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O filme “Um ato de esperança” nos traz reflexões sobre o direito à vida e sobre o

próprio corpo, como também sobre o impacto da religião na vida das pessoas,
principalmente, no que atine à doutrinação religiosa e a capacidade dos menores
decidirem os seus futuros.

Dentre os protagonistas, temos Fiona Maye (interpretada por Emma Thompson), uma
juíza da Alta Corte Britânica que se dedica completamente ao seu extenuante trabalho,
inclusive aos finais de semana. As poucas horas que lhe sobram são preenchidas com
música - piano- instrumento que ganhou do seu marido, que a ama, mas que reclama
de sua negligência à vida afetiva do casal.

Assim, já no início do filme, nos é apresentada a crise do casamento de Fiona Maye,


uma vez que seu marido Jack (Stanley Tucci), lhe confessa a vontade de viver uma
aventura amorosa, sem, todavia, romper o casamento. A juíza por sua vez, indignada
com a situação, dá início ao procedimento de seu divórcio.

Além de ter que lidar com o colapso de seu casamento, é submetido a seu julgamento,
um caso de grande repercussão midiática: o pedido de um hospital para realizar
transfusão de sangue forçada em um adolescente de 17 anos e 9 meses, diagnosticado
com leucemia, cuja devoção religiosa o faz recusar esse tratamento que poderia salvar
sua vida.

Adam Henry (interpretado por Fionn Whitehead) é testemunha de Jeová, religião na


qual os praticantes não aceitam receber sangue alheio no próprio corpo, por
acreditarem representar gravíssima ofensa ao Criador. Diante de ser menor de idade,
seus pais contestam o pedido de autorização judicial promovido pelo hospital para que
a transfusão seja feita à força, contra sua fé e de seus responsáveis legais.

Na sequência do filme, são expostos em juízo os argumentos dos dois lados. O


advogado do hospital pleiteia deferimento judicial do pedido de transfusão de sangue
forçada sob o entendimento de que atende melhor ao interesse do menor que,
embora já esteja por completar 18 anos, não teria maturidade suficiente para decidir
arriscar a sua vida, diante de ter crescido em um ambiente permeado por preceitos
religiosos fundamentalistas e retrógrados. A advogada dos pais de Adam Henry, por
seu turno, defendendo que a liberdade de tratamento é um direito fundamental,
busca justificar a recusa da transfusão sanguínea por meio da exposição de seus riscos
e apregoa que a interferência do Estado inglês no caso violaria gravemente o direito
fundamental à autonomia do indivíduo e que Adam Henry, dotado de inteligência e de
sanidade mental, apesar de menor, seria capaz de decidir sobre seu próprio
tratamento.

Após escutar a todos atentamente, antes de prolatar seu veredito, Fiona Maye decide
quebrar os protocolos e fazer uma visita à Adam Henry no hospital para saber se ele
entende sua situação e o que ele enfrentará se não for deferida a autorização judicial
de transfusão de sangue. Nessa ocasião, a juíza ouve com respeito suas opiniões
religiosas e acaba por se envolver emocionalmente a ponto de começar a opinar sobre
o que seria melhor para o menor. Além disso, em determinado momento de sua
visita, quando Adam Henry começa a dedilhar o violão que ele mantém perto de si, a
juíza começa a cantarolar um poema a respeito de como somos tolos quando jovens.

Prontamente, sem conseguir persuadir Adam Henry a aceitar a transfusão de sangue,


volta ao Tribunal e decide autorizar judicialmente esse procedimento com escorço no
Children’s Act, segundo o qual “o bem-estar da criança será prioridade para o
tribunal”. Prezando por “toda vida e amor que terá pela frente”, resolve protegê-lo da
decisão hostil de seus pais, de sua religião e de si mesmo, concluindo que sua vida vale
mais que sua dignidade.

Adam Henry, durante a transfusão de sangue autorizada por Fiona Maye, percebe a
alegria de seus pais com o procedimento que lhe garantiria viver e começa a
questionar as suas convicções religiosas impostas por eles. A clivagem com seus
valores torna-se o fator direcionador da trama: o ainda menor não consegue enxergar
uma vida sem a existência desses e, desse modo, encontra-se perdido, sem
direcionamentos externos, previamente impostos por seu culto, e internos para se
autodeterminar. Em um conflito emocional, encontra na juíza uma fonte de auxílio que
lhe garantiria um novo sentido para viver, em virtude de que fora ela que havia
salvado sua vida.

Sob o entendimento de que Fiona Maye teria iluminado com razão à sua vida,
apresentando-lhe um novo mundo, desenvolve admiração e fixação por ela,
procurando-a para exteriorizar seus novos anseios, questionamentos e frustrações.
Todavia, sob a percepção de que seria antiprofissional a permanência de
relacionamento com um de seus jurisdicionados, a juíza lhe impõe um afastamento,
sob a justificativa que seu processo já teria sido julgado. Desesperado, diante de tal
recusa, implora à juíza que receba seus escritos pelos quais externava suas divagações,
aflições e conflitos internos gerados pela transfusão de sangue. Sensibilizada pela
situação, Fiona Maye, atende seu pedido.

Fiona Maye, em razão de seu trabalho, viaja de trem para Newcastle onde proferirá
julgamentos de forma itinerante. No caminho, inicia a leitura dos escritos de Adam,
todavia não os termina.

Não satisfeito com a postura da juíza, Adam persegue-a até Newcastle em busca de
acolhimento. Nesse local, em meio a uma confraternização, Fiona Maye é
interrompida com a comunicação de que seu assistente, Nigel Pauling (interpretado
por Jason Watkins), insiste em vê-la. Quando vai ao seu encontro, a juíza é
surpreendida com a notícia de que o “o garoto do processo das Testemunhas de
Jeová” teria a seguido e, em virtude disso, Nigel o realocara na instalação em que
estavam presentes. Ao ser confrontado, Adam se desculpa, inicialmente, por tê-la
seguido, informa que teria brigado com seu pais e saído de casa. Em seguida, ele a
agradece por ter-lhe salvado e afirma ser uma nova pessoa, livre de suas tolas
convicções e anseios de ser martirizado por seu sacrifício em prol de sua fé. Ao mesmo
tempo confessa se sentir amedrontado ao pensar em perder sua fé, pois ao se afastar
dela poderia acabar rejeitando tudo. Prossegue relacionando as tentativas que tem
feito para fazer jus a um excerto da sentença que justifica a transfusão de sangue por
toda vida e amor que teria pela frente. Ao final, faz o pedido de morar com ela.
Transtornada com esse pedido, a juíza solicita ao seu assistente que providencie o
retorno de Adam Henry à casa de seus pais, o qual reluta em partir, bradando que ela
não teria o direito de sair de sua vida sem justificativa, ao questionar o procedimento
adotado pela juíza de se aproximar dele para tomar a sua decisão, quando a regra seria
o deferimento da transfusão sanguínea em razão de sua menoridade. Ademais, busca,
ainda, obter de Fiona Maye, uma resposta do porquê de seus pais serem coniventes
com seu sacrifício pela fé, embora não quisessem que morresse.

Informado pelo assistente de que o táxi que o deixaria na estação havia chegado, antes
de partir, Adam Henry surpreende Fiona Maye com um beijo na boca.

Após esse episódio, Adam Henry recusa acompanhar seus pais ao culto religioso e
dirige-se à Corte aguardando, em vão, a chegada da juíza.

Passado um tempo, em um concerto no qual Fiona Maye toca piano, é comunicada


pelo seu assistente da reincidência da leucemia em Adam Henry, o qual por recusar a
transfusão sanguínea está prestes a morrer. Durante o concerto, abalada com essa
notícia, exteriorizando sua preocupação, quebra a sequência das músicas e toca ao
final a música que havia cantado junto com Adam Henry em seu leito durante sua
oitiva prévia à prolação da sentença. Sem terminar a música, abandona o concerto e
de dirige ao hospital com o objetivo de convencer Adam Henry a receber a transfusão
sanguínea necessária para sua sobrevivência. Contudo, com 18 anos completos, o
jovem afirma que é a morte é a sua escolha.

Aos prantos, retorna ao seu apartamento e termina de ler os escritos do jovem, o qual
afirmava que iria se libertar de suas aflições caso sua doença voltasse. Nesse momento
é consolada por seu marido, que posteriormente a acompanha no funeral de Adam
Henry.

Mas toda intervenção estatal traz consigo a sua caraterística fundamental: a


imprevisibilidade de suas consequências.

Uma questão que paira ao se debruçar sobre o filme, já havia sido destacada por J.
M. Thomas, citado por Tereza Rodriguês Vieira ( 2003, p. 229): “Quem será
beneficiado, se a doença física do paciente dor curada mas sua vida espiritual com
Deus, no conceito dele, ficar comprometida, levando a uma vida sem sentido e talvez
pior do que a própria morte?

não há diferença entre a decisão de uma pessoa com 17 anos e 09 meses, daquela
que acaba de atingir maioridade. Sob o prisma legal, segundo o nosso ordenamento,
aquele que ainda não atingiu a maioridade está sob o pátrio poder, cabendo,
consquentemente, a decisão sobre a transfusão aos pais da criança.

A questão relacionada à recusa da transfusão sanguínea em menores, todavia, é uma


das mais polêmicas.

Asseveram as Testestmunhas de Jeová que a decisão do menor amadurecido deve ser


respeitada visto que compreende as implicações advindas do seu ato, por ser oriundo
de uma comunidade que respeita seus ditames ( Tereza Rodriguês Vieira, 2003, p.
230)

Segundo Kant a autonomia pertence a todo indivíduo, no estado de natureza e


também na sociedade, dando origem a teoria do menor maduro.

Segundo Luís Paulo Cotrim Guimarães ( 2007, p. 34 ) :


(Direito Civil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007).

A dignidade da pessoa humana prevista como um dos fundamentos republicanos na


Constituição Federal, trata-se de verdadeira cláusula geral de tutela da personalidade.
A partir da visão segundo a qual a dignidade humana tem em si, como conteúdo, as
aspirações existenciais, um médico não pode mais isolar o tratamento curativo da
pessoa e suas escolhas morais. Não se faz bem à saúde fisiológica/biológica fazendo
mal à saúde espiritual, emocional, moral, existencial.

Por isso que um tratamento não pode ser imposto à força. A proteção da integridade
física como direito da personalidade do art. 15 do Código Civil não possui outro
fundamento senão este. A questão não se reduz à escolha na autorização para a
intervenção sobre o corpo, porquanto a pessoa constitui-se não só dele (matéria), mas
de alma, sentimento, ideologias, etc.

Como salienta Cármen Lúcia Antunes Rocha (2004, p. 70), a dignidade humana é
fundamento para os demais direitos e estrutura para o Estado Democrático, ela vem
antes, é pressuposto, de tal modo que, na ponderação, a balança deverá sempre
pender em favor do direito fundamental que realize a dignidade humana em maior
medida.

(ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Vida digna: direito, ética e ciência IN ROCHA, Cármen
Lúcia Antunes(coord.). O direito à vida digna, Belo Horizonte: Fórum, 2004)

Desse modo, a dignidade humana deve ser entendida como um valor espiritual e
moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação
consciente e responsável da própria vida. Nesse sentido, Álvaro Villaça pondera que “a
autonomia e a liberdade integram a dignidade”, de modo que, para ele, a vida
assegurada na Constituição “é a vida com autonomia e liberdade” (AZEVEDO, 2012, p.
272).
AZEVEDO. Álvaro Villaça. Autonomia do paciente e direito de escolha de tratamento
médico sem transfusão de sangue IN AZEVEDO, Álvaro Villaça; LIGIERA, Wilson Ricardo
(coords.). Direitos do paciente, São Paulo: Saraiva, 2012.

Manoel Jorge Silva e Neto, ao tratar do tema: “ o problema não é de fácil solução, visto
que o adepto deste segmento religioso poderá se sentir tão vulnerado em porção
importantíssima de sua existência, como é o domínio religioso, que muito
provavelmente possa se converter num dos mais infelizes seres após a transfusão sem
seu consentimento”.

(SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.p. 115)

Segundo Dirley da Cunha Júnior, o direito à vida é o direito legítimo de defender a


própria existência e de existir com dignidade. CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito
Constitucional. Salvador: JusPodivm 2007, p.635.

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. (1) IMPETRAÇÃO COMO


SUCEDÂNEO RECURSAL, APRESENTADA DEPOIS DA INTERPOSIÇÃO DETODOS OS
RECURSOS CABÍVEIS. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) QUESTÕES DIVERSAS
DAQUELAS JÁ ASSENTADAS EM ARESP E RHC POR ESTA CORTE. PATENTE ILEGALIDADE.
RECONHECIMENTO. (3) LIBERDADE RELIGIOSA. ÂMBITO DE EXERCÍCIO. BIOÉTICA E
BIODIREITO: PRINCÍPIO DA AUTONOMIA. RELEVÂNCIA DO CONSENTIMENTO ATINENTE
À SITUAÇÃO DE RISCO DE VIDA DE ADOLESCENTE. DEVER MÉDICO DE INTERVENÇÃO.
ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECONHECIMENTO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em
prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e em louvor à lógica do
sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem depois de interpostos
todos os recursos cabíveis, no âmbito infraconstitucional, contra a pronúncia, após ter
sido aqui decidido o AResp interposto na mesma causa. Impetração com feições de
sucedâneo recursal inominado.
2. Não há ofensa ao quanto assentado por esta Corte, quando da apreciação de agravo
em recurso especial e em recurso em habeas corpus, na medida em que são trazidos a
debate aspectos distintos dos que outrora cuidados.
3. Na espécie, como já assinalado nos votos vencidos, proferidos na origem, em sede
de recurso em sentido estrito e embargos infringentes, tem-se como decisiva, para o
desate da responsabilização criminal, a aferição do relevo do consentimento dos
pacientes para o advento do resultado tido como delitivo. Em verdade, como
inexistem direitos absolutos em nossa ordem constitucional, de igual forma a
liberdade religiosa também se sujeita ao concerto axiológico, acomodando-se diante
das demais condicionantes valorativas. Desta maneira, no caso em foco, ter-se-ia que
aquilatar, a fim de bem se equacionar a expressão penal da conduta dos envolvidos,
em que medida teria impacto a manifestação de vontade, religiosamente inspirada,
dos pacientes. No juízo de ponderação, o peso dos bens jurídicos, de um lado, a vida e
o superior interesse do adolescente, que ainda não teria discernimento suficiente (ao
menos em termos legais) para deliberar sobre os rumos de seu tratamento médico,
sobrepairam sobre, de outro lado, a convicção religiosa dos pais, que teriam se
manifestado contrariamente à transfusão de sangue. Nesse panorama, tem-se como
inócua a negativa de concordância para a providência terapêutica, agigantando-se,
ademais, a omissão do hospital, que, entendendo que seria imperiosa a intervenção,
deveria, independentemente de qualquer posição dos pais, ter avançado pelo
tratamento que entendia ser o imprescindível para evitar a morte. Portanto, não há
falar em tipicidade da conduta dos pais que, tendo levado sua filha para o hospital,
mostrando que com ela se preocupavam, por convicção religiosa, não ofereceram
consentimento para transfusão de sangue – pois tal manifestação era indiferente para
os médicos, que, nesse cenário, tinham o dever de salvar a vida. Contudo, os médicos
do hospital, crendo que se tratava de

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