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Roman Ingarden - A Obra de Arte Literária-Fundação Calouste Gulbenkian (1965)
Roman Ingarden - A Obra de Arte Literária-Fundação Calouste Gulbenkian (1965)
A OBRA
DE ARTE LITERARIA
T r a d u ç ã o de
A l b í n E. B e a u
M a r i a da C on ceição P u ga
João F. B a r r e n t o
P r e fá c io dè
M a r ia M a n u e l a S a r a iv a
2 .11 ediçao
F U N D A Ç Ã O C A L O U S T E G U L B E N K I A N | LI S BO A
Prefácio à edição portuguesa
§ 1. Ingarden e Husserl
32 H. Spiegelberg, op. cit., 226: «In these studies Ingarden made im-
pressive use of the strata theory of pure logic as developed particularly
by Pfãnder on the basis of Husserl’s first suggestions.» Spiegelberg refere-se
não só a Das literarische Kunstwerk, mas aos estudo de estética em ge^ral
de Ingarden.
33 R. Bayer, op. cit., 347, considera N. Hartmann como um dos repre
sentantes da tendência fenomenológica em estética e refere-se à sua ma
neira de conceber a complexidade do objecto estético explicando a sua
estrutura por estratos.
34 R. Wellek, A. Warren, op. cit. (Lisboa, Publicações Europa-América,
1962), 188.
XXVII
47 Sobre o postulado da imanência cf. pp. 38, 42-57, 62-3, 94-6, 100, 116,
140, 163-8, 248, 253.
48 Cours de linguistique générale, trad. port. (Lisboa, Publicações
Dom Quixote, 1971), 49.
49 Op. cit., trad. port., 43. «E n outre, les signes de la langue sont pour
ainsi dire tangibles; Vécriture peut les fixer dans des images convention-
nelles, tandis qu'il serait impossible de photographier dans tous leurs
détails les actes de la parole; la phonation d ’um mot, si petit soit-il, repré
sente une infinité de mouverraents musoulaiires extrémement difficiles à
connaitre et à figurer. Dans la langue, au contraire, il n’y a plus que l’image
acoustique, et celle-ci peut se traduire en une image visuelle constante.
Car si l ’on fait abstraction de cette multitude de mouvements nécessaires
pour la réaliser dans la parole, chaqué image acoustique n'est, comme nous
le verrons, que la somme d'un nombre limité d’éléments ou phonémes,
susceptibles à leur tour d'étre évoqués par un nombre correspondant de
signes dans l’écriture. C'est cette possibilité de fixer les choses relatives
à la langue qui fait qu’un dictionnaire et uñe grammaire peuvent an étre
une représentation fidéle, la langue étant le dépót des images acoustiques,
et l’écriture la forme tangible de ces images» (Cours..., Paris, Payot, 1955),
32. Sublinhados nossos.
50 Op. cit., trad. port., 57. «M ais ie mot écrit se mêle si mtimement
au mot parlé dont il est l’image, qu’il finit par usurper le role principal;
on en vient à donner autant et plus d'importance à la représentation du
signe vocal qu'á ce signe lui-méme. C'est comme si l'on croyait que, pour
connaitre quelqu’un, il vaut mieux regarder »a photognaphie que son visage»
(C o u rs ...), 45, Sublinhas nossos.
XXXIII
§ 6. Percepção e significação
ríamos citar alguns outros casos. Mas este não bastará para
deixar antever que há dualismos falsos e dualismos certos?
Poderá contestar-se: dualismo é uma coisa, ambigüidade e
ambivalência é ou são outras. Aceitamos a objecção. Pensamos
mesmo que ela é fecunda. Possível ponto de partida para uma
reflexão generalizada que se impõe. Aqui apenas a tocámos, indi
cando a direcção em que nos parece situar-se: a dialéctica do
uno e do múltiplo, para além da alternativa monismo-dualismo.
Afastámo-nos do nosso assunto, mas julgamos esta digressão
oportuna. Usámos um método ultrapassado: parece que nos lim i
támos a opor uma ou várias autoridades a outras tantas. Isto
é só, de facto, o que parece. Invocámos os autores que melhor
nos serviram para exprim ir as nossas próprias evidências. Mas
o problema da evidência não será um dos prismas em que a
dialéctica do uno e do múltiplo se refracta? A evidência é o
injustificável último. Injustificável, no sentido de não admitir
como possível ou necessária qualquer justificação ulterior. Plu
ralidade injustificável como a pluralidade das consciências — de
que decorre. Irredutível como ela, em larga medida.
Num certo sentido, a pluralidade das consciências parece sef
irredutível e nela encontramos a contingência fundamental69.
iogie der Kunst em 1962. Eis mais ou menos o que diz o Prefácio
da terceira edição de A Obra de Arte Literária.
Ingarden reconhece, pois, o carácter excessivo do seu livro.
São acontece o mesmo com o que pode chamar-se o seu aspecto
deficitário: a dimensão que dá ao termo literatura está longe de
poder abranger todas as produções literárias.
Leia-se o § 25 a), em que responde às objecções de Kate
Hamburger. A despeito da importância que dá à persuasão,
Ingarden não nos convence a não ser no respeitante à modifi
cação de neutralidade. N o essencial K. Hamburger tem razão:
o conceito ingardiano de obra literária é demasiado estreito,
aplicável somente à poesia épica e dramática. O mundo nelas
apresentado apenas simula ou reproduz a realidade. Por outras
palavras, a forma de arte, a corrente literária que Ingarden toma
constantemente por modelo é a arte realista. Aí vai buscar, como
é natural, as suas realizações mais características: romance, no
vela, drama. O romance histórico, o drama histórico ocupam
mesmo um lugar privilegiado. Raras vezes se fala da lírica em
A Obra de Arte Literária, e sempre em breves apontamentos.
Endurecemos talvez a posição de Ingarden... Em 1930 muita
água tinha corrido por sobre o programa realista, novos mani
festos haviam surgido, não só em literatura tom o em pintura,
em música, em vários sectores da arte. O espírito curioso e de
larga cultura do pensador polaco não o ignora! A prova é que
admite a possibilidade de outros cânones artísticos. Admite-os
em teoria, parece-nos, e, o que é significativo, como casos-limites
ou excepções (§§ 38, 46, 52...). De uma maneira ou de outra logo
regressa à norma, ao terreno familiar. Terreno não indiscutivel
mente aceite, por uma qualquer espécie de direito, mas admitido
como um facto ou escolha tácita.
Tudo isto diz respeito ao 3° estrato e à excepcional impor
tância que Ingarden lhe atribui. E o 3.° estrato, por sua vez,
remete-nos para o papel da imaginação na leitura, na leitura da
ficção em especial, visto que dela se trata, de maneira por assim
dizer exclusiva.
Tantas vezes abordámos já este 3 ° estrato, com mais ou
menos demora, que nos podemos resumir finalmente.
Para o compreender, duas noções husserlianas de base. Num
primeiro tempo temos actos de pura intenção ou de intenção
vazia, pensamento conceptual vazioS2, consciência signitiva ou
significativa... versus intuição ou preenchimento. Impõe-se dis
O A utor
Prefácio da terceira edição
Cracovia, 1959.
O A utor
Prefácio
O A utor
Primeira Parfe
Q UESTÕ ES PRÉVIAS
Primeira Parte
QUESTÕES PRÉV IA S
§ 1. Introdução
§ 6. Delimitação do tema
ESTRUTURAÇÃO
DA OBRA LITERÁRIA
Segunda Parte
Capítulo 3
' Cf. sobre este assunto Th. Lipps, Grund.legu.ng der Aesthetik, Leipzig,
1903, pp. 487492.
66
1 Cf. I. c., p. 35. Kucharski parece, aliás, tomar uma posição seme
lhante à de Eduard von Hartmann na Philosophie des Schõnen, pp. 715
e segs.: «(...) que é apenas do significado da palavra que o efeito poético
como tal depende e não da beleza da linguagem e da dicção bela. Quando
o efeito é reforçado por estas trata-se do acréscimo de um efeito estético
extrapoético ao poético, portanto do efeito composto de uma obra de arte
formada de várias artes», é claro que von Hartmann aqui parte de um
conceito de «poético» que não é o resultado da análise concreta das obras
poéticas. Por conseguinte, vê-se forçado a considerar estas obras «com
postas», como se houvesse ou pudesse haver obras poéticas privadas do
estrato fónico-linguístico e a que seria necessário juntar outra «arte»
(a música?) para criar assim «obras de arte compostas». H á naturalmente
obras de arte «compostas» — como, por exemplo, as canções ou a ópera— ,
mas neste caso o factor música entra em colaboração num sentido com
pletamente diferente da que o estrato fónico-linguístico pode emprestar
ò obra de arte puramente literária.
: Cf. atrás, p. 23.
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' Como acontece, p. ex., com as palavras «mesa», «la table», «men
sa», etc.
2 E referem-se ao mesmo objecto que transcende a significação e o
seu objecto intencional.
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' Também Pfaender (cf. Logik, pp. 272 e segs.) distingue entre «con
ceito» e «conteúdo de significação» de uma palavra. Eu não poderia dizer
com Pfaender que os conceitos podem ser conteúdos de significação de
palavras. Também não é claro se Pfaender considera o conceito como
uma objectividade ideal porque as suas afirmações concretas a este res
peito são contraditórias.
2 Sobre todas estas considerações, cf. as observações respectivas nas
minhas Questões Essenciais, cap. V, nomeadamente § 26.u
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' Foi esta a solução que Husserl tentou nas suas Logischen Untersu-
chungen a respeito das «significações ocasionais».
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1 Quais as condições que devem ser satisfeitas pelas frases para poder
resultar uma multiplicidade coerente de frases discutiremos mais adiante
(§ 23.°).
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1 Cf. J. Hering, B em erkungen über das Wesen, die W esenheit und die
Idee, Jahrbuch für Philosophie, vol. IV.
2 Cf. as minhas Questões Essenciais, cap. 2.°
3 Seria naturalmente errado considerar este conteúdo cm si m esm o
como qualidade do objecto puramente intencional. Mas também é difícil
considerar este conteúdo como parte deste objecto no sentido em que
um pé é parte da mesa. Trata-se aqui de situações muito particulares que
deveriam ainda ser investigadas em si mesmas.
141
' De tal modo é assim que o acto intencional por assim dizer « infe
rior», ao lado do seu correlativo intencional e enquanto essencialmente
vinculado a este, se torna também um objecto intencionalmente visado
ainda que não seja lícito considerá-lo como um objecto puramente inten
cional.
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1 Não é esta uma norma geral. Pode haver frases conexas indepen
dentemente da ordem da sua seqüência.
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cio, à cidade, etc., apesar de tudo isto não nos ser dado direc
tamente. É que se trata de um fundo. Este fundo não necessita
de ser explicitamente projectado pelo estado actual das signi
ficações das palavras. Pelo contrário, é antes habitual atingi-lo
através do estado potencial das significações das palavras que
aparecem nas frases K
A esfera objectiva apresentada é geralmente una. Não é,
porém, de excluir a hipótese de haver dentro dos seus limites
também objectos de tipo de ser fundamentalmente diferente.
Assim acontece, p. ex., quando.num" romance é apresentado um
matemático ocupado com determinadas objectividades matemá
ticas que também chegam a ser explicitamente apresentadas.
Neste caso, o mundo em que o matemático vive e pratica várias
acções é, naturalmente, um mundo real (mais exactamente: quase
real) e, em contrapartida, o mundo das objectividades mate
máticas é um mundo ideal. Apesar disso, ambas as esferas,
como correlatos de um único texto literário, formam uma esfera
total que certamente se cinde em duas zonas diferentes de ser
entre as quais, todavia, se estabelece uma relação pelo facto
de as objectividades matemáticas serem o tema da reflexão do
matemático apresentado no romance. A heterogeneidade dos
objectos apresentados pode ser ainda muito maior, como vere
mos adiante. Trata-se aqui apenas de declarar que ao texto
literário uno corresponde uma esfera objectiva una, que em
certo sentido transcende até o explicitamente^apresentado pelas
relações objectivas.
Para eliminar possíveis mal-entendidos queria salientar em
particular que a expressão «o objecto apresentado» por mim
empregada (ou a objectividade) deve entender-se no sentido
muito amplo em que designa, em primeiro lugar, tudo o que
é normalmente projectado qualquer que seja a categoria objec
tiva e a essência material. Refere-se, portanto, a coisas, a pessoas
e ainda a quaisquer sucessos possíveis, estados, actos pes
soais, etc. Ao mesmo tempo, porém, o estrato do apresentado
pode conter também diversas coisas não nominalmente projec
tadas como, em especial, o intencionado puramente verbal. Para
simplificar a terminologia incluímos na expressão «objectividade
apresentada» — a não ser que lhe acrescentemos uma limitação
expressa — todo o apresentado como tal. A este respeito tenha-se
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1 H oje (1960) já não poderia dizer isto tão rudemente. N o livro Der
Streit um die Existenz der Welt, vol. I, ofereci uma análise completa do
tempo concreto como pertencente a um modo especial de ser da realidade
que deveria reputar as descrições feitas aqui como não suficientemente
exactas. Aqui, porém, não posso apresentar estas novas análises, tanto
mais que isto não abalaria a distinção feita entre o tempo pertencente
à realidade e o tempo simplesmente apresentado na obra de arte literária.
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1 H oje (1960) já não poderia dizer isto tão rudemente. No livro Der
Streit um die Existenz der Welt, vol. I, ofereci uma análise completa do
tempo concreto como pertencente a um modo especial de ser da realidade
que deveria reputar as descrições feitas aqui como não suficientemente
exactas. Aqui, porém, não posso apresentar estas novas análises, tanto
mais que isto não abalaria a distinção feita entre o tempo pertencente
à realidade e o tempo simplesmente apresentado na obra de arte literária.
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§ 39. Introdução
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não numa obra puramente literária mas numa das suas varia
ções especiais em que alguns dos seus estratos até certo ponto
são «realizados». Há obras literárias particularmente predis
postas para semelhante «realização»: são as obras «dramáticas».
O modo da sua «realização» é a representação teatral. Volta
remos ainda a referir-nos a este assunto (§ 57).
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cidos pode ter ainda outra razão. Como uma análise mais exacta
demonstra, nem todos os aspectos que em princípio pertencem
a um objecto têm a capacidade — se a palavra é permitida —
de o apresentar nitidamente na sua própria essência e nas pro
priedades do seu modo de ser. Ao vivermos muitos deles «sal
ta-nos» imediatamente «aos olhos» — como se d iz— o momento
especialmente característico e expressivo de toda a essência,
enquanto outros aspectos não nos facultam, ou, pelo menos,
não na mesma medida, o acesso pelo conhecimento à essência
do mesmo objecto. No primeiro caso estabelece-se, por assim
dizer, a face própria do objecto; no segundo caso, ao contrário,
apreendemos apenas o casual ou o que jaz na superfície, o médio,
o quotidiano. Com nitidez particular ressalta esta diferença
entre os aspectos ao apreendermos imediatamente estados psí
quicos e traços característicos alheios. Dada a complexidade
deste modo de conhecimento pode certamente duvidar-se de
qual seja propriamente a razão por que nós, por vezes, numa
expressão de rosto apreendemos imediatamente o homem total
nqs. seus traços essenciais, enquanto noutra não conseguimos
adivinhar absolutamente nada ou apenas muito pouco da sua
estrutura anímica e do estado psíquico que precisamente se
está a desenrolar. Muitos investigadores quererão aderir à afir
mação de que a própria expressão fisionômica desempenha,
antes de mais, esta função reveladora ou ocultante. Por mais
correcto que isto seja não se pode deixar de notar que a escolha
dos aspectos em que é dada uma e a mesma expressão fisionó-
mica é igualmente de grande importância. Basta, p. ex., contem
plar a face de uma pessoa e a sua mímica numa invulgar e forte
abreviação perspectivista, p. ex., de cima ou de baixo, para nos
convencermos de que a mudança dos aspectos muitas vezes
leva à quase irreconhecibilidade sobretudo da própria expressão
fisionômica e, consequentemente, também do correspondente
carácter (ou do estado psíquico). O mesmo vale quanto ao
modo de aparecimento das coisas mortas. Por conseguinte, é
da máxima importância para a obra de arte literária a qualidade
das multiplicidades de aspectos que nela são postas à disposição.
Se o mundo apresentado deve ter realmente «sangue» e «fres
cura», se a obra deve revelar o que há de mais específico e
essencial nos objectos apresentados, então é preciso que nela
estejam à disposição multiplicidades de aspectos de grande
força reveladora.
Outra diferença do modo de aparecer das objectividades
apresentadas para que desejaríamos ainda chamar a atenção
salta-nos à vista quando, p. ex., comparamos as obras mais
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fase culminante \ Para que urna obra literária seja uma obra
de arte as situações culminantes têm pelo menos de encerrar
em si objectos que aspectos estéticamente qualificado^ façam
aparecer2. Pelo contrário, as fases de preparação e/ transição
podem ser a este respeito indiferentes embora^Hie/ seja lícito
encerrar em si qualidades de valor contrárias às fases culmi
nantes que se lhes seguem e assim têm de ser pelo menos con
figuradas no seu conteúdo de tal modo que tomem possível na
fase culminante que se lhes segue o desenvolvimento das qua
lidades de valor.
As observações que acabámos de levar a termo mostram
bem a importância da função que o estrato dos aspectos dis
poníveis desempenha na obra de arte literária, é de facto um
elemento essencial cuja rejeição transformaria a obra de arte
literária numa mera obra de literatura.
acordo com isto está apenas o facto de a maior parte das obras
de história da literatura se ocuparem geralmente, primeiro que
tudo, dos objectos apresentados para, depois de algumas aná
lises quanto às particularidades da «linguagem» ou quanto à
natureza das «imagens» usadas pelos autor em questão, passa
rem a diferentes problemas genéticos.
Por mais que isto possa ser causado pelas diferentes cir
cunstâncias da leitura e pela função que a literatura desempenha
para o homem prático, está no entanto fora de dúvida que a
obra de arte é em conseqüência disto falsamente apreendida.
E até por razão dupla: 1. porque de todos os estratos da obra
só um, em detrimento dos restantes, parece em certa medida
tomar o lugar da obra inteira; 2. porque deste modo passa des
percebido algo que depende directamente do estrato objectivo
e que na obra literária constitui o seu cerne e em função do
qual tudo o resto nela — e assim também os objectos apresen
tados— constitui em certa medida «o cenário», um meio (embora
não um meio apenas!). É certo que já bastantes vezes se disse:
os objectos são apresentados na obra de arte literária para que
algo de diferente seja atingido. E com o decorrer do tempo até
este «algo de diferente» se multiplicou abundantemente. Assim,
pensou-se que os objectos apresentados (embora nunca se tivesse
analisado por completo o seu conceito exacto) devem despertar
em nós estes ou aqueles sentimentos e disposições ou ensinar-nos
ou influenciar-nos éticamente ou, enfim, devem «dar expressão»
às vivências do autor e ao próprio autor. Tudo isto não deve
aqui ser negado ou afirmado mas sim apenas rejeitado na me
dida em que com isso se toca numa questão completamente
diferente: a questão precisamente do papel da obra de arte lite
rária na vida cultural e global do homem ou a questão da
relação da obra com o autor. Ocupa-nos aqui, pelo contrário,
o problema totalmente diverso de saber se precisamente o estrato
objectivo realiza algo na construção da própria obra de arte
literária que faça aparecer nela ainda outro elemento — e talvez
o mais importante— ou se a sua função se limita à sua pura
existência.
Nas teorias a que acabámos de nos referir exagerava-se
muitas vezes e julgava-se que os objectos apresentados apenas
serviam para realizar alguma coisa, p. ex., para «expressar»
uma ideia concebida pelo autor. Falar de meios e fins é, eviden
temente, mais ou menos descabido quando se trata de papéis
ou de funções dos elementos de um todo orgânico relativamente
a esse todo. Mas também sob esse falso ponto de vista deve
dizer-se que o estrato objectivo, não obstante as funções que
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metafísica pode ser revelada. Mas tudo isto são temas para
análises especiais que não podemos aqui levar a cabo. Impor
tante para nós é apenas que as qualidades metafísicas consigam
em obras de arte literária a sua revelação e que em conseqüência
disto o estrato objectivo da obra possa desempenhar a função
do seu desvelamento. Ele não constitui pois, pelo menos em
todas as obras em que surgem qualidades metafísicas, um mero
fim em si mesmo. Em sentido oposto à nossa opinião poder-se-ia,
no entanto, perguntar se as qualidades metafísicas não são
simplesmente momentos do mundo apresentado que sejam igual
mente determinados pelos sentidos das frases e apresentados
pelos correlatos intencionais destas como são os próprios objec
tos apresentados. Se fosse realmente assim então não podería
mos, naturalmente, falar da função especial do estrato objectivo.
É, sem dúvida, certo que as qualidades metafísicas se tornam
patentes nas situações objectivas e nos objectos apresentados
e não constituem nenhum estrato especial da obra de arte lite
rária. Com isto não está de modo algum em contradição o facto
de elas precisamente serem sustentadas pelas objectividades
apresentadas, de nestas terem o seu fundamento e de estas
objectividades exercerem assim a sua função. Elas não são,
porém, directamente determinadas pelos sentidos das frases.
O curioso, neste caso, está precisamente em que as qualidades
metafísicas podem, na verdade, ser intencionadas em puras
unidades de significação, mas só através disto jamais conseguem
atingir a sua revelação. Só quando a situação objectiva corres
pondente é determinada em relação aos elementos a este respeito
essenciais e chega a aparecer pode também revelar-se uma
correspondente qualidade metafísica. Para que, portanto, isto
aconteça numa obra de arte literária têm de actuar em conjunto,
a par do estrato objectivo, aqueles estratos da obra de que em
primeira linha resultam a apresentação e o aparecimento do
estrato objectivo: por conseguinte, tanto o estrato das formações
fónico-linguísticas como o das unidades de significação e, final
mente, o dos aspectos. Só quando pela actuação conjunta deles
o mundo apresentado é constituído e aparece em forma viva
perante a nossa visão espiritual atingem também as correspon
dentes qualidades metafísicas o seu desvelamento. Com razão
podemos, pois, afirmar que é, em primeiro lugar, o estrato
objectivo que desempenha a função de desvelamento das qua
lidades metafísicas. Falta só acrescentar que esta função só
pode ser desempenhada por objetividades apresentadas consti
tuídas e tornadas visíveis no seu aparecimento. Com efeito, a
revelação das qualidades metafísicas não depende, naturalmente,
325
1 Quando Susanne Langer no seu livro Feeling and Form (1953) fala
de «Feeling» e o considera essencial para a arte tem então, sem dúvida,
fundamentalmente em vista o aparecimento das qualidades metafísicas na
obra de arte sem, de resto, ter delimitado este grupo de qualidades de
outras qualidades também de acesso emocional e sem ter tomado cons
ciência do modo especial como elas surgem na obra de arte. Tem, porém,
de se acentuar imediatamente que há também outras qualidades valiosas
especificamente estéticas sem as quais o mero aparecimento de uma quali
dade metafísica na obra de arte literária não bastaria para fazer dela
uma obra de arte plenamente desenvolvida. Com efeito, o essencial para
as obras de arte deste género e talvez para toda e qualquer obra de arte
c precisamente o facto de deverem encerrar em si uma multiplicidade
de diferentes qualidades estéticamente valiosas que, todas juntas, têm de
criar uma harmonia especial de estrutura polifónica caso a obra pretenda
ser uma obra de arte positivamente valiosa.
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22
338
AD ITA M EN TO S
COM PLEM ENTARES
E C O N S E Q Ü Ê N C IA S
Terceira Parte
Capítulo 12
§ 56. Introdução
1 K. Lange tem muita razão quando afirma que todas estas informações
escritas estão em contradição com a essência do espectáculo cinematográ
fico. O desenvolvimento do filme sonoro não vem trazer alterações neste
ponto (cf. K. Lange, Nationale Kinoreform, 1918). Conheço este trabalho
apenas em parte e por referência. A estrutura do filme sonoro foi por mim
analisada no artigo «Le Temps, 1’Espace et le Sentiment de réalité», cf.
Revue Internationale de Filmologie, Paris, 1947.
23
354
1 Neste ponto não é de. esquecer que o estrato dos aspectos do filme
não deve ser identificado com o estrato correspondente da obra literária.
Os aspectos esquematizados são apenas postos à disposição e em si mesmos
orientados na sua constituição para outros estratos dessa mesma obra.
Num espectáculo cinematográfico, pelo contrário, não são, antes de mais,
esquematizados no mesmo sentido. Que eles, porém, aí também estão
sujeitos a uma esquematização, ou melhor, a uma transformação, decorre
já das alterações de forma que a composição do aparelho fotográfico traz
consigo. É de notar em especial nos aparelhos cinematográficos mono
culares até agora utilizados a transformação que consiste na redução a
um plano da perspectiva em profundidade. Ela poderia, no entanto, ser
evitada em princípio pelo emprego de aparelhos estereoscópicos. Em se
gundo lugar, atingem aqui os aspectos a sua explicitação concreta e têm
neste caso o seu fundamento ontológico em determinadas objectividades
e processos reais que se encontram fora do próprio espectáculo. N o artigo
«Le Temps, 1’Espace et le Sentiment de réalité» sujeitei o espectáculo
cinematográfico a uma análise aprofundada. Cf. Revue Internationale de
Filmologie, Paris, 1947, vol. I.
356
§ 59. A pantomima
1 É claro que na base dos argumentos deste parágrafo está uma con
cepção muito especial da estrutura da fotografia que se vislumbra através
do texto. Essa concepção era em 1930, ano em que surgiu este livro, com
pletamente nova. Desde então foi publicada uma série de estudos sobre a
fotografia em língua alemã, francesa e inglesa — de N. Hartmann, 1932,
até porventura E. Gilson, 1958 — , os quais apresentam muitas afinidades
com a concepção de fotografia aqui adoptada e quase na mesma altura
elaborada. O texto integral do meu trabalho escrito em língua polaca
(O budowie obrazu, 1946) era, com efeito, inacessível aos investigadores
da Europa ocidental, mas um resumo em francês do mesmo surgiu no
«Boletim » da Academia Polaca das Ciências em Í946. Em que medida a
este respeito se pode falar de uma simples afinidade ou de influência
■não me é possível dizê-lo.
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1 Sabemos muitas vezes que uma frase é errada e, apesar disso, não
somos capazes de apreender o comportamento objectivo das coisas que
pertence à frase verdadeira correspondente e fica por conhecer. Todavia,
como «desconhecido» já se distingue da relação objectiva puramente inten
cional da frase errada. Naturalmente, o comportamento não-conhecido das
coisas tem de estar já de qualquer modo unívocamente determinado se
tem de ser apreendido como «não-conhecido».
362
§ 61. Introdução
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370
tos vai tão longe como a própria obra uma vez que neles geral
mente se produzem as já anteriormente mencionadas abrevia
ções e eventualmente também modificações dos elementos da
obra então apreendidos. A concretização encerra não só diversos
elementos que não estão realmente contidos na obra mas são
por ela permitidos como também assinala muitas vezes elementos
que são estranhos à obra e a encobrem em maior ou menor
grau. São estes factos que nos obrigam a traçar em pormenor
e logicamente a linha divisória entre a obra literária em si
mesma e as suas múltiplas e várias concretizações.
1. Na obra puramente literária intervém os fonemas signi
ficativos como típicas qualidades de forma, às vezes peculiar
mente entretecidos de qualidades de manifestação. Na concre
tização através de uma exposição em voz alta (declamação)
estas qualidades de forma são sustentadas por sons concretos
e assim manifestadas e concretamente preenchidas K Os sons
concretos oferecem neste processo outras qualidades diferentes
ainda cujo domínio é predeterminado ou perriiitido pela forma
fónica sustentada e as quais têm relativamente ao todo da
concretização um papel eventualmente modificador mas, em
todo o caso, complementar. Estas qualidades variam de caso
para caso e fundamentam (embora não só elas) a diferença
enlre as concretizações singulares de uma e a mesma obra
literária. Esse seu efeito modificador que eventualmente aparece
não se limita necessàriamente ao estrato das formações fónico-
-linguísticas mas pode expressar-se também em modificações
noutros estratos da obra concretizada na medida em que ou
contribui para uma melhor expressão e complemento de sen
tido de outros estratos ou traz consigo obnubilações e defor
mações de outros elementos destes últimos, cf. «uma boa» e
«uma má» declamação. No primeiro caso, a obra'concretizada
pode ganhar novos valores estéticos a ela própria estranhos,
tomada na sua pureza, mas no entanto «adequados»; no segundo,
pelo contrário, pode perder diversos valores que de acordo com
a sua essência ela deveria possuir (isto quer dizer que não
chegam a manifestar-se).
2. As significações das palavras e os conteúdos de sentido
das frases podem na concretização, mesmo no caso de uma
1 Para que a identidade da obra seja mantida não devem ser ultra
passados os limites de variabilidade dos preenchimentos singulares que
são prescritos pelos momentos constituídos na obra. Esta variabilidade,
no caso de se manter a identidade da obra, só é, aliás, permitida porque
a obra é uma formação esquemática. W. Conrad fala de uma esfera de
irrelevância na «realização» da obra e tem, então, provàvelmente em vista
essa permitida variabilidade dos preenchimentos singulares tanto no estrato
dos aspectos como no dos objectos apresentados. Mas só a manifestação
da obra literária como formação esquemática nos deixa compreender que
esta esfera de irrelevância é possível e permitida pela essência da obra.
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1 Cf. a este respeito Max Scheler, Fonnalismus z/z der Ethik, Jahrbuch
f. Philos., vol. I, p. 419,
380
25
386
§ 65. Introdução
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402
1 Como se pode ver pelo que se segue, uso aqui uma distinção entre
a função de apresentação, de expressão, de comunicação e de «influência»
das formações lingüísticas (palavras, frases, períodos). O leitor que não
conheça bem a história desta distinção pensará provàvelmente desde logo
em K. Bühler, cuja Sprachtheorie (1934) encontrou uma aceitação relati
vamente grande, sobretudo entre os linguistas. N a verdade, porém, tais
distinções remontam, pelo menos, já a K. Twardowski ( Zur Lehre von
Inhalt und Gegenstcind der Vorstellungen, 1894). Mais tarde, E. Husserl
ocupou-se detidamente, nas Logischen Untersuchungen (1901), de «expressão»
(Ausdruck) e «notificação» (Kundgabe) — numa terminologia posterior «sig
nificação» (Bedeutung) e «expressão» (Ausdruck) — , depois do que K. Büh
ler, no artigo Kritische Musterung der neueren Theorien des Satzes (1920),
distinguiu três espécies fundamentais de frases [frases notificativas (Kund-
gabesãtze), frases libertadoras (Auslõsungssátze) e frases apresentativas
( Darstellungssàtze) ]. N o meu livro A Obra de Arte Literária não só polemi
zei contra algumas afirmações de Bühler (e especialmente contra o seu con
ceito de apresentação) mas também analisei com mais precisão o conceito
de «expressão» (Ausdruck) e o de «apresentação» (Darstellung). Em 1934
distinguiu então K. Bühler, na sua Sprachtheorie, as três funções de expres
são, de apresentação e de apelo. N o meu trabalho Über die Übersetzung
(1956) eu distingui, finalmente, em vez destas três, cinco funções diferentes
da linguagem, das quais utilizo aqui as quatro acima mencionadas.
1 Em relação a isto devemos tomar consciência de que os «aspectos»
inerentes ao espectáculo teatral são de dois tipos: 1. aqueles que são postos
perante o espectador sob forma visual concreta, através dos actores que
representam no palco, e através dos quais as pessoas e coisas apresentadas
aparecem ao espectador quase perceptivamente; 2. aqueles que são postos
à disposição através das formações lingüísticas pertencentes ao texto prin
cipal e que são apenas sugeridos ao espectador. Este pode concretizá-los
mais ou menos vivamente, mas só na forma de uma visualização imagina
tiva. Como os objectos intuídos através de aspectos deste segundo tipo
estão em diferentes relações ontológicas com os que são apresentados sob
forma de aparecimento visível a sua intuição pode atingir um grau de
vivacidade que só muito raramente se encontra em obras puramente lite'
r árias.
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418
II
1 Este tom pode ser determinado pelo texto do actor desde que seja
possível apercebermo-nos, através do contexto, de como ele deve ser.
2 A sensibilidade do poeta deve indicar-lhe em que form a sintáctica
e com que palavras algo deve ser dito quando aquilo que se diz deva
exprimir alguma coisa que é ao mesmo tempo muito precisa e, no fundo,
inefável.
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1 Isto acontece num grau ainda muito elevado na ópera dos tempos
modernos, em que os «heróis» — que são, p. ex., participantes de um drama
burguês (cf. Madame Butterfly) — não notam que eles e os seus concida
dãos cantam continuamente embora devessem apenas falar.
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