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Prezadas irmãs,

prezados irmãos, graça e paz!


Em sintonia com o Ano Bíblico da Família Entre as muitas referências da caminhada bí-
Paulina (2020-2021), a revista Vida Pastoral e o blica no Brasil, o mês de setembro ocupa lugar
Centro Bíblico Paulus oferecem aos seus leitores especial. É nesse mês que as comunidades se
esta edição com dupla finalidade: celebrar os 50 debruçam sobre um livro específico da Bíblia
anos da realização do Mês da Bíblia no Brasil para aprofundamento, estudos e oração, dando
e favorecer o estudo da carta aos Gálatas, texto razão da fé. Como é bom recordar os círculos
escolhido para o estudo bíblico deste ano. bíblicos, em outros tempos muito mais vivos nas
O Ano Bíblico da Família Paulina (con- comunidades eclesiais de base. Ainda hoje eles
gregações religiosas fundadas pelo Bem-aventu- perseveram. Quem sabe, porém, não seria o caso
rado Tiago Alberione), com o lema: “Para que de reacender a força desses pequenos grupos em
a Palavra do Senhor se espalhe rapidamente” torno da Palavra de Deus, usando sempre mais
(2Ts 3,1), tem em si a marca do programa de os meios atuais, por exemplo as “redes sociais”.
evangelização do apóstolo Paulo, o mensageiro O texto escolhido para o Mês da Bíblia
incansável da boa notícia, homem aberto às cul- deste ano, a carta aos Gálatas, é uma espécie
turas e ao diálogo. Ele se dirige à comunidade de manifesto da liberdade cristã. O professor
dos tessalonicenses para animá-los no seguimento Shigeyuki Nakanose e a professora Maria Antô-
de Jesus Cristo. Trata-se de uma Igreja jovem, nia Marques, em seu artigo, consideram a carta
dos primórdios da vida cristã, viva e firme, que, como o Evangelho de Jesus crucificado; destacam
porém, corria sério risco de se acomodar. Uma suas características principais, a força da escrita, a
das grandes preocupações da comunidade era teologia, a estrutura literária e os interlocutores
a parusia, ou a segunda vinda do Senhor. A má do apóstolo. O professor Joel Antônio Ferreira,
compreensão acerca da iminente volta de Jesus por sua vez, discorre sobre a carta com base no
gerou, em alguns membros da comunidade, a “hino batismal” (Gl 3,26-28), como chave de
perda do entusiasmo, por considerarem que não leitura para entender esse escrito paulino, seu
haveria mais sentido em fazer muita coisa na vida ardor bíblico e a unidade em Cristo, que tem
presente, já que tudo se findaria. O apóstolo pro- como fim a comunhão fraterna. Com o tema “A
cura prevenir a comunidade de que a expectativa, liberdade cristã e os conflitos nas comunidades”,
própria de quem espera o inesperado, deveria se o professor Rafael Rodrigues da Silva faz uma
transformar em esperança serena e perseverante. leitura de Gálatas à luz das dificuldades, enfati-
A pressa necessária seria aquela de viver o mo- zando o papel do apóstolo Paulo na condução e
mento oportuno, o hoje, na vivência e anúncio da orientação da comunidade para esta não perder
Boa notícia. de vista o verdadeiro Evangelho e não se deixar
Partindo desse apelo do tema do Ano Bíblico enredar pelas armadilhas do “outro Evangelho”,
da Família Paulina, Ir. Maria Aparecida Barboza aquele ainda preso à Lei. Além desse valioso
escreve sobre a história da caminhada bíblica conteúdo, temos os Roteiros Homiléticos, com
no Brasil e seus momentos marcantes, consi- a profunda colaboração do biblista Pe. Francisco
derando os 50 anos de realização do Mês da Cornélio Freire Rodrigues.
Bíblia, importante iniciativa da Igreja, com o Desejamos que este conteúdo seja inspiração
objetivo e o esforço permanentes de colocar para os agentes de pastoral e luz na caminhada
a Palavra de Deus nas mãos e no coração do bíblica de todo o povo de Deus.
povo brasileiro. De fato, a caminhada bíblica, Boa leitura!
especialmente iluminada pelo Concílio Vaticano
II, tem a missão de formar pessoas e animá-las Pe. Antonio Iraildo Alves de Brito, ssp
biblicamente. Editor

vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341 1


Sumário
DA PASTORAL BÍBLICA
À ANIMAÇÃO BÍBLICA DA PASTORAL:
50 ANOS DO MÊS DA BÍBLIA NO BRASIL ............................... 4
Revista bimestral para sacerdotes
e agentes de pastoral Maria Aparecida Barboza, icm
Ano 62 - No 341
setembro-outubro de 2021
O EVANGELHO DE JESUS CRISTO CRUCIFICADO:
ENTENDENDO A CARTA AOS GÁLATAS................................. 14
Shigeyuki Nakanose e Maria Antônia Marques
© PAULUS – 2021
Pia Sociedade de São Paulo O HINO BATISMAL Gl 3,2628:
Rua Francisco Cruz, 199 CHAVE PARA A LEITURA DA CARTA AOS GÁLATAS...... 22
04117-091 – São Paulo – SP
paulus.com.br Joel Antônio Ferreira
ISSN – 0507-7184

Jornalista responsável A LIBERDADE CRISTÃ E OS CONFLITOS NAS


Pe. Valdir José de Castro, ssp
COMUNIDADES ...................................................................................... 30
Direção editorial Rafael Rodrigues da Silva
Pe. Sílvio Ribas, ssp

Editor ROTEIROS HOMILÉTICOS ................................................................. 38


Pe. Antonio Iraildo Alves de Brito, ssp
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4 vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341
Maria Aparecida Barboza, icm*

DA PASTORAL BÍBLICA
À ANIMAÇÃO BÍBLICA
DA PASTORAL
50 ANOS DO MÊS DA BÍBLIA
NO BRASIL

O artigo discorre sobre a história da


caminhada bíblica no Brasil e seus
momentos marcantes. Num esforço
permanente na missão de formar
pessoas biblicamente animadas,
“a Igreja no Brasil, ciente dessa
compreensão, assumiu a animação
bíblica da vida e da pastoral como
urgência de sua ação evangelizadora,
por ver nela o caminho indispensável
para encontrar a pessoa e a
mensagem de Jesus Cristo”.
(CNBB, Doc. 97, n. 35)

*Ir. Maria Aparecida Barboza, conselheira geral da Animação Missionária na Congregação


das Irmãs do Imaculado Coração de Maria, mestra em Bíblia, especialista em Pedagogia
Catequética, membro do Grupo de Reflexão Bíblico-Catequética (Grebicat) da CNBB.
E-mail: barboza.icm@gmail.com

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“FALAR DA PASTORAL BÍBLICA E ANIMAÇÃO
BÍBLICA DA PASTORAL NESTE ESPAÇO FECUNDO
DA REVISTA VIDA PASTORAL É RECONHECER,
COM GRATIDÃO, O ESFORÇO DOS PAULINOS
NA PROMOÇÃO E DIFUSÃO DA BÍBLIA.”

INTRODUÇÃO país. A centralidade da Palavra de Deus im-


pulsiona a vida e o dinamismo da ação evan-
“O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos, gelizadora das “comunidades eclesiais missio-
para que estejais também em comunhão conosco. nárias”, assim intituladas pelos bispos em sua
E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, 57ª Assembleia Geral, em maio de 2019.
Jesus Cristo. E isto vos escrevemos para que nossa Graças ao Concílio Vaticano II, que con-
alegria seja completa.” (1Jo 1,3-4) clamou todos os pastores a um efetivo com-
promisso com a difusão da Bíblia, afirmando
Celebramos, em setembro de 2021, os 50 a necessidade do amplo acesso do povo de
anos do Mês da Bíblia. Motivo para olhar Deus ao texto bíblico (“o acesso às Sagradas
a caminhada feita, inserida no amplo con- Escrituras seja aberto amplamente aos fiéis”
texto de passagem da pastoral bíblica para a – DV 22), aos poucos a Bíblia foi entrando
animação bíblica da pastoral. Falar da pas- na vida do povo pela porta da experiência
toral bíblica e animação bíblica da pastoral pessoal e comunitária.
neste espaço fecundo da revista Vida Pastoral Num esforço permanente na missão de
é reconhecer, com gratidão, o esforço dos formar pessoas biblicamente animadas, “a
Paulinos na promoção e difusão da Bíblia, Igreja no Brasil, ciente dessa compreensão,
tanto por meio das traduções como das pu- assumiu a animação bíblica da vida e da
blicações. O ano de 2021 é consagrado pela pastoral como urgência de sua ação evangeli-
Família Paulina como o Ano da Palavra de zadora, por ver nela o caminho indispensável
Deus, com o seguinte intuito: “em cami- para encontrar a pessoa e a mensagem de
nhos com a Igreja, renovar-nos por meio Jesus Cristo” (CNBB, Doc. 97, n. 35).
da familiarização, estudo e leitura orante
das Escrituras, para viver da Palavra a fim 1. CENÁRIO DA ORIGEM DO
de que ela alcance a todos, especialmente MOVIMENTO BÍBLICO, DA PASTORAL
as periferias existenciais e do pensamento” BÍBLICA E DA ANIMAÇÃO BÍBLICA
(anúncio do Ano Bíblico da Família Paulina, DA PASTORAL
Roma, 26 de janeiro de 2020).
Ao retomar o processo da pastoral bíblica “Vós sois testemunhas disso.” (Lc 24,48)
que desencadeou a animação bíblica da vida
e da pastoral da Igreja no Brasil, muito nos Anterior à pastoral bíblica e à animação
alegra perceber que a redescoberta da Bíblia bíblica da pastoral no Brasil é o chamado
– Palavra de Deus e da vida –, bem como seu Movimento Bíblico. No início do século
uso constante por todas as Igrejas cristãs no XX, os papas dirigem a atenção para as novas
Brasil, tem sido um marco significativo no abordagens e perspectivas lançadas sobre a
crescimento da experiência da fé das comu- Bíblia. O papa Leão XIII cria, em 1902, a
nidades espalhadas pelas diversas regiões do Pontifícia Comissão Bíblica, e o papa Pio X,

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em 1909, o Instituto Bíblico. Para a Igreja trabalho pastoral da Igreja é a integração das
no Brasil, foi de grande importância a encí- Sagradas Escrituras na vida diária dos cristãos
clica Divino Afflante Spiritu (1943) do papa e confiou ao episcopado a responsabilidade
Pio XII, encorajando e estimulando novas de realizar esta tarefa (TERRA, 1998, p. 85).
leituras e abordagens das Escrituras.
Um marco histórico para a Igreja no 2. DEI VERBUM E O FRUTO DA
Brasil foi a realização do 1º Congresso Ca- PASTORAL BÍBLICA RUMO À
tólico Brasileiro, em 1900, o qual decretou ANIMAÇÃO BÍBLICA DA VIDA E DA
a promoção de nova versão da Bíblia, que PASTORAL DA IGREJA NO BRASIL
tivesse larga difusão entre os fiéis. Essa tare-
fa foi confiada aos frades franciscanos, que, “E a Palavra de Deus crescia. O número dos
em fevereiro de 1902, publicaram o “Santo discípulos multiplicava.” (At 6,7)
Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus,
traduzido em português segundo a tradução É inegável a grande riqueza e abertura de
Vulgata Latina” (RICHTMANN, 1996, p. 85). horizontes que a Constituição Dogmática
Contudo, “a origem de um apostolado Dei Verbum trouxe para o avanço da caminha-
bíblico organizado se deu em 1947, quando da bíblica, tanto no âmbito da exegese como
foi oficializada a fundação da Liga de Estudos no uso pastoral, catequético e litúrgico das
Bíblicos, por iniciativa dos professores de Sagradas Escrituras. A Igreja, povo de Deus,
Sagrada Escritura, ex-alunos do Pontifício foi convidada a devolver a Bíblia aos fiéis, fa-
Instituto Bíblico” (TERRA, 1987, p. 43-44). vorecendo e facilitando o estudo, as traduções
Outro fator significativo, na Igreja no Bra- e o diálogo ecumênico.A Bíblia é o livro que
sil, para o florescimento bíblico foi a implan- une todos os povos, etnias e crenças numa
tação do Plano de Emergência (1960-64) e o única linguagem: a linguagem da Palavra
Plano de Pastoral de Conjunto (1966-1970). que é amor, fraternidade e solidariedade.
Ambos marcaram a ação evangelizadora. No Na continuidade do Concílio, encontra-
Plano de Emergência, a dimensão bíblica mos as conferências da América Latina e do
estava expressa nos textos referentes à reno- Caribe, que também muito contribuíram para
vação paroquial e à renovação do ministério o processo da pastoral bíblica e da animação
sacerdotal, a saber: bíblica da pastoral.A 1ª Conferência, realizada
em 1955, no Rio de Janeiro, destaca a Bíblia
valorizar a pregação, tornando-a viva, na formação e recomenda que se intensifique o
simples, procurando encarnar a Palavra Movimento Bíblico; que haja edições popu-
de Deus na vida concreta da comunida- lares dos Livros Sagrados, cursos bíblicos por
de, de modo a levá-la a uma conversão, rádio e correspondência, Semanas Bíblicas e o
aprofundamento de vida, e promover e Dia Nacional da Bíblia (CELAM, 1955, n. 72).
incentivar o Movimento Bíblico. É ne- A 2ª Conferência, em Medellín (1968),
cessário que os paroquianos entrem em destaca a Bíblia como força renovadora da ação evan-
contato com a Palavra de Deus, que a gelizadora. Entre as recomendações pastorais,
conheçam, amem e vivam (CNBB, Doc. consta que “as comunidades devem basear-
76, 2009, n. 4). -se na Palavra de Deus”. Elas são os agentes
de apropriação da Bíblia (Med 8; 10; 15).
O incentivo para o uso da Bíblia encontra Na 3ª Conferência, em Puebla (1979), a
sua plena confirmação no Concílio Vaticano Bíblia aparece na ótica dos pobres: a temática
II. Este declarou que o objeto primário do principal é a evangelização no presente e no

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futuro da América Latina. Nas opções pasto- esforço pastoral em acentuar a Bíblia, Palavra
rais, destaca a Bíblia como fonte principal da de Deus, na vida e missão da Igreja. O Sínodo
catequese, a difusão da Bíblia, o apostolado convida toda a Igreja a um empenho pastoral
bíblico e a leitura bíblica contextualizada para ressaltar o ponto central da Palavra de
(PB 981-1001). Deus na vida eclesial, recomendando incre-
Já a 4ª Conferência, realizada em Santo mentar a pastoral bíblica não como justapo-
Domingo (1992), acentua a Bíblia como se- sição com outras pastorais, mas sim como
mentes do Verbo espalhadas nas culturas.As Sa- animação bíblica da pastoral (VD 73-74).
gradas Escrituras nutrem a vida dos fiéis, sen- A Igreja no Brasil, além de sua ampla
do “imprescindível que os agentes de pastoral participação em preparação ao Sínodo sobre
se aprofundem incansavelmente na Palavra a Palavra de Deus na vida e na missão da
de Deus, vivendo-a e transmitindo-a aos de- Igreja, por meio do estudo e síntese do texto
mais com fidelidade” (“Discurso inaugural Lineamenta, dedicou uma assembleia geral
do Santo Padre”). Adverte para uma pastoral com o tema central:“Discípulos e servidores
bíblica adequada, com critérios (SD 38). da Palavra de Deus e a missão da Igreja no
A grande novidade para a pastoral bíblica mundo”, com enfoque na animação bíblica
foi a 5ª Conferência, em Aparecida (2007). de toda a pastoral (CNBB, Doc. 97, 2012).
Destaca a Bíblia no processo formativo do dis- Desde então, em cada quadriênio, os bispos,
cípulo missionário. O documento recorda a em suas diretrizes para a ação evangelizado-
prioridade das traduções na língua indígena: ra, conferem destaque particular à animação
“é prioritário fazer traduções católicas da Bí- bíblica da vida e da pastoral.
blia e dos textos litúrgicos nos idiomas desses
povos nativos” (DAp 94). Salienta o aspecto 3. PASSOS E CONQUISTAS DA IGREJA
positivo da animação bíblica da pastoral na NO BRASIL RUMO À ANIMAÇÃO
formação do povo (DAp 99a) e propõe que a BÍBLICA DA VIDA E DA PASTORAL
pastoral bíblica seja entendida como anima-
ção bíblica da pastoral (DAp 248). Aqui está 3.1. Difusão do texto bíblico
um passo decisivo para a ação evangelizadora Com o terreno preparado desde 1947,
da Igreja: conceber a Bíblia já não como mediante os primeiros passos dados pelo
uma pastoral, mas como dimensão que sus- Movimento Bíblico, começou a delinear-se
tenta as demais pastorais. Há também a com- vasta difusão da Bíblia entre os fiéis.
preensão de que “a leitura orante favorece o Segundo Richtmann (1966, p. 86), uma
encontro pessoal com Jesus Cristo” (DAp 249). das primeiras tarefas dos membros da Liga
Outro evento merece nossa atenção: o de Estudos Bíblicos (LEB) foi a dedicação
Sínodo dos Bispos, realizado em outubro às traduções da Bíblia. Outra iniciativa da
de 2008, com o tema: “A Palavra de Deus LEB foi a Revista de Cultura Bíblica (RCB).
na vida e na missão da Igreja”. O Sínodo
procurou acentuar a importância da Bíblia na
formação do povo. Contribuiu para o avanço
da caminhada bíblica na Igreja e destacou a “A BÍBLIA É O LIVRO QUE
dimensão da pastoral bíblica, a ser compreen- UNE TODOS OS POVOS,
dida como animação bíblica da pastoral. A ETNIAS E CRENÇAS NUMA
Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum ÚNICA LINGUAGEM: A LINGUAGEM
Domini nos ajuda a compreender a anima-
ção bíblica da pastoral como um particular DA PALAVRA QUE É AMOR,
FRATERNIDADE E SOLIDARIEDADE.”
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Para os pioneiros dos anos 1950, havia a
necessidade de um texto bíblico acessível ao
povo. O grande interesse do povo pela Bíblia Uma introdução
provocou uma oferta igualmente grande de aos Livros Históricos
textos traduzidos diretamente do hebraico e Nilo Luza
do grego. Daí a importância de percebermos
que, a partir da divulgação crescente da Bíblia
da Ave Maria (1959), foram surgindo muitas
outras traduções, como a Bíblia Sagrada – Edi-
ção Pastoral, da Editora Paulus.Vale destacar
o trabalho árduo do biblista frei João José
Pedreira de Castro, ofm. Hoje encontramos
Bíblias para estudos acadêmicos exegéticos,
outras de cunho mais pastoral, para o uso
litúrgico-catequético etc.

3.2. Semanas Bíblicas Nacionais

Imagens meramente ilustrativas.


As Semanas Bíblicas Nacionais foram or-
ganizadas pelos exegetas brasileiros como
resposta ao desafio lançado por Pio XII com
112 págs.

sua magistral encíclica Divino Afflante Spiritu,


promulgada no dia da festa de São Jerônimo,
em 1943. Em 1947, no Mosteiro de São Ben-
to, em São Paulo, realizava-se a 1ª Semana
Bíblica Nacional (SALVADOR, 1975, p. 50- Os Livros Históricos são os
51).Ao encerrar-se o evento, foi redigida uma dezesseis livros que compõem o
circular, intitulada “Resoluções da 1ª Semana segundo grande bloco da Bíblia
Bíblica Nacional”, que continha as seguin- Católica e narram a história
tes conclusões: instituição do Domingo da de um povo pequeno, pobre e
Bíblia; incentivo à publicação da literatura continuamente dominado por
algum dos impérios da época.
bíblica nacional; fundação da LEB; tradução
Não se trata propriamente de
literal da Bíblia para a língua portuguesa. história no sentido moderno;
Entre as resoluções da 1ª Semana Bíbli- são crônicas, relatos e histórias
ca Nacional estava a realização, em datas edificantes. A obra comenta esse
aproximadamente fixas (a cada dois ou três material, seguindo a ordem em
anos), de Semanas Bíblicas. Deste modo, su- que cada livro se encontra na
cederam-se, a partir de 1947, 20 Semanas Bíblia Católica ou Cristã.
Bíblicas Nacionais, promovidas pela LEB
com apoio dos bispos e de outras entidades.
Além das Semanas Bíblicas Nacionais, foram
realizadas, na Igreja no Brasil, as Semanas
Vendas: (11) 3789-4000
Bíblicas Populares. A 1ª Semana Bíblica de 0800-0164011
caráter popular ocorreu na diocese de Natal
(RN) em 1947, promovida pelo cardeal dom paulus.com.br
Eugênio Sales e organizada pelos membros

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“CÍRCULOS BÍBLICOS, GRUPOS DE REFLEXÃO, GRUPOS DE RUA
SÃO ALGUNS SINAIS DESSA PRESENÇA VIVA DA BÍBLIA
NO MEIO DO POVO, FORMAS CRIATIVAS DE TORNAR
MAIS PRÓXIMA A PALAVRA DA ESCRITURA.”

da LEB, sobretudo pelo Pe. José Ferreira As Irmãs Paulinas, na pessoa da Ir. Eugênia
Neto, sdb, por intermédio do Departamen- Pandolfo, e lideranças que já trabalhavam
to Diocesano de Defesa da Fé e da Moral com a animação bíblica apresentaram por
(SALVADOR, 1975, p. 50-51). escrito a dom João de Rezende Costa e ao
conselho presbiteral a proposta de realizar
3.3. Círculos bíblicos: um jeito dinâmico um vasto e profundo movimento bíblico
de evangelizar durante o mês de setembro, que atingisse
Com o Concílio Vaticano II, a Bíblia foi todos os segmentos da arquidiocese. A pro-
ocupando cada vez maior espaço na família, posta foi aceita e, em junho do mesmo ano,
nos grupos de reflexão e nas pequenas comu- o conselho presbiteral nomeou uma equipe
nidades. Movida pelo desejo de crescimento para coordenar e impulsionar essa mobili-
na fé bíblica, a Igreja no Brasil desenvolveu zação bíblica. A equipe definiu, assim, os
toda uma prática de leitura e reflexão em objetivos do Mês da Bíblia, a saber: infundir
torno da Bíblia que muito contribui para o no povo a convicção de que a Bíblia, Palavra de
sustento da fé e da caminhada das pessoas. Deus, é por excelência o livro que deve ser inse-
Círculos bíblicos, grupos de reflexão, grupos rido na vida de cada um; fazer que as famílias
de rua são alguns sinais dessa presença viva da sintam a necessidade de ter em casa a Bíblia e
Bíblia no meio do povo, formas criativas de transformá-la em livro de cabeceira; por ocasião
tornar mais próxima a Palavra da Escritura. do “Mês da Bíblia”, constituir na arquidiocese
Juntamente com os círculos bíblicos, as de Belo Horizonte um centro bíblico.
comunidades eclesiais de base (CEBs) têm A equipe contou com a valiosa colabo-
desempenhado um papel muito importante ração do biblista frei Carlos Mesters, que
de animação bíblica. Onde o povo se reú- ajudou a elaborar os folhetos para a divul-
ne em torno da Palavra, nascem lideranças gação e estudo da Bíblia, com o desejo de
fortes; a comunidade resolve seus problemas despertar o gosto pela Palavra de Deus e
em conjunto e com maior facilidade; possi- iniciar uma leitura bíblica permanente. Em
bilita-se a experiência participativa da Igreja; 1975 a proposta se estendeu para todo o
surge a diversidade de serviços e ministérios, Regional Leste II e, em 1976, com o slogan
com os leigos assumindo seu protagonismo “Bíblia, Deus caminhando com a gente”,
na missão evangelizadora. o Centro Bíblico de Belo Horizonte, em
parceria com as Editoras Paulus e Paulinas,
3.4. Domingo da Bíblia ou Mês da Bíblia lançou o folheto de círculos bíblicos Bíblia-
Com a organização da LEB, desenvolveu- -Gente, destinado a todo o Brasil. Assim, o
-se um trabalho em torno de mobilização Mês da Bíblia se tornou um marco nacio-
bíblica, dando origem ao Mês da Bíblia. Em nal. Até hoje, a Editora Paulus continua a
1971, 50 anos atrás, a Arquidiocese de Belo publicar e distribuir o folheto Bíblia-Gente
Horizonte celebrava seu cinquentenário. com os roteiros bíblicos do Mês da Bíblia.

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3.5. Bíblia e Campanhas da Fraternidade Grebin (Grupo de Reflexão Bíblica Na-
Um fato marcante de experiência bí- cional), formado por representantes das
blica na Igreja no Brasil é a Campanha da instituições que se dedicam ao serviço da
Fraternidade, nascida em 1964 e realizada animação bíblica. É um espaço de articu-
anualmente, no período da Quaresma, como lação das instituições bíblicas, de intercâm-
forma de apelo à conversão, em vista da pre- bio de experiências e parceria em torno
paração para a Páscoa. Trata-se de iniciativa de ações comuns no campo da formação
da Igreja no campo social para chamar a bíblica. Hoje, chama-se Grebicat (Grupo de
atenção de toda a sociedade para situações Reflexão Bíblico-Catequética).
e problemas que atingem a maioria da po-
pulação ou minorias excluídas e ajudar na 3.7. Articulação entre a Comissão
busca conjunta de soluções. A reflexão sobre Episcopal Pastoral para a Animação
esses temas é feita à luz da Bíblia, com um Bíblico-Catequética e as instituições
tema bíblico inspirador que auxilia os cristãos da pastoral bíblica
no processo de conversão e compromisso Há um diálogo produtivo e uma cami-
social, celebrando a vida sempre à luz das nhada conjunta entre a Comissão para a Ani-
Sagradas Escrituras. mação Bíblico-Catequética e as instituições
bíblicas, sobretudo no estudo e escolha de
3.6. Mudança de “dimensão catequética” temas para o Mês da Bíblia. Há grande em-
para “dimensão bíblico-catequética” penho em ações comuns no que se refere
Outro momento importante da pastoral à formação e à produção de subsídios de
bíblica na Igreja no Brasil foi a mudança animação bíblica da pastoral. As instituições
de nomenclatura da Linha 3 de ação pasto- que se dedicam ao serviço da Palavra e for-
ral, que, na 29ª Assembleia Geral de 1991, mam o Grebin tem seu foco no avanço da
passou de dimensão catequética para dimensão questão bíblica na Igreja no Brasil. São elas:
bíblico-catequética, com o desejo de acentuar Serviço de Animação Bíblica (SAB), Movi-
melhor a centralidade da Palavra de Deus mento da Boa-Nova (Mobon), Centro de
na vida e na missão da Igreja. Estudos Bíblicos (Cebi), Movimento Bíbli-
A dimensão bíblico-catequética expres- co Nova Jerusalém, Centro Bíblico Verbo
sa o chamado feito a toda a Igreja para se (CBV), Conferência dos Religiosos do Brasil
fazer permanente ouvinte da Palavra, assi- (CRB),Associação Brasileira de Pesquisa Bí-
milando-a sempre mais profundamente ao blica (Abib), Centro Bíblico PAULUS.
confrontá-la com a vida dentro do mundo
e da história. 3.8. Bíblia no diálogo ecumênico,
A partir das Diretrizes de 1991 a 1994, a um fruto do Vaticano II
Comissão Episcopal Pastoral para a Anima- Nestes 40 anos, o povo católico cresceu
ção Bíblico-Catequética tem se empenhado bastante na intimidade com a Bíblia. Mas
em desenvolver, a cada quadriênio, atividades uma conquista do Concílio é o diálogo ecu-
que contemplem a unidade da Bíblia com mênico. Nossos documentos oficiais pedem
a catequese. insistentemente que se deixe de lado o clima
A Comissão Episcopal Pastoral para a de enfrentamento, de rivalidade, e se bus-
Animação Bíblico-Catequética sentiu a ne- quem caminhos de unidade.A Bíblia é muito
cessidade de um grupo de reflexão bíblica importante nessa busca, pois pode contri-
que pudesse ajudar no serviço de animação buir para o encontro de todos os cristãos.
bíblica junto às dioceses. Nasceu assim o Vale a pena ressaltar os empreendimentos

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“NOSSOS DOCUMENTOS OFICIAIS
PEDEM INSISTENTEMENTE QUE Há muito se vem difundindo, com regras
SE DEIXE DE LADO O CLIMA DE simplificadas, a prática do antigo método da
ENFRENTAMENTO, DE RIVALIDADE, leitura orante, que já era utilizado por mui-
tas congregações religiosas e tem um lugar
E SE BUSQUEM CAMINHOS especial na Tradição da Igreja. A divulgação
DE UNIDADE.” desse método tem trazido profundidade e
alegria para a oração do povo, em todas as
classes sociais. Intensificar essa prática trará
ecumênicos lançados aqui em nosso país: as grandes benefícios em nível pessoal e comu-
revistas especializadas para agentes de pas- nitário. O método da leitura orante é ajuda
toral, entre as quais Estudos Bíblicos e Ribla valiosa para o aprendizado da vida de oração
(Revista de Interpretação Bíblica Latino-Ameri- por meio da Bíblia. Tanto a 5ª Conferência
cana), bem como a coleção dos comentários do Conselho Episcopal Latino-Americano
aos livros bíblicos, todos numa perspectiva (Celam) como a Verbum Domini acentuam
ecumênica, lançados pelas editoras Vozes (ca- a importância da leitura orante da Bíblia.
tólica) e Sinodal (luterana).A Igreja no Brasil
vem incentivando a produção de textos que CONSIDERAÇÕES FINAIS
aproximem os cristãos das diversas denomi- Desde a Dei Verbum até a Verbum Domini,
nações e aprofundem as relações fraternas. é possível perceber, na Igreja no Brasil, o
Destaques, nesse sentido, são as Campanhas esforço criativo para acentuar a Palavra de
da Fraternidade em nível ecumênico e a Se- Deus em sua vida e missão evangelizadora.
mana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Com o espírito inovador das Conferências
A intenção é abrir, cada vez mais, caminhos de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Do-
para uma conversa construtiva em prol da mingo (1992) e Aparecida (2007), o povo, cada
unidade na fé, na esperança e na caridade, vez mais, busca ler a Bíblia e encontrar nela uma
tornando visível o testemunho do quanto palavra orientadora e consoladora para a vida.
estamos unidos no amor de Jesus. Uma boa A animação bíblica da vida e da pastoral
leitura bíblica, atualizada, tem papel impor- envolve toda a atividade da Igreja, no esforço
tante no diálogo sereno e construtivo, o que de anunciar com eficácia o Reino de Deus:
será enorme benefício para todas as Igrejas “é preciso, pois, que, do mesmo modo que a
envolvidas. religião cristã, também a pregação eclesiás-
tica seja alimentada e dirigida pela Sagrada
3.9. Lectio Divina ou leitura orante da Bíblia Escritura” (DV 21).
Cada vez é mais notável a leitura orante Contudo, faz-se necessário priorizar uma
da Bíblia e da vida nos pequenos grupos, animação bíblica da vida e da pastoral capaz
“igrejas domésticas” (LG 30; CIC 1655). Ela de formar discípulos de Jesus Cristo, servi-
contribui também para maior liberdade de dores da Palavra. Trata-se de grande tarefa
expressão, diálogo e comunhão com as cul- que o novo tempo nos impõe.
turas e religiões. A Palavra de Deus não é A Bíblia, sendo assumida pelas comuni-
mero material de estudo: é chamado a um dades eclesiais missionárias como a fonte e a
diálogo reverente. Nosso povo, com muita alma de toda pastoral, será uma das mediações
sabedoria, valoriza a oração. Com a Bíblia, privilegiadas na promoção da pastoral de
bem usada, cresce na espiritualidade, em to- conjunto, tão essencial para que a comuni-
dos os sentidos.A oração centrada na Bíblia é dade eclesial seja expressão de uma Igreja
a grande valorização do nosso texto sagrado. querigmática, mistagógica e missionária.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MELO, Antonio Alves de. A evangelização no Brasil: dimensões teológicas e desafios pastorais. O debate
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Shigeyuki Nakanose* e Maria Antônia Marques**

O EVANGELHO DE
JESUS CRISTO
CRUCIFICADO
Entendendo a carta aos Gálatas
Sobre as características da carta aos Gálatas, a força
da escrita de São Paulo, a teologia, a estrutura literária
da carta e os interlocutores do apóstolo.
*Shigeyuki Nakanose, svd, é assessor do Centro Bíblico Verbo e professor no Instituto São Paulo de Estudos Superiores (Itesp).
E-mail: contato@cbiblicoverbo.com.br
**Maria Antônia Marques é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no Instituto São Paulo de Estudos Superiores (Itesp).
E-mail: ma.antoniacbv@yahoo.com.br

14 vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341


INTRODUÇÃO
Recordando o modo inusitado do nasci- O grupo judaizante radical (Gl 1,7; 4,17;
mento das “igrejas da Galácia” (Gl 1,2), Paulo 5,7-12; 6,13) tentou impor aos convertidos
lhes escreve uma carta direta e personalizada, gálatas a circuncisão – que ocupava lugar
para que se esforcem por clarificar as ideias central no judaísmo oficial, na qualidade de
– perturbadas pela intervenção do grupo sinal da aliança com Deus Javé –, como meio
judaizante – e voltem a viver na liberdade, de alcançar a salvação, e atacou o Evangelho
na igualdade e na unidade, à luz da vida, e a prática pastoral de Paulo: “Não existe
morte e ressurreição de Jesus Cristo. outro Evangelho. No entanto, alguns estão
Por volta dos anos 53-54 d.C., as comuni- deixando vocês confusos, querendo distorcer
dades gálatas entraram em crise. Os conver- o Evangelho de Cristo” (Gl 1,7).
tidos gálatas, gentios em sua maioria, foram No dizer de Paulo, o grupo judaizante radi-
“enfeitiçados” pelo grupo de tendência ju- cal anuncia outro Evangelho, baseado na justiça
daizante – que preconizava o modo de viver pela observância da Lei, provocando e justifi-
como judeus, segundo a cultura e os costu- cando a segregação e a desigualdade nas comu-
mes judaicos – e caíram sob o jugo da Lei:“Ó nidades gálatas e até a escravidão no mundo
gálatas sem juízo! Quem foi que os enfeiti- greco-romano. O grupo desvirtua o Evangelho
çou, a vocês que tinham diante dos olhos os baseado na justiça que vem pela fé no amor e na
traços bem claros de Jesus Cristo crucificado? graça de Cristo Jesus crucificado (Gl 5,5-6).
Quero saber somente isto de vocês: foi pelas A discriminação, a desigualdade e a mar-
obras da Lei que vocês receberam o Espírito, ginalização das pessoas são intoleráveis para a
ou foi pela aceitação da fé?” (Gl 3,1-2). “verdade do Evangelho” (Gl 2,5), segundo a

CENTRO BÍBLICO VERBO

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de trinta anos está a serviço do povo
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vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341 15


“Na prática, Paulo abandonou o grupo dos judeus fariseus, com seu modo
legalista e ritualista de ver Deus, a Escritura, as pessoas e as coisas,
e ingressou no movimento de Jesus Cristo crucificado.”

liturgia batismal, citada por Paulo:“Não há ju- crentes em Jesus de Nazaré, que estavam
deu nem grego, não há escravo nem livre, não pregando e perturbando a ordem religiosa
há homem nem mulher, pois todos vocês são (templo e Lei) de Jerusalém, a qual justifi-
um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28).Afinal, quem cava o poder e as riquezas dos governantes
é Paulo, que prega a unidade entre as pessoas judaicos. Paulo, um fariseu irrepreensível, era
sem as barreiras raciais, sociais e sexuais? cheio de si e autossuficiente (Fl 3,6).
No entanto, ele mudou sua vida! Graças
1. Conhecendo Paulo ao contato com a vivência comunitária e
Paulo,“circuncidado no oitavo dia, da raça fraterna dos seguidores de Jesus que sofriam
de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho perseguição (At 9,10-19), aos poucos, foi
de hebreus” (Fl 3,5), converte-se ao amor sendo tocado pelo amor gratuito de Jesus de
de Cristo Jesus. O judeu “perseguidor da Nazaré, o Crucificado, que seria “escândalo”
Igreja” (Gl 1,13) transforma-se em seguidor para os judeus (Dt 21,22-23). Paulo começou
de Jesus crucificado, pregando a mensagem a acreditar que Jesus crucificado por Pilatos
da justificação pela obra da fé, pelo esforço era o Messias de Javé, o Filho de Deus, como
do amor e pela constância da esperança no havia anunciado o Segundo Isaías, na forma
Senhor Jesus Cristo (1Ts 1,3). do servo sofredor (Is 42,1-9; 52,13-53,12).
Segundo a prática religiosa da sinagoga do Ele descobriu que o projeto da vida foi mani-
seu tempo, Paulo, um judeu fariseu, bastante festado na cruz de Jesus como graça de Deus,
cônscio de seu trabalho de observar a Lei de e não pela observância da Lei (Gl 2,19-21).
Moisés, pregava a salvação pela observância da Na prática, Paulo abandonou o grupo
lei da pureza, a obra salvífica que era justifi- dos judeus fariseus, com seu modo legalista e
cada pela fé no Deus poderoso e castigador ritualista de ver Deus, a Escritura, as pessoas
(Dt 30,15-18) e argumentada pela teologia da e as coisas, e ingressou no movimento de
retribuição – segundo a qual Deus retribuía Jesus Cristo crucificado, praticando e expe-
saúde, riqueza e vida longa a quem observasse rimentando no dia a dia o amor gratuito e
a Lei com sua exigência de sacrifícios de puri- incondicional de Deus. Em seu longo pro-
ficação, pagamento dos dízimos etc. (Dt 28; Ml cesso de transformação e aprendizagem (Gl
3,6-12). Desta forma, seria possível manipular 1,15-18), começou a pregar a salvação pela
Deus conforme a justiça alcançada pela ob- prática do amor, a obra salvífica justificada
servância da Lei. Observada a Lei, Deus seria pela fé na graça de Deus misericordioso, Pai
obrigado a retribuir e ajudar a pessoa “justa”. e Mãe (Os 11,1-4; 1Ts 2,1-12) – ou seja,
Como fariseu, Paulo desprezava e discri- a teologia da gratuidade (Jn 4; Rm 5,1-2).
minava pobres, doentes e estrangeiros como Sendo um judeu de cultura greco-romana
impuros, pois eles, muitas vezes, infringiam – judeu helenista, como Estêvão e Filipe –,
a Lei. Em sua prática da Lei, tornou-se per- Paulo se formou nas comunidades helenistas
seguidor do grupo dos judeus helenistas de Damasco (Gl 1,17) e iniciou seu trabalho

16 vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341


missionário na comunidade de Antioquia
da Síria (At 11,19-30), composta de judeus Jesus, o messias dos pobres
helenistas e gentios, em sua maioria, e de Por uma teologia do messianismo
língua grega, mais aberta à realidade mul- libertador e integral
ticultural e multirracial de Antioquia. Nela Donizete Scardelai
a circuncisão e as leis alimentares judaicas e Luiz Alexandre Solano Rossi
não eram impostas aos seguidores gentios
de Jesus Cristo.
Com o tempo, a comunidade de Antio-
quia, com tal prática, entrou em conflito com
a “igreja mãe de Jerusalém” (Gl 1,18-24), que
era formada, em sua maioria, por judeus que
acreditavam em Jesus como o Messias prome-
tido, mas assumia uma prática mais tradicio-
nal, pregando um Evangelho subordinado às
tradições judaicas. A postura dos judaizantes
era clara: os gentios poderiam participar das

Imagens meramente ilustrativas.


promessas feitas por Deus ao povo de Israel,
desde que estivessem dispostos a observar a Lei.
O conflito resultou na realização da pri-
456 págs.

meira assembleia em Jerusalém, por volta do


ano 49, cuja discussão girou em torno da im-
posição da circuncisão e de outros costumes
judaicos aos gentios que seguiam Jesus (Gl
2,1-10; At 15). Apesar da dura oposição dos A obra busca compreender de
“falsos irmãos” (Gl 2,4) – um grupo judai- perto a sociedade de Jesus,
zante radical na igreja de Jerusalém –, Paulo marcada pela desigualdade e
defendeu a prática missionária segundo a pelo favorecimento das minorias
“verdade do Evangelho” e selou acordo com abastadas, em detrimento da
os apóstolos de Jerusalém. Estes considera- maioria explorada. Revela ainda
como esse contexto favoreceu o
vam sua missão restrita aos circuncidados,
surgimento de diversos messias
mas mesmo assim reconheciam e apoiavam antes de Jesus e como cada um
a missão do grupo de Paulo (Gl 2,3-10). deles, com sua visão de mundo
Entretanto, os “falsos irmãos” (cf. At e sua busca por libertação, deu
15,1.5) acreditavam na necessidade de todos uma resposta de vida e de fé
os seguidores de Jesus se tornarem judeus e para si e seus seguidores, por
exigiam deles a observância da Lei em sua meio da resistência e do combate
totalidade, rejeitando o acordo firmado na à miséria e à opressão.
assembleia de Jerusalém. Historicamente, a
influência desses judaizantes radicais che-
gou à Macedônia, à Grécia e à Ásia Menor,
Vendas: (11) 3789-4000
causando conflito com a missão de Paulo. 0800-0164011
Após a assembleia, Paulo desempenhou
com maior vigor sua missão entre os gen- paulus.com.br
tios. Na segunda viagem, durante 49-52

vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341 17


a ser a província romana da Galácia, com a
capital Ancira (hoje Ancara), em 25 a.C.,
ficando, desde então, sob a dominação direta
de Roma.
“A sociedade gálata foi marcada pelo Quanto à vida do povo, a Galácia era
sistema de escravatura.” basicamente uma província rural agrícola e
pecuária (pequenos rebanhos). Era abundan-
te a produção de cereais e vinho, e a fonte
d.C., seu grupo realizou a missão em meio principal de riqueza consistia na produção
aos gentios da Ásia Menor, da Macedônia e de lã. Sabe-se que as enormes fazendas de
da Grécia, fundando comunidades na Ga- ovelhas ocupavam grande parte da área cen-
lácia, em Filipos, Tessalônica, Corinto etc. tral e meridional da Galácia, e a maioria das
(At 15,36-18,23), comunidades compostas terras pertencia ao Império Romano. Como
de judeus e gentios que tentavam viver a ir- práxis do império, a produção da região não
mandade em nome de Jesus Cristo crucificado. só beneficiava a elite local, mas também era
Com o tempo, as comunidades foram levada a Roma pelos “mercadores da terra”
apresentando vários problemas: perseguições para enriquecer a autoridade imperial. A
dos judeus e governantes romanos (1Ts 2,1- maioria da população estava submetida à
2) e conflitos internos (1Cor 1,10-16) etc. escravidão do império, vivendo na misé-
As comunidades gálatas também não esca- ria e sofrendo espoliação e violência dos
param da crise provocada pela diversidade. governantes.
Nelas surgiram, por volta dos anos 53-54 Nesse longo processo de romanização,
d.C., conflitos provocados por dois grupos a sociedade gálata foi marcada pelo sistema
principais: por um lado, o grupo “judaizante” de escravatura. O duro trabalho nas fazen-
tentava submeter à circuncisão e aos cos- das de ovelhas, por exemplo, empobrecia
tumes judaicos os gentios que abraçaram a e enfraquecia o povo. O sofrimento deste
mensagem de Jesus, suscitando a segrega- aumentava ainda mais com a dominação
ção e a desunião nas comunidades (Gl 3,1- cotidiana do império. Para além da bruta-
5,12); por outro, o grupo “liberal” exagerava lidade e violência do exército, da cobrança
a liberdade cristã, desrespeitando qualquer sistemática do imposto e do monopólio do
mandamento e criando uma crise ética (Gl comércio, a legitimação do poder imperial
5,13-26). De certa forma, essa situação crí- era feita pela implantação da religião e da
tica das comunidades gálatas era marcada cultura do Império Romano. Por exemplo,
pela realidade particular do povo da Galácia. no culto, o evangelho – a “boa-nova” de
César Augusto, o senhor do império e da
2. Conhecendo a Galácia terra – era proclamado, exaltando o império
O nome Galácia deriva dos gauleses e o imperador por estabelecerem na terra a
(gálatas), descendentes de antigos imigrantes paz e a salvação.
celtas, provenientes do território da Gália Exatamente para esse mundo é que Pau-
(França, Bélgica, Itália etc.), que invadiram, lo levava o Evangelho de Jesus Cristo cru-
em 279-277 a.C., o centro-norte da Ásia cificado, introduzindo novo sistema capaz
Menor (a região entre a Capadócia e o de mudar as relações humanas. No lugar
Ponto). Os gálatas foram subjugados pelo do vínculo senhor-escravo, ele propôs o da
Império Romano em 189 a.C. Após longo irmandade e o da liberdade, conforme sua
período de vassalagem, o reino gálata passou proclamação nas comunidades da Galácia.

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3. Conhecendo as comunidades gálatas a) Os membros das comunidades gálatas
Durante sua primeira viagem missionária eram gentios que só conheceram o Deus
(46-48 d.C.), Paulo e Barnabé devem ter judeu e a mensagem de Jesus depois de
percorrido o sul da Galácia, região habitada sua conversão de vida (4,8-9; 5,2-3; 6,12).
por romanos, gregos e judeus, passando por b) As comunidades acolheram Paulo, um
Icônio, Listra e Derbe, entre outras cidades enfermo judeu, sem discriminação (4,13-
(At 13,50-14,28). Realizaram a missão entre 14). O laço afetivo das comunidades com
judeus e simpatizantes gentios nas sinagogas Paulo era tão forte, que o fez declarar:
por onde passaram, fundando várias comu- “se fosse possível, vocês arrancariam os
nidades. Paulo voltou para lá durante sua próprios olhos e os dariam a mim” (4,15).
segunda viagem (49-52 d.C.; cf. At 16,1-8) c) Paulo anunciara a “cruz de Jesus Cristo”
e percorreu também o norte da Galácia (a (3,1), na qual a graça de Deus foi dada
região em torno das cidades de Ancira e (2,21). Por ela, os convertidos gálatas tor-
Pessinunte; cf. At 16,6), evangelizando os naram-se pessoas capazes de amar e de
gálatas propriamente ditos. Na terceira via- se pôr a serviço umas das outras (5,13).
gem (53-57 d.C.), ele passou de novo pela d) No batismo, o Evangelho de Jesus Cristo
Galácia e pela Frígia (cf. At 18,23). crucificado, com seu amor gratuito, foi as-
Por volta do ano 50 d.C., nessa região do sumido pelos gentios pobres como fonte
norte da Galácia, as comunidades dos seguido- de liberdade, irmandade e igualdade em
res de Jesus foram fundadas em uma circuns- um mundo escravagista (3,23-29).
tância incomum: “Vocês sabem que foi por e) O ponto principal de discussão e de cri-
causa de uma doença física que lhes anunciei se é “outro Evangelho”, que “distorce o
o Evangelho pela primeira vez” (Gl 4,13). Evangelho de Cristo” (1,7). O grupo
No meio dos gálatas, o “Evangelho de Cris- judaizante radical insiste: o seguidor de
to” (Gl 1,7) havia causado grande entusiasmo, Jesus deve submeter-se à prática de todas
pois a irmandade pregada em nome de Jesus as leis judaicas para alcançar a salvação
Cristo crucificado suscitara o sonho de vida (2,11-21).
e liberdade para quem vivia sob o jugo da f) Os convertidos gálatas estavam prestes
escravidão do império. O entusiasmo, porém, a se submeter à Lei de Moisés (4,1) e a
durou pouco. Logo depois da segunda visita trair a amizade e a lealdade com Paulo,
de Paulo, essas comunidades caíram na escra- abandonando o verdadeiro Evangelho
vidão da Lei de Moisés (Gl 1,6). E, para piorar (1,6) e decaindo da graça (5,4).
a situação, alguns membros contestaram a au- g) Alguns membros, gentios cristãos, fize-
toridade de Paulo e seu Evangelho (Gl 1,7-10). ram-se circuncidar (5,2-4) e exerciam
Possivelmente, durante a longa permanên- pressão sobre os outros membros das
cia de dois anos e meio em Éfeso (53-55 d.C.), comunidades (6,13).
Paulo recebeu notícias de um ataque contra h) Havia o grupo helenizado, com o espírito
ele e seu Evangelho em meio às comunidades da busca desenfreada de bens, poder e pra-
da Galácia, que estavam em crise. A carta aos zer, que radicalizou a liberdade, transfor-
Gálatas, então, foi escrita, com muita emoção, mando-a em libertinagem, causando um
como uma resposta de Paulo nesse contexto problema ético e aumentando as tensões
conturbado; por isso, ela revela tal discussão internas (5,13-24).
e a situação pela qual as comunidades gálatas i) Os opositores negavam a autoridade
estavam passando, além de retratar as carac- do apóstolo Paulo e seu Evangelho
terísticas delas e sua relação com o apóstolo: (1,1-5.7-10).

vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341 19


j) Diante do risco real de perder as comunida- 1) Pregar e praticar o Evangelho de Je-
des “amadas”, Paulo, indignado e revoltado, sus Cristo crucificado (Gl 1,7): o verdadeiro
chegou a dizer: “Que se mutilem de uma Evangelho (Gl 2,5.14) é a própria pessoa de
vez aqueles que estão perturbando vocês!” Jesus de Nazaré, que pregou e praticou a justiça
(5,12). e deu sua vida na cruz, por puro amor ao pró-
Informado da grave ameaça à fé em Jesus ximo (Gl 1,3-5).A fé na cruz de Jesus é fonte
Cristo crucificado, ao seu verdadeiro Evan- da liberdade, da irmandade, da vida, porque é na
gelho e à prática do amor, da igualdade e cruz de Jesus de Nazaré que Deus Pai mani-
da unidade, e diante da acusação contra sua festou sua graça, seu amor primeiro e gratuito.
condição de apóstolo, Paulo escreveu a carta 2) Ser herdeiro da promessa de Abraão pela
aos Gálatas, cheia de raiva e emoção, prova- fé em Jesus Cristo crucificado (Gl 3,6-18): o
velmente de Éfeso, entre 54 e 55 d.C. fato de Jesus Cristo – que conviveu com os
pecadores e morreu na cruz por amor ao pró-
4. Conhecendo a carta aos Gálatas ximo – ser reconhecido como o Messias sofre-
A carta aos Gálatas é mais profundamente dor e o Filho de Deus (Gl 4,4) é a mensagem
marcada pelo tom duro e polêmico do que essencial de que o Deus da promessa a Abraão
qualquer outra e é a única carta sem a cos- (Gn 15,4-8; 18,17-18) reconhece a pessoa não
tumeira ação de graças nas saudações inicial em virtude das obras da Lei, mas sim de sua
e final. Ela contém cinco argumentos usados prática do amor ao próximo. A fé no Messias
por Paulo contra os adversários: histórico, sofredor abre a salvação a todos os povos, sem o
teológico, exegético, batismal e emocional. pré-requisito do cumprimento da Lei, como a
Eis um possível esquema da carta: circuncisão e as leis alimentares (Gl 2,11-14).
a) Introdução – 1,1-10: apresentação do 3) Ter liberdade em Jesus Cristo crucificado
tema “o Evangelho de Cristo”, baseado (Gl 5,1): no Espírito (o poder do amor gratuito)
na graça de Deus. de Jesus Cristo crucificado, a pessoa torna-se
b) Primeira parte – 1,11-2,21: relato auto- “nova criatura” (Gl 6,15), fica liberta de qual-
biográfico e histórico. quer lei e de qualquer diferença que possa pri-
c) Segunda parte – 3,1-5,12: argumento vilegiar uns e marginalizar outros (Gl 3,28).
contra os adversários. 4)Viver segundo o Espírito (Gl 5,5): quem
d) Terceira parte – 5,13-6,10: exortação ética caminha na fé e no amor do Crucificado é
– liberdade e caridade. acompanhado pela força criadora, profética, sa-
e) Conclusão – 6,11-18: advertência contra piencial e libertadora do Espírito para viver do
o grupo judaizante radical. modo como Jesus viveu: na liberdade, na justiça
e no amor, criando irmandade, paz e esperança.
5. Conhecendo os conteúdos específicos 5) Carregar o peso uns dos outros (Gl
Convencido do perigo que representavam 6,2): a verdadeira liberdade cristã é fruto
para o Evangelho de Jesus Cristo crucificado, do Espírito de Deus, que leva à vida de
Paulo não poupou críticas fortes contra os caridade, justiça e fraternidade, sobretudo
grupos formados pelos judaizantes e hele- de amor-serviço aos outros (Gl 5,13-6,10).
nizados radicais, que estavam desvirtuando 6) Evangelizar com base na realidade (Gl
o valor salvífico do amor gratuito de Jesus 4,12): ao contrário do grupo judaizante, Pau-
Cristo crucificado, a manifestação da graça lo considerou e respeitou os anseios por liber-
de Deus. Ele procurou mostrar os conteú- dade e igualdade do povo sofrido e escravi-
dos do verdadeiro Evangelho com base na zado, formando comunidades de fraternidade
experiência e na Escritura: sem a imposição das leis e costumes judaicos.

20 vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341


7) Evangelizar junto com os pobres (Gl
2,10): Paulo evangelizou as nações, pondo-se
ao lado dos pobres, mergulhando no mundo
deles, carregando os fardos do trabalho (Gl Os Evangelhos
Testemunhos de
6,2), organizando comunidades de partilha e
conversão e transformação
de fraternidade junto com os pobres (1Cor
Luiz Alexandre Solano Rossi
4,9-13). e Cristina Aleixo Simões
8) Carregar as marcas de Jesus, que signi-
ficam as cicatrizes dos maus-tratos sofridos e
suportados pelo Nazareno (Gl 6,14.17; cf. 2Cor
4,10): quem assume o Evangelho de Jesus Cris-
to crucificado, seu amor gratuito e o espírito
da liberdade, será perseguido e maltratado no
mundo do legalismo judaico e da escravização
do império. As pessoas que seguem Jesus, po-
rém, mesmo perseguidas, devem gloriar-se na
cruz de Jesus Cristo, porque é dela que nasce “o
poder de Deus e a sabedoria de Deus” (1Cor
1,24), para construir o mundo da partilha e
da fraternidade: o Reino antecipado de Deus.

Imagens meramente ilustrativas.


Essas são algumas das principais convic-
ções que orientam e animam Paulo em sua
missão. As certezas que podem ser encon-
tradas ao longo da carta aos Gálatas ama-
88 págs.

dureceram aos poucos, à luz de seu próprio


trabalho missionário e pastoral, guiado pela
reflexão sobre as palavras, ações e vida de
Jesus à luz da Escritura, e também à luz da
A obra faz a descrição e a
realidade do povo sofrido, dos empobrecidos,
análise detalhada dos quatro
marginalizados e escravos como os gálatas. Evangelhos, destacando suas
No contexto do imperialismo romano semelhanças e diferenças,
e da religião legalista e ritualista do judaís- extraindo os ensinamentos dos
mo oficial, Paulo pregou Jesus crucificado textos e sugerindo, portanto, a
e ressuscitado e ousou caminhar na contra- melhor forma de interpretá-los.
corrente, com a proposta do amor gratuito
e da justiça do “servo sofredor”. Quase 2 mil
anos se passaram, mas o imperialismo conti-
nua encarnado em muitas “feras”, devorando
pessoas inocentes mediante guerras, ditaduras
brutais, trabalhos em condição de escravi-
Vendas: (11) 3789-4000
dão ou semiescravidão, economia selvagem, 0800-0164011
fomes, violências. E muitas Igrejas, com seu
Cristo triunfalista, legalista e ritualista, ser- paulus.com.br
vem para conservar as feras do presente.

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Joel Antônio Ferreira*

O HINO BATISMAL (Gl 3,26-28):


CHAVE PARA A LEITURA
DA CARTA AOS GÁLATAS
Neste 50º ano do Mês da Bíblia, saboreando a carta aos Gálatas na revista
Vida Pastoral e, também, no texto-base da CNBB, buscou-se o ardor bíblico
dessa carta da UNIDADE em Cristo que ajuda a viver a comunhão fraterna.

*Joel Antônio Ferreira é doutor em Sagrada Escritura pela Umesp e pós-doutor pela Georgetown University de Washington D.C. É professor titular
em Ciências da Religião na PUC-Goiás e assessor bíblico de comunidades populares. E-mail: joelantonioferreira@hotmail.com

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INTRODUÇÃO contra aquelas experiências. A reação foi
Gostamos de ler a carta aos Gálatas come- forte: Cefas (v. 11), Barnabé (v. 13) e outros
çando pelo “hino batismal” (Gl 3,26-28). judeu-cristãos, com hipocrisia, retraíram-se
De forma esquemática, eis os aconteci- com medo e agiam com fingimento.
mentos que estão na origem dessa carta: Os gálatas que “pularam” para o lado dos
1) Paulo havia evangelizado a Galácia judaizantes precisavam ouvir sobre as tensões.
(região da atual Turquia). Depois, Paulo desenvolveu, com fundamen-
2) As comunidades, por um bom tempo, tações bíblicas, questões sobre a fé, a unidade
caminharam muito bem na fidelidade ao em Cristo, a abertura de fronteiras para os
Evangelho. gentios e a liberdade cristã (Gl 3-4). Apre-
3) Um fato inesperado: alguns judaizan- sentou a vida no Espírito e mostrou que o
tes foram, depois, à Galácia pregar um campo de ação do Espírito é a comunidade
Evangelho diferente, ou seja, baseado na (5-6,10). Na conclusão (6,11-18), frisou que
Lei e nos costumes do judaísmo. a mística da liberdade leva à nova criação,
4) Várias pessoas evangelizadas por Paulo ou seja, a viver no espírito do Crucificado.
aderiram à pregação dos judaizantes. Apesar dos conflitos, Paulo não perdeu
5) Algumas pessoas fiéis mandaram no- sua mística, o transpirar Jesus Cristo pelos
tícias a Paulo, falando da divisão. poros:“Eu vivo, mas já não sou eu que vivo.
6) O apóstolo ficou indignado. É Cristo quem vive em mim” (Gl 2,20).
7) Escreveu a carta, demonstrando sua
revolta. 1. HINO BATISMAL COMO ABERTURA
DE FRONTEIRAS
É uma carta bem conflituosa. Para pedir Eis a chave principal para entrar na carta
aos gálatas que revissem suas posições, Paulo aos Gálatas (3,26-28):
contou que também em outras experiên-
cias cristãs originárias aconteceram muitas 26
Pois todos vós sois filhos de Deus pela
tensões. Disse que só existia um Evangelho fé em Cristo Jesus. 27Pois quantos de vós
(1,6-10), para já ir mostrando que os judai- fostes batizados em Cristo, vos vestistes
zantes não foram leais. Descreveu a revela- de Cristo. 28Não há judeu nem grego, não
ção e o chamado recebido de Jesus Cristo e há escravo nem livre, não há homem e
revelou que sua vocação era evangelizar os mulher: pois todos vós sois UM só em
gentios (1,11-17). Narrou o encontro com Cristo Jesus.
a igreja de Jerusalém (Pedro, Tiago, João).
Apontou as decisões positivas sobre a questão É um hino batismal conhecido no cristia-
da circuncisão e abertura aos gentios (1,18- nismo originário, anterior a Paulo. Trata-se
2,10), indicando que estes não precisavam do fragmento de um credo conhecido pe-
ser circuncidados. las comunidades (BETZ, 1988, p. 184-186).
Outro conflito (lei do puro/impuro) es- Ao citar a fórmula já celebrada por outros
tava criando barreiras. Em Antioquia (2,11- grupos cristãos, o apóstolo demonstrou ter
14) vivenciava-se excelente momento co- entendido a proposta e abraçado a causa na
munitário durante as refeições, nas quais opção pelos gentios, na preocupação com
se reuniam gentios (v. 12b), circuncisos (v. os escravos e na emancipação feminina. No
12d) e judeu-cristãos (v. 13a). No entanto, pequeno hino se percebe que as questões
foram para lá, vindos de Jerusalém, da parte étnicas, sociais e de gênero foram bem in-
de Tiago (v.12a), alguns cristãos que eram terligadas (BAUMERT, 1999, p. 10ss).

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A confissão batismal apareceu em quatro original. As diferenças têm sua explicação
textos (Gl 3,26-28; 1Cor 12,13; Rm 10,12; nos destinatários diferentes, com situações
Cl 3,11). Há um consenso entre os comen- vitais diversas. Eis a sinopse (FERREIRA,
taristas de que em Gálatas está o texto quase 2005, p. 90):

Gl 3,26-28 1Cor 12,13 Rm 10,12 Cl 3,11

Vós todos sois filhos


de Deus pela fé em
Cristo Jesus

pois fomos todos


Pois todos vós fostes batizados num só
batizados em Cristo Espírito, para ser um
só corpo

vos vestistes de
Cristo

Não há judeu nem não há distinção Aí não há mais grego e


grego, judeus e gregos entre judeu e grego. judeu, circunciso e incir-
cunciso, bárbaro, cita,

não há escravo nem escravos e livres escravo, livre,


livre,

não há homem e
mulher.

Pois todos vós sois um e todos bebemos de Pois ele é o Senhor mas Cristo é tudo em
só em Cristo Jesus um só espírito de todos todos

A reflexão parte de Gl 3,26-28, por ser o “revestidos”.Todos podiam superar as divi-


texto mais original. É preciso perceber que as sões: “judeu/grego”, “escravo/livre” e “ho-
três afirmativas se conformam às exigências mem/mulher”, porque todos eram “UM
do batismo e da fé em Jesus Cristo. só”. Isso era possível por causa de “Cristo
A ekklesía (Gl 1,2) movia-se no Espí- Jesus”, citado quatro vezes. O hino batismal
rito de Jesus Cristo. O hino foi dirigido a apresenta três prioridades de acordo com as
ela (“vós”). Os membros da ekklesía eram quais os cristãos devem se mover no espírito
“filhos de Deus pela fé”, “batizados” e comunitário.

24 vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341


1.1. “Não há judeu nem grego”: estrangeiros (Gl 2,11-13). Outro grupo, os
rompimento com nacionalismos helenistas (Estêvão, Barnabé, Paulo e outros)
radicais e com dogmatismos partiram para outras regiões (FERREIRA,
religiosos e culturais 2005, p. 104).
A proposta do hino batismal, assumida por
Paulo, anunciava a abertura de fronteiras no 1.1.1. Os gentios escutaram o Evangelho
âmbito racial, com extensão para o religioso A partir daí, entre 40 e 68 d.C., o Evan-
e o cultural. gelho foi proclamado nas cidades e adentrou
O “judeu”: desde o pós-exílio, com a de- muitas partes do império. Os gentios de várias
finição do judaísmo como a religião judaica, culturas foram aderindo ao seguimento de
havia a afirmação de ser um povo escolhido Jesus Cristo.Antioquia foi se tornando a refe-
por causa da aliança com Deus. Com Esdras rência, e foi ali que os seguidores dele foram
aflorou um nacionalismo que privilegiava os chamados, pela primeira vez, de “cristãos”.
judeus e excluía os estrangeiros da vida da O grupo helenista abriu-se para os gentios
nação (Esd 9-10). Essa linha perpassou a his- e se inculturou, respeitando os valores, costu-
tória dos judeus até os tempos de Jesus, porém mes e cultura dos gregos (gentios). O Evange-
essa postura nacionalista não era unanimidade. lho estava se encarnando em outras culturas.
O “grego”: não se refere à enorme civili- A evangelização foi avançando pela Ásia Me-
zação grega, com sua filosofia que penetrou nor e Europa (Gl 2,9). O que, parece, atraiu
o mundo, nem à cultura e ao modo de viver tantos gentios foi o entendimento de que eles
dos cidadãos gregos. Aliás, os gregos tam- podiam seguir o Evangelho de Jesus Cristo
bém tinham seus preconceitos, porque mui- e continuar com suas identidades culturais.
tas vezes consideravam outros povos como
bárbaros (Rm 1,14; Cl 3,11). Aqui no hino, 1.1.2. Judaísmo, judeu-cristãos,
“grego” se refere aos gentios espalhados pela judaizantes e a unidade
civilização grega e pelo Império Romano. Como o hino batismal afirmou que “não
Nas primeiras décadas após o “evento Je- há judeu nem grego”, é preciso clarear al-
sus”, as comunidades cristãs eram judias. En- guns conceitos.
tre as várias tendências dentro do judaísmo, O “judaísmo” era e é a religião dos judeus,
existiam os grupos populares (simples e hu- desde os tempos do pós-exílio da Babilônia.
mildes) ou judeu-cristãos: antigos apóstolos, Os helenistas não tiveram problemas com o
discípulos, mulheres, os que acompanharam judaísmo. Paulo estava convencido de que o
Jesus desde a Galileia, a periferia de Israel. judaísmo era querido por Deus (Rm 3,1-4a).
Parece, contudo, que Tiago, irmão do Senhor, Os “judeu-cristãos” eram os fiéis que
era de uma linha que levava a sério a lei do haviam pertencido à tradição do judaísmo.
puro/impuro e, por conta disso, evitava os Sugere-se que os judeu-cristãos eram os de
visão mais popular e aberta, na linha dos
pobres e humildes de Yahweh. As polêmicas
que aparecem na carta aos Gálatas não foram
“O hino batismal apresenta contra os judeu-cristãos. Estes se abriram
à evangelização dos gentios (Gl 2,9) e se
três prioridades de acordo assentavam à mesa com todos.
com as quais os cristãos Os “judaizantes” surgiram como grupo
devem se mover no espírito que provocou muitos conflitos. Eram cris-
tãos que passaram pela tradição do judaísmo
comunitário.”
vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341 25
“Da parte de Paulo, os gentios clima de intolerância religiosa (lei do puro/
evangelizados deviam viver a fé impuro) e racial (gentio não podia comer
em Jesus Cristo, não precisando com judeu-cristão).
Na história, os dogmatismos (aferra-
se circuncidar, mas, com liberdade, mentos a ritos e normas) são sempre pe-
assentar à mesa com todos.” rigosos, porque conduzem ao fechamento
em si mesmo. Tornam-se fundamentalistas
e sectários. O clima de intolerância religiosa
(Gl 1,7-22), talvez mais ortodoxo, e agora (lei do puro/impuro) e racial (gentio não
viviam a experiência cristã. Na sua missão, pode comer conosco) tantas vezes é repe-
os judaizantes comportavam-se como se ain- tido com outros rituais religiosos e posturas
da fossem do judaísmo, sustentando que os autoritárias que censuram, provocam medo
gentios deviam se circuncidar (Gl 5,2-12) e e insegurança nos grupos subalternos. Os
praticar a lei do puro/impuro (Gl 2,11-14). É dogmatismos sentenciosos podem matar, até
por isso que o apóstolo os acusou de estarem em nome de Deus.
pregando um Evangelho diferente (Gl 1,9).
A carta aos Gálatas é bem conflituosa: da 1.2. “Não há escravo nem livre”:
parte dos judaizantes, os gentios deveriam se rompimento com a escravidão
converter ao cristianismo, com a condição As sociedades greco-romanas eram or-
de observarem a lei do puro/impuro e pra- ganizadas em torno das diferenças entre os
ticarem a circuncisão. Da parte de Paulo, os livres e os escravos. O Império Romano se
gentios evangelizados deviam viver a fé em mantinha pelo “modo de produção escrava-
Jesus Cristo, não precisando se circuncidar, gista”. Havia a presença romana civil em todo
mas, com liberdade, assentar à mesa para as o império com o “patronato” (CROSSAN;
refeições e para a Eucaristia com todos/as. REED, 2007, p. 272-273) e com os contin-
Diante das divisões, foi escrita a “carta da gentes militares atuantes em todas as partes.
unidade em Cristo” (Gl 3,28d), baseada no Com exceção de antigas famílias ricas,
hino batismal. Com ela, descerraram-se duas que moravam em terras tomadas pelos ro-
portas: a da abertura clara e decidida do Evan- manos e aderiram ao sistema imperialista, a
gelho para as nações e a do papel da fé em grande maioria da população era escrava. A
Jesus Cristo. O Evangelho único é o de Cristo maior parte dos habitantes cuidava da agri-
(Gl 1,6-9).A assembleia de Jerusalém (Gl 2,1- cultura, o campo tinha de produzir. Grande
12) clareou a abertura para judeus e gregos e parte dos escravos do império era obrigada
o respeito às diversidades. No projeto de toda a trabalhar nas minas subterrâneas (carvão,
a ekklesía, os judeu-cristãos e os gentio-cris- minério precioso), em péssimas condições.
tãos deveriam conviver como membros vivos Os escravos das pedreiras despendiam enor-
da mesma fraternidade, respeitando o que me força física para dar suporte às grandes
era próprio de cada cultura (Gl 5,13-26). construções. Nas cidades, os escravos mais
preparados culturalmente serviam as autori-
1.1.3. Intolerância religiosa ontem e hoje dades e as famílias de elite, exercendo ativi-
A intolerância religiosa manifestou-se na dades educativas, administrativas, nos banhos
assembleia de Jerusalém, com os espiões da públicos, nos aquedutos. Os/as escravos/as
liberdade (Gl 2,4), repetiu-se em Antioquia domésticos/as dependiam do humor dos seus
(Gl 2,11-14) e efetivou-se na Galácia, com os senhores e das tarefas que lhes eram confiadas
judaizantes (Gl 1,6-7). Com isso, criou-se um (FERREIRA, 2005, p. 110).

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O império, em nível administrativo e mili-
tar, era completíssimo (STEGEMANN; STE-
GEMANN, 2004). Cada localidade tinha de Uma introdução
garantir e sustentar as forças militares: alimen- ao Pentateuco
tação dos inumeráveis soldados, limpeza e ma- Nilo Luza
nutenção dos uniformes, higiene dos quartéis.
No nível agrário, a contradição se explicitava
no consumo dos milhares de soldados das
legiões.As colônias, além de mantê-los, repas-
savam os excedentes de produção ao sistema
romano. Este sugava quase tudo das colônias.

1.2.1. Luta contra a escravidão ontem e hoje


Paulo tomou várias atitudes, em oposição
ao sistema escravagista, para trazer os escra-
vos às experiências cristãs da igualdade: em
Gálatas, denunciou o desrespeito à liberdade
(Gl 2,4) e gritou pela liberdade em Cristo
(Gl 5,1.15); toda a carta aos Coríntios é

Imagens meramente ilustrativas.


uma opção pelos “fracos, vis e desprezados”
56 págs.

(1Cor 1,26-29) e um alerta para que “não


vos torneis escravos dos homens” (1Cor CONFIRA
7,22-23); o apóstolo se revoltou com alguns VERSÃO
ricos da comunidade que, na celebração da E-BOOK
ceia do Senhor, discriminavam os pobres
(1Cor 11,17-38), provavelmente escravos O objetivo da obra é desenvolver
(FERREIRA, 2013, p. 135-141); liderou um comentário sobre os textos
grande coleta nas igrejas para ser destinada que compõem o Pentateuco,
aos miseráveis de Jerusalém (2Cor 8,13-14); formado pelos cinco primeiros
na libertação do escravo Onésimo, desauto- livros da Bíblia: Gênesis,
rizou o escravagismo romano. Êxodo, Levítico, Números e
No Brasil, a vergonhosa escravidão aná- Deuteronômio. Na obra, o leitor
encontrará explicações sobre a
loga sempre existiu, oficiosamente. Ela está
origem dos livros, quando e por
na região “urbana” (indústria têxtil/costura quem foram escritos. Além disso,
e canteiros de obras), na “construção civil” o autor apresenta as teorias sobre
e na “zona rural”. De 1995 a 2016, houve a diversidade de textos e gêneros,
reações jurídicas e religiosas contra a es- entre elas a Teoria Documental
cravidão análoga. Foram criados os Grupos de Wellhausen.
Especiais de Fiscalização Móvel (GEFM) que
conseguiram efetuar centenas e centenas de
“resgates” de seres humanos em condições
Vendas: (11) 3789-4000
escravas. Entidades religiosas (CNBB, CPT, 0800-0164011
Cimi, Conic) têm gritado pela libertação dos
escravos análogos no Brasil. Depois de mui- paulus.com.br
tas vitórias libertadoras, no governo Temer

vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341 27


(2016-2018), aliado da bancada ruralista, ve- Péssah (Páscoa), acontecia também na casa de
rificou-se o retorno pesado da escravidão cada família. Na casa, as mulheres tomavam
no Brasil. Os grupos jurídicos e religiosos, as iniciativas.
porém, não se acomodaram, baseando-se na Os inícios do cristianismo se deram dentro
Constituição, que assegura a inviolabilidade: do judaísmo. Muitas mulheres judias se torna-
“Ninguém será submetido à tortura nem a ram cristãs. Com isso, a prática judaica familiar
tratamento desumano ou degradante” (art. ajudou as experiências cristãs. As igrejas do-
5º, inciso III). mésticas cristãs deveram muito às experiências
hebreias. A casa é onde quase tudo se inicia.
1.3. “Não há homem nem mulher”: As mulheres cristãs, no início, rezavam
rompimento com o patriarcalismo e formavam-se (catequese) dentro da casa.
Na língua original do hino não se falou Aqui se podia falar, cantar, louvar a Deus,
em “homem” e “mulher”. No grego, “ho- celebrar a Escritura e chamar as vizinhas
mem” se diz aner. O hino falou de ársen, que para celebrar a vida do povo. Como os cris-
significa “macho, masculino”.“Mulher”, em tianismos originários foram se abrindo para
grego, é gyné. No hino, porém, foi empregada os gentios, ampliaram-se as relações sociais
a palavra thelys, cujo significado é “fêmea, e religiosas. Foram surgindo líderes cristãs.
feminina”. O hino batismal, portanto, está Algumas saíram do ambiente doméstico para
dizendo que “não há macho (masculino) anunciar o Evangelho fora das casas.
nem fêmea (feminina)” (VANHOYE, 1985).
Possivelmente, os autores do hino usaram 1.3.2. Lideranças femininas
“macho/fêmea” (masculino/feminino) por no hino batismal
causa da situação constrangedora em que Certamente, quem conseguiu que a asser-
viviam as mulheres naquele tempo. ção “não há homem e mulher” entrasse no
Usaremos a expressão “não há homem hino batismal foram mulheres que já eram
nem mulher” como todas as traduções em protagonistas em algumas comunidades.
português decidiram usar. Há na Bíblia várias alusões às líderes cris-
tãs, a partir da “casa” (BRANICK, 1994):
1.3.1. Casa (oikía): origem das Júlia, sua irmã (Rm 16,15); Ápia (Fm 1,1-2);
comunidades femininas Lídia em Filipos (At 16,15). Nas casas, as
No mundo hebraico/israelita, na esfera mulheres iam encontrando seu espaço para
religiosa, as experiências domésticas devem exercer as funções de líderes das igrejas.
ser salientadas historicamente. No templo e As mulheres percebiam que podiam partici-
nas sinagogas, as mulheres eram marginali- par da vida comunitária, sem nenhuma repreen-
zadas. No entanto, as celebrações domésticas são contra elas. O salto para a liberdade comu-
constituíam uma força para o avivamento da nitária em Jesus Cristo as foi levando à clareza
família, e aí a mulher tinha seu espaço. Era sobre a igualdade com os irmãos masculinos.
o momento primário para a transmissão da Mulheres e homens caminhavam juntos, com
fé. A família, de manhã, à noite e também igualdade (FERREIRA, 2015, p. 105-118).
nas refeições, tinha o momento de oração. O apóstolo aludia às líderes com muito
Muitas vezes, isso cabia à mulher. Havia algu- carinho e afeição. Aos filipenses, referiu-se
mas festas realizadas na casa: Sukkot (festa das a duas líderes: Evódia e Síntique, porque elas
Tendas no jardim da casa); Shavuot (festa das “lutaram a meu lado pelo Evangelho” (Fl
Semanas); a decoração das casas com flores: 4,2-3). A Filêmon, fez alusão “à nossa irmã
Hanukká e Purim; a festa mais significativa, a Ápia” (Fm 1,2).Aos coríntios, lembrou-se da

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casa de Cloé (1Cor 1,11), de Priscila e seu es- Na ekklesía se realizam as experiências da
poso, Áquila (1Cor 16,19). Aos romanos, fa- liberdade e da igualdade entre os irmãos.
lou:“Recomendo a vocês Febe, a nossa irmã, Tudo e todos se transformam por causa da
diaconisa da comunidade de Cencreia” (Rm “unidade” (UM SÓ) em Jesus Cristo.
16,1-2). Saudou Priscila e Áquila (Rm 16,3- As pequenas comunidades cristãs rom-
5). Referiu-se a Maria (Rm 16,6). Aludiu a piam com as discriminações e intolerâncias.
um casal: “Saudai Andrônico e Júnia, meus Todos os “filhos de Deus” eram chamados à
parentes e companheiros de prisão” (Rm experiência do amor (Gl 5,13-14). O hino
16,7). Saudou três mulheres:“Trifena e Trifosa, batismal é um apelo à unidade, e toda a carta
que se afadigaram... Pérside, que muito se aos Gálatas é uma conclamação à comunhão.
afadigou no Senhor” (Rm 16,12). Referiu-se Olhando o contexto vital atual e o Mês
a uma mãe: “Saudai a Rufo, este eleito do da Bíblia, perguntemo-nos: que barreiras al-
Senhor, e sua mãe” (Rm 16,13). Lembrou-se guns cristãos constroem hoje, provocando
de duas mulheres: “Saudai Filólogo e Júlia, a desunião? Seria bom que cada leitor/a
Nereu e sua irmã, Olimpas” (Rm 16,15). olhasse os muitos dados positivos da unidade
eclesiológica entre nós.
1.3.3. Cristãs da base ontem e hoje
Paulo partiu da base. Se esta era unida em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
torno do Cristo Jesus, então o hino era Pa-
lavra de Deus. Na base ocorria a comunhão BAUMERT, Norbert. Mulher e homem em Paulo.
São Paulo: Loyola, 1999.
entre mulheres e homens. Os cristianismos
originários foram se clareando em nível de BETZ, Hans-Dieter. Galatians: a commentary on
Paul’s letter to the churches in Galatia. Phila-
gênero, porque a declaração batismal for- delphia: Fortress Press, 1988.
çou as rupturas androcêntricas (FABRIS;
BRANICK,Vincent. A igreja doméstica nos escritos
GOZZINI, 1986). A experiência de igual- de Paulo. São Paulo: Paulus, 1994.
dade levou várias mulheres a assumir lide-
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do
ranças de igreja. Como o batismo transforma Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
os membros do povo de Deus, as mulheres CROSSAN, J. D.; REED, J. L. Em busca de Paulo:
(judias e gentias) se tornaram “sujeitos” e como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de
“protagonistas”, sendo impulsionadas para Deus ao Império Romano. São Paulo: Pau-
a evangelização. Hoje, se olharmos as co- linas, 2007.
munidades eclesiais de base, a maioria dos FABRIS, Rinaldo; GOZZINI,Vilma. A mulher na
participantes, quase sempre, são mulheres. O Igreja primitiva. São Paulo: Paulinas, 1986.
papa Francisco tem lembrado que as mulhe- FERREIRA, Joel Antônio. Gálatas: a epístola da
res são protagonistas de uma Igreja em saída. abertura de fronteiras. São Paulo: Loyola, 2005.
______. Primeira epístola aos Coríntios. São Paulo:
Conclusão: “Todos vós sois UM SÓ em Fonte Editorial, 2013.
Cristo Jesus” (Gl 3,28d) – ontem e hoje ______. Religião e gênero. Paralellus, Recife, v. 6,
n. 12, p. 105-118, jan./jun. 2015.
O hino afirma que “todos” foram “batiza-
dos” e “vestidos”. A identidade se inicia, pela STEGEMANN, Ekkhard W.; STEGEMANN,
Wolfgang. História social do protocristianismo: os
fé, com o batismo. Este aproxima gentios, primórdios do judaísmo e as comunidades de
mulheres, escravos, livres, homens, judeus, Cristo no mundo mediterrâneo. São Leopoldo:
porque “todos vós sois filhos de Deus, pela Sinodal, 2004.
fé em Cristo Jesus”, e “todos vós sois UM só VANHOYE, A. La lettera ai Galati. Roma: PIB,
em Cristo Jesus”. Acabaram os privilégios. 1985. v. 2.

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Rafael Rodrigues da Silva*

A LIBERDADE CRISTÃ
E OS CONFLITOS NAS
COMUNIDADES

*Rafael Rodrigues da Silva, biblista, integrante da direção


nacional do Cebi, professor da Universidade Federal de Alagoas,
campus Arapiraca. E-mail: raphaelli.puc@gmail.com

30 vidapastoral.com.br • ano 62 • n o 341


A carta aos Gálatas apresenta Paulo, com sua franqueza, chamando a atenção
das comunidades para os conflitos que estavam enfrentando. Diante da cultura
plural das comunidades e dos seus problemas pastorais, o apóstolo as orienta e
exorta para a retomada do Evangelho ali anunciado e para que não caiam nas
armadilhas do “outro Evangelho”, pautado pela Lei. Temas como a liberdade
e o hino batismal – marcas do cristianismo recebido e vivido com entusiasmo
quando da passagem de Paulo pela região – são fundamentais no caminho
que o apóstolo reconstrói com as igrejas da Galácia.

INTRODUÇÃO
Encontramos diferentes maneiras de ler a entre o grupo de Jerusalém e o grupo de
carta endereçada às igrejas da Galácia. Pode- Antioquia (os de fora da Palestina).
mos lê-la segundo o ponto de vista de quem Os cristianismos que se espalharam e
escreve ou daqueles e daquelas que, na região, as comunidades da Galácia enfrentaram a
a receberam, leram, interpretaram e reagiram dura realidade de opressão naquele sistema
ao seu conteúdo. Esses dois caminhos não de guerras, empobrecimento e escravização.
deixam de ser interessantes e provocantes para A percepção dos conflitos presentes no
a releitura em nossas comunidades, em meio a cotidiano da comunidade e nas entrelinhas da
pandemias, conservadorismos, intolerâncias e carta nos revela o rosto da comunidade, suas
opressões. Lê-la na perspectiva da sua recepção escolhas, erros, tentativas de diálogo e de acerto
na comunidade desafia nossa imaginação e nos nos passos para solucionar os problemas.
provoca a entrar no debate que se criou entre
os fiéis e suas lideranças. Nestor Míguez conta 1. AS COMUNIDADES DA GALÁCIA
a experiência de leitura popular da Bíblia A Galácia compreendia, naqueles tempos,
num encontro ecumênico no Uruguai, no a região onde foram assentadas tribos gálicas
qual se propôs a escrita de uma carta a Pau- desde o século III a.C., um território que,
lo, demonstrando a reação das comunidades no período da dominação romana, serviu
(MÍGUEZ, 2017, p. 158-159). As respostas como ponto estratégico para dominar Pér-
nos conduzem às suspeitas de como as igre- gamo. Assim, ao redor de 40 a.C., Pisídia,
jas da Galácia reagiram e conseguiram resol- Frígia, Licaônia e Isauria passaram a per-
ver seus conflitos e problemas cotidianos. tencer à Galácia e tornaram-se importante
O caminho que propomos para a leitura província romana. Não adentraremos na
da carta é o dos conflitos. Se fizermos rápida discussão sobre o que representa, na carta,
incursão nos ambientes das comunidades a expressão “Galácia” em 1,2 e a referência
cristãs ou da prática cristã que emergiu na “gálatas” em 3,1, pois há alguns estudiosos
primeira geração de cristãos, iremos deparar que argumentam que se trata de referência
com confrontos e brigas recorrentes, seja a toda a região, enquanto outros veem uma
entre judeus e cristãos, seja entre cristãos menção à província romana da Galácia.
vindos do judaísmo e cristãos vindos de fora
dessa tradição. Podemos perceber, no relato O nome geográfico e político Galácia
de Atos 15 sobre a assembleia (Concílio) de é usado em dois sentidos. O primeiro
Jerusalém, quanto foi acirrada a discussão significado designa o Planalto da Anatólia

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“No ambiente das viagens de Paulo
e de outros missionários para
a região da Galácia, não se
apresentava um ‘cristianismo’
separado do ‘judaísmo.’”

Central entre o Ponto, a Bitínia e a Licaô- tivessem a certeza comum de pertença a Israel
nia. O nome deriva dos gauleses que inva- e a suas tradições e interpretassem as mesmas
diram a Macedônia, Grécia e Ásia Menor Escrituras (KOESTER, 2005, p. 132).
em 279 a.C. e anos seguintes; finalmente As comunidades da Galácia são marcadas
eles se estabeleceram na Anatólia, onde pela pluralidade cultural, e a identidade cristã
formaram um reino. Em 64 a.C. a Galá- se constrói num lento processo, desde a recep-
cia tornou-se um estado dependente de ção do Evangelho anunciado por Paulo, em
Roma, e nos anos seguintes o territó- meio às tradições judaicas que já se encontra-
rio do reino foi ampliado pelas regiões vam na região, passando por outras propostas e
vizinhas. No segundo sentido, Galácia discursos de judeu-cristãos. Entre as comuni-
designa a província romana da Galácia, dades da região da Galácia, deparamos com os
estabelecida em 24 a.C., depois da morte conflitos entre judaísmos e judaísmos, ou seja,
do último rei, Amintas; incluía a região entre judeus de fato em oposição aos judeus
da Galácia e as regiões da Pisídia, Panfília, que se tornaram cristãos. Contudo, também
e parte da Licaônia. Depois desta data, o encontramos conflitos entre cristianismos e
nome Galácia foi usado para designar a cristianismos. É patente a presença de um cris-
província (MACKENZIE, 1993, p. 309). tianismo que se abre para o mundo helênico
bem como de outro que se fecha nas tradições
Trata-se de grupos étnicos que estão na judaicas, além de um cristianismo que relê as
origem dos habitantes da província romana tradições em defesa dos empobrecidos. Nessas
da Galácia – certamente, grupos bem hete- comunidades há um misto de confluência
rogêneos, entre os quais encontramos gála- cultural e tentativas de diálogo e unidade.
tas, gregos, galo-gregos, romanos e judeus.
Os gálatas não gozavam de muita simpatia Os diferentes grupos cristãos nos pri-
entre os gregos e eram considerados raça mórdios do cristianismo se formaram e
misturada, simplórios, imprevisíveis, cruéis, configuraram a partir dos diversos con-
sem perseverança e fáceis de ser enganados textos judaico-helenísticos e inseridos no
(O’CONNOR, 2000, p. 199). mundo greco-romano; atuavam com re-
Conforme Atos 13, a comunidade de ciprocidade, reinterpretavam os elementos
judeus da Galácia já estava assentada ali e bem religiosos e socioculturais e as diversas
organizada antes da chegada de Paulo e Bar- formas de pensamentos ali encontrados.
nabé. É importante lembrar que, no ambiente Tal realidade aponta para diferentes com-
das viagens de Paulo e de outros missionários preensões dos mesmos acontecimentos e,
para a região da Galácia, não se apresentava com isso, possibilita atribuir-se ao cris-
um “cristianismo” separado do “judaísmo”; tianismo um significado flexível e plural,
tampouco Paulo e aqueles que se opunham que supera a compreensão monolítica
a ele sabiam que eram “cristãos”, embora (IZIDORO, 2017, p. 14).

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A heterogeneidade demográfica e cultural
que marca a região da Galácia nos leva a
efetuar a leitura de que uma comunidade de Parábolas na Bíblia
judeus da Galácia se agregou à comunida- Luiz Alexandre Solano Rossi
de paulina e a interpretação que faziam do e Valmor da Silva (orgs.)
Evangelho de Jesus Cristo produziu reações
em Paulo, que então lhes escreve uma carta
com linguagem franca. Deixa transparecer
que os inimigos que atacavam o Evange-
lho paulino representam grupos judaizantes,
que podem ser judeus tentando fazer com
que os cristãos voltem a seguir as práticas
judaicas ou cristãos de origem não judaica
que procuravam fielmente obedecer à Torá.
Este conflito ao redor dos costumes e da
prática da Lei está presente no Concílio de
Jerusalém (At 15 e Gl 2) e aponta para a
seguinte constatação:

Imagens meramente ilustrativas.


Os oponentes gálatas são os primeiros
apóstolos ambulantes conhecidos que
240 págs.

invadiram uma igreja paulina. Sua men-


sagem recomendava que os novos con-
vertidos gentios fossem circuncidados e
observassem a lei ritual para usufruir de
todos os benefícios de sua condição re- O livro procura investigar o uso
cém-obtida como membros do povo de de parábolas ao longo das
Sagradas Escrituras. Para isso, faz
Deus (KOESTER, 2005, p. 133).
uma grande introdução ao gênero
literário e investiga as parábolas
Da leitura da carta de Paulo às igrejas presentes nos apócrifos, que não
da Galácia infere-se que os opositores estão entraram no cânon judaico-cristão.
dentro das comunidades e conduzindo-as em Além disso, interpreta parábolas
outra direção, a ponto de atacarem o Evan- específicas do Antigo Testamento
gelho paulino e serem apresentados como e de cada um dos Evangelhos.
representantes do “outro” Evangelho, com Apresenta ainda a maneira pela
a exigência da circuncisão e a obediência qual a argumentação parabólica
paulina é construída.
aos rituais e costumes judaicos. Para Paulo,
a comunidade tinha recebido o Evangelho
como dom gratuito do Espírito e agora corre
o risco de ficar dependente das “obras” da
Lei – traduzidas na circuncisão e em nor-
Vendas: (11) 3789-4000
mas cultuais sobre comida e tempos, con- 0800-0164011
forme lemos em Gl 3,2; 4,8-10; 5,2; 6,12-13
(SAMPLEY, 2008, p. 291). Paulo escreve para paulus.com.br
que as igrejas da Galácia não consintam em

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“Com o tema da
justificação pela fé, Paulo fundamental para que os gentios pudessem
não nega a Lei, mas afirma ser cristãos. Eles representam judeu-cristãos
que buscam fazer dos gentios “novos” cris-
que ela “tornou-se nosso tãos por meio do Evangelho da Lei. A iden-
pedagogo até Cristo.” tidade cristã passa pela herança abraâmica:
Jesus, filho de Abraão. A memória de Abraão
era fundamental, pois, conforme Gn 17, ele
era praticante da lei da circuncisão. Justa-
seguir a pregação dos “perturbadores” que mente a releitura das tradições ao redor de
estão apresentando o Evangelho de tendência Abraão, Sara e Agar é parte dos argumentos
judaica (Gl 1,7 e 5,10). de Paulo para as igrejas da Galácia.
Se lemos o hino em Gl 3,26-28 junto Certamente os influenciadores nas igrejas
com a primeira questão levantada na carta da Galácia utilizaram a figura de Abraão para
acerca do “outro Evangelho” que está sendo ilustrar como deve ser o cristão praticante da
anunciado na comunidade (1,6-10), perce- Lei mosaica. Em Gl 3, Paulo procura situar
bemos o conflito entre dois modelos: de Abraão e seus descendentes como praticantes
um lado, o Evangelho anunciado por Paulo do bem pela fé, indicando que aqueles que
naquela região, conhecido pela comunidade caminham pela Lei estão na linha da mal-
como “Evangelho de Cristo”; de outro, o dição (cf. v. 6-9, em oposição aos v. 10-14).
Evangelho baseado na Lei judaica ou mo- Com o tema da justificação pela fé, Paulo não
saica. A confusão aludida no início da carta nega a Lei, mas afirma que ela “tornou-se
e o apelo à unidade no hino apontam para nosso pedagogo até Cristo” (3,24). Aspecto
o conflito instaurado na comunidade, que fundamental no argumento de Paulo é o da
corre o risco de perder a dimensão da liber- unidade e eliminação das distinções, presente
dade e se tornar prisioneira da Lei. O apelo no hino batismal de Gl 3:
à unidade no hino representa uma tentativa
de enfrentamento do conflito. De fato, todos vocês são filhos de Deus,
Com base nesse contexto, logo somos le- por meio da fé em Cristo Jesus. Pois todos
vados a ler a carta para as comunidades da Ga- vocês, que foram batizados em Cristo, se
lácia como uma “carta indignada” e carregada revestiram de Cristo. Não há judeu nem
da decepção de Paulo com a comunidade. grego, não há escravo nem livre, não há
No entanto, não podemos assumir somente homem nem mulher, pois todos vocês são
essa perspectiva de leitura.Temos de levar em um só em Cristo Jesus (3,26-28).
conta a ternura e o apreço que o apóstolo
nutre pelas comunidades. Por exemplo, ele Esse hino batismal que conclui o capítulo
os chama de “irmãos” (adelphoi) nove vezes: 3 já era conhecido nas comunidades, e Paulo
1,11; 3,15; 4,12.28.31; 5,11.13; 6,1.18. não só faz uso dele, como também o insere
no centro de sua carta.Vale lembrar que en-
2. CONFLITO ECLESIAL AO REDOR contramos esse hino em outras cartas: 1Cor
DO EVANGELHO ANUNCIADO 12,13; Cl 3,11; Rm 10,12. Comparando esses
E SUA PRÁTICA textos, podemos concluir que Paulo deve
Depois que Paulo passou pela Galácia ter procurado um texto mais completo para
anunciando o Evangelho, outros pregado- argumentar sobre seu propósito da unidade
res andaram por aquelas comunidades, de- nas comunidades. O batismo e a pertença à
fendendo a prática da Lei mosaica como comunidade estavam presentes nas liturgias

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e na organização dos diferentes cristianismos e com extremo zelo pelas leis e tradições, e
originários. É interessante que somente na como Deus o separou e o chamou pela graça
carta aos Gálatas aparece a referência “não para anunciar a Boa Notícia entre as nações
há homem nem mulher”, o que demonstra (1,11-16); suas viagens missionárias (1,17-
a forte presença das mulheres nas igrejas da 24); o período do Concílio em Jerusalém
Galácia. O hino tem, na abertura, a expressão: (2,1-10); como manteve sua posição contra
“todos vocês são filhos de Deus” e conclui Pedro e em favor do Evangelho (2,11-14).
em paralelo com a expressão: “todos vocês Na carta, Paulo apontou fatos conflituosos
são um só em Cristo Jesus”. Assim, conduz na história dos cristianismos originários e seu
as comunidades a entender que a proposta intento de denunciar os grupos missionários
cristã é inclusiva e abre fronteiras, ao passo que estavam gerando divisão e destruindo o
que o Evangelho pregado pelos opositores trabalho que fora realizado. A lembrança do
é excludente e tem como critério de per- concílio demonstra à comunidade o quanto
tença a observância da Lei e dos costumes. os missionários que se infiltraram nas igrejas
As igrejas cristãs têm de se abrir em termos da Galácia estavam indo contra as determi-
econômicos, sociais (não há escravo nem nações e acordos estabelecidos em Jerusalém.
livre), étnicos (não há judeu nem grego) e
de gênero (não há homem nem mulher). Em Paulo e outros helenistas missionários es-
outras palavras, o conflito presente nas igrejas tavam abrindo as fronteiras na direção dos
da Galácia necessita de um projeto além- gentios, anunciando o Evangelho (1,15;
-fronteiras, que aprofunde na comunidade 2,2.8-9; 3,8.14). Nessa proclamação, era
o espírito de igualdade, liberdade e justiça, pregado que também os gentios eram
capaz de derrubar as barreiras da indiferença, justificados pela fé. O apóstolo sugeriu
da marginalização e da escravidão. que era na vida da comunidade livre e
Na organização das comunidades, Paulo igualitária, que vivia no e pelo Espírito,
recorda o Evangelho que anunciou quando portanto, unida e dinâmica, que estava a
esteve na região da Galácia e o quanto é mo- saída. Então, se comunidades de outros
tivo de alegria a perseverança e o entusias- cristianismos originários elaboraram e
mo com que viviam a nova vida em Cristo. emprestaram o texto batismal a Paulo,
Depois de sua partida, porém, as igrejas da agora os gálatas precisavam interrogar suas
Galácia receberam missionários judeu-cris- vidas, espelhando-se no mesmo hino de
tãos que não só anunciaram um Evangelho Gl 3,26-28 (FERREIRA, 2017, p. 111).
diferente, como também impuseram a Lei
mosaica como critério. A carta revela, nas O conflito eclesial, teológico e missio-
entrelinhas, que muitas pessoas nas igrejas nário que aparece nas igrejas da Galácia está
aceitaram essas propostas e foi instalada a espelhado no conflito entre o Evangelho da
divisão das igrejas da Galácia. cruz, anunciado por Paulo, o Evangelho das
O discurso da unidade e o resgate do ele- ritualizações judaicas e o Evangelho itine-
mento fundamental da identidade e da exis- rante entre as comunidades, defendido pela
tência da comunidade cristã são apresentados comunidade de Jerusalém. A postura radical
por Paulo numa mistura entre indignação e de Paulo, em sua carta às igrejas da Galácia,
ternura para com a comunidade. Por isso, na nega a relação do Evangelho de Cristo com
primeira parte da carta, o apóstolo se pauta qualquer variante que implique pertença a
pelos exemplos e testemunhos: como se com- grupos de poder (“Cristo e a Lei”, “Cristo
portava antes no judaísmo, como perseguidor e a circuncisão”, “Cristo e a raça”, “Cristo

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e o imperador”). Essas variantes negam o proposta que exclui mulheres, pobres, crianças,
Evangelho (ah, quantas variantes hoje, no impuros, estrangeiros e escravos. Ou seja, todos
Brasil, negam o princípio cristão e o Evan- aqueles e aquelas que eram impedidos de estar
gelho!) e, certamente, na comunidade e de conviver como irmãos.
É notório que a liberdade tem grande
a cruz desqualifica qualquer “e...” que importância na carta aos Gálatas, escrito que
se queira acrescentar ao Evangelho ou nos deixa entrever que os trabalhadores e os
qualquer distinção que se queira intro- empobrecidos naquela região estavam pri-
duzir entre os seres humanos. A cruz não vados dela e dos mínimos direitos para viver
traz nem admite prestígio, nem sabedo- dignamente.Também estavam marcados na
ria, nem riqueza, nem orgulhos raciais. A esfera religiosa por uma escravização da Lei,
cruz era o modo de morte dos escravos e com seus rigorismos e a lógica da santidade
rebeldes, a mais denigridora das condena- e pureza, a qual aumentava ainda mais a dis-
ções, a condenação própria dos malditos. tância entre ser escravo e viver uma vida livre,
Portanto, é incompatível com qualquer conforme a proposta do Reino e sua justiça.
pretensão de poder, com qualquer sinal O trecho de Gl 5,1-6 representa belo texto
de mérito (MÍGUEZ, 1995, p. 25). para a comunidade, pois apresenta a liberdade
na dimensão da graça e do espírito. Paulo
3. ESCRAVIDÃO X LIBERDADE argumenta com base no Evangelho de Jesus,
Refletimos até aqui sobre um primeiro recusando uma leitura alicerçada na Lei mo-
ponto de conflito: os diferentes e divergen- saica. Para os pobres que se encontravam na
tes Evangelhos anunciados nas comunidades. escravidão, os preceitos e leis judaicas refor-
Estas se encontram diante da escolha entre o çavam a manutenção daquelas condições. A
Evangelho anunciado com base nos ensina- liberdade vista somente pelo prisma religioso
mentos e na memória de Jesus crucificado não era garantia que os empobrecidos viriam
e ressuscitado e o Evangelho da glorificação, a ser livres na esfera econômica e social.
imposta pelas alianças de poder naquela região, Havia uma distância muito grande entre
tão marcada pela realidade de escravidão e ser escravo e ser livre na sociedade greco-
opressão e pela liberdade daqueles que têm -romana (vale lembrar que o Império Ro-
garantida a cidadania aos olhos do império. mano vivia da escravidão). O sujeito que
Para a imposição de um Evangelho adequa- era livre tinha cidadania e estava na mesma
do aos propósitos imperialistas e à lógica do classificação de senhor. Participava da or-
poder, colaboram os mecanismos de “pureza ganização social e tinha direitos e deveres
e santidade” advindos da tradição judaica. Essa naquela sociedade. Já o escravo não tinha
questão produziu grande divisão não só entre nenhum direito. Pensando na conjuntura das
as comunidades de Jerusalém e de Antioquia, igrejas da Galácia, recordemos como as pes-
mas também (e sobretudo) nas comunidades soas se tornavam escravas naqueles tempos.
na região da Galácia. Na leitura da carta, per- Se a pessoa havia praticado algum crime, a
cebemos a defesa apaixonada dos princípios escravidão era uma forma de castigo e pu-
da liberdade e da vivência da unidade nos es- nição.Também a pessoa que já nascia numa
paços cotidianos da comunidade, aspectos que família de escravos tinha na escravidão sua
sabemos não serem tão fáceis de encontrar herança. A forma mais promovida pelos ro-
na caminhada das comunidades, marcadas por manos era a escravidão por dívidas e guerras.
uma herança hierárquica e patriarcal. Comu- Determinada cidade, ao perder uma guerra,
nidades que estão caminhando segundo uma via seus habitantes serem transformados em

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prisioneiros e escravos, ou a pessoa vendia pelos modelos e esquemas deste mundo, que
seus filhos como forma de pagar dívidas. escravizam e destroem tudo e todos. Quase
Imaginemos o quanto essa realidade estava no final da carta, a certeza que Paulo queria
presente na região da Galácia, com as inúme- que as igrejas da Galácia transmitissem:“Nem
ras conquistas e ações do Império Romano. a circuncisão nem a incircuncisão valem
Havia escravos destinados aos serviços na nada, e sim a nova criatura” (Gl 6,15). Essa
agricultura, nas minas e nas pedreiras. Na certeza teremos de construir para nossos dias,
expansão econômica romana, foi fundamen- na luta contra o sistema econômico, político,
tal a utilização de escravos nas construções social e religioso que está matando a todos e
de estradas. Também havia contingente de destruindo tudo. O poder religioso, o capital,
escravos nos serviços administrativos e nos o poder político, os projetos e alianças dos
trabalhos domésticos. A vida das igrejas da governos nos parlamentos não valem nada,
Galácia era marcada pelo grande número e sim a nova criatura. Seguindo essa regra,
de escravos na região, e estes figuravam en- construiremos um mundo diferente.
tre os pobres que deviam ser lembrados no
projeto da comunhão e partilha comunitária REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(Gl 2,10 e a coleta dos pobres). As admoes-
tações da carta aos Gálatas apresentam, em FERREIRA, Joel Antônio. Abertura de frontei-
linhas gerais, uma reflexão sobre as divisões ras: a universalidade do Evangelho (Gl 3,26-
produzidas nas igrejas pelo outro Evangelho, 28). Revista de Interpretação Bíblica Latino-Ame-
ricana, São Bernardo do Campo: Metodista,
baseado nas leis judaicas. É, porém, intrigante
v. 76, n. 3, p. 105-123, 2017.
e questionador que Paulo utilize expressões
como escravidão e liberdade e ressoem como IZIDORO, José Luiz. Introdução às cartas de
alegorias as imagens de Sara e Agar. Cumpre Paulo aos Gálatas. Revista de Interpretação Bíbli-
ca Latino-Americana, São Bernardo do Campo:
ter presente que a afirmação em Gl 5,1 (“É
Metodista, v. 76, n. 3, p. 13-22, 2017.
para a liberdade que Cristo nos libertou.
Fiquem firmes, portanto, e não se deixem KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamen-
prender de novo ao jugo da escravidão”), to: história e literatura do cristianismo primitivo.
São Paulo: Paulus, 2005. v. 2.
que abre o conjunto dos capítulos 5-6, é,
no mínimo, provocativa. Evoca, por trás das MACKENZIE, J. L. Dicionário bíblico. São Paulo:
palavras, a dura realidade da região marcada Paulus, 1993.
pela escravidão. O projeto de liberdade é MÍGUEZ, Nestor. Paulo, o compromisso da fé.
importante para a militância e para a luta Para uma “vida de Paulo”. Revista de Inter-
por transformação social nas comunidades. pretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis:
A comunidade não pode caminhar, celebrar, Vozes, São Leopoldo: Sinodal, p. 7-29, 1995.
viver o Evangelho e a comunhão entre ir- ______. Conflito e liberdade: Gálatas 2,11-14 e
mãos e irmãs sem enfrentar as desigualdades as lutas intraeclesiásticas. Revista de Interpre-
sociais, o empobrecimento e a escravidão. tação Bíblica Latino-Americana, São Bernardo
do Campo: Metodista, v. 76, n. 3, p. 149-161,
UMA PALAVRA FINAL 2017.
A leitura pastoral da carta aos Gálatas nos O’CONNOR, J. M. Paulo: biografia crítica. São
desafia a enfrentar os problemas e conflitos Paulo: Loyola, 2000.
em nossas comunidades nos mais variados as- SAMPLEY, J. Paul (Org.). Paulo no mundo greco-
pectos e lançar as apostas no compromisso da -romano: um compêndio. São Paulo: Paulus,
comunidade com a defesa da vida fragilizada 2008.

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ROTEIROS HOMILÉTICOS
Francisco Cornélio Freire Rodrigues*

23° DOMINGO DO TEMPO COMUM leitura recorda que não há contradição


5 de setembro entre a imparcialidade de Deus e a opção
preferencial pelos pobres, e esse deve ser o
O Deus que liberta parâmetro do agir cristão. O salmo é uma
e faz opção pelos pobres síntese poética de cada leitura.

I. INTRODUÇÃO GERAL II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS


Neste primeiro domingo do Mês da 1. I leitura (Is 35,4-7a)
Bíblia, a liturgia evidencia o cuidado de A primeira parte do grande livro de Isaías,
Deus com a vida e a força libertadora da chamada convencionalmente pelos estudio-
sua Palavra, cuja expressão máxima é Jesus sos de “Primeiro Isaías” (Is 1-39), é obra do
de Nazaré e sua práxis. Isso mostra que Isaías clássico, um profeta que exerceu seu
Deus tem um projeto de libertação e vida ministério em Jerusalém, antes do exílio,
plena para a humanidade e, também, que provavelmente entre os anos 740 e 700 a.C.
cada pessoa é chamada a participar desse Contudo, essa obra possui duas seções de
projeto, abrindo-se à escuta da Palavra e estilo apocalíptico (Is 24-27; 34-35), chama-
fazendo das opções de Deus as suas, espe- das respectivamente de grande e pequeno
cialmente no compromisso com os pobres apocalipse, que remontam ao final do exílio,
e marginalizados, como fez Jesus. pertencendo originalmente à segunda parte
Todas as leituras deste domingo re- do livro, denominada de “Segundo Isaías”
cordam esse projeto libertador de Deus. (Is 40-55). Tirada do pequeno apocalipse,
Na primeira, o profeta injeta coragem e a primeira leitura é um hino de restaura-
esperança no povo exilado na Babilônia, ção que anuncia a intervenção de Deus
anunciando o fim do cativeiro e o retor- em favor do seu povo exilado na Babilônia.
no à terra, com imagens que descrevem a O anúncio profético contempla, inicial-
restauração da vida, tanto do ser humano mente, um convite à coragem e à esperança
quanto da natureza. O Evangelho mostra (v. 4). Isso porque, embora esteja próxima,
o cumprimento do anúncio profético por a libertação não é imediata. Por isso, é im-
Jesus – com a cura de um homem surdo portante que o povo mantenha viva a fé e
que falava com dificuldade –, atestando a o espírito de resistência. A opressão torna as
qualidade da sua messianidade. A segunda pessoas deprimidas, mas é certo que Deus

*Francisco Cornélio Freire Rodrigues é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontificia Università San
Tommaso D’Aquino – Angelicum (Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf), no Recife, e bacharel em Teologia
pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte
(Mossoró-RN). E-mail: francornelio@gmail.com

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vem em seu socorro, para salvar. A salvação, Deus e a opção preferencial pelos pobres. De
aqui, consiste no fim do exílio. A vingança praxe, as sociedades costumam privilegiar as
anunciada nada tem que ver com violência pessoas ricas, favorecendo-as das mais diversas
ou ira: significa a reivindicação do direito maneiras. O autor recorda que essa prática é
dos pobres e oprimidos. E é Deus quem faz inaceitável na comunidade cristã, uma vez
isso, restabelecendo a justiça, que, neste caso, que a fé em Jesus Cristo não admite acepção
é a libertação do seu povo. Obviamente, isso de pessoas (v. 1). Aqui, fazer acepção de pes-
passa pelo desmonte dos instrumentos de soas significa privilegiar os ricos, favorecê-los
opressão – no caso, o Império Babilônico. por causa das aparências e da condição social,
Na sequência, são descritos os efeitos da como o autor ilustra com um exemplo bem
intervenção libertadora de Deus com ima- concreto (2-4). Fazer isso é ignorar a opção
gens que representam a restauração total da preferencial que Deus já fez pelos pobres (v.
vida, começando pelo ser humano.A cura de 5). Embora pareça contraditório, é assim que
doenças e a superação de deficiências são si- funciona a imparcialidade de Deus: ele ama a
nais de vida nova (v. 5-6a), interpretados mais todos indistintamente, mas seus cuidados se
tarde como a chegada dos tempos messiâni- voltam especialmente para os pobres e margi-
cos. A intervenção de Deus comporta tam- nalizados, muitas vezes vítimas das injustiças e
bém a renovação da natureza, com a trans- da ganância dos ricos. E assim deve ser o agir
formação do deserto em jardim (v. 6b-7a). A cristão, como foi o agir de Jesus de Nazaré.
mensagem de esperança do profeta encontra
seu cumprimento na vida e obra de Jesus de 3. Evangelho (Mc 7,31-37)
Nazaré, como mostra o Evangelho. Isso con- Ao ensinar que nenhum elemento exter-
firma que ele é o verdadeiro Messias e reali- no pode tornar o ser humano impuro, mas
zador do projeto libertador de Deus, seu Pai. somente o que é gerado no coração (Mc
7,1-23), Jesus declarou o fim das barreiras
2. II leitura (Tg 2,1-5) que impediam o encontro e a convivência
Continua a leitura da carta de Tiago, que fraterna com as pessoas de etnias, religiões e
foi iniciada no domingo passado e continuará culturas diferentes. Por isso, fez uma campa-
nos próximos três domingos.Trata-se de um nha missionária em terras pagãs (Mc 7,24-
escrito do final do primeiro século, dirigido 8,10), cumprindo, também ali, sinais seme-
a comunidades cristãs de fora da Palestina, lhantes aos já cumpridos na Galileia, com
chamadas simbolicamente de “as doze tribos destaque para a cura de um surdo-mudo,
da diáspora” (Tg 1,1). A autodenominação episódio correspondente ao Evangelho deste
do autor como Tiago é pseudônima. As domingo. Exclusivo de Marcos, o episódio é
características da carta não apontam para paradigmático: revela o cuidado e o zelo de
nenhum dos quatro personagens neotesta- Jesus para com o ser humano, obra-prima
mentários com esse nome, a saber: o filho da criação, com seu amor inclusivo.
de Zebedeu (Mc 1,19), o filho de Alfeu (Mc O primeiro elemento relevante do texto é
3,18), o irmão do Senhor (Gl 1,19) e o pai o indicativo geográfico: a passagem de Jesus
de Judas Tadeu (Lc 6,16). O local da redação por Tiro e Sidônia e pela Decápole, terras
também é desconhecido, sendo mais prová- pagãs, não sujeitas à Lei judaica (v. 31). A
veis as cidades de Alexandria ou Antioquia. Decápole era uma espécie de confederação
O trecho lido nesta liturgia – como, aliás, de dez cidades de cultura grega localizadas a
toda a carta – chama a atenção para a relação leste do mar da Galileia. A atuação de Jesus
entre fé e vida, recordando a imparcialidade de nessa região indica o universalismo da sua

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mensagem. Na sequência, vem apresentado A conclusão do texto atesta a qualidade
o destinatário imediato dessa mensagem: um da obra de Jesus, associando-a diretamente à
homem surdo, que falava com dificuldade (v. criação (v. 37). Com efeito, fazer bem todas as
32).A surdez era sinônimo de maldição, con- coisas é a característica do Deus criador, que,
forme a mentalidade da época, pois impedia a ao final de cada obra criada, contemplava que
pessoa de ouvir a proclamação e a explicação aquilo era muito bom (Gn 1). Fazer bem as coi-
da Palavra de Deus. Ora, sem ouvir a Pala- sas é, portanto, agir como Deus. Fazer os surdos
vra, o ser humano estava perdido, sem rumo. ouvir e os mudos falar é a realização das expec-
A acolhida de Jesus revela verdadeira pe- tativas messiânicas, conforme a mensagem da
dagogia do cuidado: ele olha para cada um primeira leitura.Assim, Jesus renova a criação
em particular e age de acordo com as reais do seu Pai, comunicando vida em abundância
necessidades (v. 33). Os gestos descritos pelo à humanidade e tendo as pessoas mais necessi-
evangelista são muito significativos: Jesus toca tadas e excluídas como primeiras destinatárias.
nos ouvidos, cospe e, com a saliva, toca a
língua do homem. Ao tocar, deixa sua marca III. PISTAS PARA REFLEXÃO
no outro, transmite sua essência.Tocando nos Mostrar a relação entre as três leituras, desta-
ouvidos, doou o dom da escuta do Evange- cando o cuidado de Deus com a criação inteira
lho; tocando a língua, capacitou o homem e a plenitude desse cuidado na obra de Jesus.
também para o anúncio. Para a mentalidade Recordar que o amor universal de Deus não
semita, a saliva continha o espírito da pes- contradiz a opção preferencial pelas pessoas
soa; fazendo isso, Jesus transmitiu seu espírito mais necessitadas. Enfatizar a importância e a
vivificador àquele homem, restituindo-lhe a atualidade do imperativo “abre-te” e, como um
dignidade e tornando-o apto para anunciar convite à vivência do Mês da Bíblia, ressaltar
seu Evangelho. que é preciso abrir-se à leitura e ao estudo da
Toda a obra restauradora de Jesus é rea- Palavra de Deus e deixar-se transformar por ela.
lizada em profunda comunhão com o Pai; é
esse o significado do gesto de olhar para o 24º DOMINGO DO TEMPO COMUM
céu (v. 34a). Em seguida, ele dá o comando: 12 de setembro
“Abre-te!” – efatá, em aramaico (v. 34b). Essa
ordem é dirigida à pessoa em sua inteireza, Confessar o Messias
e não apenas aos sentidos com deficiência. com palavras e atitudes
Significa um abrir completo, como deve ser
toda pessoa diante do Evangelho. É fruto da I. INTRODUÇÃO GERAL
força libertadora da palavra de Jesus, como O centro da liturgia deste domingo é o
mostra a sequência do texto (v. 35). O en- reconhecimento da identidade de Jesus como
contro pessoal com ele transforma; quem Messias e as implicações concretas do seu
se deixa tocar por ele e se abre à escuta da seguimento. Isso é evidenciado, sobretudo,
sua palavra, muda radicalmente. É preciso pelo Evangelho, que corresponde ao exato
ter ouvidos abertos e atentos para ouvir e a centro temático e literário da obra de Mar-
língua livre para anunciar. Apesar de nunca cos, constituído pela confissão de Pedro e
ser atendido, Jesus costumava pedir segredo pelo primeiro anúncio da paixão por Jesus,
quando cumpria um gesto prodigioso (v. com as exigências básicas para seu discipu-
36), principalmente em Marcos, que tem lado. A primeira leitura serve de preparação:
o segredo messiânico como um dos temas a situação do servo do Senhor, descrita pelo
mais relevantes. profeta, é prefiguração de Jesus e da natureza

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da sua messianidade. Apesar de perseguido e com violência nem se responde ao mal com
humilhado, o servo mantém inabaláveis a fé o mal (v. 9). Logo, a passividade do servo não
e a confiança no Senhor Deus, levando sua é sinal de impotência nem de resignação;
missão ao pleno cumprimento. A segunda pelo contrário, significa resistência, denúncia
leitura recorda que não é suficiente confessar e, acima de tudo, confiança no Senhor Deus,
a fé com palavras; é necessário traduzi-la em que está sempre do lado dos humilhados.
obras, para torná-la credível. E o compromis- Sendo o servo um personagem anô-
so com as pessoas mais necessitadas é o modo nimo, sua identidade é misteriosa. Alguns
mais eficaz de fazer isso. A certeza de que “o estudiosos afirmam tratar-se do profeta
Senhor defende os humildes” atesta a relação mesmo, tendo em vista que a perseguição
entre as leituras e o salmo responsorial. faz parte da missão. A maioria, no entanto,
vê-o como uma figura coletiva: representa
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS o povo de Israel exilado, especificamente
1. I leitura (Is 50,5-9a) o resto que permaneceu fiel à Aliança, em
A segunda parte do livro de Isaías (Is 40- meio à exploração e ao sofrimento. E essa
55) é atribuída a um profeta-poeta anônimo é a explicação mais plausível. Os primeiros
que exerceu seu ministério profético na fase cristãos o identificaram como prefiguração
final do exílio na Babilônia. Entre os estu- de Jesus, o Messias crucificado por amor e
diosos, convencionou-se denominar a obra fidelidade aos propósitos do Pai.
de “livro da consolação” e o autor de “Se-
gundo Isaías”. Essa obra possui quatro seções, 2. II leitura (Tg 2,14-18)
chamadas de “cânticos do servo do Senhor” A segunda leitura continua a ser tirada da
(Is 42,1-9; 49,1-7; 50,4-11; 52,13-53,12). A carta de Tiago, cuja contextualização foi feita
primeira leitura desta liturgia faz parte do no domingo passado, embora brevemente.
terceiro cântico e apresenta o servo como Por isso, ainda faremos aqui algumas consi-
um personagem perseguido e humilhado, derações contextuais, precisamente sobre o
mas profundamente confiante no Senhor. estilo do escrito. Do gênero epistolar, essa
O servo se apresenta totalmente dispo- carta contém apenas a saudação inicial (Tg
nível para cumprir em sua vida os propó- 1,1); o restante aproxima-se mais dos estilos
sitos de Deus. Ao dizer que o Senhor lhe sapiencial e profético.Trata-se de um conjun-
abriu os ouvidos, expressa sua consciência to de reflexões e conselhos práticos sobre as-
de vocacionado; quer dizer que o Senhor pectos essenciais da vida cristã que pareciam
o chamou pessoalmente e o chamado foi ameaçados nas comunidades destinatárias –
irresistível (v. 5). Essa convicção é essencial, por exemplo, sobre a importância de obras
tendo em vista as consequências da missão: concretas que deem respaldo à fé. Por sinal,
a perseguição e a humilhação, incluindo a esse é o tema do trecho lido nesta liturgia,
violência física (v. 6). Ele encara o sofrimen- considerado o coração de toda a carta.
to como consequência da missão, por isso O autor introduz o tema com uma per-
se mantém firme, sem deixar-se abater nem gunta retórica que põe em xeque o sentido de
desanimar, pois confia no auxílio do Senhor uma fé meramente teórica, considerando-a
(v. 7). Convicto de ter Deus ao seu lado, o incapaz de levar à salvação (v. 14). No desen-
servo até desafia seus adversários (v. 8). Desse volvimento, ilustra seu argumento com dois
modo, afirma sua confiança inabalável no exemplos bem reais: a quem não tem o que
Senhor e ainda denuncia seus opressores, vestir nem o que comer, não basta dirigir-lhe
mostrando que não se combate violência palavras; é necessário agir concretamente em

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seu favor, oferecendo vestimenta e comida de Jesus sobre o que dizem dele não significa
(v. 15-16). Isso vale também para as demais preocupação com sua imagem pessoal, mas
situações de necessidade. Daí se conclui que com a eficácia do anúncio. Ele já tinha rea-
a fé sem obras é morta (v. 17). Nessa perspec- lizado muitos sinais e ensinado bastante, mas
tiva, não há oposição entre fé e obras. Pelo pouca gente o conhecia verdadeiramente.
contrário, há uma relação intrínseca entre Muitos o acompanhavam por curiosidade,
as duas; ambas são inseparáveis (v. 18-19). uns pela euforia, outros para tirar proveito
Com base nesse texto, alguns estudiosos dos sinais realizados, e poucos por convicção.
chegaram a afirmar uma oposição entre o Conforme a resposta dos discípulos, o
pensamento de Tiago e a doutrina paulina povo não tinha clareza sobre a identidade
da justificação pela fé. No entanto, isso é um de Jesus, mas nutria grande estima pela sua
equívoco, pois as obras que Paulo contrapõe à pessoa, ao reconhecê-lo como profeta (v.
fé correspondem à observação da Lei, ao passo 28). Isso, porém, não é suficiente, porque
que as obras que Tiago reivindica são conse- Jesus é muito maior. A pergunta sobre o
quência da fé e do seguimento de Jesus Cristo. que as outras pessoas diziam foi apenas um
Por isso, pode-se dizer que há complemen- pretexto; o que ele queria mesmo saber era
taridade entre os dois, ao invés de oposição. a opinião dos discípulos (v. 29a). E Pedro
confessou: “Tu és o Messias” (v. 29b). Aqui,
3. Evangelho (Mc 8,27-35) Pedro fala em nome do grupo. Essa é a res-
Todo o Evangelho de Marcos gira em tor- posta da comunidade e, apesar de solene e
no da implícita pergunta:“Quem é Jesus?”, à formalmente correta, não é satisfatória, por
qual o evangelista responde com dois títulos isso Jesus impõe o silêncio. De fato, o messias
que marcam a divisão da obra em duas partes: esperado pelo povo, incluindo os discípulos,
Jesus é o Messias – ou seja, o Cristo – e Filho era um guerreiro, restaurador do Reino de
de Deus (Mc 1,1).A primeira parte (1-8) tem Israel, enquanto Jesus veio para instaurar o
seu ponto alto na solene confissão de Pedro: Reino de Deus, com uma mensagem de
“Tu és o Messias” (8,29), enquanto a segunda libertação para toda a humanidade.
(9-16) culmina na confissão do centurião Diante do equívoco dos discípulos, Jesus
aos pés da cruz: “Esse homem era Filho de inaugura nova etapa na sua catequese, com o
Deus” (Mc 15,39). O texto deste domingo primeiro dos três anúncios da paixão (v. 31).
é a conclusão da primeira parte e o centro Com isso, revela sua identidade de Messias
temático e literário da obra; compreende a “às avessas”: vai sofrer muito, será rejeitado e
confissão de Pedro, o primeiro anúncio da humilhado até a morte. Pedro não aceita um
paixão e as exigências básicas para o dis- Messias assim; por isso, repreende Jesus (v. 32).
cipulado. É um episódio presente nos três Essa atitude é absurda, pois é Jesus quem tem
sinóticos (Mt 16,13-19; Lc 9,18-21), sendo autoridade para repreendê-lo, como o faz (v.
a versão de Marcos a mais rica e original. 33). O Mestre, contudo, não o manda para lon-
A cena transcorre no caminho de Cesa- ge, como diz a tradução litúrgica, mas para trás,
reia de Filipe (v. 27), no extremo norte da ou seja, para a posição de discípulo.Ao chamá-
Galileia. Cesareia era uma cidade imperial, -lo de satanás, Jesus diz que Pedro estava agin-
onde se prestava culto ao imperador romano; do como seu adversário, criando obstáculos
sua população era predominantemente pagã. para a realização do seu projeto de libertação.
A confissão da messianidade de Jesus ali se Pedro queria evitar a cruz, enquanto Je-
torna, então, uma denúncia ao império, com sus afirma que a cruz é condição para seu
todo o seu aparato de dominação.A pergunta seguimento (v. 34). Obviamente, não se trata

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de uma busca voluntária por sofrimento; anúncio da paixão e, em seguida, propõe
significa a capacidade de viver por amor, a o serviço e a humildade como condições
ponto de dar a vida. Por conseguinte, Jesus para seu discipulado, contrapondo-se à
reforça: para segui-lo, é preciso coragem de mentalidade ambiciosa e triunfalista dos
dar a vida por sua causa e pelo Evangelho discípulos. O salmo confirma a unidade
(v. 35); isso comporta o compromisso com entre as três leituras e reforça a certeza de
o próximo, especialmente com as pessoas que o Senhor permanece do lado dos jus-
mais necessitadas. Logo, o discipulado é in- tos e humildes, mostrando que vale a pena
compatível com o egoísmo e com qualquer confiar nele e viver segundo sua justiça.
pretensão de sucesso e prestígio pessoal.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
III. PISTAS PARA REFLEXÃO 1. I leitura (Sb 2,12.17-20)
Apresentar a relação entre as três leituras, O livro da Sabedoria, do qual é tirada a
enfatizando as exigências concretas que a primeira leitura, é obra de um sábio judeu,
fé e o seguimento de Jesus comportam. A exímio conhecedor da cultura grega e das
pergunta de Jesus sobre sua identidade é tradições judaicas, que viveu na cidade de
dirigida aos cristãos de todos os tempos: é Alexandria do Egito. Foi o último livro do
importante que haja coerência entre a res- Antigo Testamento a ser escrito, já no final
posta dada com palavras e as ações concretas do século I a.C., quando a cultura grega
do dia a dia. Recordar o compromisso com exercia grande influência sobre as novas
as pessoas necessitadas como componente gerações de judeus. Com isso, os valores e
essencial da fé cristã. tradições de Israel, como a fé monoteísta,
estavam ameaçados, havendo até persegui-
25º DOMINGO DO TEMPO COMUM ção contra quem permanecia fiel. O livro
19 de setembro foi escrito, portanto, para reforçar a fé e
encorajar os judeus que se sentiam per-
O primado do serviço seguidos por causa da fidelidade a Deus.
no seguimento de Jesus Para garantir prestígio e autoridade à obra,
a autoria foi atribuída a Salomão, expoente
I. INTRODUÇÃO GERAL máximo da sabedoria de Israel, mediante o
A liturgia da Palavra deste domingo é fenômeno literário da pseudonímia.
marcada pela contraposição entre duas ma- O texto lido nesta liturgia pertence à pri-
neiras de conceber e conduzir a existência meira parte do livro (Sb 1-5), precisamente à
humana. A primeira leitura, tirada do livro seção conhecida como discurso dos ímpios
da Sabedoria, expõe a oposição entre a ma- ou injustos (Sb 2,1-20). Nesse discurso, o
neira de viver e pensar dos ímpios e a dos autor reproduz a mentalidade dos que se
justos, funcionando como preparação ao opõem à maneira de viver dos justos. Os
Evangelho, uma vez que a perseguição ao ímpios ou injustos são os pagãos adeptos de
justo é vista como prefiguração da paixão escolas filosóficas materialistas, os governan-
de Jesus, o Justo por excelência. A segunda tes corrompidos que, sentindo-se superiores,
leitura chama a atenção para o contraste menosprezavam a fé monoteísta e os judeus
entre a sabedoria terrena e a sabedoria do que, atraídos pela cultura grega, tinham aban-
alto, evidenciando as consequências práticas donado a fé. Os justos, por sua vez, são os ju-
de cada uma no dia a dia da comunidade deus fiéis que vivem de modo coerente com a
cristã. No Evangelho, Jesus faz o segundo fé em Deus, observando os mandamentos.

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A maneira de viver da pessoa justa revela cristã; se encontradas, precisam ser elimina-
a incoerência de vida dos injustos, tornan- das. Já a sabedoria do alto se caracteriza por
do-se verdadeira denúncia (v. 12). Isso por- sete qualidades ou virtudes (3,17), o que
que a genuína fé no Deus de Israel é, acima evoca perfeição e equilíbrio; quem vive dessa
de tudo, testemunhal, e não mera abstração maneira é uma pessoa realizada e coerente
teórica. Logo, os justos incomodam porque com a vontade de Deus, tornando-se pro-
vivem em conformidade com a vontade motora da justiça e da paz (3,18).
de Deus, como filhos, não compactuando A insistência sobre os frutos da sabedoria
com nenhum tipo de injustiça, ganância, terrena denuncia o quanto ela estava enrai-
corrupção e violência. As características da zada nas comunidades destinatárias, compro-
pessoa justa – confiança em Deus, mansidão, metendo a relação com Deus e, por conse-
paciência e humildade – são insuportáveis quência, tornando ineficaz a oração (4,1-3).
para os injustos. Como consequência, vem A verdadeira oração é comunhão com Deus
a perseguição com humilhações, ofensas e e conformação à sua vontade. Quem não
tortura até a morte (v. 17-20). vive essa comunhão, obviamente, não sabe
A figura do justo perseguido prefigura pedir, pois não conhece sua vontade.
a paixão de Jesus e serve de advertência
aos cristãos e cristãs de todos os tempos: o 3. Evangelho (Mc 9,30-37)
jeito de viver dos filhos e filhas de Deus é Conforme a divisão clássica da obra de
sinônimo de contestação a todos os sistemas Marcos (1ª parte: cap. 1-8; 2ª parte: cap. 9-16),
injustos que excluem e matam. E isso gera o Evangelho desta liturgia já pertence à se-
perseguição, em vez de prestígio e poder. gunda parte, marcada pelo aprofundamento
da catequese de Jesus sobre sua identidade
2. II leitura (Tg 3,16-4,3) de Filho de Deus e as exigências que seu
A segunda leitura ainda é tirada da carta seguimento comporta. É um texto também
de Tiago. Embora agrupado entre as cartas dividido em duas partes, delimitadas pela di-
católicas, esse livro quase não possui carac- mensão espacial: a primeira (v. 30-32) trans-
terísticas epistolares, aproximando-se mais corre no caminho, enquanto o cenário da
do estilo dos escritos sapienciais e proféticos. segunda é a casa (v. 33-37). Na perspectiva
O trecho lido neste domingo é tipicamente de Marcos, caminho e casa são os lugares
sapiencial; nele o autor contrapõe os frutos privilegiados da experiência cristã. O ca-
da sabedoria terrena àqueles da sabedoria minho significa instabilidade, dinamismo,
do alto. A expressão “sabedoria terrena” não denotando a natureza missionária da Igreja
aparece no texto, mas no versículo que o an- e a necessidade de estar sempre em saída.
tecede (3,15); já “sabedoria do alto” aparece A casa significa a necessidade das relações
explicitamente (3,17), o que deixa clara a fraternas e sinceras que devem marcar a vida
oposição entre as duas. Para cada uma delas da comunidade; é o lugar da acolhida, da
compreende-se um projeto de vida, quer compreensão e da vivência do amor.
dizer, uma forma de conduzir a existência. A incompreensão de Pedro após o pri-
O primeiro sinal da ausência da sabedoria meiro anúncio da paixão (Mc 8,31-35) foi
do alto é a presença de inveja e rivalidade, um alerta para Jesus: os discípulos ainda não
das quais decorrem tantas outras desordens e tinham compreendido quase nada da sua
males (3,16), como guerras, brigas e divisões identidade e do seu projeto, o Reino de
(4,1). Esses são os frutos da sabedoria terre- Deus. Logo, era necessário estar sozinho com
na. São coisas inadmissíveis na comunidade eles, isolados das multidões, para reforçar o

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ensinamento (v. 30). É nesse contexto que
Jesus faz o segundo dos três anúncios da
paixão (v. 31). Os discípulos não aceitavam O caminho da
um Messias sofredor, porque esperavam um
que fosse poderoso e guerreiro. A repetição
justiça na sabedoria
de um ensinamento é sinal da sua impor- dos Provérbios
tância e, ao mesmo tempo, da dificuldade Valmor da Silva
de compreensão dos destinatários, como se
verificava nos discípulos (v. 32). Eles não
compreendiam nem tinham coragem de
perguntar, preferindo, covardemente, con-
versar entre si sobre as próprias aspirações.
Jesus, todavia, conhecia-os bem e sabia o
que pensavam. Por isso, ao chegar a casa,
perguntou-lhes – apenas por protocolo e
como forma de denúncia irônica – o que
tinham discutido (v. 33). A discussão sobre
quem é o maior revela ambição e sede de
poder, alimenta rivalidades, coisas incom-

Imagens meramente ilustrativas.


patíveis com a lógica igualitária do Reino
152 págs.

de Deus. O próprio silêncio deles diante de


Jesus denuncia a incoerência (v. 34).
Para contornar a situação, Jesus senta e CONFIRA
VERSÃO
chama os doze para perto de si (v. 35a), gestos
E-BOOK
que recordam sua condição de Mestre, o úni-
co que poderia reivindicar grandeza naquele
A obra analisa ditados atuais em
grupo. Com isso, convida os discípulos a re-
comparação com os provérbios
novar a vocação originária, corrompida pelas bíblicos, mostrando que ambos
pretensões de poder e ambição que estavam ilustram as realidades ambíguas
alimentando. Assim, ele mostra um caminho e paradoxais da vida e refletem
oposto, ensinando que só há um modo de a sabedoria popular. Além
ser o primeiro na comunidade: fazendo-se disso, aborda o imaginário
o último, sendo o servidor de todos (v. 35b). bíblico proverbial sobre justiça,
Jesus deixa claro, portanto, que o serviço é o expondo suas principais figuras
primeiro sinal distintivo do seu discipulado. e metáforas. Discute ainda o
conceito de justiça nos Provérbios.
Trata-se de um serviço motivado pelo amor,
Por fim, comenta o desafio
desinteressado e universal. fundamental apontado pelo
Com o gesto de pegar a criança, abraçá-la livro bíblico para a proposta da
e colocá-la no meio (v. 36-37), Jesus recorda justiça: a realidade da pobreza.
que as pessoas mais vulneráveis e necessita-
das devem ser as primeiras destinatárias da
Vendas: (11) 3789-4000
atenção e dos cuidados dos seus discípulos 0800-0164011
servidores. Na época, a criança era sinônimo
de incapacidade e inutilidade, tanto na cul- paulus.com.br
tura semita quanto na greco-romana. Jesus,

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no entanto, vê com outros olhos: a criança grupo ou instituição pode determinar seu
é sinal de pequenez, imagem de todas as agir. Isso indica que a fé no Deus bíblico é
pessoas necessitadas, mas também simboliza incompatível com qualquer tipo de exclu-
a capacidade de aprendizagem, tão necessá- sivismo. A denúncia aos ricos gananciosos
ria para o discipulado. Com esse exemplo e exploradores, na segunda leitura, também
concreto, ele aponta para os discípulos de recorda outra característica de Deus: a op-
todos os tempos quem tem prioridade no ção preferencial pelos pobres e a intole-
Reino de Deus: todas as pessoas vulneráveis rância com a injustiça. É nessa perspectiva
e marginalizadas, representadas pela criança. que deve orientar-se o discipulado de Jesus.
Acolher essas pessoas é acolher a ele mesmo
e ao Pai, que o enviou. II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Nm 11,25-29)
III. PISTAS PARA REFLEXÃO A primeira leitura é tirada do livro dos
Relacionar as três leituras, mostrando a Números, obra composta de textos narrati-
coerência temática entre elas. Recordar a in- vos e legislativos, provenientes de tradições
coerência entre o seguimento de Jesus e as ri- e épocas diversas. O fio condutor do livro é
validades muitas vezes alimentadas na própria a estadia de Israel no deserto, desde o Sinai
comunidade, comprometendo o anúncio e até a chegada às planícies de Moab, a últi-
a eficácia dos serviços pastorais. Questionar ma etapa antes da entrada na terra. Apesar
a maneira de acolher as crianças e as demais da dificuldade de estabelecer uma estrutura
pessoas vulneráveis na comunidade. Con- da obra, devido à complexidade literária e
tinuar a motivar a vivência do Mês da Bíblia. teológica, atualmente é consensual sua divi-
são em três partes (1,1-10,10; 10,11-20,13;
26º DOMINGO DO TEMPO COMUM 20,14-36,13). O trecho lido neste dia per-
26 de setembro tence à segunda parte. Para compreendê-lo,
é necessário recordar o contexto, como fa-
Seguir Jesus de forma radical remos a seguir.
e sem exclusivismo O povo tinha murmurado contra Deus
por causa do maná, com saudade da comida
I. INTRODUÇÃO GERAL boa e farta do Egito (Nm 11,4-9). Moisés
Celebramos neste domingo o Dia da Bí- ouviu tudo e lamentou-se diante do Deus,
blia, a Palavra de Deus expressa em palavras alegando já não ter forças para continuar a
humanas que, antes de tornar-se livro, foi liderar um povo tão ingrato e difícil de lidar
experimentada e vivida por inúmeros indi- (Nm 11,10-15). Em resposta, Deus ordenou-
víduos e comunidades, ao longo de vários -lhe que escolhesse 70 anciãos e os reunisse
séculos. Por meio dela, conhecemos o pro- na tenda do encontro, prometendo habili-
jeto de amor de Deus para a humanidade tá-los com seu Espírito para ajudar Moisés
e os traços essenciais da sua identidade, e na condução do povo (Nm 11,16-17). O
aprendemos a viver como seu povo. Com texto lido neste domingo é a continuação
efeito, os textos desta liturgia mostram isso desses eventos.
muito bem. A primeira leitura e o Evange- Moisés fez tudo como lhe fora ordenado
lho recordam a liberdade do agir de Deus: (Nm 11,18-24), e o Senhor desceu sobre a
ele concede seus dons como quer e a quem assembleia reunida, conforme prometera, e
lhe apraz. É um Deus que não permite ser repartiu o Espírito (v. 25). Para participar da
monopolizado por ninguém. Logo, nenhum liderança do povo, ou seja, para profetizar,

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é necessário ser portador do Espírito de Senhor para o julgamento.A ameaça funcio-
Deus. Até então, o Espírito estava concen- na como apelo à conversão, o que, neste caso,
trado todo em Moisés; a retirada de uma seria a condivisão dos bens. A segunda parte
porção dele significava a descentralização traz a acusação: as riquezas acumuladas são
das responsabilidades e da liderança. Sur- fruto de injustiça, provêm da exploração dos
preendentemente, dois homens que estavam pobres (v. 4-6). Por seu turno, Deus é intole-
na lista não compareceram à reunião, mas rante com todo tipo de injustiça, ainda mais
também receberam o Espírito e começaram a quando é a negação de um direito dos po-
profetizar no acampamento; aliás, com maior bres, que trabalharam, mas não receberam o
perseverança do que os outros que tinham salário para a sobrevivência (v. 4). Quem co-
participado da reunião (v. 26).Aqui se encon- mete esse tipo de injustiça não ficará impune
tra a mensagem central da leitura: o Espírito (v. 5), pois é uma forma de assassinato (v. 6).
de Deus é livre no seu agir, sua atuação Deus, que é livre para conceder seus dons
transcende os espaços e as prescrições deter- à sua maneira, preocupa-se também com a dis-
minadas por qualquer grupo ou instituição. tribuição dos bens materiais. Por isso, conde-
A reação negativa de Josué, ajudante de na a ganância e o acúmulo, sobretudo quando
Moisés, adverte sobre o perigo de querer é fruto de exploração. E quase sempre é.
monopolizar o agir de Deus (v. 27-28). Por
seu turno, a correção de Moisés revela a 3. Evangelho (Mc 9,38-43.45.47-48)
qualidade da sua autoridade, digna de quem, O Evangelho desta liturgia, continuação
de fato, se deixa conduzir pelo Espírito de imediata daquele do domingo passado, apre-
Deus (v. 29): melhor seria se todo o povo senta mais uma atitude incoerente dos dis-
tivesse o dom da profecia. cípulos, a correção de Jesus e o ensinamen-
to. A incoerência denunciada desta vez é a
2. II leitura (Tg 5,1-6) mentalidade fechada e exclusivista: a tentação
Neste domingo, concluímos a sequência deles de monopolizar os dons do Espírito
de leituras da carta de Tiago, que nos acompa- e o Evangelho, proibindo um homem de
nhou por cinco domingos. Como afirmamos agir em nome de Jesus somente por não os
em ocasiões anteriores, apesar de classificado seguir, como revela a fala de João (v. 38). Ora,
como carta, esse escrito não possui carac- a atividade de expulsar demônios significa a
terísticas epistolares, à exceção da saudação promoção da liberdade e da dignidade das
inicial (1,1), aproximando-se mais do estilo pessoas. É o rompimento com as estruturas
sapiencial e profético. Enquanto o trecho de morte e opressão vigentes em qualquer
lido no domingo passado era sapiencial, o sistema. Quem faz isso está em sintonia e
desta liturgia é tipicamente profético.Trata- comunhão com Jesus, mesmo que não per-
-se precisamente de um lamento profético tença a determinado grupo ou comunidade
contra os ricos, um texto que se aproxima eclesial. Por isso, a reação do Mestre é de
da pregação de Amós e do próprio Jesus. total reprovação à mesquinhez dos discípu-
Na primeira parte do texto, o autor de- los (v. 39-40). Ninguém deve ser impedido
nuncia duramente os ricos pelo acúmulo de de fazer o bem nem de identificar-se com
riquezas e pela confiança nelas depositadas (v. Jesus apenas por não pertencer a um grupo.
1-3). O tom ameaçador da denúncia reflete a Dos discípulos exige-se abertura, tolerância
gravidade da situação e a mentalidade disse- e consciência de que a mensagem do Evan-
minada entre os pregadores do século I d.C., gelho não é propriedade de ninguém. Jesus
que acreditavam no retorno imediato do fecha a questão com um simples e profundo

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provérbio (v. 40). Ser contra é optar pelo mal Com uma linguagem tão severa, Jesus
e fechar-se aos valores do Reino; quem não ensina que a vida não tem sentido quando
faz isso já está, consequentemente, a favor não é pautada pelo bem ao próximo. Afo-
e, portanto, apto a agir em nome de Jesus, gamento e fogo são imagens de uma vida
independentemente de pertença a algum sem sentido, fora do Reino. Esse Reino não
grupo ou instituição religiosa. é um paraíso para o futuro, mas o projeto
Jesus aprofunda a catequese com exemplos de Deus para ser vivido desde agora; é o
simples e concretos. Dar um copo de água mundo justo e fraterno, incompatível com
é gesto que significa acolhida, criação de todas as formas de dominação, exclusivismo,
vínculos (v. 41). Quem faz isso é recompen- autoritarismo e ausência de amor e justiça.
sado; a recompensa, porém, não é um prêmio,
mas a comunhão com Jesus. Em seguida, ele III. PISTAS PARA REFLEXÃO
apresenta exigências cada vez mais radicais Apresentar a relação entre as leituras, evi-
para o discipulado, como o cuidado em não denciando a atualidade de cada uma. Recor-
escandalizar os pequeninos que creem nele dar o significado do dia da Bíblia, reforçando
(v. 42a). Escandalizar significa criar obstáculo, a importância da Palavra de Deus na vida
fazer o outro tropeçar, tornando a vida mais da comunidade e de cada pessoa. Chamar a
difícil. Os pequeninos são todas as categorias atenção para os frutos que a Palavra de Deus
de pessoas vulneráveis e historicamente ex- deve gerar na comunidade: a tolerância e
cluídas. Jesus reprova e adverte severamente o respeito às diferenças, a acolhida a todos,
quem dificulta a vida dessas pessoas, prevendo com preferência pelos mais necessitados, os
um destino trágico (v. 42b): a morte por afo- pequeninos. Mostrar a importância de reco-
gamento era a mais temida pelos judeus, pelo nhecer a liberdade de Deus e sua presença
risco de não encontrar o corpo para o sepul- nas outras experiências de fé.
tamento. Daí a ênfase de Jesus em mostrar
que o ser humano se autocondena quando 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM
se torna obstáculo na vida dos pequeninos. 3 de outubro
Na sequência, Jesus menciona alguns
membros do corpo humano para ilustrar Criados para fazer comunhão
ainda mais a atitude radical que seu segui-
mento exige. Não é um convite para ampu- I. INTRODUÇÃO GERAL
tá-los, mas advertência para conduzir a vida Este é o primeiro domingo do mês das
sempre em favor do bem. As mãos, os pés missões, tempo rico de reflexão e cons-
e os olhos (v. 43-47) eram considerados os cientização sobre a condição de discípu-
membros do corpo responsáveis pelo bom ou lo(a) e missionário(a) de Jesus Cristo que
mau comportamento das pessoas, segundo a o sacramento do batismo confere a toda
mentalidade semita. As mãos representam o pessoa que o recebe. Providencialmente,
agir humano, e os pés a conduta, podendo a liturgia deste dia recorda a missão pri-
levar a pessoa por caminhos retos ou tor- mordial do ser humano: criar laços, viver
tuosos. Os olhos, por sua vez, são a porta de em comunhão. E uma das expressões mais
entrada dos sentimentos e desejos; tudo o privilegiadas dessa missão é a vida matri-
que é processado no coração, sentimentos monial, pois permite o máximo de comu-
bons e maus, passa antes pelo olho. Diante nhão entre dois humanos, a ponto de tor-
disso, se esses membros são usados para o narem-se uma só carne. É essa a temática
mal, é preferível privar-se deles. que une a primeira leitura e o Evangelho.

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O texto do Gênesis mostra a incompletude Para suprir a solidão do homem, Deus
do ser humano sozinho: mesmo envolto continua a criar; pensa numa criatura que
dos demais seres da criação, ele permanece seja correspondente, quer dizer, semelhan-
na solidão, enquanto não encontra “carne te (v. 18b). Como possível solução, criou
da sua carne” para fazer comunhão. No os animais e conferiu ao homem a capa-
Evangelho, Jesus, provocado pelos fariseus cidade de dar-lhes os nomes (v. 19). Dar
sobre a licitude do divórcio, remete-se ao o nome a um ser, na Bíblia, significa ter
projeto originário do Criador – homem e poder sobre ele. Desse modo, Deus torna
mulher unidos para sempre como uma só o homem também sujeito da criação. O
carne –, reconhecendo as concessões da Lei homem, porém, não encontrou entre os
como consequência da dureza de coração animais nenhum ser com quem pudesse
do povo. O texto da carta aos Hebreus fazer comunhão, continuando incompleto,
recorda o amor solidário e incondicional solitário e, consequentemente, infeliz (v. 20).
de Jesus pela humanidade: assumindo a Ao dar-se conta de que os animais não são
condição humana em plenitude, experi- capazes de suprir a solidão do homem, Deus
mentou o que é inerente a ela, como o providencia a criatura semelhante (v. 21-
sofrimento e a morte. 22). A imagem da costela tirada do homem
significa a igualdade da mulher, em essência
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS e dignidade; logo, não pode ser usada para
1. I leitura (Gn 2,18-24) justificar inferioridade ou submissão. Signi-
A primeira leitura faz parte do segundo fica também a capacidade e a necessidade de
relato da criação do livro do Gênesis (Gn relação para encontrar a felicidade. Ao ver
2,4b-3,24), um texto atribuído à tradição a mulher, o homem exclama, sentindo-se,
javista, cuja origem remonta, provavelmente, finalmente, completo e realizado (v. 23).
à época de Salomão (século X a.C.). Com A declaração final do texto (v. 24), além
efeito, os aspectos sapienciais do texto con- de fundamentar o modelo de matrimônio
vergem para essa origem. Como é sabido, monogâmico e indissolúvel, confirma que
trata-se de um relato catequético e teo- a realização plena do ser humano passa pela
lógico, sem nenhuma pretensão histórica relação com o outro. Independentemente
ou científica. O objetivo é ensinar que é do estado de vida, o ser humano – homem
Deus a fonte originária da vida e mostrar e mulher – precisa de comunhão.
sua preocupação com a felicidade do ser
humano e com toda a criação. Enquanto, no 2. II leitura (Hb 2,9-11)
primeiro relato (Gn 1,1-2,4a), pertencente Iniciamos uma sequência de sete domin-
à tradição sacerdotal, o ser humano – criado gos em que a segunda leitura será tirada da
homem e mulher – é a conclusão da criação, carta aos Hebreus. Apesar de inserido entre
no relato javista ele é também o princípio. as cartas do Novo Testamento, esse escrito
Primeiro, Deus criou o homem (Gn 3,7); não pertence ao gênero epistolar.Trata-se de
em seguida, colocou-o num rico e fértil uma homilia exortativa e expositiva, de rica
jardim, com grande diversidade de árvores teologia, dirigida a uma ou mais comunida-
e água para regá-las (Gn 3,8-17). Ao con- des cristãs de origem judaica que passavam
templar tudo isso, no entanto, Deus constata por dificuldades, como crise de identidade e
a incompletude da sua obra, devido à soli- perseguição. O anônimo autor foi um eru-
dão do homem. É esse o ponto de partida dito judeu-cristão, profundo conhecedor das
do trecho lido neste domingo (v. 18a). Escrituras e da liturgia judaica. A época mais

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provável da redação é a década de 60 d.C., Jesus, em sua resposta, remete ao que Moisés
quando os serviços litúrgicos do templo de ordenou (v. 3), e eles replicam, confirmando
Jerusalém ainda funcionavam. A leitura des- (v. 4): de fato, Moisés permitiu ao homem
te dia pertence à primeira parte (1,5-4,13), dar certidão de divórcio à mulher e despe-
que apresenta Jesus Cristo como a revelação di-la (Dt 24,1-4). Jesus, todavia, recorda o
definitiva de Deus e, por isso, superior aos motivo da concessão de Moisés: a dureza
anjos e Moisés, mediadores da Antiga Aliança. de coração do povo, ou seja, o pecado (v.
O breve trecho chama a atenção para a 5). A vida regida pela Lei não corresponde
solidariedade de Cristo à humanidade e sua aos propósitos originais da criação. A Lei foi
fidelidade ao Pai. Jesus assumiu plenamente a dada para corrigir. De sua parte, Jesus não
condição humana, passando pelo sofrimento veio ao mundo para conformá-lo à Lei, mas
e morte; contudo, tendo ressuscitado, está para recuperar o projeto da criação, com
glorificado (v. 9). Isso mostra que a condição a instauração do Reino de Deus. Por isso,
humana não é empecilho para a realização orienta seus interlocutores para o começo
plena do projeto de Deus; pelo contrário, é o da criação (v. 6-9): Deus criou homem e
meio privilegiado, pois foi no sofrimento que mulher e os uniu em perfeita comunhão,
Jesus provou sua fidelidade ao Pai e o amor para se tornarem uma só carne.
incondicional à humanidade (v. 10). Sua me- Mais uma vez, o evangelista evidencia o
diação é perfeita, porque ele, o Santificador, caminho e a casa como lugares privilegiados
fez-se irmão dos santificados – a humanidade da catequese de Jesus. Por isso, diz que, em
inteira (v. 11). Por isso, pode nos conduzir casa, os discípulos fizeram perguntas sobre
ao Pai, sem ignorar nossas limitações. o assunto (v. 10). A eles Jesus responde com
maior profundidade:“Quem se divorciar de
3. Evangelho (Mc 10,2-16) sua mulher e se casar com outra cometerá
O Evangelho deste domingo está inseri- adultério contra a primeira. E se a mulher se
do no contexto do caminho de Jesus com divorciar de seu marido e se casar com outro,
seus discípulos para Jerusalém, cujo desfecho cometerá adultério” (v. 11-12). Nessa resposta,
será a paixão, morte e ressurreição. Enquanto Jesus reafirma seu compromisso com o pro-
caminham, Jesus ensina e é constantemen- jeto da criação – segundo o qual o divórcio
te confrontado, tanto pelos seus discípulos não deveria existir – e traz grande novidade:
quanto por opositores declarados, como os a condição de igualdade entre o homem e a
fariseus, interlocutores do confronto a que mulher, afirmando que também o homem
assistimos nesta liturgia e tradicionais adver- comete adultério ao divorciar-se da mulher
sários, desde o início do ministério na Galileia e se casar de novo. Conforme a Lei, a culpa e
(Mc 2,16; 3,6; 7,1). Com eles, o confronto é as consequências do divórcio recaíam sempre
sempre no campo doutrinal, sobretudo na sobre a mulher, que poderia ser até apedreja-
maneira de compreender e interpretar a Lei. da. Ao redirecionar a humanidade ao plano
Desta vez, o confronto diz respeito à legi- da criação, Jesus combate todos os preceitos
timidade do divórcio: os fariseus perguntam que geram discriminação, exclusão e morte.
se é permitido ao homem divorciar-se da Na parte final, o evangelista põe nova-
mulher (v. 2). A pergunta deles é maliciosa; mente em cena personagens muito caros
o objetivo é pôr Jesus à prova para poste- na etapa do caminho: as crianças (v. 13). A
riormente acusá-lo. Como fiéis observadores ênfase de Jesus e do evangelista nas crianças
da Lei, já tinham opinião formada e co- tem uma função didática muito específica,
nhecimento a respeito desse tema. Por isso, sobretudo para a formação dos discípulos.

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Com efeito, quanto mais se aproximavam de que o impede de ganhá-la: as riquezas.
Jerusalém, mais eles alimentavam projetos de Com base no colóquio com aquele ho-
poder e sonhos de grandeza. Diante disso, o mem, Jesus aprofunda a catequese sobre a
evangelista insiste em apresentar as crianças necessidade do desapego aos bens para um
como modelo, considerando a insignifi- autêntico discipulado. A segunda leitura
cância que lhes era atribuída na época. Na é um elogio à Palavra de Deus: é viva e
controvérsia sobre o divórcio, Jesus elevou eficaz, por isso interpelante e performa-
a mulher à condição de igualdade; agora, tiva; logo, quem se deixa orientar por ela
com as crianças, eleva todas as categorias de alcança a verdadeira sabedoria e torna-se
pessoas excluídas à condição de preferidos e apto ao seguimento radical de Jesus. O
preferidas do Reino (v. 14-15). O gesto de salmo segue a mesma linha, ensinando-nos
abraçar, abençoar e impor as mãos sobre as a pedir ao Senhor o que é essencial: “dai
crianças (v. 16) enfatiza o amor acolhedor ao nosso coração sabedoria!” (Sl 89,12).
de Jesus pelas pessoas mais necessitadas, que
a sociedade considera insignificantes. II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Sb 7,7-11)
III. PISTAS PARA REFLEXÃO A primeira leitura é tirada do livro da Sa-
Explicar bem as leituras, mostrando a rela- bedoria, cuja autoria foi atribuída a Salomão,
ção entre elas, sobretudo entre a primeira e o mediante o recurso literário da pseudonímia,
Evangelho. Mostrar a beleza do matrimônio a fim de conferir prestígio e autoridade ao
e como esse encontra respaldo na Palavra escrito, uma vez que Salomão era o protótipo
de Deus, sem, no entanto, condenar outras de homem sábio em Israel. Cronologicamen-
formas de união. Evite-se o tom moralista. te, é o último livro do Antigo Testamento.
Recordar que na essência do ser humano está Foi escrito já no final do século I a.C. por
a abertura à comunhão, à relação. Reforçar um erudito judeu, da cidade de Alexandria
a importância do mês missionário. do Egito, com o objetivo de reforçar a fé e
as tradições de Israel, que estavam ameaçadas
28º DOMINGO DO TEMPO COMUM devido à influência exercida pela cultura gre-
10 de outubro ga sobre as novas gerações de judeus. Tanto
assim que havia até perseguição: os judeus
Viver com sabedoria, que não aderiam aos costumes gregos eram
segundo a Palavra publicamente hostilizados. Daí a importân-
cia desse livro, com a função de estimular a
I. INTRODUÇÃO GERAL fidelidade e a resistência do povo.
A liturgia deste domingo constitui ver- O trecho lido neste domingo pertence à
dadeiro convite à reflexão e ao discerni- segunda parte do livro (Sb 6-9), conhecida
mento acerca do que é essencial e pode, de como o “elogio da sabedoria” e considerada
fato, dar sentido à existência. Em forma de o coração da obra. Foi inspirado no clássico
elogio, o autor da primeira leitura declara a episódio do sonho de Gabaon (1Rs 3,5-15),
sabedoria superior a todos os bens da terra; no qual o Senhor concedeu a Salomão a
comparados a ela, o poder e as riquezas oportunidade de pedir qualquer coisa, que
são insignificantes. No Evangelho, Jesus é lhe seria dada; então, em vez de pedir riqueza
interpelado por um homem muito rico, e glória, o jovem rei pediu sabedoria para
obediente aos mandamentos e sedento de governar seu povo com justiça. Em estilo
vida eterna, mas incapaz de renunciar ao autobiográfico, o Pseudo-Salomão reconta

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essa experiência. Ele recebeu a prudência que uma espada de dois gumes, ela penetra
e o espírito da sabedoria como frutos da no mais íntimo do ser da pessoa a quem é
oração e da súplica (v. 7); trata-se de afir- destinada. Isso quer dizer que confronta todas
mação muito importante, pois apresenta a as dimensões da vida e nada escapa ao seu
sabedoria como dom de Deus, e não como alcance. Não permite neutralidade; quem a
atividade do intelecto, conforme a concep- recebe, deve tomar uma posição a favor ou
ção da filosofia grega. A sabedoria é, acima contra. Por isso, ela é também juiz: confron-
de tudo, a arte de viver bem; para a menta- tada aos sentimentos e emoções, denuncia
lidade judaica, isso consiste na observância as incoerências e hipocrisia de quem não a
da Lei e na capacidade de discernir entre o acolhe com sinceridade.
bem e o mal, escolhendo sempre o bem que Para o autor, a Palavra é o próprio agir
conduz à verdadeira felicidade. Por isso, ela de Deus na história, cuja expressão máxima
é preferível a tudo; qualquer coisa compa- é a pessoa de Jesus, o Filho, que é a Palavra
rada a ela é insignificante, como o poder, a definitiva (Hb 1,1-2). Prestar contas a ela,
riqueza, os metais preciosos e até mesmo a portanto, significa confrontar-se com a vida
saúde e a beleza (v. 8-10). de Jesus de Nazaré (v. 13), a Palavra encar-
O reconhecimento do valor inestimável nada e fonte de sabedoria. Quem acolhe
da sabedoria não significa, contudo, desprezo essa Palavra, obviamente, alcança a verdadeira
pelos bens e dons a ela comparados. Quer sabedoria.
dizer apenas que ela deve ser preferida a tudo.
Ao invés de opor-se aos bens, ela é sua fonte 3. Evangelho (Mc 10,17-30)
(v. 11). Por isso, deve ser buscada acima de O Evangelho deste domingo continua
tudo, pois sem ela nada tem sentido. inserido no contexto do caminho de Jesus
com os discípulos para Jerusalém. Esse cami-
2. II leitura (Hb 4,12-13) nho é, antes de tudo, um itinerário teológico
Continuamos a leitura da carta aos He- e catequético. Por isso, enquanto caminha,
breus, iniciada no domingo passado. O breve Jesus é interrompido diversas vezes por várias
trecho lido nesta liturgia é a conclusão da categorias de interlocutores, que lhe fazem
primeira parte do livro (1,5-4,13). Trata-se perguntas relevantes sobre a Lei, o Reino
de um elogio à Palavra de Deus. Logo, possui de Deus, as condições para o discipulado e
um significado muito importante, ainda mais questões do cotidiano.
quando se considera a função pastoral da obra: Enquanto Jesus caminhava, alguém correu
animar comunidades em crise de fé e espe- ao seu encontro (v. 17). A versão de Mateus
rança. Em contextos assim, nada mais justo do desse episódio diz que era um jovem (Mt
que recordar a potência vivificante da Palavra 19,22). Para Marcos, era apenas alguém. E
de Deus, fundamento e alimento da fé. alguém carente de sentido para a existência; a
Empregando imagens bastante interpe- postura e a pergunta evidenciam isso, apesar
lantes, o autor descreve a Palavra de Deus de, paradoxalmente, tratar-se de um homem
com cinco características que revelam sua muito rico e fiel aos mandamentos (v. 20.22).
força performativa: viva e eficaz, cortante e Ele ajoelhou-se e perguntou o que fazer para
penetrante, e judicante (v. 12). A Palavra de ganhar a vida eterna. Até então, na obra de
Deus é viva e eficaz porque comunica vida e Marcos, somente um doente de pele tinha
realiza os propósitos para os quais é enviada se ajoelhado aos pés de Jesus, suplicando-
(Is 55,10-11); por meio dela, Deus age falan- -lhe a cura (Mc 1,40); quer dizer que esse
do, desde a criação. Sendo mais cortante do alguém do episódio deste domingo tinha

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um mal equivalente à doença que então se
denominava lepra (a pior das enfermidades
conhecidas na época): o apego às riquezas. Novo comentário
A pergunta revela que o homem buscava bíblico São Jerônimo
sentido para a existência. A vida eterna, aqui, Antigo Testamento
mais do que uma vida pós-morte, significa o
Raymond E. Brown
sentido da vida presente; quem encontra sen-
tido para a vida aqui eterniza sua existência.
Para a mentalidade judaica, a observância
dos mandamentos já era suficiente para a
vida ter sentido. Jesus, porém, mostra que essa
visão está superada; é necessário algo mais:
vender tudo, dar aos pobres e segui-lo (v. 21).
Ele não diz isso como imposição, mas como
proposta de amor. Contudo, aquele homem
não estava pronto para isso; não assimilou o

Imagens meramente ilustrativas.


olhar amoroso de Jesus nem sua proposta.
Por isso, saiu triste do encontro (v. 22).Assim,
o evangelista mostra que é mais fácil a cura
1264 págs.

da doença então conhecida como lepra do


que o desapego aos bens.
Após o diálogo com o desconhecido, Jesus
se volta para os discípulos (v. 23-24), os mais
Trata-se de uma verdadeira
necessitados de assimilar sua mensagem. Com
enciclopédia bíblica, na qual,
eles, o discurso já não se limita à vida eterna, além de uma introdução e um
mas passa ao Reino de Deus e às exigências comentário a cada um dos livros
para entrar nele. Entrar no Reino é difícil bíblicos, encontram-se também
porque exige adesão incondicional. Para os artigos mais amplos concernentes
ricos, é ainda mais difícil, tendo em vista a à História de Israel, à Teologia
necessidade maior de renúncias, como Jesus Bíblica e à Hermenêutica.
expressa com um provérbio tão hiperbólico: É destinado não só a exegetas
“É mais fácil um camelo passar pelo buraco e teólogos, mas também a
pregadores, missionários,
de uma agulha do que um rico entrar no
catequistas, pesquisadores de
Reino de Deus!” (v. 25). Diversas tentativas outras áreas do conhecimento
de interpretação foram sugeridas para sua- e toda pessoa que busca
vizar o impacto dessa afirmação. Chegou-se informações consistentes
a afirmar que o “camelo” era um tipo de sobre a Palavra de Deus.
corda grossa e que o “buraco da agulha” era
uma porta estreita num muro de Jerusalém.
Ler dessa forma é distorcer a mensagem.
Jesus gostava de imagens fortes, deixando
Vendas: (11) 3789-4000
seus seguidores perplexos (v. 26). Ademais, 0800-0164011
a história da salvação é marcada por diversos
acontecimentos aparentemente impossíveis, paulus.com.br
mas realizados com a graça de Deus, para

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quem nada é impossível (v. 27). Logo, não é e de toda a humanidade. Nas três leituras,
impossível a entrada dos ricos no Reino de a mulher exerce um papel determinante
Deus. Contudo, não será possível se não as- para o desfecho de cada episódio narrado.
similarem a lógica da partilha e do desapego. Na primeira leitura, temos o exemplo de
A incompreensão dos discípulos se torna Ester, que, atenta às necessidades do seu
evidente na fala oportunista de Pedro (v. povo ameaçado de extermínio, intercede
28). De fato, Jesus os conhecia e sabia o que ao rei, pedindo vida para si e para seu povo.
cada um tinha deixado para o seguir. “Casa, A segunda leitura apresenta o sinal da mu-
irmãos, irmãs, mães, filhos e campos” são lher que dá à luz um filho para governar
imagens do que é caro e essencial na vida. o mundo; ela é perseguida pelas forças
Para seguir Jesus com fidelidade, é neces- do mal e resiste. No Evangelho, vemos a
sário desapegar-se do que é mais impor- presença ativa da mãe de Jesus no início
tante. Quem o segue, porém, não fica sem de seu ministério; sensível e solidária às
o essencial. Por isso, Jesus elenca as coisas necessidades do próximo e confiante na
que devem ser deixadas e a seguir as repete, palavra de Jesus, ela participa da realização
como as mesmas que serão dadas aos seus do seu primeiro sinal messiânico. Portanto,
seguidores (v. 29-30).Assim, ensina que nada a figura feminina presente nesta liturgia,
falta a quem deixa tudo por causa sua e do de quem Maria é a síntese, é sinônimo de
Evangelho. A verdadeira sabedoria consiste força e resistência ao mal, solidariedade às
na assimilação dessa lógica. pessoas necessitadas e confiança no Deus
da vida. Tudo isso ainda é ilustrado pelo
III. PISTAS PARA REFLEXÃO simbolismo da pequena imagem de cor
Explicar bem as leituras, mostrando a coe- negra encontrada por humildes pescado-
rência entre elas. Apresentar a preferência res no ano de 1717, quando a maioria da
pela sabedoria como prefiguração da adesão população brasileira era escrava e negra.
radical exigida para o seguimento de Je-
sus. Provocar uma reflexão crítica sobre os II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
efeitos produzidos pela Palavra de Deus na 1. I leitura (Est 5,1b-2; 7,2b-3)
comunidade e na vida de cada um. O livro de Ester, do qual é tirada a pri-
meira leitura, provavelmente foi composto
NOSSA SENHORA APARECIDA entre os anos 300 e 100 a.C., durante a
12 de outubro dominação grega, embora a história nar-
rada remonte ao período da dominação
A força da mulher intercessora persa, quando o trono era ocupado pelo
rei Assuero, cujo reinado se deu por volta
I. INTRODUÇÃO GERAL dos anos 486 a 465 a.C. A autoria e o lu-
Na solenidade de Nossa Senhora Apare- gar de composição do livro são completa-
cida, a liturgia rende homenagens a Maria, mente desconhecidos. A história contada
recordando o protagonismo feminino na no livro não tem correspondência com os
história do povo de Deus. Considerando fatos históricos. O importante, no entanto,
a marginalização da mulher nos tempos é sua mensagem de libertação e resistên-
bíblicos, esse dado é muito relevante, pois cia, protagonizada por Ester, uma mulher
revela a predileção de Deus pelas pessoas judia que usa seus privilégios de rainha
humildes e marginalizadas, escolhidas para para interceder ao rei pela vida dos seus
fazer grandes coisas em favor do seu povo compatriotas judeus que estavam para ser

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exterminados. A vida do povo judeu que – por um profeta, discípulo do apóstolo João,
estava ameaçada não era a existência física, que usa este mesmo nome como pseudô-
mas sim sua identidade cultural e religiosa, nimo (Ap 1,2). A palavra “apocalipse” quer
incluindo a fé no Deus criador e libertador, dizer “revelação”; significa tirar o véu que
devido à imposição da cultura grega. encobre uma realidade para torná-la conhe-
O trecho selecionado pela liturgia é cida, empregando a linguagem simbólica,
bastante curto, e, para ser compreendido, como é característica do gênero literário
é necessário recordar brevemente alguns apocalíptico. O Apocalipse é um livro de
fatos que o antecedem. Ester era uma jovem resistência que faz intenso uso de imagens
judia, de esplêndida beleza, que vivia entre para criticar o poder opressor e transmitir
os deportados e foi escolhida pelo rei As- esperança e coragem aos cristãos perseguidos,
suero para ser rainha (Est 2,1-18). Na corte, ensinando que é Deus quem tem a palavra
atua como primeiro-ministro um homem final sobre a história. Seus primeiros destina-
chamado Amã, o qual trama o extermínio tários foram os cristãos da Ásia Menor (Ap
de todo o povo judeu, incluindo a própria 1,4), vítimas da perseguição de Domiciano.
rainha Ester (Est 3,1-13). Informada da O texto desta liturgia apresenta a luta
situação, Ester é chamada a intervir (Est entre a mulher e o dragão, representando as
4,1-8). É nesse contexto que se insere a forças do bem e do mal (v. 1.13). É luta desi-
primeira leitura desta festa, cujo conteúdo é gual entre uma criatura frágil e um monstro
exatamente a intervenção de Ester junto ao terrível. A mulher é imagem da Igreja, a
rei.Vestida como rainha, Ester se apresenta comunidade cristã, aparentemente indefesa
diante do rei (5,1-2) para convidá-lo a um e frágil; o dragão, que tem a serpente como
banquete preparado por ela mesma (Est aliada (v. 15), é a imagem do poder opressor
5,3-6). Fascinado pela beleza de Ester, o – na época, o Império Romano com todo o
rei atende ao convite e comparece ao ban- seu aparato militar e ideológico e, ao longo
quete, demonstrando todo o seu apreço por da história, toda força que se opõe à instau-
ela. Surge então, a oportunidade de Ester ração do Reino de Deus na terra. Apesar
interceder por si e pelos seus compatriotas da aparência frágil, a mulher é revestida de
judeus, já que o rei lhe dá a oportunidade de Deus; os elementos mais esplendorosos da
pedir qualquer coisa, até mesmo a metade criação – sol, estrelas, lua e terra – estão à
do reino (7,2), garantindo que ela terá seu sua disposição, dando-lhe beleza e proteção
pedido atendido. O que a rainha pede é sua (v. 1.16). Dela nasce um filho para governar
vida e a vida do seu povo (7,3). o mundo (v. 5): obviamente, Jesus, enquanto
Como mulher que resiste e intercede, Ressuscitado que, embora nos céus junto de
Ester é prefiguração de Maria, a mulher Deus, está igualmente presente no cotidiano
do sim a Deus e da fidelidade ao seu filho, das comunidades cristãs.
Jesus, a qual também intercede pelo seu A resistência da mulher ao dragão mostra
povo necessitado de vinho bom, símbolo que Deus fortalece os pequeninos e margi-
da felicidade e da vida em abundância. nalizados da história. Maria, a mãe de Jesus, é
personificação e prova das escolhas de Deus
2. II leitura (Ap 12,1.5.13a.15-16a) pelo que é simples e humilde, porém ca-
A segunda leitura é tirada do Apocalipse paz de confundir e vencer os grandes. Por
de São João, o último livro do Novo Testa- isso, muito cedo os cristãos associaram essa
mento, escrito nos últimos anos do século I – mulher a Maria, geradora de Jesus, o Filho
quando Domiciano era o imperador romano de Deus.

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3. Evangelho (Jo 2,1-11) todo o aparato religioso de Israel, marcado
O Evangelho segundo João descreve sete por um complexo de normas e ritos, mas
sinais realizados por Jesus ao longo do seu carente de amor (v. 6). Sensível à situação
ministério. Nesse Evangelho, os atos prodi- indicada pela sua mãe, Jesus age de modo
giosos de Jesus não são chamados de milagres, surpreendente e oferece o vinho em abun-
mas de sinais. Embora reconheça que Jesus dância (v. 7-10). A qualidade e a quantidade
realizou muitos outros, o autor escolheu do vinho dado por Jesus significam que nada
somente sete – na tradição bíblica, número mais separa Deus da humanidade; todo o
que evoca perfeição e completude – para seu amor é oferecido em abundância, cujo
constar em seu livro, julgando-os suficientes sinal maior será a entrega de Jesus na cruz,
para revelar a identidade de Jesus como o ao pé da qual também estará presente sua
Cristo, o Filho de Deus, despertar a fé da mãe (Jo 19,25-27).
comunidade nele e gerar vida em seu nome A presença da mãe de Jesus em Caná e na
(Jo 20,30-31). O texto lido nesta liturgia, o cruz significa que ela participou de todo o
relato das bodas de Caná, traz a descrição ministério e deve participar também da vida
do primeiro dos sete sinais: a mudança da de todas as comunidades cristãs, ensinando
água em vinho. sempre a fazer tudo o que Jesus disser. Ela
O texto fala de uma festa de casamento não é chamada pelo nome no Evangelho
realizado em Caná da Galileia, na qual esta- de João porque é personificação de toda
vam a mãe de Jesus e este com seus discípulos a humanidade, especialmente das mulheres.
(v. 1-2). As festas de casamento eram muito Nela estão presentes todas as mulheres da
apreciadas no mundo semita; ser convida- terra, com seus sonhos e esperanças.
do para uma era motivo de honra e gerava
muita alegria. Como, no Antigo Testamento, III. PISTAS PARA REFLEXÃO
o matrimônio se tornou metáfora da relação Comentar as leituras, mostrando a relação
entre Deus, o esposo, e Israel, a esposa (Os entre as três. Lembrar que a verdadeira de-
2,16-25; Is 1,21-23; 49,14-16; 62,1-5), em voção a Maria consiste em fazer o que Jesus
toda festa de casamento fazia-se memória disser, ou seja, viver conforme o Evangelho.
da aliança entre Deus e Israel. O cenário é Rezar pelos destinos do Brasil, recordando
perfeito para a manifestação de Jesus, que a responsabilidade de todos na construção
veio ao mundo estabelecer nova relação entre de um país justo, tolerante, inclusivo e feliz.
Deus e a humanidade, com a participação
direta da sua mãe. 29º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Mais do que um gesto de solidariedade 17 de outubro
aos noivos, a intervenção da mãe de Jesus
revela a necessidade de um jeito novo de Serviço e doação,
se relacionar com Deus (v. 3-5). O vinho sem ambição
é símbolo do amor e da alegria, sinais da
presença de Deus na vida das pessoas e das I. INTRODUÇÃO GERAL
comunidades.A mãe de Jesus age como por- A liturgia deste domingo recorda o
ta-voz da humanidade carente de amor e serviço e a doação de si mesmo como
vida plena. A recomendação para fazer tudo síntese da missão de Jesus e, consequen-
o que Jesus disser é sinal de confiança na sua temente, como exigências indispensáveis
palavra e certeza do seu agir (v. 5). As seis para seu discipulado em todos os tempos.
talhas de pedra vazias representam a Lei e Outrossim, chama a atenção para posturas

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e atitudes inaceitáveis na comunidade dos realização da vontade do Senhor (v. 10a),
seus seguidores e seguidoras, como a am- tendo em vista os efeitos salvíficos, e não
bição, as rivalidades e a sede de poder. como um fim em si mesmo. É óbvio que
Isso é evidenciado, sobretudo, no Evan- Deus não se apraz com o sofrimento de
gelho, o qual é preparado pela primeira ninguém; mas sabe reverter a situação em
leitura: a figura do servo sofredor, que benefício da libertação. A pessoa justa sofre
oferece a vida em expiação para tornar porque sua maneira de viver é a mais efi-
justo todo o povo, prefigura o destino de caz denúncia das estruturas e sistemas que
Jesus, o Filho do Homem que veio para geram injustiças e morte. A vida oferecida
servir e dar a vida em resgate de muitos. como expiação, sinal de total adesão à von-
A segunda leitura apresenta Jesus como tade do Senhor, é garantia de descendência
sumo sacerdote e perfeito mediador: nele duradoura (10b), o que ratifica a fidelidade
encontramos misericórdia e compaixão, de Deus, pois a descendência é uma de
pois ele conhece nossas fraquezas, uma suas mais clássicas promessas (Gn 21,12;
vez que, por fidelidade ao Pai e amor à 22,17; Dt 4,40). No contexto do exílio,
humanidade, foi provado em tudo como essas palavras possuem um significado muito
nós, exceto no pecado. importante, tornando-se convite à resistên-
cia. Somente um povo resistente e fiel ao
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS Senhor poderia garantir descendência. Por
1. I leitura (Is 53,10-11) isso, oferecendo-se em expiação, o servo
A primeira leitura é um fragmento do cumpre com êxito a vontade do Senhor e
quarto cântico do servo do Senhor (Is sua própria missão (v. 10c).
52,13-53,12), um texto que pertence ao O efeito principal da vida de sofrimento
“livro da consolação” (Is 40-55). Essa obra do servo, por fidelidade a Deus, é a justifica-
corresponde à segunda parte do grande li- ção do povo (v. 11). A expressão “inúmeros
vro de Isaías e é atribuída a um profeta e homens” significa a totalidade do povo de
poeta anônimo, chamado pelos estudiosos Deus e um aceno universalista. Sofrer pelos
de “Segundo Isaías” ou “Dêutero-Isaías”, outros, carregando suas culpas, é a expressão
que exerceu sua missão profética junto aos máxima de serviço e doação desinteressa-
exilados na Babilônia, já no final do exílio dos, como Jesus fez e espera que também
(anos 550 a 539 a.C.). O livro surgiu com o o façam seus seguidores. Por isso, o quarto
objetivo de transmitir consolo e esperança cântico do servo é o que melhor prefigura
de libertação a um povo cansado e abatido a vida e a missão de Jesus.
diante de tanta opressão. A propósito, os
cânticos do servo, sobretudo o terceiro e 2. II leitura (Hb 4,14-16)
o quarto, contêm as melhores descrições A segunda leitura continua a ser tira-
simbólicas dessa situação, o que tem leva- da da carta aos Hebreus. O breve trecho
do a maioria dos estudiosos a ver o servo corresponde ao início da segunda parte da
como uma figura coletiva: é a imagem do obra (Hb 4,14-10,31), cujo tema central é o
povo de Israel exilado, especificamente o sacerdócio de Jesus Cristo. Saliente-se que a
resto que permaneceu fiel à Aliança, não carta aos Hebreus é o único livro do Novo
obstante as inúmeras provações. Testamento que apresenta explicitamente
O texto desta liturgia recorda o sofri- Jesus como sumo sacerdote, e a passagem
mento do servo, com seus efeitos positivos. lida neste domingo pode ser considerada
O profeta concebe o sofrimento como a uma síntese de toda a obra.

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O texto começa com uma afirmação, esquerda de Jesus, numa demonstração clara
seguida de uma exortação: Jesus, o Filho de de ambição e sede de poder (v. 35-37). Esse
Deus, é o sumo sacerdote que entrou no é um episódio bastante polêmico e com-
céu (v. 14a). Ora, no culto da Antiga Aliança, prometedor para a imagem dos primeiros
o espaço máximo onde o sacerdote podia discípulos, registrado dessa maneira somente
entrar era o Santo dos Santos, considerado a por um evangelista tão realista como Marcos.
morada de Deus na terra e, por isso, o espa- Por isso, Lucas preferiu omiti-lo, e Mateus o
ço mais sagrado do templo; entrava-se nele modificou, apresentando a mãe dos discípu-
apenas uma vez por ano. Está clara, portanto, los como a autora do pedido (Mt 20,20-23).
a perfeição da mediação do sacerdócio de Chamados de “filhos do trovão” (Mc 3,17),
Jesus, pois ele está definitivamente no mundo em alusão ao seu comportamento intole-
de Deus, e não apenas ocasionalmente. A rante e ambicioso, Tiago e João, junto com
exortação à perseverança na profissão de fé Pedro, são os discípulos mais evidenciados
(v. 14b) indica o contexto de crise e perse- nos Evangelhos sinóticos, não pelos méritos,
guição nas comunidades destinatárias, com mas pelas contradições. Além da ambição, o
a consequente tendência ao desânimo. pedido revela a visão equivocada da messia-
A pertença de Jesus ao mundo de Deus, nidade de Jesus. Os discípulos não aceitavam
no entanto, não significa desconhecimento um Messias sofredor; continuavam a alimen-
nem distância dos problemas que afligem a tar as expectativas por um Messias glorioso
humanidade, pois, tendo assumido a condi- e potente, conforme as tradições de Israel.
ção humana em plenitude, ele passou pelo Diante da incompreensão dos discípulos,
sofrimento e pela morte; foi provado como Jesus aprofunda a catequese. Primeiro, de-
nós em tudo, exceto no pecado (v. 15). Isso nuncia a ignorância deles (v. 38a); em seguida,
faz dele o exemplo máximo de serviço e provoca-os sobre a disposição de comparti-
doação. Por conseguinte, devemos nos apro- lhar a vida, sintetizada pelas imagens do cálice
ximar de Jesus com toda a confiança, na cer- e do batismo (v. 38bc): o batismo alude ao
teza de que nele encontramos misericórdia início da missão (Mc 1,8-11), enquanto o
e compaixão (v. 16). cálice antecipa a paixão (Mc 14,23.36). Isso
quer dizer que ser discípulo(a) de Jesus exige
3. Evangelho (Mc 10,35-45) conformar-se à sua vida em tudo, incluindo
O Evangelho continua ambientado no con- a capacidade de dar a vida. A resposta dos
texto do caminho de Jesus com seus discípulos discípulos é positiva, mas não suficiente para
para Jerusalém. Mais do que mero desloca- garantir o que desejam (v. 39-40). A dispo-
mento físico, esse caminho é um itinerário teo- sição para abraçar o seguimento de Jesus e
lógico e catequético, no qual Jesus instrui seus assumir suas consequências não pode estar
discípulos, com maior clareza, sobre sua iden- atrelada à obtenção de recompensas. O ar-
tidade e sobre as exigências que seu seguimen- ranjo dos lugares na glória futura é um dom
to comporta. Paradoxalmente, é no caminho gratuito do Pai, e não conquista pessoal.
que os discípulos demonstram maior incom- A ambição gera rivalidades, causando a di-
preensão e resistência ao que Jesus ensina. visão da comunidade (v. 41). Na medida em
O texto é a sequência imediata do tercei- que os projetos individuais são evidenciados,
ro anúncio da paixão (Mc 10,32-34).Trata-se a unidade é quebrada. Por isso, Jesus convoca
do absurdo pedido dos discípulos irmãos, uma reunião para mostrar seu projeto com
Tiago e João, para ocuparem os primeiros maior clareza ainda, procurando deixar claro
lugares na glória: um à direita e outro à o quanto este é diferente de qualquer projeto

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humano de poder (v. 42).Tendo negligencia- a humanidade, com predileção clara pe-
do os três anúncios da paixão, os discípulos las pessoas mais vulneráveis e necessita-
tinham como parâmetro os modelos vigentes das, vítimas das mais diversas formas de
de poder, marcados pelo domínio e pela tira- exploração e injustiça. Ao mesmo tempo,
nia, o que é incompatível com o seguimento convida-nos a contemplar e anunciar a
de Jesus. Por isso, ele apresenta o modelo a realização contínua desse projeto na histó-
ser seguido pela comunidade dos seus segui- ria. Na primeira leitura, em tom jubiloso,
dores: o serviço. É necessário passar de um o profeta Jeremias anuncia a libertação
modelo baseado na imposição para novo pa- dos exilados e o retorno ao país, sendo
radigma, baseado no serviço, tendo em vista conduzidos pelo próprio Deus, com seu
a igualdade e o bem de todos (v. 43-44). amor de pai que ama seus filhos e deles
Portanto, o referencial para a comunidade cuida. A segunda leitura fala do sacerdócio
cristã não pode ser outro senão o próprio Je- de Cristo: ele possui todas as credenciais
sus, o Filho do Homem, que veio para servir de sumo sacerdote, mas as supera, por ser
e dar a vida em resgate de muitos (v. 45). Ele o Filho de Deus, o que torna perfeita sua
próprio é o exemplo de que a autoridade au- mediação. O Evangelho narra a cura do
têntica deve ser exercida por meio do serviço cego Bartimeu; mais do que um relato
incondicional, contemplando a capacidade de milagre, esse episódio representa um
de dar a própria vida. Qualquer tentativa modelo de fé e de adesão ao seguimento
ou experiência na comunidade que tenham de Jesus. O salmo é um hino de ação de
como parâmetro “os reinos deste mundo” graças pelo retorno dos exilados, uma das
fazem essa comunidade deixar de ser cristã. muitas maravilhas realizadas por Deus em
favor do seu povo.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Refletir sobre as três leituras, apresentan- II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
do a relação temática entre elas. Enfatizar o 1. I leitura (Jr 31,7-9)
serviço como o mais eficaz sinal de iden- Jeremias foi um dos profetas bíblicos de
tificação com o projeto de Jesus. Provocar ministério mais fecundo e longo, com du-
uma reflexão crítica na comunidade, espe- ração aproximada de 50 anos. Recebeu o
cialmente nos movimentos e serviços, sobre a chamado de Deus ainda muito jovem, por
maneira de exercer a liderança, mostrando o volta do ano 627 a.C., durante o reinado de
quanto a ambição, o espírito de competição, Josias em Judá (Jr 1,4-10). Era uma época
as rivalidades e o autoritarismo desviam a até promissora, devido à política reformista
comunidade do Evangelho de Jesus. de Josias; esta, porém, não foi continuada
por seus sucessores. A sequência dos acon-
30º DOMINGO DO TEMPO COMUM tecimentos apontava para a catástrofe, como
24 de outubro de fato se deu: Jerusalém foi invadida pelo
exército da Babilônia em 597 a.C., tendo
Ver para seguir Jesus parte da sua população deportada, e foi
e anunciar completamente destruída em 586 a.C., com
a deportação do restante da população. Je-
I. INTRODUÇÃO GERAL remias previu e assistiu a tudo isso, o que,
Neste domingo em que celebramos o obviamente, repercutiu na sua pregação,
Dia Mundial das Missões, a liturgia re- rendendo-lhe injustamente o rótulo de
corda o projeto libertador de Deus para profeta pessimista. Por conseguinte, chega

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a ser surpreendente a presença de uma se- (Hb 5,1-10), na qual o autor descreve as
ção de oráculos de restauração no seu livro, características do sacerdócio do templo (v.
chamada de “livro da consolação” (Jr 30- 1-4) e, em seguida, aplica-as a Cristo, eviden-
33). A primeira leitura deste domingo é ciando sua superioridade (v. 5-10). A leitura
tirada dessa seção e comporta um anúncio não contempla a seção inteira, mas os versí-
de esperança, com perspectivas messiânicas. culos lidos são suficientes para demonstrar
O texto começa com um convite à ale- que Jesus é o sumo sacerdote por excelência.
gria pela salvação do povo, a qual consiste O ideal de sacerdote do templo é marcado
na libertação do cativeiro e no retorno à por três características básicas: I) ser tirado
terra (v. 7). O povo que voltará – os exilados dentre os homens e instituído mediador entre
e todos os israelitas dispersos – é apenas Deus e a humanidade (v. 1); II) ter compaixão
um resto, quer dizer, um povo pequeno das pessoas pecadoras e oferecer sacrifícios
e arrasado, mas cheio de esperança: cegos, pelos pecados de si mesmo e dos outros (v.
aleijados, grávidas e parturientes (v. 8). Essas 2-3); III) ser chamado por Deus, como Aarão
categorias são imagens da vulnerabilidade e (v. 4). Jesus possui credenciais superiores a
do sofrimento; expressam a preferência e os essas: sendo verdadeiro Deus e verdadeiro
cuidados de Deus pelos indefesos, vítimas homem, sua mediação é perfeita; sem pecado,
de injustiças e exploração. São pessoas com fez-se solidário com os pecadores de todos os
dificuldade de caminhar e, por isso, mais tempos, ofertando sua vida por amor ao Pai
necessitadas da proteção de Deus. São tam- e à humanidade. Na condição de Filho de
bém sinais de esperança: mulheres grávidas Deus, seu chamado precede qualquer outro
e parturientes simbolizam a fecundidade e (v. 5); seu sacerdócio não descende de Aarão,
a vida nova; a partir delas é que o Senhor mas remonta a uma ordem mais antiga e
reconstituirá seu povo, tornando-o família, única: a de Melquisedec (v. 6), uma figura
sendo ele o Pai amoroso que cuida e protege misteriosa e sem descendência, desvinculado
(v. 9). Tais são as maravilhas cantadas pelo de qualquer instituição.Tudo isso demonstra
salmista: “Maravilhas fez conosco o Senhor, a superioridade e perfeição da mediação de
exultemos de alegria!” (Sl 126,3). E a cura Jesus e, por conseguinte, do seu sacerdócio.
do cego Bartimeu, no Evangelho, indica
que Jesus é, por excelência, o realizador 3. Evangelho (Mc 10,46-52)
das maravilhas de Deus. O Evangelho desta liturgia corresponde à
etapa final do caminho de Jesus com seus dis-
2. II leitura (Hb 5,1-6) cípulos para Jerusalém e compreende o últi-
Mais uma vez, a segunda leitura é tirada da mo milagre realizado, conforme a narrativa de
carta aos Hebreus, precisamente da segunda Marcos: a cura do cego Bartimeu. Com esse
parte (Hb 4,14-10,31), cujo foco central é episódio, o evangelista denuncia a incoerência
o sacerdócio de Jesus Cristo. Certamente, os dos discípulos e indica a transformação pela
destinatários da carta – cristãos de origem qual eles devem passar. Com efeito, durante
judaica – tinham dificuldade em aceitar uma o caminho, Jesus anunciou seu destino de
experiência de fé desvinculada do templo de Messias sofredor e apresentou as condições
Jerusalém, onde os sacerdotes tinham papel indispensáveis para seu seguimento, como a
proeminente. Daí a insistência do autor em humildade, a acolhida aos pequeninos, o ser-
apresentar Jesus como sumo sacerdote, em viço e a coragem de dar a vida por sua causa
grau superior aos do templo. O texto deste e pelo Evangelho. Enquanto isso, os discípulos
domingo faz parte de uma seção expositiva cultivavam pretensões triunfalistas, praticavam

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proselitismo, alimentavam ambição e riva-
lidades; enfim, viviam um estado de com- Narrativa e cultura
pleta cegueira diante do que Jesus ensinava.
Como foi ressaltado nos domingos an- popular no
teriores, o caminho é um lugar privilegiado Cristianismo
para a catequese e a vida da comunidade. Primitivo
Representa a exposição aos riscos e perigos, Paulo Nogueira
bem como a abertura ao diálogo e ao encon-
tro com o diferente; é a imagem da Igreja
em saída. No caminho, acontecem encontros
transformadores, em meio a situações como
a descrita no Evangelho desta liturgia: o cego
Bartimeu sentado à beira do caminho, na saí-
da da cidade de Jericó (v. 46). Esse é o único
caso, no Evangelho de Marcos, em que uma
pessoa necessitada de cura é chamada pelo
nome. Por ser cego, era uma pessoa excluída,
restando-lhe somente as margens da socie-

Imagens meramente ilustrativas.


dade e a mendicância para a sobrevivência.
Bartimeu era um cego que queria ver, ao
contrário dos discípulos de Jesus. Era cons-
152 págs.

ciente da sua condição e buscava superá-la.


Por isso, ao saber que Jesus estava passando
por perto, gritou-lhe, suplicando piedade e
O livro é um convite para entrar
demonstrando grande fé e esperança (v. 47).
no mundo dos primeiros cristãos
De sua parte, as pessoas que acompanhavam por meio de um exercício de
Jesus queriam monopolizá-lo, repreendendo estranhamento. O autor propõe
Bartimeu, que não se deixou intimidar e gri- que o leitor se permita ver
tou ainda mais forte sua súplica (v. 48). Jesus, como esse grupo é diferente de
contudo, não se deixa controlar por ninguém; qualquer forma de cristianismo
nenhum grupo ou instituição pode determi- que conheça ou que pratique.
nar seu agir; para ele, não é incômodo inter- Com esse contrato de leitura,
romper o caminho para dar atenção a uma o autor quer permitir ao leitor
exercitar uma leitura na qual
pessoa necessitada e excluída. Ele mesmo
emerjam outras pautas que não
chama para perto de si as pessoas marginali- as próprias e que as “esquisitices”
zadas pela sociedade e pela religião (v. 49). e peculiaridades do discurso
A atitude do cego diante do convite de religioso não sejam varridas
Jesus mostra o entusiasmo e a alegria de para debaixo do tapete do texto
quem tem fé, esperança e pressa pela trans- acadêmico.
formação (v. 50). Jogar o manto significa a
capacidade de renúncia, uma das exigências
Vendas: (11) 3789-4000
de Jesus para seu seguimento. O manto era 0800-0164011
tudo o que o cego possuía. Não era muita
coisa, mas, por ser tudo o que tinha, poderia paulus.com.br
tornar-se empecilho. A renúncia ao manto,

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portanto, tornou o cego uma pessoa livre. duas vertentes inseparáveis: amor a Deus
Por isso, ele deu um pulo, um gesto que ex- e ao próximo, respectivamente, como se
pressa alegria e, ao mesmo tempo, liberdade fossem as duas faces da mesma moeda. Isso
conquistada. O pulo do cego é um salto é evidenciado, sobretudo, pelo Evangelho,
qualitativo na sua vida, marco do encontro no qual Jesus responde ao questionamento
transformador com Jesus. de um mestre da Lei sobre o primeiro dos
Apesar de conhecer as necessidades do mandamentos, afirmando que o primeiro
cego, Jesus pergunta o que ele quer, para é amar intensamente a Deus e o segundo é
criar relação e gerar intimidade. Reconhe- amar o próximo, sendo ambos inseparáveis.
cendo Jesus como Mestre, o cego responde A base da resposta de Jesus está na primeira
que deseja ver (v. 51).Ver era a necessidade leitura, tirada do livro do Deuteronômio,
de todos os que acompanhavam Jesus, mas precisamente da seção correspondente ao
somente Bartimeu foi capaz de reconhe- credo fundamental de Israel, que propõe
cer isso. Por conseguinte, foi transformado; o amor incondicional a Deus, associado
curado pela própria fé, sem a necessidade à escuta da sua Palavra. A segunda leitura,
de gestos e sinais extraordinários (v. 52a). E ao tratar do sacerdócio de Jesus, recorda
logo se tornou discípulo (v. 52b). Em todo sua oferta de si mesmo, exemplo máxi-
o Evangelho, mas sobretudo neste relato, ver mo de quem viveu plenamente o amor a
significa dar adesão a Jesus e ao seu projeto, Deus, seu Pai, e ao próximo – a humani-
tornando-se um imperativo para o discipu- dade pecadora –, por quem se fez solidá-
lado e a missão. É isso o que torna a cura de rio.
Bartimeu um episódio tão paradigmático.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
III. PISTAS PARA REFLEXÃO 1. I leitura (Dt 6,2-6)
Refletir sobre as leituras e relacioná-las A primeira leitura é tirada do livro do
com o tema do Dia Mundial das Missões: Deuteronômio, cujo nome significa literal-
“Não podemos deixar de afirmar o que vimos mente “segunda lei”.Trata-se do último livro
e ouvimos!” (At 4,20). É preciso ver o agir do Pentateuco, composto de três discursos
de Deus na história e anunciar, bem como atribuídos a Moisés, como artifício literário,
é necessário ver as estruturas e situações que a fim de conferir autoridade ao escrito. Con-
impedem esse agir e denunciá-las corajosa- forme a dinâmica narrativa do livro, Israel
mente. Rezar pelas missões nas mais diversas se encontra nas planícies de Moab, já nos
dimensões. Recordar que toda pessoa batizada preparativos finais para a entrada na Terra
é discípula e missionária de Jesus Cristo. Prometida. Em tom de despedida, pouco
antes de morrer, o líder Moisés dirige suas
31º DOMINGO DO TEMPO COMUM últimas palavras a Israel, recapitulando os
31 de outubro aspectos essenciais da Lei e exortando-o a
permanecer fiel ao Senhor. Segundo a teo-
Amor a Deus e ao próximo: logia deuteronomista, a fidelidade de Israel
inseparáveis é condição fundamental para o cumpri-
mento das principais promessas de Deus:
I. INTRODUÇÃO GERAL bênção, descendência e terra. Por isso, o
O tema central da liturgia deste do- futuro exílio, que significa a perda da terra,
mingo é o primado do amor sobre todos será interpretado como consequência da
os mandamentos, compreendido em suas infidelidade. O trecho lido nesta liturgia

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pertence ao núcleo fundamental do segun- Como já foi recordado em outras ocasiões,
do discurso de Moisés (Dt 4,44-28,68), os destinatários da carta, cristãos de ori-
que, por sinal, é o mais importante dos gem predominantemente judaica, tinham
três. dificuldade de viver a fé desvinculada do
O texto começa com Moisés exortando templo de Jerusalém e do seu sacerdócio.
Israel a temer o Senhor (v. 2), o que não Por isso, o autor insiste tanto em apresen-
significa ter medo, obviamente, mas reve- tar Jesus como sumo sacerdote superior
rência, reconhecimento da sua grandeza aos sacerdotes da Antiga Aliança. O texto
e adesão total ao seu projeto de vida. Em lido neste domingo reflete essa situação.
contrapartida, o fruto do temor a Deus é a Por meio de antíteses, o autor apresenta a
vida em abundância, compreendida como superioridade do sacerdócio de Cristo em
descendência, fecundidade e longevidade. relação aos sacerdotes da Antiga Aliança ou
Para alcançar isso, Israel precisa ouvir e pôr do templo.
em prática a vontade do Senhor, expressa A primeira antítese contrapõe a incons-
nos seus mandamentos e leis (v. 3). Agindo tância e a descontinuidade dos sacerdotes da
dessa maneira, Israel será feliz e fecundo na Antiga Aliança, por causa da morte, à eter-
Terra Prometida. nidade de Jesus, o Ressuscitado (v. 23-25).
A sequência da leitura (v. 4-6) compreen- A segunda antítese contrapõe a santidade de
de a primeira parte do credo fundamental Jesus à condição de pecado dos sacerdotes
de Israel, conhecido como “Shemá Israel” do templo (v. 26-27). Com efeito, santo e
(Dt 6,4-9). Até hoje, esse texto faz parte da inocente, Jesus não precisou oferecer sacri-
oração diária dos judeus, recitada pelo menos fícios pelos seus pecados, pois não os tinha;
duas vezes ao dia. Novamente, é enfatiza- ofereceu a si mesmo como sacrifício úni-
do o convite à escuta, com a afirmação de co e perfeito em favor de todas as pessoas,
Deus como o único Senhor (v. 4), a verdade ao contrário dos sacerdotes do templo, que
essencial do monoteísmo bíblico. Por ser deveriam oferecer sacrifícios por si mesmos
único, é ao Senhor que se deve amar com e pelo povo. A última antítese contrapõe a
toda a intensidade do ser: coração, alma e fragilidade do sacerdócio antigo, constituído
forças (v. 5); isso quer dizer que o amor a pela Lei e, portanto, revogável, à perfeição
Deus envolve a interioridade e o agir hu- do sacerdócio de Jesus, instituído por uma
mano.Temos aqui uma espécie de comentá- palavra de juramento irrevogável, posterior
rio atualizado ao primeiro mandamento do à Lei e, por isso, superior.
Decálogo (Ex 20,2-6; Dt 6,6-10). Este é o
ensinamento essencial que Israel não poderá 3. Evangelho (Mc 12,28b-34)
esquecer e deverá ter eternamente gravado No Evangelho desta liturgia, Jesus já se
no coração, com repercussão no agir (v. 6): o encontra em Jerusalém, após o difícil ca-
amor como o mandamento maior, fruto do minho com seus discípulos, que relutavam
temor e consequência da escuta da Palavra do em aceitar sua messianidade, marcada pela
Senhor. disposição de amar e servir até as últimas
consequências, a ponto de dar a própria vida.
2. II leitura (Hb 7,23-28) Se, no caminho, seus principais opositores
A segunda leitura ainda é tirada da car- foram os próprios discípulos, em Jerusa-
ta aos Hebreus, precisamente da segunda lém serão as lideranças religiosas e políticas.
parte (Hb 4,14-10,31), que tem como Por isso, depois de uma entrada triunfante
tema central o sacerdócio de Jesus Cristo. na cidade (Mc 11,1-11), logo surgiram os

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conflitos com as classes dirigentes e grupos próximo como a si mesmo (v. 31), como se
influentes, começando pela denúncia contra fossem as duas faces de uma mesma moeda.
o templo, transformado em covil de ladrões O mandamento por excelência é o amor;
(Mc 11,15-19). e este só é verdadeiro quando é destinado
Durante sua curta estadia na capital, Je- simultaneamente a Deus e ao próximo.Talvez
sus ensinava diariamente no templo. En- essa seja a maior novidade de todo o seu
quanto isso, representantes dos principais ensinamento.
grupos e movimentos político-religiosos Reconhecendo a maravilha da resposta
faziam-lhe perguntas maliciosas, com o de Jesus (v. 32), o mestre da Lei também
objetivo de vê-lo cair em contradição e, entra na sua dinâmica e acrescenta uma
assim, antecipar sua condenação. O texto novidade, não como invenção pessoal, mas
deste domingo narra uma discussão sobre como interpretação da mensagem profé-
a Lei, embora o interlocutor desse episó- tica (v. 33): amar a Deus e ao próximo, de
dio não seja malicioso, como os anteriores forma inseparável, é superior a qualquer
(Mc 12,13-27). Trata-se de um mestre da holocausto e sacrifício (Os 6,6). Diante
Lei, que fez a seguinte pergunta: “Qual é dessa resposta, Jesus reconhece a sensatez
o primeiro de todos os mandamentos?” (v. do mestre da Lei, declarando que ele não
28). É pergunta muito significativa e, ao estava longe do Reino de Deus (v. 34), ou
mesmo tempo, complexa; em torno dela, seja, assentindo que ele tinha dado passos
giravam muitos debates nos círculos rabí- importantes para um possível seguimento no
nicos da época. É significativa porque visa futuro. Essa declaração final de Jesus se torna
esclarecer qual mandamento deve ser ob- emblemática, porque esse é um dos seus
servado com maior fidelidade; é complexa poucos encontros e debates com represen-
porque os rabinos tinham catalogado 613 tantes da religião oficial que não terminam
preceitos na Lei – portanto, era difícil esco- em conflito. Ademais, o episódio em si é
lher um entre tantos. Entre os fariseus, por também mais um passo importante da cate-
exemplo, predominava a opinião de que o quese de Marcos para sua comunidade: fora
mandamento mais importante era o pre- do grupo, há pessoas mais dispostas e aber-
ceito sabático, pois alegavam que o próprio tas aos ensinamentos de Jesus do que seus
Deus tinha guardado esse mandamento (Gn próprios discípulos.
2,2-3; Ex 20,8-11; Dt 5,12-15). Outros gru-
pos consideravam todos os mandamentos III. PISTAS PARA REFLEXÃO
iguais em importância, sem atribuir-lhes Refletir sobre as leituras, contextuali-
uma hierarquia. zando-as e mostrando a relação entre elas.
Como sempre, a resposta de Jesus vai Enfatizar bastante a inseparabilidade entre
além do que lhe é perguntado. Para isso, o amor a Deus e o amor ao próximo, como
ele recorre a duas passagens do Antigo Tes- elementos essenciais da fé cristã. Recordar
tamento (Dt 6,4-5 e Lv 19,38) e formula o sacerdócio de Jesus Cristo, com seu amor
sua própria síntese, apresentando juntos o incondicional ao Pai e à humanidade, como
primeiro e o segundo mandamentos, como paradigma do agir cristão no mundo. Re-
um projeto de vida que revela seu próprio cordar o dia nacional da juventude, rezando
jeito de viver. Assim, propõe o amor a Deus pelos jovens da comunidade, motivando-os
com toda a intensidade do ser da pessoa (v. a se organizar em grupos e pastorais, enal-
29-30) – recorrendo ao núcleo fundamen- tecendo a força e o potencial transformador
tal da fé israelita –, em paralelo ao amor ao próprios da juventude.

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