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Livro

As teorias sexuais na psicanálise

O que delas permanece na prátca atual

Autora: Silvia Bleichmar

Capítulo 11

Transexualismo e intergênero *
Quero começar com uma situação que se deu através de um e-mail enviado à revista
Actualidad Psicológica pela Red Transexual, no qual se expõe uma dissidência comigo com
relação ao meu texto publicado no nº 20 dessa revista. ¹ Acabo de saber que também se
publicou uma matéria da jornalista Maria Moreno, no suplemento “Las 12”, do jornal
Página/12, sobre essa controvérsia.
Respondi-lhes, também num e-mail, nos seguintes termos. O que eles questonam em
meu texto é uma frase na qual destaco a brutalidade médica de querer mudar o gênero de um
menino de 5 anos, fazê-lo feminino mediante cirurgia, porque é uma menina que nasce com
transtorno suprarrenal, possui um clitóris hiperdesenvolvido, com aparência de um pênis, e
então é criado como um guri. Aos 5 anos se propõem a fazer uma mudança de identdade. Eu
disse que é uma barbaridade fazer uma mudança de identdade nesse momento. Em uma
frase digo: “Em todo o caso, a cirurgia deveria ter sido feita no momento adequado”. A Red
Transexual me responde que a cirurgia, em si mesma, é um atentado aos direitos humanos,
que eles são contrários a toda cirurgia porque é uma mutlação e questonam minha posição.
Em minha resposta, peço-lhes que me enviem o material de maneira que, se
realmente me convenço das razões que eles sustentam, mudarei minha posição publicamente.
Se não for assim, abriremos um debate respeitoso e profundo sobre o tema. Esta é a minha
resposta à Red Transexual, que agrupa várias sociedades. Na realidade, agora me contam que
questonam dois pontos: um tem a haver com a cirurgia e, o outro, com que com parto da
existência de dois sexos e não de n possibilidades. Isso é questonado no texto. Vamos retomá-
lo em alguma das próximas reuniões deste seminário.
De qualquer maneira, vou ler atentamente os textos e, como tnha pensado, preparar
uma resposta fundamentada sobre cada uma de minhas posições no que diz respeito às
diferentes questões abertas neste caso. Na próxima reunião vou compartlhar com vocês e, em
todo caso, debatê-la. Sobre estas coisas, não há posições defnitvas. O que sim existe
claramente é um acordo sobre o respeito às minorias e os direitos civis dos que estão lutando
por isso. Porém, tenho a obrigação moral de não ser demagógica e de manter-me nas posições
que considero corretas. Nesse sentdo, não estou de acordo que um menino possa estar sem
defnição de sexo nos primeiros anos da vida. Acredito que a cultura tem que exercer algum
tpo de violência determinante da identdade, como sempre o faz. Até agora penso isso. Se
mudar de opinião, vou comunicar e a fundamentarei.
Hoje trouxe um caso de transexualismo, porque acabo de receber em consulta um
menino de 13 anos.² Precisamente, no que diz respeito a essa discussão pública que se gestou
nestes últmos dias, sobre se há dois ou n sexos, digo que há uma enorme diferença entre o
transexualismo e o intergênero, na medida em que o transexualismo, em minha opinião,
confrma que há dois sexos. O que quer nesse caso um homem é ser mulher, não diz que quer
“ser outra coisa”, senão que se localiza nessa categoria de duas possibilidades.
* Aula de 12 de julho de 2004.
1. S. Bleichmar, “A atribuição da identdade sexual e suas complexidades”, op. cit.
2. Este caso foi desenvolvido alguns anos depois por Silvia Bleichmar, no capítulo “Um pedido de
redesignação de sexo”, em seu livro Paradoxos da sexualidade masculina, op. cit., p.115.

O mais impressionante do transexualismo é a forma em que se adota os traços de


gênero que os setores mais avançados do feminismo muitas vezes questonam. Isto é
interessante no transexualismo: pega certos atributos de gênero como os traços que
representam toda a feminidade. Quero falar depois deste caso, diferente de tudo o que tem
que ver com intergênero ou com intersexo, que na realidade está dado no que se costumava
chamar antgamente “hermafroditsmo biológico”, quer dizer, alguém que possui
característcas de ambos sexos.

O peso da representação vai ser sempre maior


que o da biologia na atribuição do sexo.

Há pouco tempo me ligou uma advogada que tnha em suas mãos um caso de um
menino nascido com um quadro de intersexo, de hermafroditsmo, a proposta que fazia a
família era que queriam fazer uma apelação legal para que não se lhe defna o sexo, para que
ele o escolha no futuro. Não aceitei compartlhar esta defesa porque creio que a atribuição do
sexo é de ordem da cultura, não da ordem do sujeito, na medida em que não está
determinada somente pela biologia, senão por um conjunto de elementos que consttuem as
representações, e o peso que tem a representação vai ser sempre maior que o da biologia. É
necessário tomar as decisões adequadas para escolher o caminho menos cruel e que
obstaculize em menor grau o desenvolvimento da vida sexual futura.
Uma hiperplasia adrenal consiste simplesmente no desenvolvimento exagerado do
clitóris, não há caracteres sexuais intersexos, no caso desta menina, mas um interior de
mulher. Em minha opinião, se a cirurgia tvesse sido feita nos primeiros tempos da vida, já que
é uma cirurgia cruenta, na realidade teria resolvido uma questão secundária, pratcamente
estétca. Enquanto que, no caso em que queriam feminizar este menino, resultava uma
aberração, porque iam mudar sua identdade quando já estava consttuído masculinamente.
De maneira que havia que enfrentar o peso do irreversível de haver construído uma identdade
e não modifcá-la. Para mim, o exemplo mais cruel foi o de John/Joan,³m que as associações de
transexuais e de intersexo expõem como um modelo falido, de acordo com suas próprias
declarações. Trabalhei com muitos de vocês o caso John/Joan e faz pouco tempo falamos de
seu suicídio, porque é muito difcil a redesignação de gênero uma vez que se consttui a
identdade. Parece que isto está claro para mim. Refro-me ao seminário que dei em 1999, que
se chamou “A sexualidade infantl: de Hans a John/Joan”, cujo ttulo mereceu um
esclarecimento. Em geral, Hans4 é conhecido por todo o mundo: tnha fobia a cavalos, e um
Édipo bem armado, era um menino neurótco e, segundo a últma colocação que dá
Roudinesco em seu dicionário 5era heterossexual e não homossexual, como se pensou por
muito tempo. Era um rapaz, músico e heterossexual, de maneira que era um neurótco
bastante consequente.
Não é o caso de John/Joan, um dos primeiros casos de redesignação de sexo que se
produziu nos EUA nos anos sessenta. Se alguém quiser ler sobre ele, lamentavelmente a única
biografa que temos em espanhol é da revista Rolling Stone. 6 É um texto de John Colapinto,
publicado em dezembro de 1998. Esse texto obteve o Natonal Magaiine Award, prêmio de
jornalismo da Universidade de Columbia. Então não é qualquer artgo, é um texto de alta
envergadura, em que se estuda o destno desse menino canadense nascido em 22 de agosto
de 1965 como Bruce Reimer. Foi submetdo a uma redesignação sexual e criado como mulher
depois de ter o pênis acidentalmente destruído, aos dezoito meses, durante uma circuncisão
indicada por uma fmose diagnostcada aos seis meses.
3. Ver J.Colapinto, “A verdadeira história de John-Joan”, Rolling Stone, dezembro, 1998. 4. S.
Freud, Análise da fobia de um menino de cinco anos, op. cit.
5. E. Roudinesco e M. Plon, op. cit.
6. J. Colapinto

Tinha um irmão gêmeo, Brian, que cresceu como homem, também passou por uma
operação de circuncisão devido a uma fmose. No caso de Bruce, ao contrário, supôs-se que
era mais fácil criar uma vagina para ele do que reconstruir um pênis, transformaram-no em
mulher cirurgicamente, pensando que poderia se desenvolver melhor assim como mulher do
que como homem, em virtude da defciência sexual. Pratcaram-lhe uma orquiectomia, quer
dizer, extrparam os testculos. Foi criado como Brenda e recebeu tratamento psicológico.
O interesse cientfco neste caso era grande, dado que, ao ser gêmeo de outro menino,
ambos criados no mesmo entorno familiar, a única diferença em sua formação era a
socialização. Tratava-se da primeira redesignação e reconstrução de uma criança do sexo
masculino. O caso foi difundido pela medicina, com os pseudônimos de John/Joan, por John
Money, seu cirurgião e terapeuta, como um processo exitoso, que provava que a identdade
de gênero se aprendia, o que justfcava as cirurgias de redesignação sexual. Administraram
estrogênios ao menino para desenvolver os seios durante a adolescência. Não obstante, David
sofria muito. Aos 15 anos teve uma forte depressão e dessa forma pôde deter suas visitas
médicas, ameaçando os pais – que se suicidaria – se contnuavam forçando a seguir aqueles
tratamentos. Os pais lhe contaram a verdade de sua história e voltou a assumir sua identdade
masculina adotando agora o nome de David. Brian, seu irmão, padeceu vários transtornos
mentais diagnostcados como esquizofrenia.
Em 1977, David iniciou um tratamento para reverter a redesignação sexual com
injeções com injeções de testosterona, uma dupla mastectomia e uma operação de faloplasta.
Seu caso ganhou o público internacional quando em 1997 contou sua história a Milton
Diamond, um sexólogo que constatou que nunca havia se identfcado como mulher, e o
incentvou a publicá-la para evitar que estes atos seguissem ocorrendo. Assim,
a versão de David contada a John Colapinto saiu publicada na Rolling Stone e no livro Como a
natureia o fei: o menino que foi criado como menina. 7 David recebe direitos de autor que o
jornalista dividiu com ele, o que lhe deu certa segurança fnanceira, mas não solucionou seus
problemas. Além da difcil relação com seus pais, teve que enfrentar a morte de seu irmão
gêmeo por overdose de antdepressivos, em 2002. Depois o desemprego e a separação de sua
esposa Jane. Em maio de 2004 se suicidou com um tro na cabeça, no interior de seu carro.

Relato de um caso clínico de


transexualismo

O caso que gostaria de relatar me parece absolutamente extraordinário de todo ponto


de vista, inclusive, a partr da pureza como se apresenta, o que poderia ser chamado um
transtorno de gênero ou de identdade sexual, é um caso de transexualismo num menino de
13 anos, a ponto de fazer 14. Pareceu-me tão importante dividi-lo com vocês que decidi seguir
outro dia com o assunto que estávamos trabalhando e comentar isto. Tem as seguintes
característcas: me ligam da província há três semanas, e me diz uma senhora que tem um
garoto de 13 anos com uma depressão muito severa, que é um menino que se considera
mulher, que está em tratamento há vários anos e que agora pôde formular com clareza que,
na realidade, que sempre sentu que seu corpo é um erro. Sublinho isto porque muitas vezes
se cogita que é um clichê do transexualismo dizer que é um erro da natureza. Na realidade, o
interessante é que isto foi pensado por um menino, não porque circula na cultura senão como
uma resposta que ele deu diante do que considera sua identdade feminina. A mãe me diz que
já consultaram um advogado e inclusive estão dispostos a realizar tudo o que for necessário, se
isso evita que se suicide ou que lhe faça mais feliz. No que diz respeito ao suicídio, isto se deve
porque, há um tempo atrás, estava muito deprimido, ou deprimida – agora vou explicar
porque me custa tanto nominá-lo ou nominá-la – e tveram medo de que se suicidasse.
7. J. Colapinto, As nature made him: a boy who was raised as a girl, Nova Iorque, Harper Collins, 2000.

Depois, na entrevista, este garoto ou garota me conta que pegou uns comprimidos,
partu-os e os tomou.
Vou esclarecer o que está acontecendo. Quando abro a porta para recebê-lo, na
realidade vejo uma garota. Está vestda com um jeans, uma jaqueta, sua face é feminina, tem
as sobrancelhas ajeitadas, o cabelinho, o olhar é de uma mulher, os modos são de uma
mulher. A tal ponto que no meu consultório tenho difculdade de chamá-lo pelo nome
masculino. E não sei como mencioná-lo, se ele ou ela. Isto é muito interessante, porque se
denomina a si mesmo “ele”, até agora. Não se considera “ela”. Fala de si mesmo com seu
nome masculino e com sua identdade de gênero, no sentdo gramatcal, no masculino. Porém,
é uma mulher.
Não permitu que vissem os seus genitais a partr dos 2 anos, nem sequer os pediatras.
Não façam cara de que não acreditam: desde os 2 anos e pico que não permitu. Já nessa idade
se senta e brincava com mulheres. Calculo que foi aos três, porque aí nasce uma irmãzinha e,
de alguma forma, marca de forma clara que o atributo masculino o erradica de ser mulher.
Porque razão não permite que olhem seus genitais – depois conversei com ele – é que isto
signifca que outro veja algo que para ele parece uma barbaridade ter em seu corpo. Pergunto-
lhe como se sente quando vai urinar, por exemplo, e se pode agarrar seu pênis sem
difculdade. Diz que sim, que não tem problema em fazer ele mesmo, em ver-se, mas não
suporta que outros o vejam. Observem que interessante a função do olhar nesta sensação de
desmentda que ele teria com relação a sua feminidade se é visto por um terceiro. Vale
apontar que o olhar do outro sobre seus genitais marcaria como uma desttuição de sua
convicção a respeito de sua feminidade. Por
que está tão mal neste momento? Antes de vê-lo penso que este menino está em
desenvolvimento hormonal masculino, quer dizer que o corpo está se transformando num
corpo masculino estranho. Os genitais convivem com ele desde o nascimento, mas toda esta
masculinização é aterradora para ele, que vem lutando para se converter em mulher há tantos
anos. Já quando era pequeno gostava de estar com as meninas, brincar de boneca e, inclusive,
fez boas relações com outras meninas. Tem conseguido manejar bem os vínculos, de forma
que tem algumas amigas com as quais, como diz: “falamos das coisas que falam todas as
meninas: de meninos, do que nos preocupa, do futuro”. E diz que tem uma amiga que supõe
que é lésbica ou transexual. Ela não sabe ainda.
A conversa que se desenvolve com ele/ela é muito importante, porque tem uma
inteligência notável e uma enorme lucidez. Então, depois que entraram em contato com um
médico cirurgião da cidade de La Plata, que realiza este tpo de intervenção, fzeram contato
com um sexólogo e com um analista. Na realidade está fazendo tratamento com um analista
que, em minha opinião, está encaminhando muito bem, porque por isso pôde dizer aos pais o
que estava passando com ele, e pôde chegar à conclusão sobre o que está acontecendo. Na
entrevista, este analista descreve o menino/menina como “alguém superfcial”. Impressiona a
descrição: “É alguém que é pura imagem, mas é inconsistente”. Esta pessoa, o terapeuta, diz
aos pais que seu transexualismo ou identdade feminina é uma defesa contra a
homossexualidade (olhem que erro, desses clássicos, porque na realidade não o inventou o
analista. Esta ideia está na teoria clássica). Então no tratamento poderia se trabalhar sobre a
homossexualidade e modifcar isto que vem acontecendo com o menino. Trato de averiguar
várias coisas. Em primeiro lugar, ver se há risco de descompensação psicótca. Primeiramente,
é isso que me interessa. Observem que resposta me dá. Pergunto-lhe como se sente quando
se vê no espelho, e me responde algo extraordinário: Eu não me vejo homem nem mulher
quando me vejo no espelho, me vejo eu”. Isto erradica a possibilidade de que se trate de uma
esquizofrenia, se dão conta? Se olha porque está se procurando em suas feições femininas,
mas não porque esteja despersonalizado.
A ansiedade que o atravessa neste momento é muito intensa, e tem que esperar
quatro, cinco ou seis anos, para começar um tratamento hormonal. Primeiro, parto da ideia de
que isto é irreversível. Digamos que a identdade se consttuiu, como toda identdade, de
maneira ortopédica, ainda que aqui, por razões históricas, se consttuiu sob um modo
feminino. Os pais são gente esplêndida, realmente, com sua patologia, eles dizem: “Somos
uma porcaria de pais. Estvemos bem loucos e mesmo que a gente o queira tanto, não
pudemos evitar que sofresse”. É extraordinário o que dizem, porque reconhecem seus
próprios preconceitos. É verdade, têm sua própria patologia, e durante os primeiros anos de
vida desse menino estveram tão enroscados em suas próprias coisas que há uma solidão
muito grande, primária, nele. Pelo que, de alguma forma a identdade se consttui como um
desejo de engolfamento num corpo feminino falido. Depois, além disso, existem as más ações
das empregadas doméstcas. Por exemplo, havia uma empregada que, quando tnha um ano e
pico, o deixava trancado e ia com a outra criança visitar a família. De modo que esse menino
fcava sozinho, horas, às vezes. Tempos depois os pais fcaram sabendo. Enfm, entre as
difculdades desses pais e as más escolhas de ajuda doméstca, produziram-se traumatsmos
bastante severos.
Porém uma vez que isto se produziu, esta identdade é garanta de estabilidade
psíquica. Ninguém pode pensar que haja uma necessidade de fazê-lo passar por uma psicose.
Além disso, expliquei aos pais: “Nem vocês, nem eu, nem ninguém pode aceitar que lhe
coloquem em risco a identdade quando se estabiliza”, como uma forma de evitar,
precisamente, riscos maiores.
Tive com ele um diálogo muito interessante. Disse-lhe: “Você não escolheu isto, se deu
assim”, e ele me respondeu uma coisa extraordinária: “Claro, está em minha natureza”. Ao
que respondi: “É certo, porque a natureza humana não é a biologia. A natureza humana é tudo
aquilo que a gente se representa com relação ao que gente é”. Nestes dois dias tenho estado
totalmente submersa neste caso, que me produziu não só um interesse teórico senão uma
enorme comoção humana pelo nível de sofrimento que está padecendo.
Os pais fazem um grande esforço. Em determinado momento eu lhe pergunto se
pensou em algum nome para si. E me diz: “Bom, sim, mas na realidade eu gostaria que eles me
pusessem, porque senão seria artfcial. Porque se eu mudo de identdade, quero nascer de
novo e que o nome venha dos pais”. É extraordinário o que está dizendo: coloca que não quer
gestar-se e sim ser nominado simbolicamente sob a identdade que se consttuiu.
Questões referentes à psicopatologia e que nos preocupam: eu digo aos pais que não
estou de acordo em dar ansiolítcos a ele e sugiro que vá a um psiquiatra conhecido e de
minha inteira confança. Ontem mesmo o viu, porque me preocupa o seguinte: se bem não há
risco de uma psicose no sentdo estrutural, do ponto de vista que está organizado, há este
estranhamento com o corpo, o fato de que tem que esperar vários anos enquanto o corpo se
masculiniza, o fato de que não seja possível começar as ações hormonais para evitar a
masculinização, é algo que volta a partr do real e o enlouquece. Os picos de angústa são
excessivos. Minha ideia é que possivelmente tenha que tomar um antpsicótco, mas não
porque seja uma psicose, não sei se está claro, senão porque está submetdo a um processo
enlouquecedor que tem de se evitar para não o invadir em excesso, e não se descompense.
Conversei com um colega sobre isso, e nos colocamos em acordo, parece que ele compartlha
a ideia e mantém algum medicamento antdepressivo, porém inclui um antpsicótco suave
com esta ideia.
Outra coisa interessante é que ele conta sua tentatva de homicídio de um modo
histérico. Em sua personalidade, o que aparece como dominante, hoje, são os traços das
histerias femininas, mas “exageradamente histéricas”. A tal ponto que uma das coisas que me
comenta é seu desejo de operar o nariz, porque é muito “muito masculina” – não é tanto
assim, tenho amigas com narizes menos femininos que não pensam em se operar -, respondo-
lhe que tem muitas mulheres que possuem feições mais masculinas.

Porém, o que me interessa é o seguinte: aí começa a plasmar um ideal feminino de


perfeição que, justamente, é necessário deslindar de sua angústa de masculinidade. Não é
somente porque o nariz o masculiniza, mas sim porque vai em busca de uma imagem feminina
perfeita. Então eu lhe digo: “Há um aspecto que tem a ver com teu desejo de ser mulher, e
com teu direito a sê-lo, mas há outro aspecto que se vincula com tua neurose, com tua
“loucurinha”, e com uma ideia de perfeição feminina, porque mulheres como você as coloca
não existem, nem as modelos, porque depois de uns anos fcam enrugadas e a bunda cai, igual
a qualquer ser humano. De maneira que esta imagem perfeita que você arma é uma imagem
fugaz. O que me preocupa é que se começar a fazer cirurgias, não vai parar mais”. Porque
pode passar de uma cirurgia a outra e isto tem que ser trabalhado não na ordem da
transexualidade, mas sim da histeria narcisista, em minha opinião. Mesmo que se ligue ao
problema da transexualidade. l
Trouxe tudo isso pelo seguinte: vai seguir seu tratamento na cidade em que vive. É
claro, antes de vê-lo, entrei em contato com o terapeuta que o trata. A consulta foi para que
eu determine se estou disposta a colaborar numa fundamentação, se vão começar ações
legais, no que tange aos direitos próprios, e os riscos que implicaria psiquicamente o
prolongamento ou postergação das ações que parem a virilização. Hoje seria inviável propor
uma cirurgia, isto está claro, porque não tem a idade correspondente, mas sim evitar uma
masculinização que está enlouquecendo-o. Neste sentdo pode se fundamentar a possibilidade
de antecipar ações médicas farmacológicas. Claro, com a convicção de que há algo de
irredutvel neste transexualismo, que implica uma renúncia ao sexo biológico de origem e uma
transformação de acordo com a assunção simbólica que foi se produzindo e no modo em que
se organiza seu desejo.
Ele me disse uma coisa notável: “Tenho muita sorte de ter os pais que tenho. Porque
muita gente como eu tem que se prosttuir para conseguir o dinheiro para fazer os
tratamentos. E eu, com os pais que tenho, e o apoio deles, posso fazer tudo isto, até ver você
inclusive, sem ter que fazer coisas que me ferem”. É notável o que está dizendo.
O que me preocupa neste menino, como disse aos pais e também a ele, é que a
operação não vai lhe garantr essa fantasia de feminização que na realidade é uma imagem de
perfeição absoluta, paliatva da angústa de desestruração.

Intervenção: Quero comentar que num artgo que escreveu Irene Meler sobre
transexualismo, contestado por um cientsta transexual argentno que vive nos Estados Unidos
e que agora virá para cá, que explicava que as primeiras gerações de transexuais têm esta ideia
de perfeição em geral quanto à feminidade. Não à masculinidade. Quer dizer, ser “a mulher
perfeita”, que não está presente nas gerações posteriores.

A que se refere com “as gerações posteriores”?

Intervenção: Parece que há vinte ou trinta anos de estudos cientfcos sobre


transexualismo que não chegaram à Argentna. E há cientstas que conhecemos, por exemplo
este que acabo de mencionar. Sobre as primeiras gerações, por exemplo, há quinze anos,
Mariela Muñoz, em nosso país, era uma mulher de setores carentes mas era a “mãe ideal”: sua
maternidade a glorifcava de tal forma que era desculpável sua situação de transexualidade.
Por essa mesma época, vi um programa de televisão que se chamava “O cachorro verde” 9, cujo
apresentador havia entrevistado uma quantdade de mulheres de setores da classe média e
alta, na Espanha, o público, os espectadores, ignoravam se eram travests ou transexuais, não
se sabia e não era importante. Eram mulheres, no absoluto sentdo do termo, muitas delas
com adoções – não sei de que maneira foram realizadas – e casadas.
8. Refere-se ao texto publicado em 8 de junho de 2004 na seção de Psicologia do jornal Página/12, de
Irene Meler, chamado “Houve um menino homem que morreu no parto”.
9. “El perro verde” programa da TV espanhola de 1988 reproduzido na Argentna no mesmo ano.

Ou seja, que se conservavam ou não os genitais masculinos, coisas das quais nós, os
televidentes, ignorávamos, além disso, não se questonava sobre isso. Parece que há gerações
de transexuais que escolhem os genitais com os quais nasceram. Esta é uma.
Há 20 anos veio ao país o cirurgião argentno radicado nos EUA, chamado Roberto
Granato, que fazia operações de transexualismo de homem à mulher. Essas operações
consistam primeiro num tratamento psiquiátrico e hormonal de pelo menos dois anos de
duração, para que diferenciasse os supostos psicótcos que estudavam as respostas que devia
dar um transexual, e que depois eram emasculados. Então eram submetdos, ainda, com
tratamentos sumamente estritos, até que depois eram feitas as operações, e estas pessoas
mudavam de Estado e trocavam a documentação.

Não pode se psicanalisar tratando de modifcar a


homossexualidade de alguém que a tem assumida.

Esta é a ideia deste menino. Uma mudança de lugar geográfco, uma mudança no
documento de identdade. Aqui há uma nítda defnição feminina, produzida ao longo de toda
a vida, com uma identdade tão sólida. A gente pode tentar pensar o que vem a suplantar esta
identdade quando se consttui. Porém uma vez que se consttui, já tem este caráter e é
defnitvo. Aqui surge o debate com a teoria pendular psicanalítca, no sentdo de acreditar que
se pode voltar ao ponto de partda com a análise. Não, ao ponto de partda com a análise não
se volta. A gente vai colhendo o que o sujeito foi construindo, ainda quando os fantasmas
primários possam estar inscritos no inconsciente. De forma que a ideia de desfazer o que já se
construiu é absurda.
Esta foi uma das maiores barbaridades em toda a problemátca da sexualidade
na psicanálise, incluída certa ideia de modifcação da homossexualidade. Que além de ser
incorreto do ponto de vista ideológico – não é nosso assunto – era uma barbaridade do ponto
de vista teórico e clínico, tendo em vista que as pessoas não vinham se tratar porque eram
homossexuais, senão porque tnham problemas de relacionamento como qualquer
heterossexual, ou problemas de trabalho ou porque sofriam maus-tratos sociais ou eram
outras coisas. Isto também dizia Freud, que não pode se trabalhar tentando modifcar a
homossexualidade de alguém que a tem assumida.
Como psicanalista, já disse muitas vezes, trabalho com os efeitos do impacto tópico da
cultura e da norma. E não posso propor hoje que é necessário submeter uma criança recém-
nascida, por exemplo, a brigar na cultura para que se reconheça que existe algo mais que dois
sexos. A cultura está armada deste modo. Em todo caso, a gente pode desenvolver debates
teóricos. Mas quando se pensa no sujeito, tem que levar em conta os riscos que vai enfrentar e
no que evitaria perturbações maiores para ele. Em primeiro lugar, penso que a gente não
defne o sexo. Em segundo lugar, não aceitaria que uma criança fque indefnida durante vários
anos. Creio que a cultura tem a obrigação de defnir. Pode não defnir a operação, mas tem
que defnir o sexo de partda, e depois se verá como o sujeito se maneja com isso. Porém,
acredito que nós não podemos, de maneira nenhuma, nos sugerir que se converta o sujeito no
baluarte de uma confrontação ideológica, senão que nossa função é trabalhar, precisamente,
com os efeitos.
No entanto, sabemos que partcipamos da confrontação ideológica. Quando digo que
este menino tem direito a ser mulher, estou partndo, por um lado, de uma série de premissas
teóricas. Não acredito que a biologia determine a representação sexual de ninguém. Penso
que a sexualidade de cada um, do ponto de vista de gênero, numa primeira instância, é
insttuinte/insttuído. Em segundo lugar, que a escolha do objeto sexual é uma complexa
artculação entre identdade e desejo. Artculação ou confrontação. De maneira nenhuma isso
pode se atalhar.

Em terceiro lugar, entendo perfeitamente os modos de debate com relação às feições


de gênero e à forma com a qual, a partr do feminismo, se discutu a não assunção dos
mandados que a sociedade patriarcal propõe, mas não estaria em mim sugerir à alguém que
sua feminidade está defnida pelas feições de gênero que são obsoletas, como no caso desta
criança, que escolheu feições da feminidade de uma ortodoxia de gênero notável para o resto
das mulheres. É uma histeria, sonha em se casar, adotar – porque não está louco -. Pergunto-
lhe: “O que você imagina sobre o futuro?”. “Gostaria de me casar, adotar flhos”. Enfm, muito
sensata, como uma sensatez muito establishment, mas que indubitavelmente é dela.
Contudo, ao mesmo tempo quer estudar e tem uma sensação de estranheza.
Interessa-se pelas crianças índigo10 e lê uma saga, uma trilogia de uma criança extraterrestre
que não consegue encontrar um lugar para ele. 11 E que, sem dúvida, apresenta uma
personagem com a qual se identfca. Isto tem a ver com o que dizíamos com relação à
operação, que não garante que não haja suicídio depois. Por isso me interessa muito o
comportamento narcísico. Porque aqui aparece a procura de um ideal da completude que hoje
está localizado na organização da feminidade, isto quer dizer que não tenha que ser
respeitado, como tantas defesas que nós seres humanos armamos.
Vou ler um fragmento de uma carta que recebi de um de vocês, porque se relaciona
com isto. Diz:
E além do que o assunto do seminário deste ano me lembra um de vários anos
anteriores, é que eu trabalho no hospital com dois grupos de pacientes, um deles com
genitais ambíguos. A verdade é que estou vendo muitos deles com problemátcas
realmente impactantes, confitos étcos daqueles, até questões polítcas. São coisas
mais problemátcas, inclusive, que as de John/Joan.

Sim, não tenho dúvidas. Porque além do que no caso de John/Joan havia uma enorme
soberba na convicção daqueles que o trataram e o operaram, que não observaram o
problemátco quando mutlaram e submeteram a pobre criança a tantas cirurgias.
Um exemplo. Há algumas semanas estou vendo uma menina, criada como menina,
com nome de menina, mas genetcamente XY. Tem uma doença que se chama
“insensibilidade completa aos andrógenos”. Seus genitais não têm os receptores dos
andrógenos, por isso, ao nascer, seu pênis era um micro pênis. Nunca vai se
desenvolver, não vai ter caracteres sexuais secundários masculinos. Seu pêlo vai ser
feminino, não vai ter a voi grossa nem a musculatura de um homem, etc...

Este menino que eu vi mudou a voz, durante anos os pais não sabiam por que ele
falava de maneira estranha. E falava de forma estranha porque estava tentando desvirilizar sua
voz, de desmasculinizá-la. Tem uma voz muito baixinha, muito feminina, neste momento. E
outra coisa extraordinária que me diz é que ele sempre gostar de brincar com as meninas.
Quando teve que fazer papéis de homem na escola, ia atrás do menos masculino, o do avô,
não o do pai. É muito interessante esta imagem, menos sexuado, não menos masculino, não
necessariamente, mas sim menos sexuado. Contnuo:
Nem bem nasceu, em duas semanas, “lhe fieram uma vagina” cirurgicamente.
Designaram o sexo feminino para ele. Tudo isto em nosso hospital, há três anos, que é
a idade que hoje tem. Um médico da província, ao fcar sabendo do procedimento,
disse aos pais: vão cortar o pênis? Os endocrinólogos consideraram que este
comentário foi fatal para a cabeça dos pais e da menina. Consultam porque tem
condutas muito masculinas. Joga bola todo o tempo e bonequinhos tpo He-Man, dos
musculosos e com muitas armas, sempre com brigas. De resto, os pais não estão
preocupados.
10. A ideia das crianças índigo foi popularizada pelo livro “As crianças índigo: as novas crianças
chegaram”, escrito pelo médium Lee Carroll e sua esposa Jan Tober.
11. Trilogia que começou com Ami, o menino das estrelas (1986), seguido por Ami regressa (1987), e
fnaliza com Ami 3. Civiliiações internas (1197-1998), do escritor Enrique Barrios.

Porém, o que me chamou atenção é que eu, pessoalmente, não vi meninos de três
anos, dos gravemente perturbados, brincar exclusivamente com soldadinhos todo o
tempo, sem tocar outro brinquedo no consultório. Só brincava com soldadinhos que
tem pistola, não com outros. Não sei se seu brinquedo era masculino ou então se
perguntava alguma coisa sobre os que tnham pistolas. Não brincava com nada que
não tvesse pistola. Talvei o simbolismo seja evidente, mas enfm, está obcecada nas
brincadeiras com soldadinhos com pistolas. Aos meninos e meninas de três anos é
encantador jogar bola, mas se aquele que olha está preocupado com o brincar, irá lê-lo
a partr de sua preocupação.

Primeiro, é um caso muito complexo. Além disso, cromossomicamente é XY, ou seja


que estamos diante de uma questão muito complicada, porque lhe deram um sexo em
contradição com sua genétca cromossômica. Sem que o escolhesse.

Intervenção: Do ponto de vista hormonal, tem a testosterona nas nuvens. Os níveis de


testosterona são terrivelmente altos, mas como não possui receptores para esses hormônios,
é como se não tvesse testosterona. A pergunta é onde estão os receptores. Os grupos de
intersexo, especialmente as sociedades estadunidenses de intersexo, dizem que produz sim
efeitos no sistema nervoso central, como se efetvamente tvesse receptores à testosterona no
cérebro e diferenciam cérebro, um cérebro masculino e um cérebro feminino, uma coisa pelo
estlo. Essa é uma parte da discussão teórica que se produz com relação ao assunto.
Aqui temos um problema prévio: fez-se uma cirurgia para que fosse uma menina e se
sente como menino. O problema é a precocidade da cirurgia, é o que me questona a Red
Transexual. Tomou-se uma decisão diante de um défcit não de produção hormonal senão de
registro de testosterona.

O enigma das origens não coloca em risco os


elementos nucleares do eu, mas sim de sua
filiação.

Sigo com a carta. No que diz respeito ao que se propõe no brincar, é certo, chama
muito a atenção. Os guris de hoje não brincam todo o tempo com soldadinhos e armas. Isto
não exclui, pensando sobre as armas, que a pistola dê conta de que haja neste menino/menina
um superinvestmento dos atributos masculinos na medida em que aparece como cerceada
sua possibilidade. Diz:
Pensava partndo do lado do signifcante enigmátco. Não tem a menina,
supostamente, nenhuma informação sobre sua operação, sobre o assunto de sua
defnição médica sexual. As perguntas que aparecem me ecoam com as de adoção, me
perguntavam os médicos o que lhe diier, quando lhe diier, quem, como, onde. Eram ao
mesmo tempo relatvas à origem, eram censuradas. As mesmas perguntas que na
adoção: “Será mais prejudicial diier-lhe ou não?”. Nesse pé estamos.

É muito interessante a comparação pelo seguinte: De um lado, está a questão do


enigma das origens. Do outro, o enigma da identdade. O enigma das origens não colocam em
risco os elementos nucleares do eu senão de sua fliação. Ao colocar em risco os elementos da
fliação, fazem entrar em colapso, às vezes, os artculadores egóicos. Porém, alguém pode
perfeitamente sustentar-se no âmbito de uma adoção sem ter dúvidas com relação a sua
estrutura egóica. Não é este o caso. O que está em jogo aqui é a identdade mesma do sujeito.
Então, não se trata de “Onde provém?” e sim “O que é?”. Esta é a pergunta. A pergunta sobre
do que se é, é ontológica, tem a ver com qual espécie se pertence. Por isso, para esse
menino/menina que eu trazia antes, interessa-lhe o extraterreste, porque ainda não encontra
uma espécie de pertença. Por isso, tem esta amizade e se fascina com uma menina que é, por
sua vez, lesbiana ou transexual. É curioso, o que ele tem que ver com uma lésbica ou
transexual? Precisamente, sua sensação de entrar em discordância e não pertencimento.

Sigo com a carta:


Estamos nisso. As outras crianças tem mielomeningocele, uma doença que fai com que
muitos deles sejam defnidos como defcientes fsicos; não podem mover as pernas,
têm insensibilidade parcial ou completa dos membros inferiores, problemas de controle
esfncteriano. O que queria diier sobre isso, em função do que você comentou sobre os
defcientes, é que penso neles em termos, se aqui cabe, marxistas. São úteis os
conceitos marxistas muitas veies, não sei por que os deixamos de lados.

Porque vai passar um tempo até que se recuperem. Depois de uma derrota existem
palavras que são proibidas. Durante anos se proibiu mencionar Perón, e se dizia o “trano
prófugo”, vocês se lembram?
Alguém apenas é defnido como defciente em função da impossibilidade de se inserir
no sistema de produção ou de reprodução. Defciente é a rainha que não pode gerar
flhos, não importa se era uma idiota ou psicótca como Juana la Loca, da Espanha, ou
a esposa do rei de Mônaco, que não podia gerar e por isso se separaram. A mulher na
história não tnha lugar no sistema de produção, seu lugar era no de reprodução.
Assim se julgava sua capacidade ou sua incapacidade de produção. Quando as velhas
esquimós fcam desdentadas, não podem produiir no sistema de elaboração de peles,
mediante a dentção como instrumento. Assim são defcientes e é o momento de
morrer. Em nossa sociedade, o desdentado não é um defciente. Da mesma forma, se
eu não tenho no ocidente uma função que não afeta a capacidade de me inserir
plenamente ou quase plenamente no sistema de produção, não sou um defciente. Por
exemplo, se careço do sentdo do olfato, ou gustatvo ou do tato. Se o estado
psicológico de alguém o inibe de se inserir no trabalho, não será defciente, mas que
sim acontece se não puder trabalhar: Um impotente ou eunuco, se consegue apertar
parafusos ou faier contas, não será defciente. Se não puder pintar uma janela, aí sim
será. A defnição é social, não médica.

Dá-se à defciência não uma resolução nos limites de uma suposta totalização do corpo
biológico, senão nos limites, novamente, das potencialidades que a sociedade vai
instrumentando.

Intervenção: Quando você começou a ler a carta que recebeu, eu pensava que isto que
vai trazendo reabre o que se colocou no início, do encontro sobre o assunto de n
possibilidades ou as duas possibilidades. O que se colocou é que ao não poder ser um menino,
não lhe restou mais que ser uma menina. Neste caso, o que começa a aparecer, com esta
menina/menino que apresenta a carta, é que não é nenhuma menina nem um menino. Então
sim, digamos dessa forma, gera a obrigação de pensar quais são as outras possibilidade que se
abrem neste caso.

Totalmente de acordo.

Intervenção: Com relação ao assunto de John/Joan, eram gêmeos univitelinos


que foram submetdos a uma circuncisão. Na operação escapou o bisturi do cirurgião, cortou
uma parte do pênis e, a partr desse momento se decide – adequadamente – seguir esta linha,
transformar esse menino em fêmea. Com o passar dos anos, o gêmeo de John/Joan se suicida.
E John/Joan, que foi criado como menina, e que se supõe que a designação de gênero seria a
mais identtária, sobretudo se tratando da precocidade do recurso, feita tão cedo, com os anos
passa a ter relações tanto com homens como com mulheres e fnalmente também ele se
suicida. Ou seja, que além da questão da sexualidade, teria que ser investgado o que
acontecia psicologicamente com esses dois irmãozinhos.
Sim, tem mais coisas que quero falar para vocês. Em primeiro lugar, John/Joan não se
produz ao nascer, vai se produzir depois, acredito que com um ano e meio. De forma que
existe uma determinação de gênero que aí é abortada. Em segundo lugar, John/Joan decide
submeter-se a uma plástca de resttuição do pênis, já adulto, para poder formar uma família.
Ocorre que é ao contrário, a plástca não resolve o aspecto falido. Nesse caso, a masculinização
não resolve a questão. Por outro lado concordo, o ponto aqui é sobre qual estrutura e a partr
de qual determinação vai se propondo. No caso do menino de quem eu falava, o preocupante
é se, através de uma procura desesperada de um contnente engolfante feminino, uma vez
que o tenha, pode se produzir uma perda desta ilusão e uma tentatva de suicídio. Porque na
realidade a feminidade nele vem a coagular, de alguma forma, este desejo de um contnnete
que o englobe. É claro, não sabemos disso, mas em todo caso é necessário trabalhar nessa
direção. Isso não é um obstáculo para que tenha direito a procurar as formas de pôr em
concordância sua identdade com sua anatomia. São duas coisas diferentes. Ninguém diz que a
cirurgia vai evitar o suicídio, mas nada diz que no caso de que não é feita se permite voltar
para trás. O fato é há dois aspectos paralelos em jogo.

Intervenção: Claro, o caso John/Joan foi uma redesignação, não uma designação.
Parece-me que essa é uma pequena grande diferença. A dirigente do movimento intersexual,
Cheryl Chase,12 líder estadunidense deste movimento, é também um caso que se defne como
intersexual, mas em que também houve uma vacilação, uma mudança na designação nos
primeiros anos de vida. Com toda essa problemátca, acho muito impactante que quem trouxe
todo esse assunto foi John Money, um psicólogo sexólogo de raiz comportamentalista.
Considero que tudo isso carrega consigo o conceito de “caixa preta”, a ideia de que o
importante é só ver a conduta de gênero, como eles defnem o papel de gênero, sem importar
quais são os processos subjetvos. É neozelandês, e trabalha, consequentemente, com o
conceito de “caixa preta”, segundo o qual o importante é determinar as condutas que a pessoa
tem. E as implicâncias subjetvas do que estava passando não eram muito importantes,
digamos assim.

Totalmente de acordo. Há duas coisas que você colocando, muito importantes. Uma é
a diferença entre designação e redesignação, que tem a ver, precisamente, com o que é
fundante e o que poderia ser pensado, nos termos de Piera Aulagnier, como “violência
secundária”. Há uma violência primária, da qual falei, que tem um caráter necessário na
consttuição psíquica. Por isso o caso comentado por mim no artgo é o de uma hipertrofa
suprarrenal. Não é a mesma coisa que aqueles em que há muito mais ambiguidade. Nesses
casos de maior ambiguidade, o problema é o quão cruéis podem ser as cirurgias, então a gente
pode pensar em fazer uma designação, tolerar durante um período a ambiguidade sexual e
logo defnir. Porém não pensar que vai se defnir o sexo. O que vai se defnir, em todo o caso, é
expor a concordância entre a designação e a anatomia. São duas coisas diferentes.
O segundo ponto que me parece muito importante é como armar uma teoria que leva
em conta a subjetvidade. E que a subjetvidade, neste caso, não está determinada
diretamente pela biologia, como no caso que eu trouxe, de transexualismo muito puro, onde
não há absolutamente nada, nem anatômica nem hormonalmente. A tal ponto que todo o
esforço de feminização não teve como parar o desenvolvimento hormonal masculino.
Observem que é tão interessante isto porque temos, às vezes, uma ideia como a groddeckiana,
de que a mente pode tudo com o corpo. Então, um groddeckiano teria interpretado que na
realidade tem um desejo de masculinização inconsciente, por isso o corpo o transforma em
homem. Vão deixá-lo louco se lhe dizem isso.
12. Cheryl Chase, fundadora e dirigente da Intersexy Society of North America. Questona os critérios de
designação de sexo. Propõe postergar a cirurgia. Sua ideia é que a decisão sobre a identdade de gênero
deve ser tomada pela pessoa e não pelos pais ou um juiz. Também coloca que as operações partem de
erro conceitual e que procuram uma “normalização” impossível de se conseguir.

Na realidade, a anatomia ou a biologia podem seguir seu caminho enquanto o sujeito


faz esforços desesperados para amenizar os efeitos.
Nem a biologia nem apenas a conduta defnem isto. Por isso penso que é tão
complexo o caso que trouxe. Está muito claro de que se trata de um desejo de redesignação
que parte do sujeito, mesmo, com relação a sua identdade sexual. Ao mesmo tempo, a
patologia que foi se armando não está determinada somente pelo transtorno de identdade
sexual, porque quando vejo estes aspectos histéricos, estas modalidades, poderia pensar na
realidade de que se trata de transexualismo. Não, não é verdade. É um modelo da feminidade
que tem a ver com o narcisismo. E não podem se sobrepor. Em todo caso, é necessário ver
quais pontos de conexão têm. Mas se não tem, a gente termina interpretando tudo pelo lado
de uma impossibilidade do sujeito de se assumir de outra maneira que não seja a busca de
uma feminização. Isto não está correto. Isto poderia se produzir também numa mulher
histérica grave. Parece importante – volto ao assunto da adoção – que, assim como às vezes a
adoção ocupa um lugar que impede de ver a totalidade do funcionamento psíquico e dos
fantasmas e representações, porque tudo acaba se remetendo à adoção – quando não é isso o
que defne tudo o que acontece com o sujeito –, nesse caso se corre o risco de que tudo seja
atribuído ao transexualismo, quando há aspectos ou correntes da vida psíquica que começam
a funcionar sob aspectos neurótcos mais autônomos.

Intervenção: Muito interessante como se abriu o debate, e as colocações sobre


identdade de gênero. Eu pensava, enquanto você falava da violência primária e secundária,
que a dimensão do social, ou do discurso social, também tem diferentes instâncias a serem
pensadas. Porque um pai ou uma mãe inserido na cultura, e não de forma arbitrária, tem um
conjunto de signifcações sociais que lhe impõem certa dimensão da violência primária
inexorável, mas isto não é arbitrariedade. E há um corpo que defne, no caso do menino ou a
menina quando isto está claro, o limite dessa violência. Então, neste caso, me parece que o
discurso médico tem um lugar muito importante, que é o que traz um dos colegas, e acredito
que é muito interessante pensar no que traz a carta que foi lida, com relação ao lugar que
ocupam os profssionais, o discurso médico, ou certos discursos mais especializados aqui.
Como pergunta.

Justamente, em meu texto, que foi debatdo ou questonado, enfoco o nível de


autoritarismo e de arbitrariedade médica ao pretenderem fazer uma redesignação em um
menino que já se assumiu numa identdade masculina, a partr da descoberta de não ter um
pênis senão uma hiperplasia adrenal com desenvolvimento exagerado do clitóris. Não se viu
isto ao nascer. Criou-se numa comunidade indígena, chamava a atenção por urinar sentadinho,
agachado no lugar de fazer em pé como todos e, além disso, levaram-no para consultar porque
lhe irritava a zona genital. Claro, como não vai fcar irritada se na realidade era uma menina
que não se limpava nem se secava, fcava assada, pobrezinha. Biologicamente era uma
menina, mas assumido como menino. A brutalidade médica aqui é que pretendem fazer toda
essa mudança, inclusive sem consultar os pais, isso já gravíssimo. E estamos falando de
arbitrariedade médica diante das culturas indígenas ou do terceiro mundo, onde a disparidade
social e cultural possibilita qualquer tpo de selvageria. O assunto da carta é diferente, porque
nesse caso isto se dá muito num toma lá dá cá com os pais e com o meio. Além disso, é muito
mais complexo.
Agora, a intervenção do médico que diz: “Vão contar o pênis dele” ou, como em outro
caso em que diziam: “Quando cortaram seu pauzinho”, é uma das intervenções às quais Dolto
chamou formas de intervenção que podem ser simbolizantes ou iatrogênicas. Convém
destacar que a intervenção do especialista, a maneira de como se defne a situação, pode
gerar fantasmas irreversíveis, difceis de metabolizar. Poderíamos dizer “porque o psiquismo
está preparado”. É verdade. Porém, precipita-se a uma direção a partr da intervenção do
outro.

Não é que a gente escuta o que queria escutar, senão que isso precipitou como uma
coagulação em certa direção. De maneira que a forma com a qual o profssional intervém pode
abrir toda a simbolização ou gerar uma maior patologia. Acredito que quando este médico diz:
“Vão cortar o pênis dele”, está intervindo a partr de seu próprio imaginário. Isto é muito
interessante: está gerando um nível de angústa maior nos pais. Porque ele poderia dizer: “Não
sei se é correta esta operação, teríamos que analisar se a cirurgia é o mais adequado”. Essa é a
intervenção de um profssional. “Não sei se seria o momento oportuno, se é necessário”. Mas
quando alguém manifesta a outro: “Vão cortar seu pênis”, está manifestando que vão
emasculá-lo, que será castrado. Está dizendo que tem um flho macho que será uma menina.
Então essa intervenção é fundante com relação à identdade e no modo que fca inscrito nos
pais.

Intervenção: Não sei se vocês leram o editorial de “Las 12” da sexta passada, retoma
esta discussão seu artgo. Achei interessante o editorial de Maria Moreno, e ela tem você
como de uma corrente psicanalista à altura da discussão sobre as problemátcas das pessoas
intersexo neste momento.

Que alívio, que bom que você diz! Porque até agora só me baixaram lenha, que eu
pensei que iam me demolir.

Intervenção: Ao contrário. Pega o que eles dizem, o que você disse, faz uma análise e
coloca que o debate está encaminhado e bem. Uma das questões que propõem, e aqui faço a
pergunta, porque ainda não tve tempo de ler o livro de Roudinesco, é uma contraposição
entre sua postura e a de Roudinesco. Sei que você estava trabalhando, e eu gostaria de saber,
de acordo com o que você pensa, qual é sua diferença com Roudinesco.

Minha diferença com Roudinesco é, basicamente, sobre sua ideia: que a


bissexualidade é consttutva da família, o que poderia se dizer que a existência de dois sexos é
defnida pela artculação familiar13. Eu não estou de acordo com isso. Acredito que a relação
familiar está defnida por laços de fliação e laços de aliança. Fundamentalmente, por laços de
fliação. Os laços de aliança podem ser perfeitamente, no sentdo proposto por Lévi-Strauss 14,
não laços dados pela formação do casal e sim pela circulação. De forma que não compartlho
que seja inerente à consttuição da família a existência da artculação entre os dois sexos. Esse
seria o principal ponto com o qual eu não concordo. Vou desenvolvê-lo mais. Pensei que era
uma boa ocasião para apresentar todas minhas posições como tese, a partr deste debate.
Por isso eu dizia no começo que, como recebi a carta da Red Transexual, enviei um e-
mail para eles pedindo os materiais para retfcar minha posição ou levantar o nível do debate.
Porque parto da ideia de que estamos do mesmo lado na luta pelos direitos civis. Porém
também disse que não estou disposta a aceitar concessões demagógicas. Lembro-me de um
debate que tve quando saiu um artgo meu sobre a questão homossexual no Clarín,15 sobre o
direito à adoção dos homossexuais. Numa rádio da província fui convidada a falar e de repente
me vejo confrontada com alguém da comunidade gay que, de uma maneira brutal, me diz que
ele sente orgulho de ser homossexual. Disse-lhe: “Quero perguntar por que sente orgulho de
ser homossexual, eu não sinto orgulho por ser heterossexual. É algo que aconteceu, para t
também aconteceu. Entendo quando me diz que sente orgulho de ter assumido como
homossexual, que são duas coisas diferentes. Mas não é a mesma coisa que sentr orgulho por
ser homossexual. Não compartlho a ideia de sentr orgulho por ser homossexual, como eu não
sinto orgulho por ser heterossexual. Cada um tem a sexualidade que pode”.
13. Diálogo de J.Derrida com Élisabeth Roudinesco em Y mañana qué... Buenos Aires, Fondo de Cultura
Económica, 2003.
14. C.Lévi-Strauss, op. cit.
15. S.Bleichmar, “Las parejas homosexuales y el derecho a la adopción”, Clarín, 6 de enero de 1998.

De forma que eu não vou fazer concessões nisso de “orgulho gay”. Uma coisa é o
orgulho dos homossexuais, de seu direito a sair do armário e serem reconhecidos e aceitos. É
como orgulho de qualquer minoria: qual é o orgulho que você tem de ser parte dessa minoria?
Você tem o orgulho de se assumir. Porém, você é o gay escolhido, como o “povo escolhido”?
Não, aqui não tem “escolhidos”.
Não estou de acordo, e não estou disposta a fazer demagogia, mesmo que alguns
fquem indignados. Contudo, levar sim, a fundo, o debate com relação ao direito à sexualidade.
E não como escolha, isto é o que eu disse para esse menino no fm de semana. “Não é que
você escolheu. Você é isso, como se deu para você”. Acho que isto deve ser respeitado e
retomado. Dessa forma sim, é muito importante este debate aberto. É o primeiro debate que
não acontece com as pessoas que estão “do outro lado”. Por outro lado, acho muito bom,
porque geralmente as posições dos analistas são tão conservadoras que as comunidades nem
lhes respondem. É assim, não os consideram como interlocutores. São tão reacionários.
Lembram quando saiu uma matéria de um colega sobre Clinton, que comentei, no La Nación?
Falava de Clinton e Lewinsky, e dizia que não adiantava só confessar, era necessário o
arrependimento. Não pude acreditar naquilo. Inclusive pensei: “que Bispo escreveu isso?”.
Não, era um colega da insttuição psicanalítca e judeu, é o cúmulo. Ele dizia o seguinte: Está
bem que a família de Clinton tenha se mudado para suportar tudo o que ocorreu. Mas “por
que ele não tratou de corrigir semelhante conduta?” Não podia acreditar que um psicanalista
dissesse isso num jornal. Acho que esse tpo de coisa nos faz cair num descrédito.
Sinto um alívio quando contam aqui, de que me consideram um interlocutor válido,
porque eu também os considero assim. E acredito que o debate deve ser aprofundado. Estou
de acordo que em alguns casos a cirurgia é aberrante, mas não é o caso que conto no texto. Há
apenas um ponto que não fcou claro para mim, e é o seguinte: o que colocam na carta é que a
ablação pode produzir uma insensibilidade clitoriana, no caso de operar esta hiperplasia
suprarrenal. Não neste caso, mas dizem que pode ocorrer. Por isso, a pergunta que se faz é: o
que fazemos, uma mulher que tem difculdade com o gozar, ou uma mulher que não pode
encontrar um homem, que além das difculdades com as mulheres, para poder ter relações,
porque tem um obstáculo aí em forma de pênis, em cima da vagina? É muito difcil tomar uma
decisão. O que se escolhe?
Isto me faz lembrar o grande debate sobre as muçulmanas e o assunto da ablação do
clitóris que, por um lado, nos parece a todos uma aberração e, por outro lado, as mulheres
muçulmanas sustentam que, se não o fzerem, nunca vão ter um homem e, além disso, fcam
fora da cultura. É muito complexo defnir estas coisas.

Antes de terminar a reunião de hoje, podemos entrar na matéria de María Moreno, 16,
em “Las 12”, do jornal Página/12, que acabam de me entregar, para que vocês se posicionem:

SEM NOÇÃO (Sobre as tentatvas da medicina em regular as desordens


genitais, feminizando-as)

Um artgo da psicanalista Silvia Bleichmar publicado no nº 320 da Atualidade


Psicológica, em junho deste ano, disparou w polêmica difundida por e-mail e
assinada por Mauro Cabral, Ariel Rojman e Dawson Horwitz. No texto,
inttulado “A atribuição sexual e suas complexidades”, Bleichmar conta como
através de uma interconsulta conheceu o caso de Gabriel, com uma hiperplasia
suprarrenal congênita, que provoca um grande desenvolvimento do clitóris, ao
nascer foi-lhe designado o sexo masculino.
16. M. Moreno, “A mano Alzada (Sobre los intentos de la medicina para regular los desórdenes,
feminizándolos)”, em “Las 12”, jornal Página/12, 9 de julho de 200

Aos cinco anos, o que seus pais defnem com “uma dor em seu pauzinho” e o
fato de que urinava sentado geram uma visita ao hospital público, lá um
diagnóstco registra que tem útero, ovários e cromossomos femininos. Decide-
se por uma intervenção que resttua a feminidade, via cirurgia. Com uma
argumentação indiscutvel, Bleichmar desaconselha a intervenção porque, se
realizada, Gabriel perderia sua identdade “não só em termos sexuais, mas
também seu nome, sua linhagem, tudo o que o posiciona como sujeito no
mundo”. Se em “Atribuição sexual e suas complexidades” Bleichmar descarta a
intervenção desse Gabriel em cujo caso “não pode se corrigir à faca o que se
insttuiu de maneira simbólica”, já quase no fnal do texto surpreende:
“Suponhamos que se tvesse detectado a tempo no Gabriel esta hiperplasia
suprarrenal, de tal forma que a determinação de sua instalação na bipartção
masculino-feminino tvesse tdo outro destno, indubitavelmente, a cirurgia
deveria ter sido feita, no momento apropriado, para evitar transtornos de toda
ordem: tanto funcionais como psíquicos. Gabriel seria uma menina cujo clitóris
deveria ser reduzido e uma plástca resolveria, ao menos anatomicamente, a
coerência entre sua identdade e sua biologia”.

É claro que um clitóris não é um lábio leporino nem um problema no piloro e


que as operações afetam, como em todos os casos de intersexualidade, o
prazer sexual. Como também é claro que a étca da psicanálise não é a de
determinados grupos polítcos e que a dita disciplina se separou da prátca
médica, mas a prescrição de uma intervenção cirúrgica parece o retorno do
reprimido. A crítca ao artgo defne as intervenções reguladoras como
manipulações tecnológicas (biopolítcas?) que não fazem mais que reforçar os
estereótpos corporais do gênero que regulam a vida a partr do nascimento e
que a proposição para objetvar uma “coerência” genital não é mais que o
produto da regulação biomédica histórica da genitalidade. Afrmar, como faz
Bleichmar, o cada vez maior divórcio entre anatomia e destno e que o
adquirido ocorra, não sobre a base do inato senão antes, para terminar
sugerindo uma intervenção no momento adequado com o fm de diminuir a
distância entre a aparência de uns genitais, a verdade dos cromossomos e o
que dita o signifcante, parece contraditório.
Mauro Cabral, Ariel Rojman e Dawson Horwits apontam:
“Pareceria possível, segundo seu argumento, atar uma generização “correta”
através da intervenção cirúrgica feminizante sobre os genitais – sendo que
uma certa genitalidade nunca garantu nem a identdade de gênero nem a
sexualidade de ninguém”. A experiência e a palavra de pessoas intersexo
interrogam os pressupostos anatômicos do feminismo da diferença, as
limitadas fguras corporais onde se denuncia a intervenção do patriarcado –
violação, aborto, sexualidade genital – implicam sempre órgãos desenhados de
forma clara pela correção genétca. Ainda que as pessoas intersexo sejam
poucas. O fato de que as intervenções durante a infância coloque como
mulheres aos “falhos” dos dois sexos possíveis não é sufciente desafo para o
movimento feminista? Tanto na ausência de sensibilidade aos andrógenos
num indivíduo XY, a hiperplasia suprarrenal congênita em outro XX, como na
síndrome de Rokitansky, a salvação médica propõe feminizar através da
vaginoplasta e a clitoroplasta. Um doente só pode resultar em mulher.
Se bem a Bleichmar prescreve quase
explicitamente a intervenção médica, não se explica com relação as suas
implicâncias fora do campo psicanalítco. Porém, como seus correspondentes
explicam: “Diante de uma situação como a proposta por Bleichman existem e
se pratcam na atualidade opções terapêutcas não agressivas e centradas no
ou na paciente, para o caso narrado por Bleichmar, no diagnóstco da
hiperplasia suprarrenal congênita poderia bem ter seguido a identfcação
feminina da menina em questão, sem nenhuma necessidade de intervenção
cirúrgica. Tratar-se-ia de uma menina com um clitóris diferente em tamanho
ao de outras meninas, que deveria, junto a sua família, receber informação,
contenção e proteção adequadas. A decisão de realizar uma intervenção
cirúrgica deveria, então, ser da paciente, com pleno conhecimento de técnicas
e resultados cirúrgicos e em pleno gozo de
seus direitos a decidir livremente sobre seu corpo e sua sexualidade”.
Uma das maiores virtudes do artgo de Bleichmar é, sem levar em
conta seu rigor teórico, a de não ceder à sedução acrítca pelas chamadas
minorias sexuais que, além de abrirem um novo mercado terapêutco, parece
conduzir ao abandono da psicanálise. Por exemplo, Élizabeth Roudinesco, que
dá respaldo clínico aos direitos de gays e lésbicas para construírem família
legalmente, declara no mesmo número de Actualidade Psicológica: “Se
partmos do ponto de vista clínico, o transexualismo e o travestsmo sempre
foram considerados patologias. Sentr-se mulher quando se é biologicamente
homem ou vice-versa é um problema”. Depois de esclarecer que travests e
transexuais não se reconhecem em categorias psiquiátricas que os colocam do
lado da patologia, e de incluí-los no direito a não ser discriminados, situa ou
registra um “limite”. “Vamos ter associações de psicótcos ou de
esquizofrênicos que vão dizer que não querem ser considerados como
psicótcos ou esquizofrênicos porque recusam essa categorização”. Ao
contrário, a resposta polêmica e o possível diálogo aberto entre Silvia
Bleichmar com a comunidade intersexo, e suas escutas, parece mais fecundo
que o consenso imaginário das minorias sexuais com psicanalistas dispostos a
se fascinarem sem que escutem a complexidade das, cada vez mais visíveis,
constelações de desejo, antes de reenviá-las ao campo jurídico.

Como estão vendo, é uma maneira séria de encarar a questão. A gente se vê no


próximo encontro.

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