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HOMEM  E  A  NATUREZA
MIGUEL REALE
 
 
                   Não há dúvida que, na compreensão do que seja “defesa do meio
ambiente”  e do papel que nele cabe ao ser humano, houve notável progresso
nos debates havidos sobre o tema, a começar por não mais se “encarar o
homem como um ser vivo qualquer”. Já agora se reconhece que “o homem é o
principal sujeito do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, mas não o único”. (3.3 e 30.3)
                   Persiste-se, todavia, em não se considerar o homem dotado de
autonomia e de poder criador para as transformações que, a todo instante, é
ele obrigado a  introduzir no meio ambiente em  benefício da coletividade.
                   A bem ver, continua-se idealizando o meio ambiente como se fosse
sempre uma fonte perene de benesses, na qual o homem estaria passivamente
inserido, quando, na realidade, muitas vezes, é ele que, como agente criador
de civilização e de melhores qualidades de vida, vê-se na contingência de
interferir no que é natural e  espontâneo para estancar seus efeitos nocivos.
                   Vivendo no Nordeste, onde, no dizer de José Américo de Almeida,
“a natureza é menos mãe do que madrasta”, Tobias Barreto chegou a afirmar
que “a cultura é  a antítese da natureza, no tanto quanto ela importa
uma mudança no natural, no intuito de fazê-lo belo e bom”. Sem concordar com
esse exagero, não se pode deixar de reconhecer que, continuamente, deve-se
à iniciativa humana a criação de meio ambiente compatível com as exigências
vitais.
                   Como escreve Houaiss, em seu monumental dicionário, em
ecologia, meio ambiente é “o conjunto de fatores físicos, biológicos e químicos
que cerca os seres vivos, influenciando e sendo influenciado por eles”. Sob
outro prisma, poder-se-ia dizer que é o “espaço natural circundante no qual
atuam os seres vivos”.
                   Ora, dentre os seres vivos, o homem é o agente por excelência das
transformações introduzidas no meio ambiente, visando alcançar formas de
vida cada vez mais  ecologicamente equilibradas, como é previsto no Art. 225
da Constituição de 1988.
                   Assim sendo, quando há iniciativas do Poder Público ou de
empresas privadas no sentido, por exemplo, de construir barragens para usinas
elétricas ou o abastecimento de água potável, ou de abrir estradas para
comunicações necessárias, cumpre fazer-se um “balanceamento de valores”,
com a análise de todos os elementos em jogo, a fim de optar-se pela solução
mais consentânea com as exigências essenciais à vida, de que tanto se fala, e
ao desenvolvimento do País.
                   Como bem acentuou editorial de O Estado de S. Paulo, de 31 de
março último, “é preciso entender a defesa do meio ambiente como função
protetora da sociedade e não como poder para entravar o crescimento da
economia. Se as autoridades ambientais têm bom fundamento para dizer que
um projeto causará danos importantes, é sua obrigação afirmá-lo com clareza e
sem perda de tempo. Mas não é seu papel, nem seu direito, fazer de sua
função um meio de impor ao País suas idiossincrasias ou de criar obstáculos
ideológicos ao desenvolvimento.”
                   Não se trata, pois, de “antropocentrismo”, nem de ver o homem
como “valor absoluto”, que não existe, mas sim de reconhecer que a
salvaguarda do meio ambiente não pode prevalecer sobre o valor da pessoa
humana, que, a meu ver, é o valor-fonte de todos os valores, por significar
o homem situado na sociedade, um eu em correlação essencial com o dos
demais membros da comunidade. Não há estudo de Axiologia que não admita
uma escala ou hierarquia de valores, correlacionados uns com os outros em
sintonia com o tipo de civilização atingida, nos limites de suas peculiares
circunstâncias.
                   Nessa ordem de idéias, nenhum dano haverá ao meio ambiente
por exigir-se que ele corresponda a um bem de vida considerado essencial ao
ser humano. Mesmo porque, atualmente, a não ser nas ainda inexploradas
florestas da Amazonia e de outras poucas partes do planeta, não há meio
ambiente que não tenha sido influenciado pela ação do homem, como, para dar
um só exemplo, aconteceu com o cerrado que deixou de ser visto como terra
inexplorável para tornar-se campo de um novo bandeirismo, não em busca de
esmeraldas, mas sim de algodão, soja e milho.
                   Qual é o meio ambiente para um holandês, que constantemente
afronta as ameaças do oceano? Qual o meio ambiente para um londrino, um
novaiorquino ou um parisiense senão o correspondente ao das cidades
estupendas que construiram? Em todos eles, valores naturais compuseram-se
com os humanísticos em uma díade incindível. Não há nada, por conseguinte,
que justifique atitudes do Poder Público inspiradas no “fundamentalismo
ecológico”, que consiste em conversão do meio ambiente em um valor
absoluto, após afirmar-se que este não existe...
                   É claro que, se do estudo dos diversos fatores operantes resultar
que o fim visado por um empreendimento não compensa o dano a ser causado
ao meio ambiente, é legítima a interferência do Ministério Público, no exercício
de sua alta missão. Deverá sempre ser uma decisão tomada com a devida
prudência – e não é à-toa que a Jurisprudência é o nome clássico da Ciência
do Direito - pois, se o Art. 170 da Carta Magna exige, em seu inciso VI, que a
atividade econômica preserve o meio ambiente, os incisos III e IV também
salvaguardam a função social da propriedade e a livre concorrência.
                   Felizmente, a orientação dominante em nossos Tribunais é no
sentido da subordinação do meio ambiente aos valores existenciais, tal como
ainda recentemente ocorreu, com a cassação de liminares que  haviam
suspenso a construção da barragem de Piratininga e Biritiba Mirim que se
destina a abastecer de água potável o Reservatório da Cantareira, e a
experiência da flotação das águas do canal do rio Pinheiro graças a grande
investimento que visa antecipar a utilização do Reservatório Billings e da Usina
Henry Borden na produção de energia elétrica, problema que a todos
preocupa.
10.04.2004

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