo objecto. As outras relações objectivas existentes na
sua esfera ontológica subtraem-se, por assim dizer, à nossa vista,
de maneira que o objecto actualmente só é posto em evidência
na relação objectiva apreendida como portador qualificado da
determinação que lhe pertence e aparece na respectiva relação
objectiva. É precisamente pela concentração temática sobre uma
relação objectiva e por necessàriamente «deixarmos despercebi­
das», em razão dessa concentração, as restantes relações objec­
tivas que chegamos à delimitação intencional mencionada. No
caso da apreensão originária não abstracta nem «significativa»
das relações objectivas esta delimitação intencional pode ser
eliminada e, em qualquer caso — se é permitido exprimir-se
assim — , tornar-se «inofensiva» para a apreensão final do óbjecto
porque numa percepção fluente é possível passar continuamente
de uma relação objectiva para outra. Nesta transição ou na
visão conjunta das relações objectivas que a princípio foram
apreendidas separadamente as delimitações revelam-se móveis e
relativas aos actos de apreensão, ressaltando assim o seu carác­
ter puramente intencional. Chegados a este ponto, as delimitações
apresentam-se como algo que não pertence ao respectivo objecto
ontològicamente autónomo e são riscadas da esfera ontológica
181

do objecto por uma eliminação peculiar. Deste modo podemos,


pela apreensão originária dos comportamentos das coisas objec­
tivamente existentes, penetrar na estrutura da concreção própria
do objecto e também na união original de tudo aquilo que não
só constitui a esfera ontológica fechada do objecto mas até o
próprio objecto. Nesta visão originária das relações objectivas,
passível a cada momento de uma modificação do seu conteúdo
intencional, naturalmente os processos contínuos também podem
chegar a ser apreendidos. Fazemos, por assim dizer, um corte
transversal no devir dos acontecimentos e fluímos nesta atitude
com o acontecer, captando-o.
A situação apresenta-se diferente quando as relações objec­
tivas são desde o início abstracta e «signitivamente» desenvol­
vidas em símbolos por conteúdos de sentido de frases já fixados
ou quando as apreendemos pela compreensão de frases com­
pletas e presentes. O próprio facto de o conteúdo de sentido
de uma frase completa e integrada em conexões de frases já
fixadas constituir uma unidade de sentido em si imóvel leva
a introduzir uma imobilidade análoga no conteúdo do correlato
puramente intencional da frase. Apesar da existência das conexões
entre as frases e das ligações entre os seus correlatos puramente
intencionais estes continuam a ser em parte unidades discretas.
Quando, portanto, um objecto só nos é acessível através dos
conteúdos de sentido de várias frases conexas ele divide-se,
como um raio de luz no prisma, numa multiplicidade discreta
de relações objectivas diferentes entre si apesar de concatenadas.
Neste caso, as delimitações entre as relações objectivas singu­
lares têm o mesmo carácter puramente intencional que o próprio
conteúdo da relação objectiva. Por isso, não é possível aqui
chegar-se,, por assim dizer, automáticamente a opor estas deli­
mitações ao material real das relações objectivas individuais
nem a eliminá-las riscando-as da estrutura do objecto. Mais
adiante veremos que, até certo grau e de modo inteiramente
novo, a isto se chega ou pode chegar. Mesmo então o vestígio
deste modo da apresentação frásica e divisória dos objectos
é visível neles e nunca pode ser apagado por completo. Neste
caso o objecto é efectivamente apanhado como numa «rede».
Limitando-nos à pura compreensão das frases chegamos ao
objecto neste seu estado de «apanhado numa rede». Ou, por
outras palavras: como objecto decomposto apanhado numa rede
de relações objectivas é mediatamente projectado pelas frases
conexas e apresentado em relações objectivas. É indubitável
que durante a leitura de uma obra literária bem escrita não
182

tomamos consciência desta divisão dos objectos apresentados.


Surge com isto o problema da possibilidade de eliminar esta
divisão da obra literária. Deve intervir nisto um factor novo
que transcenda a pura compreensão das frases e ainda o seu
puro conteúdo de sentido. Que factor seja este só mais tarde
o poderemos saber porque já não pertence ao estrato aqui exa­
minado da obra literária (caps. 8 e 9).

§ 25. O carácter quase-judicativo das frases enunciativas


que aparecem numa obra literária 1

Comparando as frases enunciativas que aparecem numa obra


literária com as que surgem, p. ex., numa obra científica notamos
logo que aquelas, apesar da mesma forma e do conteúdo por
vezes aparentemente o mesmo, se distinguem essencialmente
destas, que são autênticos juízos em sentido lógico, em que algo
é afirmado seriamente e que não só pretendem a verdade mas
também são verdadeiros ou falsos, enquanto as primeiras embora
não sejam puras frases enunciativas por outro lado também não
podem ser consideradas como afirmações sérias ou juízos. Para
a apreensão adequada da essência do estrato das unidades de
sentido e da sua função na obra literária é indispensável escla­
recer esta modificação especial das frases enunciativas e, como
se mostrará adiante, de todas as frases que aparecem na obra
literária.
Como já observámos antecedentemente, a operação subjec­
tiva construtora de frases cujo produto puro, num caso especial,
é a pura frase enunciativa pode estar ao serviço de outras ope­
rações subjectivas e em particular de operações cognoscitivas.
Entre estas, uma das mais importantes é julgar acerca de alguma

1 Pode servir de epígrafe ao § 25.° e ainda ao § 52.° o que Breitinger


outrora escreveu no ensaio V o n dem W underbaren und dem W ahrscheinli-
chen: «A arte própria do poeta consiste portanto em afastar, até certo grau
artificialmente, da aparência de verdade as coisas que ele pela sua ima­
ginação pretende tom ar agradáveis, sempre, porém, na medida em que se
não perde completamente de vista a aparência' de verdade mesmo na maior
distância.» E mais: «É , portanto, preciso distinguir bem entre a verdade
da razão e a da imaginação. Algo pode afigurar-se errado à razão que a
imaginação considera verdadeiro mas, em contrapartida, a razão pode reco­
nhecer como verdadeira uma coisa que parece incrível à fantasia; e, por
isso, é certo que o errado é por vezes mais verosímil do que o verdadeiro.»
(Cf. J. Chr. G ottsched und die Schw eizer J. J. B o d m e r und J. J. B re itin g e r,
ed. J. Crüger, Berlim, 1882, p. 163.)
183

coisa. Aquilo que é julgado é geralmente declarado numa frase


enunciativa, que assim se transforma em afirmação, em juízo
no sentido lógico. Apesar da modificação que neste caso se dá
na função notificativa da enunciação o seu conteúdo de sentido
sofre uma modificação especial que agora interessa pôr sobre­
maneira *em relevo.
Se entendermos a frase «a minha caneta de tinta permanente
está na secretária» a princípio apenas no sentido de uma enun­
ciação e a transformarmos a seguir num juízo notamos imedia­
tamente que o factor de direcção da expressão nominal «a minha
caneta de tinta permanente» referido inicialmente ao corres­
pondente objecto puramente intencional se reporta no juízo, por
assim dizer, para além deste objecto a um objecto real (ou visado
como real) que tenha justamente as mesmas determinações
intencionadas na expressão «a minha caneta de tinta perma­
nente». Por meio desta referência do factor de direcção inten­
cional toda a relação objectiva puramente intencional desenvol­
vida pelo conteúdo de sentido da frase é relacionada com a
caneta real e até é apresentada como algo abrangido pela suá
esfera ontológica. É intencionalmente transposta para a esfera
real do ser em que a respectiva caneta se encontra e está «arrei-
gada» (para empregarmos o termo exacto de H. Conrad-Martius).
Ao mesmo tempo, o predicado do juízo adquire além da função
de desenvolvimento verbal por ele exercida na pura enunciação
ainda uma segunda, que é, por assim dizer, o efeito imediato
do juízo e pela qual se realiza a posição da relação objectiva
determinada pela frase como algo realmente existente na res­
pectiva esfera ontológica (no caso presente, no mundo real) l.
É sobretudo nestas funções — na transposição para a respectiva
esfera do ser (real, ideal, etc.)2 e na posição existencial3— que
se baseia aquilo que geralmente é designado como a «pretensão
de verdade» do juízo. Por outras palavras, o juízo pretende que
a relação objectiva determinada pelo seu conteúdo de sentido

1 Quando num juízo aparece a cópula é, em primeiro lugar, esta que


exerce as duas funções distintas. Cf. A. Pfaender, Logik, 1. c., pp. 182 e segs.
2 Foi A. Rosenblum quem me chamou a atenção para esta função.
3 Estas duas funções estão tão intimamente ligadas no juízo que num
exame superficial se podem considerar como uma e a mesma. Entretanto,
as análises mais pormenorizadas a que vamos proceder mostram que a
transposição para uma esfera de s e r — ainda que neste caso essencialmente
m odificada— não está necessàriamente ligada à «posição» existencial. Por­
tanto, é preciso distinguir as duas funções mesmo no caso de aparecerem
juntas.
184

não exista na realidade como puramente intencional mas como


relação objectiva radicada numa esfera ontològicamente autó­
noma em relação ao juízo.
A função de «transposição», porém, é inseparável no juízo
de outra função igualmente característica deste: da intenção de
que o conteúdo do correlato puramente intencional da frase se
adapte tão perfeitamente à relação objectiva existente numa
esfera ontológica independente do juízo com respeito a todas as
determinações materiais e formais não relativas à operação
cognoscitiva que as duas funções se possam neste aspecto
id entificarx. A operação cognoscitiva deve decorrer e continuar
até que a relação objectiva intencional constituída na fase da
sua culminação pelo acto definitivo do juízo tome uma forma
tal que atinja este grau de adaptação. Usando uma expressão
puramente ôntica, neste caso as duas relações objectivas devem
constituir duas concretizações diversas das mesmas essenciali-
dades ideais ou ideias em relação aos momentos indicados: a
concretização puramente intencional ontològicamente dependente
e relativa à operação subjectiva e a concretização objectivamente
existente e característica na forma da esfera de ser que lhe diz
respeito, portanto no caso de uma relação objectiva existente
no mundo real, na forma da realização ontològicamente autónoma
das respectivas essencialidades ou ideias. Quanto à mesmidade
daquilo que assim é concretizado de dois modos diversos as duas
relações objectivas identificam-se, passando nós, por assim dizer,
ao lado da espécie de concretização da relação objectiva inten­
cional ontològicamente dependente (mera intencionalidade) e diri­
gindo as intenções do juízo directamente para o que existe
autónomo no seu ser em relação ao juízo. Só por esta adaptação
a relação objectiva puramente intencional pode intencionalmente

1 É preciso acentuar em particular que na realização de um acto


judicativo que culmina num juízo em sentido lógico geralmente não se
encontra nenhuma operação subjectiva identificador a especial destas duas
relações objectivas. Este facto, porém, não contradiz a nossa concepção.
É que se trata de, num juízo simplesmente realizado, o conteúdo do
correlato puramente intencional da respectiva enunciação ser de antemão
considerado idénticamente o mesmo que o comportamento das coisas
objectivamente existente. H á também casos em que se dá uma identifi­
cação consciente destas duas relações objectivas, e isto sucede sempre que
emitimos o juízo respectivo após uma ponderação dos motivos da sua
verdade de facto. Nesta ponderação chegamos de um modo perfeitamente
claro a opor as duas relações objectivas, que somente se identificam quando
se nos deparam razões concludentes.
185

ser transposta para a respectiva esfera ontológica Em conse­


qüência de todas estas funções resulta, portanto, que a relação
objectiva puramente intencional enquanto tal, por assim dizer,
desaparece do nosso campo de visão e não consegue destacar-se
por si mesma2. Precisamos então de uma atitude especial para
a apreendermos na sua qualidade e a opormos à relação objectiva
realmente existente. Temos um exemplo desta atitude bem conhe­
cido na vida quotidiana quando ao compreender um juízo e ao
indagar, por conseguinte, as intenções nele contidas e que pro­
jectam uma relação objectiva, ao mesmo tempo não damos
crédito a esse juízo e comparamos, numa tentativa de exame,
a relação objectiva projectada pela frase com outra relação
objectiva real e simultáneamente dada numa intuição. A mera
abstenção da pretensão de verdade imánente ao juízo já é sufi­
ciente para salientar o correlato puramente intencional enquanto
tal. Nestes e em todos os casos análogos já não tratamos de
um juízo puro, mas de um já modificado em que a pretensão
de verdade é suspensa e posta em dúvida. Logo que a pretensão
de verdade é sèriamente posta em prática restabelece-se a situa­
ção que acima descrevemos.
Por mais simples e compreensíveis que todas estas situações
a princípio se afigurem podem, todavia, surgir dúvidas contra a
verdade da nossa concepção. Assim, pode objectar-se: Não seria
muito mais correcto dizer-se que no caso de um verdadeiro juízo
há apenas um comportamento de coisas objectivamente existente
que é simplesmente apreendido no acto judicativo, visado e posto
no juízo como realmente existente? Pois é um facto inegável
que no simples juízo não intencionamos duas relações objectivas
— a puramente intencional e a realmente existente — levando-as

' Pfaender afirma que o «acordo» entre a realidade e o juízo, em que


ele vê a essência da verdade do juízo, reside no facto de «o juízo na
posição afirmativa que realiza em relação ao seu objecto-sujeito coincidir
com a relação do próprio objecto» (Logik, l. c., p. 221). Se devo entender
por «relação do próprio objecto» o comportamento das coisas objectiva­
mente existente em determinada esfera do ser a minha concepção descrita
no texto parece estar próxima da de Pfaender, mas com a reserva de que
o momento indicado por Pfaender ainda não esgota a situação inteira que
aparece num verdadeiro juízo e de que a «coincidência» do juízo é inter­
pretada no sentido de a relação objectiva puramente intencional ser,
segundo o seu conteúdo, adequada ao comportamento das coisas objecti­
vamente existente e de as duas relações se identificarem. De outra maneira
eu não saberia o que se devia entender por «coincidência» que justificasse
falar ainda de «acordo».
2 Em linguagem figurada poderia dizer-se que se torna inteiramente
« transparente».
186

de qualquer modo a «coincidir», mas dirigimo-nos para urna


única relação objectiva (precisamente para a realmente existente)
e fixamo-la ou supomos fixá-la na sua existência ontològicamente
independente do juízo. Se, porém, esta concepção fosse correcta
devia também ser errado falar-se da transposição da relação
objectiva puramente intencional e, por outro lado, ser posta em
dúvida ainda toda a teoria dos correlatos puramente intencionais
das unidades de sentido. Então levantar-se-ia a dúvida justificada
sobre a existência de semelhante correlato mesmo em juízos
errados ou noutras frases.
Entretanto, a existência dos correlatos puramente intencio­
nais numa produção como a frase não pode ser posta em dúvida.
Por conseguinte, seria incompreensível porque é que só os juízos
verdadeiros haviam de ser privados de semelhante correlato.
Por outro lado, é também fácil de demonstrar a existência e a
diferença dos dois tipos de relações objectivas no caso do juízo
verdadeiro. Provam-no já os casos atrás mencionados em que
reflectimos sobre a verdade de determinado juízo. Há, porém,
casos em que é fácil demonstrar isto mesmo sem a «abstenção»
da pretensão de verdade do juízo, portanto sem introduzir nele
as modificações com ela articuladas. Tomemos, p. ex., os seguin­
tes juízos, que devemos pressupor como verdadeiros: « cada
corpo tem extensão» e «esta caneta de tinta permanente é um
produto alemão, aquela, em contrapartida, é de proveniência
americana». Na realidade, não há indubitàvelmente «esta» ou
«aquela» caneta de tinta permanente, não há, portanto, nenhum
objecto que possua uma característica ou qualquer momento
susceptível de corresponder às palavras «esta» ou «aquela»,
como também não há corpo algum que seja «cada» !. Quando,
p. ex., em conversa, apontando para uma coisa, dizemos « esta
caneta de tinta permanente», esta orientação intencional para
ela e a sua delimitação relativamente a outras coisas têm cer­
tamente por conseqüência que o respectivo objecto adquira
no conteúdo intuitivo da sua aparência um momento particular
— também intuitivamente perceptível — correspondente e rela­
tivo a esta orientação. Este momento, porém, é de natureza
puramente intencional e incapaz de modificar, seja em que
aspecto for, a respectiva coisa real — tal como é puramente em

1 Semelhante ideia exprimiu-a a Doutora M. Kokoszynska numa con­


ferência que fez na Sociedade de Filosofia, em Lemberga, ao afirm ar que
a expressão «cada S » ou «todos os SS » não pode ser entendida como nome
autónomo — no dizer d ela— e que, portanto, o «cada» não deve ser incluído
no conceito de sujeito mas no de predicado.
187

si mesma — e, portanto, também incapaz de produzir nela qual­


quer nova característica. Esse momento distingue-se também
nitidamente do conjunto das qualidades reais pertencentes a
essa coisa. Quando, portanto, dizemos: «Esta caneta de tinta
permanente é um produto alemão» o conteúdo de sentido desta
frase determina o objecto-sujeito da correspondente relação objec­
tiva puramente intencional não simplesmente como «caneta de
tinta permanente» mas também enquanto objecto revestido do
momento intencional correspondente à palavra «este» e é só a
um objecto assim concebido que o resto da relação objectiva
se refere. Na relação objectiva real correspondente este momento
não aparece. Distinguem-se, portanto, as duas relações objectivas
nitidamente uma da outra. Como, porém, a direcção determinada
pelo factor de direcção intencional da palavra «esta» coincide
com a direcção do acto em que o sujeito da relação objectiva
real é captado, as duas relações objectivas podem corresponder
uma à outra e identificar-se de maneira que não tomamos cons­
ciência nítida da sua diferença. Apesar disso — sob o aspecto
puramente ôn tico— , a identidade não se estende a todos os
momentos das duas relações objectivas quando tomamos apenas
a relação objectiva realmente existente na sua plena pureza,
portanto depois de eliminadas todas as características puramente
intencionais relativas a operações da consciência, i. é, quando
a consideramos como devemos em todo o juízo com pretensão
de verdade. Neste caso salta-nos também à vista, na sua pura
intencionalidade, a relação objectiva puramente intencional pro­
jectada pelo juízo analisado. Portanto, também no caso de juízos
verdadeiros a existência das duas relações objectivas — a pura­
mente intencional e a realmente existente — é inegável. Não é
contrário a isto o outro facto, igualmente inegável, de que na
realização de um conteúdo de sentido contido num juízo não
são duas relações objectivas diferentes que «aparecem» mas uma
única, pois nisto revela-se apenas o trabalho da função do juízo
atrás descrita que, entre outras coisas, leva à identificação da
matéria e da forma de relação objectiva puramente intencional
com a realmente existente. Também não é de admirar que se
dê esta identificação apesar da diferença dos modos de ser das
duas relações objectivas identificadas porque o que neste caso
«coincide» com a relação objectiva não é o correlato intencional
do juízo como tal mas apenas o seu conteúdo. Neste mesmo
conteúdo o modo do respectivo objecto é precisamente aquele
modo de ser em que aparece a relação objectiva existente na
esfera ontológica e, então, o puro ser-intencional não nos surge
perante o olhar porque não pertence ao conteúdo do correlato
188

puramente intencional ou não se pode encontrar nele. Que isto


seja precisamente assim e não de outro modo eis o efeito ime­
diato das funções do juízo acima indicadas.
A nossa concepção das funções do juízo e a interpretação
da sua pretensão de verdade podem, portanto, ter valor con­
sistente.
Considerando agora como oposta ao juízo a pura frase
enunciativa vemos que todas as funções imediatamente relacio­
nadas com a pretensão de verdade e suas conseqüências desa­
parecem. Em primeiro lugar, o factor de direcção intencional
do sujeito da frase não se refere, através do correspondente
objecto intencional, a um objecto existente e ontològicamente
autónomo mas precisamente a este mesmo objecto puramente
intencional. Isto, porém, é apenas uma expressão exterior de
que não existe aqui nem a intenção identificadora da adaptação
nem a transposição do conteúdo da relação objectiva puramente
intencional. Com isto desaparece também a posição existencial
numa esfera autónoma no seu ser em relação à frase. Certamente,
os objectos que aparecem nas relações objectivas puramente
intencionais ou as próprias relações objectivas são caracterizados
segundo o modo de ser, p. ex., como reais, ideais, apenas possí­
veis, etc., mas não são postos como de facto existentes no seu
modo de ser \ A relação objectiva intencionalmente desenvolvida
paira, neste caso, inteiraménte como se estivesse suspensa no
ar apesar da caracterização existencial; falta-lhe a «radicação»
numa esfera real ontològicamente independente da frase enun­
ciativa. Pelo contrário, ao compreendermos ou proferirmos uma
frase puramente enunciativa a relação objectiva correspondente
apresenta-se-nos nitidamente com o carácter de sustentada pela
intencionalidade emprestada do sentido da frase. Ao mesmo
tempo, porém — é preciso salientar para prevenir todos os
mal-entendidos — , a frase puramente enunciativa não deve ser
confundida com um juízo reconhecido como errado ou um
juízo existencial negativo. Por outras palavras: a ausência da
posição existencial na frase puramente enunciativa não pode ser
identificada com a sua eliminação nem com a-exclusão existen­
cial de uma esfera autónoma no seu ser. No caso de um juízo
reconhecido como errado trata-se de uma frase a que a posição
existencial é imánente e essencial, embora seja considerada
como injustificada, inválida e, por conseguinte, sem força. Tam­

1 Segundo a terminologia de Pfaender não há, portanto, numa mera


frase enunciativa nenhuma função afirmativa da cópula quando esta
aparece.
189

bém o juízo existencial negativo pretende ser verdadeiro e é


portador de todas as funções acima discriminadas. Na frase
puramente enunciativa, ao contrário, toda a pretensão de verdade
está simplesmente ausente e a isto está inseparàvelmente vin­
culado o carácter peculiar do «estar suspenso» da relação
objectiva puramente intencional ’ .
No meio dos dois extremos — a pura frase enunciativa e o
autêntico ju ízo — está aquela espécie de frases que encontramos
nas frases afirmativas (modificadas) das obras literárias. No título
deste parágrafo empregámos a expressão «o carácter quase-judi-
cativo» das frases afirmativas. Foi nosso propósito indicar que
as frases afirmativas que aparecem numa obra literária têm a
«aparência externa» de juízos, mas contudo não são nem pre­
tendem ser autênticos juízos. Quando, p. ex., lemos num romance
que o Senhor X assassinou a sua mulher sabemos perfeitamente
que isto não deve ser tomado a sério, que ninguém — no caso
de as respectivas frases se provarem ser falsas — podia ser res­
ponsabilizado por isso. Nem sequer nos ocorre pôr a questão
da verdade ou falsidade de tais frases. Todavia afirma-se, sem
dúvida, nestas frases algo de um modo especial, de maneira que
não nos encontramos perante puras frases enunciativas como
talvez possa parecer evidente a muitos leitores superficiais.
É, porém, difícil definir esta modificação peculiar da afirmação
porque há nos diversos tipos de obras literárias diversas modi­
ficações, algumas das quais aproximam a frase afirmativa mais
do juízo e outras, pelo contrário; da pura enunciação.
Estão mais próximas de frases puramente enunciativas as
afirmações quase-judicativas de obras que em nenhum sentido
pretendem ser «históricas», como acontece em alguns dramas
simbólicos de Maeterlinck ou nos pequenos dramas de Hof-
mannsthal. Neles atingem indubitàvelmente uma posição no ser
as relações objectivas intencionalmente projectadas (ou os objec­
tos nelas apresentados), que naturalmente também têm caracte­
rização existencial correspondente. Falta, porém, aqui absoluta­
mente a característica de um autêntico juízo, ou seja, o acto
de visar a adequação das relações objectivas projectadas com

1 Se bem entendo as observações de Meinong, o caso especial da pura


operação construtora de frases em que se forma a frase simplesmente
enunciativa é aquilo a que ele chama «suposição análoga ao juízo». Por
vezes parece, todavia, que ele tem em vista a própria frase puramente
enunciativa ao falar de «suposição». Em todo o caso, em Meinong nem a
esfera das unidades de sentido é salientada em toda a sua pureza nem é
adequado o termo «suposição» para designar a frase puramente enunciativa.
190

os comportamentos das coisas objectivamente existentes e encon­


trados numa esfera ontològicamente autónoma K Assim, também
não se pode falar de nenhuma identificação com estes. Apesar
disso, também aqui os correlatos da frase são, no seu conteúdo,
transpostos para o mundo real. Isto, porém, só anda ligado à
«posição» de ser e não — como acontece nos juízos autênticos —
à intenção de adequação e à identificação. Assim, a nossa com­
preensão das frases que aparecem não é directamente dirigida
a relações objectivas ou a objectos reais e radicados na esfera
real do ser nem tão-pouco se funda com as intenções nesta esfera,
de modo que os conteúdos puramente intencionais do correlato
passassem despercebidos, mas, ao contrário, são precisamente
estes últimos que se transpõem para a realidade e nela são
«postos» com a consciência ainda viva de que têm a sua origem
na intencionalidade do conteúdo da frase. Esta «posição» e trans­
posição, porém, efectuam-se aqui — segundo o sentido próprio
das afirmações assim modificadas — não nos moldes da plena
seriedade, como nos autênticos juízos, mas de um modo peculiar
que apenas dá a ilusão de seriedade. Por isso, as correspondentes
relações objectivas ou os objectos puramente intencionais são
apenas abordados como realmente existentes sem que — numa
expressão figurada — tivessem sido impregnados do carácter de
realidade. Apesar da transposição para a realidade as relações
objectivas intencionalmente projectadas constituem, por isso, um
mundo à parte. A este respeito é preciso ter em consideração
que a transposição não é efectuada pelo factor de direcção das
significações nominais que nas frases aparecem, mas para este
efeito são necessários elementos próprios de conteúdo material,
p. ex., que se trate de uma situação que se passa num parque
ou numa cidade, portanto em qualquer sítio da Terra. O brilho
multicolor de ser-transposto para o mundo, de ficar apenas
suspenso algures e de não poder efectivamente pôr pé na reali­
dade constitui o encanto especial de obras deste género estrei­
tamente ligado a este tipo de afirmações quase-judicativas.
Outro tipo de proposições afirmativas quase-judicativas
encontra-se, p. ex., em muitos romances chamados «contempo­
râneos» ou ainda em romances de uma época (como o romance
barroco, o da Restauração no século xix, etc.), que também não

1 É preciso ter em consideração que a adequação não deve ser con­


fundida com a conseqüência interna dos conteúdos de sentido da frase
ou com o conjunto das qualidades próprias e singulares característico das
objectividades de determinado tipo. A primeira pode muito bem faltar,
enquanto a segunda está presente.
191

pretendem ser propriamente «históricos» mas, todavia, referem


ao mundo real as objectividades neles apresentadas de um modo
inteiramente diferente e ao mesmo tempo — se assim se pode
d izer— mais estrito. O carácter apenas ilusório de seriedade
da função de «posição» e o da transposição mantêm-se aqui,
como acontece em todas as proposições afirmativas quase-judi-
cativas. Se, porém, no caso anterior a intenção de «adequação»
a comportamentos de coisas objectivamente existentes faltava
por completo, sendo preciso transpor para o mundo e pôr exis-
tencialmente nele as próprias relações objectivas (ou os objectos
projectados) intencionalmente desenvolvidas pelas frases, no caso
agora analisado já existe o início de uma intenção de adequação.
O que, em primeiro lugar, importa não é que diversos elementos
do conteúdo material das frases revistam as relações objectivas
ou os objectos de momentos semelhantes às qualidades e aos
momentos inerentes a objectos e relações objectivas reais de
determinada época e determinado meio cultural, mas o que
importa aqui é, por assim dizer, a intenção com que são pro­
nunciadas as afirmações que aparecem no romance «contempo­
râneo». Pois é a esta intenção que se religa também o modo
especial da função afirmativa e quase-judicativa destas propo­
sições. As afirmações singulares são apresentadas de modo que
as relações objectivas por elas projectadas não se podem adequar
a nenhuma relação objectiva individual inteiramente definida e
realmente existente na respectiva época mas apenas ao tipo geral
das relações objectivas e dos objectos «possíveis» nessa época
e meio. As frases que aparecem em tal romance projectam natu­
ralmente relações objectivas que existem em objectos individuais
ou em si mesmas são individuais. Mas não é a respeito desta
individualidade, ou melhor, não é nesta sua plena individualidade
que as objectividades intencionalmente projectadas se devem
adequar ao real, não é portanto pelo facto de, p. ex., uma
personagem criada num romance ser — como geralmente se diz —
uma «interpretação literária» de determinada personalidade real­
mente existente. A intenção de adequação própria das frases
que aparecem aqui refere-se ao tipo que atinge expressão na
personagem criada. Embora também neste caso os factores de
direcção das significações nominais não transcendam as objec­
tividades puramente intencionais rumo a objectividades reais
determinadas e falte aqui também a radicação directa das inten­
ções dos conteúdos de sentido na realidade, contudo as relações
objectivas (ou os objectos) puramente intencionais não ficam
na sua «posição» de ser tão suspensas como no caso anterior­
mente discutido. Devido à adequação respeitante ao tipo geral
192

das objectividades são estas transpostas para a realidade e até,


aqui e além, no intuito de acentuar a ilusão de realidade, postas
em relação com comportamentos de coisas objectivamente exis­
tentes que poderiam igualmente verificar-se em autênticos juízos.
Assim, p. ex., lemos que certo caso se passa numa cidade que
aliás conhecemos como real (p. ex., em Paris). Intimamente
relacionada com o facto de se tratar meramente de uma ade­
quação quanto ao tipo esta transposição não pode conduzir a
uma «transparência» perfeita das relações objectivas puramente
intencionais; estas apresentam-se sempre como meramente trans­
postas e «postas», nitidamente caracterizadas pela sua intencio­
nalidade relativa aos respectivos conteúdos de sentido de frase.
Passando, finalmente, para obras de arte literária que pre­
tendem ser «históricas» e até se propõem apresentar com a
máxima «fidelidade» possível determinados factos e objectivida­
des conhecidos pela história também aqui não encontramos
autênticos juízos. Se, p. ex., compararmos a descrição de uma
batalha num romance histórico — mesmo em casos em que esta
descrição é fielmente desenvolvida com base nas fontes histó­
ricas — com a descrição da mesma batalha numa obra científica
a diferença de carácter das afirmações que em ambos os casos
aparecem é evidente. Não importa que a descrição num romance
se «afaste», aqui e ali, daquilo que efectivamente sucedeu porque
mesmo a história científica mais rigorosa não é capaz de apre­
sentar uma descrição absolutamente fiel, e isto por razões essen­
ciais. A distinção, neste caso, reside novamente no carácter
quase-judicativo das afirmações que em tais obras de arte lite­
rária aparecem. É certo que, neste caso, nos aproximamos um
passo mais dos autênticos juízos. A intenção da adequação a
comportamentos de coisas (ou objectos) objectivamente exis­
tentes estende-se aqui até ao rigorosamente individual e não
apenas ao tipo geral como no caso anterior. Devem, portanto,
ser apresentadas não só «tais» objectividades e situações de
determinado género que seriam «possíveis» em certa época, mas
também devem ser projectadas por frases afirmativas relações
objectivas ou apresentados objectos que se adeqúem exactamente,
como indivíduos perfeitamente determinados, a objectos (rela­
ções objectivas) outrora (ou ainda «h oje») existentes. Quando,
p. ex., em Wallensteins Tod é apresentado o assassínio de Wal-
lenstein os acontecimentos projectados de modo puramente inten­
cional — e precisamente enquanto estes acontecimentos indivi­
duais determinados — pretendem adequar-se a acontecimentos
outrora de facto sucedidos na história de tal modo que os pri­
meiros seriam perfeitamente semelhantes a estes como se fossem
193

«os mesmos» K Todavia, não se pretende chegar a nenhuma


identificação das duas relações objectivas (ou dos dois objectos),
de modo que de novo as relações objectivas intencionalmente
projectadas são em si mesmas, quanto ao seu ser, caracterizadas
e «postas» como reais e em toda a sua multiplicidade apresentam
objectos «postos» no seu ser e transpostos para o mundo real
que apenas reproduzem e até fingem ser as objectividades outrora
realmente existentes como se fossem elas mesmas graças à extensa
semelhança que entre elas existe. Se num romance destes apa­
recessem autênticos juízos o que importaria então não seria
esta «reprodução» nem a ficção, mas o factor de direcção inten­
cional deveria, em última análise, remeter para as objectividades
outrora realmente existentes. Neste caso, as relações objectivas
intencionalmente projectadas deveriam coincidir perfeitamente
com as reais de tal modo que ao compreendermos as frases elas
deveriam desaparecer como tais completamente do nosso hori­
zonte. Pelo contrário, no caso da apresentação histórico-artística
são precisamente os correlatos puramente intencionais que se
tornam visíveis ao compreendermos as frases e que, graças à
semelhança ampla — em virtude da intenção — e à adequação
aos comportamentos de coisas objectivamente existentes, quase
dão corpo e tornam presentes estas relações. Assim, ressurge
diante dos nossos olhos o passado há muito desaparecido e
aniquilado nas relações objectivas (nos objectos) apenas inten­
cionais que o encarnam, mas não é ele próprio que neste caso
é julgado porque falta ainda o último passo que separa as
afirmações quase-judicativas dos autênticos juízos: a identifica­
ção e com ela a posição realizada no modo de plena seriedade
e ainda a radicação das intenções dos conteúdos de sentido na
respectiva realidade. Só com a transição para a consideração
científica ou para um simples relato de recordações se daria o
último passo mas com ele obteríamos também autênticos juízós.
Quando em obras literárias só há afirmações quase-judica­
tivas de tipos diversos estas frases — como já verificámos —
não são puras enunciações. Assim, graças às suas particularidades
descritas conseguem produzir em grau inferior ou superior a
ilusão de realidade, o que puras enunciações não conseguiriam.
Por outras palavras, são portadoras de um vigor sugestivo que
durante a leitura permite transpor-nos para o mundo da ficção
e viver como se fosse num mundo próprio de um modo parti­
cular não real e contudo aparentemente real. Este magno efeito

1 Com respeito a este «como se», cf. o cáp. 7.

13
194

misterioso da obra de arte literária tem a sua origem, em


primeiro lugar, no carácter particular quase-judicativo das afir­
mações, que certamente não foram investigadas por nós de
modo exaustivo. Outros factores, ainda por discutir, da obra de
arte literária são neste aspecto meras contribuições.
Ao terminar estas considerações devo ainda acrescentar uma
observação para evitar uma interpretação errada da minha posi­
ção. É que se devem distinguir dois empregos diferentes de
frases predicativas na obra de arte literária. Umas são — como
geralmente se diz — pronunciadas «pelo autor», as outras, ao
contrário, são enunciações saídas das personagens criadas na
obra de arte literária. Assim acontece tanto na epopeia como
no romance, mas com particular nitidez em qualquer obra dra­
mática, em que estas frases constituem um texto especial e
— como se verá — o texto principal1. Ora, quando uma frase
é pronunciada por uma personagem como juízo dirigido a outra
personagem esta frase — caso a respectiva personagem emita
realmente um juízo e seja sincera — é indubitàvelmente um
juízo no sentido rigoroso, mas ao mesmo tempo um juízo que
só tem validade ou é verdadeiro no âmbito do mundo criado
em relação aos objectos deste mundo e apenas para as perso­
nagens dialogantes, independentemente de se tratar de um juízo
individual particular ou geral. Neste caso, não é lícito •— como
é freqüente acontecer em historiadores de literatura e críticos —
transferir estes juízos pronunciados pelas personagens para além
dos limites do mundo criado na respectiva obra nem interpre­
tá-los como juízos acerca do mundo real ou como opiniões do
autor a respeito de certas questões atinentes ao mundo real.
Semelhante procedimento deturpa o sentido próprio de frases
deste género e desfigura a estrutura própria da obra. São sim­
plesmente frases intencionadas como juízos pelas personagens
e pertencem em si mesmas às objectividades apresentadas dentro
do mundo criado e são, tanto para o autor como ainda para o
leitor, apenas pretensos juízos mas não autênticos.
Quando, porém, uma frase predicativa pertence ao texto
que descreve o mundo criado na obra e constitui parte da
«narração» dos destinos das personagens e dos objectos, e exerce
deste modo a função de constituição intencional da matéria
apresentada como tal, é eiatão apenas um quase-juízo empregado
pelo autor precisamente com a finalidade de fingir um mundo
assim. Ainda que, neste caso, aquela frase tivesse a forma

1 Cf. adiante, §§ 30.° e 57.°


195

externa de um juízo sobre objectividades apresentadas — como,


p. .'ex., sucede com frases que descrevem o aspecto e o compor­
tamento de determinada personagem, v. gr., do Senador Bud-
denbrook— não seria todavia nenhum juízo sensu stricto mas
constituiria uma das modificações acima descritas do juízo, um
quase-juízo desta ou daquela forma. Na leitura e interpretação,
frases como estas só devem ser entendidas nesta modificação
e função especial e não é lícito transformá-las em autênticos
juízos, e, por conseguinte, em juízos que se não reportariam
a objectividades criadas mas a objectos reais, extra-artísticos.
Isto seria igualmente uma falsificação do sentido próprio destas
frases e portanto da própria obra, sobretudo se estas frases
fossem apresentadas como «verdades» que o autor levaria ao
conhecimento do leitor. No § 52.°, dedicado à «verdade» na obra
de arte literária, voltarei a referir-me a este assunto \

§ 25-a. Não haverá quase-juízos na obra de arte


literária?

Na sua Logik der Dichtung, Káte Hamburger protestou


contra a minha concepção dos quase-juízos e da sua função na
obra de arte literária2. Para os substituir procura outros recursos
lingüísticos no intuito de explicar como é possível que na obra
de arte literária não seja a verdadeira realidade a constituir
aquilo de que a obra trata, e portanto o mundo apresentado
como tal, mas sim — na minha maneira de falar — uma simples
multiplicidade de objectividades puramente intencionais que em
geral apenas simulam uma realidade ou a reproduzem. A autora
começa por dirigir uma série de objecções contra a minha
concepção e só depois desenvolve a sua própria teoria. Vou
fazer algumas observações à primeira parte.
As objecções que Kàte Hamburger me faz são as seguintes:

1. Em Ingarden também não se vai, em última análise,


além da rotulação dos fenómenos mentais e lingüísticos que
aqui aparecem.

1 Não se pretende, naturalmente, negar que muitas vezes os autores


se servem das suas obras para furtivamente introduzirem nelas as suas
próprias opiniões referentes a diversas questões sobre o mundo real. Isto,
porém, apenas prova que desconhecem a essência da obra de arte e abusam
de obras de arte para diversos fins extra-artísticos (políticos, religiosos, etc.).
2 Cf. Kàte Hamburger, Die Logik der Dichtung, Estugarda, 1957,
pp. 14 e segs. e em vários outros passos.
196

2. Ao tentar «distinguir» o modo de ser da poesia da «prosa»


da enunciação «real» o «conceito distintivo» por mim usado
teria «uma acepção demasiado restrita».
3. Usei um conceito de obra de arte literária demasiado
restrito que se «aplica apenas à poesia épica e dramática» («como
no livro é muito tácitamente pressuposto e, de qualquer modo,
apenas adaptado à terminologia inglesa»). Não se trataria neste
caso de outra coisa que não fosse a «justificação do fenómeno
e da vivência da “ não-realidade” destes géneros poéticos».
4. Para provar esta «irrealidade» eu ter-me-ia servido de um
instrumento de conhecimento «que pelo menos resulta pouco
eficiente — do conceito de quase-juízo».
5. A argumentação vai endurecendo de linha a linha porque
um pouco mais adiante leio: «Esta redução do carácter de irrea­
lidade de uma poesia mimética às frases de que ela se constitui
não parece todavia de modo algum suficiente para explicar o
fenómeno. Em última análise, até cai num círculo. As frases
ou enunciações de um romance só são constituídas como quase-
-juízos por aparecerem num romance.» (L. c., p. 15.) E mais
adiante: «A qualificação das frases de um romance ou de um
drama como quase-juízos outra coisa não significa do que o
facto tautológico de ao lermos um romance sabermos que esta­
mos a ler um romance ou um drama, i. é, não nos encontramos
em circunstâncias reais.»
6. Pouco depois não se fala de «tautología» mas, por um
lado, da omissão de um factor importante na obra literária e,
por outro, directamente da falsidade da minha concepção. Devo
ter apresentado erradamente a diferença entre um romance
histórico e uma obra histórica científica e por isso teria sido
obrigado a modificar o meu conceito de quase-juízo ao empre­
gá-lo relativamente ao romance histórico, pelo que se provaria
o erro de toda a minha concepção (cf. I. c., pp. 15 e 16).
7. Por fim, ainda uma objecção inteiramente diferente:
«O conceito de quase-juízo não descreve de modo algum a estru­
tura linguístico-literária e o modo específico de aparência do
romance e não passa de uma atitude psicológica indeterminada (?)
do autor e correspondentemente do leitor.» (L. c., p. 17.)

Esta crítica é seguida de um extenso estudo em que Káte


Hamburger apresenta o seu próprio ponto de vista. Deste me
ocuparei resumidamente mais adiante. O que pensar a respeito
desta crítica?
Antes-de mais, é preciso ter em consideração que em poucas
páginas as objecções apresentadas são sempre diferentes e sem
197

coerência entre si. Começa-se pela censura de uma «rotulação»


e de certas deficiências («demasiado restrito», «pouco vigo­
roso», etc.), depois objecta-se com a «tautología» e finalmente
com a falsidade da minha posição. Por fim, volta-se a afirmar
que, de qualquer maneira, eu errei o alvo e em vez de analisar
a própria obra literária descrevo simplesmente a «atitude psico­
lógica indeterminada do autor ou do leitor». Esta mesma falta
de unidade da ofensiva dirigida contra a minha posição é indicio
da sua fraqueza. Ou a minha posição é «tautológica» ou está
errada, não podendo ser simultáneamente uma coisa e outra;
se ela está errada também não é «pouco vigorosa»; se é orientada
no sentido da atitude psicológica do leitor ou do autor parece
estar certa, mas sómente é, por assim dizer, conduzida numa
falsa direcção. Qual é, portanto, a verdadeira intenção da crítica?
Passo agora a ocupar-me das objecções individuais.
Ad 1. A minha posição não passa, «em última análise, de
uma rotulação». Esta crítica, porém, só poderia ser feita se eu
me tivesse contentado com uma nova nomenclatura (rotulação)
sem me preocupar em esclarecer as qualidades daquilo a que
chamo quase-juízos. Não é este, de modo algum, o caso. O leitor
do parágrafo anterior pode fácilmente verificar o meu esforço
em esclarecer a distinção entre um juízo e um quase-juízo, e mais
adiante — precisamente no estudo da situação no romance his­
tórico (cf. § 25.°, pp. 192 e segs.) — há ainda uma continuação
da minha tentativa de esclarecer no seu conteúdo este novo
conceito e suas variações. É certo que não é fácil perceber esta
modificação das afirmações nem pôr perante os olhos do leitor
a sua qualidade específica e variações. Eu não ficaria admirado
se Káte Hamburger me dissesse que a minha tentativa de escla­
recimento era insuficiente e que seria preciso aprofundar a
análise de toda a situação. Mas certamente isso não é mera
«rotulação». A própria Kàte Hamburger cita uma série de defi­
nições e descrições minhas, provando por isso mesmo que não
se trata no meu livro de mera «rotulação».
Não me admiro de que para Kàte Hamburger não seja
assim tão fácil apreender aquilo de que se trata na minha posi­
ção. Ela censura-me por me ocupar dc atitudes psicológicas
«indefinidas» propondo-me — como algo pretensamente desconhe­
cido e novo para m im — a necessidade de uma análise dos
produtos (ou, no dizer dela, dos fenómenos) lingüísticos, enquanto
ela mesma ao definir os conceitos de «juízo», «proposição» e
«enunciação» se reporta a Sigwart (!), que, como se sabe, é o
cúmulo do psicologismo na Lógica. Por conseguinte, ela dá
uma orientação psicológica a estes conceitos, enquanto eu com-
198

bato precisamente o psicologismo — e justamente no campo


do estudo dos produtos e das funções lingüísticas — , esforçan­
do-me o mais possível por conceber a obra de arte literária
como algo que embora resulte de operações subjectivas da
consciência transcende inteiramente tanto a consciência como
tudo o que é psíquico. Assim, não é correcto oporem-me as
considerações de Sigwart visto que eu desde o princípio cons­
truo a estrutura da frase e do juízo apenas com elementos
lingüísticos e evito todo o psicologismo. É certo que no modo
de proceder me sinto próximo de Husserl e Pfaender e também
não nego esta afinidade. Contudo, nem Husserl nem Pfaender
me parecem seguir um método suficientemente puro para nos
libertarmos do psicologismo.
O conceito de quase-juízo tem por base a distinção pfaen-
deriana das suas funções — afirmativa e predicativa — da cópula
na frase. O «quase» refere-se precisamente a uma modificação
da função afirmativa (da asserção, em Russell) que, por um
lado, se opõe ao juízo categórico e à sua função afirmativa
«categórica» (incondicional) simples, por outro, à «modificação
de neutralização» — como Husserl a definiu— e, finalmente, à
privação completa da função afirmativa — em puras enunciações
(frases predicativas sem qualquer afirmação, as puras «suposi­
ções» de Meinong). Quem não conhecer e não tomar em con­
sideração estas investigações de Husserl e Pfaender (ou de
Meinong) terá difícil acesso às minhas análises. Nelas tentei
ultrapassar Pfaender e procurei — em parte com a ajuda de
Hedwig Conrad-Martius — analisar na medida do possível o sen­
tido ou, se assim se pretende, a função.
Naturalmente, às produções lingüísticas — como frases, obras
literárias e coisas semelhantes — correspondem o falante e suas
funções lingüísticas, operações lógicas, etc. A função da cópula,
p. ex., como a função afirmativa do juízo ou suas modificações
são assumidas e desempenhadas na linguagem viva pelo falante.
Há deste modo actos afirmativos, operações predicativas, etc.
Assim, há também actos de quase-juízo respectivamente modi­
ficados e dever-se-ia mostrar como se processam in concreto
estas operações subjectivas. Tudo isto, porém, faz parte de um
estudo muito diferente daquele que realizei neste livro. Pelo
que toca à parte do leitor também procedi a essa investigação
em separado precisamente no livro Do Conhecimento da Obra
Literária, que publiquei em polaco em 1937. Procurei distinguir
rigorosamente as duas esferas de investigação relacionadas entre
si e não as confundir de modo algum. Por isso não necessito
de que Kàte Hamburger me ponha de sobreaviso.
199

Ad 2. e 4. Não me ocuparei das objecções de que o meu


conceito de «quase-juízo» é demasiado restrito ou mui pouco
vigoroso pois elas a mim nada me dizem.
Ad 3. Segundo Kàte Hamburger o meu conceito de «obra
de arte literária» tem de ser demasiado restrito porque não
abarca toda a lírica. Pede-se ao leitor que olhe para a página
em que se traça o círculo de exemplos do ponto de partida e
é também mencionado o poema lírico ao lado de obras épicas
e dramáticas. Portanto, não é verdade que eu tenha eliminado
«muito tácitamente» a lírica do âmbito do conceito da obra
literária. É verdade apenas que no meu livro não são concre­
tamente analisados poemas líricos, mas isso só porque na altura
tive receio de recorrer a exemplos deste género porque os erros
surgem com a maior facilidade na análise de poemas líricos
em línguas estrangeiras. Se Káte Hamburger conhecesse os meus
trabalhos em língua polaca encontraria neles suficientes exemplos
de poemas líricos e até um estudo pormenorizado da lírica
como tal. Durante a guerra (1940/41) tive de ensinar na secção
de Filologia Germânica na Universidade de Lemberga, regendo
entre outros um curso sobre a Teoria da Literatura. As minhas
lições foram em grande parte orientadas pelos poemas líricos
de Rilke. É certo que cheguei a uma concepção de poesia lírica
inteiramente diferente da de Káte Hamburger (e aliás também
da de Emil Staiger). A lírica é para mim não menos «mimética»
do que a poesia épica ou dramática e o que nela se apresenta
c igualmente «não-real», como o mundo criado ñas obras dra­
máticas ou épicas, só com a diferença de a sua apresentação
ser outra e outro ainda o que é apresentado. Mas isto levar-nos-ia
aqui demasiado longe *.
Ad 5. E quanto à objecção da «tautología», do «círculo»?
Esta só teria justificação se as minhas descrições da quase-modi-
ficação dos juízos (note-se que segundo a minha concepção não
há só uma mas várias modificações diferentes, que também
nitidamente discriminei nas considerações apresentadas neste
livro) contivessem um «circulus in definiendo». Não é este o caso
nem Kàte Hamburger mo demonstrou. A objecção como foi
formulada resulta — ao que me parece — da confusão de dois
problemas absolutamente diferentes por parte de Káte Ham­
burger: 1 .°, o que é o quase-juízo ou a modificação da sua função
afirmativa, o que é o seu sentido e qual o seu resultado? 2 .°, como

1 Cf. Studia z estetyki, 2 vols., Cracovia, 1957/58. É uma colectânea de


estudos em grande parte publicados muito antes.
200

é que no caso individual o leitor sabe que se trata de um


quase-juízo e não de um juízo (ou, no dizer de Káte Hamburger,
de uma enunciação de realidade1)? A este respeito há urna
circunstância essencial. Na afirmação de Káte Hamburger, um
juízo singular quando aparece isolado não se distingue, pela
sua «form a», sob nenhum aspecto daquilo a que eu chamo
quase-juízo. O facto de ele dever ser lido (ou entendido) como
quase-juízo ressalta de ser frase de um romance (de urna obra
literária, na minha terminologia). Inversamente, distinguem-se
obras de arte literária (nomeadamente romances) de outras
não romances (literárias, científicas) apenas (diz Káte Hambur­
ger, i. é, põe-me na boca este «apenas») por estas constarem
inteiramente de quase-juízos. Daí aquele pretenso «círculo». É um
facto que se entendermos por «form a» o modo de escrever (ou
de pronunciar?) a frase não temos na linguagem correcta nenhum
sinal especial que pudesse distinguir urna frase pura de um
juízo. E daí, quando nós sabemos de antemão que estamos
perante uma obra poética igualmente sabemos — no caso de
eu ter razão — que estamos perante meros quase-juízos. É sabido
que B. Russell introduziu precisamente por esta razão o sinal
de asserção na lógica ou no sistema lógico para distinguir as
chamadas «teses» do sistema das simples «enunciações», i. é, das
frases puras que embora sejam formações predicativas estão
privadas da função afirmativa. Seria fácil introduzir um sinal
especial igualmente para os quase-juízos e que se poderia antepor
a cada frase deste género para distinguir um quase-juízo, por
um lado, dos juízos e, por outro, das puras frases. De facto,
também dispomos de semelhantes sinais lingüísticos externos
de que nos servimos para indicar que estamos perante um
quase-juízo, e assim na leitura em voz alta damos às frases que
pertencem a urna obra de arte literária uma entoação diferente
(muitas vezes vincadamente declamatória), evidentemente distinta
da entoação que damos a frases científicas. É certo que na
escrita não fazemos anteceder as frases singulares de nenhum
«sinal de quase-juízo» (embora isso fosse possível), mas em
contrapartida o título ou o subtítulo da obra informa-nos de
que se trata de um romance ou de um drama. É mesmo freqüente
dizer-se explicitamente: «drama contemporâneo», «drama histó-

1 Naturalmente, não é lícito substituir a palavra «juízo» pela expressão


«enunciação de realidade» desde que por «realidade» se entenda o mundo
real, espaço-temporal. H á juízos que não são «enunciações de realidade»,
que, portanto, não se referem ao mundo real, nada perdendo do seu
carácter de juízos: p. ex., todas as proposições matemáticas.
201

rico da época de Carlos Magno», etc. Há um tipo próprio de


títulos que se usa ñas obras de arte literária. Quem, p. ex.,
lê A Montanha Mágica ou os Buddenbrooks ou A Morte em
Veneza, etc., não espera tratar-se de livros científicos, mas conta
desde logo com urna narrativa literária. Naturalmente, existem
também títulos que (na ausência do subtítulo informativo) não
nos esclarecem suficientemente acerca do género de obra de que
se trata: de «poesia» ou de urna obra científica (nomeadamente
historie^). Wallenstein, p. ex., tanto pode ser a «historia» do
general como o romance de Dõblin, sobretudo porque a própria
maneira como o livro está redigido nos pode deixar dúvidas.
Estes casos, porém, são extraordináriamente raros. Daquilo que
Káte Hamburger afirma e me atribui há sobretudo uma coisa
que não corresponde à verdade, i. é, que apenas são os quase-
-juízos que distinguem a obra literária de uma obra histórica
correspondente. No meu livro empenhei-me sobremaneira em
salientar uma série de distinções entre obras de arte e obras
de ciência —■o leitor encontrá-las-á nos capítulos seguintes deste
livro: outro estilo da linguagem, outra composição, o apareci­
mento de multiplicidades de aspectos à disposição, a função
reprodutora e a função representativa das objectividades apre­
sentadas, a existência das qualidades de valor estético, em par­
ticular também o aparecimento das qualidades metafísicas que
a obra literária pretende revelar, enquanto em obras de ciência
histórica por vezes também podem aparecer mas não têm, neste
caso, no fundo nada a ver' com a função cognoscitiva nem com
a da transmissão de resultados científicos e existem apenas por
acaso. É precisamente tudo isto junto aos quase-juízos que
decide da qualidade de uma obra como obra de arte literária
e não como ciência ou ainda artigo de propaganda. Estou intei­
ramente de acordo com Káte Hamburger em que se devem pro­
curar «funções lingüísticas» que distingam obras de arte literária
de outras que o não são. Isto não é para mim nenhuma novidade
e eu próprio insisti nessa definição. Julgo, porém, que o quase-
-juízo como «função lingüística» muito especial é determinado
mais de perto pelos momentos característicos da obra de arte
literária que acabam de ser enunciados.
Mas todo este problema dos sinais externos (as «form as»)
que distinguem quase-juízos de juízos e das circunstâncias por
que sabemos que se trata precisamente de um quase-juízo nada
tem de comum com o problema inteiramente diferente do pró­
prio sentido e da função nele fundada de um juízo, por um lado,
e de um quase-juízo, por outro. Foi simplesmente este o problema
de que tratei no parágrafo precedente. Só a diferença dos
202

quase-juízos em relação a outros juízos, baseada na função


afirmativa modificada, faz que tenham ainda outra função dentro
da obra literária: eles levam à constituição de objectividades
apresentadas que apenas simulam no seu conteúdo ter realidade
ou, se quisermos, a «põem em cena», mas não são nem podem
ser em si mesmas reais. Isto é, os quase-juízos exercem uma
tal função que nos encontramos diante da poesia mimética «de
ficção», no dizer de Káte Hamburger.
É, porém, decisiva para toda a problemática a questão
seguinte: segundo Káte Hamburger, as obras de arte literária
(obras poéticas de ficção) constroem ou não verdadeiramente
juízos (portanto, na terminologia dela: «enunciações de reali­
dade»)? Parece-me não haver dúvida de que ela deve responder:
Não, de modo algum. Uma obra poética não se compõe de juízos.
Ora bem. Neste caso pergunto eu: O que são então aquelas
frases que são os elementos constitutivos de uma obra poética?
Em geral são frases predicativas (por vezes, naturalmente, tam­
bém interrogativas — mas estas serão tratadas mais adiante).
Trata-se, portanto, de puras «suposições» na acepção de Meinong?
Ou serão porventura enunciações «neutralizadas»? Ambas as
hipóteses parecem-me erradas e julgo ter apresentado argumen­
tos em contra suficientes. Portanto, deve tratar-se ainda de outra
coisa. Na minha opinião trata-se precisamente de «quase-juízos».
Se Kàte Hamburger o nega será necessário que ela apresente
outra teoria, outra explicação do sentido e da função daquelas
frases «poéticas». Ou julgará ela que são precisamente quase-
juízos e que apenas se procura saber quais os meios lingüís­
ticos ou gramaticais que levam à sua constituição? Neste caso,
a minha concepção é legítima e trata-se simplesmente de a
completar. Se o complemento apresentado por Kàte Hamburger
é por sua vez legítimo não posso aqui dizer.

§ 26. Modificação análoga de frases de outros tipos

Na obra literária não são apenas as afirmações que estão


sujeitas à «quase-modificação». Pelo contrário, nestas obras todas
as frases de qualquer género são modificadas de um modo
análogo desde que pertençam pelo menos ao texto que apresenta.
o mundo criado e portanto são, como se costuma dizer, profe­
ridas pelo «autor». Se, neste caso, deparamos com uma frase
interrogativa esta já não é uma interrogação autêntica mas
apenas uma quase-interrogação; frases que exprimem um desejo
ou um imperativo já não são autênticas frases optativas ou
203

imperativas mas apenas quase-optativas, quase-imperativas, etc.


Também os juízos de valor que aparecem no texto descritivo
independentemente de exprimirem uma valoração ética ou social
ou porventura estética não são autênticos juízos de valor mas
apenas quase-avaliações, ainda que na sua forma puramente
exterior não se distingam das autênticas avaliações. A sua função
reside apenas na projecção intencional de certas objectividades
dependentes no seu ser que podem, quando muito, ter a
aparência de uma realidade mas de modo algum podem ser
realidades.
Quando, porém, no texto da obra de arte literária aparecem
questões, desejos ou avaliações pronunciadas pelas personagens
o caso é análogo ao das afirmações já examinadas que, p. ex.,
num drama são feitas por uma personagem. Quando, p. ex.,
uma personagem pergunta a outra: «Foste ontem ao teatro?»
acrescentando: «É uma peça magnífica e excelentemente repre­
sentada» trata-se, na sua opinião, de uma autêntica interrogação
e de um autêntico juízo de valor, mas estas frases referem-se,
naturalmente, apenas a objectividades e situações que pertencem
ao mundo da criação artística e o leitor não as deve considerar
como interrogações ou avaliações de objectividades reais, extra-
-artísticas. Na medida em que contribuem para a constituição
de um ou outro pormenor dentro do mundo apresentado o que
elas constituem é apenas uma objectividade intencional ontolò­
gicamente dependente, e nesta medida distinguem-se de interro­
gações e avaliações que formulamos com toda a seriedade
relativamente a objectividades reais. Na sua qualidade de inter­
rogações ou juízos de valor que partem das personagens perten­
cem também às objectividades apresentadas e são em si mesmas
dependentes no seu ser. Pretendem ser interrogações e avaliações
autênticas quando na realidade são apenas objectividades inten­
cionais, embora da esfera da linguagem.
É este o seu carácter curioso de natureza dupla que parti­
lham com as afirmações pronunciadas pelas personagens.
Naturalmente, pode haver frases proferidas pelas personagens
sem intenção séria e que, neste caso, para estas mesmas perso­
nagens são apenas quase-juízos ou quase-interrogações, etc.,
quando elas porventura poetam ou lêem obras poéticas ou
representam uma peça de teatro, etc. Então o mundo intencio­
nalmente projectado é, por assim dizer, multigraduado e leva
a fenómenos artísticos particulares durante a leitura de obras
deste género. Não precisamos de continuar agora a análise deste
aspecto.
204

É preciso, contudo, considerar ainda outro ponto. A frase


interrogativa, além de outras funções, exerce ainda a de noti­
ficação por que <*se exprime» o acto interrogativo do interro­
gador. Para o interrogado, caso ele perceba a interrogação no
seu pleno sentido, revela-se deste modo muito particular um
estado de coisas que se passam no interior do interrogador.
Geralmente não se lhe presta atenção especial, contudo não
deixa de — ainda que apenas periféricamente — chegar à cons­
ciência do interrogado e pode também ser apreendido de modo
puramente temático. Como estado de coisas notificado pertence
essencialmente à interrogação realmente feita. Imaginemos agora
que uma personagem num romance faz determinada pergunta.
Não só a função interrogativa da pergunta fica sujeita à «quase-
-modificação», mas ainda a sua função de notificação como
também — correlativamente— o próprio notificado. Ê que o
interrogador, com tudo o que lhe pertence e faz, embora seja
intencionado como real não deixa de ser apenas intencionado.
Por conseguinte, as suas vivências e nomeadamente a interro­
gação realizada «enquanto» profere a frase interrogativa têm o
mesmo carácter. Esta interrogação é portanto aqui modificada
de dois modos: 1 .°, como aquilo que não sendo real em sentido
autêntico mas visado intencionalmente como se fosse pertence
ao mundo simplesmente apresentado da obra literária; 2 .°, na
sua função interrogativa — do modo atrás indicado. Mas tam­
bém «o proferir a interrogação» pertence a este mundo sim­
plesmente apresentado. A notificação a ele vinculada é, por
conseguinte, modificada nos mesmos dois sentidos: 1 .°, como
notificação simplesmente intencionada; 2 .°, como notificação que
não informa sobre um estado de coisas objectivamente existente
mas apenas sobre um visado como real. Esta situação pode
ainda ser considerada sob dois aspectos diversos: 1 .°, sob o
aspecto do sujeito interrogado que é apresentado na respectiva
obra; para este a função de notificação é realmente exercida e
o notificado é também real; 2.°, sob o aspecto do leitor que
observa tanto o interrogador como o interrogado e para quem
ambos são modificados no sentido há pouco indicado.
Tudo isto, porém, não diz respeito só à função de notificação
das frases interrogativas proferidas como também às das frases
optativas, imperativas, etc., e naturalmente também às afirma­
tivas no caso de estas serem pronunciadas por uma personagem
da obra de arte literária. É justamente nisto que reside o com­
plemento necessário das observações feitas por nós no parágrafo
anterior.
205

As considerações a respeito da função de notificação e da


sua modificação conduzem a uma importante conseqüência.
É muito possível (e sucede muitas vezes em obras literárias)
que uma das personagens profira quaisquer frases e as viva ao
proferi-las sem nós sermos disso informados por frases especiais
do texto. Isto é, apercebemo-nos disto pelo simples aparecimento
daquelas frases proferidas por uma personagem. No texto encon­
tra-se, p. ex., simplesmente uma interrogação ou uma afirmação
e da mera seqüência das frases resulta que essa interrogação
ou afirmação deviam estar propriamente entre aspas. Uma frase
assim apresentada «entre aspas» exerce, neste caso, uma dupla
função peculiar: 1 .°, como proferida não pertence propriamente
ao texto da obra mas sim ao mundo «criado» e projectado pelo
texto — neste caso, propriamente só as aspas (aliás muitas vezes
ausentes) é que pertencem ao texto; 2 .°, como frase citada não
deixa, todavia, de estar integrada no texto. Apesar de simples­
mente apresentada no mundo do texto consegue assim ter uma
actualidade que propriamente lhe não pertence enquanto mera­
mente apresentada. Da função de notificação exercida ao aparecer
simplesmente uma frase citada resulta a projecção de um estado
de coisas pertencentes ao mundo meramente apresentado, a pro­
jecção da interrogação, afirmação, mentira, etc., notificadas.
Assim, parece a princípio que poderia haver no mundo inten­
cionalmente projectado pelo conteúdo de sentido das frases
elementos não determinados por nenhum conteúdo de sentido,
e portanto independentes do estrato das unidades de sentido.
Se realmente fosse assim encontraríamos aqui uma dificuldade
importante. É que todo o nosso propósito nestas análises foi
demonstrar que não pode aparecer no estrato das objectividades
apresentadas nenhuma relação objectiva materialmente determi­
nada ou nenhum objecto que não tivessem a sua última raiz
num dos dois estratos que juntamente constituem o elemento
da linguagem na obra literária: o das formações fónico-linguís­
ticas e o das unidades de sentido. Um exame mais profundo
revela, entretanto, que este perigo não existe. É que o elemento
de sentido que inicialmente aqui dispensámos é precisamente
representado pela função das aspas explicitamente traçadas ou
apenas implicitamente co-intencionadas.. As aspas indicam-nos
que as palavras seguintes ou a frase seguinte são proferidas
com pleno sentido por determinada pessoa e aqui apenas repe­
tidas ou citadas. Como «realmente» proferidas trazem consigo
a função notificadora. Portanto, esta função das aspas projecta
de um modo especial mas intencional determinada relação objec­
tiva, a da notificação. E só esta relação objectiva em união com
206

o sentido e o carácter da frase agora proferida leva de per si


à projecção de um novo estado intencional de coisas, i. é, daquele
que é notificado. Portanto, a relação objectiva notificada e per­
tencente na obra ao mundo apresentado depende também aqui,
embora não imediatamente e em razão da sua projecção, de um
elemento de significação do estrato das unidades de sentido.
Não obstante, é preciso admitir e salientar que a função de
notificação é realmente distinta da projecção puramente inten­
cional produzida por unidades de significação. Embora o sentido
da frase proferida não seja inteiramente irrelevante no que
respeita à função notificadora, não é ele mas o facto de pro­
nunciar determinada frase que leva à revelação do notificado
(a interrogação, a afirmação, a mentira, etc.). Não nos interessa
aqui esclarecer mais pormenorizadamente a função de notifica­
ção. Importa-nos apenas que entre as relações objectivas que
chegam a desenvolver-se na obra literária possa haver algumas
que dependam, como o objeçto da notificação, de outras relações
objectivas imediatamente projectadas pelo conteúdo de sentido
das frases e que apenas mediatamente são determinadas pelos
elementos de significação do estrato das unidades de sentido.
Capítulo 6

A função do estrato das unidades de significação na obra


literaria. A função apresentativa dos correlatos puramente
intencionais da frase

§ 27. Distinção das diversas funções das frases e das


suas conexões

Para simplificarmos as considerações seguintes vamos agora


reconstituir a unidade da frase como um todo em que se devem
distinguir o aspecto fónico-linguístico e o do sentido. É certo
que nos devemos concentrar sobretudo na acção e ñas diversas
funções dos conteúdos de sentido das frases para fazer resultar
o seu papel na obra literária. Também será necessário recorrer
com muita frequência à função do estrato fónico-linguístico
porque está intimamente relacionada com a função das unidades
de sentido, completando e sustentando a sua acção sob diversos
aspectos.
As frases e suas conexões — assim como o seu aspecto
fón ico— desempenham duas funções fundamentais distintas no
todo da obra literária. Trata-se, em primeiro lugar, 1. da função
que reside na acção do sentido da frase na criação («projecção»)
ou ainda simplesmente na formação mais exacta dos restantes
estratos da obra literária; em segundo lugar, 2 . trata-se daquela
função que reside no facto de as unidades de sentido aparecerem
como material especial no material heterogéneo da obra literária
e participarem, pelas suas qualidades peculiares e valiosas, na
polifonia da obra, enriquecendo-a e influindo na formação das
características globais que nesta polifonia se baseiam ou — se
quisermos — das formas de totalidade e valores.
Quanto à primeira destas funções, há ainda a considerar
diversos papéis que podem ser exercidos pelas unidades de
sentido: 1. Em primeiro lugar, a projecção intencional (imediata
ou mediata) das objectividades apresentadas segundo a sua natu­
reza, o ser qualitativo e bem assim a sua estrutura formal e
existencial, podendo estas objectividades ser não só coisas, pes­
soas, como ainda os seus destinos, estados, processos em que
participam, situações objectivas totais, etc. 2. Não só as próprias
objectividades apresentadas mas ainda o modo da sua apresen­
tação são precisados pelos sentidos das frases e esta determi­
208

nação faz também parte da acção dos seus conteúdos de sentido.


Em muitos casos também o aspecto fónico-linguístico das frases
participa nesta determinação. 3. Como as nossas considerações
precedentes acerca do estrato fónico-linguístico mostraram, tanto
as significações das palavras singulares como os conteúdos de
sentido das frases inteiras influenciam a formação próxima das
produções e características que neste estrato aparecem. Aqui não
nos ocuparemos mais deste aspecto. 4. As unidades de sentido
conduzem à predeterminação das multiplicidades de aspectos
sob que devem aparecer as objectividades apresentadas e a este
respeito o aspecto fónico-linguístico volta a desempenhar função
essencial. Só mais tarde poderemos entrar em pormenores
(cap. 8). 5. No que, finalmente, respeita à função das unidades
de sentido em relação à constituição da «ideia da obra» isto
só pode ser tratado depois de esclarecido o que se pode entender
por «ideia» de uma obra. Em qualquer caso, a origem desta
«ideia» — caso a haja — deve igualmente procurar-se no estrato
das unidades de sentido e talvez também no das produções
fónicas.

§ 28. A função de projecção das frases, relações


objectivas e a sua relação com as objectividades
apresentadas

A mais importante das funções distintas reside no facto de


o conteúdo de sentido das frases ser o determinante decisivo
dos objectos apresentados na obra, a esta imanentes e por
essência pertencentes e dos seus destinos. O ser e o modo de
ser global dos objectos têm a sua origem imediata ou mediata
na intencionalidade derivada dos conteúdos de sentido das frases
e são essencialmente determinados por estes. Por esta razão
concentrámo-nos na análise da frase sobre a «acção» desses
conteúdos, i. é, sobre o facto de eles próprios desenvolverem
relações objectivas,ou, mais geralmente, correlatos puramente
intencionais das frases. Só esta sua acção nos pode fazer com­
preender como é que na obra literária há objectos apresentados
e de que modo aparecem. As nossas considerações anteriores
procuraram esclarecer este problema. Entretanto, o que é ime­
diata e intencionalmente projectado pelo conteúdo de sentido
da frase é a relação objectiva desenvolvida. A questão está, por­
tanto, em saber como é que a partir do desenvolvimento inten­
cional das relações objectivas se chega à constituição dos
objectos e em particular das coisas, das personagens, dos pro-
209

cessos, etc. — sempre apenas como correlatos puramente inten­


cionais.
Como anteriormente demonstrámos, há uma conexão muito
estreita entre os correlatos puramente intencionais das frases e
em especial as relações objectivas puramente intencionais e os
objectos puramente intencionais. Uns e outros são transcendentes
ao conteúdo de sentido da frase e pertencem ao intencionalmente
criado pelo conteúdo do sentido da frase ou os seus elementos,
as significações das palavras. Como tais, os correlatos puramente
intencionais das frases e em particular as relações objectivas
já fazem parte do «estrato objectivo» da obra literária. Desde
que, porém, as relações objectivas — sempre entendidas como
puramente intencionais — existam, pela mesma razão também
existem os objectos em cujo âmbito de ser se contêm as respec­
tivas relações objectivas ou que participam num acontecimento
quando se trata de uma relação objectiva do acontecer. Mas
também se pode dar o inverso: desde que os objectos de que
se trata em determinada obra existam no seu modo puramente
intencional, pela mesma razão existem também as relações objec­
tivas correspondentes. Sendo o objecto autónomo no seu ser
trata-se então de todas as relações objectivas que existem na
esfera do seu ser em determinado momento temporal *; no caso
de um objecto puramente intencional trata-se apenas daquelas
que na respectiva obra literária efectivamente são desenvol­
vidas 2. Estas duas faces do ente — se é lícito usar esta figura —
são inseparáveis uma da outra seja qual for o seu modo de
ser. No caso de um objecto ontològicamente autónomo nem
sequer podemos dizer qual destes dois aspectos é «constituinte»
e qual o «constituído». Dá-se aqui essencialmente uma fundação
recíproca necessária e é possível que mesmo isto seja dizer de
mais. Limitando-nos meramente ao conteúdo dos objectos pro-
jectados na obra literária e abstraindo tanto do seu modo de
ser e da sua estrutura puramente intencionais como ainda da
sua constituição pelos conteúdos de sentido, essa mesma fun­
dação recíproca vale também para estes objectos e as respectivas
relações objectivas, caso naturalmente pertençam a este conteúdo

1 Esta restrição só diz, naturalmente, respeito a objectos existentes


no tempo; não vale, porém, quando se trata de objectos ideais ontològi­
camente autônomos.
2 Abstemo-nos, por enquanto, de decidir se a limitação ao momento
temporal continuamente «actual» vale também para este caso e se e em
que sentido é lícito falar dos momentos temporais continuamente actuais
em que os objectos apresentados existem.

14
210

da obra literária objectividades ontològicamente autónomas. Só a


consideração da constituição intencional destes objectos mostra
que as coisas se passam aqui de modo algo diferente.
Imaginemos que temos perante nós uma frase que em deter­
minada obra literária enuncia pela primeira vez algo a respeito
de um objecto X. Nela, este objecto X é projectado pela signi­
ficação de sujeito da frase. Constitutivamente considerado, o
objecto forma a primeira base da relação objectiva correspon­
dente e das unidades objectivas que sobre ela se constroem
e forma-a enquanto objecto determinado apenas deste ou daquele
modo, como resulta da significação plena do sujeito \ Geralmente
é apenas definido como uma coisa em virtude da sua natureza
e estrutura objectiva. Ao mesmo tempo — graças à função espe­
cial do sujeito da frase— funciona como suporte da qualidade
(ou da actividade, etc.) que lhe é atribuida segundo o conteúdo
de sentido da frase. Sobre esta base ergue-se, em primeiro lugar,
a respectiva relação objectiva, que a absorve em si mesma de
um modo peculiar. Mas enquanto esta relação objectiva é desen­
volvida como «existente» pela frase (ainda que na obra literária
esta seja apenas uma afirmação quase-judicativa), manifesta-se
nessa relação de um modo potencial-actual anteriormente referido
o objecto X, que nela se constitui revestido da qualidade A que
lhe é atribuida na frase (ou como sujeito de actividade a ele
atribuida). Neste seu manifestar-se potencial-actual torna-se evi­
dente que o objecto chega a constituir-se enquanto revestido
da qualidade A, por assim dizer, sobre a base da respectiva
relação objectiva. Se a frase é uma afirmação (apesar de só
quase-judicativa) ela exige do objecto X que a qualidade A já
lhe seja inerente «antes» que a frase a apreenda como tal.
Depois que a frase está, por assim dizer, completa e outra frase
se segue o objecto X (A) apresenta-se como objecto que a relação
objectiva correspondente apenas mostrou e apresentou apesar
de esta ser o constitutivo e o determinante desse objecto. Se a
frase seguinte — ou a que, em todo o caso, é «posterior» 2 — se
refere ao mesmo objecto X (A) é outra vez X (A) a base cons­
titutiva da nova relação objectiva, que lhe atribui, p. ex., a
qualidade B e forma, por sua vez, a base constitutiva do

1 Cf. as minhas considerações anteriores acerca da relação objectiva,


onde disse que o objecto-su jeito aparece na respectiva relação objectiva.
2 O que isto significa discutiremos mais adiante (cap. 11).
211

objecto X (A, B), apresentando-o depois de completo como


X (A, B), etc . 1
Assim, as relações objectivas intencionalmente projectadas
desempenham uma função essencial na constituição das objecti­
vidades apresentadas, necessitando aliás elas próprias para se
constituírem da primeira projecção nominal das mesmas objec­
tividades tais quais eram «a princípio». Assim, depende delas,
e, em última análise, dos conteúdos de sentido das frases, que
objectos chegam a constituir-se na respectiva obra, quais as
suas qualidades e destinos. Precisamente nisto se revela que o
estrato das frases exerce, sob o ponto de vista constitutivo, a
função central na obra literária. Ao mesmo tempo, porém, as
relações objectivas apresentam estas objectividades. A sua posi­
ção nestas duas funções relativamente aos objectos também se
poderia figuradamente descrever da seguinte maneira:
O «estrato objectivo» intencionalmente projectado da obra
pode, por assim dizer, entender-se em duas perspectivas distintas.
Primeira: se nós, contemplando teoricamente a estrutura da obra,
perseguimos as relações constitutivas, então as relações objec­
tivas, em paralelo com os objectos que em qualquer caso nelas
se constituem, encontram-se «em baixo» e mais em baixo ainda
fica o estrato dos conteúdos de sentido. Segunda: se, ao con­
trário, ao abordarmos uma obra lermos as frases com inteli­
gência o aspecto das relações objectivas do «estrato objectivo»
é «extrínseco». Devemos, por assim dizer, começar por atravessar
o lado das relações objectivas para alcançar os objectos e os
seus destinos. Os objectos, suas conexões e destinos «revelam-
-se-nos» em e através da multiplicidade de correlatos conexos
de frases (nomeadamente das relações objectivas). Como o mesmo
objecto se pode revelar em relações objectivas variadas e dife­
rentemente construídas e como as relações objectivas são com­
paráveis a muitas janelas através das quais podemos olhar para
dentro de uma e a mesma casa (partindo sempre de outro ponto
de vista, de outro ângulo, para uma parte diferente ou também
pela segunda vez através da mesma janela, etc.) produz-se uma
certa cisão no «estrato objectivo» da obra literária. As relações
objectivas são, na sua função apresentativa, o apresentante e
os objectos que nela se constituem são o apresentado. Como,
porém, a relação objectiva é ao mesmo tempo algo que pertence
ao próprio âmbito ontológico do objecto (nele constituído), esta

1 Supomos, evidentemente, um caso o mais simples possível. Geral­


mente aparecem, porém, complicações e modificações muito variadas.
212

apresentação é, ao fim e ao cabo, uma auto-apresentação do


objecto naquilo que lhe é próprio K Aqui sucede ainda outra
coisa que justifica a analogia com as janelas e é, ao mesmo
tempo, de importância essencial: o aspecto das relações objectivas
do estrato objectivo no exercício da sua função apresentativa
só é considerado pelo leitor na medida em que é justamente
necessário para chegar ao apresentado. É como um meio que
atravessamos para nos determos apenas nos objectos apresen­
tados e os termos como dados. Este meio não é, em contrapartida,
geralmente apreendido temáticamente em si mesmo, sobretudo
quando se trata de relações do modo de ser2. As relações do
acontecer aparecem, pelo contrário, mais no primeiro plano da
apreensão temática, mas também elas apresentam, em última
análise, aqueles «factos» que neste acontecer se realizam ou as
mudanças que em virtude deste acontecimento se dão nos objec­
tos. Não é por mero acaso que o nosso olhar se dirige em geral
directamente para os objectos apresentados, mal tocando nas
relações objectivas correspondentes. É próprio da essência do
apresentante como tal desaparecer no exercício da função apre­
sentativa até certo ponto do campo visual para fazer ressaltar
principalmente aquilo que apresenta3.

§ 29. A função apresentativa e a expositiva das relações


objectivas

Observámos no § 27.° que os conteúdos de sentido das frases


e as unidades de sentido de ordem superior nelas baseadas não
só definem com precisão as objectividades apresentadas como
ainda o próprio modo da apresentação. De que modos de apre­
sentação se pode tratar neste caso e o que realizam as frases
a este respeito?

1 A «apresentação» como função reveladora das relações objectivas


constitui apenas um dos muitos conceitos possíveis da «apresentação».
Os outros conceitos de «apresentação» serão desenvolvidos mais adiante
(§ 37.°).
2 É, naturalmente, possível que da parte do leitor haja atitudes nas
quais as relações objectivas em si mesmas são temáticamente apreendidas.
Neste caso, porém, deixam de apresentar os objectos que nelas se cons­
tituem.
3 Por esta razão E. Husserl fala de «objectos-de-passagem» ao referir-se
às objectividades que «apresentam» alguma coisa — numa acepção muito
ampla.
214

relações de modo de ser, diferença essa que intimamente se


relaciona com as diferenças a analisar em seguida quanto ao
modo da função apresentativa. Examinemos agora frases como,
p. ex.: «à fraca luz das velas o quarto parecia triste», «o meu
casaco de lã parece muito macio», «esta pêra tem um gosto
adocicado», «este peso é muito difícil de transportar», «esta
rosa tem um aroma muito delicado», etc. Em todas as frases
trata-se de um «m odo de parecer» do respectivo objecto se
empregarmos a expressão em sentido ampio. Neste caso, p. ex.,
a frase «o quarto parecia triste» não precisa de ser entendida
no sentido de o quarto ter parecido assim a alguém por quais­
quer razões subjectivas quando, na realidade, tinha um aspecto
muito diferente. O sentido geral é precisamente o de o quarto
em questão, nas condições objectivas dadas, ter tido realmente
semelhante aspecto K
As frases que desenvolvem o «m odo de parecer» do objecto
podem também ser empregadas de maneira que nelas se trata
não só, ou não em primeiro lugar, do modo de parecer mas
do modo de ser do respectivo objecto que neste modo de parecer
se manifesta. Assim como no uso especial de muitas frases de
modos de ser se pode lançar um olhar de soslaio para os
«modos de parecer» também aqui há, inversamente, um olhar
de soslaio para o «modo de ser» próprio do objecto.
O contraste dos dois tipos de frases e do seu duplo uso
possível revela-nos que as suas relações objectivas podem «apre­
sentar» de dois modos diversos os objectos que nelas se cons­
tituem e que, por conseguinte, também é preciso distinguir
diferentes conceitos de apresentação. Num sentido e mesmo no
mais geral, a que já nos referimos, todas as relações objectivas
aqui mencionadas apresentam os objecti vos respectivos na me­
dida em que elas «revelam » os objectos nestes ou naqueles
traços. Nisto, este «revelar» não pretende significar mais nem
outra coisa do que o facto de as relações objectivas nos darem
a conhecer o respectivo objecto. Graças à relação objectiva desen­
volvida pela frase conseguimos penetrar onde antes do desen­
volvimento da relação objectiva residia algo de desconhecido
para nós, e, neste sentido, uma esfera de ser que nos estava
fechada e encoberta ou até não existia simplesmente nada —
como acontece precisamente em obras literárias. Agora há algo
para nós «aberto» e «descoberto» e chegamos assim ao conheci-

1 As frases citadas podem, naturalmente, também ser entendidas no


outro sentido.
215

mento de algo anteriormente desconhecido ou para nós com­


pletamente inexistente, sendo inteiramente irrelevante se apreen­
demos este algo ao mesmo tempo intuitivamente ou não. Com
certeza ninguém negará que esta função geral apresentativa é
exercida pelas relações intencionais do modo de ser. Quem,
porém, duvidar disto no caso de relações de modos de parecer
deve considerar que o rriodo de parecer «real» de um objecto
é algo que lhe pertence da mesma maneira que as suas quali­
dades, só que neste caso — de uma maneira diferente do que
acontece com as qualidades — ainda falta um sujeito consciente
que apreenda o modo de parecer e o conserve na actualidade.
Em todo o caso, quer se trate de um modo de ser do objecto,
quer de um modo de parecer, sempre tomamos conhecimento
de algo pertencente ao respectivo objecto. Há ainda mais. As rela­
ções dos modos de parecer mostram-nos temáticamente e em
primeiro lugar o parecer das coisas. Na medida em que o parecer
é real (nas condições devidas) manifesta-se nele o correspondente
modo de ser do objecto. Só por isto se torna possível a inter­
pretação diferente atrás referida das respectivas frases. Assim,
a «relação dos modos de parecer» «revela-nos» também — ainda
que mediatamente — o modo de ser do objecto em questão.
A esta função apresentativa geral das relações objectivas
deve opor-se uma outra especial exercida ou pelas relações dos
modos de parecer ou ainda pelas dos modos de ser e de acontecer
(de que nos vamos ocupar), que atribuem ao objecto denominado
pelo sujeito da frase uma qualidade (ou um acontecimento)
capaz de ser fenomenalmente intuida, em que pode, portanto,
ter lugar um olhar de soslaio em direcção «ao modo de parecer»
do objecto. Trata-se, neste caso, de mais alguma coisa e ao
mesmo tempo de algo diferente do mero tomar conhecimento
de algo. Há aqui uma apresentação em que o objecto é deter­
minado no seu conteúdo fenomenal (capaz de ser directamente
intuido) e pode, por assim dizer, sem mais nada mostrar-se na
sua roupagem fenomenal. Neste caso, a relação objectiva prepara,
por assim dizer, todas as condições que se encontram do lado
do objecto para que este, satisfeitas as condições subjectivas,
possa ser visto directa e fenomenalmente. O modo especial da
função apresentativa reside, neste caso, em pôr diante de um
possível sujeito a existência fenomenal do respectivo objecto
(ou, pelo menos, de um dos seus traços), em «pô-la à vista».
Naturalmente, a «apresentação» em sentido geral está na base
da «exposição» («posição à vista»). Esta é apenas um modo
especial daquela. Em rigor, tudo isto só vale, naturalmente,
216

para relações objectivas ontològicamente autónomas susceptíveis


de serem imediatamente apreendidas em si mesmas por um
sújeito consciente K
A exposição pode ser efectuada, em escala maior ou menor,
por relações objectivas materialmente diversas conforme estas
sejam mais ricas ou pobres em momentos objectivos directa­
mente visíveis ou conforme sejam estruturadas de modo a haver
maior ou menor clareza e transparência da sua contextura e
das objectividades que nelas se apresentam. Entre os momentos
objectivos directamente visíveis há ainda diferenças quanto à
expressividade e «plasticidade» dos traços singulares como tam­
bém a respeito daquele momento que temos em mente ao dizer
que algo é «vistoso», «salta particularmente à vista», etc. Todos
estes factores condicionam a intensidade da acção da exposição.
Assim, as relações de acontecer têm muitas vezes e num grau
muito maior a capacidade de «pôr à vista» os objectos parti­
cipantes do acontecimento eventualmente desenvolvido do que
sucede nas puras relações dos modos de ser. Isto relaciona-se
tanto com o modo verbal de explicitação, que melhor se mani­
festa em puras relações de acontecer, como ainda com o facto
de muitas qualidades objectivas só se manifestarem, ou, pelo
menos, de um modo muito mais vincado, quando os objectos
correspondentes se encontram envolvidos num acontecimento.
Além disso, as relações de acontecer — como algo que se passa
num mundo objectivo, que aí se realiza — põem-se de certo
modo a si mesmas à vista2. Elas expõem ao mesmo tempo os
factos que nelas se realizam, em que o respectivo acontecimento
culmina, e que formam um sistema de relações de modos de
ser «realizadas» e em mútua conexão ainda que divididas por
vários objectos. Assim, pelas relações de acontecer (sobretudo
quando projectadas por frases conexas) podem ser apresentados
e expostos não só objectos (coisas, pessoas) que participam no
respectivo acontecimento mas também outras relações objectivas
que nesse acontecimento advêm aos objectos. As relações de
acontecer são, neste caso, como elos de ligação entre as relações
dos modos de ser existentes nas esferas ontológicas dos objectos
individuais e contribuem, deste modo, essencialmente para a
apresentação e frequentemente também para a exposição de
sectores inteiros de um mundo objectivo.

1 Cf. nesta página.


2 «De certo modo» porque em rigor só se pode falar de «exposição»
(posição à vista) quando A «expõe» B diferente de si mesmo.
217

Para a apreensão mais precisa da exposição efectuada por


correlatos puramente intencionais das frases devemos ter em
conta ainda o seguinte: antes de mais, a exposição não pode por
si própria levar à doação intuitiva dos respectivos objectos e
não pode, portanto, dispensar o apoio de outros factores. Ela
é apenas uma «exposição» mas ainda não é uma intuição. Para
que algo chegue a uma apreensão intuitiva devem satisfazer-se
duas séries de condições: 1. objectivas e 2. subjectivas. Entre
as condições objectivas o primeiro lugar é ocupado por aquela
que exige que o respectivo objecto ostente entre as suas quali­
dades aquelas que contêm momentos qualitativos auto-apresen-
tativos. São deste género todas as chamadas «qualidades sensí­
veis», mas não só elas. Em contrapartida, p. ex., o momento
considerado quando se fala da prata como «bom condutor de
calor» não é auto-apresentativo. As condições subjectnas residem
na realização de actos de consciência de estrutura muito deter­
minada que trazem consigo a actualização de «aspectos» 1 sob
que «aparece» o objecto a apreender em cada caso intuitivamente.
Estas últimas condições não podem, naturalmente, ser cumpridas
pelas relações objectivas projectadas pelas frases. No que diz
respeito ao cumprimento da condição objectiva referida a situação
apresenta-se também de modo diverso nas relações objectivas
existentes e ontològicamente autónomas e naquelas que apenas
são intencionalmente projectadas pelo conteúdo de sentido da
frase. As relações objectivas «expositoras» em sentido rigoroso
só podem ser aquelas que existem ontològicamente autónomas,
e isto quando nelas aparecem elementos que em si contêm
momentos qualitativos auto-apresentativos. No caso de relações
objectivas puramente intencionais, ao contrário, ainda que em
si contenham elementos deste género, este «ser-contido» dos
momentos qualitativos auto-apresentativos é só um «quase ser-
-contido» que apenas simula o «ser-contido» existente nas relações
objectivas ou objectos autónomos no seu ser. Ainda que nós
habitualmente na atitude perante o conteúdo do correlato pura­
mente intencional da frase não tomemos consciência da pura
intencionalidade deste correlato e, por assim dizer, quase sejamos
vítimas da ilusão de que o seu conteúdo tem existência onto­
lògicamente autónoma, isto todavia em nada modifica o facto
essencial da pura intencionalidade do correlato inteiro e as
situações a ela essencialmente vinculadas. Aqui está a razão por
que a função de exposição não pode ser exercida por relações

Ocupar-nos-emos deste assunto somente mais tarde. Cf. caps. 8 e 9.


218

objectivas puramente intencionais naquele sentido autêntico em


que a exercem as relações objectivas existentes de modo onto­
lògicamente autónomo. Apesar disso, encontra-se ainda neste
caso, por assim dizer, um ponto de partida para o seu exercício
que seria suficiente para a doação intuitiva das objectividades
apresentadas se apenas se cumprissem as condições subjectivas
da intuição. Como não há dúvida alguma de que durante a
leitura de uma obra apreendemos os obiectos apresentados fre­
quentemente de modo intuitivo — ainda que apenas imaginativo
e não perceptivo — e de que nesta intuição imaginativa somos
guiados pelo texto da obra (caso, naturalmente, queiramos cin-
gir-nos fielmente à obra) é preciso procurar na obra literária
um factor que ao lado das relações objectivas expositoras pos­
sibilite — existindo o leitor — a intuição e o guie na sua rea­
lização. Encontraremos este novo factor no estrato dos «aspectos»
que pertence à estruturação global da obra literária e desem­
penha nela, precisamente enquanto obra de arte, uma função
importante. Intervém nisto também o estrato fónico-linguístico.

§ 30. Outros modos de apresentação por relações


objectivas

O contraste explicado no parágrafo precedente entre a apre­


sentação em sentido geral e o seu modo especial de exposição
ainda não esgota todas as diferenças que aparecem na apresen­
tação por relações objectivas. Há, ao contrário, uma multipli­
cidade muito rica de modos típicos de apresentação, de que
desejamos aqui analisar apenas alguns como exemplos para assim
evidenciarmos melhor a função das frases em que os diversos
modos de apresentação têm a sua última raiz. É preciso atender
neste caso a que os modos de apresentação de que vamos tratar
podem aparecer tanto em relações objectivas puramente apre-
sentativas como ainda nas que simultáneamente são expositivas.
l.° O modo de apresentação por relações objectivas depende
sobretudo das relações objectivas que de entre todas as pos­
síveis que podem pertencer pelo conjunto das suas qualidades
a determinado objecto são determinadas pelo conteúdo da frase
e por isso. seleccionadas. Se considerarmos em primeiro lugar
um objecto tem poral 1 ontològicamente autónomo pertence-lhe

1 Podemos aqui limitar-nos a objectos temporais, visto que só quase


estes interessam às obras literárias.
219

uma multiplicidade duplamente infinita de relações objectivas.


Duplamente infinita porque, em primeiro lugar, a cada momento
temporal da sua existência pertence uma multiplicidade infinita
de relações objectivas unidas 1 e, em segundo lugar, há uma
multiplicidade infinita de momentos temporais em que o res­
pectivo objecto existe. Todas estas relações objectivas constituem
a unidade original do objecto e representam a esfera total do
seu ser. Quando, ao contrário, só podemos determinar um objecto
por relações objectivas projectadas de modo puramente inten­
cional por frases devemos — como já se expôs no § 24.°— dividir
esta unidade original em relações objectivas singulares (por
vezes também em grupos de relações) e reconstítuí-la de novo
até certo grau só através do emprego de frases conexas. Como,
porém, a multiplicidade das relações objectivas utilizáveis para
este fim é, em princípio, infinita somos forçados a seleccionar
desta multiplicidade só elementos singulares e sempre apenas
numa quantidade finita. Com isto oferece-se a possibilidade de
uma selecção heterogénea. Daí resulta simultaneamente a pos­
sibilidade de apresentar os objectos de modos diversos por rela­
ções objectivas, ainda que se requeira certa reserva ao fazer
esta afirmação. É que o mesmo obiecto pode ser apresentado
ou «posto à vista» em combinações diversas de qualidades,
estados, etc., conforme a sua apresentação através de um ou
outro género de multiplicidades. Neste caso, o objecto c, por
assim dizer, mostrado sob outro aspecto, numa perspectiva dife­
rente e — se é permitido exprimir-se assim em sentido figurado —
ainda noutras abreviações perspectivistas, visto que em multi­
plicidades diversas de qualidades de um objecto uma e a mesma
qualidade parece poder assumir função diversa e ter importância
diferente do seu modo de ser total. A referência a «um e o
mesmo» objecto apenas apresentado de modo diverso deve ser
entendida com certa reserva. Não se deve, portanto, esquecer
que o objecto neste caso só se constitui na respectiva multipli­
cidade de relações objectivas, i. é, entre outras recebe aquelas
determinações — e, em rigor, só aquelas — que são estabelecidas
pelos correspondentes conteúdos de sentido das frases nas rela­
ções objectivas. A diferença na composição de duas multiplici­
dades de relações objectivas pode também introduzir diferenças
correspondentes nos objectos nelas apresentados quando as
respectivas relações objectivas não se exigem mutuamente; a

1 Sob este aspecto não é muito apropriado falar-se aqui de multi­


plicidade.
220

expressão «um e o mesmo» objecto deve, portanto, entender-se


aqui cum grano salis. Assim, a expressão uma e a mesma «maté­
ria», usual entre os cientistas da literatura, que apenas é «dife­
rentemente tratada» por vários poetas, como ainda o próprio
termo «m atéria» são, em rigor, incorrectos quando por «matéria»
se entende não um objecto real conhecido por experiência ou
um acontecimento real mas apenas um objecto fictício projec­
tado por frases. Apesar desta diferença dos objectos, possivel­
mente resultante da diferença das relações objectivas, não é por
completo injustificado falar-se de um e o mesmo objecto que
apenas é apresentado de modos diversos. Embora o objecto
intencional explicitamente e, por assim dizer, actualiter possua
aquelas qualidades e só aquelas que lhe são atribuídas por
conteúdos de sentido das frases, não pode passar despercebido
ao mesmo tempo o estado potencial das significações das pala­
vras que entram nas frases e cuja existência leva a que o
objecto intencional (segundo o seu conteúdo) seja intencionado
como um objecto que, além das determinações explícita e actual­
mente intencionadas, possui ainda quaisquer outras qualidades
que pertencem a determinado tipo mas não são determinadas
mais de perto. Assim, a multiplicidade de relações objectivas
que se desenvolve numa multiplicidade de frases adquire o
carácter de uma selecção da existência total, em parte apenas
co-intencionada de modo vazio e não explicitamente definida,
de relações objectivas que parecem constituir a esfera de ser
do respectivo objecto, ainda que, na sua maioria não cheguem
de modo algum a ser intencionalmente projectadas. Esta exis­
tência de relações objectivas co-intencionada apenas de um modo
vazio através do conteúdo potencial de significação pode even­
tualmente constituir, por assim dizer, o elo de ligação — como
a princípio pode parecer— entre dois objectos apresentados por
duas multiplicidades de relações objectivas e impor assim a
sua identidade. Assim, com as reservas referidas, falar de diversos
modos de apresentação de um e o mesmo objecto não é infun­
dado, ainda que os modos de apresentação neste caso sejam ao
mesmo tempo modos de constituição.
Entre estes modos podem distinguir-se tipos diversos cuja
acentuação exacta necessitaria dum estudo especial. Para corro­
borarmos a nossa tese de que há vários destes tipos podemos
referir-nos aqui a alguns deles como exemplos. Uma obra pode,
p. ex., ser escrita de tal modo que o seu texto projecte sobre­
tudo relações objectivas dos modos de parecer do objecto e
só em casos raros também outras que apresentam o objecto
nas suas qualidades «intrínsecas» não apreendidas directamente
221

por intuição. A este respeito pode haver ainda tais diferenças


que, p. ex., numa obra se projectem preponderantemente relações
objectivas em que o papel mais importante cabe às qualidades
visuais, numa outra, em contrapartida, sejam os momentos tonais
ou tácteis os que mais sobressaem ou, finalmente, ainda se
chegue a desenvolver na sua policromia e riqueza toda a pleni­
tude dos momentos heterogéneos. Pode haver ainda diferenças
análogas na apresentação de personagens. Uma personagem pode
ser apresentada directamente por meio das relações objectivas
da sua constituição corporal ou dos seus modos de parecer e
só mediatamente, a partir destes factores, também na sua vida
anímica. É, porém, ainda possível apresentá-la nas suas quali­
dades e factos puramente anímicos de maneira que o seu modo
de parecer corporal não chega a aparecer directamente ou deve
ser construído apenas mediatamente. Além disso, as frases podem
projectar apenas relações objectivas inteiramente não essenciais
e casuais do respectivo objecto por meio do seu conteúdo de
sentido sob as quais se esconde aquilo que pertence à essência
do objecto. Pode dar-se também o contrário. Uma nova dife­
rença resulta quando de uma vez são projectadas sobretudo
hetero-relaçõès objectivas a partir das quais posteriormente se
determinam os objectos que estão nestas hetero-relações e de
outra vez são sobretudo projectadas auto-relações objectivas que
levam em primeiro lugar a hetero-relações entre os objectos, etc.
2.° Sob outro aspecto, resultam modos diversos de apresen­
tação conforme os conteúdos de sentido das frases projectem
relações objectivas cuja função de certo modo se esgota em
mostrar o objecto enquanto nelas mesmas determinado deste
ou daquele modo ou segundo se trate de relações objectivas
intencionadas de modo que, embora apresentem também o
objecto enquanto nelas determinado, todavia esta sua função
seja, no fundo, apenas secundária e, em contrapartida, a sua
função apresentativa principal consista em revelar mediatamente
outras relações objectivas que não são directamente determi­
nadas pelos conteúdos do sentido das frases. Semelhante deter­
minação mediata de relações objectivas é freqüente e leva a
um tipo especial da apresentação só no caso de a projecção
de determinadas relações objectivas ser de antemão destinada
a desempenhar a função de desenvolvimento mediato de outras
relações objectivas e no caso de no estrato dos objectos apre­
sentados só o mediatamente determinado ser o que propriamente
importa na obra, portanto aquilo de que a respectiva obra pro­
priamente trata. Quando semelhante modo de apresentação é
222

usado numa obra como modo principal de apresentação isto


leva antes de mais a um tipo especial de obras literárias. Com­
parem-se, p. ex., por um lado, as obras puramente «naturalís­
ticas» que, por princípio, não pretendem dizer mais nem outra
coisa do que aquilo que está directamente determinado no con­
teúdo de sentido das frases e empregam expressões muito simples
e puramente «objectivas»; e, por outro lado, p. ex., outras obras
que em grande escala recorrem à metáfora e a toda a ornamen­
tação metafórico-figurativa e, finalmente, as obras simbólicas
por excelência, em que o projectado directamente pelo conteúdo
de sentido das frases apenas desempenha a função secundária
de ponte que leva àquilo que se pretende simbolizar: p. ex.,
os «dramas» de Maeterlink '.
3.° Outra série de modos de apresentação resulta da qua­
lidade do material de significação que é usado na constituição
das frases. Trata-se certamente, em prim eiro lugar, de modos
como as próprias relações objectivas são determinadas pelo
conteúdo de sentido das frases, mas relacionam-se com isto
também intimamente os modos de apresentação dos objectos
por relações objectivas. Até certo ponto é possível projectar
«a mesma» relação objectiva através de duas frases diferentes,
ficando essa relação objectiva em diversos aspectos modificada.
As frases podem, neste caso, ser diversas sob dois aspectos:
primeiro, em relação ao puro material de significação; segundo,
relativamente ao fonema significativo das palavras empregadas.
Pode, p. ex., formular-se «o mesmo» pensamento umas vezes
com predomínio das chamadas palavras «abstractas» e outras
vezes revesti-lo de palavras que ocultam em si intenções signi­
ficativas puramente «concretas». Em ambos os casos a relação
objectiva é «a mesma» e todavia diferente, o que se mostra já
pelo facto de no primeiro caso ela poder exercer únicamente
a função de apresentação, enquanto no segundo pode exercer
também a da exposição. Neste aspecto, a diferença do material
de significação reflecte-se no modo de apresentação por relações
objectivas. Nesta direcção as diferenças do aspecto fónico-lin­
guístico da frase podem agir sobre o mesmo ou quase o mesmo
conteúdo de sentido. Não importa aqui, em primeiro lugar, que

1 A função simbólica não deve ser confundida com a da expressão


desempenhada por muitas relações objectivas constitutivas dos modos de
parecer dum corpo animado pelo facto de este parecer ser «expressão»
de vida anímica. Do mesmo modo, a função simbólica não deve ser con­
fundida com a reprodução dos objectos apresentados, de que mais adiante
se tratará.
223

«a mesma» frase, p. ex., seja proferida — com o conteúdo de


sentido exactamente o mesmo — em duas línguas diferentes.
Pois isto só ainda não implica necessàriamente uma diferença
quanto ao modo da apresentação. Na realidade, é caso relati­
vamente raro que a modificação do aspecto fónico-linguístico
das frases não tenha conseqüências para a constituição do estrato
objectivo da obra literária. Geralmente sucede o contrário.
Acontece, p. ex., sobretudo quando numa frase uma palavra já
«m orta» quanto ao fonema significativo é substituida por outra
com a mesma significação mas fónicamente viva. Muito maior
importancia tem a substituição das palavras singulares por
outras quando o novo fonema significativo, além do mesmo
estado actual de significação, traz consigo um estado potencial
diferente, produzindo assim outro matiz emocional. Esta colo­
ração emocional e dispositiva é geralmente da máxima impor­
tância em obras de arte literária \ de maneira que é déla e do
modo do seu aparecimento que muitas vezes até depende o
género, p. ex., «lírico», «dramático» ou «épico» da obra. Essa
coloração pode ser comunicada às relações objectivas e às objec­
tividades nelas apresentadas por meio do estado potencial da
significação das palavras só até certo grau actualizável, como
ainda por meio de diversas particularidades anteriormente ana­
lisadas das formações fónico-linguísticas e em especial também
por meio das qualidades manifestativas dos fonemas significa­
tivos. A substituição de uma só palavra na totalidade de uma
frase por outra pode inteiramente destruir este matiz emocional
ou até alterá-lo 2. Isto evidenciar-se-á ainda mais ao analisarmos
a seguir a função do conteúdo de sentido da frase como ainda
a do seu aspecto fónico-linguístico em relação à predeterminação

1 Ainda trataremos disto no parágrafo sobre a «ideia» da obra.


Quanto ao matiz emocional — ou, no dizer de O. Walzel, «conteúdo» —
encontram-se observações oportunas no capítulo sobre a essência da obra
de arte poética no livro de Walzel Das Worthunstwerk, Leipzig, 1926, pp. 100
e segs. É, porém, lícito duvidar de que Walzel tenha razão ao afirm ar
que este «conteúdo» emocional não pode ser determinado ou produzido
pelo sentido das frases. Nessa obra falta, talvez, uma visão mais profunda
da essência da estruturação da obra literária e ainda da essência das
unidades de significação. Também W. Conrad salienta a importância do
«momento de disposição» na obra de arte literária (/. c., p. 492).
2 Isto é particularmente melindroso quando os historiadores da lite­
ratura nos ensinam o que o poeta propriamente quis dizer num poema
lírico e reconstroem «por suas próprias palavras» o conteúdo do poema.
Nisto reside também a razão por que obras de arte literária cujo valor
principal reside no matiz emocional indefinível são quase intraduzíveis.
224

dos «aspectos» pertencentes aos objectos apresentados. O matiz


emocional peculiar e indefinível sobrepõe-se na leitura aos
aspectos actualizados e encobre também na sua cintilação os
objectos fenomenalmente apresentados. Se esta cintilação faltasse,
então os objectos que nos seus aspectos aparecem permaneceriam
— pelo menos em muitos casos— «os mesmos», mas o carácter
total da obra de arte sofreria com isto uma modificação radical
e o seu valor poderia ser deste modo totalmente aniquilado.
A importância do material das palavras para os modos
apresentativos e do aparecimento, com eles intimamente rela­
cionado, dos objectos em multiplicidades de aspectos actuali­
zados ressalta ainda melhor quando considerarmos que existem
conexões e dependências complicadas e muitas vezes essencial­
mente determinadas entre os próprios matizes emocionais e ainda
entre estes, os aspectos e os objectos apresentados e que o
material das palavras de cada frase deve ser elaborado em
correspondência mútua quando se pretende chegar a uma tal
conexão determinada.
4.° O modo de conexão entre as relações objectivas projec­
tadas que tem a sua raiz na construção das frases e no tipo
das suas conexões leva a diferenças próprias do modo de apre­
sentação. A este respeito encontram-se exemplos interessantes
em Fritz Strich, que todavia não toma consciência clara daquilo
de que propriamente aqui se trata. Strich compara a construção
da frase de Kleist com a que se encontra em Novalis para
— segundo ele ju lga— fazer ressaltar uma diferença quanto à
concepção do tempo nos dois poetas, que neste aspecto confronta
com G o e t h e Continua dizendo: «A forma da frase goethiana
subtrai o seu conteúdo ao tempo. Sob o ponto de vista estático
do espírito intuitivo tudo nela é igualmente distante e passado
e na seqüência da história apenas a constância da linha e a
medida igual da distância são expressivas. Kleist, porém, aban­
dona esta posição e precipita-se na profundidade do tempo. Ele
põe em movimento e impele as coisas como que transformando
a seqüência pura e contínua destas na tridimensionalidade do
tempo. Um momento do passado torna-se-lhe presente e posição
sua. A partir desta, outras coisas são ainda mais distantes no
passado, outras simultâneas e outras ainda futuras. A sua frase
dá forma a estas dimensões temporais. Faça-se a experiência:
seria possível desenvolver o mesmo conteúdo numa seqüência

1 Cf. Fr. Strich, Deutsche Klassik und Romantik, p. 206. Também


Walzel chama a atenção para isto no artigo já citado.
225

pura, mas neste caso o conteúdo perderia para Kleist todo o


encanto porque perderia todo o movimento. Kleist tinha neces­
sidade de, como Hõlderlin urna vez de si próprio disse, se lançar
no «m eio do tempo» e não pôde deixá-lo passar por si, vendo-o
de fora e à distância. É particularmente isto que sentimos como
tão plástico na sua linguagem.» (P. 209.) «É que a linguagem
de Novalis também se realiza na forma do tempo e da história.
Só que ele o faz mais no espírito do gótico do que no do bar­
roco. Esta linguagem progride em frases pequenas e de constru­
ção muito simples, sem os labirintos e abismos kleistianos. »1
No nosso contexto é de importância secundária que se trate
aqui precisamente de dois modos diferentes de apresentação do
tempo (e, segundo Strich, propriamente dô duas concepções
diferentes do tempo). Também as reflexões de Strich acerca
da concepção do tempo em Goethe não nos interessam aqui.
A nós importa-nos apenas que Strich tenha visto com olhar
penetrante como a estruturação da camada objectiva da obra
literária depende essencialmente da própria construção da frase.

1 L. c., p. 210. Para melhor explicação transcrevemos ainda os exem­


plos escolhidos por Strich: «D er Forstmeister fragte, ob er nicht glaube,
dass die Person, die die Frau Marquise suche, sich finden werde? —
«Unzweifelhaft!» versetzte der Graf, indessen er mit ganzer Seele über
dem Papier lag und den Sinn desselben gierig verschlang. Darauf, nachdem
er einen Augenblick, wahrend er das Blatt zusammenlegte, an das Fenster
getreten war, sagte er: «N un ist es gut! Nun weiss ich, was ich zu tun
habe!», kehrte sich sodann um und fragte den Forstmeister noch, auf eine
verbindliche Art, ob man ihn bald wiedersehen werde; empfahl sich ihm
und ging, võllig ausgesõhnt mit seinem Schicksal, fort», etc. (Kleist).
[«O couteiro-mor perguntou se não cria que se poderia encontrar a pessoa
que a senhora marquesa procurava. «Sem dúvida algum a!» replicou o
conde, enquanto se debruçava com toda a sua alma sobre o papel e sorvia
ávidamente o sentido do mesmo. A seguir, depois de num instante,
enquanto dobrava a folha de papel, se dirigir para a janela, exclamou:
« Agora está bem! Agora sei o que tenho a fazer!» Voltou-se depois e per­
guntou ainda, num tom amável, ao couteiro-mor se o voltariam a ver
brevemente. Despediu-se e partiu completamente reconciliado com o seu
destino.»] Outro exemplo: «Heinrich w ar erhitzt, und nur spàt gegen
Morgen schlief er ein. In wunderliche Tráume flossen die Gedanken
seiner Seele zusammen. Ein tiefer blauer Strom schimmerte aus der grünen
Ebene herauf. Auf der glatten Fláche schwamm ein Kahn. Mathilde sass
und ruderte», etc. (Novalis). [«H enrique estava muito excitado e só tarde,
já próximo da manhã, conseguiu adormecer. N o seu íntimo os pensamentos
confluíam em sonhos maravilhosos. Da planície verde cintilava um rio
profundo e azul. Sobre a superfície calma deslizava uma pequena embar­
cação. Matilde estava sentada e rem ava.»] Cf Strich, l. c., 2.a ed., 1924,
pp. 208-210. Os sublinhados do texto de Strich são meus; os do texto de
Kleist são de Strich.

15
226

É certo que lhe passa despercebida a esfera das relações objec­


tivas e, portanto, também os problemas de apresentação, para
nós aqui importantes, mas não há dúvida de que ele viu a função
das frases na estruturação da obra literária, como também niti­
damente o provam outras afirmações suas de que não nos
podemos ocupar aqui. Passando-lhe despercebida a esfera das
relações objectivas escapou-se-lhe também a diferença muito
importante que existe entre Kleist e Novalis, por mais interes­
santes e oportunas que sejam as suas restantes observações K
É que a diferença da construção e da conexão das frases leva
aqui, em prim eiro lugar, a relações objectivas singulares de
construção diferente e a outra espécie de conexões. A diferença
da perspectiva do tempo — como eu preferiria d izer— resulta
primeiramente destas diferenças das relações objectivas ainda
por salientar. Na verdade, enquanto a frase kleistiana desenvolve
uma relação objectiva global, uma situação complexa total, em
que várias relações objectivas parciais são captadas em certo
sentido e de uma só vez num relance no seu entrelaçamento
e condicionalismo mútuos, e por esta razão nada perdem da
sua conjugação recíproca numa única situação, vemos em Novalis
em cada frase singular apenas uma relação objectiva o mais
simples possível e como que arrancada à situação global, de
maneira que se nos limitamos a uma única frase a relação
objectiva correspondente é algo em si fechado, não imediata­
mente unido às outras relações objectivas. Só a seqüência de
várias frases consegue estabelecer uma conexão entre as rela­
ções objectivas singulares e na verdade uma conexão de diferente
tipo inteiramente peculiar. Começa-se por projectar um enqua­
dramento que abranja tudo e cujas partes vazias são sucessiva
e concéntricamente preenchidas por relações objectivas intei­
ramente simples. A frase «Ein tiefer blauer Strom schimmerte
aus der grünen Ebene herauf» [«D a planície verde cintilava um
rio profundo e azul»] constitui este enquadramento. Nele colo-
ca-se agora uma nova relação objectiva, em princípio fechada
em si mesma e só articulada com a primeira devido a esta
situação: «Auf der glatten Fláche schwamm ein Kahn» [«Sobre
a superfície calma desliza uma pequena embarcação»]. E nova­
mente não se sabe ainda se nesta embarcação há algo mais que
ver; é um espaço vazio que, por sua vez, é preenchido pela
relação objectiva projectada pela frase seguinte: «Mathilde sass

1 Por esta razão não confronto os textos de Kleist com os de Goethe


(como Strich, visto lhe interessar o contraste entre classicismo e roman­
tismo), mas os de Kleist com os de Novalis.
227

und ruderte» [«M atilde estava sentada e rem ava»]. Se este


«remava» não fosse acrescentado também não se saberia se
Matilde estava nesta embarcação ou em qualquer outra parte.
Por enquanto não sabemos o aspecto que Matilde tinha nem o
que ela porventura ainda faria. Só a frase seguinte completa
o sentido: «Sie war mit Kránzen geschmückt, sang ein einfaches
Lied und sah nach ihm mit sanfter Wehmut herüber» [«E la
estava enfeitada de grinaldas, cantava uma canção simples e
olhava para ele com suave melancolia»]. Se ela olhava para ele
é de supor que ele se encontrava a certa distância. Por enquanto
ainda nada pressentimos a este respeito. Em contrapartida, é-nos
proporcionado, por sua vez, uma nova relação objectiva com­
pletamente fechada em si mesma: «Seine Brust war beklommen»
[« A angústia oprimia-lhe o p eito»], etc. Verificamos o seguinte:
cada frase projecta uma relação objectiva simples constitutiva
por si mesma de um todo, projecta apenas um único traço de
entre a totalidade do estado de coisas que, em última análise,
se constitui e é composto por estes traços como se fossem peque­
nas pedras individuais. As relações objectivas singulares são,
por assim dizer, dispostas umas ao lado das outras como man­
chas desde que, naturalmente, todas elas existem. É preciso
transitar, em primeiro lugar, de uma' relação objectiva para
outra, e isto sobretudo porque primeiro conhecemos relações
objectivas visuais, depois acústicas e, finalmente-, puramente
psíquicas. Mas temos, por assim dizer, tempo: como as frases
singulares ou relações objectivas individuais são inteiramente
simples e claras a totalidade da situação deixa desenvolver-se
amenamente, sem o olhar fatigante que tudo abarca de uma
só vez. Como é diferente, neste caso, a frase atrás citada de
Kleist, que nenhum tempo nos oferece mas uma relação objec­
tiva global que na sua teia complexa, na visão do já acontecido
e do que precisamente agora acontece na simultaneidade e
sucessão, forma a unidade de uma situação, procura desenvol­
vê-la de uma só vez e — uma vez à altura do esforço que nos
é imposto — nos obriga a uma intuição viva da situação total
na sua simples originalidade.
Em resumo, a diferença estrutural das relações objectivas
e do modo da sua conexão traz consigo diferenças de modo de
apresentação dos objectos correspondentes e dos seus destinos.
Estas diferenças, naturalmente, também não deixam de afectar
o apresentado. Assim, é natural resultarem daí as diferenças,
salientadas por Strich, da perspectiva temporal e talvez ainda
da concepção de tempo. A origem destas últimas diferenças,
porém, reside nos modos diversos da apresentação por meio
228

de relações objectivas que, por sua vez — como Strich também


v ê — , têm a origem última nas frases. Há, naturalmente, uma
multiplicidade muito grande de diferenças deste género. A sua
exacta relevância mostrar-nos-ia muitas obras a uma luz com­
pletamente nova. Aqui devemos contentar-nos com o exemplo
alegado e a simples referência.
5.° Resultam diferenças muito particulares no modo de
apresentação, independentes das já discutidas, relativamente à
questão se e de que modo o sujeito «narrador», graças à for­
mação particular dos conteúdos de sentido das frases, também
pertence à obra. Th. Lipps afirma sem rodeios que em qualquer
frase que lemos está dado, como ele diz, o Eu falante «ideal».
Contudo, esta concepção não me parece inteiramente correcta l.
Embora geralmente durante a leitura estejamos dispostos a
deixar o autor contar-nos toda a história, em muitos casos esta
nossa atitude não é exigida de modo algum pelo conteúdo de
sentido das frases e, por conseguinte, também não é atitude
adequada. É que, geralmente, o conteúdo de sentido das frases
nada nos diz do «narrador» nem se as frases são proferidas
por alguém como elementos de uma narração. A função de noti­
ficação pode na verdade ser exercida por qualquer frase, mas
é precisamente característico das obras escritas «impessoal­
mente» que esta função se não chegue a exercer. Mesmo quando
as frases são formações puramente intencionais e remetem,
como tais, para qualquer operação subjectiva e seu respectivo
E u 2 este facto não deve, todavia, ser confundido com a situa­
ção inteiramente diferente em que o Eu falante ou «narrador»
é na realidade simultáneamente dado. Por outras palavras:
quando o conteúdo de sentido das frases ou as circunstâncias
em que elas aparecem não se referem ao autor na sua qualidade
de narrador toda a obra se encontra também, por assim dizer,
fora do alcance do autor e este não pertence à obra como
personagem. O caso torna-se diferente quando o autor se apre­
senta a si próprio como narrador das relações objectivas cor­
respondentes. Neste caso o narrador é-nos dado simultáneamente
como aquele que narra 3 (não é essencial que este seja o próprio

1 Cf. Th. Lipps, Grundlegung der Aesthetik, Leipzig, 1903, p. 497: «O Eu


ideal que eu procuro compreender no apresentado é já dado pela natureza
da linguagem.»
2 Se Lipps, na frase citada, tivesse só em mira este facto teríamos
que lhe dar razão.
3 Cf., p. ex., o estilo preferido por Platão. Entre os escritores modernos
é Joseph Conrad quem frequentemente a ele recorre, sobretudo nas suas
novelas.
229

autor ou apenas uma personagem criada por ele). Então, ele


próprio pertence aos objectos apresentados na obra, portanto
ao seu estrato objectivo. Em virtude disto toda a obra adquire
uma estruturação nova de estratificação dupla. As relações
objectivas correspondentes são, neste caso, encadeadas de ma­
neira curiosa umas nas outras. Estamos perante uma conexão
de relações objectivas que, por assim dizer, atravessa toda a
obra desde o princípio até ao fim e na qual as frases singulares
da narração são apresentadas e muitas vezes também expostas,
sendo de importância que a narração tenha precisamente deter­
minado conteúdo. Por estas relações objectivas, que já são em
si mesmas intencionalmente projectadas — e precisamente por
se tratar de relações de narração— , são projectadas novas rela­
ções objectivas em que se apresenta o «tem a» da narração.
Aqui pode surgir outra complicação estrutural da obra (como,
p. ex., acontece sobretudo nos diálogos platónicos) quando a
própria «narração» se torna representação dramática — como
geralmente se d iz — de uma" «cena», de uma situação em que
várias personagens entram, dialogam e assim projectam, por
sua vez, novas formações multistratifiçadas: o próprio falar e
o estrato duplo (relativo à relação objectiva e ao «objecto» em
sentido estrito) do intencionado como tal. Estas complicações
não aparecem em obras compostas por frases simples e impes­
soais. É certo que neste caso também podem ser apresentadas
personagens que proferem diversas frases e assim projectam,
por sua vez, um novo estrato objectivo. Mas se assim acontece
a estrutura da obra inteira é mais simples, pelo menos no sen­
tido de aqui estar ausente toda a conexão de relações objectivas
que, por assim dizer, se estenda pela obra e conduza à apre­
sentação do narrador e seu narrar1.
6.° Com estes pressupostos podemos esclarecer um traço
importante da diferença entre a forma «dramática» e 3 «não-
-dramática» da obra literária. Quando analisamos um «drama
é preciso ter em consideração, antes de mais nada, que o drama

1 A diferença entre a apresentação puramente «objectiva» e aquela


que põe em cena um narrador, que eu saiba já foi notada há muito tempo.
O que eu julgo ser novo nestas minhas observações é simplesmente a
indicação de que nestes dois casos diferentes acontece, por assim dizer,
uma dupla projecção de relações objectivas. Esta minha posição só foi
possível depois de ter procedido a uma delimitação rigorosa entre a esfera
das relações objectivas puramente intencionais, os objectos apresentados
e as frases. Como- recentemente soube através de um número da «Deutschen
Vierteljahrsschrift für Literaturwissenschaft und Geistesgeschichte» (1959),
teria' sido W. Kayser o primeiro a descobrir o narrador no romance.
230

lido não deve ser identificado em todos os aspectos com o


representado — como o “ espectáculo” », como adiante diremos
(cf. cap. 12). Sem tratarmos neste momento desta diferença
limitamo-nos nas considerações seguintes ao drama escrito ou
lido, confrontando-o com o romance ou qualquer poema lírico.
É evidente que num «drama escrito» seguem dois textos
diversos um ao lado do outro: o texto secundário, i. é, as refe­
rências ao lugar, ao tempo, etc., em que a respectiva história
representada se passa, quem fala agora e, eventualmente, ainda
aquilo que de momento faz, etc., e o próprio texto principal.
Este é exclusivamente constituído por frases «realmente» pro­
nunciadas pelas personagens. Pela indicação da personagem que
vai falar as frases pertencentes ao texto principal adquirem
de certo modo «aspas». Tanto estas frases como as personagens
introduzidas na devida altura nò diálogo e, finalmente ainda,
as relações objectivas da própria fala convertem-se assim no
que é apresentado pelos elementos do texto secundário, a cujo
«estrato objectivo» pertencem. Contudo, as frases pertencentes
a este estrato são precisamente frases e projectam, por conse­
guinte, outro estrato objectivo: o dos objectos e seus destinos,
de que tratam precisamente as frases proferidas. Aparece, por­
tanto, aqui um «encadeamento» das relações objectivas inten­
cionais semelhante àquele que atrás analisámos. Neste caso é
preciso atender a que na projecção das relações objectivas
ambos os textos cooperam na medida em que as frases apre­
sentadas e proferidas, pela sua função de notificação, projectam
a relação objectiva do falar e também as várias relações objec­
tivas do processo psíquico desencadeado na personagem falante
que alcançam «expressão», completando portanto a função do
texto secundário. Por outro lado, cooperam na medida em que
o texto secundário também completa frequentemente as relações
objectivas projectadas pelo texto principal indicando o que fazem
os «actores». Ao mesmo tempo, é vulgar que muitos objectos
— ainda que não forçosamente todos — apresentados pelas rela­
ções objectivas pertencentes ao texto principal sejam idênticos
àqueles que são projectados pelo texto secundário. Tudo isto
pode também suceder num romance, posto que nunca se chegue
a uma distinção tão rigorosa entre o texto principal e o secun­
dário como acontece no caso de um «drama». Apesar disso,
existe uma distinção inegável entre estes dois tipos de obras
literárias. Pode haver romances em que nunca aparecem repro­
duzidas as palavras de uma personagem e, portanto, não há
nenhum «encadeamento» (ou, por outra imagem: nenhuma pro­
jecção dupla) das relações objectivas. Um drama lido, porém,
231

seria inteiramente impossível se esta projecção dupla faltasse.


Ao mesmo tempo — e isto é a característica da apresentação
dramática— , as frases faladas, que se caracterizam por apare­
cerem sempre no «discurso directo» e nunca no indirecto, cons­
tituem o texto principal da obra. É sobretudo por isso que estas
frases devem ser construídas de tal modo que do seu conteúdo
de sentido — pelo menos em princípio — resulte toda a história
a apresentar. As relações objectivas por elas projectadas cons­
tituem o meio principal de apresentação dos objectos e seus
destinos de que a obra respectiva propriamente trata. Por outras
palavras: deveríamos propriamente saber pelas palavras regis­
tadas das personagens intervenientes tudo o que é essencial ao
respectivo drama. De certo modo, é apenas uma simplificação
para o poeta e o leitor quando se recorre mais frequentemente
ao texto secundário para se informar, por via reduzida, sobre
acções singulares de que no texto principal de passagem (ou de
modo algum) se fala. Esta informação, porém, poderia faltar
quase por completo na correspondente redacção do texto prin­
cipal. Só uma coisa é que não pode faltar: a indicação de que
as frases pertencentes ao texto principal são frases «realmente»
pronunciadas. Por outras palavras, não deve faltar de antemão
o «encadeamento», a projecção dupla das relações objectivas.
Sob este aspecto o texto secundário nunca pode faltar por
completo num drama escrito. Pertence essencialmente a este
tipo de obra literária. Mas nunca passa de texto secundário,
que de per si nem sequer pode formar o esqueleto de uma obra.
Se prescindirmos do texto principal restam-nos apenas resíduos
incompreensíveis. Desde que o texto secundário exista ao lado
do principal então ele não só leva a uma «projecção dupla»
das relações objectivas mas ainda a que muitas relações objec­
tivas, que na verdade pertencem à «realidade» projectada pelas
frases pronunciadas, sejam directamente determinadas por ele.

§ 31. A função das unidades de significação como


material especial na estruturação da obra literária

Não queremos continuar absorvidos por estas situações


extremamente interessantes e, que saibamos, até agora ainda
não postas em relevo dos modos diversos de apresentação atra­
vés de relações objectivas. As análises efectuadas de exemplos
que indubitàvelmente podem ser elaboradas e essencialmente
completadas em diversas direcções bastarão para pôr na devida
luz a função do estrato das unidades de sentido, extremamente
232

importante e decisiva para a constituição dos restantes estratos


da obra literária. Mas ainda não se esgota nisto a função deste
estrato na estruturação da obra. Os sentidos das frases e as
conexões inteiras de sentidos — como já atrás referimos —
constituem na obra literária um estrato material em si mesmo
que possui particularidades independentes da sua função na
constituição dos outros estratos e que na polifonia da obra
têm «voz própria» e influem na sua orquestração.
É certamente muito natural pensar que o estrato das uni­
dades de sentido é, por assim dizer, completamente absorvido
pela sua acção sobre a constituição dos outros estratos e desa­
parece na totalidade da obra como algo em si mesmo imper­
ceptível. Na verdade, tanto na língua viva como na leitura de
uma obra literária servimo-nos dos conteúdos de sentido das
frases para fixarmos a nossa atenção temática na relação objec­
tiva ou no objecto a que a frase se refere. O conteúdo de sentido
da frase como tal — poder-se-ia pensar— em geral não nos
interessa mais de perto, passamos, por assim dizer, por ele sem
tomarmos consciência explícita. Entretanto, ainda que este facto
seja inegável não é contrário à nossa concepção. Em primeiro
lugar, nós visamos mais frequentemente o conteúdo de sentido
da frase durante a leitura; em segundo lugar, este também
nunca desaparece por completo do campo da nossa consciência
quando principalmente visamos o seu correlato intencional, mas
aparece sempre nele por mais periférico e não-temático que
seja. É precisamente característico do que aparece não-temàti-
camente modificar em vários aspectos o que temáticamente
aparece. Finalmente, não nos interessa aqui o que a obra lite­
rária nos mostra em cada caso durante a leitura mas trata-se
da questão, entendida de um modo puramente ôntico, da con­
tribuição do estrato das unidades de sentido para a totalidade
da obra. Sob este aspecto, devemos afirmar que este estrato
leva a momentos próprios, característicos da obra de arte na
sua totalidade, que aparecem numa polifonia.
A presença do estrato das unidades de sentido 1 na obra
de arte literária tem a sua expressão principalmente no facto
de esta obra — mesmo no caso de um poema puramente lírico —
nunca poder ser um produto completamente irracional, como
é bem possível suceda com outros tipos de obras de arte, par­

1 Perante o uso da expressão «sentido», particularmente divulgado


na psicologia das ciências do espírito com os significados mais diversos,
que geralmente convergem de modo confuso, eu emprego este termo
apenas aplicado a significações, frases e períodos.
233

ticularmente com a música K Também numa obra de arte lite­


rária plenamente sintonizada com estados de espírito e senti­
mentos continua a existir o momento da ratio, ainda que ressoe
apenas confusamente. Na recepção estética da obra há igualmente
sempre uma fase em que nós, por assim dizer, penetramos na
atmosfera racional ao termos de «conceber», antes de mais nada,
a obra e certamente na medida em que apenas são concebíveis
as unidades de sentido. A diferença mais importante na atitude
perante a obra de arte literária em comparação com as atitudes
perante obras de arte de outra espécie (música, pintura, etc.)
está precisamente em ser inteiramente indispensável a travessia
da esfera racional para chegarmos aos outros estratos da obra
e para, dado o caso, mergulharmos na atmosfera irracional.
Naturalmente, o grau de contribuição racional e o tipo da racio­
nalidade podem ser muito diferentes em obras diferentes.
Há obras e espécies de estilo inteiras em que esta contribuição
é tão grande que não só ressalta por si mesma nitidamente na
totalidade da obra, mas os estratos restantes, e particularmente
o estrato objectivo, aparecem sub specie desta racionalidade.
Este «aparecer sub-specie-da-racionalidade» existe até certo grau
em todas as obras literárias, como se depreende já das nossas
observações acerca da estruturação dos correlatos puramente
intencionais das frases e acerca das suas diversidades em rela­
ção a objectividades originàriamente apreendidas. Mas pode ter
graus diversos de expressividade. É instrutiva neste aspecto a
comparação de obras puramente impressionistas (mas também
românticas) com obras «clássicas». Disto nos pode convencer
também o confronto de um poema puramente lírico (p. ex., de
Verlaine) com uma narração «objectivamente» realizada de um
romance «naturalista». Por outro lado, há também tipos de
leitores que dão relevo sobretudo a esta contribuição do racional
dentro da totalidade da obra e descobrem nele valores especiais
da obra de arte2. Outros tipos de leitores são, em contrapartida
e até certo grau, insensíveis a este aspecto da obra de arte
literária e, ainda que também o co-apreendam, postergam o
racional como perturbador, sem valor ou até como de valor
negativo. Isto, porém, mostra apenas que não é qualquer leitura
que compreende a obra.

' Há, naturalmente, em sentido translato também música «racional».


2 Parece-me que isto diz particularmente respeito a obras da literatura
clássica francesa e à atitude do leitor francês.
234

O ressoar do estrato de sentido na polifonia da obra de


arte literária é ainda revelado pelo facto de neste estrato terem
a sua origem valores estéticos próprios. Há também uma beleza
de puro conteúdo de sentido e mesmo um tipo especial de
beleza ou de não-beleza. Antes, porém, de entrarmos nesta
matéria queremos referir-nos ainda a algumas qualidades dos
conteúdos de sentido das frases que são particularmente impor­
tantes para o estudo da obra literária.
l.° Neste aspecto sobressai particularmente a diferença entre
a «clareza» e a «obscuridade». Tanto da construção da frase
como ainda do tipo da conexão entre as frases e da ordem da
sua seqüência resulta que o todo ora é «claro» ora «obscuro».
É, naturalmente, muito difícil descrever o fenómeno da clareza
racional porque neste caso deparamos com algo de original.
Mas todos nós conhecemos a diferença entre textos claros e
obscuros e experimentamo-lo muitas vezes de modo sensível
durante a leitura. Trata-se apenas de distinguir este fenómeno
da clareza (ou da obscuridade) de outros fenómenos e de lhe
emprestar assim maior visibilidade.
É preciso sobretudo acentuar que a «clareza» (ou a falta
de clareza) é urna característica das próprias frases e tem a
sua fundação ôntica ao mesmo tempo na estrutura destas. Por­
tanto, não é algo que apenas fosse introduzido na obra pelo
leitor. Naturalmente, o juízo sobre a clareza ou obscuridade
de urna obra depende mui frequentemente das qualidades sub­
jectivas e da atitude do leitor. Mas a construção das frases, o
tipo do material de significação que nelas aparece como, final­
mente, o modo de conexão entre as frases fazem que até o leitor
mais qualificado considere toda a obra, p. ex., «obscura» e
com razão p o r que a obra em causa verdadeiramente o é. Pode­
mos, portanto, omitir aqui as condições subjectivas que se
devem satisfazer para que urna obra possa com rigor ser ava­
liada no seu grau de clareza.
É preciso ainda atender a que no caso da clareza de urna
frase não se trata da particularidade caracterizadora de muitas
frases pela qual o leitor é imediatamente e sem dificuldade
dirigido para o visado intencionalmente na frase e pode repre-
sentá-lo de um modo intuitivamente vivo. Trata-se antes de algo
produzido sobretudo por particularidades estruturais do con­
teúdo de sentido" da frase e da conexão de frases. Entendemos
por «particularidades estruturais» aquelas que consistem: 1 . no
isolamento rigoroso dos elementos singulares, ou melhor, dos
235

membros da unidade de sentido (na precisao-^dòs seus con­


tornos, se esta expressão é aqui permitida); 2 . numa tal orde­
nação especial destes membros num todo que eles nada percam
da sua condição de partes e nos permitam, todavia, penetrar
de uma só vez na totalidade e apreendê-la na sua própria estru­
tura. É apenas mudança de palavra .quando em vez de «claro»
dizemos «transparente». Mas é precisamente esta « transparência»
que melhor nos permite revelar o fenómeno da «clareza». Quando
uma obra é «clara» é como um cristal em cuja estrutura con­
seguimos sem mais orientar-nos. Este facto de podermos orien­
tar-nos inteiramente no todo, de podermos ver através dele
por todas as partes, de nada nos impedir esta visão penetrante,
de uma coisa não encobrir outra e não nos tornar impossível
ter num relance uma supervisão da totalidade em todas as
suas partes, estruturas e momentos parece-nos ser o fenómeno
peculiar da clareza. Funda-se, como já dissemos, nas particula­
ridades estruturais das frases e suas conexões. Naturalmente,
estas particularidades devem ainda apoiar-se no facto de as
palavras singulares que aparecem nas frases serem unívocas.
Contudo, só por si a univocidade de todas as palavras que apa­
recem numa frase ou numa conexão de frases não consegue
gerar a clareza do respectivo texto.
O contrário de um texto «claro» aparece quando ou a orde­
nação das partes ou sobretudo a construção de todo o «pen­
samento» são de tal modo que no texto não há partes distintas,
quando tudo se confunde e é impossível avaliar a contribuição
dos elementos singulares para a estruturação da totalidade, e,
portanto, não há da frase ou da conexão de frases uma visão
sinóptica. Neste caso temos diante de nós o racionalmente
obscuro. Contudo, nem sempre a obscuridade racional deriva
da falta de nitidez das partes singulares da totalidade. Da própria
ordenação «opaca» — como muitas vezes lhe chamamos— das
frases singulares que em si sejam inteiramente claras e se
distingam com precisão umas das outras pode resultar a falta
de clareza do todo. Finalmente, a polissemia das palavras, quando
não rigorosamente definida, traz consigo a obscuridade. Há dife­
rentes tipos e graus dè clareza (ou de não-clareza), conforme
os factores que produzem este fenómeno.
2.° Além das diferenças que acabámos de analisar as uni­
dades de sentido ainda ostentam muitas outras que não podem
ser aqui aprofundadas porque agora somente se trata de mos­
trar que o estrato das unidades de sentido tem sobretudo par­
ticularidades próprias que não lhe permitem passar despercebido
236

na totalidade da obra literária. Assim, há diferenças de univo-


cidade e ambigüidade, de simplicidade e singeleza ou de com­
plexidade e confusão, na construção ou conexão de frases, mas
também diferenças de «leveza» e «peso» de frases singulares
e de textos inteiros, etc. Muitas vezes estas qualidades diferentes
do texto estão intimamente ligadas entre si. Assim, p. ex., a
falta de clareza e a complexidade do texto aparecem, em geral,
juntas. A ambigüidade — como já observámos — arrasta a
obscuridade. Várias combinações destas qualidades levam tam­
bém a que o estrato das unidades de sentido, como um todo,
receba um carácter global que muitas vezes em si mesmo só
pode ser intuída mas não definido por conceitos. Em muitos
casos também não é possível reduzir esse carácter à multipli­
cidade das várias qualidades e dos momentos em que se funda,
mas é algo de inteiramente novo em relação a estes. É preci­
samente aquilo que constitui o estilo do texto de uma obra
de arte literária ou ainda o estilo de um poeta. É, certamente,
possível salientar na análise da construção sintáctica, da orde­
nação das frases e do material de significação de que o respec­
tivo poeta se serve as qualidades singulares do estrato das
unidades de sentido em que o estilo da obra se funda, mas o
que lhe é peculiar, o inimitável, aquilo que constitui o «encanto»
particular do estilo só se pode intuir no contacto directo com
a própria obra. É precisamente este estilo que incute um valor
particular à polifonia da obra inteira. Naturalmente, pode haver
uma multiplicidade quase imensa de «belezas» e também de
«fealdades» de estilo. Mas todos estes tipos de beleza ou de
fealdade que aqui interessam permanecem dentro de um quadro
fixo delimitado pelo tipo geral de beleza de uma produção
racional de sentido. Este tipo de beleza distingue-se sobretudo
por uma particular frieza ou leveza. Daí não podermos ficar
profundamente emocionados com o gozo estético da beleza deste
tipo. Sentimos apenas prazer nessa beleza, mas é um prazer
que não nos entusiasma. No fundo do nosso ser permanecemos
inteiramente calmos ao sentirmos prazer nessa beleza, numa
atitude algo ligeira e serena. Esta frieza peculiar de beleza que
só podemos encontrar no estrato das frases da obra de arte
literária já não existe na mesma medida quando se trata da
fealdade ou da falta de beleza do mesmo estrato. A fealdade
tanto das frases singulares como também de uma conexão inteira
de frases contém sempre um momento excitante que por vezes
pode ser tão violento que a respectiva obra provoca em nós
237

forte repugnância emocional contra e la *. Justamente, este des­


canso sereno, frio e alegre, esta satisfação que nós podemos
sentir ao apreciar a pulcritude de uma frase belamente cons­
truída, este entusiasmo que os filólogos clássicos tantas vezes
exibem perdem-se na leitura de uma obra que neste aspecto
seja de valor negativo. Ainda que neste caso as qualidades
valiosas do texto não sejam tão características como no caso
oposto positivo não deixa de ser indubitável que elas também
se fundam nas qualidades do próprio estrato das unidades de
sentido e neste se encontram como algo que aí tem o seu lugar.
Mostra-se deste modo que em todos os casos o estrato das
unidades de sentido tem «voz própria» na polifonia da obra
de arte literária e um papel significativo na sua formação. Isto
mostra-se do modo mais palpável, certamente, nos casos em
que o estrato das unidades de sentido é tão «incaracterístico»,
tão «vulgar», tão «sem fisionomia própria» que a falta da sua
contribuição positiva com qualidades particulares de valor é
sensível. Aparece neste caso uma certa deficiência, uma falta
de algo que, por assim dizer, pela natureza das coisas devia
«propriamente» fazer parte da obra. Finalmente, a consonância
especial das qualidades valiosas características deste estrato
deixa-se também nitidamente sentir quando as particularidades
do estilo de modo algum condizem com os objectos apresentados
e seus destinos e provocam desarmonias desagradáveis, ainda
que por vezes propositadas. Esta desarmonia pode ir até ao
ponto de impedir o desenvolvimento da exposição dos objectos
por assim dizer preparada pelo conteúdo de sentido das frases
e de retardar ou até impossibilitar por completo que se tornem
vivos os aspectos correspondentes às objectividades apresentadas.
Estudar toda esta matéria nos seus pormenores, salientar
as qualidades especiais de valor e confrontá-las com outras, etc.,
só o conseguiria, naturalmente, uma investigação especial que
devemos relegar para a ciência positiva da literatura. Esta,
porém, deve receber as suas bases teóricas do estudo da essência
da obra literária, cujas linhas fundamentais procuramos apre­
sentar aqui e que são as únicas susceptíveis de lhe proporcionar
as directrizes acertadas.

1 Aliás, é necessário salientar que a fealdade de partes singulares do


estrato das frases não é forçosamente algo de valor negativo na totalidade
da obra. Muitas vezes ela pode ter em última análise a função de valor
positivo de uma dissonância intencional na totalidade da obra. Como meio
especial da caracterização de determinadas personagens e situações apre­
sentadas na obra também pode, por vezes, ser insubstituível.
Capítulo 7

O estrato das objectividades apresentadas

§ 32. Recapitulação e introdução

Passamos agora à análise das objectividades apresentadas


na obra literária. Parecem ser o mais conhecido de todos os
estratos e na verdade são geralmente elas as únicas temática­
mente apreendidas na obra de arte literária. Em qualquer caso,
as objectividades são aquilo que o leitor vê em primeiro lugar
na simples leitura da obra ao seguir as intenções de significação
do texto. Geralmente, ele não vai além delas e dos seus destinos 1.
Também a maioria esmagadora dos estudos literários visa acima
de tudo este estrato da obra. Apesar disso, a captação científica
mesmo deste estrato da obra literária em geral não satisfaz no
que respeita à essência dos seus elementos, às suas particula­
ridades estruturais e ainda às suas funções na totalidade da
obra. Isto tem a sua razão, por um lado, na concepção psicolo-
gizante das obras literárias e, por outro, no facto de o leitor
vulgar, graças às funções naturais das intenções de significação
compreendidas e realizadas por ele durante a leitura, só se
interessar pela apresentação material dos conteúdos das res­
pectivas objectividades. Por conseguinte, as estruturas e as
propriedades dos objectos reais são sem mais nada e com natu­
ral evidência transferidas para as objectividades apresentadas,
de modo que a especificidade destas passa despercebida. Para
as pôr em plena luz é preciso assumir uma atitude diferente,
investigadora e não estéticamente receptiva que nada mais tem
em vista do que pôr em relevo e esclarecer aquilo que não-temà-
ticamente já existe na comunicação vulgar com obras literárias
e influencia a sua apreensão estética.
As objectividades apresentadas na obra literária são objec­
tividades pura e derivadamente intencionais projectadas por
unidades de significação. Por conseguinte, aplica-se a elas tudo

^ 1 Cf. a este respeito as observações de W. Conrad sobre a «divisão


de interesses» (l. c.).
240

o que até agora afirmámos acerca de objectividades deste género,


nomeadamente nos §§ 20.°, 21.° e 24.° Devemos, porém, recapi­
tular aqui algumas destas nossas afirmações para com elas
articularmos as análises ulteriores.
Segundo o que dissemos, é preciso distinguir em cada objecto
apresentado entre a sua estrutura objectiva puramente inten­
cional e o seu conteúdo. Durante a leitura estéticamente recep­
tiva da obra encontramo-nos voltados para o seu conteúdo e
geralmente dirigidos, em primeiro lugar, para o portador que
nele aparece. For isso queremos analisar um pouco mais de
perto este conteúdo.
Como já se demonstrou, os correlatos puramente intencio­
nais das frases conexas podem entrar em múltiplas relações e
conexões. E como entre os correlatos da frase há não só relações
objectivas que se passam na esfera de ser de um e o mesmo
objecto mas também outras em que se apresentam aconteci­
mentos e conexões entre os objectos singulares, então os objectos
apresentados também não estão isolados e estranhos uns aos
outros e lado a lado, mas reúnem-se graças a múltiplas conexões
ontológicas numa esfera una de ser. Assim, constituem — o que
é bastante curioso — sempre um sector de lim mundo não defi­
nido nos seus pormenores mas determinado no que respeita ao
seu tipo de ser e de modos de ser, sector esse que nunca fica
rigorosamente delineado nos seus limites. Tudo se passa como
se um cone de luz iluminasse parte de uma região, submer­
gindo-se o resto numa névoa indefinida sem deixar de existir
neste seu estado indeterminado. Quando, p. ex., num pequeno
poema um só objecto aparece apresentado num único estado
ou apenas numa situação sempre surge como algo inserido
numa totalidade objectiva mais envolvente: há sempre um pano
de fundo mais ou menos determinado que forma uma só esfera
de ser com o objecto apresentado. Isto é, naturalmente, pro­
duzido por momentos correspondentes de conteúdos de sentido,
e consequentemente por momentos correspondentes das rela­
ções objectivas. Pode servir-nos de exemplo a situação da pri­
meira cena do 1.° acto da Emilia Galotti, de Lessing. Nela
conhecemos um príncipe no seu gabinete a dar despacho a
várias petições, Estas petições já nos indicam objectividades
que se encontram fora da sala que vemos. Mas também esta
própria sala é de antemão apreendida como parte do palácio
do príncipe. O que nos é apresentado não termina nas paredes
do gabinete mas estende-se também às restantes salas do palá­
241

cio, à cidade, etc., apesar de tudo isto não nos ser dado direc­
tamente. É que se trata de um fundo. Este fundo não necessita
de ser explicitamente projectado pelo estado actual das signi­
ficações das palavras. Pelo contrário, é antes habitual atingi-lo
através do estado potencial das significações das palavras que
aparecem nas frases K
A esfera objectiva apresentada é geralmente una. Não é,
porém, de excluir a hipótese de haver dentro dos seus limites
também objectos de tipo de ser fundamentalmente diferente.
Assim acontece, p. ex., quando.num" romance é apresentado um
matemático ocupado com determinadas objectividades matemá­
ticas que também chegam a ser explicitamente apresentadas.
Neste caso, o mundo em que o matemático vive e pratica várias
acções é, naturalmente, um mundo real (mais exactamente: quase
real) e, em contrapartida, o mundo das objectividades mate­
máticas é um mundo ideal. Apesar disso, ambas as esferas,
como correlatos de um único texto literário, formam uma esfera
total que certamente se cinde em duas zonas diferentes de ser
entre as quais, todavia, se estabelece uma relação pelo facto
de as objectividades matemáticas serem o tema da reflexão do
matemático apresentado no romance. A heterogeneidade dos
objectos apresentados pode ser ainda muito maior, como vere­
mos adiante. Trata-se aqui apenas de declarar que ao texto
literário uno corresponde uma esfera objectiva una, que em
certo sentido transcende até o explicitamente^apresentado pelas
relações objectivas.
Para eliminar possíveis mal-entendidos queria salientar em
particular que a expressão «o objecto apresentado» por mim
empregada (ou a objectividade) deve entender-se no sentido
muito amplo em que designa, em primeiro lugar, tudo o que
é normalmente projectado qualquer que seja a categoria objec­
tiva e a essência material. Refere-se, portanto, a coisas, a pessoas
e ainda a quaisquer sucessos possíveis, estados, actos pes­
soais, etc. Ao mesmo tempo, porém, o estrato do apresentado
pode conter também diversas coisas não nominalmente projec­
tadas como, em especial, o intencionado puramente verbal. Para
simplificar a terminologia incluímos na expressão «objectividade
apresentada» — a não ser que lhe acrescentemos uma limitação
expressa — todo o apresentado como tal. A este respeito tenha-se

1 Cf. a teoria husserliana, aqui indispensável, dos «horizontes» dos


objectos dados na percepção (Ideen, pp. 49 e segs.). Tratamos aqui de
um análogo destes horizontes.

16
242

ainda em consideração que não é necessário encontrar objecti­


vidades «objectivadas» no estrato das «objectividades apresen­
tadas». E isto em diversos sentidos: em primeiro lugar, nãc
se trata necessàriamente da forma especial do dado objectivo
em que o objecto está em acentuada «posição de distância» em
relação ao observador (o que precisamente acontece na maioria
esmagadora dos casos]); em segundo lugar, não é necessáric
que o apresentado possua qualidades «objectivas», i. é, quali­
dades intencionadas como livres de qualquer relatividade exis­
tencial. Pelo contrário, as objectividades podem ser apresenta­
das na obra literária de tal modo que se acerquem do leitor
numa acentuada «posição de aproxim ação»2; por outro lado,
podem ser afectadas de diversos momentos de relatividade exis­
tencial e apenas «subjectivos», com características e reflexos
emocionais, etc., a aparecer neles3. Todos os modos possíveis
de doação que aparecem na experiência originária de espécie
diversa podem repetir-se aqui, só que ficam sujeitos a todas
aquelas modificações que são produzidas primeiramente pela
apresentação por meio de relações objectivas e depois pelo modo
de aparecer na fantasia. A apresentação por meio de relações
objectivas não é necessária em todos os objectos, nomeadamente
naqueles que são directamente projectados por nomes e expres­
sões nominais.

§ 33. O aspecto de realidade dos objectos


apresentados

Relaciona-se com o aspecto quase-judicativo das afirmações


e ainda com a modificação atrás analisada de todas as restantes
frases na obra literária o facto de o carácter ontológico existente
no conteúdo dos objectos apresentados estar sujeito a uma

1 Sobre o modo «objectivo» de doação (no sentido restrito) e a sua


«posição de distância» característica, cf. H. Conrad-Martius, Zur Ontologie
und Erscheinungslehre■der realen Aussenwelt, Jahrbuch für Philosophie,
vol. III, p. 470.
2 Este modo de apresentação por «posição de aproximação» é carac­
terístico da lírica pura. Depois da Segunda Grande Guerra, Emil Staiger
serviu-se destas distinções para confrontar a poesia egípcia com a lírica.
Cf. Gi'imdbegriffe der Poetik (1946).
3 Este modo de falar, naturalmente, só se refere ao conteúdo dos
correlatos intencionais de significação e com à restrição de ficar fora de
consideração a intencionalidade pura do mundo apresentado.
243

modificação correlativa. Tratando-se, p. ex., num romance, de


homens, animais, terras, casas, etc. — portanto simplesmente
de objectividades todas pertencentes ao tipo do ser real — , estes
aparecem na obra literária com um carácter de realidade, ainda
que geralmente o leitor não tome explicitamente consciência
disto. Este carácter de realidade não pode, porém, ser inteira­
mente identificado com o carácter ontológico dos objectos reais
efectivamente existentes. Há no caso das objectividades apre­
sentadas apenas um aspecto exterior da realidade que, por assim
dizer, não pretende ser tomado inteiramente a sério, embora
durante a leitura seja freqüente acontecer que o leitor leia as
frases quase-judicativas como autênticos juízos e assim consi­
dere como realidades as objectividades intencionais que apenas
simulam o real. A transformação com isto relacionada não per­
tence à própria obra mas a uma das suas concretizações pos­
síveis \ Quando as objectividades apresentadas são apreendidas
na sua essência peculiar então pertencem, talvez — pelo seu
conteúdo— , ao tipo das objectividades reais mas não aparecem,
contudo, de antemão como as que estão «radicadas» 2 no mundo
real e se encontram por si mesmas no espaço e no tempo reais,
i. é, inteiramente independentes de um sujeito consciente realizar
um acto que as vise. Aparece aqui uma modificação do carácter
da realidade que não elimina mas reduz este carácter quase
a uma mera pretensão de realidade. É que seria naturalmente
errado afirmar-se que as objectividades apresentadas não pos­
suíam nenhum carácter de realidade ou que, porventura, assu­
miam o carácter de um outro modo de ser (p. ex., o do ser ideal).
Por outro lado, não é possível identificar a modificação do
carácter ontológico que neste caso aparece simplesmente com
a «modificação de neutralidade» na acepção de E. Husserl3.
Ela é, pelo contrário, algo de tão peculiar que mal se pode

1 Cf. adiante, cap. 13.


2 Cf. H. Conrad-Martius, l. c. passim.
3 Cf. E. Husserl, Ideen, §§ 109-111. Sob a influência de Husserl, eu
próprio as identifiquei nas minhas Questões Essenciais. Vejo-me, porém,
agora obrigado a abandonar a posição que nelas tomei com respeito às
objectividades «fictícias». Faltavam-me na altura ainda os conceitos das
diferentes características ontológicas, sem as quais não é possível ajus­
tar-se às situações existenciais de que aqui se trata. Por outro ;lado, segui
nas Questões Essenciais um método puramente ontológico, demasiado
unilateral, sem valorizar suficientemente as diversas relatividades existen­
ciais referidas a operações da consciência.
244

descrever adequadamente K O curioso nisto é que não só o


carácter de realidade mas por vezes até as características de
todos os restantes modos de ser podem ficar sujeitos a essa
modificação do carácter ontológico. Isto ressalta, p. ex., niti­
damente quando dentro do mundo apresentado se chega a um
contraste entre as objectividades «reais» e os objectos apenas
«sonhados» por uma personagem. Neste caso, não só vemos
que as características do real existem sensivelmente no mundo
apresentado, mas também que o mundo aqui «sonhado» não
é o mundo sonhado no áutêntico sentido da palavra mas apenas
quase-sonhado. Por conseguinte, também aquilo que neste caso
é sonhado e, como «sonho», se opõe ao mundo quase-real está
sujeito à modificação particular do «quase», que tem a sua
origem na modificação atrás descrita das frases2.

§ 34. O espaço apresentado e o «espaço


da representação»

Quando numa obra literária se trata de objectos apresen­


tados que são «reais» pelo seu conteúdo e se pretende conservar
o seu tipo de realidade, então eles devem ser apresentados como
temporais e existentes no espaço e, em certos casos, até como
espaciais. O espaço, porém, que aqui interessa não é o espaço
real e único do mundo nem tão-pouco o «espaço de orientação»
que necessàriamente pertence à doação originária das coisas na
percepção e forma um subgrau constitutivo do aparecimento do
único espaço real, e como tal revela em si mesmo uma relati­

1 Max Scheler procura descrevê-la assim: «Todos os valores estéticos


são valores por essência: 1— valores de objectos; 2 — valores de objectos
cuja posição de realidade (de qualquer forma) é anulada e que, portanto,
existem como «aparência», embora, p. ex., no drama histórico o fenómeno
da realidade seja conteúdo parcial do objecto fictício imaginativamente
dado...» (cf. Formalismus in der Ethik, Jahrbuch I, p. 478). Eu creio que
a pergunta pelo carácter ontológico do objecto apresentado na obra de
arte não só surge em relação aos valores estéticos mas também diz
respeito a todo o apresentado. Os conceitos de «aparência» e «dado ima­
ginativamente» neste caso não são suficientes. A situação é muito mais
complicada.
2 É natural que aos diversos tipos de modificação das afirmações,
de que atrás tratámos (cf. § 25), ainda correspondam diversas variações
da modificação agora referida do carácter de ser dos objectos apresen­
tados. Mostrar isto expressamente levar-nos-ia aqui muito longe.
245

vidade existencial quanto ao sujeito da percepção \ Por outro


lado, também não é o espaço geométrico, homogéneo, ideal, a
pura multiplicidade tridimensional de pontos. Finalmente, tam­
bém não é o «espaço da representação» que, por essência, per­
tence a toda a representação intuitiva de objectos extensos e
jamais coincide com o espaço real nem pode formar uma uni­
dade com ele. É, pelo contrário — se assim se pode dizer — ,
um espaço próprio que, por essência, pertencerão mundo «real»
apresentado. De certo modo, tem afinidades com todos estes
espaços' na medida em que exibe uma estrutura que permite
chamar-lhe ainda «espaço», posto que a posse dessa estrutura
seja apenas fictícia, ilusória. Segundo a sua estrutura, encon­
tra-se relativamente mais próximo do espaço real e objectivo
(ou do espaço de orientação da percepção). Neste aspecto, porém,
também não pode simplesmente ser equiparado a este, como
à primeira vista pode parecer, se pensarmos simplesmente que
os objectos apresentados e nele existentes são intencionados
como reais. Este espaço distingue-se precisamente do espaço
real pela particularidade especial de, embora não positivamente
limitado e finito, não ser contudo ilimitado no sentido em que
é o espaço real. Suponhamos, p. ex., que num romance se des­
creve uma situação que se passa em determinada sala e que
nenhuma palavra indica se fora desta sala há ainda algo mais.
Neste caso, não se pode certamente afirmar que para além do
sector de espaço limitado pelas paredes desta sala não haja
absolutamente espaço algum e, portanto, só haja um nada puro.
Também seria errado dizer-se que há um espaço que circunda
esta sala, definido por unidades de sentido correspondentes
ou positivamente apresentado pelas respectivas relações objec­
tivas. Quando o espaço realmente apresentado (dentro da sala)
não termina nas paredes da sala isto só é assim porque pertence
absolutamente à essência do espaço não ter soluções de conti­
nuidade. Só por esta impossibilidade de ruptura da continuidade
espacial é co-apresentado o espaço fora da sala; correlativamente,
o espaço dentro da sala torna-se, assim, num sector do espaço.
Do mesmo modo, quando o autor de um romance nos «transpõe»
de uma região A para outra B sem nos mostrar todo o caminho
que leva de A a B, o intervalo existente entre A e B não é

1 Sobre o conceito do «espaço de orientação» — que é propriamente


um conceito husserliano— e sobre os pormenores com ele relacionados,
de que não podemos tratar aqui, cf. O. Becker, Zur phaenomenologischen
Begründung der Geometrie, Jahrbuch für Philosophie und phaenomeno-
logische Forschung, vol. VI.
246

positivamente determinado e apresentado mas também apenas


co-apresentado devido à impossibilidade da solução de conti­
nuidade espacial. Os espaços explícita e realmente apresentados
são, neste caso, separados por uma espécie de lacunas e osten­
tam, por assim dizer, . lugares de indeterminação. Todas estas
situações são absolutamente impossíveis num espaço real. Depa­
ramos, assim, com uma particularidade geral das objectivida­
des apresentadas, de que trataremos mais pormenorizadamente
no § 39.°
O espaço apresentado também não pode ser integrado no
espaço real nem nos diversos espaços de orientação dados na
percepção como parte sua, nem mesmo quando os objectos
apresentados o são explicitamente como objectos que se «encon­
tram» em determinada zona do espaço real (p. ex,, «em Muni­
que»). Esta cidade de Munique apresentada, e nomeadamente
o espaço em que esta cidade se «situa» como apresentada, não
se pode identificar com o correspondente sector do espaço em
que a cidade real de Munique efectivamente está situada'. Se isto
fosse possível também deveria ser possível dar, por assim dizer,
um passeio desde o espaço apresentado até ao real e vice-versa,
o que seria um evidente absurdo. Isto não se modifica pelo
facto de o sector espacial em que a cidade real de Munique
constante e invariavelmente se situa manter uma explícita rela­
tividade existencial com o sujeito cognoscente (embora esse
sector não coincida com o espaço de orientação, relativo na sua
existência a um sujeito cognoscente-especial) porque esta cidade
real muda evidente e constantemente o seu lugar dentro do
mesmo espaço objectivo e homogéneo do mundo — caso o haja —
e não existe realmente, neste último sentido, nenhum sector de
espaço em que ela pudesse estar constante e invariàvelmente.
Também não se pode identificar o sector do espaço apresentado
numa obra literária com este sector espacial, de existência
relativa, «sempre o mesmo», em que a cidade real de Munique
se encontra situada. São espaços inteiramente separados entre
os quais não há qualquer passagem espacial. Mais adiante vere­
mos como determinar positivamente a relação entre eles (§ 37.°).
Apesar da diferença entre o espaço apresentado e o «espaço
da representação» do respectivo sujeito consciente da represen­

1 A senhora Kaete Ham burger quer agora convencer-me de que assim


c como se eu desde há muito o não soubesse já.
247

tação *, tem ainda interesse especial o facto de existir a possi­


bilidade de durante a leitura olharmos directamente, numa
representação intuitiva e viva, para o espaço respectivo apre­
sentado e transpormos assim, em certa medida, o abismo que
existe entre estes dois espaços separados. Relaciona-se com isto
ainda o facto de nos ser também possível ver directamente os
objectos apresentados na comunicação mental e viva com a
obra literária, embora naturalmente não na autodoação viva e
percepcionável, que em princípio está aqui excluída2. Este facto
— indubitàvelmente muito curioso — tem a sua origem no modo
da exposição dos objectos apresentados, que é efectuada mediante
a actualização dos aspectos que lhes pertencem. Trataremos
disto no capítulo 8. Apontamos, porém, desde já este facto
para salientar que ele não contradiz a diferença entre o espaço
apresentado e o da representação, como pode parecer a muitos
observadores superficiais. O perigo de confundir os dois espaços
obriga-nos a tratar expressamente da diferença entre eles e entre
o objecto apresentado e o representado.
O que significa propriamente «objecto de representação»?
Quando, p. ex., «im agino» o meu amigo que presentemente se
encontra numa cidade muito distante ele próprio não é nenhum
objecto de representação. É um objecto real, ontològicamente
autónomo, a que é acidental ser representado por mim intuiti­
vamente. Quando «represento» intuitivamente um centauro, que
na realidade nunca poderá existir, este centauro em si mesmo
não é nenhum objecto de representação. Ele também — jgtnbòra
seja apenas uma «fic ç ã o »— é por mim apenas repi/esentado
e é igualmente transcendente à minha vivência da representação
e nela inexistente como o meu amigo realmente existente que
eu imagino 3. Além deste objecto transcendente à minha vivência
há ainda a minha representação como acto de estruturação
bem definido e por «m im » realizado. Este acto, enquanto acto
intencional da consciência, tem conteúdo próprio embora não
intuitivo. Este conteúdo está contido no próprio acto, na inten­
ção representativa, e é o estado global das intenções originais
que constituem a respectiva consciência representativa. Esta
tem um conteúdo, independentemente de ser claro ou não,
unívoco ou ambíguo. A vivência global da representação, porém,

1 Trataremos disto a seguir.


2 À apreensão directa dos objectos apresentados refere-se também
Th. A. Meyer (/. c., p. 185) ao falar na sua «autopresença».
3 Como Husserl já salientou há muitos anos.
248

ainda não é exaurida por este conteúdo e pelos restantes mo­


mentos do acto e suas particularidades de realização Há ainda
algo mais que transforma toda a vivência numa vivência de
intuição: uma multiplicidade fluente de dados intuitivos que,
segundo o seu tipo, se distinguem radicalmente dos dados vividos
na percepção sensível mas que têm de comum a propriedade
de serem intuídos2. Estes dados fluentes e constantemente
variáveis manifestam ainda uma heterogeneidade considerável.
Por exemplo, na representação visual — a que nos limitamos
aqui — existem, por um lado, dados de cores qualitativamente
diversos que em geral pertencem ao mesmo conjunto e se
encontram submetidos à directriz 3 imediata dos momentos
intencionais da consciência contidos no acto de representação
e, por outro lado, há um meio nebuloso, geralmente não tido
em conta pelo sujeito de representação e no qual aparecem os
dados a que primeiramente nos referimos. Este meio é um
fenómeno absolutamente positivo sui generis como o são os
próprios dados de cores. Nomeadamente nos casos em que a
representação é efectuada de olhos fechados nada tem que ver
com a chamada vista enevoada subjectiva4. Esta é apenas um
caso especial de dados ou objectos percepcionados. Em contra­
partida, o meio de que se trata aqui aparece apenas na repre­
sentação intuitiva. Não é qualquer dado de cor nem tão-pouco
um dado de cor passível de representação. É algo de espacial
que, todavia, não pode ser identificado com a estrutura do
espaço visto na percepção. Cria, por assim dizer, um «espaço»
para os dados da representação que lhe são postos diante; estes
estendem-se nele e são por ele circundados. Não se encontram
aqui dimensões expressas, p. ex., uma profundidade explícita,
como pode surgir na percepção visual e também na vista ene­

1 Cf. Husserl, Logischen Untersuchungen, vol. II, Investigação VI.


2 Cf. entre outros H. Conrad-Martius, Zur Ontologie und Erschci-
nungslehre der realen Aussemvelt, Jahrbuch für Philosophie, vol. III.
3 Queremos dar a entender por esta expressão que os dados intuitivos
da representação que apenas são vividos mas não intencionados, todavia
sem deixarem de ser sensíveis às mudanças do conteúdo do acto da repre­
sentação, modificam-se conforme o conteúdo do acto e, dentro de certos
limites, também podem ser propositadamente modificados por nós, ainda
que o seu aparecer em geral seja independente da nossa vontade. Nascem
sem que nós em géral os tenhamos em mente. Também são, naturalmente,
possíveis casos em que os produzimos propositadamente.
4 Cf. D. Katz, Die Erscheinnngsweisen der Farben, posteriormente
publicado sob o título de Farbwelt.
249

voada subjectiva K Contudo, é um meio espacial em que os


dados de cor, como que emergindo dele, aparecem e que se,
por um lado, não é infinito, por outro, não possui limites
rigorosos. Apesar disso poder-se-ia dizer, por imagens, que para
além dos «lim ites» (que como tais não existem aqui) esse meio
se esbate até ser irreconhecível (não sendo apreendido, em geral,
de modo algum este esbater-se) e que neste esfumar-se — «pro­
gredindo» de modo p róp rio— se perde no nada. É sempre
caracterizado por uma certa obscuridade nebulosa e vaga.
A obscuridade também existe quando os próprios dados que
aparecem no meio têm, p. ex., qualidades de cores claras e
também quando o objecto de que temos a representação é repre­
sentado num espaço claro (p. ex., quando se 'trata de uma pai­
sagem em tempo claro e de sol). É precisamente este meio que
é o «espaço da representação» em sentido estrito e que rigoro­
samente se deve distinguir do espaço representado e, com maioria
de razão, do espaço apresentado numa obra literária.
À diferença do espaço representado, o espaço da represen­
tação é rigorosamente imánente à vivência da representação, é
a sua autêntica «parte real» — para empregarmos aqui a expres­
são husserliana das Logischen Untersuchungen — e não deve ser
eliminado da vivência intuitiva da representação.
Os dados representativos que aparecem no espaço da repre­
sentação (p. ex., os dados de cores) estão geralmente — como
já disse— sujeitos à «directriz» do acto intencional da cons­
ciência por essência contido no acto de representação. Mais
exactamente, trata-se do seguinte: os dados representativos têm
determinações qualitativas próprias e ordem própria que não
lhes é conferida, por assim dizer, extrínsecamente só pelo acto
intencional da consciência. Eles podem surgir no espaço da
representação mesmo quando o Eu se mantém inteiramente
passivo e não realiza quaisquer actos intencionais e assim nada
representa, mas possui simplesmente dados como estes ou outros

1 É preciso, porém, entender isto correctamente. É certo que há


aqui extensão bidimensional. Como, porém, este médium nos passa geral­
mente despercebido as suas dimensões também não são apreendidas
explicitamente. É precisamente neste estado de não-ser-apreendido, de ser
simplesmente vivido ou sentido, que reside a razão de as dimensões não
serem expressas. Também não é lícito afirm ar que o meio é plano ou
perfeitamente superficial, embora não tenha profundidade expressa. Plano,
superfície, profundidade, volume, etc., são tudo características ou confi­
gurações do objecto ou do espaço representado, mas não do meio espacial
meramente possuído e sentido e não objectivamente intencionado que é
imánente a cada vivência de representação.
250

de tipo representativo. Nestas circunstâncias, porém, o «jo g o »


destes dados é inteiramente diferente do que sucede quando
o Eu realiza determinado acto de representação. No primeiro
caso é completamente fortuito, irregular e em grande parte
independente do Eu; no segundo, ao contrário, as qualidades
dos dados das cores, a sua configuração de manchas — se assim
se podem chamar — , a sua seqüência e transformação depen­
dem do respectivo acto intencional e adaptam-se com mais ou
menos exactidão ao seu conteúdo não-intuitivo. Neste caso
— com excepção dos casos patológicos — está no poder do
sujeito da representação ter no seu espaço de representação
precisamente estes ou aqueles dados intuitivos, embora geral­
mente esse sujeito não esteja preparado para fazer salientar
precisamente estes dados e não outros, mas simplesmente rea­
liza determinado acto intencional cuja execução tem por con­
seqüência a correspondente configuração dos dados. Por outras
palavras: os dados encontram-se submetidos à directriz do cor­
respondente acto representativo. Esta directriz, porém, pode
progredir de modos diferentes. Antes de mais, é possível que
a configuração e a seqüência dos dados dependam em grau
menor ou maior de outros factores, aliás muito variados, da
vida psíquica e espiritual e, por conseguinte, se submetam em
graus diferentes à directriz do acto de representação. Por outro
lado, esta directriz ou pode limitar-se simplesmente ao aparecer
e à seqüência de dados qualificados de determinado modo, em
que a intenção do acto representativo passando, por assim dizer,
pelos dados se dirige directamente para o objecto representado,
ou pode também acontecer que os próprios dados represen­
tativos sejam «animados» pelo conteúdo não-intuitivo do acto
de representação, convenientemente ordenados e convertidos num
todo especial objectivo que eventualmente e graças à sua seme­
lhança com o objecto representado o «representa». Este objecto
especial, fundado ôntica e directamente nos dados representa­
tivos e que eventualmente exerce a função de representação,
deve exclusivamente ser chamado «objecto de representação»
em sentido r i g o r o s o E s t e objecto não deve ser confundido
com o objecto intencional que é representado e em que, em
última análise, reside a intenção do acto. Este objecto de repre­
sentação — caso chegue a constituir-se— é uma «parte real»

1 Se bem entendo Hedwig Conrad-Martius, ela tem em vista a situação


aqui um pouco mais exactamente descrita ao falar do tipo I de repre­
sentação. (Cf. Zur Ontologie und Erscheinungslehre der reaten Aussenwelt,
l. c., pp. 364 a 370.)
-aái
imánente e inseparável da vivência respectiva da representação.
Se considerarmos toda a vivência da representação como algo
de psíquico, então esse objecto também é psíquico. Ele é tão
concreto e real como toda a vivência que nem sequer precisa
de ser verdadeiro em relação ao objecto representado. Exercendo
o objecto de representação a função representativa, a intenção
do acto de representação capta-o como representante do objecto
intencional propriamente representado e produz até certo ponto
a semelhança com este. Mas, como já se disse, não é necessário
chegarmos sempre à constituição do objecto de representação.
Nem toda a representação tem o seu objecto de representação l.
Na falta deste último pode, quando muito — embora também
não necessàriamente — , acontecer que os dados representativos
sejam empregados na actualização dos aspectos do objecto
representado e então ficam, neste caso, também sujeitos a uma
correspondente formação e animação: a intenção do momento
intencional contido na vivência da representação dirige-se, neste
caso, directamente para o objecto intencional representado, que
então, por assim dizer, se apresenta com a roupagem de aspecto
actualizado. Chegamos aqui, portanto, a uma apresentação do
respectivo objecto, embora naturalmente não a uma apresen­
tação na percepção que trouxesse o objecto à autodoação em
pessoa2. Esta última espécie de doação é excluída pelo carácter
peculiar e representativo dos dados que aparecem no espaço
da representação. O objecto puramente intencional a que se
dirige o acto da representação, embora «pertença» necessària­
mente a este acto é por essência transcendente a este e sobretudo
a qualquer vivência da consciência.- Isto também não é modi­
ficado pelo facto de o objecto atingir a sua apresentação na
vivência da representação. Como tal, também não pode ser psí­
quico pelo mero facto de a vivência da representação o ser.
Só pode ser psíquico quando o seu conteúdo o é, i. é, quando,
p. ex., representamos um estado psíquico de qualquer pessoa.
Tratando-se, porém, de objectos intencionalmente representados
e de conteúdo diferente não há razão para os considerar como

1 A cada acto de representação pertence, porém, um objecto inten­


cional representado.
2 É esta a razão por que Husserl considera também os actos da
fantasia como «originàriamente doadores». Cf. o seu curso universitário
Introdução à Filosofia de 1922. Durante a minha estadia em Friburgo,
em 1927, o Professor Husserl emprestou-me o manuscrito deste curso
para eu o ler, pelo que exprimo aqui os meus mais vivos agradecimentos
ao meu venerando mestre.
252

psíquicos. Nunca é permitido identificá-los com o objecto da


representação ou até com a representação global. Só a vulga­
rização inteiramente rudimentar de «representação» poderia
induzir a este absurdo.
Menos ainda as objectividades derivadamente intencionais
projectadas pelas significações das palavras ou pelos conteúdos
de sentido das frases devem ser identificadas com «objectos
de representação» e, portanto, com algo que constitui um com­
ponente real das vivências psíquicas concretas. Ipso facto, tam­
bém o espaço apresentado por relações objectivas nada tem a
ver com o espaço da representação.

§ 35. Modos diversos da orientação espacial


das objectividades apresentadas

Voltemos às condições espaciais do mundo objectivo apre­


sentado numa obra literária.
Quando numa obra literária se apresentam coisas, animais
e homens, o espaço que ao mesmo tempo com eles se apresenta
não é o espaço abstracto, geométrico ou físico e homogéneo,
mas sim aquele que corresponde ao espaço dado na percepção.
Neste caso ele deve, por assim dizer, ser exposto através do
meio do espaço de orientação. Devem - empregar-se nisto espe­
cialmente espaços de orientação pertencentes aos sujeitos psí­
quicos apresentados que «percepcionam» este espaço apresen­
tado. Se assim acontece surge o problema da situação do centro
da orientação (do «ponto zèro da orientação», no dizer de Hus­
serl). É indubitável que este «ponto zero» se encontra sempre
situado dentro do mundo apresentado mas é preciso atender
a que ainda são possíveis outros casos. Isto depende do modo
de apresentação. Quando na sua criação o próprio autor «conta»
a «história», e, portanto, como . narrador pertence ao mundo
apresentado na respectiva obra, o centro de orientação reside,
por •assim dizer, no próprio Eu do autor, não real mas sim
enquanto .narrador que se apresenta. Todos os objectos apre­
sentados (coisas, animais e homens) são neste caso apresentados
como se fossem todos vistos (apalpados, ouvidos, etc.) pelo
narrador e relacionados, ao serem vistos, com o seu centro de
orientação K Quando o narrador não faz explicitamente parte

1 Neste caso justifica-se a afirmação de Theodor Lipps a respeito


do «E u ideal do discurso» (Z. c., p. 497).
253

do mundo descrito o centro de orientação pode ser escolhido


de modo a ficar situado dentro do mundo apresentado sem, ao
mesmo tempo, ser transferido para qualquer dos objectos des­
critos, de maneira que todos os objectos apresentados são, por
sua vez, expostos enquanto vistos sob determinada perspectiva
(que por vezes varia no decurso da apresentação). É como se
uma personagem invisível e não explicitamente apresentada
andasse pelo mundo descrito e nos mostrasse os objectos como
ela os vê do seu ponto de vista. Assim, o narrador é também
co-apresentado Podem, porém, surgir ainda òutros casos. Assim,
o centro de orientação pode encontrar-se situado no ponto zero
do Eu de uma personagem e deslocar-se em todos os movimentos
por ela realizados2. Se, neste caso, pretendemos apreender
durante a leitura o mundo apresentado exactamente como ele é
devemos, por assim dizer, transpor-nos ficticiamente para o
centro apresentado de orientação e percorrer in fictione com
a respectiva personagem o espaço apresentado. Uma boa apre­
sentação por si própria obriga-nos a isto. Neste caso devemos,
até certo ponto, esquecer-nos do nosso próprio centro de orien­
tação, pertencente ao mundo da percepção e que nos acompanha
por toda a parte, e, portanto, imaginar-nos num certo afasta­
mento do mundo. Isto seria, naturalmente, impossível no caso
de os objectos apresentados serem «objectos de representação»

1 Acerca de todo este problema encontram-se observações interes­


santes e úteis em Franz Stanzel, Die typischen Erzãhlsituationen im
Roman, dargestellt an Tom Jones, Moby-Dick (...), Viena, 1955. Stanzel
concentra-se, porém, menos no problema do espaço apresentado e do
centro de orientação do que nos modos diversos da narração e da pre­
sença do narrador no romance. Ele distingue três tipos diversos do
romance: o «autoral», o «romance do E u » e o romance «pessoal» e
procura constituir uma tipologia do romance. Em geral posso concordar
com as suas observações, embora eu gostasse de me referir ao «autor»
em vários sentidos. Estudei este problema no ano que precedeu a guerra
para criticar a afirmação então defendida por J. Kleiner de que a toda
a obra de arte literária o autor pertenceria de modo imánente e necessário
e de que, portanto, a investigação literária deveria necessariamente fazer
do autor o ponto de partida dos seus estudos. Aparecem em Stanzel passos
de que se depreende que ele também se inclinaria a distinguir conceitos
diferentes de autor.
2 Pierre Audiat estuda estas situações na obra já citada La biographie
de Vceuvre littéraire (cf. pp. 226 a 229), ignorando aliás o «centro de
orientação» e o «espaço de orientação». Além disso, comete o erro de
tratar todo este problema como questão de estilo lingüístico de uma
obra quando se trata de propriedades do mundo apresentado ou do
modo da sua apresentação, que apenas dependem da estruturação do
estrato das unidades de sentido.
254

no sentido atrás definido e, como tais, o tema do nosso estudo.


Neste caso deveriam apreender-se na percepção interior, em
que o centro da orientação seria necessàriamente o nosso centro
individual.
Sucede com frequência na literatura de romances que na
mesma obra o centro de orientação não reside consequentemente
na mesma personagem mas em varias. Por vezes, o centro de
orientação reside naquela personagem que no respectivo capítulo
da historia apresentada desempenha o papel principal. Neste
caso, o centro de orientação varia de capítulo para capítulo.
Pode, no entanto, também suceder que urna e a mesma situàção
objectiva (ou a fase de urna historia que se está a desenvolver)
em que várias personagens participam é exposta, de certo modo,
«simultáneamente» a partir de diversos centros de orientação.
Quando, neste caso, as respectivas coisas, corpos, etc., não se
apresentam em abreviações perspectivistas concordantes, de
modo que as abreviações perspectivistas singulares pertencentes
aos vários centros de orientação não «condizem», o resultado
é uma falta de unidade no mundo apresentado. Então é impos­
sível identificar as coisas singulares vistas ao mesmo tempo por
várias personagens. Quando o escopo de uma obra é apresentar
um mundo quase-real que é percepcionado exclusivamente por
personagens psiquicamente sãs semelhante falta de unidade
significa um erro no modo da apresentação. Em princípio,
semelhante modo de apresentação não é necessàriamente errado.
Pelo contrário, pode ser visado com plena consciência e servir,
como um meio especial, a estruturação artística e o efeito
estético.
Um caso especial do modo como o centro de orientação
é transposto no mundo apresentado e para onde, é constituído
pela situação que se nos depara num «drama» lido. Quando,
p. ex., lemos no texto secundário de um drama: «À esquerda
encontram-se duas grandes janelas, junto das quais está colocada
uma secretária antiquada e pesada; na frente há uma cadeira...»,
está indicado assim também um centro de orientação ou, pelo
menos, uma direcção onde se deve procurá-lo. Este centro de
orientação é aqui transposto para o respectivo espectador, que,
aliás, realmente não existe na simples leitura de uma obra dra­
mática. Seria também um erro julgar que se trata de um dos
espectadores reais que assistiram à representação eventual do
drama e que só não está determinado qual de entre eles inte­
ressa. Pelo contrário. Como anteriormente o narrador invisível,
assim neste caso o espectador invisível faz parte do mundo
apresentado, só com a diferença de não atingir apresentação
255

explícita. O espaço -em que ele se encontra é o espaço apresen­


tado e de modo algum o sector real do espaço de uma sala de
espectáculos. O facto de um espectador chegar aqui, sem dúvida,
a uma co-apresentação mediata e não explícita não deixa de
exercer influência sobre o restante mundo apresentado. Na ver­
dade, aquilo que nele existe e se passa ganha, devido a este
facto, o carácter de algo representado e interpretado perante
alguém, ainda que nem o texto principal nem o secundário
explicitamente a isso se refiram \
Poderia, porventura, julgar-se que assim chegaríamos, no
modo da apresentação dramática, àquela «concatenação» das
relações objectivas apresentativas de que já falámos e precisa­
mente no sentido de com a relação objectiva «algo é represen­
tado perante o espectador» se concatenarem todas as outras
relações objectivás. Entretanto, esta opinião parece levar-nos
demasiado longe. Na realidade, as relações objectivas apresen-
tativas são aqui meramente enriquecidas com mais uma que,
como todas as restantes, pertence ao estrado objectivo da obra
e cuja existência faz que as objectividades apresentadas por
meio das restantes relações objectivas assümam o carácter
intencional já mencionado de «representadas». O mundo apre­
sentado pretende neste caso, por assim dizer, ser visto. Por
outras palavras: a estrutura especial da obra dramática faz que
todo o drama só alcance pleno valor como «espectáculo» e exija
mesmo na leitura um modo próprio de intuição para uma
comunicação viva com o drama, o que não é exigido no caso
de outras obras literárias. Quando esta exigência tiver plena
realização, i. é, quando o drama for representado, então este
transforma-se num espectáculo e transcende assim o campo das
obras puramente literárias ou constitui um dos seus casos-
-limites2.

§ 36. O tempo apresentado e as perspectivas do tempo

Quando os objectos apresentados são do tipo dos objectivos


reais encontram-se — como já ficou dito — num tempo próprio
e apresentado que deve ser igualmente distinto do tempo

1 Cf. W. Conrad, Bühnenkunst und Drama, Zeitschrift fiir Aesthetik,


vol. VI.
2 Cf. a este respeito o cap. 12 do presente estudo. .
256

«objectivo» do mundo real como do tempo «su b jectivo»1 de


um sujeito consciente absoluto, e isto por diversas razões.
Antes de mais, obriga-nos a esta distinção o facto de os
acontecimentos em que os objectos apresentados participam
serem por essência temporais e, além disso, apresentados como
sucessivos ou simultâneos. Estabelece-se, assim, entre eles uma
ordem temporal. Esta mesma ordem temporal exige que sejam
apresentadas as fases e os momentos singulares do tempo. Fre­
quentemente, porém, estes são intencionalmente projectados
também por elementos correspondentes dos conteúdos de sentido
das frases exactamente do mesmo modo como o são os objectos
existentes nessas fases e momentos temporais. Não há, portanto,
razão alguma para fazermos a este respeito/ qualquer distinção
entre os objectos (coisas, personagens, actos) e o tempo apre­
sentados.
Para obviarmos àquelas tendências que sempre e com insis­
tência procuram psicologizar a obra literária ou qualquer dos
seus estratos acrescentamos ainda o seguinte: seria um erro
fundamental julgar-se que os momentos e as fases do tempo
apresentado são idênticos àqueles momentos temporais em que
o autor escreveu a sua obra ou àqueles em que o respectivo
leitor lê a obra, mesmo quando os acontecimentos apresentados
se passam no «presente». É conhecida a distinção entre 1. o tempo
homogéneo, «vazio», «objectivo», determinado de modo físico-
-matemático, do mundo, 2. o tempo concreto, captável intuiti­
vamente, intersubjectivo, em que todos nós vivemos em conjunto
e 3. o tempo rigorosamente subjectivo2. É evidente qué nas
obras literárias só se apresenta um análogo do tempo concreto,
intersubjectivo ou subjectivo, e não o tempo físico e vazio.
É sabido que tanto o tempo intersubjectivo como o subjectivo
«preenchido» não são rigorosamente homogéneos nas suas fases
singulares nem constituem um meio feito de pontos e vazio que
fosse insensível aos acontecimentos que nele se passam. Cada
um dos muitos momentos presentes que sucessivamente passa­
mos na vida tem o seu colorido próprio e irredutível a qualquer

1 Cf. E. Husserl, Vorlesungen zur Phaenomenologie des inneren Zeit-


bewusstseins (Jahrbuch für Philosophie, vol. IX ).
2 Podemos abstrair aqui da distinção entre o tempo subjectivo cons­
tituído e as formas temporais originárias da «consciência temporal cons­
tituinte» no sentido husserliano. Cf. E. Husserl, Vorlesungen zur Phaeno­
menologie des inneren Zeitbewusstseins (Jahrbuch für Philosophie, vol. IX ).
257

outro, que lhe advém precisamente porque nele algo se passa


de inteiramente determinado e ele próprio se segue a outro
presente já passado, peculiarmente colorido tanto outrora en­
quanto presente como «agora» no seu estatuto de passado e
precede outro «presente» futuro que por enquanto só nos é
acessível na expectativa1. O tempo concreto (intersubjectivo ou
subjectivo) — como M. Bergson já salientou— tem, nas suas
fases diferentes, tempos diferentes que dependem tanto do que
se passa nas fases como das vivências que experimentamos na
percepção dos acontecimentos objectivos e ainda do modo da
vivência. Se na obra literária se apresenta um análogo do
tempo subjectivo ou intersubjectivo as fases singulares têm
igualmente colorido especial, que depende meramente' daquilo
que dentro do mundo apresentado se passou «anteriormente»
e se passa «agora» e especialmente daquilo que é vivido pelas
personagens. Estes coloridos são, naturalmente, diferentes daque­
les que são característicos da fase temporal da vida concreta
do autor na altura da criação da obra ou da fase temporal da
leitura de qualquer leitura. Por isso não se podem identificar
as fases do tempo apresentado com as fases respectivas do
tempo «real» intersubjectivo ou subjectivo.
Mas também pela sua estrutura o tempo apresentado (inter­
subjectivo ou subjectivo) distingue-se, de novo determinado, do
tempo real de forma a constituir apenas um análogo, uma modi­
ficação sua. O presente próprio do tempo real (tanto do intersub­
jectivo como também do subjectivo) tem manifesta prioridade
ôntica sobre o passado «real» e — em grau ainda muito maior —
sobre o respectivo futuro2. Na verdade, tanto o momento pre­
sente como o que realmente existe no momento presente carac­
terizam-se por uma actualidade expressa que não é própria nem
do passado nem do futuro. Esta actualidade não deve, porém,
ser aqui entendida no sentido de uma vivacidade ou insistência
especial, ainda que estes momentos igualmente caracterizem o
presente, mas no sentido do «in actu esse». Em sentido rigoroso,
este « in actu esse» só é próprio do presente e do que presente­
mente é real. Ao mesmo tempo, é essencialmente característico
do ser-real como tal. Nada do tipo da objectividade real pode
existir sem passar pela fase do «in actu esse». Por outro lado,

1 Foi sobretudo H. Bergson quem chamou a atenção para isto.


2 Cf. H. Conrad-Martius, Die Zeit (Philosophischer Anzeiger, vol. II).

17
258

o objecto real só existe dentro da extensão do «in actu esse» 1.


Só daí, a partir da fase do momento presente, é que se deter­
mina o objecto passado e o tempo passado e, noutra direcção,
também o tempo futuro e o objecto futuro: só pode ser pas­
sado aquilo que uma vez na «fase de agora» passou pelo «in actu
esse». E também o objecto futuro e o próprio tempo futuro
só são algo futuro na medida em que uma vez — pelo menos
em princípio— entrarão na «fase de agora» e nela estarão
«in actu» mas ainda não alcançaram este «in actu esse». Tam­
bém não é preciso que em todos os casos o atinjam porque
nem tudo o que é esperado como futuro «se realiza». Pela sua
essência, porém, são algo que tende a realizar-se no «in actu
esse». E ainda outra coisa: se não houvesse nenhuma «fase de
agora» e nenhum autêntico «in actu esse» não haveria nem o
tempo passado (ou as coisas passadas^ nem o futuro (ou as
coisas futuras). É precisamente nisto que consiste a posição
do primado ôntico da presente tanto relativamente ao passado
como ao futuro. Com efeito, quando as objectividades corres­
pondentes, pela sua essência, não podem estar «in actu» em
sentido rigoroso também não há fase alguma de momento pre­
sente nem tão-pouco passado ou futuro: as objectividades cor­
respondentes não estão de modo algum no tempo como, p. ex.,
os objectos ideais individuais, as ideias e as essencialidades.
Os objectos apresentados na obra literária são objectividades
pura e derivadamente intencionais que se distinguem essencial­
mente pelo carácter de dependência ontológica, embora em geral
no seu conteúdo sejam do tipo da objectividade real. A sua
dependência ontológica, que lhes permite apenas simular nos
seus conteúdos o ser real, exige também necessàriamente que
o tempo pertencente ao mundo quase-real apresentado seja
apenas um análogo do tempo real. Naturalmente, é preciso
distinguir também aqui entre o presente, o passado e o futuro,
mas esta distinção resulta da ordem recíproca dos aconteci­
mentos apresentados e não do facto de todos eles passarem
pela fase primordial do autêntico «in actu esse»', é precisamente
isto que não lhes é possível em sentido rigoroso porque de

1 H oje (1960) já não poderia dizer isto tão rudemente. N o livro Der
Streit um die Existenz der Welt, vol. I, ofereci uma análise completa do
tempo concreto como pertencente a um modo especial de ser da realidade
que deveria reputar as descrições feitas aqui como não suficientemente
exactas. Aqui, porém, não posso apresentar estas novas análises, tanto
mais que isto não abalaria a distinção feita entre o tempo pertencente
à realidade e o tempo simplesmente apresentado na obra de arte literária.
259

outra maneira deveriam eles mesmos ser reais. Só um «in actu


esse» simulado, um «presente (e portanto também um passado
e um futuro) fictício são aqui possíveis mas apenas sob a con­
dição de nós durante a leitura da obra, por assim dizer, co-rea-
lizarmos o desenrolar dos acontecimentos apresentados e em­
prestarmos ao que estamos a intuir a aparência da nossa própria
actualidade. Limitado puramente àquilo que a obra literária em
si mesma contém o momento presente apresentado não tem
primado algum de autêntico presente em relação ao passado e
ao futuro apresentados. Por conseguinte, há certa assimilação
de todos os momentos apresentados do tempo uns aos outros,
como acontece de modo semelhante a respeito dos momentos
presentes de outrora do tempo real «já » pertencentes ao pas­
sado. Portanto, não é nenhum acaso que na maioria esmagadora
das obras literárias os acontecimentos e objectos sejam apre­
sentados à luz do passado. Este nivelamento dos momentos
temporais apresentados conserva-se mesmo quando uma «his­
tória» é narrada na forma do presente, só que talvez neste caso
este nivelamento dos momentos temporais apresentados não
atinge tão nitidamente expressão. Reside nisto também a razão
de se escolher a apresentação na forma do presente quando se
pretende impor mais sugestivamente ao leitor o carácter de
realidade do mundo apresentado (cf. o drama).
A diferença entre o tempo apresentado e o real ressaltará
ainda mais nitidamente quando tomarmos em consideração os
modos de apresentação do tempo por relações objectivas pro­
jectadas por frases. O tempo real é um meio contínuo que não
assinala absolutamente nenhuma lacuna. Sem pretendermos aqui
decidir se em princípio seria possível apresentar explicitamente
na obra literária semelhante meio contínuo, devemos observar
que em nenhuma grande obra se chega a semelhante apresen­
tação do tempo. Abstracção feita daqueles casos em que rela­
ções temporais ou momentos temporais singulares ou fases
do tempo são directamente determinados por palavras espe­
ciais (p. ex., palavras como «antes», «mais tarde», «neste
momento», etc.), chegamos à apresentação do tempo através da
explicitação de relações do acontecer que apresentam sucessos
temporalmente distensos. Portanto, primeiramente apresenta-se
em geral aquilo que preenche uma fase do tempo e não a
própria fase temporal correspondente em si mesma. Só a apre­
sentação daquilo que preenche o tempo conduz então à apre­
sentação do tempo assim preenchido. Ora, os acontecimentos
que preenchem o tempo nunca são apresentados em todas as
suas jases, quer seja um só acontecimento formando um todo,
258

o objecto real só existe dentro da extensão do «in actu esse» *.


Só daí, a partir da fase do momento presente, é que se deter­
mina o objecto passado e o tempo passado e, noutra direcção,
também o tempo futuro e o objecto futuro: só pode ser pas­
sado aquilo que uma vez na «fase de agora» passou pelo «in actu
esse». E também o objecto futuro e o próprio tempo futuro
só são algo futuro na medida em que uma vez — pelo menos
em princípio — entrarão na «fase de agora» e nela estarão
«in actu» mas ainda não alcançaram este «in actu esse». Tam­
bém não é preciso que em todos os casos o atinjam porque
nem tudo o que é esperado como futuro «se realiza». Pela sua
essência, porém, são algo que tende a realizar-se no «in actu
esse». E ainda outra coisa: se não houvesse nenhuma «fase de
agora» e nenhum autêntico «in actu esse» não haveria nem o
tempo passado (ou as coisas passadas) nem o futuro (ou as
coisas futuras). É precisamente nisto que consiste a posição
do primado ôntico do presente tanto relativamente ao passado
como ao futuro. Com efeito, quando as objectividades corres­
pondentes, pela sua essência, não podem estar «in actu» em
sentido rigoroso também não há fase alguma de momento pre­
sente nem tão-pouco passado ou futuro: as objectividades cor­
respondentes não estão de modo algum no tempo como, p. ex.,
os objectos ideais individuais, as ideias e as essencialidades.
Os objectos apresentados na obra literária são objectividades
pura e derivadamente intencionais que se distinguem essencial­
mente pelo carácter de dependência ontológica, embora em geral
no seu conteúdo sejam do tipo da objectividade real. A sua
dependência ontológica, que lhes permite apenas simular nos
seus conteúdos o ser real, exige também necessàriamente que
o tempo pertencente ao mundo quase-real apresentado seja
apenas um análogo do tempo real. Naturalmente, é preciso
distinguir também aqui entre o presente, o passado e o futuro,
mas esta distinção resulta da ordem recíproca dos aconteci­
mentos apresentados e não do facto de todos eles passarem
pela fase primordial do autêntico «in actu esse»’, é precisamente
isto que não lhes é possível em sentido rigoroso porque de

1 H oje (1960) já não poderia dizer isto tão rudemente. No livro Der
Streit um die Existenz der Welt, vol. I, ofereci uma análise completa do
tempo concreto como pertencente a um modo especial de ser da realidade
que deveria reputar as descrições feitas aqui como não suficientemente
exactas. Aqui, porém, não posso apresentar estas novas análises, tanto
mais que isto não abalaria a distinção feita entre o tempo pertencente
à realidade e o tempo simplesmente apresentado na obra de arte literária.
259

outra maneira deveriam eles mesmos ser reais. Só um « in actu


esse» simulado, um «presente (e portanto também um passado
e um futuro) fictício são aqui possíveis mas apenas sob a con­
dição de nós durante a leitura da obra, por assim dizer, co-rea-
lizarmos o desenrolar dos acontecimentos apresentados e em­
prestarmos ao que estamos a intuir a aparência da nossa própria
actualidade. Limitado puramente àquilo que a obra literária em
si mesma contém o momento presente apresentado não tem
primado algum de autêntico presente em relação ao passado e
ao 'futuro apresentados. Por conseguinte, há certa assimilação
de todos os momentos apresentados do tempo uns aos outros,
como acontece de modo semelhante a respeito dos momentos
presentes de outrora do tempo real «já » pertencentes ao pas­
sado. Portanto, não é nenhum acaso que na maioria esmagadora
das obras literárias os acontecimentos e objectos sejam apre­
sentados à luz do passado. Este nivelamento dos momentos
temporais apresentados conserva-se mesmo quando uma «his­
tória» é narrada na forma do presente, só que talvez neste caso
este nivelamento dos momentos temporais apresentados não
atinge tão nitidamente expressão. Reside nisto também a razão
de se escolher a apresentação na forma do presente quando se
pretende impor mais sugestivamente ao leitor o carácter de
realidade do mundo apresentado (cf. o drama).
A diferença entre o tempo apresentado e o real ressaltará
ainda mais nitidamente quando tomarmos em consideração os
modos de apresentação do tempo por relações objectivas pro­
jectadas por frases. O tempo real é um meio contínuo que não
assinala absolutamente nenhuma lacuna. Sem pretendermos aqui
decidir se em princípio seria possível apresentar explicitamente
na obra literária semelhante meio contínuo, devemos observar
que em nenhuma grande obra se chega a semelhante apresen­
tação do tempo. Abstracção feita daqueles casos em que rela­
ções temporais ou momentos temporais singulares ou fases
do tempo são directamente determinados por palavras espe­
ciais (p. ex., palavras como «antes», «mais tarde», «neste
momento», etc.), chegamos à apresentação do tempo através da
explicitação de relações do acontecer que apresentam sucessos
temporalmente distensos. Portanto, primeiramente apresenta-se
em geral aquilo que preenche uma fase do tempo e não a
própria fase temporal correspondente em si mesma. Só a apre­
sentação daquilo que preenche o tempo conduz então à apre­
sentação do tempo assim preenchido. Ora, os acontecimentos
que preenchem o tempo nunca são apresentados em todas as
suas fases, quer seja um só acontecimento formando um todo,
260

quer uma multiplicidade de acontecimentos sucessivos. Nem uma


frase singular isolada nem uma multiplicidade de frases conexas
conseguem explicitar relações objectivas que possam realizar
essa operação. São sempre apresentadas apenas fases singulares
mais ou menos longas ou até só acontecimentos momentâneos,
mas o acontecer que tem lugar entre estas fases ou aconteci­
mentos fica indeterminado. Apresentam-se sempre — no dizer
de Bergson— apenas «recortes» singulares da «realidade» a
apresentar mas jamais apresentável na sua continuidade fluente.
A razão disto reside precisamente no facto de o mundo apre­
sentado ter a origem do seu ser e modo de ser simplesmente
num número finito de frases *. Por conseguinte, as fases tem­
porais apresentadas nunca se integram numa totalidade una e
contínua. E se a leitura da obra não nos oferece lacunas no
tempo apresentado e nós geralmente somos inclinados a supor
como apenas desconhecidos para nós determinados acontecimen­
tos que o autor não relata, de modo que também as fases tem­
porais correspondentes são consideradas como existentes mas
«apenas» não apresentadas 2, assim acontece sobretudo por uma
razão análoga àquela a que nos referimos ao tratar da apre­
sentação do espaço3: como o espaço, também o tempo — na sua
essência— não sofre qualquer solução de continuidade. Onde
quer que uma fase do tempo se apresente aparece como uma
fase que se prolonga imediata e continuamente nas duas direc­
ções do tempo, passado e futuro. Quando se apresentam duas
fases temporais «separadas» das quais uma é «anterior» e a
outra «posterior» acontece que, precisamente graças à impossi­
bilidade da solução de continuidade temporal, também todo o
lapso de tempo entre estas duas fases é posto pelo leitor como
existente: as lacunas do tempo correspondentes às fases tem­
porais não explicitamente apresentadas desaparecem da nossa
vista. Apesar disso, estas soluções de continuidade existem
quando rigorosamente nos cingimos àquilo que é explicitamente
apresentado na obra literária. E embora a sua existência até
certo ponto fique oculta pelo co-apresentado, graças à impos­

1 Referimo-nos a isto já ao analisarmos a constituição de uma «rede»


de relações objectivas conexas (cf. § 23.°). Se Bergson tivesse em mente
apenas isto ao afirm ar a incapacidade da intuição intelectual para apreen­
der a realidade concreta e fluente teria plenamente razão.
2 Cf., p. ex., os Buddenbrooks de Thomas Mann.
3 Isto tem ainda outras razões especiais que se relacionam com as
condições da leitura de uma obra e com as particularidades da sua con­
cretização. Mais adiante entraremos em pormenores. Cf. cap. 13.
261

sibilidade da solução de continuidade temporal, não deixa de


se reconhecer que nas fases temporais simplesmente co-apresen-
tadas se trata de fases «vazias» qualitativamente não coloridas
pelos objectos que preenchem o tempo. O seu colorido quali­
tativo fica indeterminado, é quando muito intencionado como
algo, em nítido contraste com aquelas fases que são explicita­
mente apresentadas. Deparamos aqui, pela segunda vez, com
um caso particularmente curioso das objectividades apresenta­
das, de que mais pormenorizadamente trataremos no § 39.°
Se a característica agora referida do tempo apresentado faz
lembrar uma situação análoga do espaço, esta analogia pode
também dar-se noutra direcção. Assim como na exposição do
espaço existe sempre um centro de orientação que pode ser
transposto de modos diversos para o mundo apresentado, há
pontos-zero de orientação e perspectivas análogas no tempo
apresentado No tempo realmente vivido o presente respectivo
é ponto-zero original da orientação da perspectiva do tempo,
ponto-zero esse que — à semelhança do centro de orientação
espacial numa viagem de com boio— é concebido em deslocação
constante, que por essência nunca pode parar e progride cons­
tantemente numa e a mesma direcção. Este deslocamento anda
necessariamente aliado a uma constante mudança da perspectiva
particular do tempo, em que as vivências passadas ou os acon­
tecimentos externos nos aparecem numa retenção imediata ou
recordação2. Como Husserl com razão observa, há aqui um
análogo das abreviações perspectivistas do espaço: quanto mais
«remotamente» um acontecimento ou um lapso de tempo se
situam no passado tanto mais «breves» nos parecem ser na
recordação desde que nos instalemos apenas no presente res­
pectivo e a partir dele olhemos retrospectivamente o passado.
Podemos, de certo modo, transferir-nos regressivamente para
determinado momento passado e a partir daí recordar de novo
e progressivamente o acontecimento (ou a vivência) passado;
neste caso, o abreviamento perspectivista do tempo a que nos
referimos desaparece. Nunca podemos abandonar realmente o
nosso momento presente actual. Ainda que nos tenhamos trans­

1 Também a respeito do tempo realmente vivido E. Husserl fala de


«perspectivas do tempo». Cf. Vorlesungen zur Phaenomenologie des inneren
Zeitbewusstseins, Jahrbuch für Philosophie, vol. IX. A estes pontos-zero
da orientação Kaete H am burger chama agora «Eu-origem».
2 A respeito do conceito de retenção e de recordação, cf. ib., pp. 390
e segs.
262

ferido intencionalmente para um «agora» passado continuamos


a avançar cada vez mais no presente sempre novo e afastamo-nos
realmente do acontecimento de outrora que «agora» na recor­
dação apreendemos. Este aumentar progressivo da distância
temporal desaparece da nossa consciência numa recordação
deste género: a perspectiva do tempo modificou-se essencial­
mente na transposição intencional para o passado.
Levar-nos-ia muito longe explicar aqui tudo isto pormeno­
rizadamente e considerar as diversas possibilidades existentes.
Interessa-nos aqui apenas que fenómenos análogos também
sejam possíveis no tempo subjectivo apresentado e muitas vezes
cheguem a apresentar-se. Ao mesmo tempo, porém, são possíveis
modificações diversas neste tempo que são excluídas do tempo
realmente vivido. Essas modificações estão em parte ligadas ao
facto de o presente apresentado não ocupar qualquer posição
de primado ôntico em relação ao passado e ao futuro. Quando,
por conseguinte, uma personagem intencionalmente se transpõe
em determinado momento do tempo apresentado para o passado
(quando, p. ex., se recorda de alguma coisa ou conta alguma
história a um amigo), esta transposição é conseguida num grau
muito superior ao que seria possível na recordação real duma
pessoa real. No caso alegado a personagem pode, por assim
dizer, abandonar o seu presente actual. Desta maneira quase
obtemos a apresentação dos acontecimentos «passados» como
se houvesse outro presente: o acontecimento «passado», «já não»
existente — apesar das referências correspondentes do texto que
pretendem obter este efeito — , não é separado do actualmente
presente pelo mesmo abismo que aparece no realmente existente.
Relaciona-se com isto também o facto de um e o -mesmo acon­
tecimento poder ser, de certo modo, apresentado simultánea­
mente sob dois pontos de vista diversos da orientação temporal.
Quando, p. ex., se relata uma série de acontecimentos como
se eles acontecessem «agora» — e numa continuidade de mo­
mentos presentes — e então repentinamente se projecta, por
assim dizer, uma luz de um momento temporal «muito poste­
rior» sobre o que precisamente agora acontece, de modo que
isto assume imediatamente ç> aspecto do «há muito passado»
e recordado num momento muito posterior do tempo, estamos
assim perante um fenómeno de orientação dupla no tempo que
só é possível no mundo apresentado. Sobretudo nos romances
aparece muitas vezes esta dupla perspectiva temporal (ou se
quisermos, consideração temporal). Veja-se, p. ex., o método
263

narrativo de Joseph Conrad (v. gr. em N ostrom ó) ou de Bernanos


na segunda parte de Sous le soleil de satan K
Outra série de perspectivas temporais diferentes se inicia
quando a perspectiva da «simultaneidade» no respectivo mo­
mento presente é revelada pelo modo de apresentação. O exem­
plo atrás citado (tirado de F. Strich) dos textos de Kleist e de
Novalis pode esclarecer o problema de que se trata. Em Kleist
esta perspectiva é originada pela particularidade da construção
da frase. Mas pode também chegar a transparecer através do
facto de a narração — quando se trata de romance — ser con­
duzida, por assim dizer, por «vias múltiplas» na medida em
que somos informados sobre os diversos acontecimentos, que
são «simultâneos», sucessivamente mas de tal modo que a sua
simultaneidade é claramente apresentada. Quando, porém, de
toda a plenitude dos acontecimentos simultâneos só é apresen­
tada uma linha de sucessos, acontecimentos e acções a pers­
pectiva da simultaneidade fica reduzida: obtemos apenas um
contínuo unidimensional de acontecimentos numa perspectiva
temporal orientada somente em dois sentidos, o do passado e
o do futuro.
Queremos também referir-nos aqui ainda a outro modo de
apresentação dos acontecimentos temporais que também implica
uma modificação especial do tempo apresentado. Esse modo
de apresentação aparece sobretudo nos romances. Tomando
como exemplo os Buddenbrooks, de Thomas Mann, notamos
que no decurso de toda a extensa narração dois tipos diversos
de modos narrativos e apresentativos nitidamente se distinguem:
por um lado, temos «relatos» breves sobre os destinos da família
Buddenbrook dentro de períodos temporais mais longos, por
vezes dentro de anos inteiros. Por outro lado, acontecimentos
especiais de duração temporal relativamente breve são descritos
minuciosamente fase por fase, com todos os pormenores possí­
veis e apresentados em sentido especial (veja-se, p. ex., a eleição
de Thomas Buddenbrook para senador). Enquanto no primeiro
caso apenas as linhas gerais de um desenvolvimento mais extenso
são sumàriamente traçadas e só aqui e ali acontecimentos mais

1 Contudo, não pertencem aos fenómenos da perspectiva dupla do


tempo os casos em que numa parte «posterior» da obra se apresenta
algo que deve ter sucedido antes dos acontecimentos descritos nos capí­
tulos anteriores. O apresentado como tal não alcança deste modo uma
perspectiva temporal diferente ou outra ordem temporal, mas sucede
neste caso simplesmente uma determinada ordenação das próprias frases
ou da apresentação. Desta ocupar-nos-emos a seguir (cf. cap. 11).
264

importantes, como momentos críticos, são brevemente mencio­


nados, no segundo caso, um período, uma cena, uma situação
são lentamente desenvolvidos e postos à vista na plenitude da
sua totalidade concreta e em todo o seu decurso concreto. Assim,'
aparece o tempo apresentado também com duas modificações
diferentes. No primeiro caso passa depressa e quase não se
sente no seu colorido concreto; semanas, meses e anos passam
por nós numa concentração peculiar como intervalos de certo
modo quase vazios, só aqui e além coloridos por um aconteci­
mento que surge à maneira de um ponto e preenchidos por vida
concreta, sem que pudéssemos apreender o tempo decorrido em
toda a sua continuidade e revivê-lo fase por fase. Aqui o tempo
reduz-se quase a um esqueleto vazio que meramente nos possi­
bilita a orientação na ordenação «temporal dos acontecimentos
referidos. Só quando uma cena é «posta à vista» na sua con­
creta plenitude e na sua plena extensão temporal nos encontramos
outra vez diante do tempo apresentado e qualitativamente
determinado. Ou por outras palavras: só neste caso as fases
concretas do tempo são apresentadas e eventualmente «postas
à vista» na sua individualidade. Nos outros casos, porém, o
tempo é apresentado apenas na sua estrutura geral como tempo
— ou como fase temporal em determinada situação dentro do
contínuo do tempo — mas não como indivíduo pura e simples­
mente na sua individualidade. É certo que neste caso também
é intencionado como algo de individual, mas não é positivamente
determinado por aqueles momentos puramente individuais que
o tempo como algo de individual deveria ter. Estes ficam aqui
indeterminados precisamente porque são intencionalmente visa­
dos apenas como quaisquer.
Deparamos aqui outra vez com algo que só é possível no
tempo apresentado mas não no tempo real e obtemos assim
outro argumento a favor da diversidade dos dois tempos. Andam
aliados ã estes dois tipos diversos de modos apresentativos do
tempo ou do próprio tempo apresentado dois tipos diversos
de perspectiva temporal. No modo narrativo meramente «in for­
m ativo» os períodos do tempo nele apresentados são sempre
concebidos como passados a partir de um momento temporal
«posterior», aliás indeterminado. Aparece claramente uma carac­
terística distância no tempo. Em contrapartida, o tempo apre­
sentado na sua pura individualidade e em todas as fases do
seu decurso pode, sem dúvida, ser captado como passado mas
aparece numa proximidade particular: o ponto-zero da orientação
temporal é, neste caso, transposto para aquele momento passado
do tempo em que a cena a apresentar se inicia e desloca-se a
265

seguir continuamente com o desenrolar dos acontecimentos no


correspondente período do contínuo temporal até ao momento
«fin al» desta cena. Assim, as fases temporais passadas tornam-se
«presentes» de um modo peculiar — uma após outra— como
se nós, os leitores, fôssemos testemunhas dos respectivos acon­
tecimentos e vivêssemos «então» — mais exactamente no «agora»
de «então». Quando o todo é projectado no modo do presente
temos então um modo especial de apresentação característico
das obras «dramáticas».
As considerações aqui expendidas não esgotam, naturalmente,
as situações muito variadas e complexas possíveis no tempo
apresentado e nos seus modos apresentativos. Como análises
exemplificativas e provisórias podem, pois, constituir o ponto
de partida de estudos ulteriores. São inteiramente capazes de
nos convencer de que algo como o tempo apresentado existe
no estrato objectivo da obra literária e desempenha função
significativa na estruturação da obra *.

§ 37. A função de reprodução e de representação


dos objectos apresentados

É freqüente ouvir-se afirmar que a obra de arte literária


é ou deve ser uma «apresentação» da vida ou da realidade.
O que se passa realmente? Antes de mais, é claro que esta
expressão não se refere à totalidade da obra literária mas sim­
plesmente ao seu estrato objectivo. Por outro lado, ao falar da
«apresentação» da vida trata-se evidentemente de algo inteira­
mente diferente da apresentação de objectos por relações objec­
tivas que investigámos. Só a definição exacta do sentido desta
expressão nos permitirá decidir se a «apresentação» da reali­
dade, no sentido ainda por definir, deve existir em cada uma
das obras literárias.

1 Seria, p. ex., possível — ao que me parece— mostrar a partir da


análise do tempo apresentado as diferenças essenciais entre a autêntica
poesia lírica, épica e dramática, embora, naturalmente, a diferença destes
géneros literários de modo algum a isto se reduza. Quanto a poemas
puramente líricos julgo ter demonstrado no meu livro Do Conhecimento
da Obra Literária, 1937 (em língua polaca), e no estudo Sobre a Chamada
Verdade na Obra Literária, 1938 (em língua polaca), que o fenómeno do
tempo neles se limita ao presente vivido e preenchido, nomeadamente
quando o passado na forma de recordação faz parte deste presente e o
co-determina de modo particular.
266

Procurando um caso em que as objectividades apresentadas


na obra literária possam considerar-se uma «apresentação» de
algo deparamos sobretudo com os chamados romances e dramas
«históricos», p. ex., Wallensteins Tod, de Schiller, ou os dramas
«históricos» de Shakespeare. Em todos estes casos «trata-se»
— como se costuma dizer — , em parte, de pessoas e aconteci­
mentos que são conhecidos do leitor pela história como perso­
nalidades e acontecimentos que efectivamente já existiram. Este
«trata-se de» tem, porém, um sentido especial. É que se esta
expressão significasse «alguma coisa é intencionada na frase»,
então deveria «tratar-se» numa obra literária sempre e apenas
das objectividades apresentadas na nossa acepção. Estas, porém
— segundo as nossas análises — , são sempre distintas das pes­
soas (coisas, acontecimentos) reais outrora realmente existentes.
E, todavia, em obras literárias e «históricas» «trata-se» — noutro
sentido — das objectividades reais outrora existentes. Com efeito,
as personagens que «aparecem» nas obras literárias não só têm
nomes, p. ex., como «C. J. César», «Wallenstein», «Ricardo II»,
etc., mas devem, em certo sentido, «ser» também estas perso­
nagens outrora assim chamadas e realmente existentes. Por
outras palavras, apesar de em princípio serem distintas destas,
elas devem no seu conteúdo ser de tal modo determinadas que
— se é permitido exprimir-se assim— poderiam «representar»
as personalidades reais, «im itar» o seu carácter, as suas acções,
as suas situações na vida e proceder «inteiramente como elas».
Devem, portanto, ser em primeiro lugar «reproduções» das pes­
soas (coisas, acontecimentos) outrora existentes e activas, mas
ao mesmo tempo devem representar aquilo que reproduzem.
Se fossem meras cópias, então não só se destacariam nitidamente
daquilo que é reproduzido mas deveriam em relação ao «o ri­
ginal», ao «m odelo», ao que é o próprio objecto em questão,
reduzir-se ao papel de «mera imagem», portanto ao papel de
algo que não é o copiado em si mesmo e também não ocupa
o mesmo lugar ôntico que o modelo, mas comparado com ele
é apenas uma «aparência»'. As «figuras» literárias em obras
«histórico»-literárias, pelo contrário, devem ser alguma coisa
mais: devem — como acabámos de d izer— «representar» o
modelo, i. é, devem reproduzi-lo tão perfeitamente que, pelo
menos até certo ponto, se esqueça que são «meras reproduções»
e não o próprio reproduzido. Procuram — como no § 25.° dis­
semos2— «encarnar», «tornar presente» em si mesmo o modelo

1 Como acontece, p. ex., numa «fotografia».


: Cf. atrás, pp. 192 e segs.
267

(i. é, as objectividades outrora realmente existentes). TJraças às


características intencionais correspondentes — que têm o seu
fundamento ontológico no tipo determinado das afirmações
quase-judicativas — elas devem ocultar na medida do possível
não só a sua própria essência como conteúdos de objectividades
puramente intencionais mas também a sua dependência fáctica
em relação ao modelo e assim expor somente aquilo em que se
aproximam do modelo e — como se d iz — o «representam».
No caso de se conseguirem ocultar as particularidades da repro­
dução como tal, então as objectividades representativas encobrem
o reproduzido, substituem-no e pretendem, por assim dizer, ser
em si mesmas o que auténticamente não são.
«Representar» é, portanto, também «dar a conhecer» algo,
mas é radicalmente distinto de «apresentar» o objecto por meio
das respectivas relações objectivas. É um «dar a conhecer» algo
diferente do elemento representante, em que o representante
«im ita» o representado, oculta-se a si mesmo como representante
para se mostrar ao mesmo tempo como o pretensamente repre­
sentado e assim trazer, por assim dizer, da distância o outro
que de facto apenas representa e deixá-lo a ele mesmo falar na
sua própria figura. É uma «apresentação» em que o apresentante
é inautênticamente o apresentado e simula ao mesmo tempo a
autenticidade do «ser-original». Deste modo, o apresentado apa­
rece directamente perante o olhar do observador (desde que
este dé crédito a esta autenticidade apenas simulada), embora
ele de facto não lhe esteja presente na sua essência real.
Outra coisa ainda: a função de representação funda-se aqui
na de reprodução dos objectos apresentados (no sentido ante­
riormente por nós definido). É, por conseguinte, neste aspecto
radicalmente diferente da função apresentativa das relações
objectivas. Enquanto as relações objectivas não são quaisquer
«imagens» dos objectos apresentados mas apenas os «revelam»
na medida em que são precisamente as relações objectivas exis­
tentes nos objectos correspondentes, os objectos que «apresen­
tam» no sentido de «representar» são imagens do representado
devidas à semelhança existente entre eles.
Acontece, portanto, com as obras «histórico-literárias» pre­
cisamente o contrário do que sucede numa obra histórico-cien-
tífica. Enquanto nesta as objectividades puramente intencionais,
pelo seu conteúdo, se adequam aos objectos reais correspon­
dentes, se identificam com eles e se tornam assim — como já
nos exprimimos— completamente «transparentes» de modo que
as intenções das significações atingem o real directamente em
268

si mesmo e desaparece do campo visual o que é puramente


intencional, ñas obras histórico-literárias, pelo contrário, o objecto
puramente intencional como pretensamente «real» passa para o
primeiro plano e procura, por assim dizer, ocultar o objecto
real correspondente representado ao fazer-se passar por ele.
Depende, naturalmente, da maneira como se concebe a obra
o facto de realmente se apreender a função de representação
exercida pelas objectividades apresentadas. Quando, porém, a
concepção da obra por parte do leitor se adequa à essência
própria da obra, então, apesar da tendência do objecto repre­
sentante para fazer as vezes do representado e se fazer tomar
por este, nunca se chega a um encobrimento perfeito do objecto
representado. Continua sempre a relação ao representado e
aquilo que se faz passar por outro objecto é sempre co-apreen-
dido na sua inautenticidade, no seu «representar simplesmente
o outro», desde que, naturalmente, o leitor não considere (erra­
damente) as afirmações quase-judicativas como juízos autênticos
e não faça de uma obra de literatura uma reportagem ou uma
obra científica.
É indubitável que as objectividades apresentadas não exer­
cem em todas as obras literárias a função de reprodução e de
representação. A afirmação contrária só é correcta quando se
dá outro significado ao termo «apresentação». Em geral, pensa-se
neste caso que as objectividades apresentadas são, pelo seu
conteúdo e em qualquer aspecto, semelhantes a determinados
objectos reais conhecidos do autor ou do leitor 1 por experiência.
Essa semelhança é frequentemente interpretada pelo leitor no
sentido de uma função de reprodução. É que o leitor empreende
muitas vezes a leitura de uma obra na expectativa de que o
autor lhe «conte» algo de interessante da zona da sua experiência.
Muitas vezes procura, também, encontrar na obra literária
objectividades e situações que sejam semelhantes às que na sua
própria vida conheceu e considera a obra «verdadeira» quando
efectivamente nela encontra objectividades deste género. Ao in­
verso, a tendência ingênua do leitor para julgar a obra desde
o ponto de vista da «verdade» ou «não-verdade» 2 leva também
a atribuir ao estrato objectivo a função de reprodução e even­

1 Sobre a diferença entre «ser-semelhante» e «ser-imagem», cf. E. Hus­


serl, Logischen Untersuchungen, vol. II, Investigação VI.
2 Mais tarde veremos se e em que sentido, apesar da modificação
quase-judicativa das frases afirmativas, é possível falar-se, numa obra de
arte literária, de «verdade» ou «não-verdade». Cf. cap. 10.
269

tualmente também de representação. Todos estes casos, porém,


são condicionados por uma leitura inadequada e pouco têm a
ver com a própria estruturação real das respectivas obras.

§ 38. Os pontos de indeterminação das objectividades


apresentadas

É esta a altura para tratarmos de uma propriedade essencial


das objectividades apresentadas que as distingue radicalmente
dos objectos reais. Ao falar do espaço e do tempo apresentados
deparamos já com dois casos especiais. Esta propriedade res­
salta com particular nitidez quando as objectividades apresen­
tadas pertencem, pelo seu conteúdo, ao. tipo de objectos reais
e resulta do facto de estas objectividades serem projectadas
por uma quantidade finita de unidades de significação de grau
diferente.
À essência de cada objecto real pertencem, entre outras, as
seguintes notas: 1.a Cada objecto real é total (i. é, em todos
os aspectos) e unívocamente determinado. Este ser-determinado
total e unívoco significa que no seu modo de ser global o
objecto real não manifesta nenhum ponto em que não esteja
em si mesmo absolutamente determinado quer por A, quer por
não-A e isto de tal modo que sendo A em certo aspecto a sua
determinação ele não pode ao mesmo tempo e sob o mesmo
aspecto ser não-A. Ou, por outras palavras mais breves: no seu
modo de ser não assinala qualquer ponto de indeterminação.
Isto faz parte da essência inteligível do objecto real, de sorte
que seria absurdo afirmar o contrário. 2.a Todas as determi­
nações do objecto real formam conjuntamente uma unidade
concreta original. Só quando são discriminadas umas das outras
por um sujeito cognoscente e apreendidas em si mesmas são
separadas intencionalmente da sua concreção original e cons­
tituem então uma multiplicidade infinita, i. é, inesgotável. A série
das operações cognoscitivas em que as determinações singulares
de um e o mesmo objecto real são apreendidas sucessivamente
é por essência ilimitada: por muitas que sejam as determinações
do respectivo objecto captadas até determinado ponto conti­
nuam sempre por apreender ainda outras determinações. Por
conseguinte, nunca podemos saber por um conhecimento origi­
nário realizado numa multiplicidade finita de actos como é que
determinado objecto é constituído sob todos os «aspectos; uma
maioria considerável das suas qualidades fica-nos sempre oculta.
Isto, porém, não significa que o objecto em si mesmo não seja
270

total e unívocamente determinado, mas só que por este género


de conhecimento obtido pela apreensão das suas determinações
singulares o objecto por essência apenas inadequadamente pode
ser concebido numa série finita de operações cognoscitivas.
3.;l Cada objecto real é absolutamente individual, i. é, se urna
determinação A lhe pertence esta tem de ser individual. Isto
tem dois significados: I) Não se exclui certamente que lhe adve­
nha uma determinação B que por sua essência seja concretização
de uma essencialidade ideal, geral e «universal»; mas se B advém
a um objecto real então a respectiva essencialidade tem de ser
«individuada». Para exemplificar: se um objecto real é «colo­
rido», este seu «ser-colorido» é de tal modo que objectos reais
em quantidade ilimitada podem ser «coloridos». A essencialidade
«co r» é em si mesma uma essencialidade genérica e geral, mas
no objecto real individual só existe — como Husserl diria — a
sua «individuação». II) Nenhum objecto real pode conter em si
uma tal determinação «geral» (individuada) sem que, ao mesmo
tempo, uma das diferenças ínfimas (das «singularidades eidéti-
cas», na acepção de Husserl) do respectivo «género» nele se
concretize. Para exemplificar: se determinado objecto real é
«colorido» em determinado tempo também a qualidade da cor
é unívocamente determinada e não mais passível de diferen­
ciação. Está, portanto, essencialmente excluído que um objecto
real seja «colorido» mas nem seja «vermelho» num cambiante
bem determinado nem «amarelo» (igualmente num cambiante
bem determinado) nem de qualquer outra cor. Isto diz respeito
a qualquer determinação geral que em dado momento do tempo
lhe advenha K
A situação é essencialmente diferente em todos os três
aspectos indicados quando se trata de objectividades apresen­
tadas nas obras literárias e sobretudo de todas as objectividades

1 Se tanto insistimos aqui neste ponto não é só para revelar o con­


traste entre as objectividades reais e as apresentadas, mas também porque
em várias obras filosóficas contemporâneas de tendência idealista se
afirma o contrário a respeito das objectividades reais e abre-se eo ipso
o caminho para a redução dos objectos reais a objectividades puramente
intencionais (cf. E. Husserl, Ideen, p. 49). Se a «posição» existencial de
um objecto real assim estruturado é absolutamente fundada é uma questão
da teoria do conhecimento; a sua solução, porém, pressupõe a decisão
ontológico-formal sobre a estrutura formal da objectividade real. Só no
sentido de uma afirmação ontológico-formal se devem entender as nossas
averiguações precedentes. Cf. a este respeito as minhas observações em
Bemerkungen zum Problem Ideálismus-Realismus na homenagem a E. Hus­
serl, Halle, 1929.
271

puramente intencionais. Esta diferença diz respeito simples­


mente ao seu conteúdo. Na obra literária as objectividades são
intencionalmente projectadas de dois modos: por expressões
nominais e por frases inteiras, desenvolvendo estas últimas de­
terminadas relações objectivas em que as objectividades são
apresentadas e constituídas. O acabamento de cada relação
objectiva leva — como atrás demonstrámos — à constituição de
uma determinação absoluta ou relativa do objecto-sujeito ou
das objectividades que participam da respectiva relação objec­
tiva. Se as determinações das objectividades apresentadas tives­
sem o seu fundamento constitutivo meramente nas relações
objectivas concluídas o seu número deveria ser igualmente finito
em todas as obras literárias que contivessem um número finito
de frases \ Entretanto, as objectividades apresentadas também
são projectadas pelas expressões nominais que aparecem nas
frases. Por conseguinte, parece ser possível que a essas objec­
tividades advenha, pelo seu conteúdo, uma multiplicidade infinita
de determinações. Isto é tanto mais provável quanto é certo
que as expressões nominais, em virtude do seu conteúdo formal,
projectam os objectos como unidades originais. E não há dúvida
de que a forma dos objectos nominalmente projectados é a de
uma unidade original e concreta que em si contém potencial­
mente uma multiplicidade infinita de determinações de modos
de ser. Esta forma, porém, é nas objectividades apresentadas
apenas um esquema que — à diferença da forma dos objectos
reais ou, de modo mais geral, dos objectos ontològicamente
autónomos — nunca pode ser plenamente preenchido por deter­
minações materiais. É que nas expressões nominais simples
como, p. ex., «mesa», «homem», etc., o objecto intencional res­
pectivo é explícita e actualmente projectado, no que toca ao seu
revestimento material, apenas num momento da sua natureza
constitutiva, de sorte que, p. ex., as determinações materiais
indispensáveis ao ser-humano só implícita e potencialmente são
co-intencionadas. Se um objecto individual é chamado «homem»
e nesta denominação é projectado e determinado materialmente
como tal, com isto ainda não ficam determinadas positiva e
unívocamente todas as suas qualidades (infinitas na sua quan­
tidade). A maioria delas é co-intencionada pelo estado potencial
da significação nominal da palavra apenas como algo destacado

1 Toda a obra literária de facto existente contém apenas uma quan­


tidade finita de frases. Não queremos investigar aqui se isto é necessà­
riamente essencial.
272

do círculo dos casos possíveis de um tipo definido de determi­


nações, mas ao mesmo tempo não é unívocamente revelada na
sua quididade. Por isso essas qualidades não existem de modo
algum na sua quididade concreta no respectivo objecto pura­
mente intencional. E precisamente porque este objecto é inten­
cionado ao mesmo tempo formalmente como uma unidade con­
creta que em si contém determinações em quantidade infinita
e mutuamente entrelaçadas, e precisamente deste modo é, como
tal, intencionalmente criado, nascem nele «pontos de indetermi­
nação» e em quantidade infinita. Estes pontos de indeterminação,
em princípio, não podem ser inteiramente eliminados por qual­
quer enriquecimento finito do conteúdo de uma expressão nomi­
nal. Se em vez de «homem» disser simplesmente «um homem
velho e experimentado» então alguns pontos de indeterminação
são eliminados pelo acréscimo de expressões atributivas, mas
ficam ainda muitos em quantidade infinita por eliminar que só
numa série infinita de determinações desapareceriam. Se, p. ex.,
uma narração começa pela frase: «A uma mesa estava sentado
um homem idoso...», etc., esta «mesa» apresentada é sem dúvidá
uma «mesa» e não, p. ex., uma «poltrona»; mas se é, p. ex., de
madeira ou de ferro, de quatro ou de três pernas, etc., não é
de modo algum declarado nem, por conseguinte, fica determi­
nado o objecto puramente intencional. O material de que é
fabricada permanece absolutamente inqualificado, embora ela
deva ser feita de qualquer material. Deste modo, a sua qualifi­
cação não existe de maneira alguma no objecto respectivo: há
aí um «ponto vazio» de «indeterminação». Num objecto real
não são possíveis tais pontos vazios, como já se disse. Quando
muito o material pode, p. ex., ser desconhecido Onde o objecto
puramente intencional encerre no seu conteúdo apenas aqueles
momentos que têm a raiz da sua projecção e com esta o seu
fundamento ontológico na significação das palavras falta preci­
samente (no exemplo alegado) a razão ontológica da qualificação
material enquanto esta qualificação não for projectada por um
momento especial da significação.

1 Isto foi escrito numa época em que a «relação de indeterminação»


de Heisenberg, mais tarde tão famosa na mecânica quântica, era ainda
completamente desconhecida. Esta relação, como se sabe, não resulta da
finitude quantitativa das proposições físicas mas dos princípios da própria
mecânica quântica, sem dúvida dentro da tendência da Física moderna
para considerar como real só aquilo que é determinado pelas proposições
físicas. Dever-se-ia mostrar em que sentido esta relação está figada aos
«pontos indeterminados» de objectos puramente intencionais.
273

Portanto, nem o objecto apresentado é total e unívocamente


determinado no seu conteúdo nem é infinita a quantidade das
determinações unívocamente definidas e positivamente atribuídas
nem ainda a das simplesmente co-apresentadas: só é projectado
um esquema formal de uma quantidade infinita de pontos de
determinação que ficam quase todos por preencher1.
No conteúdo do objecto apresentado existem «pontos de
indeterminação» ainda por uma razão que se relaciona com a
individualidade do objecto real. É que também em razão da
individualidade o objecto apresentado e apenas intencionado
como real se distingue do objecto real em sentido autêntico.
Certamente é de novo intencionado como «individual» devido
ao respectivo momento do conteúdo formal de uma significação
nominal da palavra e eventualmente até designado com nome
próprio para sua caracterização. Isto por si não basta ainda
para exigir que a toda a determinação «geral» atribuída a esse
objecto se acrescente a determinação «individual» correspon­
dente (uma determinação que é a concretização de uma «sin­
gularidade eidética»). O conteúdo material da significação nomi­
nal da palavra não é, em geral, capaz de o realizar. A maioria
das expressões nominais usadas por nós são nomes universais.
Na descrição das coisas contentamo-nos com indicações como,
p. ex., cadeira «de carvalho» ou bola «vermelha», etc. A indi­
cação exacta, p. ex., do tom de vermelho é assaz complicada
e muitas vezes inteiramente irrelevante para nós e também para
o contexto de uma obra literária. Assim, limitamo-nos geral­
mente ao emprego de expressões nominais universais, mas com
isto ficam na indeterminação também as determinações «indi­
viduais» dos respectivos objectos apresentados. Não cabe dúvida
de que essas determinações individuais são «quaisquer» perten­
centes ao círculo de variabilidade de uma determinação «geral».
E são precisamente as «variáveis»2 do conteúdo material das
correspondentes significações nominais das palavras que pro­
jectam intencionalmente essas determinações «quaisquer» de um

1 Apesar de todo o seu psicologismo e das deficiências consideráveis


na análise da linguagem, Th. A. Meyer vê bem nitidamente (e até com
insistência) que as unidades de significação de grau diferente podem
apenas determinar semelhantes «fragm entos» da realidade e só uma
«selecção» de traços objectivos, como ele diz (cf. I. c., pp. 14, 23, 42 e outras).
Meyer não tomou, porém, consciência nem da estruturação peculiar das
objectividades apresentadas na obra literária nem procedeu consciente­
mente à distinção entre os estratos singulares da obra.
2 Cf. as nossas observações precedentes no cap. 5, § 15.°, pp. 82 e segs.

18
274

tipo especial. Quais sejam estas em rigor fica inteiramente em


aberto. E só a significação nominal posterior da palavra ou da
relação objectiva projectada pode mais exactamente determi-
ná-las. Portanto, o conteúdo do objecto apresentado contém
outro ponto de indeterminação, posto que de tipo diferente dos
anteriormente analisados. A razão da sua existência reside noutra
particularidade do estrato de significação da obra literária.
O resultado é este: o objecto apresentado, «real» segundo
o seu conteúdo, não é nenhum indivíduo em sentido autêntico
total perfeita e unívocamente determinado que forme uma uni­
dade original mas é apenas uma produção esquemática com
diversos pontos de indeterminação e com uma quantidade finita
de determinações positivamente atribuídas, embora seja projec­
tada formalmente como um indivíduo plenamente determinado
e destinada a simular esse indivíduo. Esta essência esquemática
dos objectos apresentados não pode ser eliminada em nenhuma
obra literária finita, ainda que no decurso da obra pontos de
indeterminação sempre novos possam ser preenchidos pelo com­
plemento de novas qualidades positivamente projectadas e assim
ser eliminados. Poder-se-ia dizer que toda a obra literária é em
princípio inacabada quanto à detérminação das objectividades
nela apresentadas e exige um complemento sempre progressivo
que no texto jamais poderá ser levado a cabo l.
As situações que acabámos de analisar constituem uma
particularidade do mundo literàriamente apresentado que o dis­
tingue radicalmente não só de qualquer objecto real mas tam­
bém de qualquer objecto individual ideal e ontològicamente
autónomo e constitui simultáneamente o fundamento e a possi­
bilidade daquilo a que mais adiante chamaremos - a «vid a» da
obra literária e que iremos com mais exactidão analisar2.
É ainda essa particularidade que exclui uma realização rigoro­
samente exacta do mundo apresentado que em nenhum aspecto
transcendesse o estabelecido puramente no texto, como, p. ex.,
numa representação teatral.
Todavia, poderia alguém objectar-nos, não sentimos «la­
cunas» durante a leitura nem quaisquer «pontos de indetermi­
nação» nos objectos apresentados. Estes apresentam-se-nos na
percepção estética inteiramente como se fossem objectos reais
no sentido discutido, só que — como sabemos — são «apenas

1 Se tomarmos em consideração que também todas as obras cientí­


ficas são «obras literárias» de género especial isto tem conseqüências
teórico-científicas muito importantes.
2 Cf. o capítulo 13.
275

produtos da fantasia». Não vamos de modo algum contestar


este facto. Ele não modifica, porém, em nada as nossas averi­
guações. Pelo contrário. Na nossa concepção é bem evidente
que em geral não tomamos consciência dos pontos de inde­
terminação. É que, em primeiro lugar, os objectos apresentados
são-nos sempre oferecidos apenas sob o aspecto que é precisa­
mente determinado de modo positivo pelas unidades de signi­
ficação. Só a reflexão posterior sobre as condições da consti­
tuição dos objectos apresentados bem como sobre o facto de
muitas perguntas por determinações individuais suas em prin­
cípio não terem resposta1 nos deixa tomar consciência da exis­
tência de pontos de indeterminação. Em segundo lugar, porém,
muitos dos pontos de indeterminação são ocultados pelos aspec­
tos à disposição, que são predeterminados pelas unidades de
significação e durante a leitura actualizados pelos leitores2.
Em terceiro lugar, finalmente, converge no mesmo sentido o
facto de o leitor durante a leitura e na percepção estética da
obra geralmente transcender o simples texto existente (ou o
projectado pelo texto) e completar, a vários títulos, as objecti­
vidades apresentadas, de modo que pelo menos muitos pontos
de indeterminação são eliminados e muitas vezes, aliás, preen­
chidos por aquelas determinações que não só não são determi­
nadas pelo texto mas também não condizem com os momentos
objectivos positivamente determinados por este. Numa palavra:
a própria obra literária deve ser separada das suas respectivas
concretizações e nem tudo o que vale em relação às concreti­
zações da o b ra 3 vale igualmente a respeito da própria, obra.
Mas precisamente o facto de uma e a mesma obra literária ser
susceptível de uma quantidade indeterminada de concretizações
que não só divergem frequentemente em grau considerável da
própria obra como ainda são muito diferentes entre si no seu
conteúdo tem como fundamento, entre outros, a estrutura esque­
mática do estrato objectivo da obra literária, que permite os
pontos de indeterminação.
É preciso ainda considerar o seguinte: entre os pontos de
indeterminação devem distinguir-se aqueles que podem ser eli­
minados à maneira de complemento simplesmente por razões
textuais e aqueles em que isto não acontece no mesmo sentido.

1 Precisamente todas aquelas perguntas que se referem àquelas deter­


minações que um objecto apresentado teria se fosse eliminado um dos
seus pontos de indeterminação.
2 Cf. capítulo seguinte.
3 Cf. o capítulo 13.
276

No primeiro caso, as relações objectivas apresentativas pres­


crevem uma multiplicidade rigorosamente limitada de preenchi­
mentos possíveis dos pontos de indeterminação de que durante
a leitura podemos escolher um ou outro desde que pretendamos
realizar este preenchimento de harmonia com as determinações
já fixadas dos objectos apresentados. No segundo caso, em con­
trapartida, as relações objectivas fixadas pelo texto não são
suficientes para prescrever uma multiplicidade rigorosamente
limitada de preenchimentos possíveis. Cada «preenchimento»
deste género realizado de facto ou cada determinação mais
exacta dependem, neste caso, inteiramente do arbítrio do leitor
(ou, num espectáculo, do «encenador») K Contudo, no primeiro
caso o leitor também não é obrigado a escolher precisamente
qualquer das possibilidades predeterminadas pelas relações objec­
tivas apresentativas. É que a obra literária não precisa de ser
forçosamente «consequente» ou de se cingir aos limites do pos­
sível dentro do mundo que nos é de facto conhecido. Tanto o
«inverosím il» num tipo dado de objectos e situações como ainda
o impossível dentro de determinada esfera ontológica podem,
em principio, ser intencionalmente projectados e apresentados,
ainda mesmo que não possam muitas vezes ser «postos à vista».
Pelo menos, os resultados do estudo dos estratos até agora
discutidos da obra literária não proíbem de modo algum objectos
e situações inverosímeis e impossíveis, caso se trate simplesmente
da questão da possibilidade ontológica das objectividades apre­
sentadas e da sua projecção possível por conteúdos de sentido
das frases. Em princípio, pode haver obras literárias que não
se empenham em permanecer dentro de um tipo especial de
objectos mas podem exercer uma impressão estética especial
precisamente por apresentarem um mundo contraditório, de
facto impossível, mas que transcende os limites determinados
pela essência regional da realidade. Neste caso, deparamos com
uma dança grotesca de impossibilidades. Em que medida um
mundo «impossível» pode ser «posto à vista» e que espécie de
qualidades e valores estéticos admite são questões que introdu-
zem aspectos inteiramente novos que indubitàvelmente exigem
normas fixas para os preenchimentos admissíveis dos pontos
de indeterminação. Só um estudo especializado desta matéria
poderia dar relevo aos pormenores respectivos e às normas

1 O facto de um «encenador» ser possível e até indispensável é outra


prova da verdade da nossa concepção.
277

dentro de uma consideração geral das espécies possíveis de


estilo. Aqui temos de nos contentar com esta referência.
Em contrapartida, cabe neste contexto o facto, já anterior­
mente aludido, de a ambigüidade ou a polivalência do texto
provocarem uma cisão em dois ou mais dos correlatos inten­
cionais. O correlato imediato da frase (a relação objectiva pura­
mente intencional) exibe neste caso, como já vimos, uma disso­
nância opalescente. Como na obra literária o correlato da frase
exerce a função de constituir e apresentar os objectos a sua
dissonância reflecte-se nos elementos correspondentes apresen­
tados. Neste caso podem, naturalmente, aparecer ainda casos
diversos segundo a medida e a espécie da polivalência even­
tualmente existente. Pode acontecer que o desacordo da relação
objectiva não destrua a identidade do objecto apresentado mas
apenas lhe atribua, por assim dizer, duas qualidades diferentes,
mas de modo que nenhuma delas advenha definitivamente ao
objecto, antes ambas exijam, ao mesmo tempo, pertencer-lhe e
portanto as duas não possam formar plenamente com o objecto
a unidade original da inexistência. Resulta daí certa inquietação
no objecto, um estado em que se rompe o equilíbrio. O objecto
procura, por assim dizer, possuir as duas qualidades mas não
o consegue porque as qualidades que lhe devem pertencer são
incompatíveis e uma tenta desalojar a outra. Existe, portanto,
também aqui o fenómeno da opalização que já procurámos
descrever. No fundo, este fenómeno continua a existir ainda
quando a polivalência do texto vai tão longe que se não pode
conservar a identidade do objecto. Só que neste caso são, por
assim dizer, dois objectos que pretendem ocupar um lugar no
mundo apresentado mas nenhum deles se pode realmente lá
instalar. Pode também acontecer que a polivalência seja condu­
zida com certa conseqüência através de várias frases; neste
caso, aquela opalização diz respeito a esferas inteiras de objec­
tos, de sorte que dois mundos diversos lutam de certo modo
pela primazia e nenhum deles se consegue fixar. Estes são, natu­
ralmente, também fenómenos só possíveis na esfera das objec­
tividades puramente intencionais e ontològicamente dependentes
e, como tais, particularmente apropriadas para pôr em relevo
a' particularidade desta esfera relativamente às regiões de ser
objectivas e ontològicamente autónomas.
Antes de passarmos a outras particularidades do estrato
das objectividades apresentadas e à discussão da sua função
na obra literária será útil começarmos por analisar mais por­
menorizadamente os aspectos que fazem aparecer estas objec­
tividades.
Capítulo 8

O estrato dos aspectos esquematizados

§ 39. Introdução

Referimo-nos anteriormente a que os objectos apresentados


são apenas expostos através das relações objectivas mas não
podem ser realmente conduzidos por elas a uma apreensão
intuitiva e a que a obra literária carece ainda de um factor
especial para que se possa preparar o aparecimento intuitivo
das objectividades apresentadas. Este factor, como já foi men­
cionado, é precisamente constituído pelos aspectos 1 das objec­
tividades apresentadas. Eles constituem um estrato particular e
— como se verificará — muito significativo precisamente numa
obra de arte literária. É agora o momento de começar a estudá-lo2.
Se deixarmos aqui em suspenso o problema de nas obras
de arte literária se poderem expor também objectos que pelo
conteúdo não pertencem ao tipo dos objectos reais é, em qual­
quer caso, um facto que nas obras de arte literária historica­
mente existentes são sempre, em primeiro lugar, apresentadas
objectividades «reais». Pelo menos pode dizer-se destas obras
que têm de contar com as condições sob que as objectividades
nela apresentadas e «reais» pelo seu conteúdo se podem dar
intuitivamente. Como a doação intuitiva se orienta pelos traços

1 Verificar-se-á que não interessam aqui os aspectos concretos mas


apenas certos esquemas seus.
2 Para todo o capítulo 8 é preciso recordar as considerações de
Lessãng no Laocoonte acerca daquilo a que chama a «imagem poética».
Lessing não escreve contra a existência dos aspectos esquematizados na
obra de arte literária, mas meramente contra determinado método esté­
ticamente deficiente de introduzir na obra de arte literária o momento
intuitivo e aponta para a essência da «imagem poética», aproximando-se
assim apenas daquele momento da obra de arte literária que nós aqui
designamos como o estrato dos aspectos esquematizados.
280

essenciais do oferecimento originário dos objectos reais na per­


cepção devemos tratar, em primeiro lugar, dos modos de apa­
recimento das coisas na percepção, pelo menos nos seus aspectos
fundamentais.

§ 40. À coisa percepcionada e os aspectos concretos


da percepção

Entre as objectividades reais que interessam aqui podemos


pôr frente a frente, de um lado, as coisas reais e os processos
do m undo1 «exterior» ao respectivo indivíduo psíquico e, do
outro, as vivências «próprias», os estados psíquicos e os traços
característicos permanentes. Estas objectividades diferentes são
dadas em modos muitõ variados de aparecer2. Estamos aqui
perante um campo muito vasto de fenómenos que foi investi­
gado apenas numa pequena parte nos estudos fenomenológicos
até agora publicados. Como aqui não podemos proceder a uma
investigação especial destes fenómenos escolhemos apenas o que
é inteiramente indispensável para o nosso objectivo3.
Em primeiro lugar, interessa aqui a percepção «sensível»
externa. Do estado global muito complexo que nela aparece
queremos distinguir apenas os «aspectos»4 em que a coisa per­
cepcionada se auto-apresenta «em pessoa».
Quando temos uma percepção visual de uma bola vermelha
e a apreendemos na sua forma de bola que fisicamente aparece,
uma modificação correspondente da nossa atitude ensina-nos
que durante a percepção vivemos «aspectos» intuitivos em cons­
tante mutação estranhos ao eu e, contudo, não dados objecti-

1 Por esta expressão entendem-se aqui, além de coisas puramente


físicas, também corpos estranhos e estados anímicos alheios que se dão
em fenómenos corporais da expressão.
2 Cf. adiante, § 43.
3 Reservamos para uma publicação especial posterior a justificação
mais jjjrofunda de uma série de afirmações que fazemos neste capítulo.
Além disso, remetemos o leitor para os estudos conhecidos de E. Husserl,
D. Schapp, H. Hofmann, H. Conrad-Martius e O. Becker.
4 N o período de Gõttinger, Husserl empregou frequentemente o termo
«Ansicht» (aspecto). Mais tarde usou vários outros termos, como, p. ex.,
«Aspekt», «Abschattung». Eu prefiro usar a expressão antiga, como
W. Conrad, que a emprega no seu artigo já várias vezes citado Der
Aesthetische Gegenstand.
281

vãmente de uma e a mesma bola K O aspecto não é a própria


bola, embora esta apareça nele. A bola — tomada precisamente
como é percepcionada— encontra-se «a li» no espaço, é esférica
e tem, portanto, também uma face que directamente se escapa
da vista do sujeito da percepção e um interior. É-nos dada
como tal. Caso ela, enfim, exista tem um ser próprio e é para
ela algo de inteiramente casual que alguém a apreenda numa
percepção. Pelo facto de ser percepcionada não sofre quaisquer
modificações e é-nos dada como uma bola que continua a existir
no espaço depois de termos fechado os olhos e de já não a
percepcionarmos. Em contrapartida, o aspecto, ou mais exac­
tamente, a multiplicidade contínua de aspectos que se mudam
constantemente uns nos outros está referida no seu ser e modo
de ser constantemente ao «eu», sujeito da percepção, embora
não dependa apenas de mim e fião seja, portanto, puramente
«subjectivo». Também não é nenhum evento egoísta na minha
alma; por outro lado, não se encontra «no espaço», pelo menos
naquele espaço em que a bola percepcionada se encontra. Esta
relação do aspecto vivido ao sujeito da percepção revela-se
sobremaneira na sua dependência essencial em relação ao com­
portamento do sujeito. Basta fechar os olhos para interrom­
permos a continuidade fluente dos aspectos, para simplesmente
os aniquilarmos. Basta acomodar a vista ao «infinito» (ou, inver­
samente, a grande proximidade) para modificarmos considerà-
velmente os aspectos. Basta, por fim, pelo menos em muitos
casos, visar um aspecto através de um acto intencional corres­
pondente para nele provocarmos modificações radicais, que por
vezes são tão grandes que no aspecto modificado já não pode
aparecer a mesma coisa. Os aspectos estão pois, por assim dizer,
em permanente contacto com os actos da consciência do sujeito
da percepção simultáneamente realizados e são altamente sen­
síveis às transformações que se dão nos actos e nas suas mul­
tiplicidades. A multiplicidade contínua dos aspectos está, por
outro lado, sujeita a uma transformação própria que se rela­
ciona com a sua mesma estrutura temporal. O conteúdo actual
do aspecto presente depende funcionalmente dos aspectos pre­
cedentes e já não actuais. O «mesmo» aspecto — se me é per­

1 Sobre a distinção entre «dado objectivo», «viver» e «passar o tempo»,


cf. o meu escrito Veber die Gefahr einer Petitio Principii in der Erkenntnis-
theorie (Jahrbuch für Philosophie, vol. IV). A intenção objectiva e o dado
sensorial foram já antes estudados em pormenor por Hedwig Conrad-
-Martius no seu trabalho Zur Ontologie und Erscheinungslehre der realen
Aussenwelt.
282

mitido exprimir assim— seria outro a diversos títulos se não


o precedessem aqueles aspectos que de facto o precederam.
E esta série de dependências dos aspectos é distinta, embora
não independente, da série de dependências existentes entre os
estados da coisa que aparece nos respectivos aspectos.
Também nos seus conteúdos os aspectos são muito dife­
rentes do objecto que neles se oferece. Por exemplo, a bola
vermelha percepcionada é esférica, mas nenhum dos aspectos
que a fazem aparecer é em si mesmo esférico nem contém no
seu conteúdo a forma de esfera. O aspecto encerra no seu con­
teúdo apenas — se é permitido exprimir-se tão incorrectamente —
um «disco redondo» certamente com uma referência muito
peculiar à forma da esfera. Esta diferença entre o conteúdo
do aspecto e as qualidades da coisa respectiva ainda ressaltará
com maior nitidez quando tomamos, p. ex., um círculo ou uma
roda de automóvel, cuja forma tem, entre outras, a característica
de ser redonda: neste caso, os aspectos respectivos mostram
nos seus conteúdos todas as elipses possíveis, embora sempre
com uma referência peculiar à forma circular. Ou outro exemplo
ainda: quando uma bola nos é dada na percepção como unifor­
memente vermelha o «disco redondo» que aparece nos conteúdos
dos aspectos respectivos é preenchido por diversos matizes de
vermelho que continuamente se mudam uns nos outros e ainda
por matizes de outras cores, embora de novo com uma referência
análoga à coloração uniforme da bola. Carris de caminho-de-ferro
que se estendem paralelamente pelo horizonte são-nos dados
como tais enquanto nós vivemos um aspecto deles em cujo
conteúdo se confundem os dados de cor respectivos e assim
por diante.
Os exemplos que acabámos de referir obrigam-nos, ao
mesmo tempo, a proceder a uma distinção importante entre os
elementos que aparecem no conteúdo de um aspecto, distinção
essa que novamente revela a diferença dos aspectos relativamente
às coisas percepcionadas. Trata-se do confronto entre «quali­
dades preenchidas» e «não preenchidas». Vemos, p. ex., uma
bola determinada e fechada por todos os lados que tem um
interior e uma face não atingida directamente pelo nosso olhar.
Entretanto, vemos pelo aspecto correspondente que só a face
«anterior», precisamente virada para nós, e apenas na sua «super­
fície» se apresenta por meio das qualidades de cor respectivas.
Nenhuma pessoa sem preconceitos poderá duvidar de que não
nos é dada a «face anterior» da bola sem uma face posterior
ou qualquer espaço interior. Na bola totalmente determinada
é-nos simultáneamente oferecida a sua face oculta. Esta simples
283

doação simultânea reflecte-se, porém, de tal modo nos aspectos


respectivos que nestes a face anterior transparece através de
qualidades de cor preenchidas e a face da bola oculta à nossa
vista, ao contrário, apenas através de um carácter intuitivo
peculiar que indica que a bola possui uma face diversamente
determinada e oculta e ainda neste caso, p. ex., uma superfície
de cor vermelha, etc. Este carácter peculiar a que pretendemos
chamar «qualidade não preenchida», naturalmente pode aparecer
no conteúdo do aspecto apenas porque há outros aspectos da
mesma bola que nos fizeram aparecer nas qualidades de cor
preenchidas como sua face anterior a face posterior, para nós
oculta, da esfera e porque o conteúdo do respectivo aspecto
actual em parte é determinado pelo conteúdo dos aspectos
precedentes. A transformação de um aspecto no correspondente
aspecto seguinte reflecte em si a transformação da «face ante­
rior» de antes na «face posterior oculta» de agora e leva ao
aparecimento daquele carácter que, embora não seja realmente
preenchido por nenhuma qualidade, contudo aponta para certa
qualidade (da cor, da forma, etc.). Por esta razão chamamos-lhe
«qualidade não preenchida» *. Uma qualidade não preenchida pode
fazer aparecer uma propriedade real indeterminada nos seus
pormenores quando, p. ex., vejo uma coisa de cor sem apreender
o matiz bem determinado da face que precisamente não está
voltada para mim. Há também qualidades não preenchidas nos
aspectos de uma coisa que fazem nos sejam dadas simultánea­
mente propriedades bem determinadas. Quando, p. ex., percep-
ciono a minha escrivaninha, que desde há muitos anos bem
conheço, esta apresenta-se-me dotada no lado que me é oposto
de uma forma exactamente precisa e de cor perfeitamente deter­
minada. Eu não «v e jo » esta cor nesse momento, mas a quali­
dade correspondente não preenchida existe no aspecto por mim
vivido e leva à co-doação do outro lado oposto da escrivaninha
nas suas determinações qualitativas. E só porque eu vivo esse
aspecto que em si contém uma qualidade não preenchida exac­
tamente determinada a escrivaninha é-me dada como determi­
nada desse modo. Neste caso, qualquer percepção que faz seja
simultáneamente dada uma determinada «face oculta» de uma
coisa pode neste aspecto ser errada. Isto é, eu posso, p. ex.,
percepcionar a mesma escrivaninha do outro lado e notar ines­

1 Husserl fala neste caso de momentos «intencionais» especiais, o que


para nós é uma terminologia incômoda.
284

peradamente que ela tem agora uma grande mancha de tinta


que antes não me era dada simultáneamente e, por conseguinte,
não foi apresentada por nenhuma qualidade não preenchida
do aspecto. Mas precisamente estes casos de desilusão e de
admiração que então vivemos mostram com a maior nitidez
que a respectiva «face oculta» é, na realidade, simultáneamente
dada através de uma qualidade não preenchida (ou através de
uma multiplicidade delas). Não chamam tanto a atenção os
casos em que a qualidade a princípio não preenchida, ao dar-se
a volta à coisa em questão se preenche com as qualidades de
forma e cor exactamente correspondentes. Mas estes casos tam­
bém confirmam a verdade da concepção exposta. Precisamente
a determinação exacta e a identidade da qualidade que nos
aspectos se apresenta de dois modos diferentes mas faz apa­
recer a mesma propriedade objectiva obrigam-nos a falar de
uma qualidade, embora «não preenchida», ao tratarmos do
carácter indicativo do aspecto aqui investigado. Esta qualidade
é algo de fenomenalmente presente e não apenas abstracta e
«signitivamente» intencionado.
Há em cada aspecto real por nós vivido uma série completa
destas qualidades não preenchidas de espécie diferente. Nem
sempre, porém, é preciso que uma qualidade não preenchida
leve à intuição de semelhantes determinações reais que dizem
respeito à face oposta da coisa ou ao seu interior. Também
muitas propriedades do lado do objecto voltado para nós podem
aparecer-nos nas qualidades não preenchidas do aspecto. Assim,
p. ex., a coloração vermelha uniforme de uma bola é apresentada
numa qualidade não preenchida. Na verdade, no aspecto corres­
pondente aparecem dados preenchidos de cor de diferentes
matizes de vermelho que só graças à sua forma e ordem e devido
a uma graduação característica das qualidades levam à consti­
tuição do momento indicativo «coloração uniformemente ver­
melha da bola». A coloração uniforme de uma bola não pode
de modo algum ser apresentada senão por uma qualidade não
preenchida. O mesmo se diga, p. ex., a respeito da lisura vista
do papel ou do macio visto da seda, etc. Só que, nestes casos
há ainda uma percepção táctil que faz sejam dada3 as chamadas
propriedades reais de modo adequado em qualidades preenchi­
das. Os exemplos que acabam de ser dados mostram ao mesmo
tempo que tanto o grau como ainda a espécie de não..preenchi­
mento de uma qualidade podem ser muito diversos no conteúdo
de um aspecto. O mais alto grau de não preenchimento e inde-
285

terminação aparece, p. ex., numa percepção em que nos é dada


uma coisa até agora completamente desconhecida. Apreendemo-la
como possuindo uma «face oculta» para nós e um «interior»
sem que seja dada qualquer qualificação desta face (ou do
interior). Daí, uma multiplicidade inteira de graduações de
preenchimento e determinação leva até ao outro limite em que
uma qualidade é realmente preenchida num aspecto.
Surgem aqui múltiplos problemas que são do maior signi­
ficado para a teoria da experiência sensível. Aqui devemos limi­
tar-nos às alusões feitas. Só a acentuação de que no aspecto
aparecem qualidades não preenchidas foi para nós indispensável
porque a não-consideração destas qualidades conduz a uma
concepção falsa da essência do aspecto de uma coisa.
Os aspectos que vivemos da mesma coisa no decurso da
experiência transformam-se de modos diversos e muito daquilo
que num aspecto anterior só apareceu sob a forma de uma
qualidade não preenchida existe no aspecto posterior sob a
forma de uma qualidade preenchida e vice-versa. Em qualquer
aspecto de uma coisa existem qualidades preenchidas e não
preenchidas e, em princípio, é impossível fazer desaparecer de
qualquer modo as qualidades não preenchidas
Para simplificar limitámo-nos nas considerações que aca­
bámos de fazer aos aspectos visuais da coisa. Há, porém, aspec­
tos especificamente diversos de uma e a mesma coisa, p. ex.,
tácteis, tonais, etc., em que aparecem as qualidades reais cor­
respondentes. Em rigor, não há aspectos puramente visuais
(ou puramente tácteis, etc.) das coisas. Constituem-se sempre
sínteses particulares, de modo que, p. ex., no conteúdo de um
aspecto visual de uma coisa aparecem diversos momentos que
apresentam qualidades reais originàriamente dadas de um modo
táctil e, por conseguinte, remetem também para momentos cor­
respondentes dos aspectos tácteis.

1 Análises mais exactas revelam que nesta matéria existem ainda


situações muito complicadas que levam a estratos muito mais profundos
do que os dos aspectos. O estrato dos aspectos descrito por nós é, por
assim dizer, apenas uma superfície que mostra o que se passa na profun­
didade. Devemos remeter aqui para as investigações husserlianas (em
particular nas Vorlesungen zur Phaenomenologie des inneren Zeitbewusst-
seins). Além disso, interessam aqui o trabalho já citado de Hedwig
Conrad-Martius e alguns capítulos do trabalho de Becker, Zur Phaeno-
menologischen Begründung der Geometrie, em que este autor apresenta
a relação de uma série de estudos ainda inéditos de Husserl.
286

Qualquer aspecto visual de uma coisa constitui parte de um


aspecto total homogéneo de todo o ambiente do sujeito da
percepção apreendido no momento dado e está originàriamente
unido aos restantes elementos que aparecem no conteúdo deste
aspecto total, embora em geral se destaque nitidamente deles.
A totalidade concreta original constitui o respectivo aspecto
total visual. A unidade de um aspecto pertencente ao objecto
respectivo constitui-se, geralmente, não pela delimitação rigorosa
e de contornos definidos do seu conteúdo em relação aos res­
tantes elementos do aspecto total mas por uma correlação dos
próprios elementos contidos neste aspecto total, o que por sua
vez é o resultado tanto da seqüência de vários aspectos mui
determinadamente ordenados como ainda da realização dos
seus actos de percepção respectivamente determinados no seu
conteúdo.

§ 41. Os aspectos esquematizados

Tentámos demonstrar da maneira mais simples no pará­


grafo precedente a diferença entre a coisa dada na percepção
e os aspectos que a fazem aparecer. Isto deve ser aqui suficiente.
É preciso atender ainda ao seguinte: uma análise mais exacta
mostra — como E. Husserl com razão afirmou e provou— que
existe uma correlação rigorosa entre cada qualidade real dada
na percepção e uma multiplicidade de aspectos ordenados rigo­
rosamente segundo uma lei nos quais essa qualidade aparece.
E . vice-versa: logo que nós temos a vivência de determinada
multiplicidade de aspectos uma determinada qualidade real ou
uma coisa qualificada de determinado modo devem-nos ser dadas
por si mesmas «em pessoa». Demonstrar isto nos seus porme­
nores e investigar as leis que o regem exige estudos muito
amplos e difíceis que, apesar das investigações inovadoras de
Husserl e dos seus discípulos, até agora ainda não terminaram.
Interessa-nos neste caso apenas o sentido modificado da palavra
«aspecto» — em comparação com o usado até agora — , que entra
em consideração ao estabelecermos essas correlações regulares
e leis. Se tentarmos compreender exactamente a aludida afir­
mação de Husserl convencemo-nos de que não se trata aqui dos
aspectos uma vez vividos e para sempre passados mas de certas
idealizações que, por assim dizer, são apenas um esqueleto, um
esquema dos aspectos concretos em devir. Não há dois aspectos
287

concretos da mesma coisa percepcionada do mesmo lado que


pudessem ser vividos um após outro pelo mesmo sujeito cons­
ciente e fossem completamente iguais sob todos os pontos de
vista \ Devem sempre separar-se, em grau diferente, uns dos
outros não só os seus conteúdos plenamente concretos mas
ainda o modo como são vividos. Entretanto, falar de correlação
normativamente regulada entre determinada multiplicidade de
aspectos e certa qualidade real pressupõe a repetibilidade dos
respectivos aspectos. Fica, por conseguinte, claro: primeiro, se
esta correlação normativamente regulada deve de facto existir
não pode tratar-se, neste caso, dos aspectos tomados em plena
concreção mas apenas de certos esquemas neles contidos e que
formam simplesmente um esqueleto seu e se podem conservar
os mesmos apesar das múltiplas diferenças que, aliás, existem
nos conteúdos dos aspectos concretos e no modo de serem
vividos; segundo, há realmente a ideia de tais esquemas ou dos
aspectos esquematizados. Pressuposto isto, pode afirmar-se que
todo o momento de urna coisa determina uma multiplicidade
de aspectos esquematizados que formam o esqueleto dos aspec­
tos concretos em que o momento aparece. Por «aspecto .esque*
matizado» deve, por conseguinte, entender-se apenas a totalidade
daqueles momentos do conteúdo de um aspecto concreto cuja
existência neste é a condição suficiente e necessária para a
autodoação originária de um objecto ou, mais exactamente,
das qualidades objectivas de urna coisa. De facto, nem todos
os momentos do conteúdo de um aspecto e nem todas as dife­
renças na vivência deste aspecto desempenham função decisiva
na apresentação das qualidades objectivas (em si existentes e
pertencentes ao próprio objecto dado) da coisa percepcionada.
Por outras palavras: é possível que dois aspectos vividos em
momentos diferentes do tempo e distintos tanto pelo seu con­
teúdo como pelo modo da sua vivência façam, apesar disso,
aparecer originàriamente a mesma qualidade real (ou um e o
mesmo objecto na mesma combinação de qualidades não varia­
das) desde que em si contenham apenas concretizações do mesmo
aspecto esquematizado. Relaciona-se, naturalmente, com isto o

1 Aqui apenas registamos o facto. A plena universalidade e justificação


desta afirmação resulta só da estruturação essenoial dos aspectos con­
cretamente vividos que pelos seus fundamentos tocam na profundidade
dos da'dos da sensação originais e constituintes (no sentido de E. Husserl)
e das múltiplas conexões e dependências que existem entre os aspectos
e os actos simultáneamente passados da consciência.
288

facto de em qualquer aspecto concreto todos os elementos do


seu conteúdo formarem uma unidade composta em que qualquer
dos elementos é colorido pelos restantes e de a modificação
destas colorações não ter nenhuma influência sobre a identidade
pelo menos de muitos elementos que aparecem no conteúdo do
aspecto. Por conseguinte, estes elementos são relativamente
independentes dos restantes que no aspecto aparecem, de ma­
neira que podem conservar-se numa multiplicidade contínua de
aspectos que se mudam. A sua totalidade é, portanto, repetível
em aspectos diversos e também temporalmente separados, cons­
tituindo aquilo que acima designámos por aspecto «esquemati­
zado». Os restantes elementos de um aspecto concreto não são,
neste caso, pensados como não existentes mas apenas como
variáveis dentro dos limites em que ainda o podem ser uma
vez que se possam conservar os elementos persistentes e rela­
tivamente autónomos. Naturalmente, só um aspecto concreto
pode ser vivido. Contudo, um objecto determinado numa multi­
plicidade definida de qualidades que lhe pertencem prescreve
apenas uma multiplicidade determinada (ou multiplicidade de
multiplicidades) de aspectos esquematizados na qual ele tem de
se dar imediatamente em si mesmo como um objecto assim
determinado. O modo como se processará o preenchimento mais
pormenorizado destes esquemas em dado caso singular já não
depende em parte do objecto e da selecção das suas qualidades
mas de diversos factores de natureza subjectiva que variam
de caso para caso.

§ 42. Os aspectos esquematizados em obras literárias

Os aspectos esquematizados que nada são de concreto ou


até mesmo de psíquico pertencem como estrato próprio à estru­
turação da obra literária. Só como esquematizados é que podem
aparecer nela. Não são, com efeito, produzidos pela vivência
de qualquer indivíduo psíquico mas têm a razão da sua deter­
minação e da sua existência em certo sentido potencial nas
relações objectivas projectadas pelas frases ou nos objectos
por estas apresentados. Mas não só esta razão teorética faz
supor que numa obra literária só podem aparecer aspectos
esquematizados que durante a leitura ainda admitem diversos
aspectos actualizados variáveis apenas dentro de limites prede­
terminados. Podemos convencer-nos disto também, por assim
289

dizer, pràticamente Acontece com frequência que os objectos


apresentados devem reproduzir determinadas objectividades
reais. Por exemplo, a história do romance L'áme enchantée, de
Romain Rolland, «passa-se» — como geralmente dizemos— em
Paris. Apresentam-se nesta obra também muitas ruas da capital
francesa. Suponhamos que determinado leitor deste romance
não conhece Paris por experiência própria. Durante a leitura
actualiza, naturalmente, entre outras coisas os aspectos das
respectivas ruas prèviamente determinados na obra referida.
Como ele, porém, nunca viveu concretamente estes aspectos
numa percepção originária destas ruas jamais consegue uma
actualização tal que os conteúdos dos aspectos por ele actua­
lizados possam assinalar uma semelhança pormenorizada com
aqueles que ele teria vivido se uma vez realmente tivesse per-
cepcionado as ruas em questão. Os esquemas predeterminados
dos aspectos são durante a leitura sempre completados e preen­
chidos por diversos pormenores que propriamente não lhes
pertencem e que o leitor tira dos conteúdos de outros aspectos
concretos outrora vividos. Em certa medida, acontece o mesmo
também no caso em que os objectos apresentados e concebidos
pela função de reprodução remetem para um protótipo que o
leitor conhece por experiência própria, visto que os aspectos
do mesmo objecto vividos por diversos indivíduos psíquicos em
princípio devem distinguir-se sob vários ângulos. Por conse­
guinte, é inteiramente impossível que o leitor actualize exacta­
mente os mesmos aspectos que o autor quis prèviamente deter­
minar através da estruturação da obra. Aqui mostra-se de novo
que a obra literária é uma produção esquemática. Para com­
preendermos isto é preciso apreender a obra na sua natureza
esquemática e não a confundir com as concretizações singulares
que surgem nas leituras individuais.
Em pura teoria, aos objectos apresentados «pertencem»
todos os aspectos esquematizados em que estes objectos em

1 Th. A. Meyer não dispõe do conceito de aspecto e, em particular,


de aspecto esquematizado. Ele fala apenas de «traços sensíveis», «imagens
interiores da percepção» e coisas semelhantes. Parece-me, porém, ser
muito provável que ele tem em vista com estas expressões os aspectos
das coisas dadas na percepção sensível. Em particular, ele vê muito
nitidamente que neste caso só se pode tratar de produções esquematizadas
(cf. I. c., pp. 45, 139 e seg., 191, 196, etc.). Neste facto, que ele com razão
relaciona intimamente com a essência da linguagem, julga ter encontrado
o argumento suficiente contra o aparecimento do «intuitivo» em obras
literárias, mas nisto não posso concordar com ele.

19
290

geral sé podem dar. Neste caso, porém, este «pertencer» significa


apenas uma coordenação, que existe em virtude de uma rigorosa
predeterminação, de possíveis aspectos esquematizados com as
respectivas objectividades apresentadas. Para que tais aspectos
somente coordenados possam ser actualizados são precisos ainda
outros factores existentes fora dos objectos apresentados].
Alguns destes factores podem ser produzidos por várias parti­
cularidades da própria obra literária, outros, em contrapartida,
residem no indivíduo psíquico com suas vivências, de modo
que os aspectos esquematizados só podem ser concretizados e
actualizados pelo leitor (ou pelo autor). Se uma obra literária
é estruturada de modo que os factores do primeiro género de
actualização dos aspectos existem pelo menos em algumas das
suas partes os aspectos correspondentes ainda não ficam por
essa razão actualizados (porque para esse efeito é ainda indis­
pensável o indivíduo com suas vivências), mas neste caso são,
por assim dizer, preparados para esta actualização de maneira
que, dada uma leitura, eles impõem-se ao leitor. Dizemos que
neste caso os aspectos esquematizados não estão apenas coor­
denados com as objectividades apresentadas mas ficam, ao
mesmo tempo, «à disposição». Pertencem, portanto, a cada obra
literária os aspectos esquematizados simplesmente coordenados
com as objectividades apresentadas, mas só algumas obras lite­
rárias contêm (pelo menos em algumas das suas partes) aspectos
que ficam à disposição.
Os factores pelos quais na obra literária os aspectos ficam
à disposição residem em parte nalgumas particularidades já
anteriormente discutidas dos correlatos intencionais das frases.
Distinguimos entre relações objectivas em que se apresenta o
modo de ser do objecto e aquelas em que surge o seu «modo
de parecer». Por outro lado, opusemos à mera apresentação do
objecto a sua exposição. A exposição, e nomeadamente a expo­
sição do modo de parecer de um objecto, traz consigo o estado
de disponibilidade dos aspectos ^pertencentes ao objecto apre­
sentado ou de uma multiplicidade de aspectos. No estado de
disponibilidade os correspondentes aspectos esquematizados pas­
sam do estado da mera possibilidade, em que se encontram
graças à mera coordenação com as objectividades apresentadas,
para o modo de certa actualidade que, todavia, nunca é a
actualidade dum aspecto concreto vivido mas também já não

1 Discutiremos já em que consistem estes factores.


291

é simples potencialidade1. Conduzem ao «estado de disponibi­


lidade» dos aspectos, por outro lado, as diversas «imagens»,
«metáforas», «alegorias», etc.2, usadas na linguagem poética nas
quais são projectadas objectividades inteiramente diferentes das
que se devem precisamente apresentar e apenas com o fim de
fazer aparecer os objectos a apresentar sob aspectos corres­
pondentes postos à disposição. Para o estado de disponibilidade
dos aspectos não só contribuem os correlatos intencionais das
frases e das significações convenientemente escolhidos (e em
primeiro lugar: os conteúdos respectivos de sentido da frase)
mas ainda os fonemas significativos particularmente apropriados
para isto e as produções fónico-linguísticas de ordem superior3.
Já nos referimos a isto ao discutir a função que o estrato das
formações fónico-linguísticas desempenha na obra literária. Se os
aspectos respectivos são «postos à disposição» na obra literária
e impostos ao leitor durante a leitura, então no estrato fónico
devem conter-se sobretudo palavras que não só são tiradas do
vocabulário da língua viva (e não do de uma terminologia abs­
tracta) mas ao mesmo tempo assinalam no fonema significativç
ou uma semelhança com as objectividades correspondentes (ex­
pressões onomatopaicas) ou contêm «qualidades manifestati­
vas» 4 ou, finalmente, implicam, pelo emprego constante em
determinadas situações concretas da vida, associações estabele­
cidas com aspectos de vários géneros. Na mesma direcção
actuam também as formações fónico-linguísticas de ordem supe­
rior — convenientemente escolhidas— como, p. ex., as diversas

1 A exacta definição conceptual e correspondente ilustração desta


matéria é muito difícil e é-o particularmente no quadro das nossas con­
siderações porque para este fim seria necessária uma análise pormeno­
rizada dos diferentes modos possíveis de ser e das características exis­
tenciais que até agora, que saibamos, ainda não foi empreendida a sério
por ninguém, e menos ainda realizada. Todavia, é claro que as distinções
primitivas e rudimentares entre ser e não ser, actualidade e potencia­
lidade, etc., com que geralmente nos contentamos não bastam para
apreendermos convenientemente a grande multiplicidade das diferenças
presentes. Os argumentos dialécticos primitivos naturalmente só podem
ter aqui efeitos contraproducentes. Cf. o meu livro Der Streit um die
Existenz der Welt, vol. I (língua polaca, 1947), que salienta e define os
diversos modos possíveis de ser. Cf. o resumo breve nas actas do X Con­
gresso Internacional de Filosofia em Amesterdão, 1948.
2 É este outro campo vasto para investigações especiais.
3 Cf. a este respeito a exposição de Th. A. Meyer, sobre o «tom sen­
timental» das palavras e a sua significação em obras literárias (í. c.,
pp. 160 e segs., 171).
4 Cf. atrás, p. 73.
292

melodias da língua, o ritmo, etc. A cooperação de todos estes


factores faz que os aspectos sejam configurados menos esque­
máticamente ou mais concretamente do que seria possível no
emprego de palavras já «m ortas» e na projecção de relações
objectivas inadequadas (p. ex., determinadas de modo puramente
abstracto). Esta «configuração mais concreta» é também um
traço daquilo a que chamámos o «estado de disponibilidade»
dos aspectos.
Para prevenir mal-entendidos é necessário salientar ainda
um aspecto. Seria inteiramente errado julgar que as objectivi­
dades apresentadas aparecem na plenitude da sua vivacidade
quando os seus próprios aspectos são descritos no texto da obra
literária. Na realidade sucede o contrário. Se os aspectos fossem
descritos então não seria a objectividade que neles deve aparecer
mas sim os aspectos do conteúdo apresentado na obra (o que,
naturalmente, não fica excluído) e o objecto em causa ou desa­
pareceria, por completo do âmbito da respectiva obra ou perten-
cer-lhe-ia como algo mediatamente apresentado. Em qualquer
dos casos não poderia transparecer através dos aspectos descritos
na obra. O que deve ser apresentado ou descrito são os objectos,
os seus destinos, os seus «modos de parecer», as situações objec­
tivas, etc. Os aspectos que lhes pertencem e os fazem aparecer,
por sua vez, só podem estar à disposição do modo já aludido
quando eles têm de exercer a sua função de fazer aparecer ou
quando durante a leitura só têm de ser evocados de modo que
não sejam dados ao leitor temática e objectivamente mas apenas
sejam vividos por ele e nesta vivência façam aparecer o res­
pectivo objecto.
No estado de disponibilidade e na determinação dos aspectos
duas circunstâncias desempenham uma função particularmente
importante para a estruturação e para a apreensão estética da
obra literária. É impossível ter à disposição pelos meios indi­
cados todas as multiplicidades e ao mesmo tempo as séries
contínuas e inteiras de aspectos que pertencem, como possibi­
lidades, pelo seu sentido às objectividades apresentadas. O pró­
prio facto de as objectividades apresentadas conterem necessà­
riamente em si pontos de indeterminação implica que só pode
ser predeterminada aquela multiplicidade de aspectos que per­
tença às faces explicitamente apresentadas das objectividades.
É certo que, neste caso, surge frequentemente o fenómeno atrás
mencionado da cobertura dos pontos de indeterminação pelos
aspectos que estão à disposição (e eventualmente actualizados
durante a leitura) visto que estes também podem ficar à dispo­
sição por outra via, p. ex., por formações fónico-linguísticas
293

apropriadas. Isto, porém, não consegue eliminar as lacunas nas


multiplicidades dos aspectos. Além disso, não é possível apre­
sentar os objectos exclusivamente em relações objectivas que
os «pusessem à vista» e, assim, preparassem o seu aparecimento
em multiplicidades de aspectos. Com isto aumenta a possibili­
dade de lacunas das multiplicidades de aspectos. São sempre
poucos e muitas vezes não imediatamente conexos os aspectos
postos à disposição, de modo que os objectos durante a leitura
só de tempos a tempos chegam a aparecer de modo vivo em
aspectos actualizados e momentâneos. Relaciona-se com isto
certa estabilização dos aspectos à disposição, a qual embora não
deva forçosamente caracterizar todas as obras e todas as partes
de uma obra não deixa de aparecer com muita frequência.
Entendemos por estabilização de um aspecto o facto de tanto
as qualidades preenchidas como as não preenchidas aparecerem
no conteúdo de um aspecto como algo de fixo ou que apenas
varia imperceptivelmente. O caso é inteiramente diferente quando
se trata de aspectos concretos dados na percepção. Neste caso,
os aspectos encontram-se em fluxo constante e em contínuo
trânsito de uns para os outros, e isto mesmo quando — para
empregarmos o termo husserliano— sucedem «saltos» nas qua­
lidades singulares dqs seus conteúdos. Dito com mais exactidão:
os dados da sensação1 que formam a infra-estrutura de um
aspecto e de que normalmente nós não temos consciência explí­
cita ao vivermos o aspecto variam constantemente e em grau
muito maior do que as qualidades neles baseadas, preenchidas
e não preenchidas, do conteúdo do aspecto que imediatamente
apresentam o ob jecto2. Mas também estas são compreendidas
numa constante mutação e em trânsito contínuo de umas para
outras. E não há apenas passagens qualitativas contínuas entre
aspectos simultáneamente vividos de objectos diversos mas tam­
bém entre aspectos que fazem aparecer um e o mesmo objecto
e são vividos sucessivamente pelo sujeito da percepção. Como,
porém, os aspectos (esquematizados) na obra literária são pos­

1 Sobre os dados da sensação cf. E. Husserl, Ideen zu einer reinen


Phaenomenologie, passim.
2 Bergson diria que cada aspecto está constantemente a vibrar na
sua profundidade e imobilizado na superfície. N a sua análise da percepção
externa (cf. Matière et mémoire, cap. I), num dos dois sistemas por ele
confrontados de «im agens» visa indubitàvelmente a esfera dos aspectos
dados e vividos na percepção. Não conseguiu, porém, apreendê-los na pura
descrição e definir correctamente a sua relação com as coisas percep-
cionadas.
294

tos à disposição por objectos deficientemente determinados ou


por multiplicidades não-contínuas de relações objectivas exposi­
tivas transformam-se então em unidades que se substituem
interruptamente. Com a continuidade das suas transições perde-se
também em alto grau a mobilidade dos seus conteúdos. Preci­
samos, em primeiro lugar, do auxílio do leitor e da operação
móvel da leitura para superar esta cristalização e pôr de novo
o todo em movimento. A interrupção da seqüência dos aspectos,
porém, difícilmente se pode eliminar por completo. Ainda que
até certo grau seja superada, aquilo que efectúa esta superação
e a própria superação não pertencem já à obra literária mas a
uma das suas concretizações que por essência estão referidas
à respectiva leitura e ao le ito r1.
Um segundo facto que é preciso ter aqui em consideração,
embora só constitua uma particularidade das concretizações da
obra literária, resulta contudo da sua estruturação essencial.
Os aspectos impostos ao leitor durante a leitura nunca podem
ser actualizados como dados auténticamente na percepção mas
apenas na modificação da fantasia, embora na própria obra em
geral sejam determinados como percepcionáveis. São, porém,
sugeridos ao leitor apenas por meios artificiais e não pertencem
às objectividades verdadeiramente reais mas apenas às objecti­
vidades puramente intencionais e quase-reais segundo o seu
conteúdo. Os aspectos actualizados ao nível da fantasia têm
como infra-estrutura apenas um material quase-sensorial que
apesar da sua actualidade por essência se distingue dos autên­
ticos dados sensoriais. Por conseguinte, um aspecto actualizado
pela fantasia nunca pode ter, entre outras coisas, a vida e a
animação de um aspecto vivido na percepção. Geralmente tam­
bém não possui a precisão e nitidez deste. Além disso, este
modo de actualização dos aspectos distingue um modo de
vivência característicamente rítm ico : nunca, por conseguinte,
uma continuidade inteira de aspectos pode ser vivida com a
mesma vivacidade e nitidez pelo leitor. Há sempre fases em
que os aspectos actualizados se apagam por completo e depois
resplandecem súbitamente outra vez. Por fim, os aspectos dados
na percepção distinguem-se dos da fantasia pelo modo como o
aspecto duma coisa atentamente percepcionada anda aliado aos
aspectos de tudo o que nos rodeia. Na percepção estes últimos
são certamente muito mais confusos do que o sector central
que nos apresenta o objecto temáticamente percepcionado, mas

1 Cf. sobre este aspecto o capítulo 13.


295

fazem contudo que nos apareçam coisasl. Por conseguinte, é


sempre possível que a intenção salte ou continuamente transite
do objecto agora mesmo percepcionado para outro que lhe
subjaz, modificando-se assim, naturalmente, os aspectos corres­
pondentes sob diversos pontos de vista. Também é possível ao
fitar o objecto agora mesmo percepcionado «olhar de través»
para os que estão e permanecem em segundo plano e apreen­
dê-los precisamente com o-objectos de segundo plano. Neste caso
os aspectos correspondentes do segundo plano sofrem uma modi­
ficação, permanecendo inalterado o modo dos aspectos. Com
efeito, continuam sempre aspectos de segundo plano que fazem
nos co-apareçam coisas e precisamente as mesmas que numa
atitude correspondente nos seriam dadas temáticamente. É pre­
cisamente tudo isto que não sucede na actualização dos aspectos
de uma coisa pela fantasia. Aqui, o aspecto actualizado emerge
de uma nebulosidade indiferenciada e obscura (o que, natural­
mente, não passa de uma imagem) que por essência é diferente
do próprio aspecto reactualizado. Não é capaz, p. ex., de fazer
apresentar ou representar quaisquer coisas ao nível da fantasia.
As coisas que na fantasia aparecem são, portanto, necessària­
mente rodeadas de um ambiente não objectivo que de modo
algum pertence ao mundo objectivo dado e oculta o ambiente
próprio do objecto que aparece na fantasia. O que aparece na
fantasia pode, naturalmente, ser toda uma multiplicidade de
objectos que se reúnem em «zona». Mas também neste caso
existe o círculo obscuro e nebuloso do ambiente. Este emergir
de um meio por essência heterogéneo é particularmente carac­
terístico do modo de aparecimento dos objectos na leitura de
uma obra literária. É este outro ponto em que a obra literária
se distingue essencialmente das suas concretizações. É que
— como já se notou— os aspectos predeterminados e postos
à disposição na própria obra literária são geralmente determi­
nados como dados na percepção. Só as condições particulares
da actualização destes aspectos durante a leitura levam às modi­
ficações agora mesmo referidas.
Circunscrevemos assim o modo de acesso vivo às objecti­
vidades apresentadas em obras literárias. Neste modo há, por
um lado, um limite que na leitura não devemos ultrapassar
— i. é, jamais podemos apreender pela percepção os objectos
apresentados — e, por outro lado, a existência deste limite indi­
ca-nos o caminho em que pode ser ultrapassado, certamente já

1 Cf. E. Husserl, Ideen, p. 62.


296

não numa obra puramente literária mas numa das suas varia­
ções especiais em que alguns dos seus estratos até certo ponto
são «realizados». Há obras literárias particularmente predis­
postas para semelhante «realização»: são as obras «dramáticas».
O modo da sua «realização» é a representação teatral. Volta­
remos ainda a referir-nos a este assunto (§ 57).

§ 43. Os «aspectos internos» dos próprios actos


psíquicos e das qualidades características como
elementos da obra literária

Limitámo-nos até agora a aspectos em que aparecem coisas


mortas e suas qualidades. Há também aspectos de outras objec­
tividades diversas que não só aparecem em obras literárias mas
em muitas delas desempenham até um papel importante. Cons­
tituem aqui um caso especial principalmente os aspectos em
que nos são dados corpos vivos estranhos. Têm indubitàvelmente
por substrato conteúdos de aspecto em que aparecem simples
corpos. Mas este substrato não esgota o conteúdo do aspecto
corporal e precisa, portanto, de um conteúdo especial porque
nem todas as coisas têm qualidades características de um corpo.
Funcionando como substrato está neste caso sujeito a modifi­
cações essenciais na medida em que pelo menos algumas das
qualidades preenchidas ou não que aparecem no seu conteúdo
desempenham a função de remeter para qualidades que já são
características do corpo como tal. Finalmente, aparecem no
conteúdo do aspecto de um corpo (ou de uma qualidade cor­
poral) e erguidas sobre este substrato qualidades muito parti­
culares que fazem aparecer as qualidades características de um
corpo (vivo). Quando, p. ex., a cor esverdeada da cara é tida
como «doentia» ou a cor da superfície é considerada como cor
da pele ao percepcionarmos como eczemas pequenas manchas
avermelhadas, etc., então em todos os aspectos correspondentes
aparecem qualidades muito particulares que não fariam sentido
tratando-se de aspectos dum simples corpo.
Muito mais complicado é o conteúdo de um aspecto quando
este faz aparecer qualidades e características corporais como
«expressão» de processos e qualidades anímicas e espirituais
do indivíduo psíquico. Por mais difícil que seja esclarecer e
descrever estas situações complexas a existência de semelhantes
aspectos — sobretudo depois de falhada a «teoria» da conclusão
por analogia e a «teoria» da intuição de L ip p — mal pode ofe­
recer dúvidas. Tanto o estado de disposição como a actualização
297

eventual destes aspectos é da máxima importancia para a obra


literária e particularmente para a obra de arte literária em que
se trate, em primeiro lugar, da realidade anímica e espiritual.
Também quando realizamos uma percepção «interna» e
estamos dirigidos para as nossas qualidades características, esta­
dos psíquicos e outras mudanças na nossa alma apreendemos
então todas estas objectividades não «imanentemente» (como
as próprias vivências da consciência), mas sempre em aspectos
peculiares «internos» em que estas objectividades nos aparecem l.
Naturalmente, a palavra «aspecto» neste caso tem uma signi­
ficação inteiramente translaticia visto que um «aspecto» que
faz aparecer a nossa alma num determinado estado não é a
título algum comparável, no seu conteúdo, aos conteúdos de
aspectos «externos». Se, porém, usamos esta palavra também
nesta acepção não é só para dispormos de um único termo que
nos permita abranger todo o estrato da obra literária mas
também porque a isto nos obrigam razões puramente objectivas.
O decisivo reside no facto de, em primeiro lugar, aquilo em
que as nossas próprias qualidades e estados anímicos (e até
espirituais) aparecem ser diferente destes 2; de, em segundo lugar,
poder levar estas realidades diferentes de si mesmas à auto-
-apresentação; e, em terceiro lugar, de não ser dado objectiva-
mente, enquanto concebido nesta função, ao sujeito consciente
que apreende as próprias qualidades e estados psíquicos mas
de ser por ele simplesmente vivido. Nestes três pontos o «aspecto
interno» é completamente análogo ao aspecto de uma coisa
«sensivelmente» dada3. Outra analogia entre as duas espécies
fundamentais de aspectos reside na circunstância de nos dois
casos o conteúdo do aspecto se distinguir dos seus momentos
estruturais que o caracterizam como objectividade particular e
de este conteúdo possuir uma estruturação estratificada análoga
nos dois casos. Isso ainda não significa que na infra-estrutura
de um aspecto interno devam necessàriamente aparecer dados

1 Sobre a distinção entre percepção «interna» e «imánente» cf. E. Hus­


serl, Ideen zu einer reinen Phaenomenologie. Cf. ainda M. Geiger, Fragment
über den Begriff des Unbewussten und die psychische Realitàt (Jahrbuch
für Philosophie, vol. I V ) e E. Stein, Beitràge zur philosophischen Be-
gründung der Psychologie (id., vol. V, pp. 18 e segs.).
2 É uma questão totalmente diferente e independente desta saber
se a esfera dos aspectos concretamente vividos da percepção externa e
interna se encontra dentro da região do psíquico. Aqui não pretendemos
resolver este problema.
3 Naturalmente, o aspecto interno não deve ser identificado com a
existência total da percepção interior.
298

de sensação. No caso de existirem são sempre de natureza com­


pletamente heterogénea em relação àqueles que se encontram
na infra-estrutura pertencente à percepção externa. São sobre­
tudo dados de natureza preponderantemente cinestética locali­
zados no «meu» próprio corpo, depois «sensações afectivas»
(no sentido de E. H usserl)1: p. ex., sensações de dor, sensações
sexuais, etc., dados inteiramente distintos dos dados de cor, de
tom, de tacto ou de olfacto. Além disso, são dados que parecem
não ser próprios de nenhuma parte do meu corpo e contudo
são «corporais», como, p. ex., o sentir-se fraco, o estar fresco, etc.
O restante fundamento dos dados ultrapassa o puramente cor­
póreo e é essencialmente diferente conforme a esfera parcial
anímica que está precisamente co-relacionada com a excitação
ou lhe fica distante e conforme o modo da própria excitação2.
O conteúdo do aspecto interior depende da espécie e da multi­
plicidade dos dados que o fundamentam. Mas também o modo
de estes dados aparecerem desempenha aqui uma função signi­
ficativa. Quando, p. ex., num indivíduo psíquico as sensações
afectivas costumam aparecer com grande veemência e com
intensidade rápidamente crescente isto revela o temperamento
apaixonado e certa instabilidade do indivíduo respectivo, etc.
Do conteúdo do aspecto interno, por sua vez, depende o que
nos aparece na percepção interna dos nossos estados, processos
e características psíquicos. Por outro lado, uma e a mesma

1 Cf. Logischen Untersuchungen, vol. II, Investigação V, § 15.


2 Até agora os aspectos internos ficaram quase por completo des­
percebidos, por um lado, porque a psicologia do século xix, sob a influência
do empirismo inglês, entendeu por «psíquico» meramente as vivências
conscientes e recusou como «construção metafísica» tudo quanto não fosse
vivência. Com isto também todos os aspectos internas imediatamente
unidos às vivências.perderam a sua função de «fazer aparecer» os estados
psíquicos e os traços característicos e não puderam ser reconhecidos como
aspectos. Só as investigações realizadas pelos fenomenólogos (Pfaender,
Scheler, Geiger, E. Stein) e bem assim muitas tendências da psicanálise
nos abriram de novo o caminho para a investigação do auténticamente
psíquico. Por outro lado, a razão de ficarem despercebidos os aspectos
internos reside no facto de ser realmente muito difícil intuí-los e descre­
vê-los em si mesmos e na sua função. É que tanto no simples perceber
como na percepção interna dos actos psíquicos os aspectos internos bem
como o correspondente material da sensação — como é devido à sua
essência— são apenas vividos mas não objectivamente apreendidos em
si mesmos, o que essencialmente dificulta a sua análise. Para isto é preciso
assumir uma atitude inteiramente particular que nos ponha, em primeiro
lugar, perante o olhar não só a infra-estrutura sensorial do aspecto mas
também o mesmo aspecto. São mais fáceis de captar numa recordação
clara.
299

característica pode aparecer em vários aspectos internos que


têm uma infra-estrutura sensorial especificamente diferente.
A mesma brutalidade pode surgir, p. ex., tanto num acesso de
ira como numa excitação sexual e em ambos os casos são com­
pletamente diferentes os aspectos e os dados sensoriais fun­
dadores.
Há, naturalmente, estados psíquicos (eventualmente proces­
sos) e também qualidades características que aparecem nesses
aspectos internos que não têm infra-estrutura sensorial. Se, neste
caso, ainda se vivem quaisquer sensações internas estas cons­
tituem então apenas um «fenómeno concomitante» e não par­
ticipam da função de apresentação do psíquico. Quando, p. ex.,
qualquer das minhas qualidades puramente espirituais se mani­
festa nestes ou naqueles aspectos então as sensações internas
eventualmente existentes não desempenham qualquer função
essencial. É, antes, no modo de realização das operações sub­
jectivas ou dos actos que se manifesta esta qualidade espiritual.
Se sou de decisão difícil então é no modo hesitante caracterís­
tico do «decidir-se» que esta qualidade da minha pessoa me
aparece. As situações vivenciais, a resolução a tomar, a minha
posição perante mim próprio e perante aquilo sobre que eu
tenho de decidir podem ser muito diferentes. Precisamente esta
diferença é a condição de a mesma irresolução se me apresentar
sob aspectos diversos. É esta o idêntico, o que aparece e as
diversas situações vivenciais constituem os aspectos sob que ela
se manifesta.
Às diferenças já referidas entre os aspectos internos acres­
cem ainda as diferentes modificações que resultam das dife­
renças de percepção interna: se a percepção tem como tema
principal precisamente o respectivo estado psíquico ou se o
capta apenas de modo periférico, se a percepção é mais ou
menos atenta e nítida, etc. Surge um modo especial de apare­
cimento do psíquico (e implicitamente também um tipo especial
de aspectos internos) quando sem qualquer percepção interna
como acto de consciência especial e reflexivo nos damos conta
simplesmente do processo psíquico que está a desenvolver-se.
Um processo ou um estado psíquico cifectam-nos aqui de certo
modo e chegam assim a aparecer. O primeiro resultado desta
afecção pode ser a realização de uma percepção interna deste
estado quando por qualquer razão tenha interesse para nós.
Pode também suceder que no momento em que nós nos damos
conta de um estado psíquico sem ainda o termos percepcionado
passemos pelo estado que nos afecta sem dar por ele e mesmo
o reprimamos até certo grau para o inconsciente (cf. Freud).
300

Isto implica, por sua vez, outros modos de aparecimento dos


acontecimentos psíquicos.
Tudo isto não pretende ser mais do que exemplos esboçados
para corroborar a nossa afirmação de que acontecimentos e
objectividades psíquicos também aparecem sob múltiplos aspec­
tos. Os aspectos internos convenientemente esquematizados en­
tram em obras literárias como os aspectos «externos». A grande
arte do poeta reside justamente em não falar simplesmente dos
estados psíquicos e dos traços característicos dos «heróis» mas
em apresentá-los em tais relações objectivas que as situações
vivenciais e os aspectos em que se manifestam as respectivas
realidades psíquicas sejam determinados e impostos ao leitor
na sua função apresentativa. Quando falta este modo de apre­
sentar, quando os respectivos aspectos interiores não são postos à
disposição e o indivíduo psíquico também não é apresentado nos
seus modos «externos» de comportamento, então temos perante
nós apenas formas mortas e de papel1.

; P e la s r e fle x õ e s s o b r e os a sp e c to s e s q u e m a tiz a d o s em o b r a s lite rá ria s


ju lg á m o s ter p o sto em nova base e haver re s o lv id o o v e lh o p r o b le m a ,
d e sd e L e s s in g fr e q u e n te m e n te tra ta d o , d a p a rt ic ip a ç ã o d o ele m e n to in tu i­
tivo em o b r a s lite rá ria s . T h. A. M e y e r (cf. Das Stiigesetz der Poesie) c o m ­
bate , c o m o se sab e, em p a rt e co m raz ão , as e x c e n tric id a d e s d o s «e s te ta s
da in t u iç ã o » (m u ito em p a r t ic u la r o p o n to d e v ista de V is c h e r ) e e s g rim e
vee m e n te m e n te c o n tra a e x istên c ia do ele m e n to in tu itivo em o b ra s lite­
rá ria s . A o m e s m o tem p o , p o ré m , re ú n e n os c a p ítu lo s I X e X d a su a in te­
re s sa n te o b ra um rico m a t e ria l que n ão só fa v o r e c e a e x istên c ia dos
a s p e c to s e s q u e m a tiz a d o s (n a n o s sa a c e p ç ã o ) em o b r a s lite rá ria s m as ta m ­
b é m p o d e c o n fir m a r a n o s sa c o n c e p ç ã o de q u e os a sp e c to s e s q u e m a tiz a d o s
s ão p o sto s à d is p o s iç ã o , en tre o u tro s, p e las d iv e rs a s fo r m a ç õ e s e c a r a c t e ­
rística s fó n ic o -lin g u ístic a s. P roc u ra e lim in a r a in c o n se q u é n c ia que daí
re s u lta p e la su a teo ria d a «ilu s ã o d a u n id a d e d a im a g e m » (/. c., pp. 186
c segs., 22). T o d a s estas d ific u ld a d e s e e r r o s de in te rp re ta ç ã o re s u lta m de
M e y e r n ã o fo c a r n itid a m e n te a o b r a lit e r á r ia n a su a e s tra tific a ç ã o e p o li­
fo n ia n em a c o n fr o n t a r co m as su as c o n c retiza çõ es e as v iv ê n c ia s s u b je c ­
tivas d o leito r. O liv ro in tere ssan te de M e y e r é, talvez, o m e lh o r e x e m p lo
de c o m o a ten d ên cia p s ic o lo g is ta in d u z a e r r o a u to re s excelentes.
Capítulo 9

A função do estrato dos aspectos esquematizados


na obra literária

§ 44. A distinção das funções fundamentais dos aspectos


esquematizados na obra literária

A função que o estrato dos aspectos desempenha na obra


literária é dupla. Em primeiro lugar, os aspectos postos à dis­
posição possibilitam apreender intuitivamente os objectos apre­
sentados em tipos predeterminados do modo de aparecimento;
ao mesmo tempo, ganham certo poder sobre os objectos apre­
sentados influenciando a sua constituição. Em segundo lugar,
os aspectos têm as suas qualidades e constituem qualidades
próprias de valor estético que falam na polifonia da obra inteira
a sua própria linguagem e desempenham um papel essencial
na recepção estética da obra.
Trata-se agora de analisar nos seus pormenores as varia­
ções e os tipos destas duas funções dos aspectos. Assim demons-
trar-se-á, em primeiro lugar, que as diferenças entre as obras
também são influenciadas pelas diferenças dos aspectos. A nossa
afirmação a respeito da ressonância dos aspectos na polifonia
da obra (e particularmente de uma obra de arte literária) encon­
trará aqui a sua justificação e esclarecimento. Queremos limi-
tar-nos agora apenas a alguns casos típicos.

§ 45. A função determinante dos aspectos.


A influência das diferenças entre os aspectos
no caracter total da obra 1

A primeira e a mais importante função dos aspectos na


obra literária consiste em poder fazer aparecer os objectos
apresentados de uma maneira predeterminada pela própria obra.
Se os aspectos faltassem completamente na obra os objectos

1 Q uando não há p e rig o de q u a lq u e r m a l-e n te n d id o d izem o s, p a ra


a b r e v ia r , « a s p e c t o » em vez d e «a s p e c t o e s q u e m a t iz a d o ».
302

apresentados seriam durante a leitura apenas intencionados de


modo vazio e pensados de uma maneira inteiramente não intui­
tiva, caso naturalmente o leitor se cinja rigorosamente àquilo
que a obra assim entendida (portanto desprovida de aspectos)
lhe oferecc. As objectividades apresentadas seriam então esque­
mas vazios meramente «conceptuáis» e nunca teríamos a impres­
são de termos perante nós uma quase-realidade própria e viva:
o seu carácter concreto, a sua rigorosa individualidade e viva­
cidade, a sua encarnação só podem ser produzidas pela actua­
lização dos aspectos postos à disposição. Onde este carácter
concreto e vivo tiver significado decisivo — como numa obra
de arte literária — os aspectos postos à disposição são intei­
ramente indispensáveis; de contrário, a obra é mais um tratado
árido ou um palavreado «no papel» do que uma obra de a rte1.
É certamente de supor que mesmo no caso em que os aspectos
não fossem postos à disposição na obra o leitor actualizaría
durante a leitura vários aspectos, por assim dizer, por iniciativa
própria. Neste caso o leitor não estaria de modo algum vin­
culado neste aspecto pela obra e dependeria inteiramente do
acaso quais os aspectos que ele precisamente actualizaría. O facto
de ele estar realmente em alto grau vinculado e de lhe serem
impostos tipos bem determinados de aspectos prova da melhor
maneira que os aspectos são predeterminados e postos à dispo­
sição na própria obra.
Como já se disse, a função dos aspectos nesta perspectiva
vai ainda mais longe. Se apenas fossem predeterminados e postos
à disposição pelo mero conteúdo de sentido das frases (ou pelas
correspondentes relações objectivas) apenas fariam aparecer as
objectividades apresentadas, mas não teriam nenhuma influência
sobre a sua constituição. Entretanto, também as diversas forma­
ções fónico-linguísticas levam ao estado de disponibilidade de
aspectos 1 e assim acontece que, p. ex., com o emprego de duas
palavras idênticas na significação mas diferentes no fonema
significativo podem ser postos à disposição aspectos diversos
ou que de uma vez um aspecto é posto à disposição e de outra
vez é apenas predeterminado pela significação da palavra mas
sem se impor ao leitor. Assim, pode também suceder que uma

1 M a x D e s s o ir p a re ce , a este resp eito , ter o p in iã o d ife re n te , cf. Ãsthetik


und allgemeine Kunstwissenschaft, pp. 359 e segs.
1 Q u e isto é p o ss ív e l p ro v a -o o fa c to de n a m ú s ic a co m fo r m a s p u r a ­
m en te ton ais se p o d e r e m « a p r e s e n t a r » , no d iz e r d o s m ú sic os, d e te rm in a d a s
s itu aç õ e s o b je c tiv a s , i. é, em te rm o s rig o ro s o s , p ô r à d is p o s iç ã o d e te r m i­
n a d o s aspectos.
303

palavra, graças ao seu fonema significativo, ponha à disposição


um aspecto diferente daquele que é predeterminado pela signi­
ficação da palavra ou que o aspecto disponível, graças à palavra,
transcenda o objecto determinado pela sua significação. Aqui
está a razão por que o encontro da palavra «adequada» que não
esteja somente pelo sentido no seu lugar e posição mas também
pela capacidade de pôr à disposição os respectivos aspectos é
tão altamente significativo para a arte poética. Por conseguinte,
os aspectos postos à disposição não só podem contribuir para
o aparecimento intuitivo mas também para a constituição das
objectividades apresentadas no sentido de essas objectividades
parecerem receber durante a leitura momentos ou qualidades
que não lhes pertencem, a julgar apenas por aquilo que é apre­
sentado pelas relações objectivas. Neste caso é permitido falar
também de uma função determinante dos aspectos.
É preciso distinguir aqui rigorosamente duas situações dife­
rentes. 1. Em primeiro lugar e em sentido próprio, o objecto
apresentado é determinado pela intencionalidade das unidades
de significação ou por relações objectivas correspondentes pura­
mente intencionais graças à sua função apresentativa. 2. Em con­
trapartida, os aspectos disponíveis só em segundo lugar cumprem
a função determinante a respeito dos objectos apresentados, na
sua maioria apenas no sentido de os fazer aparecer. Quando se
adequam exactamente ao conteúdo dos correlatos intencionais
correspondentes das frases então não desempenham nenhuma
função determinante especial com respeito ao objecto ou aquele
componente da função determinante contido na função de fazer
aparecer corre paralelamente ao da intencionalidade da signifi­
cação. Quando, porém, as qualidades especiais das formações
fónico-linguísticas levam ao «estado de disponibilidade» de .aspec­
tos que fazem aparecer qualidades novas do objecto não apre­
sentadas pelos correlatos intencionais da frase então os aspectos
adquirem, por assim dizer, uma função determinante própria:
acrescentam ao objecto algo de novo, mas só por desempenharem
como aspectos a função de fazer aparecer. Há neste caso, em
certo sentido, ilusões especiais na medida em que algo aparece
que nem tem um ser autónomo nem um ser puramente inten­
cional fundado na intencionalidade das unidades de significação,
não existindo, portanto, também no sentido do ser heterónomo.
E contudo parece existir porque um aspecto o faz aparecer.
Qual o significado que tem para as qualidades da obra total
o facto de nela existirem aspectos esquematizados explicar-se-á
com a maior das facilidades-quando mostrarmos — pelo menos
com alguns exemplos — como a diversidade dos aspectos modi­
304

fica a totalidade da obra e lhe confere um carácter diferente


conforme a espécie dos aspectos preponderantes.
Em princípio, podem estar disponíveis numa obra literária
aspectos de qualquer conteúdo possível. Assim, podem empre­
gar-se na apresentação de uma e a mesma situação simultánea­
mente, p. ex., aspectos visuais, acústicos e tácteis. O estado
psíquico de um «herói» pode, p. ex., ser apresentado por aspec­
tos externos das suas atitudes corporais e por aspectos inter­
nos, etc. Por outro lado, podem estar disponíveis aspectos esque­
matizados que, por assim dizer, são interpretados em conjunto
a partir de um único ponto de vista. É também possível empregar
aspectos que pertencem a pontos de vista inteiramente diversos
e se confundem de tal maneira que o objecto em causa aparece
quase simultáneamente de piodo diverso. Neste caso, o leitor
não pode contemplar os objectos sossegada e, por assim dizer,
sistemáticamente mas pode apenas deixar-se impressionar por
eles através de uma multidão de aspectos cooperantes e nesta
cooperação conducentes a fenómenos' especiais de opalização.
Assim, também o mundo apresentado não só é apresentado
desde vários ângulos mas adquire outrossim um carácter inquieto
e vivo que possui especial atracção estética.
O caso muito mais vulgar, porém, é o da preponderância de
um género especial de aspectos na mesma obra que lhe conferem
assim um cunho característico. Numa obra, p. ex., empregam-se
predominantemente aspectos «externos» dos homens e seus com­
portamentos para fazer aparecer as realidades psíquicas; noutra
obra, em contrapartida, são sobretudo vários aspectos «internos»
que visam o mesmo fim. Por outro lado, há obras em que os
aspectos visuais prevalecem em tal medida que o mundo apre­
sentado é essencialmente um mundo apenas visto em que mesmo
os fenómenos meramente acústicos ou com aspectos acústicos
são inteiramente eliminados ou só são determinados a partir
da perspectiva visual. Quando se trata, p. ex., de um forte bater
da porta por uma personagem enfurecida vê-se neste caso como
a porta é empurrada com um movimento violento e aparece neste
movimento mas não se ouve o estrondo que faz ao bater. Quando,
p. ex., se descrevem os gritos da mesma personagem enfurecida
não ouvimos os sons estridentes que da garganta penetram no
espaço e de certo modo o cortam mas mostram-se os músculos
faciais fortemente retesados na gritaria, a aparência fisionômica,
a boca súbitamente escancarada que a personagem de certo
modo não consegue fechar porque a fúria raivosa obriga-a a
lançar sempre novos insultos ao adversário, etc. Numa outra
obra uma situação semelhante pode aparecer através de aspectos
305

predominantemente acústicos de modo que apenas ouvimos esta


personagem a enraivecer-se e a gritar mas não chegamos a vê-la
nesta situação. Ainda que em ambos os casos se tratasse de
uma e a mesma situação, esta — entendida como puramente
intencional — ficaria essencialmente modificada com o emprego
de outras relações objectivas e a disponibilidade de várias séries
de aspectos, ao mesmo tempo que seria determinada e apreen­
dida sob outro ângulo, conteria em si outros pontos de indeter­
minação e possuiria, eventualmente, também outra valência
estética. Somente porque durante a leitura transcendemos em
geral o puramente oferecido na obra e vemos por alto os pontos
de indeterminação 1 julgamos estar em ambos os casos perante
«a mesma» situação apresentada. Se, p. ex., traduzíssemos uma
obra de arte literária de tal modo que as objectividades apre­
sentadas fossem constituídas pelas mesmas relações objectivas
e possuíssem inteiramente os mesmos momentos do «original»
mas ao mesmo tempo o estrato dos aspectos se modificasse
pelo emprego, porventura, de outro material fónico de modo
que os aspectos visuais anteriormente dominantes fossem na
maior parte da tradução* substituídos por aspectos acústicos o '
carácter total da obra só por isso deveria ^sofrer uma modifi­
cação essencial. Neste caso, com razão poder-se-ia perguntar se
ainda estaríamos perante a mesma obra de arte.
Outra diferença importante entre as obras resulta do facto
de numa obra estarem disponíveis principal ou até exclusiva­
mente aspectos que, por assim dizer, constituem propriedade
comum ou, pelo menos, de determinados círculos de leitores
porque esses aspectos não só se conhecem geralmente mas tam­
bém são o modo quotidiano e médio de aparecimento, enquanto
noutros casos aparecem aspectos em que só raramente e em
circunstâncias extraordinárias tivemos oportunidade de percep-
cionar objectos semelhantes aos apresentados 2. Os aspectos des­
conhecidos e invulgares revelam-nos uma «face» completamente
nova do mundo apresentado, permitem-nos descobrir novos por­
menores em situações há muito conhecidas e monótonas embora
de início nos dificultem a justa intuição das objectividades apre­
sentadas. O emprego destes aspectos confere ao mundo apresen­
tado um brilho de novidade e interesse que por si mesmo cons-

1 Assim, transcendemos também a respectiva obra literária e depa­


ramos com uma das suas concretizações possíveis.
2 Esta diferença, mutatis mutandis, desempenha também uma função
importante na pintura e em particular nos retratos ou na apreciação da
sua «semelhança» com o modelo.

20
306

titui um valor estético positivo posto que apenas transitório.


Muitas vezes o aparecimento de novas tendências literárias pode
ser reduzido ao facto de os objectos apresentados aparecerem
em multiplicidades de aspectos inteiramente novas e até então
não usadas. Naturalmente, influi neste caso não só o carácter
invulgar destes aspectos mas também, por um lado, a circuns­
tância já mencionada de que a variação do género dos aspectos
implica uma modificação dos objectos apresentados e, por outro,
o facto de implicar também — se é permitido dizer assim — o
aparecimento de novos momentos decorativos dos aspectos
Com a diferença referida pode cruzar-se uma outra que lhe
é afim mas não pode ser idêntica. Quando muitos aspectos se
nos tornaram mais conhecidos do que outros e, ao mesmo tempo,
se adquiriu o hábito de percepcionar e representar sobretudo
neles as coisas correspondentes 2 isto pode ter a sua razão, por
um lado, no facto de muitas coisas nos terem sido dadas com
mais frequência precisamente numa determinada selecção de
aspectos e de nós por quaisquer considerações práticas termos
tido interesse em percepcionar estas coisas precisamente sob
tais aspectos. O facto de muitos aspectos típicos serem conhe-

1 Considerada a obra de arte literária como «expressão» da posição


do autor ou dos seus contemporâneos perante o mundo esta mutação
pode reflectir uma mudança na maneira de ver e sentir e também na
modalidade do gosto estético do autor e da sua época.
2 Este hábito pode ir até ao ponto de ocultar notàvelmente os objec­
tos. Uma vez formado este hábito pode suceder que quase não somos
capazes de viver na sua pureza um aspecto invulgar. Neste caso, não
podemos ter uma percepção compreensiva de qualidades objectivas des­
conhecidas mas interpretamos, por assim dizer, inconscientemente e sem
querer os aspectos actualmente vividos no sentido dos vividos outrora
por nós com mais frequência e percepcionamos a coisa actualmente dada
sob o aspecto do já conhecido. O actualmente vivido e percepcionado é
em alto grau' ocultado pelo vivido outrora. São atitudes práticas especial­
mente determinadas que muitas vezes levam a tais simulações. Neste
sentido, H. Bergson teria razão ao falar de «esquemas práticos». Mas
tanto Bergson como recentemente também M. Heidegger estão errados ao
julgarem que estes esquemas práticos são o original. Particularmente
Heidegger comete um erro ao afirmar que a atitude puramente cognosci­
tiva tem o seu fundamento nesta atitude prática. Passa-lhe despercebido
não só o facto de a atitude prática se form ar sobre o fundo de modos
primitivos de conhecimento e de conduzir à ocultação agora referida mas
ainda o de esta ocultação dever ser eliminada e não posta na base (como
a palavra «fundamentação» parece dar a entender!) quando se pretende
regressar à percepção pura. Neste último aspecto deve dar-se razão a
Bergson. Infelizmente, porém, Bergson não foi bem sucedido em muitos
pontos quanto à sua concepção do conhecimento prático e do intuitivo puro.
307

cidos pode ter ainda outra razão. Como uma análise mais exacta
demonstra, nem todos os aspectos que em princípio pertencem
a um objecto têm a capacidade — se a palavra é permitida —
de o apresentar nitidamente na sua própria essência e nas pro­
priedades do seu modo de ser. Ao vivermos muitos deles «sal­
ta-nos» imediatamente «aos olhos» — como se d iz— o momento
especialmente característico e expressivo de toda a essência,
enquanto outros aspectos não nos facultam, ou, pelo menos,
não na mesma medida, o acesso pelo conhecimento à essência
do mesmo objecto. No primeiro caso estabelece-se, por assim
dizer, a face própria do objecto; no segundo caso, ao contrário,
apreendemos apenas o casual ou o que jaz na superfície, o médio,
o quotidiano. Com nitidez particular ressalta esta diferença
entre os aspectos ao apreendermos imediatamente estados psí­
quicos e traços característicos alheios. Dada a complexidade
deste modo de conhecimento pode certamente duvidar-se de
qual seja propriamente a razão por que nós, por vezes, numa
expressão de rosto apreendemos imediatamente o homem total
nqs. seus traços essenciais, enquanto noutra não conseguimos
adivinhar absolutamente nada ou apenas muito pouco da sua
estrutura anímica e do estado psíquico que precisamente se
está a desenrolar. Muitos investigadores quererão aderir à afir­
mação de que a própria expressão fisionômica desempenha,
antes de mais, esta função reveladora ou ocultante. Por mais
correcto que isto seja não se pode deixar de notar que a escolha
dos aspectos em que é dada uma e a mesma expressão fisionó-
mica é igualmente de grande importância. Basta, p. ex., contem­
plar a face de uma pessoa e a sua mímica numa invulgar e forte
abreviação perspectivista, p. ex., de cima ou de baixo, para nos
convencermos de que a mudança dos aspectos muitas vezes
leva à quase irreconhecibilidade sobretudo da própria expressão
fisionômica e, consequentemente, também do correspondente
carácter (ou do estado psíquico). O mesmo vale quanto ao
modo de aparecimento das coisas mortas. Por conseguinte, é
da máxima importância para a obra de arte literária a qualidade
das multiplicidades de aspectos que nela são postas à disposição.
Se o mundo apresentado deve ter realmente «sangue» e «fres­
cura», se a obra deve revelar o que há de mais específico e
essencial nos objectos apresentados, então é preciso que nela
estejam à disposição multiplicidades de aspectos de grande
força reveladora.
Outra diferença do modo de aparecer das objectividades
apresentadas para que desejaríamos ainda chamar a atenção
salta-nos à vista quando, p. ex., comparamos as obras mais
308

antigas da literatura «narrativa» (e ainda, p. ex., a Montanha


Mágica, de Thomas Mann) com as obras do período expressio-
nista mais recente. Como atrás observámos, em princípio não
é possível termos à disposição todas as multiplicidades e con­
tinuidades ininterruptas de aspectos. Entre as obras singulares
pode haver diferenças consideráveis no grau de descontinuidade
o.u no modo de conexão entre os aspectos singulares. Se, p. ex.,
lermos os primeiros capítulos da Montanha Mágica (uma obra
que, neste aspecto, é particularmente instrutiva) não só encon­
tramos uma variedade de relações objectivas que se seguem
umas às outras intimamente relacionadas entre si e apresentam
uma história quase ininterrupta, mas impõem-se-nos ao mesmo
tempo aspectos intimamente conexos das correspondentes objec­
tividades. Quando, p. ex., saímos com o protagonista deste
romance do seu quarto, atravessamos o corredor e descemos
a escadaria para a sala de jantar os objectos respectivos variam
quase continuamente diante dos nossos olhos em aspectos cor­
respondentes de maneira que ao passar podemos ver, em pri­
meiro lugar, o quarto, a seguir o corredor, etc., assim como
na realidade se nos apresentariam uns após outros. Não é ape­
nas a grande arte de Thomas M ann1 mas também um cunho
característico de uma direcção da arte literária que atinge aqui
o ponto culminante. E não é um defeito ou uma incapacidade
para dar forma correspondente à função de apresentação mas
'é uma vontade artística diferente que produz efeitos próprios
e novos e igualmente pode ser «grande arte» quando, porven­
tura, em obras literárias expressionistas não só encontramos
apresentadas situações objectivas predominantemente momentâ­
neas e mediatamente conexas mas também manifestadas em
aspectos que, digamos, são arrancados à continuidade, em que
constituem fases de transição e se substituem intermitentemente
uns aos outros: cada um destes aspectos é quase como um
instantâneo fotográfico que de súbito reluz e se extingue. Quando
um novo aspecto surge este não é nenhum prolongamento,
nenhuma fase imediatamente seguinte da mesma continuidade
de aspectos, mas algo que não tem conexão com o aspecto
precedente mas é dele separado por um abismo de não-existência
de aspectos. Talvez os «instantâneos» singulares devam — se é
permitido expressar-se assim — o seu grande brilho e, ao mesmo
tempo, a grande força de revelação dos objectos que neles apa­
recem precisamente ao seu súbito reluzir e extinguir-se, à sua

1 É magistral neste aspecto o início da novela H err und Hund.


309

substituição intermitente. Reside nisto um dos traços essenciais


do expressionismo literário, ainda que isto não esgote de modo
algum a sua essência.
A diferença agora descrita quanto ao modo de apresentação
não deixa de ter conseqüências para as próprias objectividades
apresentadas. No primeiro caso desenvolve-se diante de nós um
processo quase contínuo; no segundo, ao contrário, há apenas
uma seqüência livre de situações momentâneas, de momentos
de transição, cujas fases intermédias não são imediatamente
apresentadas e neste sentido faltam completamente, de momen­
tos de transição de tal modo determinados em si mesmos que
são, por assim dizer, «auto-suficientes» e não tendem de modo
algum ou apenas em escala modesta para a apresentação mediata
das fases que faltam. Sem dúvida, isto tem a sua raiz, em última
análise, no modo como as relações objectivas são projectadas
pelos sentidos das frases, mas os aspectos postos à disposição
reforçam ainda esta instantaneidade do mundo assim apresen­
tado e dão-lhe corpo desta forma característica.
Como vemos, a espécie dos aspectos predominantes numa
obra não só lhe pode imprimir um cunho característico mas
também produzir, diferenças estilísticas entre as obras. Investi­
gações especiais que se iniciassem aqui poderiam desde este
ponto de vista lançar uma luz inteiramente nova sobre as dife­
renças entre as correntes literárias. As observações seguintes
irão ainda corroborar essa nossa convicção.

§ 46. Qualidades decorativas e outras de relevância


estética dos aspectos.

A par das diferenças entre os aspectos com respeito à sua


função de fazerem aparecer os objectos apresentados, tratadas
no parágrafo anterior, outras diferenças surgem que se relacio­
nam com aqueles elementos e qualidades dos conteúdos dos
aspectos que são portadores de valores estéticos. Queremos
dedicar-lhes ainda algumas considerações.
Sirvamo-nos, em primeiro lugar, de uma analogia. Quando
um fotógrafo artisticamente dotado quer tirar uma boa foto­
grafia, então escolhe primeiramente dos muitos aspectos pos­
síveis do objecto em questão aquele que não só é capaz de
produzir de um modo relativamente melhor a semelhança da
imagem com o dito objecto mas também em si contém traços
especiais estéticamente relevantes no que toca, p. ex., aos efeitos
de luz, às linhas, aos momentos afectivos e outros. Neste sentido
310

tem sobretudo de olhar conscientemente para os aspectos visuais,


que, regra geral, são apenas simplesmente vividos e a que não
se presta atenção e de os apreciar, p. ex., nos seus efeitos de
luz, etc. Tem de ser especialmente sensível aos valores estéticos
de natureza predominantemente decorativa que se fundam nestes
efeitos de luz, cores e linhas. O que daqui resulta: a recons­
trução, por meios fotográficos1, do aspecto escolhido é apenas
técnica mais ou menos exercitada. Semelhantes momentos dos
aspectos também têm, p. ex., os escultores em vista quando
— no caso talvez de um monumento — não esculpem segundo
proporções puramente anatómicas uma figura humana que se
deve erguer num alto pedestal e que por isso deve ser contem­
plada de baixo para cima e de determinada distância, mas
dão-lhe uma forma tal que ela olhada de baixo possa provocar
uma «impressão» intencionada (i. é, nada mais do que um
aspecto carregado de qualidades especiais de valor estético).
Por outras palavras: entre os aspectos visuais há aqueles cujo
conteúdo, no que respeita à escolha das cores e das combinações
de cores e à escolha da sua forma e ordenação, encerra em si
qualidades positivas de valor estético (noutros casos precisa­
mente negativas)2. Levar-nos-ia demasiado longe analisar aqui
com maior minúcia de que espécies podem ser estas qualidades
de valor ou mesmo valores e que tipos são possíveis entre eles \
Temos neste ponto de nos limitar a observar que o estrato dos
aspectos nas obras literárias contém qualidades próprias de
valor estético e pode constituir valores estéticos próprios con­
forme o tipo do aspecto e a modalidade do seu conteúdo e que
dentro de uma e a mesma modalidade destes conteúdos ainda
são possíveis sistemas diferentes de qualidades de valor har­
mónicos entre si. Estes sistemas constituem, por seu lado, aquilo
que se pode cjiamar o estilo de uma multiplicidade variada de
aspectos e é uma jnrma valiosa que se constitui tanto nos ele­
mentos e no tipoydos aspectos como nas qualidades de valor
neles existentes. Estas particularidades e diferenças de estilo,

1 É natural que não se devem identificar as manchas de sombra e


cor resultantes de um efeito químico na chapa fotográfica com um aspecto
concreto vivido. Somente aquilo que ao contemplarmos a fotografia deve
ser provocado por meio destas manchas constitui um aspecto que se asse­
melha ou então se deve assemelhar a um aspecto do objecto fotografado.
2 Mutatis mutandis, também isto é válido quanto aos aspectos de
outros domínios sensoriais.
3 Estudar isto a fundo constitui um vasto tema para os teorizadores
c historiadores da arte e em especial para a ciência da literatura.
311

porém, não são geralmente apreendíctas em si mesmas quer na


vivência concreta de aspectos dados na percepção, quer na sua
actualização pela fantasia como particularidades de aspectos,
mas convertem-se em determinadas particularidades e diferenças
de estilo dos objectos #que nelas aparecem. Mas elas pertencem
a estes últimos apenas como a objectos que aparecem. Ou por
outras palavras: na medida em que estes ou outros objectos
aparecem em aspectos caracterizados com precisão com respeito
ao estilo eles próprios exibem especiais particularidades de
estilo valiosamente qualitativas. Como, porém, a multiplicidade
variada de aspectos, observada numa perspectiva puramente
ontológica, no caso de objectos ontològicamente autónomos e
em especial de objectos reais não constitui uma parte funda­
mental deles nem os condiciona ontològicamente, também desa­
pareceriam completamente as particularidades de estilo em con­
sideração se de todo não existissem as multiplicidades variadas
de aspectos. Estas particularidades de estilo não constituem nada
que se atribuísse aos objectos reais como uma das suas quali­
dades reais.
Situações semelhantes mas com a respectiva modificação
encontram-se patentes nos aspectos esquematizados e disponíveis
das obras literárias. É possível, por meios convenientes que não
devem aqui ser analisados em pormenor, pôr à disposição na
obra literária aspectos que contenham em si os momentos
valiosamente qualitativos acima indicados sobretudo de natu­
reza decorativa e que numa realização consequente imprimam
não só aos objectos participantes em situações singulares mas
sobretudo no mundo global apresentado e feito aparecer numa
determinada obra um estilo especial, estéticamente relevante,
dependente do tipo do seu modo de aparecer. E os momentos
estéticamente relevantes dos aspectos esquematizados desempe­
nham então nas obras de arte literária uma função muito mais
significativa do que nos aspectos concretos em que nos aparecem
objectos reais. Na verdade, em primeiro lugar, os objectos apre­
sentados são na sua constituição ôntica também dependentes
dos aspectos postos à disposição mercê da função determinante
destes, acima tratada, o que não se passa com os objectos reais.
Em conseqüência disto são enriquecidos em seus conteúdos
pelos aspectos postos à disposição com os respectivos momentos
valiosamente qualitativos e particularidades de estilo. Em se­
gundo lugar, tem este enriquecimento um significado especial
na obra de arte literária. É que os objectos são em muitas obras
apresentados sobretudo com o fim de aparecerem sob aspectos
312

valiosamente qualificados e com isso serem portadores de deter­


minadas particularidades de estilo. Se eles fossem totalmente
despojados destas particularidades passariam a ser em muitas
obras completamente indiferentes como elementos da obra de
arte e a obra correspondente sofreria forçosamente considerá­
veis perdas com respeito ao seu valor estético. Finalmente, de
muitos e variados modos nos podemos comportar para com os
objectos reais e todavia só um entre eles constitui o modo de
comportamento estético. Caso ele exista e faça intuir valores
estéticos então possui o seu sentido próprio e o seu lugar próprio
na nossa vida. Ele é, no entanto, apenas algo de secundário,
algo que é somente um ornamento, um luxo na vida prática.
A vida activa real põe em primeiro plano outros modos de
comportamento para com os objectos e outros sistemas de valor.
Assim, é mais por um acaso que as particularidades de estilo
estéticamente relevantes dos objectos chegam a ser apreendidas.
O contrário, precisamente, se dá no caso de uma obra de arte
e em especial de uma obra de arte literária. É certo que também
aqui são possíveis atitudes diversas para com os objectos apre­
sentados, mas a atitude estética é neste caso primária no sentido
em que é dela que se trata em primeiro lugar e é em sua função
que a obra de arte está «calculada». Esta atitude, porém, exige
em certo sentido que os objectos que se nos deparam sejam
portadores de qualidades de valor estético e que, portanto, entre
outras coisas estejam providos também daquelas particularidades
de estilo que lhes advêm dos aspectos convenientemente cons­
truídos de acordo com o seu conteúdo. Por outras palavras:
estas qualidades de valor e particularidades de estilo pertencem
essencialmente aos objectos apresentados enquanto objectivida­
des estéticas. Naturalmente, isto não quer ainda dizer que não
possa haver uma obra literária em que os objectos apresentados
não sejam providos de quaisquer qualidades de valor decorrentes
dos aspectos. Isto significa apenas: caso uma obra literária
pretenda ser uma obra de arte autêntica então os aspectos dis­
poníveis têm de conceder aos objectos que neles aparecem
quaisquer momentos e particularidades de estilo da natureza
aqui referida. E ainda, não é necessário que eles distingam cada
um dos objectos apresentados numa obra de arte literária e
em cada uma das suas situações. Há sempre, porém, no decurso
total da «história» que é apresentada fases que em certo sentido
são pontos culminantes da obra e com estas outras também que
apenas constituem a preparação ou transição para uma nova
313

fase culminante \ Para que urna obra literária seja uma obra
de arte as situações culminantes têm pelo menos de encerrar
em si objectos que aspectos estéticamente qualificado^ façam
aparecer2. Pelo contrário, as fases de preparação e/ transição
podem ser a este respeito indiferentes embora^Hie/ seja lícito
encerrar em si qualidades de valor contrárias às fases culmi­
nantes que se lhes seguem e assim têm de ser pelo menos con­
figuradas no seu conteúdo de tal modo que tomem possível na
fase culminante que se lhes segue o desenvolvimento das qua­
lidades de valor.
As observações que acabámos de levar a termo mostram
bem a importância da função que o estrato dos aspectos dis­
poníveis desempenha na obra de arte literária, é de facto um
elemento essencial cuja rejeição transformaria a obra de arte
literária numa mera obra de literatura.

1 Esta observação faz-nos pensar que a obra literária ainda tem de


ser investigada numa direcção diferente da que nós seguimos até agora.
Cf. cap. 2.
2 O. Walzel parece estar próximo disto quando diz: «Toda a poesiá
não chega a distinguir-se da ciência enquanto se limita a palavras con­
ceptuáis. Só se toma arte quando e na medida em que ela apresenta os
seus conteúdos de conhecimento, querer e sentir de um modo sensivel­
mente activo, quando muda estes conteúdos em forma.» (Cf. 0. Walzel,
Gehált und Gestalt im Kunstwerk des Dichters, p. 178.) Walzel tem aqui,
naturalmente, razão, mas enquanto não se analisar com mais pormenor
«o modo sensivelmente activo» da apresentação e se não descobrir toda
a estratificação dos aspectos disponíveis pouco se conseguiu com isso.
Capítulo 10

A função na obra de arte literária das objectividades


apresentadas e a chamada «ideía» da obra

§ 47. Tem, porventura, o estrato objectivo uma função


na obra de arte literária?

Quando procuramos apreender os diferentes estratos da


obra literária na sua função para com o todo parece-nos de
inicio que todos os outros estratos existem sobretudo com o
fim de levar os objectos à correspondente apresentação; o pró­
prio estrato objectivo parece, pelo contrário, existir na obra
literária apenas por causa de si mesmo e assim constituir não
só o elemento mais importante, o ponto central da obra literária
por cuja razão tudo o mais nela existe, mas taumbém ser algo
que não tem outra função além de simplesmente ser aí. Na rea­
lidade, aquando da leitura de uma obra também a nossa intenção
atenta se dirige sobretudo para as objectividades apresentadas *.
São elas que temos em mente e o nosso olhar intencional con­
segue atingir nelas uma certa serenidade e apaziguamento, en­
quanto passamos até certo grau desatentos pelos restantes estra­
tos e só os tomamos em conta, em qualquer caso, marginalmente
na medida em que é necessário apreender temáticamente os
objectos. Muito leitor ingênuo apenas se interessa pelos destinos
dos objectos apresentados ao passo que tudo o restante para
ele quase não existe. Nas obras em que os objectos apresentados
são concebidos na sua função representativa2 querem tais lei­
tores apenas tomar conhecimento de alguma coisa do mundo
representado. E uma vez que o mundo representado e vulgar­
mente real que então constitui o tema capital do interesse é
tomado como algo que apenas ali existe por causa de si mesmo
e não desempenha funções algumas também o mundo apresen­
tado na obra literária é compreendido no mesmo sentido. De

1 Aqui temos um caso da «distribuição do interesse» de que fala


W. Conrad.
J Esta função é, de resto, já alguma coisa que está em contradição
com a pretensa auto-suficiência e não-funcionalidade do estrato objectivo.
Não se trata, porém, agora desta função.
316

acordo com isto está apenas o facto de a maior parte das obras
de história da literatura se ocuparem geralmente, primeiro que
tudo, dos objectos apresentados para, depois de algumas aná­
lises quanto às particularidades da «linguagem» ou quanto à
natureza das «imagens» usadas pelos autor em questão, passa­
rem a diferentes problemas genéticos.
Por mais que isto possa ser causado pelas diferentes cir­
cunstâncias da leitura e pela função que a literatura desempenha
para o homem prático, está no entanto fora de dúvida que a
obra de arte é em conseqüência disto falsamente apreendida.
E até por razão dupla: 1. porque de todos os estratos da obra
só um, em detrimento dos restantes, parece em certa medida
tomar o lugar da obra inteira; 2. porque deste modo passa des­
percebido algo que depende directamente do estrato objectivo
e que na obra literária constitui o seu cerne e em função do
qual tudo o resto nela — e assim também os objectos apresen­
tados— constitui em certa medida «o cenário», um meio (embora
não um meio apenas!). É certo que já bastantes vezes se disse:
os objectos são apresentados na obra de arte literária para que
algo de diferente seja atingido. E com o decorrer do tempo até
este «algo de diferente» se multiplicou abundantemente. Assim,
pensou-se que os objectos apresentados (embora nunca se tivesse
analisado por completo o seu conceito exacto) devem despertar
em nós estes ou aqueles sentimentos e disposições ou ensinar-nos
ou influenciar-nos éticamente ou, enfim, devem «dar expressão»
às vivências do autor e ao próprio autor. Tudo isto não deve
aqui ser negado ou afirmado mas sim apenas rejeitado na me­
dida em que com isso se toca numa questão completamente
diferente: a questão precisamente do papel da obra de arte lite­
rária na vida cultural e global do homem ou a questão da
relação da obra com o autor. Ocupa-nos aqui, pelo contrário,
o problema totalmente diverso de saber se precisamente o estrato
objectivo realiza algo na construção da própria obra de arte
literária que faça aparecer nela ainda outro elemento — e talvez
o mais importante— ou se a sua função se limita à sua pura
existência.
Nas teorias a que acabámos de nos referir exagerava-se
muitas vezes e julgava-se que os objectos apresentados apenas
serviam para realizar alguma coisa, p. ex., para «expressar»
uma ideia concebida pelo autor. Falar de meios e fins é, eviden­
temente, mais ou menos descabido quando se trata de papéis
ou de funções dos elementos de um todo orgânico relativamente
a esse todo. Mas também sob esse falso ponto de vista deve
dizer-se que o estrato objectivo, não obstante as funções que
317

desempenha, constitui ao mesmo tempo um fim em si mesmo.


Deve, por assim dizer, ser criado na obra e nela ser levado a
aparecer c existir simplesmente como criado. Mas neste caso
«deve», ao mesmo tempo, realizar ainda algo. Resta perguntar
em que consiste a sua actividade e o que é que ela produz.
Para rejeitar, primeiro que tudo, uma teoria já mencionada
segundo a qual os objectos apresentados são um meio para
expressar uma «ideia» deve observar-se que ela é errada na
medida em que emprega a palavra «ideia» num sentido falso
ou, pelo menos, trivial. Entende-se por isto nada mais do que
uma proposição verdadeira, uma «verdade» — como se diz vul­
garmente— que o autor em princípio nos poderia dizer de uma
maneira muito mais' clara e mais curta sem ter, p. ex., de
escrever um drama. Por outras palavras: entende-se por isto
um sentido puramente racional que se supõe ser verdadeiro.
Os historiadores da literatura e os críticos esforçam-se também
por salientar na contextura da obra de arte literária esta «ideia»,
este sentido racional pretensamente verdadeiro (ou melhor:
construí-lo a partir dela) e pensam com isso terem realizado
qualquer coisa de muito valioso. Há, sem dúvida, obras literá­
rias e autores que nos sugerem este modo de tratamento (lite­
ratura tendenciosa). Contudo, nas obras que justamente são
autênticas obras de arte este empenho é gorado, pois capta a
obra de arte literária por uma faceta que se nos permite até
com base na obra construir tais verdades é nela de significado
secundário. Pelo contrário, nesta apreensão passa despercebido
o elemento mais significativo da obra de arte literária, que é
produzido imediatamente pela função do estrato objectivo em­
bora, em último caso, seja dependente dos restantes estratos
e neles tenha a sua última razão de ser. De que se trata então
e onde reside a procurada função dos objectos apresentados?
É este o problema. Para o resolvermos temos primeiramente
de abordar outro domínio.

§ 48. Qualidades metafísicas (essencialidades)

Há qualidades (essencialidades) simples ou também «deri­


vadas» 1 como, p. ex., o sublime, o trágico, o terrível, o como­
vente, o incompreensível, o demoníaco, o sagrado, o pecaminoso,
o triste, a indescritível luminosidade da ventura, mas também

1 Segundo a minha terminologia nas Questões Essenciais.


318

o grotesco, o grácil, o ligeiro, o sereno, etc. Estas qualidades


não são «propriedades» objectivas no sentido habitual e em
geral também não são «características» destes ou daqueles esta­
dos psíquicos mas revelam-se normalmente em situações e acon­
tecimentos complexos e frequentes vezes muito diversos entre si
como uma atmosfera específica que paira sobre os homens e
as coisas que se encontram nestas situações e que tudo no
entanto penetra e com a sua luz transfigura K Na nossa vida
vulgar, orientada para «pequenos» fins práticos quotidianos e
empenhada na realização destes, muito raras vezes surgem situa­
ções em que estas qualidades se revelem. A vida corre, se nos
é permitido assim dizer, «sem sentido», cinzenta, desprovida de
significado, mesmo que grandes obras nesta vida de formigas
possam ser realizadas. E então eis que vem um dia — como
uma graça — em que, talvez por motivos imperceptíveis, inadver­
tidos e geralmente também ocultos se dá um «acontecimento»
que nos envolve a nós e ao mundo em redor com uma tal
atmosfera indescritível. Qualquer que seja a natureza especial
da qualidade desta atmosfera, terrível ou arrebatadora até ao
esquecimento de nós próprios, é ela que como fulgor luminoso
e pleno de cor se separa do cinzento quotidiano dos dias e faz
do acontecimento em questão um ponto culminante da vida
ainda que possa ter como fundamento o calafrio cruelmente
pecaminoso do assassínio ou o êxtase espiritual da união com
Deus. São estas qualidades «metafísicas» — assim lhes chama­
mos — que, revelando-se de tempos a tempos, conferem à vida
um valor de ser vivida e é após a revelação concreta delas que,
subjacente a todas as nossas acções e trabalhos, vive em nós
e nos impulsiona uma secreta nostalgia, um anseio, quer o
queiramos, quer não. A sua revelação constitui o cume e as
profundidades últimas do ente. Qualquer que seja a sua posição
metafísica, qualquer que seja a função que na vida humana
e para além desta a sua revelação e realização possam desem­
penhar — problemas que ultrapassam a nossa preparação e não
pertencem ao nosso tem a— é-nos no entanto permitido afirmar:
1. Independentemente do facto de em si mesmas estas quali­
dades poderem ser de valor positivo ou negativo, a sua revelação
apresenta frente às vivências cinzentas e sem história do quo­
tidiano um valor positivo. 2. Na sua forma própria não se
deixam definir nem «conceber» de um modo puramente racional
(como se «concebe», p. ex., um axioma matemático) mas dei­

1 Cf. em sentido contrário D. v. Hildebrand, Die Idee der sittlichen


Handlung, Jahrb., vol. III, p. 167.
319

xam-se contemplar de modo singelo, quase se poderia dizer


«extático», simplesmente em determinadas situações em que
atingiram a sua realização. Por este aspecto são apenas suscep­
tíveis de contemplação na sua peculiaridade específica, absolu­
tamente incomparável e indescritível, quando nós próprios, em
primeiro lugar, vivemos na situação em questão ou, pelo menos
— para empregar as palavras de Scheler — , sentimos em unís­
sono com alguém que vive numa destas situações e não estamos
de modo algum à procura da intuição destas qualidades meta­
físicas. Tornam-se então mais originàriamente contempláveis e
encontram-se mais próximas de nós quando não nos ocupamos
temáticamente delas mas apenas somos cativados por elas.
3. Qualquer que seja a natureza especial destas qualidades ainda
têm a propriedade de nelas se desvelar «um sentido mais pro­
fundo» da vida e do s e r1 — para empregarmos a expressão mui­
tas vezes usada mas que, no fundo, pouco nos d iz— e de elas
próprias constituírem este «sentido» que habitualmente nos está
oculto. Com a sua intuição «desvelam-se» — como diria Heideg-
g e r — à nossa visão espiritual profundidades e abismos originais
do ser para os quais somos vulgarmente cegos e que mal pres­
sentimos na vida diária. Não são, porém, eles apenas que se
desvelam perante nós, mas somos nós que na sua intuição e
realização mergulhamos nas raízes últimas do ser. Pois nelas
não só se denuncia apenas o que aliás é totalmente misterioso
e nelas revelável mas elas mesmas também são o radicalmente
original numa das suas formações. E só quando se tornam
realidade conseguem mostrar-se inteiramente. Assim, constituem
as situações em que as qualidades metafísicas se realizam e se
nos mostram efectivamente pontos culminantes do ser em devir
e com ele também da essência anímico-espiritual que nós somos,
pontos culminantes que lançam a sua sombra sobre a vida futura,
i. é, suscitam alterações radicais no ser nelas mergulhado não
obstante poderem trazer consigo condenação ou salvação.
A sua realização é, porém — como já nos expressámos— ,
como uma «graça». Isto não quer dizer que atingiram sem causa
e de repente a sua realização e revelação ou que nos foram
dadas como presente ou castigo, num sentido mitológico ou

1 É natural que neste caso a palavra «sentido» nada tem em comum


com o que temos em vista quando porventura falamos do sentido de uma
frase. É ainda radicalmente inadequada porque a palavra «sentido» em
geral designa qualquer coisa de racionalmente captável. De preferência
evitaria aqui esta palavra. Não consigo, porém, encontrar outra mais
adequada.
320

religioso, por quaisquer potências1 (Deus, anjos ou demônios


e outros). Isto quer apenas confirmar o simples facto de que
nós não podemos provocar as situações ou os acontecimentos
em que se realizam as qualidades metafísicas voluntàriamente
por causa destas mesmas e de que elas precisamente não chegam
a revelar-se quando esperamos ou nos esforçamos pela sua
realização e contemplação.
Na vida real são, porém — como dissemos — , relativamente
muito raras as situações em que se realizam as qualidades meta­
físicas. Além disso, a sua realização apodera-se de nós com
demasiada intensidade para na contemplação podermos, por
assim dizer, saborear tudo o que a sua plenitude em si encerra.
Vive em nós um anseio secreto pela sua realização e contem­
plação— mesmo que isso fosse algo, p. ex., de terrível. Se, porém,
chega a hora em que elas se tornam realidade então a sua rea­
lização, ou melhor, elas mesmas na sua face própria são dema­
siado fortes para nós, apoderam-se de nós e dominam-nos. Não
temos poder e, por assim dizer, não temos tempo para nos
submergirmos nelas ém contemplação; e, precisamente, é deste
nosso submergir contemplativo que em nós vive, quaisquer que
sejam os motivos, uma inexterminável nostalgia que é a fonte
secreta de muitas das nossas acções. Mas é também a fonte
última, por um lado, do conhecimento e do impulso cognoscitivo
filosófico e, por outro lado, da criação e do gozo artístico, a
fonte de dois actos espirituais completamente diferentes e con­
tudo, ao fim e ao cabo, visando o mesmo objectivo. Em especial,
a arte é capaz de nos dar, pelo menos em ponto pequeno e num
reflexo, aquilo que na vida real não conseguimos alcançar:
a contemplação serena das qualidades metafísicas2.

§ 49. As qualidades metafísicas na obra de arte


literária

Voltemos agora de novo à observação do estrato objectivo


da obra de arte literária. A função mais importante que as
situações objectivas apresentadas podem desempenhar consiste
em trazer à vista determinadas qualidades metafísicas, em reve-

1 Se isto é possível ou impossível não pretendo decidi-lo aqui em


qualquer sentido.
1 Friedrich Hebbel diz no prefácio à sua Maria Madalena: «Mas a
arte não é apenas infinitamente muito mais, é algo de completamente
diferente, é a filosofia realizada.»
321

lá-las \ A melhor prova de que isto é possível é o facto de as


qualidades metafísicas se nos mostrarem em muitas situações
apresentadas. Quando isto acontece então a obra comove-nos
até ao mais profundo de nós mesmos. A obra de arte literária
atinge o seu ponto culminante na revelação das qualidades
metafísicas2. O propriamente artístico reside, porém, no modo
desta revelação na obra de arte literária. Justamente aquilo
que dum ponto de vista ontológico constitui uma falta, um
défice das objectividades apresentadas, i. é, o facto de não
possuírem um modo de ser real mas apenas um modo de ser
ontològicamente dependente e intencional e de no seu conteúdo
apenas simularem o hábito da realidade permite-lhes atingir o
modo da revelação das qualidades metafísicas característico da
obra de arte. As qualidades metafísicas não podem neste caso,
naturalmente, ser realizadas pois isto é precisamente excluído
pela dépendência ontológica das situações apresentadas; mas
são concretizadas e levadas a desvelarem-se e partilham o seu
modo de ser^ com as objectividades apresentadas: dependentes
em si mesmas no seu ser e puramente intencionais simulam a
sua realização. Mas isto não causa nenhuma quebra na sua
concreção e determinação total. São plenamente determinadas
na sua qualidade e só assim podem surgir* como concretizações
de essencialidades ideais. A este respeito também não se dis­
tinguem das realizações que atingem nas situações reais. A sua
dependência ontológica dá-nos, porém, a possibilidade da sua
contemplação relativamente serena pois elas não têm nesta
concretização aquela plenitude e força que atingem na realização

1 A palavra «revelação» não deve, naturalmente, neste contexto ser


tomada no sentido em que é empregada em considerações religiosas ou
de filosofia da religião. Deve significar unicamente o oposto de «ocultação»,
«encobrimenlo». Poder-sc-ia falar aqui também, e talvez mais adequada­
mente, de «mostrar-se a si mesmo» se esta expressão não retardasse em
demasia a compreensão. Como se verá, este revelar-se na própria obra
é apenas um revelar-se potencial.
2 St. I. Witkiewicz, pintor e teorizador de arte polaco, afirma no seu
livro Das Theaièr (em polaco Teatr, Cracovia, 1923') que toda a arte tem
a sua nascente cm sentimentos metafísicos e que as obras dramáticas em
especial devem despertar em nós esses sentimentos. Ele entende, porém,
por «sentimento metafísico» a «vivência» do mistério do ser como unidade
da multiplicidade, o que não tem nada que ver com as nossas «qualidades
metafísicas» na medida em que é possível entender por «sentimento meta­
físico» algo de inteiramente definido. Está, sem dúvida, certo que na obra
de arte entra em conta um factor metafísico. Apesar de diversas lacunas
nos argumentos de Witkiewicz deve todavia acentuar-se que eles contêm
muito de interessante e valioso.

21
322

total. Por mais que nós na contemplação estéticamente modifi­


cada das qualidades metafísicas sejamos «impressionados», «arre­
batados» e eventualmente erguidos acima do nível da nossa vida
diária, a sua não-realidade fáctica, a circunstância de que elas
são concretizadas apenas até ao ponto que é exigível para a sua
revelação permitem-nos, no entanto, uma certa serenidade na
sua apreensão e uma distância1 entre o leitor e as qualidades
metafísicas concretizadas. Permitem um contemplar que, ao
mesmo tempo, não é um percepcionar verdadeiro das qualidades
como realidades que nos oprimem. Com isto atingem as con­
cretizações das qualidades metafísicas um valor especificamente
estético. Podemos contemplá-las, ser arrebatados por elas, sabo­
rear delas tudo o que qualitativamente nos oferecem sem sermos,
na verdadeira acepção da palavra, por elas oprimidos, esmagados
ou exaltados2. De acordo com isto, a sua contemplação não

1 Uma «distância» que, naturalmente, nada tem de comum com aquela


«distância» que existe numa apreensão objectiva puramente cognoscitiva.
É certo que também há no nosso caso um intuir e portanto um tomar
conhecimento, mas é apenas um puro contemplar de qualidades especiais
que não encerra nenhuma exigência de verdade nem em especial qualquer
«apreender-como-ser» e, ao mesmo tempo, não denjuncia nenhuma «objec­
tivação», duas coisas que são características de qualquer operação pura­
mente cognoscitiva. A «distância» de que falamos reside apenas no
fenómeno peculiar do «não-pertencer-ao-mesmo-mundo» e traz consigo a
impossibilidade de uma autêntica participação na situação apresentada e de
um verdadeiro salto da nossa situação vivida para a apresentada na obra
de arte literária. Se, p. ex., vejo no teatro uma situação trágica eu não lhe
pertenço completamente, permaneço sempre — por mais «arrebatado» que
possa estar— «fe ra » dela própria e assim não posso encontrar o trágico
como inteiramente realizado na minha vida. É apenas como um sopro que
vem de um outro mundo até mim mas que é imediatamente abandonado
logo que a minha vida real entra em jogo, quando, p. ex., sou «despertado»
pelo bater de palmas dos presentes ou quando irrompe um fogo no teatro.
Está fora de dúvida que as vivências que temos durante a leitura de uma
obra são reais e que diversas transformações podem ser provocadas em
nós pela influência da leitura. Apesar da sua realidade, as vivências e os
fenómenos secundários provocados não são vivências autênticas mas ape­
nas vivências de «poesia» que de modo bastante curioso se misturam com
a nossa vida real e até nela se entrelaçam sem serem propriamente
«nossas» em sentido verdadeiro (cf. a este respeito as interessantes obser­
vações de A. Pfaender em Zur Psychologie der Gesinnungen, Jahrbuch für
Philosophie, vols. I e III).
2 Cf. a este respeito R. Lehmann, Deutsche Poetik, p. 246: «Aqui (i. é,
na vida) atinge-se, sem dúvida, rápidamente a fronteira em que a paixão
apenas nos traz sofrimento, ao contrário da arte em que a certeza meio
adormecida no subconsciente de que as coisas vistas e ouvidas são apenas
a ilusão acompanha mesmo as mais intensas comoções e por isso as mitiga
de tal modo que elas podem tornar-se prazer.»
323

provoca em nós transformações do género das que provocam


as suas realizações autênticas'. Xem depois de uma situação
realmente trágica nem após a experiência de uma felicidade real
podemos permanecer na nossa essência exactamente os mesmos
que anteriormente e, em conseqüência disto, também mais tarde
não nos podemos comportar de qualquer maneira a nosso bel-
-prazer. Pelo contrário, depois da representação de um drama
que nos comove até «ao fundo» podemos regressar serenamente
a casa e ocupar-nos de assuntos banais ou também importantes
na vida mas inteiramente diferentes. Sem dúvida que ainda fica
pairando durante um tempo o eco da comoção despertada no
decurso da representação do drama, mas a vida real é muito
mais forte e faz valer os seus direitos.
Deve ainda observar-se que a revelação das qualidades
metafísicas na obra de arte literária permite vários modos ou
graus. Há fases de preparação em que uma determinada qua­
lidade metafísica apenas se deixa entrever, por assim dizer,
anuncia a sua aproximação até que vem um momento, um ponto
culminante em que só então ela se revela inteiramente. Pode
também acontecer que por uma viragem imprevisível não se
chegue mesmo no último momento ao seu ponto culminante,
de modo que a qualidade em questão apenas assoma a meias
para voltar a desaparecer no horizonte, umas vezes como uma
ameaça outras vezes como uma promessa. Tudo isto tem de
ser confiado a análises especiais para lhe ser dado um relevo
mais preciso.

§ 50. É a revelação das qualidades metafísicas realmente


uma função do estrato objectivo?

Constitui já de si, naturalmente, problema saber de que


maneira as situações objectivas podem revelar as qualidades
metafísicas, como têm de ser estruturadas para estas afinal
serem atingidas e em que situação uma determinada qualidade

1 Em estreita relação com este modo de contemplação estético das


qualidades metafísicas está o que Aristóteles tinha em vista quando falava
cia catarse. A sua contemplação na atitude estética enche-nos não só
de gozo e deleite mas dá-nos também aquele alívio específico que expe­
rimentamos depois de todos os graves acontecimentos que nos exigem a
tensão de todas as nossas forças. É precisamente este alívio e tranquiliza­
ção interior após a apreensão estética que Aristóteles — assim nos parece —
entendia ao falar de catarse.
324

metafísica pode ser revelada. Mas tudo isto são temas para
análises especiais que não podemos aqui levar a cabo. Impor­
tante para nós é apenas que as qualidades metafísicas consigam
em obras de arte literária a sua revelação e que em conseqüência
disto o estrato objectivo da obra possa desempenhar a função
do seu desvelamento. Ele não constitui pois, pelo menos em
todas as obras em que surgem qualidades metafísicas, um mero
fim em si mesmo. Em sentido oposto à nossa opinião poder-se-ia,
no entanto, perguntar se as qualidades metafísicas não são
simplesmente momentos do mundo apresentado que sejam igual­
mente determinados pelos sentidos das frases e apresentados
pelos correlatos intencionais destas como são os próprios objec­
tos apresentados. Se fosse realmente assim então não podería­
mos, naturalmente, falar da função especial do estrato objectivo.
É, sem dúvida, certo que as qualidades metafísicas se tornam
patentes nas situações objectivas e nos objectos apresentados
e não constituem nenhum estrato especial da obra de arte lite­
rária. Com isto não está de modo algum em contradição o facto
de elas precisamente serem sustentadas pelas objectividades
apresentadas, de nestas terem o seu fundamento e de estas
objectividades exercerem assim a sua função. Elas não são,
porém, directamente determinadas pelos sentidos das frases.
O curioso, neste caso, está precisamente em que as qualidades
metafísicas podem, na verdade, ser intencionadas em puras
unidades de significação, mas só através disto jamais conseguem
atingir a sua revelação. Só quando a situação objectiva corres­
pondente é determinada em relação aos elementos a este respeito
essenciais e chega a aparecer pode também revelar-se uma
correspondente qualidade metafísica. Para que, portanto, isto
aconteça numa obra de arte literária têm de actuar em conjunto,
a par do estrato objectivo, aqueles estratos da obra de que em
primeira linha resultam a apresentação e o aparecimento do
estrato objectivo: por conseguinte, tanto o estrato das formações
fónico-linguísticas como o das unidades de significação e, final­
mente, o dos aspectos. Só quando pela actuação conjunta deles
o mundo apresentado é constituído e aparece em forma viva
perante a nossa visão espiritual atingem também as correspon­
dentes qualidades metafísicas o seu desvelamento. Com razão
podemos, pois, afirmar que é, em primeiro lugar, o estrato
objectivo que desempenha a função de desvelamento das qua­
lidades metafísicas. Falta só acrescentar que esta função só
pode ser desempenhada por objetividades apresentadas consti­
tuídas e tornadas visíveis no seu aparecimento. Com efeito, a
revelação das qualidades metafísicas não depende, naturalmente,
325

só das qualidades puramente objectivas dos objectos e situações


apresentados mas também do modo como eles são apresentados
e tornados visíveis no seu aparecimento, portanto, dito com
outras palavras, da estrutura e da colaboração de todos os
estratos mencionados da obra de arte literária. Quando, p. ex.,
nós lemos no nosso jornal da manhã, num relato feito pela
polícia, a notícia de um acontecimento qualquer que por essên­
cia é trágico, a verdade é que a esta situação pertence, eviden­
temente, a qualidade metafísica do trágico; o tom oficial e o
estilo de relato tornam, porém, impossível que o trágico atinja
a sua revelação. Podemos na leitura apenas pensar para nós
que o acontecimento noticiado é realmente trágico mas não
podemos intuí-lo na medida em que não vamos além do simples
comunicado da polícia. Tomado de um modo puramente objec­
tivo pode este mesmo acontecimento ser apresentado numa obra
literária decerto noutras relações objectivas e noutros aspectos
(e, assim, visto exactamente não «o mesmo» em todas as pers­
pectivas) de modo que o trágico atinja a sua autêntica revelação.
No primeiro caso lemos o relato ao pequeno-almoço em completa
tranqüilidade; no último, pelo contrário, somos profundamente
comovidos pelo que é apresentado mesmo que se tratasse de
qualquer coisa que na realidade nunca tivesse acontecido.
Quando, porém, na revelação de uma qualidade metafísica
têm de colaborar não só o estrato objectivo mas mediatamente
também todos os restantes estratos da obra de arte literária,
então torna-se aí de novo patente que a obra de arte literária
apesar da estrutura estratificada constitui uma unidade orgânica.
E em sentido inverso: se se pretende a revelação de uma qua­
lidade metafísica então os estratos têm de colaborar, de certo
modo, harmónicamente e de preencher determinadas condições.
Em especial, a polifonia valiosamente qualitativa não deve apenas
evidenciar uma harmonia que permita a manifestação de uma
qualidade metafísica mas deve estar com ela numa consonância
harmónica de modo a que a qualidade metafísica em questão
seja exigida pela harmonia como o elemento complementar1.

1 Aqui abrem-se de novo problemas extremamente importantes que


dizem respeito em especial à essência da forma artística e à sua relação
com o «conteúdo» — para empregarmos as palavras de O. Walzel. Mas para
a sua formulação recta teria de se estabelecer primeiro, com base nos resul­
tados da nossa análise, o conceito autêntico da forma da obra de arte
literária, o que já ultrapassa o tema deste trabalho. Tratei já deste pro­
blema numa obra de maiores dimensões sob o título Form und Inhált des
literarischen Kunstwerkes. Surgiu no II volume dos meus Studien zur
Aesthetik (em polaco, 1958).
326

Se, porém, a revelação da qualidade metafísica, entre outras


coisas, é dependente do estrato dos aspectos disponíveis então
deve dizer-se que as qualidades metafísicas não atingem na
própria obra uma revelação explícita mas são apenas predeter­
minadas pelas situações objectivas e postas à disposição pelos
elementos mencionados. Pois elas só podem ser reveladas numa
situação objectiva realmente tornada visível no seu aparecimento,
só portanto na concretização da obra aquando da leitura.
Na própria obra apenas formam um elemento predeterminado
cuja revelação mostra uma potencialidade semelhante, como
sucede com os aspectos disponíveis.
Tanto a qualidade metafísica que se revela como o modo
anteriormente indicado da sua revelação na concretização de
uma obra de arte literária constituem um valor estético Se a
sua revelação não é bem sucedida ou a qualidade que se revela
está em contradição com outras qualidades que se revelam em
situações anteriores ou posteriores, de modo que no desenvol­
vimento da obra nem sequer se chega a uma harmonia polifónica
dissonante, nesse caso a obra de arte em questão ainda pode
ter, talvez, outros valores que se constituem nos restantes estra­
tos e assim ser de valor secundário, mas não pode então, como
um todo, possuir qualquer perfeição.

§ 51. A função simbólica do estrato objectivo

Ainda uma observação que não deixa de ser importante.


Não se deve confundir a função que acabámos de tratar do

1 Quando Susanne Langer no seu livro Feeling and Form (1953) fala
de «Feeling» e o considera essencial para a arte tem então, sem dúvida,
fundamentalmente em vista o aparecimento das qualidades metafísicas na
obra de arte sem, de resto, ter delimitado este grupo de qualidades de
outras qualidades também de acesso emocional e sem ter tomado cons­
ciência do modo especial como elas surgem na obra de arte. Tem, porém,
de se acentuar imediatamente que há também outras qualidades valiosas
especificamente estéticas sem as quais o mero aparecimento de uma quali­
dade metafísica na obra de arte literária não bastaria para fazer dela
uma obra de arte plenamente desenvolvida. Com efeito, o essencial para
as obras de arte deste género e talvez para toda e qualquer obra de arte
c precisamente o facto de deverem encerrar em si uma multiplicidade
de diferentes qualidades estéticamente valiosas que, todas juntas, têm de
criar uma harmonia especial de estrutura polifónica caso a obra pretenda
ser uma obra de arte positivamente valiosa.
327

estrato objectivo com a função simbólica 1 que por ele é desem­


penhada em muitas obras mas que de modo algum pertence
à essência da obra de arte literária (exemplo típico: os dramas
de Maeterlinck). A função simbólica tem, sem dúvida, a sua
raiz ôntica nas relações objectivas apresentativas ou nos sen­
tidos das frases. Mas exercida só o vem a ser pelas objectivi­
dades apresentadas. Por outras palavras: os sentidos das frases
ou os correlatos intencionais das frases têm de ser determinados
convenientemente para que as objectividades apresentadas pos­
sam estar aí precisamente como símbolos. Uma vez que estejam
constituídas como símbolos são elas então que desempenham
esta função.
Pode determinar-se sucintamente a diferença entre estas duas
funções nos seguintes termos: enquanto as qualidades metafí­
sicas que se revelam atingem na situação apresentada o desve­
lamento de si mesmas e como desveladas chegam precisamente
a aparecer no mesmo sentido em que o mundo objectivo, é
próprio da essência da função simbólica que 1. o simbolizado
pertença a um mundo diferente — se assim se puder dizer —
daquele a que pertence o simbolizante (pelo menos é um objecto,
uma relação objectiva, uma situação diferente do próprio sím­
bolo); 2. que o simbolizado seja apenas «simbolizado» e não
possa alcançar a sua auto-apresentação. É como simbolizado,
de acordo com a sua essência, o imediatamente inatingível, o
que a si mesmo se não mostra. Naturalmente, um objecto a que
se referiu um símbolo que o converteu em «simbolizado» pode,
talvez, ser dado em si mesmo; mas então deixa de ser simbo­
lizado. E símbolos, melhor, simbolizações são-nos absolutamente
necessárias justamente quando nós por esta ou aquela razão
não somos capazes de apreender originariamente o objecto sim­
bolizado ou, pelo menos, momentáneamente não estamos na
situação de o poder fazer. Por isso mesmo são os símbolos com
maior frequência empregados na vida religiosa e também rela­
tivamente a tudo o que seja misterioso e inacessível. 3. quando
uma determinada situação real ou apenas apresentada leva uma
qualidade metafísica à auto-revelação então os fundamentos
ônticos desta encontram-se nessa mesma situação e ambas em
conjunto, a qualidade e a situação, sendo a última fundamen­
tada pela primeira, desempenham na obra de arte literária uma

1 Neste erro parece cair precisamente Susanne Langer. É certo que


ela alarga o conceito de símbolo (sob a influência de Cassirer) ao ponto
de tudo então se tornar possível. Mas neste caso o conceito de símbolo
perde todos os serviços preciosos que poderia oferecer no estudo da arte.
328

função importante. Coisa inteiramente diversa se passa com um


símbolo: o símbolo é apenas um meio. Não se trata dele mesmo
mas somente do simbolizado; e só por ricochete pode o símbolo
alcançar um certo significado caso o simbolizado seja pleno de
significação. O papel do símbolo esgota-se, porém, na sua função
e tudo o mais que de resto nele possa existir mas na sua função
simbólica não represente papel algum é completamente irrele­
vante em contraste com o estado de coisas que encontramos
no caso do estrato objectivo e da respectiva função de desve-
lamento das qualidades metafísicas.
Uma outra função com esta aparentada e que pode ser
desempenhada pelo estrato objectivo mas que de modo algum
o é necessàriamente é a função de reprodução ou de represen­
tação de que já falámos. Não queremos continuar aqui este
assunto.

§ 52. O problema da «verdade» e da «ideia» de uma


obra de arte literária

Em conexão com as nossas últimas considerações podemos


agora tentar resolver dois problemas já anteriormente formu­
lados. Consiste o primeiro em perguntar se é possível e em
que sentido se deve falar de «verdade» a propósito de uma
obra de arte literária. Ele põe-se-nos, por um lado, a partir da
verificação já feita de que nenhuma frase de uma obra de arte
literária é um «ju ízo» no sentido autêntico do termo e, por outro
lado, como conseqüência da afirmação tantas vezes expressa
de que o poeta reivindica para si a pretensão de oferecer a
«verdade» na sua obra e das acusações e censuras de «não-ver-
dade» que são feitas a muitas obras. É então falso o nosso
ponto de vista ou laboram em erro estas acusações ou então,
finalmente, há um equívoco aqui em jogo? Queremos provar
que é este o caso.
Por «verdade», em sentido estrito, entendemos uma deter­
minada relação entre uma frase judicativa, autêntica e o com ­
portamento das coisas existente objectivamente e seleccionado
no seu conteúdo de sentido. Se esta relação existe então a frase
judicativa em questão é distinguida por uma quase-caracterís-
tica relativa 1 que nós enunciamos com a palavra «verdadeiro».
Por transposição de sentido a própria frase judicativa verda-

1 Sobre a quase-característica relativa cf. Questões Essenciais, cap. VI.


329

deira é chamada uma «verdade». A transposição (e alteração)


de sentido vai ainda mais longe quando por «verdade» se entende
o correlato puramente intencional de urna frase judicativa ver­
dadeira; e completamente inadmissível parece-nos aquele em­
prego tão freqüente da palavra «verdade» em que por esta se
entende o respectivo comportamento das coisas objectivamente
existente. Em nenhuma destas significações do termo se pode
logicamente falar de «verdade» a propósito de uma obra de arte
literária. No quarto e último sentido não, porque os comporta­
mentos das coisas existentes objectivamente não constituem de
modo algum um elemento da obra literária. Mas nas restantes
três significações também não uma vez que não há uma única
frase de uma obra de arte literária que seja uma frase judicativa
no sentido autêntico do termo. Se, portanto, as afirmações
mais frequentemente apresentadas que soam em sentido oposto
não devem ser falsas então têm de empregar a palavra «verdade»
num sentido completamente diferente. De facto, esta palavra é
ainda empregada em várias outras acepções.
É de notar sobretudo aquele sentido da palavra «verdade»
que pode ser empregado em relação à função de reprodução
que é desempenhada em muitas obras pelas objectividades
apresentadas. «Verdadeira» chama-se então uma objectividade
apresentada e concebida na função de reprodução (ou as frases
que a constituem) quando ela é uma reprodução o mais possível
fiel de uma correspondente objectividade real imitada, quando
ela é, portanto, uma «boa» cópia, um «bom » retrato, com seme­
lhança. Este conceito de «verdade» só deve ser empregado em
sentido estrito com respeito a obras literárias «históricas» em
que de facto existe a função de reprodução e é intencionada.
Também as obras literárias «históricas» podem ser autênticas
obras de arte, mas elas constituem apenas um caso especial da
obra de arte literária em geral. Não é necessário, assim, que o
que é válido para elas também o seja para todas as obras lite­
rárias. A objecção de «não-verdade» possivelmente existente
numa obra não tem, pois, sentido para todas elas. A questão de
numa obra de arte literária existir um maior ou menor número
de reproduções fiéis em nada altera o seu valor puramente
artístico. Aliás, como já foi anteriormente confirmado, não pode
haver nenhuma obra literária em que a reprodução seja per­
feitamente fiel. Cada uma destas obras é, pois, neste sentido
até certo grau «não-verdadeira».
Fala-se, noutro sentido, de «verdade» numa obra de arte
literária quando com isso se tem em vista a «conseqüência
objectiva». O autor na sua criação só está obrigado, em primeiro
330

lugar, a ter em consideração que a sua obra seja compreensível


e constitua um todo unitário. Ele opera com frases e períodos
e está, portanto, condicionado por todas as leis que emanam
da essência da frase e do período. No que toca, porém, ao con­
teúdo das objectividades apresentadas na obra esse pode, em
princípio, ser estruturado em larga escala de modo livre e em
especial sem nos interessarmos até que ponto ele possa ser
semelhante ou não às objectividades por nós conhecidas através
da experiência. Uma vez que os objectos apresentados sejam
estabelecidos através do conteúdo de sentido das frases como
objectos de um determinado tipo de ser (como objectos
reais e em especial, p. ex., como indivíduos psíquicos reais)
então tem de ser observada certa conseqüência na sua ulterior
determinação na medida em que eles no decurso de toda a obra
se devem poder constituir como idênticos, devem surgir no
modo de aparecer do tipo respectivo. Se esta conseqüência é
infringida então fragmenta-se — se assim se pode dizer — a sua
identidade ou, pelo menos, não se chega à simulação do cor­
respondente modo de ser (p. ex., da realidade). Esta conse­
qüência só pode, no entanto, ser mantida quando o conteúdo
dos objectos apresentados é pelo menos form ado1 de acordo
com as leis materiais essenciais a priori da respectiva região
ontológica. Se as objectividades apresentadas são definidas pelas
frases, de modo que sejam cumpridas todas estas leis e também
satisfeitas as diferentes normas empíricas que são válidas para
os objectos da espécie em questão, então diz-se geralmente que
elas são «verdadeiras» e atribui-se, por isso, à obra respectiva
um valor positivo. É natural que isto nada tenha a ver com a
verdade em sentido estrito. A «conseqüência objectiva» deve,
evidentemente, ser mantida em toda a obra cujo estrato objec­
tivo esteja compreendido na função de reprodução, mas a obser­
vância desta conseqüência não arrasta necessàriamente consigo
nenhuma função de reprodução ou de representação. Se a fun­
ção de representação é bem sucedida então isto confere à obra
em questão — caso ela seja «intencionada»— um valor positivo
(mesmo que por outros motivos a obra possa ser «m á») e assim
a conseqüência objectiva é também ou um valor positivo em si
mesma ou, pelo menos, a condição de outros valores próprios

1 É natural que, na medida em que se pretenda afinal tratar de


objectos numa obra, as leis da ontologia formal têm de ser obrigatoria­
mente observadas. O mesmo se pode dizer com respeito a todas as modi­
ficações categoriais possíveis da estrutura objectiva (p. ex., estrutura das
coisas, estrutura dos processos, etc.).
331

de obras literárias deste género. Por outro lado, a conseqüência


objectiva não precisa de ser observada em toda e qualquer obra
literária. Ela não é nem a condição indispensável da existência
da obra literária (há, evidentemente, obras que ou não revelam
nenhuma conseqüência objectiva ou a revelam defeituosa, pre­
cisamente aquelas que por este motivo são criticadas) nem a
condição do valor global de uma obra de arte literária. Há, pelo
contrário, obras de arte literárias cujo valor artístico está jus­
tamente na mais estreita relação com a inconsequência objec­
tiva levada até um certo grau e por ela é condicionado, obras
que estão intencionalmente construídas de tal modo que através
dos objectos apresentados se não chega a nenhuma ficção de
realidade, uma arte que cria e quer criar a partir do reino do
inverosímil e do impossível. Há, pois, também neste sentido
obras literárias e obras de arte «não-verdadeiras».
Finalmente, há ainda um sentido em que se fala de «ver­
dade» ou então de «não-verdade» de uma obra literária — embora
não se tenha claramente consciência do sentido desta expres­
são. Por motivos que radicam no modo de apresentação e de
aparecimento não se pode chegar, apesar de difícil observância
da conseqüência objectiva, a nenhuma revelação de uma qua­
lidade metafísica objectivamente pertencente a uma determinada
situação. Noutros casos atinge-se, pelo contrário, esta revelação
(o que também é possível no caso de haver infracções da con­
seqüência objectiva desde que pelo menos o modo de apresen­
tação ou de aparecimento seja levado a cabo convenientemente).
No último caso, ouvimos muitas vezes dizer que a obra em
questão é «verdadeira». Aqui entende-se por «verdade» quer a
própria qualidade metafísica em questão, quer a sua revelação
na obra de que se trata. Como a presença ou a ausência das
qualidades metafísicas também pode influenciar o valor artístico
ou estético da obra de arte literária é evidente que também
neste caso a «verdade» de uma obra não é condição da sua
existência.
Depois destas considerações torna-se claro: o procurar sem­
pre insistente de uma «ideia» da obra no sentido de uma
proposição verdadeira é, pelo menos em todas as obras super­
ficialmente tendenciosas, um esforço vão que ao fim e ao cabo
se baseia numa compreensão errada do carácter fundamental
da obra de arte literária. Não é possível encontrar uma tal
proposição numa obra de arte literária nem deduzi-la a partir
das frases nela contidas. Pois de frases que não são autênticas
frases judicativas não resulta nenhuma proposição verdadeira.
Assim como é usada a palavra «verdade» em sentidos tão diver-
332

sos \ assim também a expressão «ideia» da obra tem significações


diferentes. Levar-nos-ia aqui demasiado longe distinguir e definir
todas estas significações. A mais importante entre elas é aquela
em que é posta à consideração a qualidade metafísica que no
ponto culminante da obra atinge a sua auto-revelação. Natu­
ralmente, não sozinha mas sim na situação global em que se
revela. É ela no entanto que, em primeiro lugar, desvela a
função que a situação em questão, como fase culminante da
historia apresentada, desempenha na obra inteira. Ela confere-lhe
o «sentido» misterioso que está oculto na conexão dos acon­
tecimentos apresentados, um sentido que não se deixa definir
apenas conceptualmente. Ou então por outras palavras e com
maior precisão: a «ideia» da obra, neste sentido, reside na
conexão essencial levada à autodoação intuitiva que existe entre
uma determinada situação de vida apresentada como fase cul­
minante de um desenvolvimento precedente e uma qualidade
metafísica que atinge a sua auto-revelação nesta situação e cria
a partir do seu conteúdo uma coloração única. No desvelamento
de uma tal conexão essencial, que não é determinável de modo
puramente conceptual, reside o acto criador do poeta. Esta
conexão essencial uma vez descoberta e contemplada permite
ao mesmo tempo «compreender» a conexão intrínseca de cada
uma das fases da obra e apreender a obra de arte total como
criação de uma só peça.

§ 53. Conclusão da consideração dos estratos

A longa série das nossas investigações revelou-nos nos seus


traços fundamentais a estrutura estratificada da obra literária
e, ao mesmo tempo, desenvolveu com maior precisão e confir­
mou a afirmação por nós feita ao iniciar a argumentação posi­
tiva. Pusemos em evidência tanto a heterogeneidade dos estratos
singulares como os seus múltiplos papéis e funções e, finalmente,
a sua estreita relação recíproca e actuação conjunta. Com isto
foi operada uma «incisão transversal» na estrutura da obra
literária e, ao mesmo tempo, mostrado o esqueleto cujo estudo
nos tornará possível responder às questões que adiante se porão.
Mas esta «incisão» não basta para se apreender toda a essência
da obra de arte literária. As nossas considerações sobre as qua­

1 Uma análise mais ampla dos diferentes conceitos de «verdade» foi


feita por mim no artigo publicado na Revue d’Esthétique (Paris, 1952),
«Des différentes conceptions de la vérité dans 1'art».
333

lidades metafísicas, sobre a «ideia da obra» e os diferentes


sentidos em que se pode falar de «verdade» a propósito de
uma obra de arte literária, assim como também já as anteriores
reflexões sobre as formações fónico-linguísticas de ordem supe­
rior e sobre a relativa dependência da frase e conexão de frases,
abriram-nos perspectivas na estruturação da obra literária que
se situam numa direcção diferente da dos vários estratos e suas
relacionações. Temos de nos ocupar agora — pelo menos sucin­
tamente— destas perspectivas. À «incisão transversal» tem agora
de se seguir' a «incisão longitudinal» ao correr da estrutura da
obra literária.
Capítulo 11

A ordenação da seqüência na obra literária

§ 54. Introdução. Alteração ou destruição da obra pela


inversão de ordem das suas partes

Temos agora de encarar uma outra linha da conexão orgâ­


nica na obra literária a qual, porém, pressupõe a existência
dos estratos e a sua colaboração. Trata-se neste caso da estrutura
especial que a obra literária possui na direcção do seu «princí­
pio» para o «fim ». Já o simples facto de a obra literária possuir
algo como um «princípio» e um «fim » denuncia uma peculia­
ridade da sua estruturação que ela talvez só tenha de comum
com as obras musicais. Diz-se geralmente que tanto a obra lite­
rária como a musical são obras de arte «tem p o ra l»1 e com
isto julga-se que elas são temporalmente extensas. Por mais
claro que isto nos possa parecer à primeira vista é, no entanto,
errado e resulta da confusão da própria obra literária com as
suas concretizações que se constituem no decorrer da leitura.
Não é decerto nenhum acaso, nenhuma peculiaridade ou falha
da nossa organização psíquica que nós só sejamos capazes de
apreender as obras literárias num processo distendido tempo­
ralmente e que a concretização da obra que daí resulta também
seja do mesmo modo temporalmente extensa. Este modo de
concretização da obra literária é-lhe prescrito pela sua própria
essência como também a essência de um quadro exige que ele
possa ser apreendido de uma só vez como um todo. Mas con­
cluir daqui que a obra de arte literária em si mesma é tempo­
ralmente extensa é de todo infundado. Que a extensão temporal
não é qualidade da própria obra literária mostra-o já a circuns­
tância de se deverem atribuir, caso esta interpretação fosse
certa, a uma e a mesma obra extensões temporais diferentes
conforme a duração de cada leitura. E a este respeito podem
surgir diferenças consideráveis. Também se teria de admitir, de
acordo com esta interpretação, que muitas partes da obra lite-

1 É esta ainda a opinião de W. Conrad no trabalho citado.


336

rária aparecem «mais cedo» do que outras e no momento em


que as partes ulteriores são lidas já não existem (o que é, sem
dúvida, certo em relação às partes das concretizações da obra),
enquanto em relação à própria obra é evidente que uma vez
criada ela existe em todas as suas partes simultáneamente e
nenhuma destas suas partes aparece neste sentido temporal
«mais cedo» ou «mais tarde». A própria obra não é portanto,
na direcção do «princípio» para o «fim », uma form ação1 que
se desenvolva e se distenda temporalmente.
E contudo não é sem fundamento que falamos do «prin­
cípio» e das partes «anteriores» e «posteriores» da obra, com
o que não temos em vista nem as suas concretizações nem o
princípio ou então as fases tardias da história apresentada na
obra mas sim as partes singulares da obra inteira tomadas de
conjunto em todos os seus estratos. Simplesmente, este «ante­
rior» e «posterior», este «princípio» e «fim » não devem ser
compreendidos num sentido temporal. Pergunta-se, porém, em
que sentido então? Aqui reside o problema. E neste ponto depa­
ramos com uma estrutura peculiar da obra que consiste numa
ordenação das partes da obra e a que nós, por falta de uma
expressão mais adequada, vamos chamar a «ordenação da
seqüência».
Para mostrar que há, sem dúvida, na obra uma tal orde­
nação, a que iremos dar maior relevo, procuremos realizar em
pensamento uma inversão ou abolição da ordenação das suas
partes. Experimentemos, p. ex., ler um determinado romance
(p. ex., os Buddenbrooks) «a partir de trás». Isto ainda se pode
fazer de maneiras diferentes: ou de modo que apenas a orde­
nação das frases sofra uma inversão mas cada frase ainda seja
lida «a partir do princípio» ou de modo que também a ordena­
ção da seqüência das palavras seja ao mesmo tempo invertida
ou, finalmente, de modo que apenas a segunda e não a primeira
inversão seja efectuada, etc.2

1 Que a obra como um todo possa durar um determinado tempo é


um assunto completamente diferente sobre que ainda falaremos.
2 A ideia de uma tal inversão não é nova. Conheço-a a partir do
romance Der Zauberlehrling, de H. H. Evers, empregada, é certo, em fun­
ção de uma apresentação cinematográfica. A inversão produz aqui situa­
ções cómicas e altera em muitos casos o conteúdo do que é apresentado.
O ingerir de alimentos apresentado cinematográficamente em direcção
inversa pode assemelhar-se a um vômito, o descer de um escadote pode
transformar-se num trepar. O acender e o fumar de úm cigarro transfor­
mam-se já num episódio quase incompreensível. Contudo, uma vez que
pelo cinematógrafo — como veremos mais tarde — são reconstruídos aspee-
337

Façamos isto, consequentemente, do «fim » para o «prin­


cípio» e não pensemos agora no decorrer da leitura concreta
mas sim no que se constitui com esta leitura regressiva. Em
cada um destes casos adquirimos, em comparação com a obra
originária, uma nova formação que se distingue mais ou menos
dela — conforme a modalidade da inversão. É certo que na obra
assim lida intervém precisamente todas e as mesmas palavras
da obra lida «a partir do princípio»; a inversão, porém, alterou
se não tudo pelo menos tanto que não só devemos perguntar
se ainda estamos perante «a mesma» obra mas também — no
caso limite — se a formação obtida ainda é afinal uma obra
literária. Que uma determinada obra A é totalmente alterada,
se não destruída, por uma inversão radical da ordenação das
palavras verifica-se sobretudo no surgir de formações fónicas
inteiramente novas de ordem superior (como, p. ex., as quali­
dades rítmicas e ainda outras) e também no aniquilamento ou,
pelo menos, alteração de todas aquelas funções que são desem­
penhadas pelo estrato fónico-Iinguístico da obra e são tanto
para a construção dos sentidos das frases como para o estado
de disponibilidade dos aspectos, de significação decisiva. Pode
acontecer — e é este o caso geralmente — que uma frase lida
em sentido inverso já não seja de modo algum uma frase; então
só podemos compreender a multiplicidade das palavras como
uma frase plena de sentido se voltarmos a ordená-la, em pen­
samento, na sua direcção originária (p. ex., «mesa da cima em
está livro o»). É certo que as diferentes regras gramaticais da
chamada ordem das palavras são até certo grau casuais e podem
reduzir-se a diferentes peculiaridades e simpatias extralógicas
dos povos e raças; mas, apesar disso, existe nelas um núcleo
de necessidade, de modo que a sua total eliminação umas vezes
apenas arrasta consigo a alteração do sentido («pai bate no seu
filho», «filho seu no bate pai») mas mais frequentemente, porém,
o seu completo aniquilamento (como no exemplo acima dado).
Contudo, se pela inversão as frases se transformam muitas vezes
em palavras desconexas que se seguem umas às outras irracio­
nalmente então não podem desenvolver quaisquer correlatos de
frases nem tão-pouco, em especial, quaisquer relações intencio­

tos momentâneos e acabados de situações de conjunto que nos fazem


aparecer coisas, e uma vez que as imagens singulares na fita do filme
não chegam a ser destruídas pela inversão, mantêm-se nesta, em todo o
caso, coisas que aparecem e a incongruência não se transforma assim,
necessàriamente, em absurdo. Coisa diferente se passa no caso das obras
literárias.

22
338

nais das coisas. Neste caso também o estrato objectivo da obra


não existe ou não constitui nenhum mundo apresentado unitá­
rio. E mesmo que alguns aspectos possam ser postos à disposição
pelas palavras singulares estão, em todo o caso, caoticamente
misturados. De toda a obra, depois de uma tal inversão, apenas
restaria um montão de palavras.
Não precisamos, porém, de procurar uma destruição tão
radical da obra para nos convencermos de que toda a obra
literária possui uma ordenação própria da seqüência das suas
partes e em especial das suas frases. Já as observações anterior­
mente feitas quanto à relativa não-autonomia das frases e à sua
conexão fornecem aqui exemplos comprovativos suficientes.
Basta também, p. ex., num drama inverter a seqüência dos actos
ou baralhar as diferentes cenas para que o drama se transforme
num jogo grotesco de situações sem coerência. A sua unidade
é assim destruída enquanto, naturalmente, não voltarmos a
reconstituir, em pensamento, a sua ordem originária. Num drama
bem construído cada cena é preparada pela que a precede,
decorre, por assim dizer, como resultado da anterior, pressu-
põe-na. E isto não diz respeito apenas aos acontecimentos exte­
riores de que participam4 as coisas e pessoas mas também,
sobretudo, às transformações interiores das personagens moti­
vadas pelos acontecimentos realizados. Cada acontecimento deixa
uma marca mais ou menos visível na alma do homem que nele
participa. E em sentido inverso: cada acontecimento adquire
uma forma determinada pelo facto de nele participarem perso­
nagens que experimentaram precisamente tais e não outras
transformações interiores. A inversão da ordem dos actos ou
de cada uma das cenas tem de ter por conseqüência que deter­
minadas situações constituídas pelo conteúdo de sentido das
frases correspondentes e as personagens que nelas participam
fiquem, por assim dizer, suspensas no ar. A inversão da ordem
ou confere-lhes um sentido diferente com respeito àqueles mo­
mentos que para a situação em questão eram um pressuposto
e que agora faltam ou torna a própria situação até «impossível»
uma vez que lhe falta agora total ou parcialmente o fundamento
dos antecedentes da história precedente. Com efeito — como já
sabemos — , as objectividades apresentadas tiram -o seu conteúdo
apenas da estruturação de todos os restantes estratos da obra,
no que as unidades de significação desempenham o papel mais
importante. Se devido à inversão de ordem faltarem até uma
determinada fase da obra as fases que com ela estão em conexão
ou se elas se seguem apenas à frase respectiva então a objec­
tividade correspondente não se pode constituir plenamente na
339

medida exigida. É como um «torso» cujo complemento é impos­


sível caso o leitor não vá além do que lhe é oferecido apenas
no texto. Naturalmente, numa obra de arte literária encontra­
mo-nos no reino da «livre fantasia» mas esta liberdade — como
se mostrou já anteriormente— não é ilimitada. Chegamos sem­
pre a um limite em que as «impossibilidades» possíveis na obra
de arte literária já não podem produzir os efeitos exigidos.
O todo — se ainda o fosse — apresentaria então uma insupor­
tável e absurda confusão de factos amontoados, a obra seria
apenas um montão e não uma obra de arte. Mutatis mutandis,
algo de semelhante se pode dizer quanto aos restantes estratos
da obra literária. Se, porém, chegássemos por meio de urna
inversão introduzida da ordem das frases a transformações tão
extremas dentro de cada um dos estratos então a polifonia dos
momentos valiosamente qualitativos neles fundada teria de ser
se não completamente destruida pelo menos, em todo o caso,
radicalmente alterada.
Este ensaio de destruição da obra prova suficientemente
que toda a obra literária contém em si uma ordenação da
seqüência, um sistema determinado de posições de fases em
que urna fase se funda em fases correspondentes de todos os
estratos conexos da obra e assim alcança determinadas qualifi­
cações precisamente por se encontrar nesta e não noutra posi­
ção. Em virtude destas qualificações podem os estratos consti­
tuintes da obra de arte produzir efeitos nos outros estratos e
nas demais partes da obra que lhes seriam impossíveis em
qualquer outro lugar desta.

§ 55. O sentido da seqüência das partes de uma obra


literária

Ao falarmos da «seqüência» das partes singulares de uma


obra literária não devemos tomá-la — como já foi acentuado —
no sentido vulgar em que nos referimos à seqüência dos acon­
tecimentos reais no tempo concreto. Por outro lado, temos de
considerar a ordenação aqui existente em contraste, p. ex., com
aquela ordenação que domina os elementos de uma figura geo­
métrica como uma objectividade ideal. Neste último caso seria
completamente absurdo falar, por metafórico que fosse, da
ordenação de uma seqüência. Ela é, no entanto, exigida no
sistema de posições de cada uma das fases da obra literária
pela estruturação desta. Determinadas relações objectivas, p. ex.,
têm de estar «já » projectadas a fim de que as outras se possam
340

construir sobre elas. E o mesmo se passa com os restantes estra­


tos da obra literária. Aliás, é bastante difícil indicar o sentido
preciso deste «já » ou desta «seqüência», o que também está
em relação com o facto de a essência do tempo que aqui seria
de pôr em contraste não estar ainda, até agora, suficientemente
esclarecida. Contudo, se é essencial para o tempo concreto que
no contínuo temporal em desenvolvimento haja sempre uma
fase distinta da «agora» que em si mesma e juntamente com
as objectividades precisamente existentes alcance uma determi­
nada actualidade do ser, ou melhor, o ser real na verdadeira
acepção do termo para o voltar a perder, imediatamente, logo
que o «agora» se tenha transformado num «passado», a propó­
sito das partes da obra literária como formação construída com
todos os estratos não se pode falar de uma tal fase de «agora»
e, portanto, do tempo no seu verdadeiro sentido. Nenhuma das
suas fases é em relação às outras caracterizada desta maneira,
caso, naturalmente, tomemos a obra em si mesma e não qual­
quer das suas concretizações. De acordo com isto, também a
obra literária tomada como todo não manifesta as outras formas
temporais do «passado» e do «futuro» *. E, contudo, é inevitável
falar-se de uma «seqüência» das fases singulares da obra e com
ela também das «fases» em si mesmas. Se quisermos esclarecer
o sentido desta «seqüência» ocorre-nos imediatamente que se
trata aqui, em todo o caso, de uma «unilateralidade do ser con­
dicionado» na sua constituição, unilateralidade que igualmente
existe num ser que se desenvolve temporalmente mas não lhe
esgota a essência e é, pelo contrário, impossível num ser intei­
ramente extratemporal, p. ex., o de um objecto ideal geométrico.
Cada uma das fases de uma obra literária (excepto a primeira)
apresenta em si momentos que têm a sua fundamentação fora
dela mesma em momentos de outra fase «anterior». Ao mesmo
tempo, cada fase encerra um sistema de elementos que não têm
necessidade de qualquer fundamentação nos elementos de outra
fase. Finalmente, ela contém em si momentos que constituem2
a base da fundamentação de determinados momentos de outra

1 Todas estas formas temporais pertencem, como já se averiguou


anteriormente, ao conteúdo das objectividades intencionais apresentadas
na obra. Não se deve, porém, confundir a forma temporal do que é apre­
sentado com a ordenação especial aqui analisada da seqüência das partes
de toda a obra.
2 Estes últimos podem pertencer ou aos elementos* que para si não
exigem qualquer fundamentação ou àqueles que estão fundamentados nos
elementos de outra fase.
341

fase «seguinte». Por «anterior» designa-se aqui aquela fase que


em si contém momentos fundamentadores1 de momentos fun­
damentados de outra fase; por «posterior», pelo contrário, aquela
que contém em si elementos que são fundamentados nos ele­
mentos de outra fase. E na verdade estes «anterior» e «posterior»
são totalmente relativos. Está, no entanto, excluído que aquela
fase que em relação a uma outra é «posterior» lhe possa ser
também «anterior». Isto é: se uma determinada íase B contém
em si elementos que têm a sua base de fundamentação numa
outra fase A, então: 1. Nenhum momento da fase A é fundamen­
tado por qualquer momento da fase B. 2. Se a fase B contiver
em si elementos fundamentadores estes funcionam ou como base
de fundamentação de outros elementos da mesma fase ou como
base de fundamentação de outra fase C a qual, então, em rela­
ção a B é posterior2. Uma fundamentação recíproca só se pode
dar entre os elementos, i. é, os momentos da mesma fase.
É através destas particularidades de fundamentação que se esta­
belece, justamente, a ordenação da «seqüência» das fases na
obra literária e nós empregamos para ela esta designação porque
na seqüência real do tempo concreto 3 existem relações de fun­
damentação análogas. Com respeito à «seqüência» no sentido
aqui analisado é ainda de realçar em especial o seguinte, o que
aliás já em parte foi sugerido na definição acima dada: 1. Os ele­
mentos fundamentadores e os elementos por eles fundamentados
que devem determinar a seqüência de duas fases têm de per­
tencer a duas fases diferentes. 2. Cada fase tem de conter em si
elementos que não denunciem nenhuma necessidade de funda­
mentação em relação aos elementos (ou momentos) de outra
fase. De contrário, não seria possível que afinal houvesse duas
«fases» diferentes da obra. Estes elementos da fase que não
denotam nenhuma necessidade de fundamentação em relação
aos elementos de outra fase servem ao mesmo tempo de base
de fundamentação do ser de todos os elementos (ou momentos)
da fase em questão e conferem-lhe uma autonomia ontológica
que por sua vez, por outros motivos, é em duplo sentido relativa.

1 Sobre o conceito de fundamentação cf. E. Husserl, Logischen Unter-


suchungen, vol. II, Investigação III.
2 Análises mais pormenorizadas mostrariam que ainda são possíveis
complicações diferentes, que se pode, p. ex., falar de uma fundamentação
mediata, etc.
3 À seqüência no tempo pertencem ainda outros momentos que afinal
a fazem temporal e estão na mais estreita relação com a posição de pri­
mazia ôntica do «presente».
342

Primeiro, no sentido de ;— apesar desta autonomia de ser— a fase


em questão (caso ela não seja a «prim eira») conter em si ele­
mentos (ou momentos) que ao mesmo tempo têm a sua base
de fundamentação numa outra fase «anterior». Estes últimos
elementos (momentos) são assim duplamente fundamentados:
por um lado, são-no ontològicamente nos elementos fundamen-
tadores da mesma fase, por outro, quanto ao modo de ser nos
elementos da fase anterior. Esta relatividade da autonomia onto­
lógica da fase faz que esta não seja nenhum todo absolutamente
fechado em si mesmo mas apenas uma fase, uma parte de um.
todo mais amplo, i. é, da obra literária em questão. A sua
autonomia ontológica, porém, faz que ela não seja uma parte
das restantes fases mas apenas esteja com elas numa estreita
conexão, que justamente consiste nas relações de fundamentação
de alguns dos seus elementos ou momentos com os elementos
(momentos) das fases «precedentes» e «seguintes» da mesma
obra. Num segundo sentido, a fase da obra é apenas relativa­
mente autónoma no seu ser na medida em que esta sua auto­
nomia ontológica não exclui que ela se torne ontològicamente
heterónoma e, neste sentido, também relativa no seu ser às
operações subjectivas de consciência e — como se mostrará
mais tarde— ainda a um outro ente autónomo no seu ser de
modo que ela, de acordo com a nossa terminologia ', pode ser
ontològicamente dependente. 3. A fase respectivamente «anterior»
da obra co-existe (em sentido temporal) com as fases respecti­
vamente «posteriores» da mesma. Trata-se, portanto, de uma
ordenação da fundamentação e não da ordenação do surgir e
desaparecer no tempo.
Na «ordenação da seqüência» das fases singulares da obra
reside o motivo por que a concretização da obra literária só
se pode desenvolver numa porção do tempo concreto.
A fim de afastar possíveis equívocos é ainda de acentuar
que a ordenação da seqüência das fases da obra não deve ser
confundida nem com o tempo que no estrato objectivo da obra
consegue a co-apresentação nem com o tempo em que a própria
obra literária existe. No que respeita ao último, só mais tarde
poderemos falar sobre ele (cf. cap. 13). Em relação ao primeiro,
é preciso ainda observar o seguinte: que é necessário distinguir
entre ambos^ depreende-se já do facto de muitas vezes a fase

1 Cf. as minhas observações no trabalho Bemerkungen zum Problem


Idealismus-Reálismus na «Festschrift» (publicação comemorativa) em home­
nagem a E. Husserl, 1929.
343

«posterior» da obra literária apresentar uma situação que em


comparação com as outras situações «já » apresentadas é tem­
poralmente anterior — e justamente no tempo apresentado— ,
como, p. ex., quando a partir da narração de uma personagem
tomamos conhecimento1 da «história prévia» da situação em
causa que acabava de se apresentar. A ordenação temporal do
que é apresentado e a «ordenação da seqüência» das fases sin­
gulares da obra são em larga escala independentes uma da
outra, embora fosse necessária uma análise especial para veri­
ficar se esta independência é uma independência total ou se é
limitada, e neste caso em que medida o é. O tempo apresentado
revela, sem dúvida, em comparação com o tempo do mundo
real várias modificações importantes mas é, em todo o caso,
um tempo em que vigoram as estruturas básicas do presente,
passado e futuro se bem que modificadas. Pelo contrário, na
seqüência das fases da obra estas estruturas fundamentais não
têm qualquer sentido.
A existência da «seqüência» das fases da obra tem por
resultado que toda a obra possua uma determinada linha de
desenvolvimento e, em conexão com ela, uma dinâmica intrín­
seca. Há fases preparatórias da obra que tendem para uma fase
culminante e há as fases culminantes como tais. Pode haver
numa obra — p. ex., num drama— várias destas fases culmi­
nantes e também fases que seriam comparáveis a um extinguir-se,
portanto um aumentar e decrescer sui generis das tensões, que
constituem por si mesmas uma qualidade particular de valor
estético. Por outro lado, é naturalmente possível que a fase
culminante constitua a conclusão da obra, que nela termina
repentinamente, etc. Deve observar-se, porém, que todo o estrato
da obra de arte literária pode manifestar uma dinâmica intrín­
seca própria, de modo que a fase culminante num estrato não
corre paralela, necessàriamente, às fases culminantes dos res­
tantes estratos. Podem ocorrer aí combinações diversas que
produzem toda a riqueza das harmonias e desarmonias polifó­
nicas possíveis. Neste ponto temos de nos contentar — como
aliás em muitos outros — apenas com a verificação do facto
fundamenta] e indicar simplesmente as directrizes segundo as

’ À p r i m e i r a vi st a isto p a r e c e e s t a r e m c o n t r a d i ç ã o c o m a unila te ra-


li d a d c acim a e s t a b e le c id a da direcção de fundam entação en t re as fa se s
d a o b ra . N o en tan to , n ã o se tr a t a a i n d a de u m a f u n d a m e n t a ç ã o d o « a n t e ­
riorm ente» apresentado p e lo que o é «m ais tarde» m as apenas de um
co m p le m e n to da d e fi n i ç ã o d o « a n t e r i o r m e n t e » a p r e s e n t a d o , d a e l im i n a ç ã o
de u m p o n t o de i n d e t e r m i n a ç ã o « a n t e r i o r m e n t e » existente.
344

quais se deveriam orientar investigações especiais. Com efeito,


aqui como em todos os campos levantam-se múltiplos problemas
e em particular os problemas extremamente importantes da
«composição», que — como muitos outros— apenas se deixam
resolver 1 de modo satisfatório com base nas estruturas e cone­
xões por nós postas em relevo.
Com isto esboçámos, pelo m eips nos seus traços principais,
as estruturas ■fundamentais da obra literária. É já tempo de
passarmos aos aditamentos complementares e conseqüências.

1 Cf. 0. Walzel, Die künstlerische Form des Dichtwerks.


Terceira Parte

AD ITA M EN TO S
COM PLEM ENTARES
E C O N S E Q Ü Ê N C IA S
Terceira Parte

ADITAMENTOS COM PLEM ENTARES E CONSEQÜÊNCIAS

Capítulo 12

Observação dos casos-limite

§ 56. Introdução

Orientámos as análises até aqui efectuadas segundo uma


série de obras em que, seguindo as nossas intuições originárias
inicialmente não esclarecidas, se poderiam ver com certa segu­
rança exemplos de obras literárias. O que tínhamos de tratar
nestes casos foi-se esclarecendo no decorrer da nossa investi­
gação. Logo no início do nosso estudo, todavia, aludimos já ao
pèrigo de que limitar a estes exemplos as nossas análises pres­
suporia o direito definitivo das nossas intuições iniciais e
obscuras e das nossas opiniões e poderia conduzir-nos even­
tualmente a uma interpretação errada da essência da obra lite­
rária (ou da obra de arte literária). A fim de iludirmos este
perigo temos de proceder à análise dos mais importantes entre
os casos duvidosos cuja singularidade e inclusão nas obras
literárias (ou obras de arte) não nos eram de começo evidentes.

§ 57. A peça de teatro 1

Vamos ao teatro para vermos, p. ex., o Don Carlos, de


Schiller. Tratar-se-á, neste caso, de uma obra literária ou surgem
aqui particularidades especiais que permitiriam estabelecer uma
divisória entre exemplos até agora observados e a peça teatral? 2

1 A propósito do § 57.° cf. entre outras as observações de R. Lehmann


na sua Deutscher Poetik, em especial «Dramatische Dichtung», pp. 163-181.
2 Para abreviar empregamos aqui esta designação, como a palavra
«Schauspiel» (espectáculo), para toda a obra que é levada à cena indepen­
dentemente de se tratar de um «Schauspiel» no sentido usual do termo
[obra dramática de tonalidade séria em que o conflito trágico nela existente
se resolve numa solução não-trágica, harmónica e feliz, mercê sobretudo
348

O que temos, afinal, perante nós quando assistimos a uma pea


de teatro? É o Don Carlos que nós lemos idêntico ao que «vernos
no palco?
Temos aqui, sobretudo, de fazer a distinção entre as váriai
representações singulares e a peça respeetivpt várias vezes repre
sentada \ Cada representação singular (espectáculo) é um acon­
tecimento individual que — se não pode ser caracterizado sei
todos os pontos de vista como real — tem, no entanto, a su2
inevitável fundamentação em acontecimentos reais. Cada un'.¿
delas distingue-se necessàriamente das restantes em diversa:
particularidades embora nestas representações individuais se;:
sempre uma e a mesma peça que se «representa», até mesm:
quando é «m al» representada. É certo que a representação nã:
deve ser demasiado má porque então a peça em causa nerr.
sequer chegaria a manifestar-se na sua individualidade2. Maí
é precisamente no caso de uma obra ser «m al» levada a cena
que se torna evidente a diferença entre as representações e a
própria peça. Todo © postulado de que a representação de\ ¿
ser realizada desta ou daquela maneira para que seja uma «boa
representação pressupõe esta diferença. Resta apenas a questãc
de saber se o que se deve pôr em confronto com cada uma
das representações singulares é a obra literária «escrita» cor­
respondente ou algo diferente desta, um «espectáculo». Se fosse
este último o caso, então teria de se contrapor o espectáculc
teatral às obras literárias de determinada natureza (às obras
«dramáticas») como qualquer coisa de heterogéneo; no primeiro
caso, pelo contrário, teria apenas de se supor uma modalidade
especial da concretização das obras «dramáticas», precisamente
aquela que acontece numa «representação».

de uma afirmação éticamente esclarecida do herói. Por exemplo, Iphigcnie


auf Tauris, de Goethe, Prinz von Homburg, de Kleist (N . do T. ) ] , de uma
tragédia ou uma comédia. Deixamos fora do âmbito das nossas observações
o chamado «dram a musical», em especial a «comédia musical» (opereta),
uma vez que a existência nelas do elemento musical lhes origina uma
complicação que parece determinar um tipo específico de obras de arte.
1 É o que faz W. Conrad, l. c., p. 470.
: Constituem um caso especial aquelas representações em que, por um
ou outro motivo, são omitidas várias cenas (partes) da obra. Aqui pode
dizer-se ou que só algumas partes da obra foram representadas ou que
— quando os cortes vão demasiado longe e se formou uma determinada
tradição em efectuar sempre os mesmos cortes — é uma obra diferente
da que o autor criou a que se representa. Nesle caso, esta nova obra tem
de ser posta em confronto com cada uma das representações concretas
singulares.
349

Se observarmos um determinado drama (p. ex., o Don Car­


los) tal qual se revela na sua identidade em diversas leituras
singulares e «este mesmo» drama — assim dizemos, geralmente,
com certa razão — tal qual se revela na sua identidade em dife­
rentes representações teatrais imediatamente nos salta à vista
a diferença e ao mesmo tempo a conexão entre ambos. A dife­
rença reside, sobretudo, no modo como as objectividades são
em ambos os casos apresentadas através de relações objectivas
e tornadas visíveis nos aspectos. Num drama escrito há, como
já anteriormente observámos *, dois textos diferentes: o texto
principal, i. é, as palavras e frases proferidas pelas personagens
apresentadas e o texto secundário, i. é, as «informações» dadas
pelo autor. Num espectáculo teatral o texto secundário cessa
como texto. Com ele desaparece também a «projecção dupla»
dos estados de coisas que acima analisámos e as frases que
formam o texto principal deixam de pertencer ao que é apre­
sentado pelo texto secundário, perdendo o carácter de estar
«entre aspas». A função de projecção, que no drama lido estará
a cargo do texto secundário, é num espectáculo teatral exercida
por objectividades 2 reais determinadamente qualificadas e apa­
recendo em aspectos correspondentes mas com respeito à sua
individualidade não unívocamente definidas3, as quais — como
geralmente se d iz— «desempenham um papel» ou, numa expres­
são mais exacta, exercem a função4 de reprodução e repre­
sentação. E precisamente elas representam aqueles objectos que
num «drama» lido são intencionalmente projectados 5 quer pelo
texto secundário, quer ainda pelo texto principal. Estes objectos
representantes não são necessàriamente aquelas mesmas coisas
e pessoas reais que por ocasião de uma determinada represen­
tação se encontram realmente no palco. Mas têm de ser de tal
maneira que possam desempenhar, pelo menos em parte, as
funções de reprodução e de representação das objectividades

1 Cf. pp. 230 e segs.


: Isto não vê Th. A. Meyer. Contudo, as suas considerações sobre o
drama contêm uma série de anotações valiosas que em parte estão de
acordo com as nossas observações (cf. I. c., pp. 105 e segs.).
3 Verdadeiramente individualizadas são-no só na altura de uma deter­
minada representação. Neste ponto está patente, entre outras coisas, a
diferença entre a própria peça de teatro e as suas várias representações
singulares.
4 Cf. pp. 265 e segs.
5 Mas não aquelas coisas e pessoas reais eventualmente imitadas pelas
objectividades apresentadas. Num a peça de teatro «histórico» surge, por
isso, uma complicação especial de interesse.
350

apresentadas na peça teatral e as possam fazer aparecer1 em


aspectos visuais e acústicos correspondentes. No fundo, o que
interessa sobretudo é que o seu determinado modo de parecer
dê uma configuração conveniente aos respectivos aspectos a fim
de deixar aparecer nos aspectos concretos que devem ser vividos
pelos espectadores as objectividades representadas. A peça de
teatro distingue-se, portanto — como passaremos a dizer a par­
tir de agora — , de uma obra puramente literária pela razão de
nela intervirem meios de apresentação completamente novos
excluídos da obra puramente literária pela essência desta:
1. objectos reais compreendidos na função de reprodução e
representação e 2. os aspectos convenientemente formados e
predeterminados pelas qualidades destes objectos, aspectos em
que as objectividades representadas devem aparecer. Estes aspec­
tos não estão aqui simplesmente postos à disposição através
de vários meios artificiais como numa obra puramente literária
mas são, tanto quanto o seu conteúdo depende dos objectos
que aparecem, definidos por meio dos objectos representantes,
in concreto, como aspectos dos objectos representados, de modo
que basta só que o espectador compareça para que eles se pos­
sam actualizar em plena concreção.
Não se deve, porém, pensar que todas as singularidades
das objectividades apresentadas numa peça de teatro são repre­
sentadas pelos objectos reais representantes. Isto só se dá ple­
namente em relação ao que é intencionalmente projectado atra­
vés do texto secundário da respectiva obra puramente literária
e em parte também em relação àqueles objectos físicos e situa­
ções definidos pelo texto principal que se encontram (ou então
acontecem) directamente «no palco». Pelo contrário, os acon­
tecimentos psíquicos dos «heróis» que ou atingem «a sua expres­
são» pela função notificadora das frases efectivamente proferidas
(na medida em que isto não é imediatamente conseguido pela
mímica dos «actores») ou são tratados no diálogo travado «no

1 Para que numa representação concreta seja apreendido o resultado


destas suas funções, isto é, os objectos representados, tem de estar presente
um «espectador» que plenamente experimente uma série de vivências muito
especiais de apreensão. Estas vivências, naturalmente, não fazem parte
nem da própria peça teatral nem das suas concretizações (representações).
É de notar que estas vivências não são percepções autênticas, embora com
respeito à modalidade da sua evidência intuitiva concreta se assemelhem
à percepção. L. Blaustein, um discípulo de K. Twardowski e meu também,
ocupou-se destas vivências de apreensão e inclui-as nas por ele chamadas
«representações imaginativas» (cf. Przedstawienia imaginatywne, Lwów,
1930).
351

palco» conseguem já apresentar-se e aparecer de um modo


semelhante ao que se observa numa obra puramente literária.
Os meios de apresentação e aparecimento peculiares da obra
puramente literária (as relações objectivas meramente intencio­
nais projectadas pelas frases e os aspectos esquematizados postos
à disposição) não perdem numa peça teatral também a sua
função na medida em que são projectados e predeterminados
pelas frases do texto principal. A função destas relações objec­
tivas é, no entanto, notàvelmente alterada no caso de uma peça
teatral. Enquanto na obra puramente literária elas constituem
o meio mais importante e genuíno de apresentação, de modo
que a constituição das objectividades apresentadas delas depende
primária e essencialmente e quando muito é completada pelos
aspectos postos à disposição, estas relações objectivas não neces­
sitam numa peça de teatro de começar por constituir primà-
riamente as coisas apresentadas porque esta constituição, aliás
apenas inicial, é efectuada através dos objectos reais que desem­
penham a função de reprodução. As coisas e homens que repre­
sentam estão aqui logo de princípio presentes; os representados,
porém, constituem-se como coisas mercê das qualidades corres­
pondentes dos primeiros e da sua função de representação, de
modo que as coisas e homens representados são-nos dados (na
atitude respectiva) de antemão. Também aquelas relações objec­
tivas intencionais que constituem as acções que decorrem «no
palco» e são praticadas pelas personagens representadas parti­
lham este seu trabalho de constituição com os objectos repre­
sentantes, os «actores», uma vez que estas acções, pelo menos
segundo os seus componentes puramente físicos, são realizadas
pelo «jo g o » cénico dos actores. E no que toca a relações objec­
tivas que caem na esfera do ser e acontecer puramente psíquicos
também elas partilham a sua função de apresentação, pelo menos
até um determinado grau, com os múltiplos e variados fenó­
menos de expressão dos «actores» em cena e em especial com
as qualidades manifestativas das palavras e frases efectivamente
proferidas pelos actores. O contributo das relações objectivas
intencionalmente projectadas só tem a este respeito muitas
vezes o valor secundário de um auxílio; facilita a interpretação
dos fenómenos de expressão (que muitas vezes não estão intei­
ramente delineados nem suficientemente claros) e por isso a
apreensão viva do estado psíquico apresentado. Assim, numa
peça de teatro uma parte da função de apresentação é assumida
por um elemento que não existe na obra puramente literária.
Só tratando-se de objectos e acontecimentos que apenas se
352

narram ou se relatam e se encontram ou então se passam «fora


do palco» é o modo de os apresentar e fazer aparecer inteira­
mente o mesmo que o da obra puramente literária. Mas signi­
fica precisamente para a peça de teatro uma falha quando nela
há um número demasiado grande dessas «narrativas» e relatos
Depois do que foi dito seria, portanto, errado afirmar que
a peça teatral — como nós próprios, aliás, já uma vez o fizemos
segundo o modo de falar habitual — é uma realização da obra
puramente litérária correspondente. Com efeito, há, por um
lado, dois estratos desta que de modo algum se deixam «rea­
lizar»: o estrato das unidades de sentido e o das objectividades
apresentadas (neste caso representadas). Os outros estratos,
porém, também não são «realizados», mas apesar de imitarem
os estratos correspondentes da obra puramente literária são,
no entanto, em confronto com eles formações inteiramente novas.
Por outro lado, na peça de teatro intervém as iá referidas dife­
renças estruturais que fazem dela uma obra nova — em compa­
ração com a correspondente obra puramente literária. Tratamos,
pois, no caso da peça teatral, de um tipo de obras diferente do
das puramente literárias. Há, apesar disso, uma estreita rela­
ção entre uma peça teatral e a obra correspondente puramente
literária caso esta última, de resto, exista, o que — como é de
acentuar— não é necessàriamente caso obrigatório. A identidade,
precisamente, dos estratos não realizáveis das unidades de sen­
tido e das objectividades apresentadas permite, na verdade,
estabelecer uma correlação entre estas duas obras heterogéneas
e falar apenas neste sentido de «um » e «mesmo» drama em
duas formas diferentes, uma vez na de uma peça teatral e outra
na de uma obra puramente literária.
Todavia, se a peça de teatro não é uma obra puramente
literária é, no entanto, um caso limite seu. São a favor desta
afirmação os seguintes motivos: 1. Encontramos numa peça de
teatro uma estruturação de aspectos semelhante à da obra
puramente literária; simplesmente, nela intervém novos elemen­
tos e alguns dos estratos desempenham um papel um pouco
modificado. 2. Os estratos das unidades de sentido e das for­
mações fónico-linguísticas também existem na peça de teatro

1 N o artigo «Von den Funktionen der Sprache im Theaterschauspiel»


(em Zagadnienia rodzajów literackich, Lódz, 1958, vol. I) estudei com maior
pormenor estas funções de apresentação que decorrem no espectáculo
teatral.
353

e desempenham nela uma importante função semelhante à desem­


penhada numa obra puramente literária. Se quiséssemos, por­
tanto, empregar a designação «literária» a seu respeito então
a peça teatral teria de ser incluída nas obras literárias embora
não nas puramente literárias. 3. Em conexão com a estruturação
estratificada há nela igualmente aquela polifonia valiosamente
qualitativa que nós já anteriormente considerámos como essen­
cial para a obra literária. 4. Além disso,, falta aqui a modi­
ficação quase-judicativa das frases que; são proferidas pelas
personagens apresentadas. Em conseqüência disto, também aqui
as objectividades apresentadas são apenas formações puramente
intencionais. 5. Também as qualidades metafísicas podem reve-
lar-se numa peça teatral, tendo esta revelação aqui, geralmente,
uma força expressiva muito maior do que é possível no caso
de uma obra puramente literária. 6. Finalmente, também aqui
está patente a estrutura especial da seqüência a condicionar os
diferentes efeitos da dinâmica intrínseca da obra.
Tanto as diferenças como as semelhanças levam-nos, pois,
a considerar a peça de teatro como um caso limite da obra
literária. Ela constitui, ao mesmo tempo, uma transição para
obras de outros tipos que ainda revelam uma afinidade com
as literárias mas já não podem ser incluídas nelas e, por assim
dizer, estão a meio entre estas últimas e as òbras de pintura:
uma transição para a «pantomima» e para a obra (muda)
cinematográfica.

§ 58. O espectáculo cinematográfico

Passamos agora à análise do espectáculo cinematográfico.


E, justamente, vamos considerar um caso em certo sentido
ideal em que trataremos de uma obra cinematográfica inteira­
mente «muda» e completamente livre das usuais informações
«escritas» *. Por um lado, o que nos interessa aqui é unicamente
o filme como obra acabada e não porventura o processo técnico

1 K. Lange tem muita razão quando afirma que todas estas informações
escritas estão em contradição com a essência do espectáculo cinematográ­
fico. O desenvolvimento do filme sonoro não vem trazer alterações neste
ponto (cf. K. Lange, Nationale Kinoreform, 1918). Conheço este trabalho
apenas em parte e por referência. A estrutura do filme sonoro foi por mim
analisada no artigo «Le Temps, 1’Espace et le Sentiment de réalité», cf.
Revue Internationale de Filmologie, Paris, 1947.

23
354

de ele ser produzido. Tratamos especialmente da questão das


relações do filme com urna obra puramente literária. É natural
que nos limitemos aqui ao estudo da estrutura fundamental do
filme sem entrarmos nos inúmeros problemas especiais K
O que é que um filme nos oferece? Uma multiplicidade
variada de «im agens»2, multiplicidade descontínua mas ocul­
tando essa sua descontinuidade, cada urna das quais é urna
reconstrução por meios fotográficos de um aspecto visual de
um determinado objecto ou de urna determinada situação objec­
tiva. Na medida em que estas, «imagens» se seguem umas às
outras provocam o aparecimento de determinadas objectividades
quase como se constituíssem um quadro, embora dç uma ma­
neira essencialmente mais ampla e modificada uma vez que na
sua seqüência e confluência elas fazem aparecer acontecimentos
desenvolvidos temporalmente em toáa a sua marcha concreta3.
Este processo temporal está, porém, excluído da «pintura». Por
outro lado, num espectáculo cinematográfico não existe nem o
estrato das formações fónico-linguísticas que intervém numa
obra literária nem o das unidades de significação. Falando em
termos simples, dos aspectos que são essenciais para a obra
literária só resta metade. Não constitui, por conseguinte, uma
obra literária no seu verdadeiro sentido. Contudo, não é o
número de estratos mas sim o facto de o estrato definitivamente

1 H á imensa literatura sobre o cinema, que está principalmente distri­


buída por diversas revistas especializadas. Foi-me impossível ocupar-me
mais detalhadamente de todas estas obras. Dos estudos que conheço refe­
rentes ao assunto o melhor é, sem dúvida, o livro de Karol Irzykowski,
A Décima Musa (em polaco, 1924), se atentarmos ao núcleo do pensamento
de Irzykowski e não às formulações e concepções por vezes defeituosas
que contém.
2 Abstraímos do facto de estas «fotografias» geralmente serem recons­
truções de aspectos coloridos. Com os processos técnicos de hoje já é
possível produzir filmes coloridos. Sem dúvida que as fotografias de cor
neutra têm os seus valores decorativos próprios, os quais não deveriam
deixar de entrar em conta no caso de uma análise especial. Como segui­
mento imediato ao texto deste livro escrevi, ainda no ano de 1928, um
«suplemento» sobre obras de outras artes (pintura, música, arquitectura).
Era, porém, demasiado extenso para poder ser publicado no mesmo livro.
Nos anos seguintes aprofundei e aperfeiçoei substancialmente este suple­
mento e publiquei-o em polaco em três estudos diferentes. Estão agora
reunidos no segundo volume dos meus Studien zur Ãsthetik.
3 Não está em contradição com isto o facto de, por motivos de ordem
estética e técnica, serem sempre oferecidas só fases singulares dos acon­
tecimentos pois estas fases aparecem-nos também na totalidade do seu
decurso.
355

constituinte num espectáculo cinematográfico ser exclusivamente


o estrato dos aspectos visuais e não o das unidades de signi­
ficação que estabelece a diferença essencial entre ele e uma
obra puramente literária. Por outras palavras: o único «mate­
rial» constituinte é aqui formado pelos aspectos visuais recons­
truídos e estes exercem essa sua função constituinte na medida
em que fazem aparecer as objectividades 1 correspondentes. Por
isso eles atingem aqui uma significação decisiva. As coisas e
as gentes são-nos dadas nos seus acontecimentos, por assim
dizer, «de fora», quase em percepção, e tudo o que viermos a
saber delas ou o que elas são afinal deve ter o seu fundamento
na multiplicidade dos aspectos reconstruídos. Isto leva a difi­
culdades técnicas e artifícios especiais quando se trata da apre­
sentação de acontecimentos puramente psíquicos das personagens
apresentadas uma vez que o sentido das suas conversas não nos
é acessível. Num filme inteiramente mudo aqueles aconteci­
mentos psíquicos que não se podem revelar em modos de com­
portamento e qualidades corpóreas ou são-nos completamente
inacessíveis (melhor: não conseguem nunca a sua constituição)
ou constituem-se apenas mediatamente na medida em que são
determinados pelas situações que aparecem imediatamente. Neste
ponto a sua apreensão pressupõe sempre no espectador ope­
rações subjectivas especiais. Com isto traça-se ao cinema mudo
um limite na apresentação que, é certo, noutro aspecto (em
comparação com o teatro, em que falham os meios técnicos)
vai muito mais além. Este limite no poder de apresentar os

1 Neste ponto não é de. esquecer que o estrato dos aspectos do filme
não deve ser identificado com o estrato correspondente da obra literária.
Os aspectos esquematizados são apenas postos à disposição e em si mesmos
orientados na sua constituição para outros estratos dessa mesma obra.
Num espectáculo cinematográfico, pelo contrário, não são, antes de mais,
esquematizados no mesmo sentido. Que eles, porém, aí também estão
sujeitos a uma esquematização, ou melhor, a uma transformação, decorre
já das alterações de forma que a composição do aparelho fotográfico traz
consigo. É de notar em especial nos aparelhos cinematográficos mono­
culares até agora utilizados a transformação que consiste na redução a
um plano da perspectiva em profundidade. Ela poderia, no entanto, ser
evitada em princípio pelo emprego de aparelhos estereoscópicos. Em se­
gundo lugar, atingem aqui os aspectos a sua explicitação concreta e têm
neste caso o seu fundamento ontológico em determinadas objectividades
e processos reais que se encontram fora do próprio espectáculo. N o artigo
«Le Temps, 1’Espace et le Sentiment de réalité» sujeitei o espectáculo
cinematográfico a uma análise aprofundada. Cf. Revue Internationale de
Filmologie, Paris, 1947, vol. I.
356

acontecimentos psíquicos traz, ao mesmo tempo, consigo uma


certa deslocação no equilíbrio do ser psíquico: para primeiro
plano passa a esfera emocional e em especial aquelas emoções,
sentimentos, paixões, etc., que são violentos, impetuosos e de
uma certa radicalidade primitiva e até rudeza; pelo contrário,
a esfera das operações intelectuais, a vida anímica e espiritual,
toda interior, subtil, ensimesmada e sem se exteriorizar, é rele­
gada para segundo plano quando não desaparece totalmente.
Em conexão com isto, também o âmbito das qualidades meta­
físicas que podem atingir a sua revelação no mundo apresentado
cinematográficamente fica essencialmente reduzido.
Não é, porém, necessário considerar isto como uma falha
do espectáculo cinematográfico. Só quem o considera uma imi­
tação da peça de teatro tem de o sentir assim. O que de facto
se dá é que a obra cinematográfica apenas faz aparecer um
outro sector do ser a apresentar, precisamente todos os acon­
tecimentos (não só «movimentos», como afirma erradamente
Irzykowski) e coisas que se podem fazer aparecer em aspectos
visuais. O concretismo dos aspectos reconstruídos assim como
a possibilidade de nos tornar mais acessíveis e apreensíveis por
artifícios técnicos' convenientes (p. ex., a ampliação das «im a­
gens» respectivas) os aspectos que quase nos fogem na percepção
habitual fazem, ao mesmo tempo, que os múltiplos modos de
comportamento puramente corpóreos ou de corpos vivos ou
imediatamente fundados no corpo vivo das objectividades (ho­
mens, bichos, coisas) participantes nos acontecimentos expostos
sejam trazidos à luz do aparecimento de uma maneira muito
mais expressiva do que é possível com meios puramente lite­
rários. Simplesmente, numa obra cinematográfica tem de se
dar ênfase a acontecimentos visíveis, toda a história apresen­
tada tem, se possível, de se desenrolar só através deles. De con­
trário, o cinema apenas levaria uma vida parasitária em relação
ao teatro e à leitura — como Irzykowski o acentua com razão.
Por outro lado, o concretismo das reconstruções dos aspectos
é justamente a condição de eles intervirem de uma maneira
muito mais premente e se converterem numa medida incompa­
ravelmente maior — do que numa obra literária—; no elemento
propriamente característico do espectáculo. Sim> quando se
trata do valor artístico de um filme ele depende, em primeirõ;
lugar, da selecção dos aspectos reconstruídos, das suas quali­
dades decorativas e outras estéticamente relevantes e só em
357

segundo lugar de momentos correspondentes das objectividades


apresentadas K
Não se deve, porém, ir longe de mais neste sentido e con­
siderar o estrato das objectividades apresentadas como inteira­
mente irrelevante ou até mesmo supérfluo pois não se deve
esquecer que pertence à essência de um aspecto ser aspecto
de alguma coisa. A ideia de um espectáculo cinematográfico
«abstracto» — como Irzykowski lhe chama— , i. é, de um espec­
táculo a que faltasse simplesmente o estrato dos objectos apre­
sentados e levados a aparecer (coisas, pessoas, eventos), poder
ser técnicamente realizável não constitui, porém, uma mera
modificação do espectáculo cinematográfico mas sim um tipo
de obras totalmente heterogéneo em confronto com este, não
obstante poder ser realizado com os mesmos aparelhos2. Se se
admite que ambos os estratos são indispensáveis numa obra
cinematográfica também se tem de admitir juntamente com isto
que nela existe igualmente uma polifonia de elementos hetero­
géneos e de qualidades de valor correspondentes mesmo que
ela seja aqui essencialmente mais pobre e simples do que o é
numa obra puramente literária. Com isto não está em contra­
dição o facto de o espectador vulgar e ingênuo vir quase exclu­
sivamente preparado para os acontecimentos e coisas que se
fazem aparecer.
Em conclusão: a obra cinematográfica não é uma obrcí
literária. É-lhe, porém, afim porque nela as mesmas objectivi­
dades, em princípio, podem fazer a sua apresentação (com as
limitações acima indicadas) e uma vez que possui, afinal, o
estrato das objectividades apresentadas. No caso de ser uma
obra de arte está muito mais perto das obras de arte literária
do que, p. ex., as obras da música e da arquitectura e também
mais perto do que as obras da pintura e da escultura. É — se
assim se pode dizer— uma peça de teatro degenerada que, por
um lado, como que perdeu os dois estratos de linguagem mas,
por outro, em vez de empregar objectividades reais na função

' Ter chamado a atenção para isto é o principal mérito de Irzykowski


no livro citado, embora o conceito de aspecto lhe seja desconhecido.
2 É de notar que a posição de Irzykowski neste ponto é vacilante. Por
um lado, insurge-se contra a eliminação do conteúdo («Gehalt» na sua ter­
minologia), i. c, segundo os seus conceitos que definimos, do estrato das
objectividades apresentadas; por outro lado, fala da ideia de um cinema
«abstracto» com evidente simpatia sem tomar consciência da heterogenei­
dade das duas espécies de «espectáculos» cinematográficos.
358

de reprodução utiliza exclusivamente aspectos reconstruidos e,


sob muitos pontos de vista, radicalmente alterados como meios
de apresentação.
Como a obra literária, também o espectáculo cinematográ­
fico pode ser uma obra de arte ou apenas uma obra de infor­
mação ou uma exposição científica (Cf., p. ex., o estudo das
fases do voo das aves, fotografias para a psicologia, emprego
do cinematógrafo na biologia, medicina, etc.) Neste aspecto
manifesta-se uma nova afinidade entre o espectáculo cinemato­
gráfico e as obras literárias. No caso de ser uma obra de arte
então as objectividades apresentadas aparecem não como reais
mas só como quàse-reais, surgindo apenas sob a aparência de
realidade. São, além disso, apenas objectividades puramente
intencionais e a sua pura intencionalidade é ainda corroborada
pelo facto de as «imagens» projectadas não serem objectos
reais, autónomos no seu ser, mas imagens somente que têm
de ser interpretadas pelas operações subjectivas correspondentes
como aparições das objectividades apresentadas. Quanto à inten­
cionalidade das objectividades apresentadas em nada as altera
o facto de ser de coisas, homens, acontecimentos reais de que
ao produzir o filme se fazem fotografias. Efectivamente, os
objectos a que se tiram fotografias não são, por assim dizer,
simples objectos reais. Eles exercem aqui uma função de repro­
dução e de representação, desempenham um «papel». E não são
os objectos reais como reais mas sim o que é por eles repro­
duzido, ou melhor, representado que pertence (depois de tirada
a fotografia e feita a projecção) como estrato à estrutura da
obra cinematográfica. Completamente diferente é o que se passa,
pelo contrário, no caso de um filme científico ou de um filme
de informação (o documentário da semana). Aqui, as coisas
reais que são reproduzidas cinematográficamente não desempe­
nham «papel» algum. Elas são fotografadas no seu simples ser
e modo de ser. É a elas próprias que por quaisquer motivos
nós queremos apreender no seu modo de ser e acontecer por
esta via intermediária. Em compensação, as objectividades pura­
mente intencionais que aparecem através dos aspectos recons­
truídos cinematográficamente exercem actualmente a função de

1 A designação «obra literária» é tomada aqui num sentido mais lato


do que o que foi empregado até aqui a propósito desta expressão. Cf. a este
respeito o § 60.
359

reprodução e representação com o fim de trazerem os objectos


e acontecimentos já fotografados a uma doação quase em moldes
de percepção 1.

§ 59. A pantomima

Um caso limite entre a peça de teatro e o espectáculo


cinematográfico é constituído pela pantomima. Ela tem afini­
dades com a primeira pela razão de nela — como na peça de
teatro— estarem compreendidas objectividades reais na função
de reprodução e representação que predeterminam multiplici­
dades de aspectos inteiramente concretos. Com o espectáculo
cinematográfico tem, porém, de comum o facto de também nela
faltar o duplo estrato da linguagem e de, portanto, também
nela como na obra de cinema existir uma análoga limitação
da apresentabilidade. Distingue-se, contudo, ao mesmo tempo
desta última pela razão de nela tanto os aspectos como os
movimentos e modos de comportamento dos actores «em cena»
se constituírem de maneira que o elemento da linguagem, que
neste caso falta, é substituído por outros meios. Ela está, por
assim dizer, planeada no sentido de através do jogo fisionômico
e da gesticulação das personagens que surgem em cena se dizer
exactamente o mesmo que poderia de modo mais simples ser
expresso através das palavras. É quase como uma peça teatral
de surdos-mudos. Isto é precisamente o que não se dá no caso
de um espectáculo cinematográfico. Eis porque os limites da
apresentação na pantomima são muito mais restritos do que
na obra de cinema uma vez que nela não se têm ao dispor
meios técnicos convenientemente eficientes.

1 É claro que na base dos argumentos deste parágrafo está uma con­
cepção muito especial da estrutura da fotografia que se vislumbra através
do texto. Essa concepção era em 1930, ano em que surgiu este livro, com­
pletamente nova. Desde então foi publicada uma série de estudos sobre a
fotografia em língua alemã, francesa e inglesa — de N. Hartmann, 1932,
até porventura E. Gilson, 1958 — , os quais apresentam muitas afinidades
com a concepção de fotografia aqui adoptada e quase na mesma altura
elaborada. O texto integral do meu trabalho escrito em língua polaca
(O budowie obrazu, 1946) era, com efeito, inacessível aos investigadores
da Europa ocidental, mas um resumo em francês do mesmo surgiu no
«Boletim » da Academia Polaca das Ciências em Í946. Em que medida a
este respeito se pode falar de uma simples afinidade ou de influência
■não me é possível dizê-lo.
360

O que acabámos de dizer permite-nos verificar que no caso


da pantomima há apenas uma afinidade com a obra literária
sem que ela possa propriamente ser incluída neste género de
obras. Não é possível entrarmos aqui em problemas especiais

§ 60. A obra científica


A simples informação

Um caso limite muito importante da obra literária é cons­


tituído pela obra científica. Ela distingue-se sob vários pontos
de vista da obra de arte literária embora lhe esteja relativamente
muito próxima. Denota unja estruturação em estratos inteira­
mente análoga à da obra literária; não obstante, os elementos
de cada um dos estratos singulares assim como os papéis res­
pectivos são nela em parte diferentes. Todas estas diferenças
estão em íntima relação com a função de natureza distinta que
a obra científica desempenha na vida espiritual do homem.
Consiste ela na fixação dos resultados de conhecimento adqui­
ridos e na sua transmissão a outros sujeitos conscientes. É esta
função precisamente que a obra literária, no sentido em que a
tomamos, não poderá exercer.
As diferenças entre os dois tipos de obras que entram aqui
antes de mais em consideração são as seguintes:
1. As. frases que aparecem numa obra científica são quase
exclusivamente autênticos juízos. Elas podem ser verdadeiras ou
falsas mas reivindicam, em todo o caso, essencialmente a pre­
tensão de verdade. Eis porque desaparece aqui tanto a modi­
ficação quase-judicativa das frases afirmativas como também a
modificação análoga de todas as restantes que nós julgámos
características da obra literária. Mesmo quando por acaso surge
uma interrogação meramente «retórica», que, como tal, em
princípio poderia ser substituída por uma frase afirmativa, essa
interrogação reivindica em todo o caso a pretensão a ser uma
interrogação verdadeira.

1 Abstraímos aqui da complicação que resulta da freqüente combi­


nação da pantomima com o «acompanhamento» musical (designação aliás
incorrecta pois o que está aqui em jogo é algo mais do que um simples
acompanhamento). A presença do elemento musical não é essencial para
a pantomima. No caso, porém, de ele intervir surge, então, um novo tipo de
obra de arte que não vamos aqui analisar em pormenor. Sem dúvida, com
o contributo do elemento musical alargam-se os limites da apresentação.
361

2. À estrutura da obra científica pertencem, naturalmente,


tanto os correlatos de frases puramente intencionais (e quase
exclusivamente relações objectivas) como as objectividades apre­
sentadas. Uma vez que as frases aqui são predominantemente
juízos autênticos é através do conteúdo do correlato puramente
intencional da frase que passa o raio director das significações
nelas contidas, de modo que as frases se referem a comporta­
mentos de coisas objectivamente existentes ou aos objectos neles
abrangidos. As relações objectivas puramente intencionais são
em princípio «transparentes» e só se distinguem dos compor­
tamentos de coisas objectivamente existentes quando se trata
de frases erradas ou pelo menos duvidosas e até mesmo quando
os respectivos comportamentos de coisas objectivamente exis­
tentes não foram ainda apreendidos ]. Seria um erro pensar que
as objectividades apresentadas na obra científica desempenham
uma função de reprodução e que é só por esta função que as
frases entram em relação com as objectividades ontològicamente
autónomas reproduzidas. Pode dar-se isto, é certo, não quando
a obra científica está a desempenhar a sua função própria mas
apenas numa configuração especial que lhe é imposta quando
é captada como uma «concepção» do autor em causa, tal como
muitas vezes acontece, p. ex., no caso de uma análise histórica
de obras filosóficas. Só então exercem as objectividades apre­
sentadas as funções de reprodução e de representação e a obra
na sua totalidade aproxima-se, sob este ponto de vista, de muitas
obras literárias.
3. Numa obra científica podem aparecer tanto no estrato
das formações fónico-linguísticas como no das unidades de
significação particularidades que vistas em si mesmas encerram
qualidades de valor estético e em conjunto com momentos cor­
respondentes de outros estratos levam a uma polifonia valio­
samente qualitativa. Mas se isto não é excluído pela essência
da obra científica, por outro lado não lhe é de modo algum
necessário; constitui para a obra científica um luxo dispensável.
A obra científica não está de modo algum concebida para
conter tais peculiaridades. Está planeada no sentido de, em

1 Sabemos muitas vezes que uma frase é errada e, apesar disso, não
somos capazes de apreender o comportamento objectivo das coisas que
pertence à frase verdadeira correspondente e fica por conhecer. Todavia,
como «desconhecido» já se distingue da relação objectiva puramente inten­
cional da frase errada. Naturalmente, o comportamento não-conhecido das
coisas tem de estar já de qualquer modo unívocamente determinado se
tem de ser apreendido como «não-conhecido».
362

primeiro lugar, conter frases verdadeiras e encerrar particula­


ridades estruturais que lhe possibilitem a acção na função me­
diadora do conhecimento. Tudo o resto tem de ser subordinado
a este objectivo principal. Eis o que, precisamente, não só não
é essencial para a obra literária e em especial para a obra de
arte literária mas está até excluído no caso de autênticas obras
de arte'. Em que consistem na estrutura da obra as particula­
ridades que daí resultam e de que modo a fazem distinguir da
obra de arte literária, este seria um tema para uma análise
especial de grande amplitude.
4. As obras científicas podem conter em si, como um estrato
especial, multiplicidades de aspectos esquematizados postos à
disposição caso precisamente as frases se relacionem com objec­
tos capazes de aparecer em multiplicidades de aspectos. Mas
se estes aspectos estão presentes na obra não deixam, no entanto,
de desempenhar nela um papel completamente diferente do
desempenhado na obra de arte literária. Interessam simplesmente
como meios auxiliares úteis e muitas vezes até indispensáveis
à transmissão dos resultados de conhecimento. Os momentos
decorativos eventualmente presentes são nela inteiramente dis­
pensáveis e muitas vezes até perturbadores.
5. Finalmente, a revelação eventualmente ocorrente das qua­
lidades metafísicas só é essencial quando uma determinada
qualidade metafísica em si mesma pertence ao tema do resultado
do conhecimento adquirido e transmitido ou pelo menos o auxilia
na sua transmissão. Em todos os outros casos a sua revelação
não só não é essencial mas pode até actuar contràriamente à
função capital da obra científica e deve, portanto, evitar-se o
mais possível.
Mutatis mutandis, também o que dissemos poderá ser exten­
sivo ao caso da simples informação, i. é, da pura reportagem.
Não pretendemos ocupar-nos deste assunto com mais pormenores.
Capítulo 13

A «vida» da obra literaria

§ 61. Introdução

As nossas análises foram até agora orientadas no sentido


de encarar a obra literária como urna objectividade em si e
de a procurar perscrutar na sua construção peculiar. Isolámo-la
da sua relação viva com os individuos psíquicos e, por conse­
qüência, também da atmosfera cultural e das diferentes cor-
rentes espirituais que se desenvolvem no decorrer da historia.
Só nos pontos em que a própria obra literária remete para
operações subjectivas tivemos de recorrer aos elementos sub­
jectivos. Chegou agora a ocasião de voltarmos a pôr a obra,
por assim dizer, de novo em contacto com o leitor e de a situar
na vida espiritual e cultural concreta a fim de verificarmos que
novas situações e problemas daí resultam. Isto torna-se também
necessário porque as nossas observações nos levaram à conclusão
de que a obra puramente literária é, sob vários pontos de vista,
uma formação esquemática que inclui em si «lacunas», pontos
de indeterminação, aspectos esquematizados, etc. Por outro lado,
muitos dos seus elementos evidenciam uma determinada poten­
cialidade que nós procurámos indicar com a expressão «estado
de disponibilidade». Contudo, a obra literária singular não parece
revelar 1 na relação viva com o leitor no decorrer de uma leitura
tais pontos de indeterminação, tais esquematizações, nem a
potencialidade dos aspectos postos à disposição. A partir daqui
põe-se a pergunta pelo modo como se apresenta a obra literária
durante uma leitura e qual é o correlato imediato desta leitura.
Já anteriormente tivemos a oportunidade de aludir a que à

1 Esta potencialidade, porém, também se revela — como é de com­


pletar aq u i— no modo de parecer dos objectos apresentados. Este modo
de parecer só seria efectivamente acabado se os aspectos do seu simples
estado de disponibilidade e esquematização pudessem passar à actualidade
e concreção. Mas isto só é possível aquando de uma concretização da obra.
¿64

própria obra são de contrapor as suas concretizações, que sob


muitos pontos de vista dela se distinguem. Estas concretizações
são precisamente aquilo que se constitui durante uma leitura
e o que, por assim dizer, produz um modo de aparecimento da
obra na concretização em que nós a apreendemos. A próxima
tarefa que se nos impõe aqui consistirá em circunscrever as
particularidades da concretização da obra literária e estudar as
relações que existem, por um lado, entre as concretizações e a
obra literária e', por outro, entre elas e as vivências subjectivas
em que se constituem \

§ 62. As concretizações da obra literária e as vivências


da sua apreensão

O que temos nós em vista quando falamos da «concreti­


zação» de uma obra literária? Em vez de respondermos direc­
tamente a esta pergunta queremos, em primeiro lugar, delimitar
esta concretização em relação às operações subjectivas e, ‘ mais
em geral, em relação às vivências psíquicas que temos durante
uma leitura. A obra literária com que temos de lidar, quer ao
ler, ao ouvir, quer ainda durante uma representação teatral
é — de acordo com as nossas análises anteriores — um objecto
de construção muito complexa em função do qual nos orientamos
numa multiplicidade de actos de consciência conexos entre si
e de outras vivências que já não têm a estrutura especial do
acto. Precisamente a complexidade da sua construção e a hete-
rogeneidade dos seus elementos fazem que todas estas vivências
e actos sejam de natureza muito variada e se produzam em
diferentes combinações possíveis e entrelaçamentos. Há, em pri­
meiro lugar, diversos actos de conhecimento tais como os actos
de percepção em que os signos de palavras ou fonemas e as
formações fónico-linguísticas de ordem superior são apreendidos
(ou as percepções das coisas e pessoas2 que se encontram «no
palco»), os actos de apreensão das significações fundados nos

1 É a «concretização» da obra que W. Conrad tem em vista quando


fala da «realização» da obra de arte. Não leva, porém, mais longe a análise
desta «realização» (cf. I. c., p. 480).
2 Em rigor, não são simples percepções sensíveis; levar-nos-ia, porém,
demasiado longe tratar disto com maior pormenor. Este assunto não é
de grande significado para o que se segue.
365

primeiros e, finalmente, os actos de intuição imaginativa das


objectividades e situações apresentadas e, dado o caso, também
das qualidades metafísicas que nestes se revelam. Esta intuição
da imaginação está, por seu lado, fundada nos actos primeira­
mente indicados. Tanto nos actos de percepção em que apreen­
demos o estrato fónico-Iinguístico (ou em que nós, numa repre­
sentação teatral, levamos à cena os objectos representantes)
como também na intuição imaginativa das objectividades apre­
sentadas são, ao mesmo tempo, vividas multiplicidades de aspec­
tos concretos quer na forma da modificação ao nível da per­
cepção, quer ao nível da fantasia. Precisamente, quando o leitor
se submete à obra são vividos aqueles aspectos cujos esquemas
são postos à disposição pela mesma. Além disso, são despertadas 1
no leitor múltiplas vivências do prazer estético em que despon­
tam avaliações estéticas que eventualmente também atingem um
desenvolvimento explícito. Finalmente, fazem-se sentir na alma
do leitor (ou do espectador) sob o efeito da leitura múltiplos
sentimentos e afectos2 que, é certo, já não pertencem ao grupo
das vivências em que a obra literária é apreendida in concreto
mas não deixam de ter influência na sua apreensão.
Como vemos, a situação que encontramos no sujeito psí­
quico durante uma leitura é muito complicada e seria necessária
uma análise3 especial para a discriminar com mais exactidão.
A complexidade e multiplicidade desta situação é — como já
observámos — apenas um reflexo da estruturação da obra lite­
rária. Esta estruturação exige em certa medida que a não
apreendamos em vivências globais simples ou construídas sim­
plesmente, mas devemos desenvolver uma grande riqueza de
variados actos de consciência e vivências a fim de a captarmos
adequadamente. A complexidade da apreensão total da obra
tem como conseqüência que o «eu», sujeito de vivêiteias, deva,
por assim dizer, produzir demasiado de urna só vez, não podendo
portanto viver em todos os componentes desta apreensão total
no mesmo sentido. De‘ toda a multiplicidade dos actos ao mesmo
tempo vividos e entrelaçados uns nos outros e das outras vivên­

1 Cf. as belas análises de M. Geiger no trabalho B eitráge zu r Phánom e­


nologie des dsthetischen Genusses, Jahrbuch für Philosophie und phânom.
Forsch., vol. I.
2 Cf. M ax Scheler, Z u m Phanom en des Tragischen.
3 N o meu livro Ü ber das E rken n en des litera risch en Kunstw erks
(1937) submeti todos estes dados a uma análise pormenorizada.
366

cias são efectuados sempre só alguns pelo «eu» fulcralmente e


em plena actividade, enquanto os restantes são, é certo, também
vividos e realizados mas apenas no modo da «co-efectivação»
e co-experiência. Dá-se neste processo uma constante mudança
com respeito à espécie de actos (vivências) componentes que
num dado momento se desenvolvem fulcralmente ou apenas «de
passagem» na co-realização. Com esta mudança vai de par tam­
bém a mudança do raio de incidência da atenção. Em conse­
qüência disto, partes e estratos sempre diferentes da obra lida
são intuídos de forma mais clara, enquanto os restantes mer­
gulham numa penumbra e numa seminebulosidade em que ape­
nas ressoam e têm voz dando coloração de modo especial à
totalidade da obra. Uma outra conseqüência desta mudança
constante e dos modos diferentes em que nós experimentamos
ora estas vivências ora aquelas é que a obra literária nunca é
apreendida plenamente em todos os seus estratos e compo­
nentes mas sempre só parcialmente, sempre, por assim dizer,
apenas numa abreviação perspectivista. Estas abreviações podem
mudar constantemente não só de caso para caso mas também
numa e a mesma leitura pois elas podem até ser condicionadas
e exigidas pela estruturação da obra em causa e de todas as
suas partes singulares. Em geral não são, porém, tão depen­
dentes da própria obra como das condições particulares em que
a leitura se realiza. Eis porque apenas podemos captar uma
obra só até certo grau, nunca, porém, plena e inteiramente.
Quase somos tentados a dizer que uma e a mesma obra se
apreende em «aspectos» 1 diferentes e em mutação. A multipli­
cidade variada destes «aspectos» que pertencem a uma e a
mesma leitura é, ao mesmo tempo, de significação decisiva para
a constituição de uma determinada concretização da obra que
em dado momento se lê. E uma vez que estas multiplicidades,
no caso de duas leituras diferentes, são em geral diversas depa-
ra-se-nos assim o caminho para distinguirmos a obra das suas
próprias concretizações.
Em primeiro lugar, porém, ainda uma observação que não
deixa de ter importância: a riqueza e a complexidade das ope­
rações subjectivas e vivências a realizar na apreensão da obra
literária exigem que o sujeito que apreende, caso a leitura e a
apreensão da obra pretendam afinal ser bem sucedidas, afaste

1 É o que diz também W. Conrad, sem aliás chamar a atenção para


as situações aqui apresentadas (l. c.).
367

de si todas as influências perturbartoras. Eis porque se dá geral­


mente um involuntário afastamento e repressão de todas aque­
las vivências e estados psíquicos que são próprios da vida, aliás
real, do leitor em causa-, um cegar e ensurdecer para os factos
e acontecimentos do mundo real. Procuramos afastar de nós
durante a leitura até acontecimentos e assuntos sem a mínima
importância como possíveis estorvos (daqui a posição o mais
cómoda possível do nosso corpo, o maior silêncio possível e
outras coisas semelhantes). Este afastamento do nosso mundo
real leva, por um lado, a que as objectividades apresentadas e
intuídas constituam para nós um mundo próprio que se encontra
longe de qualquer realidade e, por outro lado, torna-nos possível
a atitude de pura intuição frente às objectividades apresentadas
e o gozo pleno das qualidades de valor estético que se revelam
na obra. Por esse afastamento, entre outras coisas, adquirimos
a atitude «estética» («intuitiva») específica em que em geral as
obras de arte podem ser apreendidas e se tornam possíveis
relações vivas com elas !. É, pois, em última análise essa mesma
riqueza de vivências da apreensão que, por um lado, contribui
para as «abreviações perspectivistas» da obra literária numa
leitura e por estas também, possivelmente, para uma turvação
da pureza da sua forma global mas, por outro lado, contribui
precisamente para a intuição que lhe é adequada enquanto
obra de arte.
Todos estes actos de apreensão e vivências constituem,
naturalmente, a condição necessária para que uma obra literária
seja apreendida a vivo na forma de uma das suas concretizações
possíveis. Apesar disto, não só a própria obra literária mas
também cada uma das suas concretizações são diferentes destas
vivências da apreensão. É natural que não haveria nenhuma
concretização se as vivências de apreensão não se realizassem
pois as concretizações são dependentes destas últimas tanto no
seu modo de ser como também na sua matéria. Contudo, con­
cluir daqui que elas são algo de psíquico ou mesmo um ele­
mento das vivências está desprovido de qualquer fundamento.
Como se duas objectividades A e B que são dependentes onto­
lògicamente uma da outra tivessem sempre, por isso mesmo,
de ser da mesma espécie ou estar na relação parte-todo! Entre
uma cor concreta e a sua extensão concreta existe uma relação

1 Joñas Cohn na sua obra AUgemeinen Ásthetik parte de um ponto de


vista análogo. Cf. I. c., pp. 32 e segs., 35.
368

muito mais estreita do que entre uma concretização de uma


obra literária e as respectivas vivências de apreensão e, apesar
disso, ninguém diria que a cor é extensão ou que a extensão
é cor nem, finalmente, que a extensão é uma parte da cor em
causa. E do mesmo modo como um arco-íris não é nada de
psíquico, embora só se revele in concreto quando sob determi­
nadas condições objectivas se dá uma percepção visual, também
a concretização de uma obra literária é, sem dúvida, condicio­
nada no seu ser por vivências correspondentes mas tem, ao
mesmo tempo, o seu fundamento ontológico na própria obra
literária e é, por outro lado, em relação às vivências de apreen­
são tão transcendente como a própria obra literária.
Não podemos aqui apresentar nenhuma teoria pormenori­
zada da consciência e do ser psíquico nem também das pos­
síveis relações que objectividades ontològicamente autónomas e
heterónomas podem manter com as vivências da consciência.
Bastará, porém, recordar talvez que cada vivência afinal só
pode ser apreendida na reflexão ou na experiência completa
do acto e tudo o que é psíquico só pode ser captado na per­
cepção interior *(i. é, nas palavras de M. Geiger, na «interiori-
zação»). Se a concretização de uma obra literária fosse um
componente real das vivências da consciência em questão ou se
fosse algo de psíquico então ela teria de ser apreendida também
por esta via e só por ela. Contudo, este não é o caso nem da
própria obra literária nem de quaisquer concretizações de obras
literárias. Com efeito, ninguém visa durante a leitura ou como
espectador no teatro as suas próprias vivências ou os próprios
estados psíquicos. Qualquer pessoa riria se lhe propuséssemos
fazê-lo. Só aos cientistas teorizadores da literatura lhes ocorre
o pensamento peregrino de procurar a obra literária «na alma»
do leitor.

§ 63. A obra literária e as suas concretizações

Depois de no parágrafo anterior termos delimitado as con­


cretizações de uma obra literária relativamente às vivências de
apreensão subjectivas vamos agora traçar a linha divisória
entre as concretizações e a própria obra.
Podemos lidar estéticamente com uma obra literária apenas
sob a forma de uma das suas possíveis concretizações e assim
369

apreendê-la ao vivo K Na verdade, temos de nos haver com ela


exactamente na forma em que ela se manifesta na concretização
em causa. Contudo não visamos, ao fim e ao cabo, a concreti­
zação enquanto tal mas sim a obra em si mesma e em geral
não tomamos consciência da sua diversidade em relação a cada
concretização. Apesar disto, ela é essencialmente distinta de
todas as suas concretizações. É só nestas que ela se manifesta
e se explicita, mas cada um destes desenvolvimentos (na medida
em que não é uma mera reconstrução da obra) ultrapassa-a
necessàriamente. Por outro lado, nenhum destes desenvolvimen­

1 Numa observação superficial esta frase parece levar a uma dificul­


dade de princípio. Efectivamente, como podemos nós opor a obra literária
às suas concretizações e apreendê-la na estrutura que é própria só dela
e não das suas concretizações se nós apenas a podemos apreender na
forma que ela toma em cada uma das suas concretizações? Não havendo,
por assim dizer, nenhum acesso d ire cto à própria obra literária todas as
nossas análises correrão perigo de ficarem a pairar no ar. Cremos que
o conteúdo de verdade das nossas análises as defenderá contra uma tal
objecção. Pretendemos, apesar disso, mostrar que uma tal objecção. é
improcedente. Em primeiro lugar, se de facto apenas podemos apreender
cada obra literária singular numa das suas concretizações esta concreti­
zação não é de modo algum pretexto que nos impeça o acesso à própria
obra. Já as diferenças individuais entre as várias concretizações singulares
nos dão a possibilidade de destrinçar o que pertence à própria obra e o
que pertence às concretizações casualmente condicionadas. Em segundo
lugar, estudamos aqui não uma obra singular na sua individualidade mas
sim o conteúdo da ideia geral de toda a obra literária (cf. Questões Essen­
ciais, p. 52). Não precisamos, portanto, de permanecer nas concretizações in­
dividuais. Mas também se procurássemos apreender uma obra de arte lite­
rária muito determinada seria possível, por assim dizer, aprgendê-la na
sua forma pura. O que distingue então a obra em si mesma das suas
concretizações? Primeiro, o facto de os pontos de indeterminação que
estão contidos na própria obra serem na concretização, em parte, preen­
chidos. Em segundo lugar, o facto de as potencialidades encerradas na
própria obra (como os aspectos postos à disposição, as qualidades meta­
físicas) serem nas concretizações transformadas em actualidades. Final­
mente, nas concretizações a apreensão das unidades de significação pode
ser inadequada. Todavia, em todos estes pontos é possível proceder, ao
concretizarmos a obra, de modo que estas diferenças desapareçam. Pode­
mos, portanto, abster-nos do preenchimento dos pontos de indeterminação
como da transformação das potencialidades em actualidades e, finalmente,
realizar de modo plenamente adequado a concretização das unidades de
significação. Nessa altura obtemos uma «concretização» muito especial da
obra a que eu chamei noutro lado (cf. Über das E rkennen des literarischen
W erkes) «reconstrução» da obra literária. É de notar ainda, por fim, com
respeito à possibilidade dos resultados apresentados, que falamos aqui no
texto da relação estética com a obra, enquanto a condição de possibilidade
de salientar os nossos resultados constitui um acesso te o ré tico puram ente
cogn oscitivo à obra.

24
370

tos vai tão longe como a própria obra uma vez que neles geral­
mente se produzem as já anteriormente mencionadas abrevia­
ções e eventualmente também modificações dos elementos da
obra então apreendidos. A concretização encerra não só diversos
elementos que não estão realmente contidos na obra mas são
por ela permitidos como também assinala muitas vezes elementos
que são estranhos à obra e a encobrem em maior ou menor
grau. São estes factos que nos obrigam a traçar em pormenor
e logicamente a linha divisória entre a obra literária em si
mesma e as suas múltiplas e várias concretizações.
1. Na obra puramente literária intervém os fonemas signi­
ficativos como típicas qualidades de forma, às vezes peculiar­
mente entretecidos de qualidades de manifestação. Na concre­
tização através de uma exposição em voz alta (declamação)
estas qualidades de forma são sustentadas por sons concretos
e assim manifestadas e concretamente preenchidas K Os sons
concretos oferecem neste processo outras qualidades diferentes
ainda cujo domínio é predeterminado ou perriiitido pela forma
fónica sustentada e as quais têm relativamente ao todo da
concretização um papel eventualmente modificador mas, em
todo o caso, complementar. Estas qualidades variam de caso
para caso e fundamentam (embora não só elas) a diferença
enlre as concretizações singulares de uma e a mesma obra
literária. Esse seu efeito modificador que eventualmente aparece
não se limita necessàriamente ao estrato das formações fónico-
-linguísticas mas pode expressar-se também em modificações
noutros estratos da obra concretizada na medida em que ou
contribui para uma melhor expressão e complemento de sen­
tido de outros estratos ou traz consigo obnubilações e defor­
mações de outros elementos destes últimos, cf. «uma boa» e
«uma má» declamação. No primeiro caso, a obra'concretizada
pode ganhar novos valores estéticos a ela própria estranhos,
tomada na sua pureza, mas no entanto «adequados»; no segundo,
pelo contrário, pode perder diversos valores que de acordo com
a sua essência ela deveria possuir (isto quer dizer que não
chegam a manifestar-se).
2. As significações das palavras e os conteúdos de sentido
das frases podem na concretização, mesmo no caso de uma

1 Uma modificação especial ocorre no caso de uma leitura silenciosa


na medida em que o elemento gráfico aqui, em primeiro lugar, desempenha
um papel e depois os fonemas significativos não são percepcionados
in concreto mas apenas representados. Não vamos ocupar-nos mais deste
assunto.
371

apreensão em princípio adequada, estar entretecidos de compo­


nentes de sentido não passíveis de precisão e variáveis de caso
para caso (quando, p. ex., muitas palavras numa determinada
região possuem um colorido local específico de sentido que, de
certo modo, não é «traduzívei» \ Mesmo que não provoquem
divergências mais significativas no estrato das unidades de sen­
tido de uma determinada obra literária podem, no entanto,
determinar as relações objectivas intencionais ou as objectivi­
dades apresentadas e muito em particular o «m odo de parecer»
destas últimas, sob ângulos diversos, mais pormenorizadamente
ou de modo diferente do que é predeterminado pela própria
obra. Deste modo, podem ser eliminados em parte os pontos
de indeterminação necessários à própria obra, em especial
quando entre os elementos de significação entretecidos se encon­
tram actualizações de momentos do estado potencial das signi­
ficações nominais das palavras que intervém na obra respectiva.
Se os componentes de sentido entretecidos arrastam consigo
divergências ou mesmo transformações mais significativas dos
sentidos das frases, pelo que, naturalmente, já se não pode falar
de uma apreensão adequada do estrato de significação da obra,
então dá-se — como em geral impropriamente dizemos — uma
«alteração» da obra inteira. De facto, trata-se aqui ou de uma
ocultação modificadora ou de uma criação consciente de uma
nova obra que em relação à original apenas é mais ou menos afim.
3. Os sentidos das frases são na concretização de facto
apreendidos, i. é, intencionados. Eles já não permanecem na
forma da intencionalidade emprestada que é essencial para o
estrato de significação da própria obra literária mas são extraídos
pelo leitor das palavras (ou frases) e de facto actualmente
intencionados. Naturalmente — acentuamo-lo mais uma vez — , o
sentido intencionado não se torna deste modo algo de psíquico.
Seria absurdo afirmá-lo.
4. A diferença mais radical entre a obra literária e as suas
concretizações ocorre no estrato dos aspectos. Do seu simples
estado de disponibilidade e esquematização na própria obra os
aspectos, pelas concretizações, atingem a esfera do concreto e
elevam-se à vivência da percepção (no caso de uma represen­
tação teatral) ou à vivência da fantasia (no caso de uma leitura).

1 Isto é, em termos mais exactos: o sentido deste colorido não é


geralmente captado com clareza em separado e só pode ser apreendido,
ou melhor, intencionado à mistura com todo o material de significação
em virtude de uma experiência imediata correspondente. Cf. a este respeito
as observações pertinentes de H. Ammann, Die menschlicke Rede, vol. I.
372

Neste ponto, os aspectos concretamente vividos ultrapassam o


conteúdo esquematizado dos aspectos postos à disposição na
obra na medida em que o puro esquema é, sob vários ângulos,
preenchido por elementos concretos. Como conseqüência destes
preenchimentos, que na verdade são em certos limites predeter­
minados pelos aspectos esquematizados mas, apesar disso, variam
de caso para caso, duas concretizações, quaisquer que elas sejam,
duma e a mesma obra têm necessàriamente de ser diferentes
uma da outra. Os complementos e as transformações que nelas
ocorrem podem, no entanto, ser de natureza tão múltipla e
variada que quase não é possível prever que forma tomará a
este respeito uma determinada concretização singular. E isto
em especial também em virtude de cada aspecto concretamente
vivido do objecto apresentado ser apenas análogo a um recorte
extraído, por abstracção, do conteúdo total do aspecto do nosso
mundo ambiente respectivo, um recorte que efectivamente está
mergulhado no aspecto global desse nosso mundo ambiente,
com ele está entretecido e de muitos modos depende funcio­
nalmente do «resto» desse conteúdo. Os complementos (preen­
chimentos) e as modificações a eles ligadas no conteúdo dos
aspectos (por mais pequenos que sejam) podem, p. ex., provocar
o predomínio de um tipo de aspectos não preestabelecido na
obra. Os objectos apresentados podem, por isso, na concreti­
zação surgir, p. ex., numa forma muito mais intensamente
racionalizada do que de facto são apresentados na própria obra
e tornados visíveis no seu aparecimento 1 através dos aspectos
disponíveis. Os aspectos concretos podem, em conseqüência
disto, conter momentos decorativos inteiramente novos que, por
assim dizer, não estão na intenção da obra e, portanto, podem
até impor um novo estilo à obra totalmente concretizada. Se,
no caso de uma transformação tão profunda do estrato dos
aspectos, a concretização em causa deve ainda ser considerada
como uma concretização da mesma obra ou se, pelo contrário,
revela uma obra completamente nova, essa questão exigiria uma
ampla análise particular em cada caso concreto. Contudo, a
identidade da obra que se mostra em tão diferentes concreti­
zações só se poderá manter se as objectividades nela apresen­
tadas permitirem, no seu modo de parecer, estilos diferentes de
modalidade de aparecimento e se, ao mesmo tempo, a alteração

1 Rigorosamente falando, é só na concretização que se dá efectiva­


mente este aparecimento.
373

do estilo de aparecimento nao tocar ‘ nem ao de leve na reve­


lação das qualidades metafísicas predeterminadas na própria
obra. Se as duas condições não forem satisfeitas então temos
perante nós a concretização de uma nova obra. Se esta con­
cretização é considerada uma concretização da obra original,
nesse caso temos fenómenos característicos de ocultação. Durante
séculos uma obra literária pode ter-se expressado apenas em
tais concretizações que a ocultaram e falsificaram até que um
dia aparece alguém que compreende essa obra como deve ser
e a intui adequadamente, revelando aos outros, desta ou daquela
maneira, a sua forma autêntica. O grande papel da crítica
literária (em especial da história da literatura) ou — quando se
trata de uma peça de teatro — do encenador consiste na pos­
sibilidade de exprimir de novo a forma autêntica da obra mas
também de precisamente a ocultar, por uma falsa interpretação,
nas concretizações análogamente estruturadas.
Quando, porém, a alteração de estilo do modo de apareci­
mento não chega a provocar transformações tão profundas da
obra, de modo que permanece intacta a sua identidade, essa
alteração ainda admissível de estilo nas concretizações provoca
também uma modificação da polifonia global e valiosamente
qualitativa da obra. Em vista disto, abre-se assim a possibilidade
da mudança de uma e a mesma obra literária no decurso da
produção das suas concretizações, a possibilidade da «vida»
da própria obra literária. Esta possibilidade está, naturalmente,
em conexão com as transformações que ocorrem nos outros
estratos da obra concretizada. Em breve voltaremos ao assunto.

1 A partir deste ponto de vista torna-se possível discutir se uma deter­


minada representação de uma peça teatral é «b o a » ou «m á» e compreender
o sentido a que ela inteiramente tem direito. Aliás, pode haver casos, pre­
cisamente quando forem satisfeitas as condições por nós indicadas, em
que ambas as partes em discussão têm razão e a polémica é estéril. Mas
também, então, se poderá provar objectivamente a legitimidade fundamen­
tal de ambos os pontos de vista. O ponto de vista subjectivista de muitos
críticos, que por princípio consideram a sua «im pressão» individual como
a única coisa decisiva, vai decerto longe de mais. A chamada «subjectivi-
dade» da crítica ou das análises histórico-literárias existe, sem dúvida,
mas só nos casos em que os respectivos críticos se atêm exclusivamente
às concretizações mutáveis da obra. Todavia, é justamente isto que não
c necessário e basta apenas uma orientação directa no sentido do essencial
da obra em questão e a eliminação das múltiplas casualidades das concre­
tizações singulares para se sair do estado desesperado da subjectividade
radical. No fundo, o ponto de vista radicalmente subjectivista da crítica
literária é apenas uma ingenuidade.
374

5. A concretização da obra literária caracteriza-se ainda


pelo facto de só nela se dar um aparecimento real e explícito
das objectividades apresentadas, enquanto esse aparecimento na
própria obra é apenas esboçado e através dos aspectos postos
à disposição abandonado em estado potencial. Um aparecimento
pleno em moldes de percepção só a concretização de uma peça
de teatro o pode dar. Nisto reside o já aludido primado deste
género de obras literárias.
6. Na concretização da obra também se chega a uma situa­
ção que nos pode induzir a erro quanto à verdadeira essência
da obra literária. Pelas transformações que ocorrem aquando
da concretização da obra nos estratos das formações fónico-lin­
guísticas das unidades de significação e dos aspectos são eli­
minados 1 precisamente muitos pontos de indeterminação dos
objectos apresentados. Por esta razão, deparam-se-nos na con­
cretização os objectos apresentados numa forma muito mais
plena do que aquela que na própria obra de facto possuem.
A sua constituição é aqui levada um pouco mais longe. Contudo,
em princípio ela não pode em nenhuma concretização ser com­
pletada no sentido de não restar absolutamente ponto algum
de indeterminação nos objectos apresentados. Pois à essência
dos objectos puramente intencionais pertence — assim afirma
com pleno direito Edmund Husserl, embora estenda indevida­
mente esta afirmação aos objectos reais — a impossibilidade
de atingir numa série finita de constituições a plena constituição.
Acontece, porém, que os objectos apresentados em obras lite­
rárias são, pelo seu conteúdo, quase exclusivamente do tipo dos
objectos reais que — como já anteriormente se verificou— só
podem existir enquanto determinados unívocamente sob todos
os ângulos. Em conseqüência disto, na apreensão dos objectos
apresentados numa concretização da obra já estamos de antemão
preparados para a tratar como plenamente determinada e para
esquecer que temos aqui de lidar com objectividades puramente
intencionais. Com isto desfiguramos, é certo, a obra literária

1 Para que a identidade da obra seja mantida não devem ser ultra­
passados os limites de variabilidade dos preenchimentos singulares que
são prescritos pelos momentos constituídos na obra. Esta variabilidade,
no caso de se manter a identidade da obra, só é, aliás, permitida porque
a obra é uma formação esquemática. W. Conrad fala de uma esfera de
irrelevância na «realização» da obra e tem, então, provàvelmente em vista
essa permitida variabilidade dos preenchimentos singulares tanto no estrato
dos aspectos como no dos objectos apresentados. Mas só a manifestação
da obra literária como formação esquemática nos deixa compreender que
esta esfera de irrelevância é possível e permitida pela essência da obra.
375

mas só assim as objectividades apresentadas que na concreti­


zação atingem a sua expressão adquirem, pelo seu conteúdo,
uma aproximação tão nítida do tipo dos objectos reais que a
sua força sugestiva aumenta em alto grau. Somos então quase
inclinados a acreditar na sua realidade e, contudo, nunca leva­
mos esta crença plenamente a sério1 por causa da atitude
estética. Precisamente, este começo de uma posição de realidade
que nunca chega a atingir uma realização séria e, por assim
dizer, é sempre sustida mesmo no último momento, constitui a
essência especial da atitude estética e traz consigo o encanto
muito peculiar que nos oferece o convivio com as obras de arte
em geral e, em particular, as literárias. «R eal» de facto e contudo
não totalmente a sério, arrebatador e contudo não nos oprimindo
tanto como o faz o real, «verdadeiro» e no entanto apenas
«fantasía». Esta atitude permite-nos gozar efectivamente as qua­
lidades de valor estético da obra e dar-nos esse encanto peculiar
que nenhum facto real — nem mesmo o «mais belo» — nos é
capaz de proporcionar. O começo de posição de realidade que
acontece no nosso contacto vivo com as obras de arte literárias
na sua concretização é indispensável para esta intuição dos
valores estéticos e não seria possível — naturalmente, só no caso
de obras literarias — sem a modificação quase-judicativa das
frases afirmativas. Quando nós, em razão de quaisquer circuns­
tâncias em que se dá a concretização da obra, somos logo de
princípio obrigados a pensar que nos acontecimentos e objectos
apresentados se trata de formações puramente ficticias que não
comportam em si nenhum indício do aspecto de realidade então
a obra permanece para nós algo de irrelevante, morto, dispen­
sável, a sua polifonia valiosamente qualitativa não tem possi­
bilidade de se desenvolver nem tão-pouco as qualidades meta­
físicas atingem a sua revelação2. Mas também qualquer passo
para além do mero aspecto de realidade na direcção de uma

1 Naturalmente, também é possível uma atitude, em especial durante


a representação de uma peça de teatro, em que se realize uma posição
incondicional positiva das objectividades apresentadas (crianças no teatro).
Nesse caso estamos perante uma ilusão digna de nota que não permite
a apreensão dos valores estéticos da obra de arte literaria em causa na
sua concretização. Por esta razão, pensamos que Konrad Lange labora em
erio na sua concepção da essência da arte embora esta pareça à primeira
vista bastante plausível. Seria necessário ainda analisar em pormenor o
que ele, afinal, entende por «ilusão». Mas isto levar-nos-ia demasiado longe.
2 Se é isto que Konrad Lange tem em mente quando fala de uma
«ilusão» então o seu ponto de vista deve, em princípio, manter-se como
válido.
376

posição de realidade plenamente a sério ou de uma ilusão per­


feita torna impossível a manifestação adequada da obra de
arte literária na concretização em causa.
7. Finalmente, ainda é de mencionar uma outra peculiari­
dade da concretização de uma obra literária para a qual, aliás,
já anteriormente chamámos a atenção. A ordenação especial
da seqüência das partes numa obra literária transforma-se, na
concretização, numa seqüência autêntica no tempo fenomenal
e concreto. A obra literária atinge aqui um desenvolvimento
autêntico. Cada concretização da obra literária é uma formação
temporalmente extensa. A extensão temporal que toda a con­
cretização abrange pode ser, conforme as circunstâncias, maior
ou menor mas nunca pode desaparecer. Só por este meio pode
também a dinâmica interna e externa da obra de arte literária
atingir expressão progressiva, ao passo que na própria obra
permanece em particular potencialidade. Só assim numa con­
cretização podem chegar à plena constituição aqueles valores
estéticos que são condicionados pela dinâmica da obra ou por
ela sustentados.

§ 64. A «vida» da obra literária nas suas concretizações


e as suas transformações como conseqüência das
mutações destas

As considerações do último parágrafo abriram-nos o cami­


nho para um novo problema que nós vamos designar como o
problema da vida da obra literária. A palavra «vida» é aqui
tomada num sentido translaticio e impõe-se, portanto, esclarecer,
em primeiro lugar, a significação original desta palavra pelo
menos nos seus elementos principais. É, sem dúvida, bastante
difícil circunscrever exactamente esta significação uma vez que
a essência da vida não foi até agora satisfatoriamente revelada.
Apenas algumas anotações indispensáveis a este respeito nos
vão facilitar a discriminação do estado de coisas que se nos
depara na obra literária.
A palavra «vida» significa sobretudo duas coisas: a totali­
dade dos acontecimentos de um ser vivo do princípio até à sua
morte e, em segundo lugar, o «processo» do devir destes mesmos
acontecimentos. Quando tomamos a palavra «vida» neste se­
gundo sentido chama-nos sobretudo a atenção o facto de todo
o ser que «vive» durar como um e o mesmo indivíduo um certo
tempo. Enquanto ele simplesmente existir não pode haver
377

nenhuma fase de interrupção da sua vida. Mas também em


sentido inverso: se a vida de um indivíduo cessa então esse
indivíduo cessa também de existir. A vida, neste sentido, é um
modo especial do ser de indivíduos de determinada natureza.
A duração contínua da vida não chega, porém, para a caracte­
rizar exaustivamente dado que também coisas «m ortas» duram
um certo tempo e continuamente. Tem, pois, de se acrescentar
ainda um segundo elemento: cada ser vivo transforma-se cons­
tantemente durante a sua vida (no primeiro sentido da palavra).
Pode perguntar-se se este transformar-se deve estender-se por
continuidade a toda a vida (como alguns investigadores afir­
mam, p. ex. Bergson). Ora este transformar-se como tal não é
característico da vida. Tem de haver um sistema especial de
transformações que apesar de todas as contingências em que
vive um determinado indivíduo se mantém como típico em
todos os seres vivos e determina a «vida» de um indivíduo
(no primeiro sentido) como um todo típico e unitário. Cada
ser vivo possui um sistema determinado de transformações em
que este ser se «desenvolve» e que levam a uma fase de cul­
minação em que aquilo que anteriormente apenas estava em
germe e implicado numa especial potencialidade1 actual se
«desenvolve» no que o ser vivo respectivo deve «propriamente»
ser. A esta fase de culminação segue-se de novo um sistema de
transformações características em que se processa um retroceder
mais lento ou mais rápido (ou mesmo abrupto), um decair até
ao momento da incapacidade de vida, até à «m orte». Atravessar
estas fases características de transformação parece-nos ser o
momento essencial da vida. Sem dúvida que diferentes circuns­
tâncias em que se desenvolve um ser vivo podem impedir que
ele chegue à sua fase culminante, por assim dizer prescrita, de
modo que ele ainda imaturo definha precocemente e tende para
a morte, como é também possível que a vida de um indivíduo
seja abruptamente «interrompida» por circunstâncias exteriores.
Mas o facto de aqui, em geral, se poder falar com direito de
um «período de maturidade» ou de um desenvolvimento por
determinadas circunstâncias diferente daquele que «seria pro­
priamente de esperar» mostra do melhor modo possível a exac-
tidão desta concepção de vida. E ainda mais: se aquilo que
vive tem necessàriamente de ser um ser psíquico ou mesmo

1 É de recordar aqui a frase paradoxalmente formulada de M. Hei-


degger: «Existir é a sua própria possibilidade.» (Cf. Sebi und Zeit, pp. 42
e 43.)
378

até consciente pode pelo menos ser posto flagrantemente em


dúvida. Quer seja psíquico, quer não, cada ser vivo tem um
modo activo de reacção que dele emana às forças que sobre ele
actuam (ou pelo menos parece tê-lo). Este modo de reacção
é inteiramente diferente da maneira como as coisas (mortas)
se «submetem passivamente» às suas alterações Os momentos
essenciais da vida por nós indicados não chegam, sem dúvida,
para esgotar a sua essência. Mas o que dissemos é o bastante
para o nosso objectivo.
Está fora de dúvida que a obra literária não tem a capaci­
dad e de «viver» neste sentido estrito. É, porém, necessário
salientar os momentos diferenciais e as analogias.
Na medida em que uma determinada obra literária acabou
de ser escrita (ou concebida) ela pode existir sem sofrer nenhuma
alteração e mesmo até quando apareceram inúmeras concreti­
zações suas. Na essência da própria obra literária nada há que
traga consigo a necessidade de uma alteração. Só é necessário
e evidente, em virtude da sua estruturação própria, que ela
afinal seja uma vez produzida. Com efeito, o estrato das frases
plenas de sentido e em especial as múltiplas conexões de frases
que de facto existem numa obra mas são casuais no sentido
de serem possíveis outras conexões, persistindo as mesmas
frases 2 simplesmente numa outra ordenação, remetem para ope­
rações subjectivas em que foram construídas as frases e deter­
minadas as suas conexões. Como objecto puramente intencional
a obra literária não precisa de participar nos acontecimentos
do mundo real nem de ser por estes envolvida no seu curso.
Mas precisamente porque resultou da realização de operações
subjectivas e assim cai, em princípio, dentro do âmbito de
poderes de indivíduos psíquicos capazes de efectuar tais ope­
rações e porque, ao mesmo tempo, as frases uma vez construídas
não têm necessàriamente de permanecer na forma originària-
mente recebida, pode a obra literária sofrer transformações sem
que por isso deixe de ser a mesma. E justamente podem ser
transformações que não acontecem apenas no estrato das for­
mações fónico-linguísticas (como porventura no caso de uma
tradução «fie l») mas também no das unidades de significação,
e por isso nos outros estratos da obra que destas são consti-

1 Cf. M. Scheler, Über die Stellung des Menschen im Kosmos, 1928.


2 «As mesmas frases» embora com a limitação, aliás, de intervirem
diversas modificações de sentido no seu conteúdo mercê da alteração da
ordenação (cf. § 23).
379

tutivamente dependentes. Basta a prática diária para nos con­


vencermos de que numa obra muitas frases (e com elas rela­
ções objectivas) podem ser omitidas ou substituídas por outras
convenientemente escolhidas sem que por isso o essencial dos
objectos e acontecimentos apresentados como também a polifo­
nia valiosamente qualitativa característica da obra em questão
sejam tocados nem mesmo ao de leve. As alterações podem
mesmo ir tão longe que, p. ex., pela omissão de zonas «dispen­
sáveis» a obra em causa se pode tornar mais concentrada,
intensificada na sua dinâmica intrínseca e com isto em deter­
minados casos «melhorada» sem se tornar só por isso numa
segunda obra K
Deparam-se-nos aqui problemas essenciais de natureza intei­
ramente diferente da dos que tratámos na II Parte. Aí era a
estrutura básica essencial da obra literária que em geral estava
em questão. Aqui trata-se daquilo que é essencial ou não para
uma obra literária singular muito determinada e tomada na sua
individualidade que como obra literária deve conter em si a
estrutura já anteriormente analisada. Só investigações muito
concretas feitas sobre uma obra determinada podem decidir, a
este respeito, o que pertence à sua essência e deste modo até
que ponto se podem dar tais transformações sem que por isso
a obra original seja destruída ou uma obra inteiramente nova
seja criada. Qualquer que seja o caso particular é, contudo,
claro: 1. que todas estas transformações só podem ser provocadas
sob a condição de se realizarem operações subjectivas corres­
pondentes dirigidas para elas (portanto, por assim dizer, «de
fora»); 2. que a realização destas operações apenas pode acon­
tecer aquando da actualização de uma concretização da obra.
A obra uma vez criada não é capaz de se alterar a si mesma,
por assim dizer, separada das suas concretizações e não é cer­
tamente a nenhum respeito; só pode ser alterada. Isto já está
implícito no facto de nenhum dos seus estratos nem ela própria
tomada como um todo serem um objecto ontològicamente
autónomo. Através de operações subjectivas correspondentes ela
é criada, alterada, destruída. Pois uma obra literária pode ser
destruída quando o autor aniquila a obra já criada por actos
peculiares intencionais e, ao mesmo tempo, também destrói as
condições físicas cuja existência tornaria possível a outros sujei-

1 Cf. a este respeito Max Scheler, Fonnalismus z/z der Ethik, Jahrbuch
f. Philos., vol. I, p. 419,
380

tos psíquicos a concretização da obra pelo autor condenada


ao não-ser.
Se observarmos •■■•que uma obra literária pode sof-rer uma
transformação apenas sob a condição de se manifestar numa
concretização então verificaremos que se pode falar da sua «vida»
num sentido duplo e nos dois casos translaticio:
1. A obra literária «v ive» na medida em que atinge a sua
expressão numa multiplicidade de concretizações. 2. A obra
literária «vive» na medida em que sofre transformações em
conseqüência de concretizações sempre novas estruturadas con­
venientemente por sujeitos conscientes. Tentemos desde já
esclarecer mais de perto o primeiro sentido.
As concretizações singulares de uma e a mesma obra são,
por um lado, objectividades individuais que não têm nenhuma
parte real comum e, assim, constituem uma variada multipli­
cidade distinta. Por outro lado, continuam a ser concretizações
de uma e a mesma obra. Contudo, isto não quer dizer apenas
que elas são mais ou menos semelhantes umas às outras, mas
sobretudo que todas elas estão numa relação especial para com
esta obra. Tentaremos esclarecer no próximo capítulo esta rela­
ção. Além disso, esta multiplicidade de concretizações está em
geral ordenada temporalmente', há concretizações que se desen­
volvem temporalmente mais cedo e outras que se processam
mais tarde *. A distinção e a separação temporal das concreti­
zações (de um e o mesmo leitor) tornam impossível que uma
concretização possa provocar directamente alterações numa que
ocorre temporalmente mais tarde. Para que uma alteração que
por quaisquer motivos foi originada numa concretização Cn
possa intervir nas concretizações mais tardias da mesma obra
é-lhe necessário um novo factor que se encontre fora da própria
obra e das concretizações: i. é, de um indivíduo consciente que
concretize a obra e de quem a concretização Cn for conhecida
por experiência própria. Se este factor entra em jogo, o que
— como vamos v e r — ainda pode acontecer por vias diferentes,
então é possível que as concretizações mais tardias tenham,
por assim dizer, em conta as alterações que se deram nas
concretizações anteriores, não sendo de excluir que surjam

1 Isto não basta para afirmar que a propósito de duas concretizações


quaisquer de uma obra uma delas tenha necessàriamente de ocorrer «mais
cedo» e a outra «mais tarde». Com efeito, é possível que duas ou mesmo
muitas concretizações se desenvolvam simultáneamente ou coincidam em
parte temporalmente.
381

repercussões. Temos aqui em vista especialmente as seguintes


situações possíveis:
Quando lemos a mesma obra sucessivamente várias vezes
(mesmo com intervalos de tempo bastante grandes) conservamos
em geral uma recordação mais ou menos fiel das concretizações
que se constituíram nas leituras anteriores e efectuamos muitas
vezes a nova leitura, por assim dizer, sub specie destas con­
cretizações anteriores sem que em geral tenhamos claramente
consciência de quais as particularidades destas concretizações
que são propriamente delas e quais, pelo contrário, as que são
a expressão adequada da própria obra (e, no sentido mais
estrito, as «suas» concretizações). Nós podemos, p. ex., de prin­
cípio assumir uma atitude perante a obra em questão que se
não ajuste inteiramente, assim lê-la «erradamente», i. é, desen­
volver concretizações que não dão à obra uma expressão ade­
quada. E então ficamos presos a esta maneira «errada» de ler;
as novas concretizações, que naturalmente trazem consigo de
modo inevitável novas alterações, ostentarão em si todos os
indícios desta primeira concretização não adequada. Só uma
mudança da atitude original — provocada quer por circunstân­
cias exteriores, quer pelo facto de num certo momento feliz
sermos especialmente receptíveis às peculiaridades da obra e de
adquirirmos uma melhor compreensão dela — pode, como de
um golpe, quebrar esta série conexa de concretizações e iniciar
uma outra série diferente da primeira em particularidades deci­
sivas. É natural que a série que se constrói a partir da primeira
concretização não adequada possa conter nos seus elementos
mais tardios particularidades sempre novas que estão, por assim
dizer, todas numa mesma linha e com isto apresentar um desen­
volvimento cada vez maior da tendência original que estava
germinalmente contida na primeira concretização. É, contudo,
igualmente possível que as concretizações mais tardias sejam
expressões cada vez mais perfeitas e adequadas da obra ou
que as diversas modificações se mantenham dentro do enqua­
dramento dos momentos não unívocamente estabelecidos pela
própria obra. As concretizações podem então apresentát* tim
desenvolvimento cada vez mais progressivo dos tipos permitidos
pela obra, p. ex., dos momentos decorativos das multiplicidades
de aspectos ou do preenchimento dos pontos de indeterminação
e outras coisas ainda. E de novo pode ocorrer uma alteração
destes tipos permitidos, etc. É um facto conhecido que cada
época, na evolução geral da cultura humana, possui os seus tipos
especiais de compreensão, de valores estéticos e extra-estéticos,
as suas predisposições determinadas para precisamente tais e
382

não outros modos de apreensão do mundo em geral e também


das obras de arte. Em certas épocas somos especialmente recep-
tíveis a determi nadas qualidades de valor estético, enquanto
para outras somos cegos. E se também somos capazes de con­
templar estas últimas nas obras de arte que nos são oferecidas
estão-nos, porém, mais próximos os valores que são caracterís­
ticos dessas épocas. Se a obra literária ou a obra de arte
literária não fosse uma formação esquemática, como de facto é,
então também não seria possível que em épocas diferentes
pudesse haver concretizações de uma e a mesma obra, todas
elas uma expressão adequada ou pelo menos permitida pela obra
e contudo distinguindo-se entre si, em muitos aspectos radical­
mente. Só a essência esquemática da obra literária faz que este
facto seja possível e compreensível. Mas nem sempre — como
aliás já verificámos anteriormente— o desenrolar da multipli­
cidade das concretizações da obra se processa no sentido de as
transformações que nelas ocorrem se manterem únicamente
dentro dos limites predeterminados pela obra. Chega-se muitas
vezes a profundas divergências em relação à obra e a diversos
fenómenos de ocultação que estão em conexão com as mutações
já indicadas da atmosfera cultural. Estão, no entanto, ainda em
estreita relação com outras situações objectivas. Para determi­
nadas obras de arte, e em especial para as literárias, temos
de ser convenientemente educados a firú de que as concretizações
que se desenvolvem possam exprimir a obra de modo adequado.
Esta educação pode processar-se por vias diferentes. E com
isto chegamos àqueles casos em que na mediação entre concre­
tizações singulares colaboram ainda factores diferentes do acima
indicado. Vem, em primeiro lugar, a transmissão processada
oralmente ou por escrito a outros leitores dos momentos carac­
terísticos das concretizações singulares da obra na medida em
que um leitor conta a outro estas concretizações ou relata1 o
modo próprio da apreensão da obra. Todos os artigos críticos,
estudos, discussões, ensaios de interpretação, análises histórico-
-literárias, etc., pertencem a este domínio e desempenham a
função de transmissão na realização de concretizações sempre
novas da obra. Eles educam o leitor a compreender a obra de
determinado modo e a apreendê-la assim em concretizações de
determinada modalidade; às vezes educam-no bem, outras vezes

1 Em geral este relato toma a forma de uma informação sobre a


própria obra uma vez que o informador não toma a consciência da dife­
rença entre a obra e a sua concretização individual.
mal. Um outro caso de mediação deste género é constituido,
relativamente aos espectáculos teatrais, pela representação da
obra a que o encenador dá forma segundo a sua compreensão
da obra em causa. A representação mostra esta obra aos espec­
tadores numa forma que prescreve uma multiplicidade de con­
cretizações determinadamente especificadas. Tanto as «repeti­
ções» desta representação como as imitações dela por outros
encenadores levam a concretizações que se submetem todas ao
modelo não só dessa primeira representação mas também da-
■quela concretização da obra que se constituiu para o encenador
aquàndo da sua leitura. Sem dúvida que neste caso se altera a
relação recíproca das várias concretizações singulares entre si.
Pode dizer-se que é a represeniação-modelo e não a peça teatral
em si mesma que, por seu lado, experimenta concretizações.
Forma-se dentro de toda essa multiplicidade das concretizações
da obra um grupo especial entre cujos elementos existe uma
relação mais estreita. Pouco a pouco vai-se criando uma tra­
dição de representar de determinada maneira a obra em causa
ou de a compreender, de modo que o leitor fica logo de prin­
cípio sob a impressão de uma «atmosfera literária» produzida
por estas diferentes vias. Isto tem uma influência determinante
sobre a formação das concretizações da obra. Esta «atmosfera
literária» insere-se na atmosfera cultural geral da época e está
em diferentes relações funcionais com ela. Essa atmosfera tem
a tendência para se manter por mais tempo. Só quando as cir­
cunstâncias exteriores da vida são alteradas por quaisquer acon­
tecimentos, p. ex., políticos ou quando surge uma forte indivi­
dualidade que ou pela criação de obras literárias de um novo
tipo ou por um novo género de interpretação das obras literárias
já existentes penetra incisivamente na atmosfera cultural domi­
nante se pode chegar a uma transformação desta atmosfera.
■As concretizações da obra que se constituem após esta trans­
formação tomam então, como é óbvio, uma outra forma dife­
rente, etc. Falar da atmosfera cultural de uma época é, natu­
ralmente, apenas uma aproximação simplificadora e estabilizante.
Esta atmosfera transforma-se constantemente embora devagar
e para os homens da época respectiva, em geral, imperceptivel-
mente. Também encerra em cada uma das suas fases temporais
momentos sem conexão e incoerentes. Mas apesar disso é pos­
sível salientar em toda essa multiplicidade variada de correntes,
tendências, atitudes, etc., que se cruzam um d¡eterminado «traço
da época», que se faz notar em especial no estilo das obras de
arte criadas nessa mesma época. Por outro lado, deixam-se esta­
belecer determinadas linhas de mutação que se processam no
384

decorrer das épocas. Uma vez que as concretizações da obra


literária são dependentes das atitudes dos leitores elas são,
consequentemente, portadoras, sob vários pontos de vista, dos
«traços da época» e participam até certo grau nas mudanças
da atmosfera cultural. Chegamos assim à conclusão de que a
multiplicidade das concretizações de uma e a mesma obra não
está só ordenada de um modo puramente temporal mas denuncia
também uma ordenação de conteúdo relativa à atmosfera da
época respectiva e, portanto, neste sentido é permitido falar
aqui de evoluções, mutações imprevisíveis, repercussões e renas­
cenças. Se temos apenas em vista a multiplicidade de concre­
tizações de uma obra em desenvolvimento progressivo então
podemos falar de uma «vida» da obra literária nas suas con­
cretizações.
Apesar de todas as diferenças que existem entre «a vida»
assim compreendida de uma obra literária e a vida de um ser
vivo, diferenças que não são para tratar aqui com mais por­
menores, há também manifestas analogias. Contentar-nos-emos
com a indicação de uma delas apenas. A vida de uma obra
literária nas suas concretizações mostra — em especial quando
se trata de obras de arte de primeira categoria e não de obras
«nado-mortas» de mau gosto— fases marcadamente diferentes
no seu decurso como a vida de um indivíduo psíquico. Há um
período (sobretudo no caso de obras inovadoras) em que a obra
não se pode manifestar plenamente nas suas concretizações
porque os leitores não são capazes ainda de a compreender
inteiramente, um período de preparação, do estar-contido-ainda-
-em-germe daquilo que mais tarde se desenvolve completamente
ou pelo menos é susceptível de se desenvolver. Depois vem um
período em que não só cresce o número de concretizações, na
medida em que a obra é cada vez mais lida, mas em que ao
mesmo tempo a obra, nas concretizações singulares e no desen­
rolar de toda a riqueza das suas facetas que se vão manifestando,
experimenta uma expressão cada vez mais adequada — de modo
semelhante ao período de maturidade na vida de um homem.
A obra «vive» desta maneira, ao mesmo tempo, o ponto cul­
minante do seu «sucesso»: está no centro de interesse de uma
geração, goza a valorização de todos os seus atractivos, é apre­
ciada, amada, admirada. A certa altura, porém, por quaisquer
motivos altera-se a atmosfera espiritual da época. O número
das concretizações decresce, constituem-se outras cada vez mais
inadequadas, muitas das suas facetas acabam mesmo por não
ser concretizadas, uma notável frieza penetra na relação entre
o leitor e a obra, esta deixa de ser capaz de arrebatar os leitores,
385

torna-se-lhes cada vez mais estranha e pobre nas suas concre­


tizações, até que cai em esquecimento e morre: vem o tempo
em que da obra não há concretizações algumas. Este esquema
geral da «vida» de uma obra literária nas suas concretizações
pode, naturalmente, sofrer num caso concreto múltiplas varian­
tes. A obra pode durante longos anos não «viver» concretizações
algumas e de repente eis que vem um dia breve de rápida
popularidade e de múltiplas configurações concretizadas. Pode
persistir através de várias épocas espirituais diferentes e a certa
altura experimentar concretiz*àções que tipicamente se transfor­
mam, pode «desfalecer» e depois inesperadamente «viver» uma
época de renascença, etc. De importância é apenas que efecti­
vamente aqui se nos depara uma certa analogia com a vida de
um ser vivo.
Há, porém, ainda outra analogia: do mesmo modo que o
ser vivo se transforma em relação com a vida de outros seres
vivos e sob a influência das condições reais eni que ele se
encontra nas várias fases singulares da sua vida, também as
mutações nas concretizações da obra literária se processam em
estreita conexão com a vida de indivíduos psíquicos e sob a
influência da atmosfera culturál. Aliás, manifesta-se aqui ao
mesmo tempo uma diferença significativa. O ser vivo tem, mercê
da sua organização e da sua autonomia no ser, os seus modos
próprios de reacção às influências do mundo exterior; nele
próprio está a origem destes modos de reacção. A concretização
da obra literária, pelo contrário, não é um objecto ontològica­
mente autónomo. Assim, ela não tem a capacidade de «reagir»
às influências culturais. Está sujeita apenas às mutações con­
forme os actos de consciência de que ela procede. Se na confi­
guração da concretização também a própria obra tem uma
certa participação na medida em que o leitor se ajusta à apreen­
são da obra e esta atitude co-determina essencialmente a cons­
tituição da concretização, se à concretização são prescritos, do
ponto de vista da expressão mais ou menos adequada da obra,
determinados limites de variabilidade, mesmo nesse caso não
há necessidade de ela atingir afinal esta expressão e assim a
concretização pode depender totalmente das operações subjec­
tivas que a constituem. No pior dos casos, não seria uma con­
cretização da obra em causa mas sim um puro produto de
operações subjectivas: a primeira concretização de uma obra
inteiramente nova. E isto é precisamente fundamentado pela
sua heteronomia ontológica e ainda, sob outro aspecto, pela
descontinuidade que existe entre uma concretização e a própria
obra.

25
386

Há, porém — como já acima indicámos— , uma outra «vida»


da obra literária: a obra — dissemos — «vive» na medida em
que ela própria (e não apenas as suas concretizações, como no
caso que acabámos de tratar), em conseqüência das concreti­
zações diversamente estruturadas, sofre diferentes transforma­
ções. Como se poderá compreender isto mais de perto?
Se não houvesse quaisquer concretizações da obra ela ficaria
separada da vida humana concreta como por uma parede opaca.
As concretizações constituem, por assim dizer, o elo de ligação
entre o leitor e a obra e oferecem-se quando leitores dela se
aproximam em atitude cognoscitiva e estética. Uma vez que as
concretizações são a forma em que unicamente a obra literária
se pode manifestar ao leitor no seu pleno desenvolvimento, de
modo que ele a apreende apenas na concretização, e uma vez
que, ao mesmo tempo, cada concretização, além dos elementos
que exprimem a obra, ainda contém outros que sob pontos de
vista diferentes a completam e modificam, uma vez que, final­
mente, a maior parte das concretizações apenas exprime a
obra inadequadamente, assim o desenvolvimento de uma mul­
tiplicidade de concretizações exerce uma influência significativa
na própria obra literária: esta está sujeita a diferentes trans­
formações em conseqüência das mutações que ocorrem nas
concretizações. Isto é, naturalmente, possível apenas sob a con­
dição de justamente os leitores durante a leitura (ou os espec­
tadores durante a representação) assumirem em relação à obra
uma atitude determinada, que aliás será a mais freqüente e
natural.
Verificámos anteriormente que assim como a obra literária
provém de operações subjectivas assim pode ser alterada ou
até mesmo destruída por meio de operações subjectivas análogas.
Tínhamos então em vista, sobretudo, operações em que são
determinadas pelo autor (no caso, porventura, de uma «segunda
edição») ou pelo leitor, com intenção consciente, p. ex., uma
outra conexão de frases ou até várias novas frases na obra.
Nestes casos, a obra é alterada de uma maneira consciente ej
intencional. A obra literária pode, no entanto, ser também alte­
rada sem que isso aconteça intencionalmente. No caso dè uma
apreensão simples da obra numa concretização podemos chegar
a uma alteração semelhante da obra quando o leitor — como
geralmente acontece — não tem consciência nem das contin­
gências da concretização em causa nem daquilo em que esta
de facto e necessàriamente se distingue da obra nem, finalmente,
da concretização enquanto tal na sua oposição à própria obra.
Em conseqüência disto, ele torna absoluta a concretização res­
387

pectiva, identifica-a com a obra e dirige-se intencionalmente, de


maneira ingênua, para a obra assim visada. Atribui-se então à
obra tudo o que pertence ao conteúdo da concretização dada.
Na verdade, neste modo ingênuo de apreensão da obra as ope­
rações subjectivas da apreensão são realizadas simultaneamente
sob o domínio da posição categórica e pura da obra assim
intencionalmente visada. Deste modo, a obra não é expurgada
prudentemente, numa atitude de captação criticamente cuida­
dosa, de todas as possíveis contaminações mas sim violentada
e deturpada. Estas alterações podem ser de vários tipos. As mais
radicais são aquelas que se produzem no estrato das unidades
de significação porque este é o estrato que maior papel cons­
tituinte desempenha na obra, de modo que as alterações que
nele ocorrem originam transformações em quase todos os res­
tantes estratos. As alterações mais frequentes que aí aparecem
são as que se baseiam na actualização de uma outra parte do
estado potencial de significação, parte diferente da que é pre­
determinada pelo contexto. Podem também atribuir-se aos fone­
mas significativos ou aos signos verbais significações comple­
tamente diferentes das que pertencem à obra e consolidá-las
na própria obra \ Contudo, mesmo que as transformações na
estruturação da obra não vão tão longe, tornar a concretização
absoluta em relação à própria obra não deixa de provocar
transformações nesta última. Pois cada concretização — como já
acima verificámos — transcende necessàriamente a obra literária.
Assim, a própria obra parece ser mais perfeita e de maior con­
teúdo do que efectivamente é. E em conseqüência da inadequação,
por pequena que seja, da expressão da obra que ocorre necessà­
riamente na concretização a obra transforma-se imperceptivel-
mente nas mãos do leitor. Se ainda notarmos que as alterações
das concretizações singulares têm tendência a consolidarem-se nas
concretizações que se lhes seguem então compreendemos que
a obra «vivendo» ela própria nas suas concretizações se altera
a si mesma, ao mesmo tempo, em virtude das mutações, se
desenvolve nesta ou naquela direcção, adquire particularidades
de estilo que de origem eram apenas permitidas pela sua cons­
trução, atravessa crises de mudança de estilo ou volta a cris­
talizar-se, etc. Neste sentido, a própria obra literária «vive», ao

1 Que isto, afinal, é possível funda-se no facto de a relação entre um


determinado signo verbal (ou fonema) e uma determinada significação não
ser uma correspondência neôessária mas consistir apenas numa concate-
nação que é relativa a um acto doador de sentido ou a outros factores
subjectivos.
388

passo que na «vid a» anteriormente tratada apenas se tratava


das suas concretizações. Possui fases da mais soberba evolução
e perfeição e também fases em que graças ao empobrecimento
das concretizações ela própria se empobrece cada vez mais, etc.
Também é possível que a linguagem em que foi escrita a obra,
uma vez que já não é uma linguagem «viva», tenha perdido para
nós as suas qualidades de manifestação. Há, então, várias rela­
ções objectivas que não chegam a desenvolver-se e, por outro
lado, também certos aspectos não se podem pôr à disposição.
Em conseqüência disto, as objectividades correspondentes não
se podem tornar visíveis no seu aparecimento e, ao mesmo
tempo, a obra torna-se mais pobre em muitos momentos deco­
rativos, etc. A obra pode então, por assim dizer, morrer de
morte natural na medida em que se torna para os leitores, numa
determinada altura, completamente estranha e incompreensível,
de modo que eles já não podem penetrar na sua forma própria
nem descobrir nela tesouros adormecidos. Se a obra está con­
signada «por escrito» é em princípio sempre possível anular
todas as alterações que nela foram provocadas desde que haja
pelo menos alguém que as saiba «decifrar». Então a obra já
«m orta» pode voltar a viver. Se alguma vez perdermos a signi­
ficação original do texto então é impossível reconstituir a obra
original enquanto não refizermos por outra via — porventura
através de estudos históricos— a coordenação original entre signo
verbal (ou fonema) e significação. Se, no entanto, for bem suce­
dida a «decifração» do texto adequada ao sentido então a obra
original ressurge de novo na sua forma própria, todas as trans­
formações posteriores da obra são postas de lado e afastadas
da obra por meio de operações subjectivas correspondentes
como «falsificações» e «equívocos». Efectivamente, a obra é
aqui — contràriamente às opiniões dominantes — de um modo
geral de novo alterada, só que estas novas alterações lhe res-
tituem a sua forma original. Todas estas mutações têm, porém,
de se manter dentro dos limites característicos de cada obra
singular caso se queira conservar a identidade da obra. E aí
surge de novo o problema importante e difícil de como deter­
minar estes limites de mutabilidade. Não podemos resolver aqui
este problema. Em primeiro lugar, porque a essência da iden­
tidade de um objecto não está de modo algum ainda esclarecida;
em segundo lügar, porque — como aliás já sugerimos acima —
estes limites só se podem definir a partir da apreensão da
essência individual de uma determinada obra, o que ultrapassa
o tema das nossas investigações. A afirmação genérica de que
as mutações de uma determinada obra têm de ser mantidas
389

dentro de tais limites que a essência individual seja preservada


pouco adianta enquanto isto se não tornar evidente nessa obra
determinada. Seriam necessárias, neste caso, novas investigações
orientadas de maneira completamente diferente que atingiriam o
ponto mais agudo na individualidade de urna obra muito-determi­
nada. Para o nosso objectivo basta apenas o facto essencial de a
obra literária poder sofrer transformações sem perder a sua
identidade. Com isto respondemos de novo em sentido negativo
à questão de inicio formulada se a obra literária é ou não um
objecto ideal. Resta agora apenas determinar o mais positiva
e exactamente possível a posição ôntica da obra literária.
Capítulo 14

Á posição ôntica da obra literária

§ 65. Introdução

Percorremos um longo caminho. Observámos a obra lite­


rária de diferentes ângulos e em inúmeras particularidades da
sua estrutura e mostrámos situações apropriadas para desvelar
a sua essência própria e revelá-la claramente na sua heteroge­
neidade frente, por um lado, às vivências psíquicas e, por outro,
às objectividades ideais. Cremos ter descoberto nas obras lite­
rárias uma esfera própria de objectividades peculiarmente cons­
truídas que por razões puramente ontológicas, entre outros
motivos diferentes, são de extrema importância. Quase no fim
do nosso estudo deparam-se-nos os fenómenos da «vida» de
uma obra literária e as relações entre esta, as suas concretizações
e, por isso mesmo, as operações subjectivas e vivências. Ao encer­
rar este círculo total de problemas parecem-nos surgir de novo
alguns perigos que, por assim dizer, já estavam quase vencidos:
a obra literária encarada puramente em si mesma pareceu-.nos,
primeiro, uma formação inteiramente rígida — que nesta rigidez
estaria completamente segura mesmo no que respeita à sua
identidade. Separada de todas as suas concretizações e das
operações subjectivas da apreensão realizadas pelos leitores
pareceu-nos ser, ao mesmo tempo, frente às operações subjec­
tivas algo de tão heterogéneo que qualquer projecto de subjec-
tivismo ou psicologismo nos tinha necessàriamente de parecer
logo de princípio inteiramente insustentável. Depois da inclusão
das situações que através da leitura da obra são trazidas à luz
por muitos leitores a obra parece-nos de novo ameaçada nesta
sua identidade e na heterogeneidade soberana perante as vivên­
cias subjectivas. Parece, apesar de todas as diferenças já veri­
ficadas que a distinguem das concretizações, dissolver-se na
multiplicidade destas e perder, mercê das estreitas relações de
ser e modos de ser entre as concretizações e as vivências sub­
jectivas, a sua heterogeneidade em relação a estas vivências.
Eis que de novo se levanta a mesma velha questão: Não é
392

verdade que continua de pé a concepção psicologista da obra


literária? Não seria mais certo e mais simples em vez de falar
de uma obra literária que em muitas concretizações atinge a
sua expressão «reduzir» a obra literária a estas variadas con­
cretizações e considerá-la somente como um ficção teorética,
obtida por abstracção, que «na verdade» não existe? O que
unicamente existiria seria então a multiplicidade das «concre­
tizações», que nesse caso, naturalmente, já não seriam concre­
tizações de algo idêntico mas somente correlatos intencionais,
semelhantes entre si, de multiplicidades de actos correspon­
dentes. E não seria então uma mera logomaquia pretender
falar apenas de «correlatos intencionais» e não simplesmente,
tal como o faz a concepção psicologista, de «representações»?
Por mais aguda e subtil que seja a concepção aqui desenvolvida
da obra literária e por mais grosseiro e primitivo que ainda
seja o falar de «representações» não se chegará, ao fim e ao
cabo, exactamente ao mesmo quando se admite apenas que a
obra literária se pode «reduzir» à multiplicidade das pretensas
«concretizações» e quando, ao mesmo tempo, se afirma — como
de facto fizemos — que cada concretização pertence necessària-
mente às vivências subjectivas correspondentes e existe no caso
e só no caso de estas vivências existirem? Será possível reduzir
a obra literária efectivamente à multiplicidade das concretiza­
ções? Não provam o contrário as inúmeras diferenças que nós
apontámos entre a própria obra e as suas concretizações?
Poder-nos-iam dar a seguinte resposta: estas diferenças apenas
existem no caso de nos atermos de princípio à ideia da obra
literária idêntica que nas suas concretizações se exprime — o que,
de resto, aconteceu nas observações feitas até aqui. Mas o que
nos garante a identidade da obra frente a todas as suas con­
cretizações, em especial quando se concede que as concretiza­
ções singulares divergem muito umas das outras, e que o leitor
muitas vezes torna absoluta a sua concretização da obra e nela
julga apreender a própria obra? E o que nos garante em especial
a identidade da obra quando ela é lida por diferentes leitores,
i. é, a sua identidade intersubjectiva? E o que é afinal o idêntico
neste caso? Não se torna evidente porventura, ao fim e ao cabo,
que o que é idêntico é apenas aquilo que «produz» estas diversas
concretizações, i. é, os «sinais» percepcionados no papel durante
a leitura? Uma vez que estes «sinais» não podem ser, obvia­
mente, esse algo misterioso a que nós chamamos «obra literária»
e com que na atitude estética entramos em contacto, seria
393

talvez mais acertado dizer que durante as leituras singulares


somente se originam «concretizações» semelhantes e que é ape­
nas uma ilusão especial, ou melhor, um erro quando nós todos
julgamos ler uma e a mesma obra? E finalmente: se a obra
literária é apenas uma formação de operações subjectivas que
não deve existir de modo ontològicamente autónomo pode per­
guntar-se, nesse caso, como existe a obra quando precisamente
não é lida por ninguém. É um hipostasiamento injustificado
quando se afirma a sua existência mesmo nestas condições?
E se ela existe de qualquer outro modo, o que é que então
constitui o seu fundamento ontológico se não forem as opera­
ções subjectivas de consciência?
Primeiro que tudo, este complexo de perguntas parece todo
ele dizer respeito a um assunto que é unicamente do interesse
da ciência da literatura, um assunto, portanto, que não teria
significado de maior para as outras ciências, em especial para
a filosofia. Para quê então todas estas difíceis investigações e
o esforço para evitar a todo o preço a solução psicologista?
Contudo, não é isto que se passa. Depara-se-nos aqui uma ques­
tão que é de significação fundamental para a teoria das ciências
e em especial para a lógica. Com efeito — como as nossas obser­
vações já mostraram — , a obra científica constitui um caso-
-limite da «obra literária», em que a diferença mais importante
em relação às obras literárias consiste no facto de na obra
científica as frases não sofrerem nenhuma modificação quase-
-judicativa mas serem autênticas frases judicativas. Quer sejam
frases judicativas propriamente ditas, quer não, são no entanto
sempre frases. Se as frases não são objectividades ideais em
sentido rigoroso, como cremos ter mostrado, se provêm de
operações subjectivas especiais e esta circunstância leva preci­
samente à dúvida sobre o facto de as frases assim construídas
possuírem ou não identidade intersubjectiva e um modo de ser
heterogéneo relativamente às operações subjectivas, neste caso
as perguntas acima sugeridas referem-se, evidentemente, à obra
científica na mesma medida em que se referem à puramente
literária. E se não fosse possível afirmar ambas as coisas, com
razão, da obra literária então também a obra científica teria
de se privar desta identidade e modo de ser e deveria reduzir-se
à multiplicidade de «concretizações» mais ou menos diferencia­
das entre si. O que se passaria então com as condições de
possibilidade de uma ciência válida no domínio do conhecimento
se as produções do trabalho científico fossem unicamente tais
394

«concretizações», se a identidade do sentido das afirmações


científicas se pudesse apenas aceitar «cum grano salis» e se cada
um de nós durante a leitura de «urna» obra científica tivesse
em rigor de lidar com frases, exemplificações, demonstrações,
teorias diferentes? Não é este o caminho directo que leva ao
cepticismo ou, pelo menos, ao reconhecimento de que urna
ciência intersubjectiva é impossível? E que valor teria urna
ciência que apenas fosse válida para um único sujeito de conhe­
cimento se não fosse possível uma rigorosa compreensão recí­
proca? Pois por que outro caminho científico que não seja o
das frases se poderá realizar uma compreensão entre os sujeitos
de conhecimento?
Assim, os perigos que aqui temos de combater possuem
uma significação incomparavelmente maior do que a que teria
um assunto relativamente sem importância da ciência da lite­
ratura. É da máxima e fundamental importância vencer estes
perigos.
. Por outro lado, é claro: se é possível mostrar que as frases
e conexões de frases, apesar do seu ser relativo às operações
subjectivas, possuem uma identidade intersubjectiva e têm um
modo de ser heterónomo em relação aos actos de consciência
que lhes dá a possibilidade de também existirem mesmo quando
— uma vez concebidas— não são pensadas nem «lidas» por
nenhum sujeito consciente, com isto salva-se a identidade inter­
subjectiva da obra literária como uma formação esquemática
por nós revelada. Efectivamente, as frases formam, como mos­
traram as nossas análises, o elemento constitutivo das obras
literárias de que dependem ontològicamente todos os restantes
estratos da obra excepto o estrato das formações fónico-linguís­
ticas na sua configuração determinada e os elementos dos
outros estratos que destas constitutivamente dependem. Se, por­
tanto, a identidade intersubjectiva do estrato das formações
fónico-linguísticas não fosse passível de fundamentação então a
obra literária seria «em si», se assim se pode dizer, precisamente
mais pobre e ainda mais relativa às condições momentâneas
de cada leitura do que as nossas análises supõem ter mostrado,
mas isto nada poderia alterar da existência e da identidade
intersubjectiva da obra literária — e portanto da obra científica.
Os problemas que agora temos de resolver são os seguintes:
São as frases provenientes de operações subjectivas intersubjec-
tivamente idênticas? Existem mesmo quando não são de modo
algum pensadas? Qual é o seu modo de ser e o seu fundamento
ôntico do seu ser quando elas existem?
395

§ 66. A identidade intersubjectiva da frase


e o fundamento ontico do seu ser

Na situação problemática em que de momento nos encon­


tramos dois caminhos diferentes se nos abrem pelos quais é
possível prosseguir: ou o puramente fenomenológico, que se
abstém de qualquer posição ontológica fora da posição da
consciência pura, ou o metafísico, que não teme aceitar a exis­
tência também de outras objectividades quando motivos justi­
ficados falam a seu favor e quando não é suficiente a observação
puramente fenomenológica. Se quiséssemos percorrer o primeiro
caminho teríamos agora de investigar os fenómenos e as ope­
rações subjectivas da compreensão lingüística e intersubjectiva
de vários sujeitos conscientes como também a razão desta com­
preensão. Teríamos de mostrar, por outras palavras, como acon­
tece que dois sujeitos de consciências diferentes quando apreen­
dem uma frase apreendam 1 idénticamente o mesmo sentido e
como são capazes de chegar a acordo e de adquirir plena certeza
de que é este, de facto, o caso. Este caminho levar-nos-ia, porém,
às questões mais difíceis da teoria fenomenológica do conheci­
mento, pelo que se tornaria indispensável uma ampla investi­
gação inteiramente nova. Por outro lado, significaria apenas um
rodeio uma vez que só a partir da solução dos problemas
gnosiológicos se deveria tirar uma conseqüência ôntica ou meta­
física. Não vamos, pois, seguir aqui este caminho embora reco­
nheçamos plenamente a sua legitimidade. Cremos também que
o nosso problema é susceptível de ser resolvido directamente
se conseguirmos encontrar o fundamento ontológico, objectivo
e autónomo da obra literária, ou seja, das frases que nela
intervém.
Primeiro' que tudo, temos de distinguir entre o fundamento
originante da obra literária e o fundamento ôntico do seu
subsistir (do seu existir depois da formação). O primeiro já o
encontrámos nas operações subjectivas que o autor realiza na
formação da obra e que, em primeiro lugar, consistem nas
operações construtoras das frases, embora, naturalmente, não
se limitem a elas. Agora trata-se apenas daquilo que a operação
construtora de frases realiza. Será ela propriamente criadora
no sentido autêntico do termo, de modo que produza ex nihilo
algo de inteiramente novo, e terá 0 seu produto o mesmo modo
de existência que ela própria? Terá de ser negativa a resposta

1 Cf. a este respeito E. Husserl, Méditations Cartésiennes, § 43, p. 77.


396

a estas duas perguntas. E com isto se mostrará o que constitui


o fundamento ontológico da obra literária (ou das frases que
a compõem) e qual o modo de ser que lhe advém. Os actos
subjectivos de consciência em que se processam as operações
construtoras das frases são objectividades ontològicamente autó­
nomas. A obra criada e as frases construídas não são objecti­
vidades ontològicamente autónomas mas apenas objectividades
puramente intencionais. Mas nem por isso deixa de existir a
obra (ou frase) urna vez criada. Existe, contudo, como urna
formação ontològicamente heterónoma que tem a origem do seu
ser nos actos intencionais do sujeito de consciência criador e,
ao mesmo tempo, o fundamento da sua existência em duas
objectividades inteiramente heterogéneas: por um lado, nos con­
ceitos ideais e nas qualidades ideais (essencialidades), por outro
— como ainda se mostrará— , nos «signos verbais» reais. Aquilo
que a operação construtora das frases (ou as múltiplas opera­
ções subjectivas de que resulta a obra literária) pode realizar
é — no que toca ao conteúdo de sentido das frases — únicamente
a actualização dos elementos de sentido dos conceitos ideais
correspondentes e a formação de um todo unitário a partir
destas actualizações. Passemos a uma explicação mais exacta:
Estabelecemos anteriormente a distinção entre as significa­
ções das palavras e os conceitos ideais. Uma significação de
palavra não é mais — dissemos então — do que uma actualização
do sentido contido nos conceitos ideais correspondentes que
existem de modo ontològicamente autónomo. Em qualquer caso,
é certamente actualização apenas de uma parte deste sentido.
Esta actualização e a formação de um todo unitário a partir
das partes constitutivas realiza-as a operação construtora de
frases na medida em que produz as significações das palavras
imediatamente com a forma em que elas têm necessàriamente
de surgir enquanto partes de uma determinada frase ou de uma
determinada conexão de frases. Por esta actualização é, sem
dúvida, produzido algo de novo: o conteúdo de sentido da frase
ou o conteúdo de sentido de uma conexão de frases. Os con­
ceitos ideais não formam nenhuma parte constitutiva destas
formações. Eles são em relação a elas tão transcendentes como
as operações subjectivas, que por sua vez também transcendem
caindo fora do seu âmbito de domínio. Contudo, eles constituem
o fundamento ontológico das frases e o princípio regulador da
sua construção. Tendo em vista o seu conteúdo ideal de sentido,
o sujeito da consciência selecciona momentos correspondentes
neles contidos, efectúa as suas actualizações ontològicamente
heterónomas e une-as numa nova totalidade. Ao mesmo tempo
397

que se realiza esta actualização de sentido dá-se uma concreti­


zação intencional dos fonemas significativos e das formações
fónico-linguísticas, de modo que a frase inteira (conteúdo de
sentido e «expressão» fónico-verbal) é assim intencionalmente
criada. Todavia, com a formação intencional das produções
fónico-linguísticas passa-se algo de diferente do que sucede na
actualização do conteúdo de sentido de urna frase. Voltaremos
em breve a este assunto. Antes disso temos ainda de acentuar:
o facto de ambos os fundamentos ontológicos da frase ou da
obra literária (o fundamento da sua origem nas operações sub­
jectivas e o fundamento do seu subsistir nos conceitos ideais)
serem em relação a estas transcendentes e, em especial, o facto
de os elementos ideais de sentido dos conceitos apenas servirem
ao autor, aquando da actualização, como modelo das partes
constitutivas dos conteúdos de sentido actualizados constituem
a essência especial do modo de existência ontològicamente
heterónomo da obra literária (ou de urna frase singular), essência
que se não pode comparar com nada mais. A objectividade, que
existe de um modo ontològicamente heterónomo, não tem — dis­
semos — nenhum fundamento ontológico em si própria mas
remete para um ser diferente e decerto, em última análise, para
um ser ontològicamente autónomo. O acto intencional da cons­
ciência pura não é criador no sentido de poder criar realizações
autênticas de essencialidades ideais ou de conceitos 1 ideais num
objecto por ele intencionalmente produzido. Se ele fosse criador
neste sentido então seria capaz de criar objectividades autênticas
reais e, eo ipso, ontològicamente autónomas. Isto, porém, é-lhe
vedado. Assim, no caso da construção de uma frase ele pode
produzir actualizações de conteúdos ideais de sentido dos con­
ceitos e inseri-las numa nova totalidade (justamente o conteúdo
de sentido da frase) e precisamente actualizações a que nenhum
conteúdo ideal de sentido, na forma ontológica das realizações,
é realmente inerente ou, na verdadeira acepção do termo, imá­
nente, como sucede nas realizações de essencialidades ideais em
objectos reais (e, ipso facto, autónomos no seu ser). E do mesmo
modo: se através do acto de consciência é criado um objecto
puramente intencional (p. ex., uma «coisa») a intenção nele
contida não tem a capacidade de produzir nenhuma autêntica
realização de qualquer essencialidade ideal. A coisa intencional­
mente criada não «é » — em sentido rigoroso ontològicamente
autónomo— , p. ex., «vermelha». Para que o pudesse ser teria

1 Estes últimos não permitem, de modo algum, realizações autênticas.


398

de conter em si realmente uma realização autêntica da essen-


cialidade «vermelho». É precisamente este estar contido real,
este estar imánente da realização de urna essencialidade ideal
numa objectividade e, por outro lado, esta realização em si
mesma que o puro acto de consciência não é capaz de produzir.
Este permanece sempre apenas ao nivel do simulado «quase-
-estar-contido» acima descrito e da quase-realização, que, por um
lado, remete para o sic jubeo intencional do sujeito da cons­
ciência e, por outro lado, para a essencialidade ideal correspon­
dente. No mesmo sentido, também cada frase — tomada segundo
o seu conteúdo de sentido— se reporta à operação construtora
de fráses de um sujeito da consciência de que ela intencional­
mente proveio e, por outro lado, aos conceitos ideais cujas actua­
lizações (mas não realizações), enquanto partes constitutivas do
seu sentido global unitário, a determinam.
Embora a frase ou a conexão de frases no sentido da auto­
nomia ontológica sejam um nada, embora se não possam encon­
trar no mundo real como uma realidade, não se pode negar
que, de qualquer modo, elas têm uma existência. E não é desar-
razoado aceitar a sua existência ontològicamente heterónoma
mas sim, ao contrário, exigir precisamente do conteúdo de
sentido da frase que ele seja real (eventualmente, psíquico) ou
então ideal. Ele não pode ser nem uma coisa nem outra. E quem
se inclinar e aceitar apenas objectividades autónomas no seu
ser, reais ou ideais, tem consequentemente de negar a existência
de frases (e, numa conseqüência mais ampla, de conexões de
frases, teorias, obras literárias), mas não pode, em caso algum,
fazer delas realidades ou idealidades. Tem, no entanto, de pensar
que deste modo também nega a possibilidade da ciência e com
isto invalida a sua própria tese. Quem admitir a existência onto­
lògicamente heterónoma das frases tem também de aceitar todos
os seus fundamentos ontològicamente autónomos e não se pode
limitar à aceitação dos actos puros de consciência. Pois assim
como uma frase não poderia surgir sem uma operação constru­
tora de frases também não poderia existir de modo ontològi­
camente heterónomo sem os conceitos ideais. Isto é exigido
precisamente pela heteronomia ontológica que lhe é própria,
por um lado, e pela circunstância de que ela é uma formação
de sentido, por outro. A aceitação de conceitos ideais, essencia­
lidades e ideias pode estar em contradição com o chamado
«idealismo transcendental», mas o próprio idealismo transcen­
dental é insustentável enquanto se opuser contraditòriamente
àquilo cuja aceitação só torna possível uma das descobertas
principais e um dos suportes capitais do idealismo transcen­
399

dental, o objecto puramente intencional. Com efeito, sem as


essencialidades ideais e as ideias as objectividades puramente
intencionais são impossíveis no mesmo sentido em que o são
as objectividades reais tomadas no sentido auténtico.
Assim como o abandono dos conceitos ideais torna impos­
síveis as significações das palavras, as frases e conexões de
frases e a idealização das unidades de significação de graus
diferentes é do mesmo modo absurda e contradiz os factos
essenciais como a atitude psicologista, assim também, por outro
lado, a aceitação dos conceitos ideais não só torna possível o
reconhecimento da existência ontològicamente heterónoma das
jfrases (e das objectividades por elas projectadas e derivadamente
intencionáis) mas também, ao mesmo tempo, a aceitação da
identidade intersubjectiva das frases por diversos sujeitos de
consciência. Só em virtude dos conteúdos de sentido dos con­
ceitos ideais pode o leitor de uma obra literária reactualizar
¡de modo idêntico o conteúdo de sentido de uma frase dado a
esta pelo autor. Se não houvesse quaisquer conceitos ideais
nem, além disso, quaisquer qualidades ideais (essencialidades)
ou ideias então não só seriam impossíveis as frases ou as objec­
tividades reais e intencionais mas seria também, ao mesmo
tempo, impossível atingir uma compreensão lingüística autêntica
entre dois sujeitos de consciência em que de ambos os lados
se apreendesse o conteúdo de sentido idêntico da frase. Surgem
frequentemente equívocos entre duas pessoas que falam e prà-
ticamente muitas vezes não se consegue que ambas apreendam
de modo idêntiço as mesmas frases. Contudo, pela existência
dos conceitos ideais há, pelo menos em princípio, a possibilidade
de cada um dos falantes, pelo recurso a objectividades corres^
pondentes e pela apreensão, pelo menos, de uma parte do con­
teúdo de sentido dos conceitos ideais correspondentes, conseguir
a construção ou a reprodução de uma frase de conteúdo de
sentido idêntico (como o fizera o outro) e, por isso, a compreensão
da frase proferida pelo outro.
Cremos, assim, ter afastado o perigo de subjectivismo das
obras literárias ou a redução destas obras a multiplicidades de
concretizações. Aliás, só com a condição de aceitarmos a exis­
tência dos conceitos ideais. À prova completa da verdade do
nosso ponto de vista pertenceria uma teoria dos conceitos ideais
e da sua actualização em significações de palavras. Mas isto
exigiria um novo e mui amplo estudo. A quem, portanto, parecer
perigosa a aceitação de conceitos ideais, a quem se inclinar
perante esta aceitação a tomar -uma atitude de cuidadosa expec­
tativa apenas podemos sugerir que veja nesta aceitação uma
400

hipótese sem a qual nem a obra literária, enquanto uma objecti­


vidade idêntica frente a todas as suas concretizações, nem a
obra científica e a ciência intersubjectiva nem, finalmente, as
múltiplas concretizações de obras literárias se poderão aceitar.
E agora, a seguir, umas considerações complementares sobre
a formação e a existência do estrato fónico-linguístico da obra
literária.

§ 67. A identidade do estrato fónico-linguístico da obra


literária

As nossas análises anteriores mostraram como o estrato


fónico-linguístico desempenha uma função importante na obra
literária. É preciso por isso, depois de assegurada a identidade
do estrato das unidades de significação, considerar agora se e
até que ponto as formações fónico-linguísticas da obra são idên­
ticas em relação a todas as suas concretizações e se no acto
de leitura elas se podem legitimar como tais. Aqui poderá aju­
dar-nos a distinção, por nós feita anteriormente, entre o material
fónico concreto e o «fonema significativo» como uma forma
fónica típica.
À obra literária pertencem propriamente, como afirmámos
logo no começo da nossa análise, apenas as formas fónico-lin­
guísticas de ordem inferior e superior. A este respeito nada há
a alterar do que já foi dito. Põe-se apenas a questão de como
são intencionalmente visadas estas formas como inerentes à
obra e de como se prova a sua identidade nas múltiplas con­
cretizações desta. A dificuldade que neste caso se verifica reside
no facto de, em geral, se não poder afirmar que os fonemas
significativos — tomados no sentido de tais formas — são essen­
cialidades ideais ou que têm nelas o seu fundamento ôntico.
São indubitàvelmente formados durante o processo de evolução
de uma língua e tornam-se depois relativamente fixos, de tal
modo que durante períodos de tempo bastante longos são
apreendidos ou intencionados como idênticos nas relações lin­
güísticas com base no material fónico concreto (e com isso eles
próprios concretizados). Isto refere-se também, numa escala
muito mais vasta, às diferentes formações fónico-linguísticas de
ordem superior que, especialmente em obras de arte literária
autênticas, podem por vezes ter um carácter singular e dever
o seu aparecimento ao poder criador do autor. Enquanto apoia­
das em fonemas significativos ordenados de maneira correspon­
dente elas são automáticamente apreensíveis de maneira idên-
401

tica na leitura da obra, sendo para isso apenas necessário que


os fonemas significativos sobre os quais essas formações estão
estruturadas sejam apreendidos de forma idêntica. Mas o que
é que acontece com o fundamento ôntico da identidade de
fonemas significativos e com a sua legitimação nas concretizações
particulares da obra?
Vamos supor que o autor encontra já na língua viva em
que escreve a obra uma multiplicidade de fonemas significativos.
O pressuposto é, portanto, que a identidade intersubjectiva dos
fonemas significativos está assegurada na língua viva *. Através
de uma correspondente selecção e ordenação destes fonemas
significativos no momento da criação da obra eles são incor­
porados intencionalmente nela pelo autor. Isto realiza-se quer
pela simples recitação em voz alta — como acontece, p. ex., nas
canções populares — , quer pela fixação escrita. Neste último caso
teremos que pressupor novamente uma relação intersubjectiva
fixa entre o signo gráfico típico e o fonema significativo cor­
respondente. Ao usar efectivamente formações fónico-linguísticas
(que poderão ser criações totalmente novas) — a começar pelos
fonemas significativos — o autor decide, por uma intenção deter­
minante, que são precisamente essas e não quaisquer outras
formações fónico-linguísticas aquelas que devem integrar a obra
em questão. É precisamente esta intenção que as transforma
numa parte integrante intencional da obra literária tal como
os outros elementos dessa mesma obra. E transforma-as simul­
táneamente nos suportes exteriores das significações das pala­
vras actualizadas na unidade que formam com elas. A obra está,
assim, pronta como formação intencional. Mas agora ela deverá
— juntamente com o seu estrato fónico-Iinguístico — , enquanto
idêntica, continuar a ser a mesma. Isso é possível pelo facto
de haver ideias para todos os seres objectivos. Os fonemas sig­
nificativos efectivamente pronunciados são também seres objec­
tivos em que as formas típicas se transformam em concreções
autênticas. A intenção que torna os fonemas significativos, no
sentido de formas típicas, partes integrantes da obra literária
produz simultáneamente uma concretização intencional dos con­
teúdos das correspondentes ideias presentes nos fonemas signi­
ficativos concretamente pronunciados; esta concretização é dife­
rente das ideias em si mesmas e só ontològicamente heterónoma
mas tem nessas ideias o seu fundamento ôntico, o que justifica

1 A maneira como isto é possível constitui um dos mais importantes


problemas da filosofia da linguagem que não podemos tratar aqui.

26
402

ônticamente perante todas as suas concretizações a identidade


dos fonemas significativos que pertencem à obra em questão.
Com isto parece estar resolvida uma das nossas dificuldades.
Uma outra questão será, porém, a seguinte: como é que os
fonemas significativos que foram explicados ônticamente na sua
identidade se podem justificar como intersubjectivãmente idên­
ticos quando são lidos por diferentes sujeitos? As palavras efec­
tivamente pronunciadas são criadas desde logo como formações
intersubjectivamente idênticas enquanto existir a correspondente
comunidade lingüística. Só é preciso, por assim dizer, um sinal
que indique aos leitores que precisamente no caso dado se trata
dessas e não de quaisquer outras palavras. Estes sinais — que,
como se disse, devem ser configurados de forma típica — são
os caracteres gráficos. Estes caracteres típicos, porém, têm que
se fundar em qualquer material individualizado, p. ex., visual­
mente apreensível. Por outras palavras: desde que não deva ser
transmitida apenas «oralmente», e para que nesta transmissão
puramente oral não sofra alterações de monta, a obra literária
tem que ser escrita. Os «caracteres gráficos», com sinais de
emprego de fonemas significativos correspondentes, têm que ser
fixados num material real estável e relativamente pouco mutável \
E este material real a que se deu forma adequada constitui, ao
lado das operações subjectivas, dos conceitos ideais, das essen­
cialidades e das ideias o terceiro, ainda que mediato, fundamento
ôntico da obra literária. Este fundamento não é, naturalmente,
suficiente para a existência ontològicamente heterónoma da
obra; os outros dois fundamentos ontológicos não só têm que
estar presentes como também são mais essenciais para a sua
existência, e isto porque a relação das objectividades que neles
se apoiam — das frases — com a obra literária é completamente
diferente da relação existente entre os caracteres gráficos típicos
ou o material gráfico concreto e a obra. Enquanto as frases são
partes integrantes autênticas da obra literária, tanto o material
gráfico real como os caracteres gráficos nele impressos não
formam qualquer elemento da obra literária. São simplesmente
— como já dissemos — um sinal regulador para o leitor, que
lhe indica quais os fonemas significativos que ele deve concre­
tizar exactamente numa execução real (como na leitura em voz

1 Fonográficamente é possível fixar hoje a obra literária sem «carac­


teres gráficos», portanto sem esses «sinais», por meio de um disco gravado.
Mas isto não constitui para nós nenhuma diferença essencial. Também
neste caso existe um objecto real — o disco— no qual a obra literária
encontra o seu fundamento ôntico mediato.
403

alta) ou apenas numa reconstrução fantasiada (como na leitura


silenciosa). Assim, esse sinal como que indica ao leitor o cami­
nho para a apreensão da obra no seu estrato fónico-linguístico.
Embora ele seja transcendente quer em relação à obra em si,
quer às suas concretizações, e tenha uma relação apenas rela­
tivamente constante com fonemas significativos nós podemos,
portanto, ver nele também um fundamento ôntico mediato da
obra que possibilita a apreensão das formações fónico-linguísticas
idênticas.
É claro que esta apreensão só é assegurada pela fixação
escrita da obra enquanto «os mesmos» sinais estiverem «ligados»
aos mesmos fonemas significativos, o que nem sempre acontece
necessàriamente porque esta ligação é puramente casual e rela­
tiva a actos de ligação subjectivos. Se surge uma modificação
da «pronúncia» da «mesma» palavra, i. é, se por qualquer motivo
se altera o fonema significativo «d a » palavra, este continua
normalmente ligado ao mesmo sinal gráfico. A obra é lida e
compreendida mas o seu estrato fónico-linguístico, e assim tam­
bém pelo menos alguns dos elementos da obra que dependem
constitutivamente desse estrato, sofrem variadas modificações.
Em primeiro lugar, estas modificações verificam-se, por assim
dizer, apenas no âmbito das concretizações da obra: a obra é,
na verdade, falsamente apreendida do ponto de vista fónico-lin­
guístico mas subsiste ainda a possibilidade de uma apreensão
adequada pelo recurso ao modo como as palavras em questão
«devem » ser pronunciadas. Quando, porém, desaparece nos lei­
tores a consciência de que a «pronúncia» por eles usada é
apenas uma particularidade individual que não corresponde à
«pronúncia» do autor ou aos fonemas significativos da sua obra
então temos um exemplo daquilo a que antes chamámos a
«absolutização» da concretização da obra: os leitores lêem a
obra, do ponto de vista do estrato fónico-linguístico, de tal modo
que supõem intencionalmente os fonemas significativos por eles
usados como pertencentes à própria obra e com isto transfor-
mam-na no que se refere àquele estrato. E quando eventualmente
não for possível averiguar por meios indirectos — p. ex., pela
investigação histórica da linguagem— qual deve ser a «pro­
núncia certa» das palavras em questão (é o caso das «línguas
mortas») então a obra literária sofre uma constante alteração,
a qual, se considerarmos a importante função, já antes referida,
do estrato fónico-linguístico na obra literária, pode ser muito
radical e atingir em grande escala a harmonia polifónica das
qualidades de valor da obra. E embora então a obra permaneça
a mesma como formação global a identidade do seu estrato
404

fónico-Iinguístico não fica, porém, tão assegurada pelos seus


fundamentos ônticos como acontece em relação ao estrato das
unidades de significação através do recurso aos conceitos ideais.
Mas também deste último ponto de vista a obra pode estar
sujeita a modificações, como já salientámos atrás. Será, talvez,
impossível recorrer aos conceitos ideais correspondentes, e da
absolutização das concretizações particulares da obra pelo leitor
resulta que certas significações das palavras são incorporadas
na obra como actualizações de conceitos ideais, outros que não
os existentes no estado primitivo da obra. Por muito difícil que
seja, porém, determinar em cada caso particular até que ponto
podem ir estas variações é óbvio que para que a obra mantenha,
apesar das modificações nela introduzidas, a sua identidade a
fundamentação do estrato das unidades de significação nos
conceitos ideais não só evita ônticamente a subjectivação da
obra como também torna possível, pelo menos em princípio,
o seu regresso à forma primitiva.
Parece-nos que estas considerações serão suficientes para
mostrar que a obra literária, apesar do facto incontestável da
sua «vida», não pode ser psicologizada.
Capítulo 15

Considerações finais sobre a obra de arte literária

§ 68. A obra de arte literária e a sua harmonia


polifónica de qualidades de valor estético

Para finalizar, falta-nos resolver uma questão referente à


obra de arte literária. No decurso das nossas investigações
referimo-nos frequentemente às qualidades de valor que se cons­
tituem em cada um dos estratos da obra literária e que na sua
totalidade conduzem a uma harmonia polifónica. A harmonia
polifónica é precisamente o «aspecto» da obra literária que
juntamente com as qualidades metafísicas que nela chegam a
revelar-se faz da obra uma obra de arte. Relativamente a este
aspecto pode perguntar-se se não será apenas esta harmonia
polifónica das qualidades de valor que forma a obra de arte
literária, de tal modo que toda a estrutura estratificada por nós
apresentada, com todas as suas particularidades, só seria con­
cebida no sentido de um objecto fundamentador que possibi­
litaria a realização da obra de arte literária sem, no entanto,
fazer parte dela em qualquer sentido. A conseqüência imediata
da resposta afirmativa a esta questão seria que esta harmonia
polifónica não seria apenas um estrato próprio que, por assim
dizer, atravessasse toda a obra literária mas sim que ela cons­
tituiria um objecto próprio, o único com o qual nós entraríamos
em contacto na atitude estética e que eclipsaria totalmente a
complicada estruturação estratificada da obra literária, que ape­
nas o fundamenta, bem como a própria obra literária. Então
teríamos que voltar ao princípio da nossa análise para pôr a
descoberto a essência da obra jiterária assim estruturada. Todo
o nosso trabalho até este momento deveria então ser tomado
como uma preparação talvez útil mas que, apesar de tudo, não
abordou o problema real.
Parece-nos que esta concepção é falsa. Uma ligeira análise
daquilo que se verifica no nosso contacto com a obra de arte
literária chegará para nos convencer disso. Evidentemente que
se não existissem nos vários estratos da obra literária quaisquer
qualidades de valor estético e se, portanto, não pudesse resultar
406

daí uma harmonia polifónica então a formação cuja anatomia


procuramos revelar aqui deixaria de ser uma obra de arte. Mas
isso ainda não significa que a harmonia polifónica de qualidades
de valor estético seja em si mesma a obra de arte. Ela é apenas
aquilo que .faz, da obra literária uma obra de arte (caso se
verifique na obra, ao mesmo tempo, uma revelação de quali­
dades metafísicas), mas que se entrelaça com outros elementos
da obra numa unidade interior. Ela é algo que resulta tanto
das características ou dos conteúdos de cada um dos estratos
como também da relacionação íntima desses vários estratos e
que se pode intuir como algo que se prende a toda a obra.
Ou mais exactamente: tanto os estratos singulares como o todo
por eles formado mostram-se-nos — naturalmente através de uma
atitude correspondente do le ito r— em variadas qualidades de
valor estético que em consonância produzem por si próprias
a harmonia polifónica. O facto, porém, de a obra de arte lite­
rária se revelar nestas qualidades de valor não faz ainda desa­
parecer do campo de visão do leitor nenhum dos seus estratos.
O que se verifica é precisamente o contrário: aquilo que é dado
temáticamente ao leitor, o que atrai principalmente a sua atenção
é — como já se viu antes — o estrato dos objectos apresentados,
enquanto os outros estratos são co-oferecidos já mais periféri­
camente. As qualidades de valor estético, pelo contrário, cons­
tituem antes algo como uma cintilação luminosa que envolve
nos seus raios as objectividades apresentadas e que, ao mesmo
tempo, vivida por nós na fruição estética nos rodeia de uma
atmosfera especial e sentimentalmente nos embala ou domina
e arrebata. O ponto de partida para esta vibração subjectiva que
é o correlato subjectivo dessa polifonia vivida de qualidades de
valor é, porém, sempre formado por qualquer estrato dado da
obra literária, sobretudo pelo estrato das objectividades. Final­
mente, as qualidades de valor estético não podem ser desligadas,
nem ôntica nem fenomenalmente, do seu fundamento constitu­
tivo — dos elementos correspondentes de cada um dos estratos.
É próprio da sua essência serem características ontològicamente
dependentes de alguma coisa que as sustenta. E na verdade
elas são, por assim dizer, duplamente não-autónomas porque
não se constituem numa essência oculta de alguma coisa ou
como qualidades directas de um suporte objectivo, mas são
características que têm o seu fundamento constitutivo nas qua­
lidades intuitivamente dadas de uma objectividade. Não se dei­
xam, como dissemos, separar fenomenalmente desta sua infra-
-estrutura constitutiva. É preciso dar-se ou viver-se sempre uma
407

certa combinação de qualidades objectivas otr -de elementos


visíveis para que elas se possam intuitivamente estabelecer da
maneira atrás apontada. Assim, a polifonia de qualidades de
valor constitui um todo intimamente relacionado com todos os
estratos da obra e é precisamente com este todo que nós depa­
ramos na nossa contemplação e fruição estéticas. Este todo é,
portanto, o objecto estético: a obra de arte literária.
Naturalmente que são possíveis, como acontece em relação
a qualquer objectividade, diversas atitudes subjectivas também
em relação à obra de arte literária. Assim, pode ler-se urna
determinada obra literária de um ponto de vista completamente
fora da perspectiva estética: quando, p. ex., lemos urna obra
como um psiquiatra que pretende na base da obra determinar
a doença psíquica do autor. Numa tal atitude não só não se
consideram as qualidades de valor estético como se reprime
mesmo a sua fixação na fruição estética que involuntáriamente
se faz sentir. Mas se se tratar de urna auténtica e grande obra
de arte somos sempre impelidos para a atitude estética, logo
pela apreensão temática do estrato objectivo da obra e temos
sempre — desde que o pretendamos por quaisquer motivos —
que fazer um esforço para nos transportarmos para uma atitude
extra-estética, p. ex., puramente gnosiológica. O facto de nestes
casos nos fazermos cegos frente às qualidades de valor estético
da obra de arte só mostra, no entanto, que não nos adequamos
a ela, que em vez de deixar toda a obra de arte exercer a sua
influencia sobre nós nos limitamos a extrair dela uma parte
que tem nela uma função estética subordinada; mas não prova
que com isso nos transpomos da obra de arte literária para
outra objectividade que apenas a «fundamentou».
As diversas qualidades de valor estético constituem-se
— como se depreende das nossas análises — em vários estratos
da obra de arte literária; e precisamente por este motivo existe
entre elas uma ampla diversidade que lhes dá a possibilidade
de formarem umá harmonia polifónica. É evidente que para
efeitos da análise se podem separar intencionalmente estas qua­
lidades dos restantes elementos e momentos da obra e se qui­
sermos poderemos falar de um estrato especial da obra. Não
podemos, porém, esquecer que precisamente a diversidade das
qualidades de valor estético lhes não permite unificarem-se
numa esfera assim composta de elementos homogéneos da ma­
neira que apontámos para o caso dos estratos da obra literária.
Naturalmente que elas se unem numa harmonia; mas se é certo
que esta harmonia tem as suas qualidades formais próprias
403

totalmente novas e «derivadas», por outro lado ela é uma har­


monia polifónica, uma expressão estética — se o termo nos é
permitido aqui — da estrutura estratificada da obra literária.
Esta polifonia é, ao mesmo tempo, a melhor prova de que o
fundamento ôntico das «vozes» individuais desta harmonia se
encontra nos estratos singulares da obra de arte literária. Por
outro lado, a harmonia das qualidades de valor estético cons­
titui um fio de ligação que relaciona ainda mais intimamente
os vários estratos da obra — pela sua própria essência já muito
interligados — e revela uma vez mais a uniformidade da obra
literária apesar da heterogeneidade de elementos que lhe é
própria.
Assim fica eliminada a objecção possível à nossa concepção
da obra de arte literária. E apesar de tudo há que reconhecer
nela uma certa razão de ser se a utilizarmos num outro sentido.
Com isso elimina-se também o perigo de um erro ou equívoco
que poderia resultar das nossas considerações até este momento.
Estabelecemos atrás uma diferença entre a obra literária pura
tal como existe em si e independentemente das suas concretiza­
ções e estas mesmas concretizações. Ora, não devemos esquecer
que a obra literária considerada neste isolamento é uma for­
mação esquemática na qual, além disso, continuam a existir
diversos elementos numa potencialidade específica. Estas duas
circunstâncias têm como resultado que pelo menos algumas,
se não todas, das qualidades de valor estético e as qualidades
metafísicas não chegam a explicitar-se plenamente na obra em
si mas permanecem no estado latente da « predeterminação» e
«disponibilidade». Só quando a obra de arte literária, numa con­
cretização, alcança a expressão adequada se chega — no caso
ideal — à plena realização, a um revelar-se intuitivo de todas
estas qualidades. Pode dizer-se que pertence à essência de todas
estas qualidades existirem só através da concretização e para
as qualidades metafísicas da realização no verdadeiro sentido
do term o1. Daqui resulta que: a obra de arte. só constitui um
objecto estético no verdadeiro sentido quando alcança a sua
expressão numa concretização. Tomada no seu isolamento, fora
das concretizações, ela só é uma «obra de arte» no sentido de
W. Dohrn no seu livro Die künstlerische Darstellung ais Problem

1 Isto parece à primeira vista uma trivialidade. Mas não se aplica a


todas as objectividades — p. ex., não se aplica aos conceitos ideais e às
suas actualizações na frase como também se não aplica aos objectos ideais
e às ideias.
409

der Ãsthetik. Mas a concretização em si mesma não é o objecto


estético mas sim a obra de arte literária considerada exactamente
tal como ela tom a1expressão na concretização e nela alcança a
plena corporização.
*

Assim chegámos ao fim das nossas considerações. Não dei­


xamos de reconhecer que apesar da grande amplitude das nossas
análises apenas mostrámos os traços fundamentais, a estrutura
básica da obra literária. Serão necessárias outras investigações
e estudos complementares nas mais variadas direcções. O nosso
esforço será amplamente recompensado se os nossos leitores
puderem tomar os resultados a que chegámos neste livro como
ponto de partida para investigações posteriores e se puderem
chegar não só a prosseguir na investigação mas também a
substituir por juízos melhores os possíveis erros que tenhamos
cometido. Porque depois dos anos que passámos a elaborar este
livro conhecemos, hoje melhor do que no começo da nossa
investigação, a infinidade de dificuldades que surgem a quem
queira apreender com exactidão a essencialidade específica da
obra literária. A obra literária é um verdadeiro milagre. Existe
e vive e actua sobre nós e enriquece extraordinàriamente a nossa
vida, oferece-nos momentos de deleite e de descida às profun­
dezas abissais do ser e, apesar disso, ela é apenas uma formação
ontològicamente heterónoma que, no sentido da autonomia de
ser, corresponde a um nada. Se a quisermos apreender teori­
camente ela apresenta-se-nos com uma complexidade e uma
polivalência que não podemos deixar de considerar; e, por outro
lado, temo-la perante nós, na vivência estética, como uma uni­
dade que só levemente deixa transparecer esta complicada estru­
turação. Tem um ser ontològicamente heterónomo que parece
ser completamente passivo e que sofre inoperante todas as ope­
rações que sobre ela realizamos. E, no entanto, através das suas
concretizações ela provoca profundas modificações na nossa
vida, alarga esta vida e eleva-a acima das banalidades da exis­
tência quotidiana, dá-lhe um fulgor divino — um «nada» e, apesar
disso, um mundo maravilhoso em si mesma ainda que a sua
criação e existência mais não sejam do que favores nossos.
A PÊN D IC E
SO B R E AS FUNÇÕ ES DA L IN G U A G E M
NO ESPECTÁ CU LO T E A T R A L 1

§ 1.° No meu livro A Obra de Arte Literária ocupei-me duas


vezes do espectáculo teatral. No § 30, onde estabeleci a dis­
tinção entre o texto principal e o texto secundário, e no § 57,
em que tratei do espectáculo teatral como um caso-limite da
obra de arte literária. O texto principal da peça de teatro é
formado pelas palavras pronunciadas pelas personagens; o texto
secundário, por sua vez, pelas informações dadas pelo autor
para orientação do encenador. Na apresentação da peça em cena
estas desaparecem e só na leitura da peça de teatro são real­
mente lidas e desempenham a sua função de apresentação. Mas
o espectáculo teatral constitui um caso-limite da obra de arte
literária na medida em que nele, além da linguagem, existe um
outro meio de apresentação — designadamente os aspectos visuais
trazidos e concretizados pelos actores e pelos «cenários», nos
quais as coisas e pessoas apresentadas, bem como as suas
acções, se tornam visíveis. No âmbito do livro citado não havia,
porém, espaço para discutir com mais precisão as diversas e
por vezes muito complexas funções das formações lingüísticas
que constituem o texto principal. Também nos trinta anos que
decorreram desde a publicação do meu livro nem os investiga­
dores da linguagem — como, p. ex., K. Bíihler— nem os filó­
sofos — como, p. ex., Nicolai Hartmann— se ocuparam, tanto
quanto eu saiba, deste tema. Também os investigadores da lite­
ratura — p. ex., R. Petsch2— mal se aperceberam dos problemas

1 Este apêndice foi também publicado como -ensaio em Zagadnienia


rodzajów literackich (Problemas dos géneros literários), Lódz, 1958, vol. I.
J Cf. R. Petsch, Wesen und Formen des Dramas, Halle, 1945.
414

que se põem aqui. Parece, portanto, necessário apontar, ainda


que esquemáticamente, as diferentes funções e variações da lin­
guagem (mais exactamente, das formações lingüísticas faladas)
no espectáculo teatral *.
Será bom começar por lembrar que toda a obra literária é
uma formação lingüística bidimensional. Por outro lado, existem
nela quatro estratos diferentes embora intimamente relacionados
uns com os outros: o dos fonemas significativos e formações e
fenómenos fónico-linguísticos de ordem superior, o dos sentidos
das frases e das unidades semânticas superiores, o dos aspectos
esquematizados e, por fim, o das objectividades apresentadas.
Por outro lado, há que distinguir do princípio ao fim da obra
a seqüência das partes (capítulos, cenas, actos) e uma estrutura
específica e quase-temporal. Quando uma peça de teatro é real­
mente representada no palco surge um espectáculo teatral no
qual as personagens e coisas apresentadas, assim como as acções
das primeiras, aparecem em imagens visuais, pelo menos em
muitos dos seus traços. Por outro lado, as palavras ou frases
que constituem o «texto principal» são mostradas aos ouvintes
pelas personagens interpretadas na sua forma fónica concreta
ao serem realmente pronunciadas pelos actores.
O facto fundamental que dá acesso à problemática da lin­
guagem no espectáculo teatral é o de que todo o texto principal
é um elemento do mundo apresentado no espectáculo teatral
e especialmente que o pronunciar de cada uma das palavras ou
frases constitui um fenómeno que se processa no mundo apre­
sentado e principalmente uma parte do comportamento da
personagem interpretada. Mas a função das falas pronunciadas
na peça representada não se esgota com isso pois ela consiste,
ao mesmo tempo, no exercício da função de apresentação lin­
güística — que se ramifica ainda de modo diverso — e como
tal tem que estar em estreita ligação com os outros meios de

1 N a Polônia apareceram nos últimos anos dois trabalhos que se


ocupam de problemas relacionados com este, nomeadamente: S. Skwarc-
zynska, O rozwoju tworzywa slownego i jego form podawczych w dramacie
(Sobre a evolução da matéria verbal e da sua forma de declamação no
drama), 1951; e I. Slawinska, Problematyka badan nad jezykiem dramatu
(A problemática de uma investigação da linguagem no dram a), Roczniki
Humanistyczne, t. IV, Lublin, 1953-1955. Estes dois trabalhos contêm alguns
resultados notáveis.
415

apresentação que interferem no espectáculo teatral — ou seja,


com os aspectos concretos transmitidos pelos actores \
§ 2 .° Antes de nos ocuparmos mais de perto de cada uma
das funções das formações lingüísticas no espectáculo teatral
temos sobretudo que tomar consciência da composição, por fac­
tores diversos, do mundo apresentado nesse espectáculo. Ele
abarca três domínios diferentes que no que respeita ao seu
modo-de-ser e à sua condição só em certa medida são partes
integrantes homogéneas do mesmo mundo, mas que quanto à
sua base de apresentação ou aos seus meios se devem diferen­
ciar. São eles:
1) Objectividades (coisas, pessoas, fenómenos) que são mos­
tradas ao espectador exclusivamente pela via da percepção2,
através da acção dos actores ou dos cenários.
2) Objectividades cuja apresentação se faz por uma via
dupla: primeiramente, por via da percepção (do mesmo modo
que as objectividades indicadas na alínea anterior); em segundo
lugar, porém, através de uma forma de apresentação lingüística
na medida em que se fala delas no palco. A forma de apresen­
tação lingüística constitui aqui um complemento da forma visível
dada na percepção, especialmente no que se refere aos estados
psíquicos das personagens interpretadas. Assim, terá que existir
uma concordância entre estas duas formas de apresentação para
que não resultem objectividades contraditórias, embora nas
obras de arte literária sejam, naturalmente, permitidas certas
«liberdades poéticas».
3) Objectividades cuja apresentação se faz exclusivamente
por meios lingüísticos, que portanto não são mostradas «no
p a lc o »3 embora se fale delas no texto principal. À primeira
vista elas parecem estar, quanto ao modo de apresentação, exac-

1 Não se deve esquecer que os actores reais (homens e «acessórios»)


não constituem uma parte integrante do espectáculo teatral. São simples­
mente os fundamentos ontológicos psicofísicos da peça em cena, cujas
partes integrantes são apenas as personagens nela interpretadas: dramatis
personae.
2 É com certas reservas que uso aqui o termo «percepção», que deve
ser entendido apenas como uma abreviatura cómoda. Não posso, porém,
tratar aqui mais desenvolvidamente dos contextos em que o problema se
pode situar.
3 Uso a expressão entre aspas porque se trata aqui mais precisamente
do espaço apresentado por meio do palco. A expressão «no palco» é, porém,
mais curta e mais cómoda.
416

tamente ao mesmo nível daquelas objectividades de que se fala


na obra literária pura. Mas, vista a questão com mais exactidão
a forma do seu aparecimento é um pouco diferente na medida
em que pelo menos algumas delas têm relações diversas com
as objectividades mostradas no palco (pertencem ao ambiente
mais vasto destas últimas) e alcançam com isso um carácter
de realidade mais sugestivo do que o dos objectos apresentados
na obra literária pura. Se também neste caso se mantiver a
uniformidade do mundo apresentado então a forma de apre­
sentação lingüística das objectividades ausentes do palco terá
também que corresponder àquelas que são dadas através da
percepção. Um caso especial do grupo de objectos apresentados
aqui considerado pode ser constituído por todos os objectos
«passados» em relação aos objectos mostrados no momento
«presente» (p. ex., acontecimentos ou fenómenos passados, mas
também coisas e pessoas que «outrora» existiram). Entre estes
pode, por sua vez, delimitar-se ainda um outro grupo especial
de objectos «passados» [mas que podem, ao mesmo tempo,
contar-se entre as objectividades mencionadas na alínea 2)], que
são precisamente aqueles que pertencem ao passado dos objectos
que «agora» surgem no palco e que, no entanto, lhes são idên­
ticos. Quando, p. ex., no Rosmersholm, de Ibsen, seguimos os
destinos, «presentes» de Rosmer e Rebeka West, e com isso
vamos conhecendo cada vez mais coisas novas sobre o passado
destas duas pessoas, nós sentimos como esse passado se funde
cada vez mais com os seus destinos «actuais» e como ele
começa mesmo a dominar os eventos que se desenrolam agora
até forçar, por fim, a decisão trágica. Apresentado só lingüísti­
camente este passado alcança no fim trágico de Rosmer e Rebeka
quase a mesma auto-revelação que a decisão dos últimos, rea­
lizada imediatamente «no palco», de irem juntos ao encontro
da morte. A própria morte, por sua vez, só é definida intencio­
nalmente através das falas das duas personagens interpretadas,
mas de tal modo que ela parece ser, para o espectador, tão real
e natural como as últimas palavras das pessoas que a ela se
entregam.
§ 3.° As diferentes funções das palavras «realmente» pro­
nunciadas estão em relação com os três grupos de objectividades
apresentadas que distinguimos. Há que enumerar primeiramente,
em geral, as funções que, por assim dizer, se concretizam «aden­
tro» do mundo apresentado; depois, trataremos daquelas outras
funções que as palavras pronunciadas «no palco» exercem em
relação ao público reunido na sala do teatro.
417

Interessa aqui sobretudo a função de apresentação1 das


objectividades intencionalmente visadas, pela sua significação
ou pelo seu sentido, nas palavras pronunciadas. Consoante o
tipo de formação lingüística pronunciada num determinado mo­
mento assim pode tratar-se de objectos nominalmente projec-
tados (coisas, pessoas, fenómenos, eventos) ou de relações objec­
tivas determinadas ao nível das frases que, por sua vez, servem
para apresentar as coisas e os homens. Esta forma de apresen­
tação tanto pode realizar-se de maneira puramente «conceptual»,
portanto — como disse Husserl algures — «signitiva», como pro-
cessar-se de maneira que a apresentação dos objectos intencio*
nados se faz em aspectos evocados imaginativamente\ Esta
função de apresentação é, na verdade, apenas um complemento

1 Como se pode ver pelo que se segue, uso aqui uma distinção entre
a função de apresentação, de expressão, de comunicação e de «influência»
das formações lingüísticas (palavras, frases, períodos). O leitor que não
conheça bem a história desta distinção pensará provàvelmente desde logo
em K. Bühler, cuja Sprachtheorie (1934) encontrou uma aceitação relati­
vamente grande, sobretudo entre os linguistas. N a verdade, porém, tais
distinções remontam, pelo menos, já a K. Twardowski ( Zur Lehre von
Inhalt und Gegenstcind der Vorstellungen, 1894). Mais tarde, E. Husserl
ocupou-se detidamente, nas Logischen Untersuchungen (1901), de «expressão»
(Ausdruck) e «notificação» (Kundgabe) — numa terminologia posterior «sig­
nificação» (Bedeutung) e «expressão» (Ausdruck) — , depois do que K. Büh­
ler, no artigo Kritische Musterung der neueren Theorien des Satzes (1920),
distinguiu três espécies fundamentais de frases [frases notificativas (Kund-
gabesãtze), frases libertadoras (Auslõsungssátze) e frases apresentativas
( Darstellungssàtze) ]. N o meu livro A Obra de Arte Literária não só polemi­
zei contra algumas afirmações de Bühler (e especialmente contra o seu con­
ceito de apresentação) mas também analisei com mais precisão o conceito
de «expressão» (Ausdruck) e o de «apresentação» (Darstellung). Em 1934
distinguiu então K. Bühler, na sua Sprachtheorie, as três funções de expres­
são, de apresentação e de apelo. N o meu trabalho Über die Übersetzung
(1956) eu distingui, finalmente, em vez destas três, cinco funções diferentes
da linguagem, das quais utilizo aqui as quatro acima mencionadas.
1 Em relação a isto devemos tomar consciência de que os «aspectos»
inerentes ao espectáculo teatral são de dois tipos: 1. aqueles que são postos
perante o espectador sob forma visual concreta, através dos actores que
representam no palco, e através dos quais as pessoas e coisas apresentadas
aparecem ao espectador quase perceptivamente; 2. aqueles que são postos
à disposição através das formações lingüísticas pertencentes ao texto prin­
cipal e que são apenas sugeridos ao espectador. Este pode concretizá-los
mais ou menos vivamente, mas só na forma de uma visualização imagina­
tiva. Como os objectos intuídos através de aspectos deste segundo tipo
estão em diferentes relações ontológicas com os que são apresentados sob
forma de aparecimento visível a sua intuição pode atingir um grau de
vivacidade que só muito raramente se encontra em obras puramente lite'
r árias.

27
418

da constituição do mundo apresentado no espectáculo teatral


visto qué o principal contributo da apresentação é aqui alcan­
çado através dos aspectos concretos dos objectos mostrados no
palco (mas no espaço meramente apresentado). Os elementos
meramente complementares do mundo apresentado podem, no
entanto, ser tão importantes que sem eles o espectáculo teatral
seria não só incompreensível mas também privado dos momentos
mais essenciais à acção dramática. A pantomima ou o filme
mudo mostram bem como é difícil no espectáculo dramático
prescindir deste modo de apresentação lingüística e apesar disso
oferecer um todo artística e objectivamente perfeito. Contudo,
a função e a participação desta apresentação lingüística na
constituição do mundo apresentado é ainda muito variada nos
diferentes espectáculos teatrais e seria interessante fazer uma
investigação neste sentido sobre diferentes obras (e autores)
para determinar mais exactamente o tipo do processo de apre­
sentação nelas utilizado.
A segunda função essencisd das palavras pronunciadas é a
expressão das vivências e dos diferentes estados e acontecimentos
psíquicos da pessoa que fala num determinado momento. Esta
expressão, que se realiza através das qualidades de manifes­
tação 1 do tom do discurso, insere-se na função geral de expressão
que se exerce pelos gestos e mímica fisionômica da pessoa que
fala. É, no fundo, uma parte integrante da função geral de
expressão e, assim, um processo que tem lugár adentro do
mundo apresentado embora contribua ao mesmo tempo para a
constituição desse mundo nalgumas das suas partes integrantes.
Nesta medida, existem entre esta expressão lingüística e as
outras funções de expressão várias relações mais óu menos
íntimas consoante a unidade do mundo apresentado.
As palavras e frases pronunciadas pelas personagens inter­
pretadas exercem, em terceiro lugar, a função da comunicação.
E, de facto, aquilo que é dito num determinado momento pelá
personagem em questão é comunicado àqueloutra personagem
a quem essas palavras são dirigidas. O discurso vivo — desde
que utilizado na sua função natural— é sempre dirigido a
outrem (aos nossos semelhantes). Os chamàdos «monólogos»
constituem excepções e a sua função está ainda por investigar
nesta perspectiva. Mas foram reduzidos ao mínimo no drama
moderno precisamente porque são considerados como privados
da função de comunicação.

' Cf. A Obra de Arte Literária, § 13.


419

Na conversação entre, duas pessoas, contudo, só muito rara­


mente estamos perante uma mera comunicação; trata-se de algo
com uma importância vital muito maior, designadamente de
uma influência sobre aquele a quem é dirigido o discurso. Em
todos os conflitos «dramáticos» que se desenrolam no mundo
apresentado no espectáculo teatral o discurso dirigido a alguém
é uma formcf. de acção do sujeito falante e só tem, no fund.o,
uma importância real nos acontecimentos apresentados na peça
quando impulsiona realmente de maneira, essencial o progresso
da acção \ Mais adiante investigaremos quais as formas que
adquire a palavra falada como factor impulsionador da acção.
De momento queremos apenas acentuar que esta função da
influência sobre o interlocutor e sobre as outras personagens
envolvidas na acção global da obra é um dos principais resul­
tados das falas das personagens apresentadas.
§ 4.° As quatrç) funções do discurso no espectáculo teatral
que acabámos de indicar constituem, porém, apenas as funções
exercidas pela palavra falada para o mundo apresentado e
dentro dele. Ora, estas não são ainda todas as funções da lin­
guagem falada no espectáculo teatral. Porque não podemos
esquecer que este espectáculo é apresentado a um público e
destinado a ele e que as palavras pronunciadas pelas personagens
apresentadas têm ainda uma função (função mais uma vez de
natureza diferente) a desempenhar em relação a esse público.
E aqui abre-se uma nova perspectiva de observação, que aliás
já foi tratada mais de uma vez na literatura2. Limito-me aqui
às verificações indispensáveis.
O teatro não significa apenas o palco mas também a sala
e o público que a ocupa; O mundo apresentado e tornado visível

1 S. Skwarczynska distingue, entre outras, â «função dramática» da


linguagem no «dram a». Tanto quanto eu posso entender, constitui esta
função um caso especial do facto de as palavras pronunciadas na peça
formarem uma articulação no acontecer dramático e de, portanto, a fala
ser um fenómeno que se processa no mundo apresentado. Só a partir desta
consideração se pode compreender que as palavras pronunciadas — como
diz S. Skwarczynska — impulsionem a acção. Além disso, S. Skwarczynska
distingue ainda a função da «caracterização mediata» e «im ediata» das
personagens que entram na peça. Trata-se, aqui, em parte da expressão,
em parte da apresentação das qualidades das personagens através do sen­
tido do discurso, em parte ainda de conclusões que o espectador tira sobre
as qualidades mórais dà personágem que fala, a partir de qualidades
características do discurso.
2 Deste aspecto da representação teatral ocupou-se especialmente Wal-
demar Conrad num estudo, publicado ,na «Zeitschrift für Ãsthetik und
allgemeine Kunstwissenschaft» (cf. vol. V I).
420

no espectáculo teatral constitui uma estranha superstrutura


intencional e uma reinterpretação daquilo que acontece em
realidade durante a representação «no palco». O palco real está,
naturalmente, durante a «representação» (durante os vários
«actos») sempre «aberto» para o público que se encontra na
sala (o paño «sobe»). Mas o espaço apresentado «no palco» (em
certa medida fictício) no qual se desenrola a acção da peça,
bem como os fenómenos e acontecimentos que têm lugar no
decorrer desta acção, podem ser tratados e estruturados de
maneira dupla. Ou como se tudo isso acontecesse num mundo
«aberto» para o público ou então como se tudo se passasse
num mundo «fechado» ao público. No primeiro caso podem
ainda distinguir-se duas variantes da forma do mundo apresen­
tado e do modo como ele é mostrado ao público (ou seja, como
os actores representam e como se constroem os cenários). E esta
dupla variante depende de o «estar aberto» do palco (ou do
espaço apresentado) ser concebido e destinado ao público en­
quanto multidão de meros «espectadores» ou enquanto multidão
de homens que não deverão ser já meros espectadores mas,
pelo menos até um certo ponto, participantes daquilo que acon­
tece «no palco». O primeiro caso verifica-se, p. ex., nos dramas
pseudoclássicos ou também nos dramas de Shakespeare, preci­
samente naquele modo de representar dos actores em que se
dirigem claramente ao público e dão, por assim dizer, «exibi­
ções», concertos para este público sem, ao mesmo tempo, aban­
donarem completamente a atitude de «realmente» dirigirem as
suas falas a uma outra personagem interpretada. O segundo casò
encontramo-lo nas antigas tragédias gregas, que eram uma
espécie de mistérios em que o público participava.
Mas só o moderno teatro «naturalista» — que se destina a
uma massa de «espectadores» que devem apreciar a peça numa
atitude estética— constrói a ficção do palco «fechado», por­
tanto um palco que é na realidade aberto mas no qual sobre­
tudo se representa como se não faltasse a «quarta parede» e
como se nenhum espectador assistisse aos acontecimentos repre­
sentados «no palco». O actor deve precisamente causar a impres­
são de não ser visto e ouvido por mais ninguém além das per­
sonagens que com ele se situam no mundo apresentado e com
as quais e para as quais ele fala. E todo o mundo apresentado
e tudo o que nele acontece são organizados como se não hou­
vesse nenhum observador de fora (i. é, de um lugar que fica
fora do mundo apresentado): esse mundo deverá, pois, ser tanto
quanto possível «natural» e tudo deve acontecer nele o mais
«naturalmente» possível. Todo este modo de composição do
421

mundo apresentado e este modo de representar dos actores são,


porém, apesar de tudo traçados segundo o espectador (mas um
espectador que se considera estar ausente). Porque existe a opi­
nião de que a arte mais perfeita é a que oferece ao espectador
a «natureza» na sua nudez e no seu carácter inalterável quando
em presença dos espectadores. Qualquer modificação do modo
de comportamento de cada uma das personagens ou do decorrer
dos acontecimentos que fosse intentada para provocar no espec­
tador um determinado «efeito» era sentida como «artificialismo»,
«afectação», «falsificação» da «natureza». Assim, há que eliminar
o espectador enquanto considerado como alguém de quem as
personagens interpretadas no drama tenham conhecimento e
que levem em consideração no seu comportamento e nas suas
decisões porque assim ele constituiria um factor de perturbação
do mundo apresentado. Daí que as personagens interpretadas
(e consequentemente o próprio actor) se devam comportar como
se não considerassem a existência de mais ninguém além das
restantes personagens interpretadas. A «quarta parede» fecha-se,
assim, ficticiamente. E só quando tudo se comportar como
aconteceria realmente por detrás daquela quarta parede esta
pode, por assim dizer, tornar-se transparente: é a mais perfeita
arte do actuar-sobre-alguém através da aparência do não-querer-
-actuar!. Também o chamado drama «impressionista» é, no
fundo, «naturalista», somente com a diferença de que a natureza
simulada é constituída por «impressões», por estados de espírito
que todas as personagens que entram numa cena vivem e fruem.
Seja qual for o tipo de palco «aberto» ou aparentemente
«fechado» que encontremos num espectáculo (ou «exibição»)
teatral, às funções do discurso apresentado atrás mencionadas
há sempre que acrescentar aquelas que se relacionam com as
pessoas (particularmente os «espectadores») que se encontram
na sala do teatro. E estas são funções de comunicação e influên­
cia orientadas em sentido diferente das discutidas no caso ante­
rior. Consoante o tipo de palco «aberto» ou (aparentemente)
«fechado» de que se trata na respectiva peça de teatro assim
estas novas funções se processam de maneira diferente e inter­
ferem, para o modificar em maior ou menor escala, no processo
das funções das próprias palavras na sua relação com determi­
nados elementos do mundo apresentado. De acordo com o ideal
de um palco «fechado» elas devem, na verdade, processar-se de
modo a que não provoquem qualquer perturbação no desem-

1 Era este, p. ex., o ideal do teatro de Stanislawski.


22

. nho destas últimas funções. Mas talvez se possa afirmar que


uunca se consegue evitar completamente esta perturbação, ou
melhor, que se isso se conseguisse realmente não haveria qual­
quer função de comunicação e de influência em relação aos
espectadores. De um ponto de vista puramente empírico talvez
se pudesse aceitar que uma eliminação total da perturbação
ou, mais geralmente, da transformação do processo «natural»
do falar e da palavra pronunciada, através das funções que visam
o espectador, está pràticamente fora de causa. Quando, porém,
ela é reduzida ao mínimo possível — p. ex., no drama naturalista,
digamos no Ibsen da fase fin a l— isso não quer dizer que então
a função de comunicação ou de influência dirigida ao espectador
seja também reduzida a um mínimo ou mesmo a zero. Porque
ela exerce-se sobretudo através do facto de o actor — ainda que
não a personagem representada— se adaptar mais ou menos
ao espectador, não procurando apenas pôr perante ele o dis­
curso interpretado, e assim comunicar-lhe o seu sentido, mas
desejando também actuar sobre esse mesmo espectador. Ora o
que acontece é que o tipo de influência neste caso é comple­
tamente diferente dò da palavra falada, dentro do mundo apre­
sentado, sobre a outra persoriagem interpretada. Pois, desde
que não se trate de um mistério esta influência sobre o espec­
tador consiste em despertar nelé a vivência estética na emoção
provocada pelos destinos humanos apresentados e não numa
resposta, lingüística ou outra, à palavra dirigida pela personagem
que fala. E, de acordo com os princípios do naturalismo, a
maior influência estética sobre o espectador deve verificar-se
precisamente quando o actor age como se não desse pela pre­
sença do espectador; no entanto, ele dá por ela e tem de contar
com essa presença embora os outros não lho notem.
Ora, o grande problema da contextura da palavra falada
na arte teatral consiste em qué ela desempenhe perfeita e har­
mónicamente todas as funções mencionadas, e isso nas tão
diferentes situações (no mundo apresentado e também na sala
do teatro) em que é pronunciada e ainda nas diversas variações
dos objectivos que a arte dò teatro se propõe alcançar em
diferentes épocas, estilos e tipos de espectáculo teatral.

II

Desejaria agora tratar um pouco mais de perto os casos e


as variantes específicos das funções é formas em que surge a
palavra falada (ou o discurso apresentado) no espectáculo teatral.
423

§ 1.° Já chegámos à conclusão de que as palavras pronun­


ciadas pela personagem interpretada numa situação significam
uma acção 1 e constituem, assim, um elo de ligaçãò na acção
dramática e especialmente no conflito entre os homens (inter­
pretados). E isso acontece primeiramente porque elas são pro­
nunciadas num determinado lugar do espaço apresentado (p. ex.,
no quarto dos amantes), num determinado momento (do tempo
apresentado) e numa determinada fase de desenvolvimento da
acção apresentada, abstraindo de certo modo de que isto tam­
bém se passa no espaço real do palco real. E, em segundo lugar,
porque elas são pronunciadas precisamente desta maneira e não
de outra e têm precisamente um conteúdo que corresponde ao
que elas têm na realidade. Tudo isto é essencial à palavra falada.
Pois só disto resulta que ela seja dirigida a uma outra perso­
nagem determinada e a influencie de uma determinada maneira,
pelo que se pretende precisamente alcançar uma determinada
progressão no evoluir da acção do «drama». Sem a realidade
deste ser-pronunciada não só a acção que se desenvolve na peça
se veria privada de um elo de ligação mas até poderia evoluir
de maneira diferente. Isto relaciona-se com o facto de a realidade
do ser-pronunciada poder ter variados efeitos consoante o modo
como as palavras pronunciadas exercem as suas funções dentro
do mundo apresentado. Este facto não depende, porém, apenas
da qualidade das palavras utilizadas mas também da parte inte­
grante que elas constituem no comportamento global da perso­
nagem e da função que elas nele desempenham.
Mas, considerando esta última circunstância, as palavras
de cada uma das personagens podem assumir formas diversas.
Ou, de um outro ponto de vista: se lhes é dada uma forma
determinada põe-se a questão de saber qual será a relação
dessas palavras, enquanto articulações do modo de comporta­
mento da personagem que fala, com esse comportamento global:
estão elas integradas nele ou constituem nele apenas um factor
relativamente desligado ou mesmo algo que é nele completa­
mente acidental? Estarão elas em adequação com os outros
modos de comportamento da personagem em questão de modo
a existir entre ambos uma concordância ou um contraste mais

1 Uma outra questão é, porém, a de se saber se esta acção «significa»


sempre alguma coisa, i. é, desempenha uma função mais ou menos impor­
tante na acção dramática. Esta é realmente a questão fundamental da
composição dramática. Num «b o m » drama toda. a palavra que seja uma
acção sem «significado» é dispensável e por isso, quando apesar de tudo
exista, um erro de composição.
424

ou menos pronunciado (quando, p. ex., um indivíduo calmo e


bem educado se põe a falar em termos ásperos e brutais com
alguém que, por assim dizer, lhe não fez nada)? Em ambos os
casos, mas especialmente em casos de contraste, há que per­
guntar ainda se e em que medida o aflorar de um tal contraste
c preparado e justificado pela situação geral ou pelas fases
anteriores da acção ou se surge como algo que não se pode
motivar objectivamente no mundo apresentado. E neste último
caso: será isto apenas o resultado de um erro de composição
ou pode explicar-se pela intenção de influenciar os espectadores
de maneira correspondente e é próprio de um determinado
estilo de composição da obra como obra de arte de tipo especial?
Podemos, porém, observar de outra perspectiva a relação entre
o comportamento geral da personagem interpretada e as pala­
vras por ela pronunciadas numa dada situação. A perspectiva
é esta: esse comportamento (na mímica, nos movimentos, etc.),
na forma que toma numa dada representação por um actor,
harmoniza-se com as palavras pronunciadas, ajusta-se a elas ou
leva a qualquer espécie de conflito com elas? Pergunta-se, por
outras palavras, se a representação do actor (intencionalmente
ou não) é boa ou má.
As palavras pronunciadas, designadamente do modo con­
creto como o são na representação da peça, podem desempenhar
a sua função de expressão mais ou menos eficazmente. Isto
pode, aliás, depender do tom da pronúncia1 (o que compete
em grande parte ao actor), mas este tom depende, por seu
turno (pelo menos em parte), tanto do conteúdo da palavra
pronunciada como da construção sintáctica da respectiva for­
mação lingüística2. Teríamos que afastar-nos muito do nosso
terna principal se quiséssemos entrar aqui em pormenores
qüanto a este ponto. Teríamos, na verdade, que investigar todo
um vasto campo de fenómenos lingüísticos. Aos aspectos gerais
sob os quais a função de expressão tem de ser considerada
pertence, porém, entre outras a questão de saber se a «expressão»
é «sincera», «honesta», «verdadeira» ou se, pelo contrário, é
«enganadora», «insincera»; ou se ela pelo menos, intencional­
mente ou não, esconde de algum modo alguma coisa que não

1 Este tom pode ser determinado pelo texto do actor desde que seja
possível apercebermo-nos, através do contexto, de como ele deve ser.
2 A sensibilidade do poeta deve indicar-lhe em que form a sintáctica
e com que palavras algo deve ser dito quando aquilo que se diz deva
exprimir alguma coisa que é ao mesmo tempo muito precisa e, no fundo,
inefável.
425

deva ser dada a conhecer. E neste contexto ainda, se ela é


«natural» ou «artificial» e se intencionalmente (na intenção da
personagem interpretada ou do actor) ou sem intenção (porque,
digamos, o actor tem um fracasso), etc.
A palavra falada pode, como se disse, ser uma forma de
actuar sobre aqueles a quem é dirigida e por vezes também
sobre aqueles que são meras testemunhas do diálogo. Em todo
o diálogo se verifica uma forma qualquer de influência, quanto
mais não seja ao provocarem-se no nosso interlocutor diversas
vivências de compreensão. Há, porém, que distinguir várias
formas do «diálogo», das quais desejamos comparar aqui apenas
duas sumàriamente. Uma delas, que não se aplica pràticamente
ao caso do «dram a» — mais exactamente, do espectáculo tea­
tra l— , é constituída como que por um diálogo «calm o» (muitas
vezes puramente teórico) no qual os interlocutores apenas comu­
nicam um ao outro certos factos que não provocam neles reac-
ções emocionais. A outra consiste num diálogo que não é mais
do que uma forma de conflito, mesmo de luta, entre os interlo­
cutores. Nestes casos, ou se trata apenas de converter o inter­
locutor a uma convicção (teórica ou prática) que o próprio
sujeito que fala defende ou então de o levar, por este ou por
aquele meio (p. ex., provocando certos sentimentos, desejos ou
actos de vontade), a qualquer modo de comportamento e espe­
cialmente de acção desejados pela personagem que fala. A esse
modo de comportamento desejado pode também corresponder
o retrair-se perante uma acção. Fala-se, neste caso, de um diálogo
«activo». O diálogo «activo» parece, de resto, ser a forma «nor­
mal» do diálogo no espectáculo teatral. Nele se consegue a
verdadeira influência do sujeito que fala sobre o seu interlocutor.
Essa influência sobre o interlocutor pode, porém, resultar
ou do conteúdo do discurso ou do modo e especialmente do
tom como as coisas são ditas ou, finalmente, de ambos. Quanto
ao conteúdo do discurso, ele tanto pode influenciar o nosso
interlocutor através daquilo a que se refere ou daquilo que
nele é especificado do ponto de vista da significação como tam­
bém através do modo como ele o faz. Aquilo que comunicamos
aos outros, aquilo de que falamos ou pode referir-se a um facto
no mundo exterior a ambos os interlocutores ou pode ser alguma
coisa que se passa no próprio sujeito falante (ou também
naquele a quem se dirige a fala) — p. ex., uma decisão de que
damos conhecimento ao outro ou um certo sentimento que nutri­
mos, etc. Seja como for, para que o outro reaja de qualquer
modo terá que tratar-se de algo que lhe não seja completamente
indiferente mas sim que tenha para ele uma função qualquer,
426

uma importância e um significado; de outro modo ele perma­


necerá «frio ». Mas se isso deve provocar nele úma reacção
— e designadamente da maneira intentada ou, pelo menos, de
algum modo desejada pelo sujeito falante— então a forma da
apresentação, ou seja, a maneira como isso se «traduz em pala­
vras» não poderá ser completamente arbitrária. Pode, p. ex.,
ser dita clara ou obscuramente, de modo confuso ou simples,
unívoca ou equívoca, directa ou veladamente. Cada um destes
modos de falar se caracteriza, digamos, por uma eficácia pró­
pria. Isto não significa, porém, que ele tenha que provocar
sobre os outros sempre o mesmo tipo de influência porque
numerosas modificações dependem da pessoa que as palavras
pronunciadas visam e especialmente do estado em que o nosso
interlocutor se encontra nesse momento determinado. Até as
palavras em si mesmas mais «claras» podem ser para o outro
interlocutor obscuras — especialmente em relação à intenção que
com elas se pretende exprim ir— e assim não provocar nele a
resposta lingüística ou simplesmente emocional que se esperava.
Mas também a conjuntura em que as palavras são pronunciadas
numa formulação determinada pode modificar essencialmente a
sua «verdadeira» influência. O poeta tem, pois, que contar com
todas estas circunstâncias e dar uma forma adequada às pala­
vras do sujeito falante.
O tipo e o grau de influência dependem, talvez, igualmente
do modo como as palavras são pronunciadas. «C est le ton qui
fait la chanson» — já se disse há muito tempo e com razão.
Poderia talvez objectar-se que o tom exprime sempre apenas a
disposição psíquica de quem fala e por isso não entra em linha
de conta quando se trata da influência sobre o interpelado.
No entanto, ficamos indecisos sobre Se o tom consegue sempre
realmente dár expressão a essa disposição. Em segundo lugar,
haveria ainda que considerar se não existirão variações tais do
tom que não se destinem, ou não em primeiro lugar, a exprimir
algo da vida psíquica daquele que fala. Para responder com
segurança precisaríamos de dispor de uma lista completa das
possíveis variaçõès do «tom » do discurso, o que, tanto quanto
eu saiba, ainda ninguém fez. Aqui só posso apontar também
alguns exemplos. Assim, podemos falar num tom «exaltado»
ou «calm o». Pode falar-se num tom «suave» ou «áspero», «de
desconsideração» ou «atencioso», «condescendente» e «de supc
rioridade» ou, pelo contrário, «submisso», «respeitoso», «ami
gável» ou «hostil»; «sincero», «franco» ou «desconfiado»
«insincero», «confiante» ou «aberto», etc. Pode pedir-se algum
coisa a alguém de maneira «impertinente» ou falar, em gera;
427

impertinentemente. Pode recusar-se este pedido muito «atencio­


samente» ou fazê-lo de maneira indelicada, brutal ou áspera.
Consoante se fala com o outro interlocutor de modo «amigável»
ou «polido» assim ganhamos a sua afeição ou o tornamos reni­
tente, o levamos a simpatizar connosco ou, pelo contrário, a
invejar-nos e a detestar-nos, etc. Se, porém, não considerarmos
apenas os modos de falar no diálogo mas também diversos tipos
de alocução, p. ex., um discurso numa assembleia popular ou
um sermão ou uma exortação à luta, encontramo-nos novamente
perante uma outra série de modos de falar com os quais se
pretende influenciar os ouvintes desta ou daquela maneira. Pode
também conceder-se que em cada um desses modos de falar se
dá expressão a algo da alma do orador (mais ou menos clara
e voluntàriamente); mas com isto não se esgota a função do
modo como as palavras e frases são pronunciadas. Porque tudo
depende das conseqüências que possam advir da expressão con­
sumada e, em relação com isto, de ela ser ou não utilizada
mais ou menos intencionalmente para um determinado fim *.
E aqui deve notar-se que aquele com quem falamos é sempre
mais ou menos sensível ao tom de quem fala e àquilo que esse
tom exprime. Sob a impressão do que sentiu ou apreendeu
conscientemente ele reage com um modo de comportamento
correspondente, a que pertence também a sua resposta lingüís­
tica. Quando, p. ex., falamos «delicadamente» com alguém é
certo que esta delicadeza pode ser apenas uma expressão da
qualidade psíquica de quem fala; na maior parte dos casos,
porém, ela é uma forma de convívio que tem a finalidade de
criar no interlocutor a correspondente disposição favorável.
E do mesmo modo, quando se repreende alguém num tom
«áspero» não há primordialmente a intenção de dar assim a
conhecer ao outro a insatisfação ou a ira do sujeito falante
mas de o levar a reconhecer como incorrecto o seu modo de
agir e a modificá-lo correspondentemente. Portanto, na maior
parte dos casos em que um estado psíquico adquire expressão
por meios lingüísticos ou mímicos isto funciona, no contacto
entre os indivíduos, não tanto como objectividade para a qual
estamos expressamente voltados intelectivamente mas sim ape­
nas como uma observação marginal que nos instiga a novas
acções. A acção-resposta (também a lingüística) provoca, porém,
análogas reacções do primeiro interlocutor, de modo que no

' Mesmo quando ocultamos os nossos sentimentos e falamos muito


«calmamente» podemos com isso muitas vezes pretender apenas levar os
outros a uma disposição amigável para connosco.
428

decorrer do diálogo (activo) se atinge um ajustamento psicofísico


de ambos os interlocutores e um jogo de conjunto das reac-
ções-resposta com as vivências, pensamentos, sentimentos, dese­
jos, etc., que nelas se revelam. Existe então um processo dialó-
gico de polémica, de luta ou actuação conjunta das personagens
que falam, as quais com as suas mutações psíquicas constituem
apenas um factor relativamente heterónomo neste processo.
Assim é quando a influência mútua dos interlocutores se
exerce imediatamente durante o diálogo. Mas há também con­
seqüências mediatas do diálogo ou das palavras pronunciadas
que só se manifestam algum tempo depois de consumado aquele.
Também estas conseqüências de manifestação tardia podem ser
intencionadas pelo discurso das personagens interpretadas. Tais
conseqüências podem, designadamente, ser, p. ex., outras dis­
cussões entre as personagens em acção, de modo que todo o
espectáculo teatral se apresenta como uma cadeia de destinos
humanos que se desenvolvem em diálogos. A literatura «dra­
mática» existente, com a sua extraordinária riqueza de formas
diferentes de apresentar a coexistência dos homens em processos
dialógicos, poderia mostrar-nos ao mesmo tempo da melhor
maneira a multiplicidade das funções que a linguagem pode
desempenhar nessa coexistência. No entanto, basta por agora
o que atrás se disse. Será, porém, necessário acrescentar ainda
uma observação.
E nomeadamente numa direcção talvez um pouco inespe­
rada. Há um efeito especial do facto de os homens falarem uns
com os outros e de conseguirem com essa fala revelar os pró­
prios pensamentos e vivências: é a influência exercida sobre si
própria pela pessoa que fala, mais exactamente pela sua «expres­
são verbal». Através da fala os nossos pensamentos e muitas
vezes também as nossas decisões adquirem maturidade. Eles
explicitam-se nas palavras pronunciadas e adquirem nelas uma
forma desenvolvida. É certo que isto também pode acontecer
no pensamento «silencioso»; mas, de qualquer modo, o falar
com outros é um pensar «em voz alta» que nós próprios ouvi­
mos e que podemos consciencializar muito mais claramente do
que quando pensamos isto ou aquilo apenas para nós próprios
sem ter que o exteriorizar em forma lingüística. Em segundo
lugar, porém, nós sentimos então muito mais fácilmente quando
a nossa fala e o pensamento que nela se expõe podem ter
êxito: designadamente quando ela é compreendida pelo outro
interlocutor e quando o consegue levar a uma determinada
acção ou convertê-lo a uma convicção. Mas para que obtenha
êxito ela tem que se aperfeiçoar na forma lingüística: explici­
429

tar-sè nos seus membros, clarificar-se, justificar-se a si própria


e assim ganhar poder de convicção e penetração. Ao falar cons-
ciencializamos de forma mais clara aquilo que muitas vezes nos
escapa na vida «silenciosa» e nos agrava a consciência intelec­
tual e moral como um acto não consumado. Esta é, pois, a
primeira forma da auto-influência através da conversa com
outrem: os nossos pensamentos, e nós próprios, alcançam a
maturidade. Mas o consciencializar-se a si próprio alcançado
pela fala faz com que muitas vezes nos tornemos sensíveis e
atentos aos próprios erros e leva-nos, assim, a dar o primeiro
passo para uma transformação interior que sem a exteriorização
pela fala talvez não fosse tão fácil de alcançar. Este acto de
se expressar perante outrem tem muitas vezes sobre aquele
que fala o poder da libertação: o que antes sem ser pronun­
ciado nos pesav.a ná alma desprende-se agora do. sujeito falante.
Depois de um longo silêncio escondido e reprimido dentro de
nós próprios algo surge através do diálogo à luz do dia e é
lançado fora como um vestido usado sem que para isso fosse
preciso um esforço especial. Ao falarmos com alguém desco-
brimo-nos não só perante alguém (amigo ou inimigo) mas tam­
bém perante nós próprios. E isto deixa-nos muitas vezes as
mãos livres e o coração quente. Neste abrir-se perante o outro
é-nos oferecida a possibilidade de uma comunidade de vida
interior com essoutro que talvez nunca pudéssemos alcançar
sem essa exteriorização mútua. É por isso que o nosso amor
não alcança a maturidade nem se realiza enquanto não encon­
trar uma expressão lingüística lapidar. Mas isto aplica-se, no
fundo, a todos os nossos sentimentos e atitudes quer se trate
de amizade ou de inimizade, de admiração ou de profundo
desprezo — todos eles querem ser pronunciados e alcançam
neste ser-pronunciados a sua realização última. Mas nesta rea­
lização consuma-se também a configuração definitiva do indi­
víduo em questão: também ele, em última análise, alcança, na
sua forma boa ou má, o perfil definitivo e a maturidade. Num
espectáculo teatral nós somos, no fundo, testemunhas de um
tal processo de maturação de um indivíduo — sem que essa ma­
turação tenha necessàriamente que ser entendida no sentido de
um desenvolvimento positivo ou de uma evolução para melhor.
Quando, p. ex., observamos o destino de Peer Gynt vemos como
ele, em muitas situações e falas diferentes, amadurece pouco
a pouco na sua alma singularmente vã até se descobrir final­
mente na sua forma acabada como indivíduo oco. Na vida
silenciosa, sem os muitos conflitos dialógicos com outras pes­
soas, sem as conseqüências de cada um desses diálogos e da
430

acção que se concretiza no diálogo ele não se descobriria e não


poderia chegar a ter consciência da sua verdade trágica.
§ 2.° São estas, portanto, as diversas formas da linguagem
enquanto uma espécie de acção e acontecimento no espectáculo
teatral. Em todas estas formas ela surge como uma pluralidade
de formações carregadas de sentido cuja constituição, explici­
tação e pronunciação real constituem a já tratada participação
da linguagem (apresentada) no desenvolvimento da acção no
«drama». Ao mesmo tempo, porém, estas formações criam inten­
cionalmente, conforme o seu conteúdo, uma variedade de objec­
tividades e contribuem assim essencialmente para a constituição
do mundo apresentado no espectáculo teatral. Nesta perspectiva,
elas desempenham a mesma função que todas as formações
lingüísticas nas obras literárias; e se elas se distinguem destas
últimas a razão está apenas em que no espectáculo teatral elas
não são o único (nem talvez o principal) meio de apresentação
e por isso elas só têm que estruturar no âmbito do mundo apre­
sentado aquilo que não se constitui nem se mostra (ou não
pode ser constituído nem mostrado) por meio dos aspectos
visuais concretos realizados pelos actores. Através do sentido
dos diálogos travados «no palco» ficamos sobretudo a conhecer
muita coisa sobre a vida psíquica das personagens interpretadas
que não é (ou não pode ser) expressa nem pelo seu comporta­
mento físico nem lingüístico e que muitas vezes é indispensável
para a caracterização das personalidades. Por outro lado, somos
informados também por esse mesmo sentido sobre objectos e
eventos que não são visíveis no espaço apresentado «no palco»
e no decorrer do tempo apresentado no âmbito da peça. Este
complemento essencial do mundo apresentado tem como con­
seqüência que tudo aquilo de que somos testemunhas (como
espectadores) é apenas um pequeno fragmento daquilo que a
totalidade do mundo apresentado significa no espectáculo tea­
tral respectivo. Por isso, aquilo que é mostrado imediatamente
ganha não só em inteligibilidade mas também em plenitude
vital e carácter concreto, sem o que não existiriam pessoas e
eventos na plenitude do termo mas apenas — se assim se pode
dizer— «bastidores». Mas sem estes «bastidores» também todo
o resto projectado de um modo apenas lingüístico nunca poderia
alcançar a vivacidade e plenitude de aparecimento que é pos­
sível termos no espectáculo teatral. Aí reside precisamente a
importância decisiva da apresentação extra-linguística no espec­
táculo teatral.
§ 3.° Assim se apresentam, digamos, de um ponto de vista
puramente anatómico a função e a relação mútua dos dois
431

diferentes meios de apresentação no espectáculo teatral. Simul­


táneamente, porém, revela-se aí a função destes dois meios de
apresentação em relação ao espectador que está ligado ao espec­
táculo teatral e nele descobre e apreende uma obra de arte de
tipo muito especial.
Ao que parece, as funções que o texto principal tem que
desempenhar em relação ao espectador são as mesmas das
palavras pronunciadas por uma das personagens interpretadas
em' relação ao seu interlocutor: são, realmente, as mesmas
funções de apresentação, de expressão, de comunicação e de
influência da linguagem. A diferença essencial do espectador
em relação ao interlocutor (apresentado) a quem se dirigem
aquelas palavras faz que também a função das mesmas palavras
se modifique para o espectador. Pois, em primeiro lugar, o
espectador encontra-se, por assim dizer, fora do mundo apre­
sentado no espectáculo teatral; em segundo lugar, ele não é
um interlocutor no diálogo e também não participa na acção
dramática; e em terceiro lugar, finalmente, ele é «espectador»
que durante a representação vive, se não exclusivamente pelo
menos predominantemente, numa atitude estética e tem em
vista a compreensão da obra de arte ou a constituição do
objecto estético que se vai estruturando com base nessa com­
preensão. Desta diferença resultam também, por assim dizer,
diferentes postulados quanto àquilo que as mesmas palavras
do texto principal têm que realizar nas suas múltiplas funções,
por um lado, em relação às outras personagens interpretadas
e, por outro lado, em relação aos espectadores. E da diversidade
destes postulados resultam depois também diferentes exigências
que se propõem à estruturação das palavras pronunciadas parâ
que estes postulados possam ser realizados por elas.
Já deparámos com um caso da diversidade daqueles pos­
tulados no chamado drama «naturalista». As palavras pronun­
ciadas pelas personagens interpretadas devem ser organizadas
de modo a serem tanto quanto possível «naturais» e a dirigi­
rem-se exclusivàmente ao outro interlocutor. Têm, assim, que
ser organizadas apenas em atenção à situação a partir da qual
são pronunciadas e ao efeito que devem exercer sobre o inter­
locutor; ao mesmo tempo, porém, elas têm que ser ouvidas
pelo espectador na sala e causar nele uma certa impressão1

1 Exceptuó1o caso em que o espectáculo teatral é um mistério no qual


o público concentrado no teatro deve,: de algum modo, participar activa­
mente. Limito-me, pois, apenas a casos ¡em que o público observa, numa
atitude estética, o espectáculo teatral como uma obra de arte.
432

para lhe provocar a fase correspondente da vivência estética e


lhe «agradar». Aquilo que com base na compreensão deve des­
pertar no interlocutor, p. ex., receio e atitude de repulsa deve
ser compreendido pelo espectador apenas no seu conteúdo de
sentido e expressão e apreendido na sua função artística para
se chegar a uma reacção estética, especialmente a um agrado
ou desagrado. Se surgisse também no espectador receio, ira e
reacção de repulsa então isso aconteceria por acção da com­
preensão estética. O espectador tem que estar desde o inicio
numa posição de distância emocional em relação ao que se diz
e ao que acontece no mundo apresentado para que não se sinta,
do mesmo modo que a personagem interpretada que é interpe­
lada, ameaçado e, portanto, não responda também do mesmo
modo que aquela personagem. E são as mesmas palavras pro­
nunciadas que devem produzir estes resultados diferentes. Se elas
fossem realmente as mesmas em toda a acepção nunca conse­
guiriam chegar a reacções tão diferentes de duas testemunhas
diversas do discurso. Algo nelas, portanto, tem que ser para o
espectador diferente do que é para as personagens interpre­
tadas; de outro modo, a diversidade dos seus efeitos sobre os
espectadores e sobre aquelas personagens seria não só incom­
preensível mas também impossível. Se as palavras ditas «no
palco» forem organizadas no sentido do naturalismo então a
diferença procurada não pode consistir em nenhuma caracte­
rística do lado fónico das formações lingüísticas em questão
nem em qualquer momento do seu sentido: o espectador deve,
pois, apreender estas formações nos mesmos traços e até nas
mesmas funções por elas desempenhadas que elas têm para as
personagens interpretadas no espaço apresentado. A única dife­
rença que então ainda é possível consiste no diferente carácter
ontológico das palavras pronunciadas pela personagem interpre­
tada. Estas palavras possuem, na verdade, para as personagens
interpretadas um carácter de realidade, i. é, estas personagens
consideram o ser-pronunciado destas palavras como um facto
dentro do mundo (apresentado) que lhes é comum, ao qual elas
próprias pertencem, enquanto os espectadores na sala conside­
ram as palavras pronunciadas e o seu ser-pronunciadas apenas
como algo «representado», exposto através dos meios da arte,
mas que não existe verdadeiramente no mundo real. Precisa­
mente por isto, as palavras realmente pronunciadas pelo actor
não se identificam com as palavras apresentadas e apenas
«representadas»; ou seja, o espectador finge não reparar (ou,
num certo sentido, «esquece») que as palavras da personagem
representada, que pertencem ao mundo apresentado, «na rea-
433

lidade» são pronunciadas pelo actor e só valem no mundo


apenas apresentado do espectáculo teatral respectivo.
No entanto, em todos os espectáculos teatrais não natu­
ralistas existe uma outra intenção. Neste caso, as palavras
(formações lingüísticas) que pertencem ao texto principal do
espectáculo teatral adquirem determinadas particularidades que
as tornam capazes de influenciar estéticamente o público na
sala do teatro, ou seja, numa expressão menos exacta, de lhe
agradar. As falas de cada uma das personagens interpretadas
são, p. ex., ditas em verso ou entoadas de uma certa maneira
que no sentido da moda (ou estilo) dominante na obra ou na
época em questão é uma «declamação» e não um falar «natural».
As personagens interpretadas, porém, comportam-se como se
não reparassem que se trata de versos ou declamações que
muitas vezes em nada se ajustam à situação entre elas \ Em vez
de se entenderem rápidamente sobre um estado de coisas, tira­
rem daí conclusões práticas e agirem rápidamente para, p. ex.,
evitar uma catástrofe elas declamam longas tiradas, respondem
com expressões igualmente longas e artificiais e agem como se
tudo isto fosse perfeitamente adequado e natural para agradar
aos espectadores. No teatro antigo estas tiradas nem sequer
eram dirigidas aos outros interlocutores — os actores voltavam-se
simplesmente para os espectadores, com diferentes expressões
somáticas e gestos que deviam dar a entender ao espectador
aquilo que eles faziam e viviam, como se as outras personagens
interpretadas que se encontravam no mesmo espaço apresentado
não precisassem de ver e compreender. As funções de expressão
«naturais» do discurso são perturbadas ou mesmo asfixiadas
no seu germe porque a entoação dos versos não permite a sua
manifestação. A música do verso interfere mesmo muitas vezes
no sentido do discurso porque despreza os acentos exigidos
pela função sintáctica e frequentemente cria efeitos que lhes
são contrários. Por outras palavras: a melodia da frase é muitas
vezes quebrada pela melodia do verso, a última não se submete
à primeira. Naturalmente que não tem que ser assim; mas quando
assim é, isso é apenas uma expressão da diversidade de postu­
lados que são propostos ao texto principal do espectáculo tea­
tral por parte daquelas funções que se dirigem ao público e,
por outro lado, das funções que as formações lingüísticas do

1 Isto acontece num grau ainda muito elevado na ópera dos tempos
modernos, em que os «heróis» — que são, p. ex., participantes de um drama
burguês (cf. Madame Butterfly) — não notam que eles e os seus concida­
dãos cantam continuamente embora devessem apenas falar.

28
434

texto principal têm que desempenhar dentro do mundo apre­


sentado. A arte dos grandes dramaturgos pode criar obras nas
quais — embora elas não sejam «naturalistas»— se alcança afi­
nal uma certa harmonia entre as diversas exigências postas às
formações lingüísticas do texto principal. Mas apenas uma har­
monia e não uma total eliminação das diferenças na organização
das formações lingüísticas para o público e para as personagens
interpretadas. A «falta de naturalidade» é então reduzida a um
mínimo, mas exige ainda um certo abstrair recíproco por parte
das personagens interpretadas caso as mesmas devam continuar
a ser membros de um mundo «natural» (embora, evidentemente,
apenas representado). Aliás, é ainda possível um outro caso,
em que as personagens interpretadas devem ser desde o início
figuras fictícias, puramente poéticas, às quais se pode permitir
que também na sua acção lingüística elas se comportem com
tanta «falta de naturalidade» como na sua vida psicofísica (é o
caso das figuras que aparecem no Anel dos Nibelungos, de
Wagner, e na Tempestade, de Shakespeare). Tal como o seu
aspecto exterior, as suas qualidades psíquicas ou em geral os
seus caracteres são desde o início apenas do mundo da «fábula»,
assim também o seu comportamento lingüístico mútuo se pode
organizar de maneira completamente diferente das funções «na­
turais» da linguagem. Então, toda a realidade apresentada é
estruturada segundo os princípios do efeito estético sobre o
público no sentido de um determinado estilo artístico e a este
princípio básico se deve submeter (ou simplesmente: se sub­
mete) então também a organização da linguagem apresentada.
Só têm depois que se encontrar formas de organização fónica
e significativa do texto principal tais que as funções da lin­
guagem nas relações lingüísticas daquelas pessoas fictícias umas
com as outras se exerçam realmente e que, portanto, subsista
a possibilidade de compreensão lingüística recíproca e da in­
fluência mútua dos «heróis». Levar-nos-ia muito longe o desen­
volvimento pormenorizado deste assunto. Devemos, no entanto,
salientar que se abre' aqui um vasto e interessante campo de
investigação sobre peças isoladas que nos inicia nos arcanos da
arte extraordinàriamente multimoda da organização da lingua­
gem ao serviço do espectáculo teatral e dos seus efeitos artísticos
ou estéticos.

Você também pode gostar