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maio-junho de 2016 – ano 57 – número 309

Desafios pastorais atuais

03 Nossa pastoral diante


do novo “ícone pop” da 13 Paróquia e iniciação cristã
catecumenal: A interdependência
economia, Thomas Piketty entre renovação paroquial e
Nicolau João Bakker mistagogia catecumenal
João Fernandes Reinert

25 Antropologia da formação
presbiteral inicial 31 A consciência e o discernimento
sociopolítico no Catecismo da
José Lisboa Moreira de Oliveira Igreja Católica
Pe. Ademir Nunes Farias

39 Roteiros homiléticos
Celso Loraschi
vidapastoral.com.br

Caros leitores e leitoras,


Graça e Paz! rama de amor, independentemente de nossa
A vocação da comunidade cristã é teste- condição falível. Deus é maior do que qual-
munhar a alegria de pertencer a Jesus Cristo. quer pecado. Estamos, pois, envolvidos nessa
Não temos motivos para viver mergulhados história de amor e nada nem ninguém podem
na tristeza. Desde o dia de nosso batismo, nos separar desse amor (Rm 8,35-39).
fomos destinados à felicidade. Problema al- Assim, cada discípulo e discípula são
gum pode nos tirar o espírito de ânimo e en- qual uma carta que leva em si o anúncio da
tusiasmo. Apesar de nossas fraquezas huma- boa notícia. Não uma carta qualquer, mas
nas e das adversidades inerentes à nossa tra- “uma carta de Jesus Cristo, escrita não com
vessia neste mundo, em nós habita Deus. E tinta, mas com o Espírito de Deus vivo. Es-
Deus basta! Como nos assegura Jesus, em crita não em tábuas de pedra, mas em tábuas
palavras dirigidas ao apóstolo Paulo, “para de carne, nos corações” (2Cor 3,3).
você, é suficiente a minha graça, pois a força Por isso a necessidade de estarmos em
se cumpre na fraqueza” (2Cor 12,9). sintonia constante com o Mestre. Ele é o ho-
É a graça de Deus, oferecida a nós por mem da misericórdia, do perdão. Nele se en-
meio de Jesus, que nos sustenta no caminho contra e ele mesmo é a razão de nossa vida e
da vida. Não são nossas próprias forças. E missão. Logo, os seus seguidores e seguido-
nossa missão só se realiza, de fato, mediante ras devem ter as mesmas atitudes do Mestre.
essa convicção. Isso só pode ocorrer se houver um encontro
Por isso, a comunidade só é viva e atraen- pessoal com ele.
te se tem consciência dessa pertença. De ou- Esta edição de Vida Pastoral quer ser
tra forma, ela correria o risco de se considerar uma colaboração a todos nós que somos
autossuficiente e cair na tentação do amor ao Igreja e enfrentamos desafios na missão.
poder. Quem pertence a Jesus é guiado pelo Não estamos a serviço de um sistema polí-
poder do amor. Esse é o poder que conta. tico ou econômico: “A proposta de Jesus é
Disso decorre que o agente da pastoral é muito mais radical do que a proposta de
Jesus mesmo. Não somos nós. Quando acha- qualquer esquerda política imaginável. Por
mos que somos donos da missão, corremos mais radical que uma sociedade seja, ela
sério risco e, por que não dizer, praticamos não calará a prece do povo: ‘Que venha a
grave pecado: a vanglória! O papa Francisco nós o vosso Reino!’” Por isso é sempre atu-
tem nos chamado bastante a atenção para al, urgente e necessária a catequese que
não tornarmos a Igreja uma organização não “valorize todas as dimensões da vida hu-
governamental. A Igreja não é uma ONG. A mana, evitando a fragmentação ou o des-
Igreja é amor. cuido de uma delas”. Assim estaremos
E o amor tem implicações, põe-nos no comprometidos e empenhados, como cris-
mesmo caminho de Jesus. O caminho da bon- tãos, “na vida social e política da comuni-
dade, da compaixão, da ternura, da misericór- dade humana, em vista de um envolvimen-
dia, da entrega total ao projeto do Pai. Esse to sempre mais comprometido com as rea-
mesmo amor nos ensina que a Igreja não é lidades sensíveis da sociedade”.
uma ideologia, um partido, um escritório de
burocracia fria. A Igreja é o corpo místico de Pe. Antonio Iraildo Alves de Brito
Cristo, nasceu do coração do Pai, que se der- Editor
Revista bimestral para
sacerdotes e agentes de pastoral
Ano 57 — número 309
maio - junho de 2016

Editora PIA SOCIEDADE DE SÃO PAULO Revisão Iranildo Bezerra Lopes, Alexandre Santana,
Diretor Pe. Claudiano Avelino dos Santos Tiago José Risi Leme
Editor Pe. Antonio Iraildo Alves de Brito Assinaturas assinaturas@paulus.com.br
MTB 11096/MG (11) 3789-4000 • FAX: 3789-4011
Conselho editorial Pe. Claudiano Avelino dos Santos, Rua Francisco Cruz, 229
Pe. Paulo Bazaglia, Pe. Darci Marin Depto. Financeiro • CEP 04117-091 • São Paulo/SP
Ilustrações internas Luís Henrique Alves Pinto Redação © PAULUS – São Paulo (Brasil) • ISSN 0507-7184
Editoração Fernando Tangi vidapastoral@paulus.com.br
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Nossa pastoral diante
do novo “ícone pop” da
economia, Thomas Piketty
Nicolau João Bakker, svd*

A Igreja, em princípio, não pode acolher nenhum tipo de capitalismo, por


mais decente que seja. Como também não pode dar-se por satisfeita com
nenhuma das experiências socialistas postas em prática até hoje. A
proposta de Jesus é muito mais radical do que a proposta de qualquer
esquerda política imaginável. Por mais radical que uma sociedade seja,
ela não calará a prece do povo: Que venha a nós o “vosso” Reino!

N
* Missionário do Verbo Divino, sacerdote, este artigo, gostaria de apresentar a to-
formado em Filosofia, Teologia e Ciências
Sociais (com pré-especialização em dos os leitores da Vida Pastoral o surpre-
Economia dos Países em Desenvolvimento). endente livro do economista francês Thomas
Atuou sempre na pastoral prática, rural e
urbana. Em São Paulo, foi educador popular
Piketty, O capital no século XXI. O livro foi
no Centro de Direitos Humanos e Educação editado no Brasil pela Editora Intrínseca (Rio
Popular (CDHEP/CL) e professor de Teologia de Janeiro, 2014), tornando-se imediatamen-
Pastoral no Instituto de Teologia (Itesp/SP).
te um best-seller nas principais livrarias. As-
nº- 309

De 2000 a 2008, foi auxiliar na pastoral e


vereador, pelo PT, no município de sim como Karl Marx (†1883), Piketty, novo
Holambra-SP. Representa a CRB no Conselho
“ícone pop” da economia, conforme The Eco-

Estadual de Proteção a Testemunhas (Provita/


ano 57

SP). Atualmente atua na pastoral paroquial nomist, faz uma análise profunda do capitalis-
de Diadema-SP. Nos últimos anos publica mo, abrangendo, porém, um período históri-
regularmente na Vida Pastoral, REB,
co muito mais amplo. Com diversas equipes

Convergência e Grande Sinal. E-mail:


Vida Pastoral

nijlbakker@hotmail.com altamente especializadas, pesquisou durante

3
15 anos as fontes mundiais mais confiáveis, mente 21.000 euros de renda do trabalho
trazendo à luz, por meio de uma impressio- (70%) e 9.000 euros de renda do capital
nante série de gráficos e tabelas, autêntica (30%) (p. 58) [...] O caso mais importante
“tomografia computadorizada” do sistema [...] é sem dúvida o da alta da participação
capitalista. do capital durante as primeiras fases da Re-
Considero o livro de grande relevância volução Industrial (1800-1860). No Reino
pastoral, porque todos nós, ministros ordena- Unido, cujos dados são mais completos, os
dos, religiosos/as, ou leigos/as atuantes na trabalhos históricos disponíveis [...] sugerem
Igreja, estamos diante de uma sociedade cada que a participação do capital se expandiu
vez mais complexa, com a in- em dez pontos percentuais da ren-
“Todos nós, ministros da nacional, passando de cerca de
cumbência de captar o que Deus
tem a nos dizer mediante uma ordenados, religiosos/ 35-40% ao fim do séc. XVIII e no
leitura atenta aos sinais do nosso início do séc. XIX para 45-50% em
as, ou leigos/as
tempo, como nos lembrou Gau- meados do séc. XIX, momento em
dium et Spes, números 4 e 11. E é atuantes na Igreja, que o Manifesto Comunista era re-
bom lembrar que o “eixo” que estamos diante de digido (p. 220).
faz girar todas as engrenagens da O conceito de “renda nacio-
sociedade é a economia. Quem
uma sociedade cada
nal” é básico em análise de eco-
não souber “ler” o sistema eco- vez mais complexa, nomia, pois permite indicar qual
nômico que nos aprisiona difi-
com a incumbência de a parte que cabe ao trabalhador e
cilmente será uma “luz que bri- qual ao capital. Os gráficos de Pi-
lha diante dos homens” (Mt captar o que Deus tem ketty mostram a famosa “curva
5,16). Quero apresentar neste a nos dizer mediante em U”: o capital era forte no sécu-
artigo apenas uma espécie de
“roteiro de leitura” para o livro uma leitura atenta lo XIX, decresceu na primeira
metade do século XX (entre ou-
de Piketty. Que ele fale por si aos sinais do nosso tros motivos, em razão das guer-
mesmo. Como Gaudium et Spes ras, da desvalorização imobiliária
tempo.”
nos pede que leiamos os sinais e financeira, além de altos impos-
do tempo “à luz do Evangelho”, acrescentarei tos sobre a renda) e voltou a crescer com força
algumas observações nesse sentido após a na segunda metade do século XX (especial-
“leitura” do texto. mente com a onda neoliberal).

1. Roteiro de Leitura Questão 2: Da “renda nacional”, qual a


parte que cabe ao capital?
Questão 1: Da “renda nacional”, qual a
Piketty diz: A relação capital/renda
parte que cabe ao trabalhador?
(nos países desenvolvidos) seguiu trajetórias
Piketty diz: Por definição, a renda na- muito semelhantes, apresentando uma rela-
cional mede o conjunto das rendas de que tiva estabilidade nos séculos XVIII e XIX (o
nº- 309

dispõem os residentes de um país ao longo de capital nacional valia de seis a sete anos de
um ano (p. 49) [...] Renda nacional = renda renda nacional em 1910), depois passando

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do capital + renda do trabalho (p. 51) [...] por um enorme choque no séc. XX (não va-
Em termos práticos, a renda nacional de uns lendo mais do que dois a três anos de renda
30.000 euros por habitante em vigor nos nacional em 1950), para finalmente reto-

Vida Pastoral

países ricos se decompunha em aproximada- mar, no início do séc. XXI, aos níveis próxi-

4
mos dos observados, às vésperas das guerras
do séc. XX (p. 118) [...] O capital mudou de
natureza – ele era a terra e se tornou imobi-
liário, industrial e financeiro –, mas não Igreja
perdeu nada de sua importância (p. 121) Comunhão viva
[...] O décimo superior da distribuição da Paul Lakeland
riqueza, mais ainda do que o décimo supe-
rior da distribuição de salários, é por si só
extremamente desigual. Quando esse décimo
superior possui 60% do patrimônio total (em
1910 era 90%!) – como é o caso de vários
países europeus hoje em dia –, o centésimo
superior possui cerca de 25% e os 9% seguin-
tes possui cerca de 35% (p. 254).
Uma tese central no livro de Piketty é
que a tendência atual é a de fortalecimento
do capital. Se a taxa média anual de pou-
pança de um país (pelos mais diferentes 280 págs.

motivos) é de, p. ex., 12% da renda nacio-


nal, e a taxa de crescimento da renda nacio-
nal por habitante for de 2%, a longo prazo, Os recentes livros premiados de
“o país terá acumulado o equivalente a seis Paul Lakeland sobre o lugar dos
leigos na Igreja Católica Romana
anos de renda nacional em capital” [...] “Um contemporânea o prepararam
país que poupe muito e cresça lentamente muito bem para assumir esta
acumula, a longo prazo, um enorme esto- “eclesiologia desde baixo”.
que de capital” [...] “É a queda do cresci- Lakeland debruça-se sobre as
mento – sobretudo da expansão demográfi- “marcas clássicas da Igreja”, mas
ca – que conduz ao retorno do capital” (p. sua atenção volta-se de modo
especial para o que podemos
165) [...] “Resumindo: o crescimento mo- aprender sobre a natureza da
derno, fundado no crescimento da produti- Igreja como comunhão viva,
vidade e na difusão do conhecimento, per- a partir do exame dos valores
Imagens meramente ilustrativas.

mitiu evitar o apocalipse marxista e equili- e práticas das pessoas de fé


brar o processo de acumulação do capital. comuns. Seguindo o conselho
Mas ele não modificou as estruturas profun- de Bernard Lonergan, Lakeland
adota um enfoque decididamente
das do capital – ou, ao menos, não reduziu indutivo à reflexão eclesial.
de verdade sua importância macroeconômi-
ca em relação ao trabalho” (p. 229). Vendas: (11) 3789-4000
0800-164011
SAC: (11) 5087-3625
nº- 309

Questão 3: O “mercado livre” é anjo ou


demônio? V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL

paulus.com.br
ano 57

Piketty diz: Essa desigualdade funda-


mental, que denotarei como r > g, em que r é
a taxa de remuneração do capital (isto é, o

Vida Pastoral

que rende, em média, o capital durante um

5
ano, sob a forma de lucros, dividendos, juros, suem sua força de trabalho (p. 555). [...] O
aluguéis e outras rendas do capital, em por- mais assombroso é que, em todas essas socie-
centagem de seu valor) e g representa a taxa dades (Europa), a metade mais pobre da po-
de crescimento (isto é, o crescimento anual da pulação não possui quase nada: os 50% mais
renda e da produção), desempenhará um pa- pobres em patrimônio detêm sempre menos
pel essencial nesse livro. De certa maneira, de 10% da riqueza nacional, e geralmente
ela resume a lógica de minhas conclusões. [...] menos de 5% (p. 252).
É importante ressaltar que a
Para Piketty, de fato, a “con-
desigualdade fundamental, r > “O mais assombroso
tradição central do capitalismo r
g, a principal força de diver- é que, em todas essas
> g” faz com que os ricos tendam
gência no meu estudo, não tem
relação alguma com qualquer sociedades (Europa),
a ficar cada vez mais ricos, e, pe-
las numerosas tabelas e gráficos
imperfeição do mercado... É a metade mais pobre
que apresenta, é essa, claramen-
possível imaginar que institui-
da população não te, a tendência da atual fase neo-
ções e políticas públicas pos-
sam contrabalançar os efeitos possui quase nada: liberal do capitalismo.
dessa lógica implacável: por os 50% mais pobres
Questão 5: Qual a marca
exemplo, a adoção de um im-
em patrimônio principal do capitalismo atual?
posto progressivo sobre o capi-
tal pode atuar sobre a desigual- detêm sempre Piketty diz: Desde os anos
dade r > g, alinhando a remu- 1970-1980, assiste-se a uma ex-
neração do capital e o cresci- menos de 10% da plosão sem precedentes da desi-
mento econômico (p. 33-34). riqueza nacional, e gualdade da renda nos Estados
Unidos. A parcela do décimo supe-
Para Piketty, o mercado li- geralmente menos
rior passou de 30-35% da renda
vre está mais para anjo. A falta
de 5%.” nacional nos anos 1970 para cerca
de políticas públicas adequa-
de 40-45% nos anos 2000-2010,
das, contudo, transformam-no
uma alta de quase quinze pontos percentuais
em demônio.
da renda nacional americana (p. 287). [...]
Dos 15 pontos percentuais de renda nacional
Questão 4: No sistema capitalista, os
suplementar que foram absorvidos pelo dé-
ricos ficam cada vez mais ricos?
cimo superior, em torno de 11 pontos – qua-
Piketty diz: A principal força desestabi- se três quartos – foram arrebanhados pelo
lizadora está relacionada ao fato de que a 1% (isto é, o grupo das rendas atuais supe-
taxa de rendimento privado do capital r riores a 352.000 dólares em 2010), e a me-
pode ser forte e continuamente mais elevada tade disso foi para o 0,1% (o grupo das ren-
do que a taxa de crescimento da renda e da das anuais acima de 1,5 milhão de dólares
produção g. A desigualdade r > g faz com (p. 289). [...] A nova desigualdade ameri-
que os patrimônios originados no passado se cana tem relação estreita com o advento de
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recapitalizem mais rápido do que a progres- uma sociedade de “superexecutivos” (p. 295)
são da produção e dos salários. Essa desi- [...] A parcela do milésimo superior (0,1%)

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gualdade exprime uma contradição lógica passou de 2% a quase 10% da renda nacio-
fundamental. O empresário tende inevita- nal (p. 310). [...] As ordens de grandeza
velmente a se transformar em rentista e a

obtidas para a parcela do centésimo superior


Vida Pastoral

dominar cada vez mais aqueles que só pos- na renda nacional nas nações pobres ou

6
emergentes são, a princípio, extremamente
próximas das observadas nos países ricos (p.
318) [...] A arrecadação fiscal hoje se tor-
nou ou está a ponto de se tornar regressiva O futuro da fé
no topo da hierarquia das rendas na maioria Harvey Cox
dos países (p. 483).
Piketty atribui a decolagem dos “supere-
xecutivos” ao surgimento das macroempresas
modernas e ao “extremismo meritocrático”,
sem nenhuma ligação lógica com aumento
de produção, além da “enorme queda da taxa
do imposto sobre a renda marginal superior
nos países anglo-saxões a partir dos anos
1970-1980” (p. 327).

296 págs.
Questão 6: Podemos continuar falando
“do” capitalismo?
Piketty diz: Para um mesmo salário Que configuração a fé cristã
deverá assumir no século XXI?
médio de 2.000 euros por mês, a distribuição
Em meio ao ritmo acelerado das
escandinava, mais igualitária, corresponde mudanças globais e diante de
a 4.000 euros por mês para os 10% mais um aparente ressurgimento do
bem remunerados (e 10.000 para o 1% com fundamentalismo, o Cristianismo
os maiores salários), 2.250 euros para os ainda poderá sobreviver como
40% do meio e 1.400 euros para os 50% com uma fé viva e fecunda? Com
seu estilo rico e acuidade
os menores salários. Enquanto isso, a distri-
acadêmica, Cox explora essas e
buição americana, mais desigual, tem uma outras questões, num livro que é,
hierarquia claramente mais acentuada: ao mesmo tempo, autobiográfico,
7.000 euros para os 10% do topo (e 24.000 comentário teológico e história
euros para o 1%), 2.000 euros para os 40% da Igreja.
do meio e apenas 1.000 euros por mês para
os 50% da base da distribuição (p. 251)
Imagens meramente ilustrativas.

[...]. A história da desigualdade é moldada


pela forma como os atores políticos, sociais e
econômicos enxergam o que é justo e o que
não é, assim como pela influência relativa de
cada um desses atores e pelas escolhas cole-
Vendas: (11) 3789-4000
tivas que disso decorrem. Ou seja, ela é fruto
0800-164011
da combinação, do jogo de forças, de todos os SAC: (11) 5087-3625
nº- 309

atores envolvidos (p. 27) [...]. Por volta de


V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
1900-1910 [...] não havia classe média,

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ano 57

uma vez que os 40% do meio eram quase tão


pobres quanto os 50% mais pobres (o 1%
mais abastado possuía sozinho mais de 50%

Vida Pastoral

do total da riqueza) (p. 255).

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Dependendo do foco, faz sentido falar rosas e potencialmente ameaçadoras para
“do” capitalismo, mas, em geral, é preciso dei- nossas sociedades democráticas e para os va-
xar claro de qual capitalismo estamos falando. lores de justiça social sobre os quais elas se
Dependendo do tempo e do lugar, as realida- fundam... A melhor solução é o imposto pro-
des são totalmente diferentes. Não faz sentido gressivo anual sobre o capital. Com ele, é pos-
levantar as placas “condenado” ou “aprovado” sível evitar a espiral desigualadora sem fim e
sem entrar nos detalhes. As generalizações ao mesmo tempo preservar as forças de con-
inúteis são muito comuns, também na Igreja. corrência e os incentivos para que novas acu-
mulações primitivas se produzam sem cessar
Questão 7: Fazendo sua análise “do Ca- (p. 555-556)... O imposto progressivo expri-
pital”, Marx errou ou acertou? me, de certa forma, um compromis-
“A evolução so ideal entre justiça social e liberda-
Piketty diz: Marx rejeitou
dinâmica de de individual (p. 492).
a hipótese de que o progresso
tecnológico pudesse ser dura- uma economia A proposta de um imposto
douro e de que a produtividade de mercado e de progressivo sobre o capital,
fosse capaz de crescer de modo como complemento aos impos-
contínuo – duas forças que pode- propriedade privada, tos sobre a renda e a herança,
riam, em alguma medida, se deixada à sua própria não elimina o sistema capitalista,
contrapor ao processo de acu- mas inova no sentido de impedir
mulação e concentração do ca-
sorte, contém forças a “acumulação infinita” que faz
pital privado. Sem dúvida, falta- de convergência parte de seu DNA.
vam-lhe dados estatísticos para
importantes, ligadas
refinar suas posições... O princí- Questão 9: No sistema ca-
pio de acumulação infinita pro- sobretudo à difusão pitalista, os salários são sem-
posto por ele contém uma noção do conhecimento e pre achatados?
fundamental, tão válida para a
análise do séc. XXI como foi das qualificações.” Piketty diz: Na Europa Oci-
dental, na América do Norte e no
para a do séc. XIX (p. 17-18).
Japão, a renda média passou de pouco mais
Assim como para o capitalismo, também de 100 euros por mês e por habitante em
não valem as placas de “aprovado” ou “desa- 1700 para mais de 2.500 euros por mês em
provado” para o marxismo. Tudo depende do 2012, multiplicando-se em mais de vinte ve-
foco em discussão. Marx foi o ícone do pas- zes. Na realidade, a expansão da produtivi-
sado, Piketty é o ícone do presente. dade, ou seja, da produção por hora traba-
lhada, foi ainda mais elevada... O poder de
Questão 8: Fazendo sua análise “do compra médio em vigor no Velho Continente
Capital”, Piketty traz algo novo? quase não mudou entre 1700 e 1820, depois
mais do que dobrou entre 1820 e 1913 e, por
Piketty diz: A lição geral de minha pes-
nº- 309

fim, aumentou mais de seis vezes entre 1913


quisa é que a evolução dinâmica de uma eco-
e 2012 (p. 90).
nomia de mercado e de propriedade privada,

ano 57

deixada à sua própria sorte, contém forças de Cuidado com esse “médio” do poder de
convergência importantes, ligadas sobretudo compra. As médias escondem grandes dispa-
à difusão do conhecimento e das qualifica- ridades. Todos ganharam, mas alguns bem

Vida Pastoral

ções, mas também forças de divergência vigo- mais que os outros.

8
Questão 10: Com a queda do muro de as desigualdades salariais exacerbadas e
Berlim, o capitalismo venceu? justificadas por mérito e produtividade
(cujo fundamento factual se mostrou, como
Piketty diz: Elaborada em 1955 (a “teo­
vimos, muito escasso). O extremismo meri-
ria de Simon Kuznets”), trata-se de uma te-
tocrático pode assim conduzir a uma dispu-
oria sobre os anos mágicos do período pós-
ta entre os superexecutivos e os rentistas,
-guerra (quando as economias desenvolvidas
em detrimento de todos os que não são nem
cresciam a taxas de até 5% anuais), que na
uma coisa nem outra (p. 407).
França ficaram conhecidos como os “Trinta
Gloriosos”, o intervalo compreendido entre Piketty afirma que “a desigualdade não é
1945 e 1975. Para Kuz­nets, bastava ter pa- necessariamente um mal em si: a questão
ciência e esperar que o crescimento começas- central é decidir se ela se justifica e se há ra-
se a beneficiar a todos. A filosofia da época zões concretas para que ela exista” (p. 26) .
podia ser resumida em apenas uma frase: Mas diz também: “Quando a taxa de remune-
“Growth is a rising tide that lifts all the bo- ração do capital ultrapassa a taxa de cresci-
ats” (“O crescimento é como a maré alta que mento da produção e da renda, como ocor-
levanta todos os barcos”). Otimismo seme- reu no séc. XIX e parece provável que volte a
lhante foi proposto por Robert Solow em ocorrer no séc. XXI, o capitalismo produz
1956 (com a teoria do “crescimento equili- automaticamente desigualdades insustentá-
brado” para todos os grupos sociais) (p. 18). veis, arbitrárias, que ameaçam de maneira
radical os valores de meritocracia sobre os
A euforia capitalista dos “Trinta Glorio- quais se fundam nossas sociedades democrá-
sos”, de fato, chegou ao auge (apesar da estag­ ticas” (p. 9). A meritocracia, para Piketty, ad-
flação após 1975), com a queda do muro de mite a desigualdade, desde que “justa” (p.
Berlim (1989). A obra de Piketty, no entanto, 37). “O capital é potencialmente útil para
traz um panorama histórico muito mais am- todos, e, se as sociedades forem organizadas
plo, com gráficos e tabelas quase incontestá- o suficiente, todos poderão se beneficiar
veis. Fato real é que surgiu, no pós-guerra da dele” (p. 166). O que fazer, porém, com os
Europa, o que Piketty chama de “a classe mé- doentes e paralíticos à beira da estrada?
dia patrimonial”: boa parte da riqueza dos
10% mais ricos acabou indo para os 40% do Questão 12: A economia manda na po-
meio. O que é importante observar, porém, é lítica, ou nem sempre?
que os 50% de baixo ficaram quase na mesma.
Piketty diz: “Que os leitores não se enganem: Piketty diz: A história da distribuição
o desenvolvimento de uma verdadeira ‘classe da riqueza jamais deixou de ser profunda-
mente política (p. 27) [...]. Existem, contu-
média patrimonial’ constitui a principal trans-
do, meios pelos quais a democracia pode re-
formação estrutural da distribuição da riqueza
tomar o controle do capitalismo e assegurar
nos países desenvolvidos no séc. XX” (p. 255).
que o interesse geral da população tenha pre-
cedência sobre os interesses privados, preser-
nº- 309

Questão 11: E a tal “meritocracia”, ela


vando o grau de abertura econômica e repe-
é mesmo a solução?
lindo retrocessos protecionistas e nacionalis-

ano 57

Piketty diz: No futuro poderemos re- tas. Ao longo do livro, tento fazer proposições
encontrar uma combinação de dois mun- neste sentido, e elas se apoiam nas lições ti-
dos: de um lado, o retorno das fortes desi- radas dessas experiências históricas, cuja

Vida Pastoral

gualdades do capital herdado e, do outro, narrativa forma a trama principal deste tex-

9
to (p. 9) [...]. O fracasso cada vez mais evi- Piketty diz: O papel principal do imposto
dente dos modelos estatizantes soviético e sobre o capital [...] é evitar uma espiral desi-
chinês nos anos 1970 levou os dois gigantes gualadora sem fim e uma divergência ilimitada
comunistas a implantar, no início dos anos das desigualdades patrimoniais, além de possi-
1980, uma liberalização gradual de seus sis- bilitar um controle eficaz das crises financeiras
temas econômicos (p. 139). [...] A desigual- e bancárias. Contudo, antes de poder cumprir
dade aumentou desde os anos 1970-1980, esse duplo papel, o imposto sobre o capital deve
com fortes variações entre países, o que suge- permitir que se atinja um objetivo de transpa-
re que as diferenças institucionais e políticas rência democrática e financeira sobre os patri-
tenham exercido um papel central (p. 233). mônios e os ativos detidos pelos indivíduos em
escala internacional (p. 504). [...] O
Piketty crê firmemente que “Jogando o imposto sobre o capital seria uma
uma política de impostos progres- forma de cadastro financeiro mun-
sivos, anuais e globais, sobre o ca- problema do meio
dial, algo que não existe hoje... Cada
pital é perfeitamente capaz de im- ambiente para o autoridade fiscal nacional deve rece-
por um eficaz controle sobre as
“loucuras” (p. 462) da economia
futuro, Piketty “sai de ber todas as informações (internacio-
nais) necessárias para lhe permitir
liberal. Formas estatizantes, no fininho”. O problema calcular o patrimônio líquido de cada
entanto, não fazem parte de sua
é fruto do sistema cidadão (p. 506). [...] A transparên-
proposta, embora esteja aberto a cia financeira internacional é uma
novas formas de propriedade co- (econômico) e, questão central para o Estado fiscal
letiva e controle democrático do acolhendo o sistema, moderno (p. 510).
capital (p. 553-554).
é preciso dizer como Pesquisas feitas indicam que
Questão 13: O meio am- o problema pode 10% do PIB mundial está escon-
biente tem futuro dentro do dido nos paraísos fiscais. Piketty
ser resolvido admite que, sem os devidos con-
sistema capitalista?
dentro dele.” troles bancários e sem uma trans-
Piketty diz: O Relatório parência financeira internacional
Stern, publicado em 2006, dividiu a opinião popularmente acessível, sua proposta de um
pública. [...] Para Stern, a perda em matéria imposto progressivo sobre o capital é pouco
de bem-estar global para a humanidade é viável. A crescente concorrência entre os paí-
tal que justifica gastar a partir de agora o ses é o grande entrave atual.
equivalente a pelo menos 5% do PIB mun-
dial por ano para tentar limitar o aqueci- Questão 15: O imposto progressivo so-
mento global futuro. [...] Esse é um dos prin- bre o capital é a melhor solução?
cipais debates para o futuro (p. 551-552).
Piketty diz: A instituição ideal que seria
Jogando o problema do meio ambiente capaz de evitar uma espiral infindável de au-
para o futuro, Piketty “sai de fininho”. O pro- mento da desigualdade e retomar o controle da
nº- 309

blema é fruto do sistema (econômico) e, aco- dinâmica em curso seria um imposto progressi-
lhendo o sistema, é preciso dizer como o pro- vo global sobre o capital (p. 459). [...] O impos-

ano 57

blema pode ser resolvido dentro dele. to progressivo sobre o capital é um instrumento
mais apropriado para responder aos desafios
Questão 14: Os “paraísos fiscais” cons- do séc. XXI do que o imposto progressivo sobre

Vida Pastoral

tituem entraves à democracia real? a renda inventada no séc. XX (veremos, porém,

10
que esses dois instrumentos podem ter papéis 2. À Luz do Evangelho
úteis e complementares) (p. 461). [...] É ne-
A Bíblia não tem a intenção de oferecer
cessário [...] retomar o controle de um capita-
análises científicas. Os autores sagrados falam
lismo financeiro que enlouqueceu (p. 462).
do que o Espírito de Deus lhes inspirava, par-
[...] A questão do desenvolvimento de um Esta-
tindo de sua própria leitura do contexto so-
do fiscal e social no mundo emergente reveste-
cial e cultural da época e levando em conta a
-se de uma importância fundamental para o
riqueza espiritual já transmitida pelos ante-
futuro do planeta (p. 479). [...] Se essa regres-
passados. A Igreja, até hoje, percorre o mes-
sividade fiscal no topo da hierarquia social se
mo caminho. Ainda recentemente, no Sínodo
confirmar e se amplificar no futuro, é provável
da Palavra de Deus (2007), o papa Bento XVI
que haja consequências importantes para a di-
nos lembrava a importância da “leitura canô-
nâmica da desigualdade patrimonial e para o
nica”: a leitura do presente se ilumina com a
possível retorno de uma enorme concentração
leitura do passado (unindo a Palavra revelada
do capital (p. 483). [...] As maiores fortunas
com a Tradição vivenciada). Assim, diz Dei
mundiais (incluindo as herdadas) progrediram
Verbum, n. 8, “a Igreja, no decurso dos sécu-
em média a taxas elevadíssimas ao longo das
los, caminha continuamente para a plenitude
últimas décadas (da ordem de 6-7% ao ano) –
da verdade divina”.
rendimentos bem mais altos do que a progres-
Hoje, percebemos melhor que algo muito
são média dos patrimônios (p. 420). [...] Um
parecido acontece com todas as religiões: os
imposto igual a 1% ou 2% do valor da fortuna
povos deste mundo, na busca por uma vivên-
é relativamente pequeno para um empreende-
cia, convivência e sobrevivência feliz, debru-
dor que consegue obter um retorno de 10% ao
çam-se sobre os desafios do presente, ampa-
ano sobre seu patrimônio (p. 513).
rando-se nas riquezas culturais (“religiosas”)
do passado. Nossa “teologia do pluralismo re-
Piketty se diz “vacinado” contra ideias mar- ligioso”, atualmente, enriquece-se com uma
xistas (p. 37). Não quer mudar o sistema eco- antropologia – neste caso mais biológica que
nômico, muito menos o desmonte do Estado cultural – que vê o ser humano dotado de uma
Social moderno. Sua proposta é: aperfeiçoa- carga genética (Bento XVI falava de uma “gra-
mento. Sendo a renda média dos ricos mais alta mática”, e Tomás de Aquino [†1274] de uma
do que a renda média dos pobres, propõe, além “lei natural”) na qual as sementes do bem e do
do imposto sobre a renda (cujo “nível ótimo... mal (genes egoístas e altruístas) competem en-
seria superior a 80%”! – p. 499) e a herança, tre si, com a feliz tendência de as sementes do
um imposto direto e progressivo sobre o capital bem chegarem à vitória. Se, de alguma forma,
acumulado. “Mencionamos a possibilidade de o Espírito de Deus permeia toda a realidade, o
uma tabela de cálculos de tributos com taxas happy end está garantido, não é mesmo? Apro-
limitadas a 0,1% ou 0,5% ao ano para patrimô- xima-se o “banquete nupcial. Felizes os convi-
nios inferiores a 1 milhão de euros, 1% para dados!” (Ap 19,9). A utopia de um final feliz é
aqueles entre 1 e 5 milhões de euros, 2% para uma utopia humana quase universal.
nº- 309

os que estão entre os 5 e 10 milhões de euros, Lendo o livro de Piketty, veio-me à mente o
podendo subir até 5% ou 10% ao ano para os tom às vezes bastante azedo das disputas polê-

ano 57

patrimônios de centenas de milhões ou bilhões micas em torno da teologia da libertação latino-


de euros” (p. 556)... “Todavia, sua aplicação iria -americana. E isto não apenas nos níveis mais
requerer um esforço brutal de coordenação in- altos da hierarquia eclesial, mas também no ní-

Vida Pastoral

ternacional” (p. 34). vel básico das lideranças leigas envolvidas com

11
as pastorais sociais. Com relação à sociedade, qualquer esquerda política imaginável. Por
em qual proposta embarcar: marxismo, socialis- mais radical que uma sociedade seja, ela
mo, capitalismo? Se não for nem socialismo, não calará a prece do povo: “Que venha a
nem capitalismo, qual a alternativa? Um “outro nós o ‘vosso’ Reino”. A mensagem cristã
mundo” é possível? Piketty, como já observa- aponta para algo que vai além do historica-
mos, declara-se “vacinado” contra ideias mar- mente viável. O Reino de Deus já “está no
xistas. Opta pelo “mercado livre”. Mas o capita- meio de vós”, mas sua concretização final
lismo que Piketty propõe é muito diferente do estará sempre no porvir (Mt 4,17).
que temos visto até agora. Sua proposta de um A narração bíblica que mais belamente trata
imposto progressivo não apenas sobre as rendas de tudo isso – resumindo a história de Israel e a
mas também sobre o capital acu-
“O capitalismo que história da humanidade – é a que
mulado vem muito mais ao en- fala dos celeiros abarrotados e a dos
contro do que a Igreja sempre Piketty propõe é lírios do campo (Mt 12,13-34). Na
defendeu: preservar a liberdade, muito diferente do perspectiva do Reino, é inútil acu-
mas prendê-la ao objetivo maior mular bens sobre bens, consumir
do bem comum. Desigualdade, que temos visto até sempre mais e destruir celeiros para
diz Piketty, apenas quando útil ao agora. Sua proposta construir outros maiores. Se Deus
bem comum. A proposta “laica” veste tão bem o que é insignifican-
de Piketty, sem dúvida, aproxi-
de um imposto te, para que se preocupar tanto?
ma-se bastante das simpatias de progressivo não Muito mais do que uma “doutrina”,
alas muito fortes da Igreja. o cristianismo é uma espiritualida-
apenas sobre as
Mas não me parece ser de, um “Caminho” a seguir. O que
essa a proposta de Jesus. Por rendas mas também importa não é acumular, mas parti-
mais que a teoria econômica sobre o capital lhar. Apenas quando Deus governa,
de Piketty, caso posta em prá- o coração humano pode descansar.
tica, possa provocar uma re- acumulado vem muito Ninguém, então, ficará à beira do
versão radical nas “loucuras” mais ao encontro do caminho. A sociedade não será me-
do atual capitalismo neolibe- ritocrática, mas “gratuicrática”, e até
ral ou financeiro – e, pastoral-
que a Igreja sempre os coxos e paralíticos vão andar. A
mente, devemos apoiar qual- defendeu: preservar profunda crença humana na utopia
quer ação concreta nessa dire- da “Terra sem Males”, por alguns
a liberdade.”
ção –, a Igreja, em princípio, considerada pura alienação, na ver-
não pode acolher nenhum tipo de capitalis- dade é a energia mais forte que habita o coração
mo, por mais decente que seja. Como tam- humano.
bém não pode dar-se por satisfeita com ne- Isso não dispensa a Igreja de, também,
nhuma das experiências socialistas postas fazer uma análise racional do “sistema econô-
em prática até hoje. A proposta de Jesus é mico” e trabalhá-la pastoralmente, mas essa é
muito mais radical do que a proposta de outra questão.
nº- 309

Para você, dizimista Esta obra é um presente para você, querido(a) dizimista.
Imagens meramente ilustrativas.

É um gesto concreto de agradecimento por sua presença


Padre Tom Viana

no meio de nós. Por você ter compreendido que Dízimo


ano 57

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Vida Pastoral

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12
Paróquia e iniciação
cristã catecumenal:
A interdependência entre
renovação paroquial e mistagogia
catecumenal
João Fernandes Reinert*

Tudo indica que o presente e o


futuro do catecumenato N este artigo, pretendemos dialogar e refletir
sobre duas instituições fundamentais da
Igreja: a paróquia e a iniciação cristã catecume-
dependem de um novo rosto nal. Ambas representam os maiores desafios
estrutural paroquial. Um novo pastorais da atualidade: a transmissão da fé às
novas e futuras gerações e as estruturas eclesiais
perfil paroquial é condição nas quais essa fé é transmitida e vivenciada.
necessária para que o projeto A Igreja vem se empenhando nos últimos
de iniciação catecumenal seja anos para responder a tais desafios. Redesco-
briu na mistagogia catecumenal o privilegiado
levado a cabo. caminho pastoral para iniciar na fé, e, no to-
cante à renovação das estruturas eclesiais, ga-
nhou destaque a preocupação com a paróquia.
nº- 309

Renovação paroquial e consolidação da inicia-


ção cristã catecumenal são realidades que não

ano 57

podem ou não deveriam ser vistas como ques-


*Graduado em Filosofia, doutor em Teologia pela PUC-Rio, tões isoladas uma da outra. Repensar os cami-
professor do Instituto Teológico Franciscano (Petrópolis-RJ),
nhos da iniciação cristã obriga-nos a rever si-

Vida Pastoral

pároco da Paróquia Santa Clara de Assis (Duque de Caxias-


RJ). E-mail: frreinert@yahoo.com.br multaneamente as estruturas eclesiais nas quais

13
essa fé é vivida. Consolidação/implantação da realidades eclesiais, desconhecida ou não assu-
prática catecumenal e novo rosto de paróquia mida. Como entender tal fenômeno, se sua per-
não podem ser buscas e esforços paralelos, mas tinência é inquestionável? São muitas as causas
tarefas complementares de um único projeto desse impasse: agentes de pastoral, padres ou
evangelizador, pois eles dependem um do ou- bispos que desconhecem a metodologia catecu-
tro e se iluminam mutuamente. Há entre as menal; execução parcial de sua metodologia;
duas instituições uma cumplicidade pastoral, catequese de adultos confundida com catecu-
uma responsabilidade mútua, “Nascido nos primeiros menato; estruturas eclesiais que
uma interferência recíproca, em nem sempre facilitam a execução
que a vitalidade de uma depende séculos do cristianismo, da iniciação cristã catecumenal.
do fortalecimento da outra. o catecumenato foi Nessa perspectiva, entre as exigên-
cias que a restauração do catecu-
uma das mais bem- menato traz consigo, está a neces-
1. A redescoberta de um
caminho privilegiado de
sucedidas instituições sidade de estruturas eclesiais adul-
tas, sem o que qualquer esforço de
iniciação à vida cristã e a de iniciação à vida
implantação do novo paradigma
busca de um novo rosto
cristã na história de iniciação na fé cai por terra.
paroquial
da Igreja e, hoje, Referimo-nos, particularmente, à
Não constitui novidade a instituição paroquial, cuja estrutu-
afirmação da crise da transmis- resgatada pelo Concílio ra tradicional dificulta pôr em mo-
são da fé em nossos dias. Esta- Vaticano II, é a grande vimento a novidade pastoral da
mos longe do tempo em que a fé iniciação catecumenal. Não é de
era transmitida de geração em aposta para responder, hoje a afirmação da crise paro-
geração de forma natural, por com as devidas quial, como também não são re-
meio dos pilares socioculturais. centes as tentativas de renovação.
adaptações, aos atuais
Diante dessa realidade, a Igreja É possível um cristianismo
tem se empenhado na busca de desafios da iniciação à sem paróquia? Qual o futuro des-
um novo paradigma de iniciação vida cristã.” sa instituição, ou qual a paróquia
cristã. E é no catecumenato que do futuro? Ainda há espaço para
melhor se pode visualizar o novo paradigma paróquias? Para além das opiniões
de iniciação cristã em andamento. Nascido nos a favor ou contra, o que não é justo é a acusa-
primeiros séculos do cristianismo, o catecume- ção da falta de esforços e tentativas de renova-
nato foi uma das mais bem-sucedidas institui- ção da instituição paroquial ao longo da histó-
ções de iniciação à vida cristã na história da ria, particularmente nas últimas décadas, ainda
Igreja e, hoje, resgatada pelo Concílio Vaticano que as dificuldades de uma efetiva renovação
II, é a grande aposta para responder, com as sejam proporcionais ou superiores aos resulta-
devidas adaptações, aos atuais desafios da ini- dos alcançados. Apesar da aguda crise paro-
ciação à vida cristã. No diálogo com a moder- quial, tal instituição não pode, sem mais, ser
nidade, a Igreja dá-se conta do fim da cristan- descartada. Não se pode, sem mais, descartar
nº- 309

dade, o que a faz repensar, entre muitas ques- uma instituição de dois milênios. A paróquia
tões, os caminhos da transmissão da fé. ocupa, pois, apesar da crise, um lugar real e

ano 57

Por outro lado, se a iniciação cristã catecu- significativo na vida da Igreja. É nela que me-
menal é uma proposta pastoral mais do que atu- lhor transparece a dimensão católico-universal
da Igreja, cujas portas não se fecham a nenhu-

al, não podemos negar que, após quatro déca-


Vida Pastoral

das de sua restauração, ela é, em não poucas ma classe social, econômica, política ou racial.

14
2. Renovação paroquial e consolidação
da prática catecumenal: uma relação
dialética Discípulos e missionários
na paróquia
O esgotamento do modelo tradicional (tri- Luiz Gonzaga da Rosa
dentino) de paróquia coincide com o fim de
um modelo de iniciação cristã doutrinal e con-
ceitual, ainda que, em muitos ambientes, se
insista em mantê-lo. Nesse particular, curioso
ou evidente é o fato de o nascimento paroquial,
no século IV, ser simultâneo à decadência cate-
cumenal da Igreja primitiva. Dito de maneira
diferente: o fim do catecumenato e o início do
“catecumenato social” (cristandade) são con-
temporâneos ao surgimento da instituição pa-
roquial, quando se deu também a expansão

120 págs.
massiva do cristianismo com a liberdade reli-
giosa e a oficialização do cristianismo. A inicia-
ção cristã e o próprio cristianismo tornaram-se, Este é um livro com estilo simples
então, uma realidade social, e a comunidade e claro, fundamentado na Palavra
de fé já não era o fator decisivo para a iniciação de Deus, nos documentos da
cristã. Isso nos autoriza a questionar se tal mo- Igreja e, sobretudo, inspirado no
delo de paróquia é adequado para a transmis- Documento de Aparecida. De
forma agradável, o autor mostra
são-iniciação na fé e para sua vivência.
com objetividade que a fé cristã é
Tudo indica que o presente e o futuro do compromisso de vida, com a vida e
catecumenato dependem de um novo rosto es- na vida. Recordando que o Batismo
trutural paroquial. Um novo perfil paroquial é é um chamado amoroso de Deus
condição necessária para que o projeto de ini- para viver a dignidade de filhos e
ciação catecumenal seja levado a cabo. Onde participar da Igreja, os capítulos
apresentam aspectos da vida do
estão, contudo, tais comunidades dinâmicas e
discípulo missionário, propostos
renovadas? Não se pode cair no círculo vicioso. pelo ensinamento da Igreja. São
A inexistência de comunidades ideais não seguidos por questionamentos e
Imagens meramente ilustrativas.

pode paralisar o esforço do projeto catecume- fatos do cotidiano, e concluídos


nal, nem o contrário: ou seja, “porque não há com uma oração.
comunidades, não há catecumenato, e porque
não há catecumenato, não chegamos a comu-
nidades” (BOROBIO, 2007, p. 549). Chega-
mos, assim, à fundamentação da dinâmica dia- Vendas: (11) 3789-4000
0800-164011
lética entre catecumenato e paróquia. A “solu- SAC: (11) 5087-3625
nº- 309

ção” não está nem em procurar comunidades


V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
paroquiais ideais para a implantação catecu-

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ano 57

menal, nem em implantar a iniciação catecu-


menal para daí esperar a conversão pastoral-
-estrutural da paróquia, mas em perceber a

Vida Pastoral

dialética do processo ao buscar, conjuntamen-

15
te, novos perfis de iniciação cristã e renovada em seu primeiro sim, no intuito de fazer a pas-
estrutura paroquial. sagem dos germes da fé ao desejo de seguir
Trata-se de um círculo dialético em que o mais intensamente o Deus de Jesus Cristo.
fortalecimento de um incide no outro e este, ao Pré-catecumenato e anúncio querigmático
mesmo tempo, requer a vitalidade do primeiro. estão intrinsecamente interligados. A primeira
A iniciação à vida cristã catecumenal será efeti- etapa da iniciação é, por excelência, o tempo do
va à medida que houver uma reconfiguração primeiro anúncio e da “primeira evangeliza-
eclesial adequada; do mesmo ção”, quando “se anuncia aberta e
modo, uma iniciação catecume- “O pré-catecumenato resolutamente o Deus vivo e Jesus
nal de qualidade, na riqueza de remete à dimensão Cristo” (RICA 9). Proposta, por-
seus elementos pedagógicos, li- tanto, mais do que atual, quando
túrgicos e pastorais, lançará luzes
missionária da já não se pode dar por pressupos-
para repensar o institucional pa- paróquia, em cujo to o primeiro anúncio, anterior-
roquial. O catecumenato implan- mente garantido pelo contexto
diálogo, ambos,
tado será promotor de mudanças cultural. O diferencial da metodo-
estruturais na paróquia, assim missionariedade logia catecumenal está em não
como o catecumenato não é algo paroquial e pré- desconsiderar a necessidade do
já dado ou consolidado, mas um primeiro anúncio (Querigma), o
projeto a ser conquistado. catecumenato, que era prescindível em tempos
Feitas estas observações, se iluminarão de cristandade. Aos já batizados, a
cabe sondar como se dá concre- primeira evangelização e o anúncio
reciprocamente. Como querigmático assumem as caracte-
tamente a relação entre consoli-
dação da prática catecumenal e dar à paróquia um rísticas de reaproximação, reen-
renovação paroquial. É o que fa- rosto mais missionário cantamento, redescoberta de Jesus
remos agora, com base nos qua- Cristo e da comunidade eclesial.
tro tempos do itinerário da ini- e menos institucional? O pré-catecumenato remete à
ciação cristã catecumenal, a sa- dimensão missionária da paró-
ber: pré-catecumenato, catecumenato, eleição/ quia, em cujo diálogo, ambos, missionariedade
purificação e mistagogia. paroquial e pré-catecumenato, se iluminarão
reciprocamente. Como dar à paróquia um ros-
to mais missionário e menos institucional? E,
3. Interpelações mútuas entre pré-
ao mesmo tempo, como fazer da iniciação cris-
-catecumenato e a missionariedade
tã catecumenal uma prática missionária real,
paroquial: do primeiro anúncio a uma
que, mais do que conferir sacramentos, gere
estrutura paroquial missionária
discípulos missionários?
O pré-catecumenato é o primeiro grau do 3.1 O pré-catecumenato e a otimização
itinerário da iniciação à vida cristã catecume- do primeiro anúncio na paróquia
nal, que em nenhuma hipótese deve ser omiti- Dos quatro tempos do catecumenato é,
do (RICA 9). Entre os objetivos centrais desta sem dúvida, o primeiro o que mais interpela a
nº- 309

etapa, está o despertar da fé e do desejo de ade- paróquia, na atual mudança cultural. O pri-
rir e seguir a Cristo e à Igreja. “É o tempo da meiro anúncio não é função tão somente do

ano 57

evangelização em que, com firmeza e confian- pré-catecumenato. Se a linguagem metafórica


ça, se anuncia o Deus vivo e Jesus Cristo” (RICA ajuda a intuir melhor a inter-relação entre pré-
-catecumenato e missionariedade paroquial,

9). Por ser o tempo da primeira evangelização


Vida Pastoral

(RICA 7), o objetivo maior é ajudar o iniciante então, pode-se afirmar que o catecumenato,

16
em sua etapa pré-catecumenal, é como um mas não o suficiente, pois é fundamental inves-
trem que puxa consigo muitos vagões, num tir no anúncio em novos areópagos, criar novos
movimento articulado e orgânico que caminha meios de anúncio que despertem e promovam o
na mesma direção pastoral. Tão problemático encantamento/reencantamento com a pessoa de
quanto a não existência do catecumenato na Jesus Cristo. Otimizar as oportunidades já exis-
atualidade é, nos lugares em que ele existe, tentes diz respeito ao nível mais intraparoquial,
considerar a transmissão da fé tão somente sob cuja urgência é clara, haja vista o número de
sua responsabilidade. pessoas que “frequentam” a paróquia por ocasi-
A pergunta fundamental, no processo de ões pontuais ou os vários “níveis” de pertença
renovação paroquial à luz da pedagogia catecu- eclesial de que a paróquia é composta. Mas, com
menal, é sobre as chances e sobre a potenciali- a mesma motivação querigmática, a paróquia é
dade que a paróquia dispõe para anunciar e convocada a buscar caminhos para um movi-
reanunciar o mistério de Jesus Cristo. Otimizar mento centrífugo, um anúncio extraparoquial, o
as iniciativas já existentes de primeiro anúncio, que exigirá a descoberta e a criação de espaços
de potencialidades missionárias e querigmáti- alternativos, móveis e flexíveis, de presença da
cas, é o ponto de partida de uma renovada ca- Igreja. Se, com razão, se fala de “rede de comu-
minhada paroquial à luz do processo catecu- nidades”, não deve ser estranho o termo “redes
menal. A palavra-chave, assim, parece ser um de anúncio do Evangelho”, isto é, o esforço inin-
“novo contato” por meio do qual podem nascer terrupto para fazer-se presente em instâncias di-
verdadeiros processos de iniciação cristã. A versas da sociedade. Torna-se imperiosa uma
quais momentos e oportunidades nos referi- presença pública nas artérias da sociedade, no
mos? Primeiramente àqueles querigmáticos já mundo da saúde, da educação, da solidariedade
existentes, ainda que esporádicos; via de regra, social, das comunicações midiáticas, das famí-
momentos-chave na vida de alguém, seja nos lias, dos jovens etc. Se, em tempos de divórcio
pedidos de sacramentos, na celebração do ba- entre fé e cultura, “cristãos não nascem, mas se
tismo, da confissão, de bodas, exéquias e ou- tornam”, também é verdade que eles não se tor-
tros. De modo mais exato, os vários momentos, nam automaticamente, mas à medida que a
incluindo aqueles de “prestação de serviço” de Igreja souber, com criatividade e zelo pastoral,
que a paróquia dispõe, podem tornar-se mo- aproximar-se dos mais diversos ambientes onde
mentos fortes de um anúncio e encontro mais vivem os filhos e filhas de Deus. A lamentável
contundente da proposta do Evangelho. Tenta- realidade da “crise da chegada” ou do “sacra-
tivas de aproximação das pessoas com frequên- mento do adeus” denuncia o vasto campo de
cia paroquial periódica não podem ser negli- atuação em que a pastoral paroquial é chamada
genciadas. Para muitos, a missa dominical ou a a atuar, sem desconsiderar a dificuldade de che-
celebração da Palavra são a única oportunidade gar novamente a essas pessoas. Consequente-
de que a paróquia dispõe para o novo anúncio mente, projetos pastorais que não se concen-
ou para renovada reiniciação cristã e alimento trem tão somente em torno dos ritos sacramen-
na fé. Disso resulta que a liturgia, símbolos, ho- tais, mas também ao redor da vida cotidiana,
milia se apresentam na atualidade como poten- dos problemas reais e dos vários ambientes, são
nº- 309

cialidades querigmáticas. decisivos para o futuro da instituição paroquial.


Interagir com esses ambientes, reinventar a

ano 57

3.2 A (re)descoberta de novos espaços presença nesses lugares, é catecumenato em


de anúncio potencial ou, mais especificamente, pré-cate-

Potencializar os caminhos já existentes para cumenato em potencialidade. Esperar que se


Vida Pastoral

o primeiro e o segundo anúncios é necessário, apresentem candidatos à iniciação cristã con-

17
tradiz o espírito do pré-catecumenato, que tem Para além da possível distância entre teoria e
como princípio gerar filhos na fé, o que, por efetiva prática pré-catecumenal, por motivos já
sua vez, depende de uma estrutura eclesial mencionados, não se pode subestimar a perti-
querigmática, missionária. nência da proposta acolhedora, que, de modo
imediato, nos faz questionar a burocracia e o
3.3 O acompanhamento pessoal do peso da estrutura paroquial, com pesadas car-
pré-catecumenato e a gas de horários, expedientes, agendas. A peda-
acolhida paroquial gogia pré-catecumenal pode lan-
No pré-catecumenato consta- “É lamentável o fato çar luzes na busca de novas estru-
ta-se uma mudança de compreen- de o ministério do turas paroquiais de acolhida e de
são da acolhida. A dinâmica da ações mais personalizadas. Diante
introdutor ser ainda
acolhida permanente dá a tônica a de uma cultura que gera o anoni-
toda esta primeira etapa, com des- pouco conhecido e mato e a solidão, o material pasto-
taque para os encontros infor- valorizado, talvez por ral de que dispõe o pré-catecume-
mais, que são laboratório de parti- nato são a acolhida generosa, o
lha, escuta, discernimento, teste- ser reflexo de uma estar junto, a escuta gratuita; é a
munho, hospitalidade. Primor- herança eclesial que partir desse material que são for-
dialmente, quer ser tempo de necidos os primeiros fundamentos
abertura, de conhecimento mú- apresenta dificuldades da fé cristã. O simpatizante deve
tuo, de escuta das predisposições no trabalho ser acolhido pelo introdutor a
e motivações mais profundas da qualquer momento durante o ano,
personalizado, no
pessoa, de suas experiências reli- o que revela uma estrutura de aco-
giosas, da pergunta pelo sentido corpo a corpo, e cuja lhida contínua e permanente.
da vida. estrutura de massa É lamentável o fato de o mi-
A acolhida catecumenal pode nistério do introdutor ser ainda
ser bem assimilada no acompa- acostumou a trabalhar pouco conhecido e valorizado,
nhamento personalizado. São vá- com multidões.” talvez por ser reflexo de uma he-
rios os momentos em que trans- rança eclesial que apresenta difi-
parece a atenção direcionada a cada indivíduo, culdades no trabalho personalizado, no corpo
com base em sua particularidade. Na etapa do a corpo, e cuja estrutura de massa acostumou a
pré-catecumenato, é o introdutor, por meio de trabalhar com multidões. Em certos lugares, o
seu ministério, que vem ao encontro dessa ne- pré-catecumenato não é realizado; atropela-se
cessidade. “O candidato que solicita sua admis- essa fase e inicia-se já a etapa catecumenal; em
são entre os catecúmenos deve ser acompanha- outros lugares, é o próprio catequista que faz as
do por um introdutor, homem ou mulher, que o vezes de introdutor. Propomos não somente
conhece, ajuda e é testemunha de seus costu- investimento neste ministério de iniciação à
mes, fé e desejo” (RICA 42). São os introdutores vida cristã, mas também pensá-lo, com as devi-
que acompanham os candidatos, que os apre- das adaptações, para além do catecumenato,
sentam à comunidade e deles dão testemunho em vista de ações pastorais personalizadas e
nº- 309

(cf. RICA 43; 104). progressivas. A título de exemplo, podemos


A atenção personalizada ou a acolhida per- entrever o quanto a pastoral da acolhida pode

ano 57

sonalizada está igualmente contemplada na ser incrementada com base na dinâmica pré-
processualidade da iniciação, isto é: os tempos -catecumenal ou o quanto as funções atribuí-

do catecumenato levam em consideração a li- das ao introdutor podem beneficiar e inspirar o


Vida Pastoral

berdade, o ritmo e o tempo de cada pessoa. acompanhamento pastoral (por exemplo, noi-

18
vos, pais e padrinhos, primeiros anos de matri-
mônio, da chegada do filho, famílias que che- Dízimo
gam ou partem, novos moradores). Nessa A experiência que faltava em
perspectiva, acolhida já é, em si mesma, pri- sua vida
meiro anúncio, e em todas estas ações estão os Pe. Jerônimo Gasques
germes do pré-catecumenato.

4. O segundo momento do processo


catecumenal e o “catecumenato
permanente”: a formação permanente
a serviço da renovação paroquial
Na continuidade do diálogo entre iniciação
cristã catecumenal e instituição paroquial, en-
traremos, a seguir, no jogo dialético entre a se-
gunda etapa do itinerário catecumenal, deno-
minada catecumenato, e a formação perma-
72 págs.
nente, por nós intitulada “catecumenato per-
manente”, isto é, a contínua formação dos já
O dízimo é uma herança do
iniciados na fé. Se a paróquia precisa ser lugar povo de Deus e uma promessa de
da iniciação à vida cristã, necessita igualmente prosperidade para aqueles que
assumir o compromisso com o contínuo apro- querem fazer uma experiência
fundamento da fé dos já iniciados. Caso contrá- com Deus. Este livro fala do
rio, corre-se o risco de, conforme um ditado dízimo a partir da experiência da
bastante brasileiro, “morrer na praia”. Forma- vida pastoral. O autor recorre à
Palavra de Deus e à sua prática
ção inicial e formação permanente (iniciação de vida eclesial, não tendo a
cristã catecumenal e “catecumenato permanen- pretensão de recorrer à teoria da
te”) são, portanto, momentos distintos de um prática dizimal.
único processo na construção de comunidades
eclesiais adultas e de cristãos adultos.
Se a primeira etapa denominada pré-cate-
cumenato prima pela pré-evangelização, pelos
Imagens meramente ilustrativas.

“rudimentos da vida espiritual”, pela acolhida,


pelos encontros espontâneos, o segundo mo-
mento da caminhada enfatiza, além de outros
aspectos, sólida formação. Uma paróquia que
não investe no “catecumenato permanente”, na
Vendas: (11) 3789-4000
formação continuada de seus agentes e de to-
0800-164011
dos os batizados não somente não conseguirá SAC: (11) 5087-3625
nº- 309

levar a sério a iniciação cristã catecumenal,


V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
como também comprometerá a maturidade

paulus.com.br
ano 57

humana e cristã da paróquia.


A deficiência na formação dos agentes de
pastoral compromete a missão da Igreja e, parti-

Vida Pastoral

cularmente, a iniciação cristã. Compromete

19
substancialmente o futuro missionário da paró- dos catequistas o compromisso maior de en-
quia, pois vale lembrar que os iniciantes de hoje trar na nova lógica da iniciação cristã, no
serão os missionários de amanhã, e nada mais acompanhamento catecumenal dos adultos.
desgastante à missão do que agentes (iniciados) O desafio, contudo, é o como desta forma-
não preparados. ção, e aqui nos referimos a um renovado pro-
Se no item anterior batíamos na tecla da ne- cesso formativo à luz do processo formativo
cessidade do primeiro anúncio para fora dos res- catecumenal e em coerência com ele. Optamos
tritos muros dos templos da paró- pelo termo formação inicial dos ca-
quia, para fazer-se presente no “O tradicional tequistas. A expressão pode soar
vasto campo da sociedade, agora paradigma nocional, estranha. Por que formação inicial,
é preciso perguntar-se pela quali- quando se supõe que os catequis-
de transposição de
ficação dos agentes. Se o leigo é tas já tenham sido iniciados? O
convocado, pela graça do batis- conhecimentos, já resgate do catecumenato é recente,
mo, a atuar na realidade secular, não pode mais ser o que significa que muitos dos atu-
“no vasto campo da política, da ais catequistas não conhecem e
realidade social e da economia, denominado formativo, não foram formados no novo para-
como também da cultura, das ci- pois não se trata digma de iniciação cristã catecu-
ências, das artes, da vida interna- menal. Apesar de toda boa vonta-
cional, dos meios de comunicação apenas de repassar de e doação à Igreja, nossos cate-
e de outras realidades abertas à conteúdos, mas de uma quistas não foram formados na
evangelização” (DAp 283), verifi-
assimilação intelectual mentalidade catecumenal.
ca-se então que a formação per- Já expusemos a problemática
manente não é privilégio, mas ne- e celebrativa dos da execução do catecumenato em
cessidade, pois o diálogo com es- elementos da fé, isto determinados ambientes com
ses novos areópagos exige devido mentalidade de catequese tradi-
preparo e qualificação. é, de uma formação cional, nos quais ele, apesar de
Sob a iluminação da propos- mistagógica.” receber o nome de iniciação cristã
ta do catecumenato, há que se catecumenal, consiste somente
ressalvar que tal formação precisa revestir-se de em repasse de conteúdos. Mais do que falta de
um novo paradigma. O tradicional paradigma vontade dos catequistas, vale a pena enfatizar
nocional, de transposição de conhecimentos, isto: a problemática parece estar na lacuna da
já não pode mais ser denominado formativo, formação catecumenal. Engana-se, contudo,
pois não se trata apenas de repassar conteúdos, quem pensa que basta o conhecimento teórico
mas de uma assimilação intelectual e celebrati- do Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA).
va dos elementos da fé, isto é, de uma forma- Um dos desafios que o catecumenato enfrenta
ção mistagógica. é formar catequistas, não somente para a, mas
na proposta catecumenal. O catequista que du-
4.1 Formar-se para formar: o desafio rante vários anos exerceu o ministério nos mol-
da formação inicial e permanente dos des da catequese tradicional terá muitas difi-
nº- 309

catequistas, dos agentes de pastoral e culdades para entrar na nova proposta de ini-
do clero ciação cristã. Urge que o catequista experimen-

ano 57

A restauração da iniciação catecumenal te o processo catecumenal, percorrendo ele


traz sérias exigências, entre as quais, e certa- mesmo, na condição de catequista, a experiên-

mente a mais urgente, a da mudança de men- cia catecumenal, saboreando os ritos e símbo-
Vida Pastoral

talidade de todos os agentes nela envolvidos. É los e trazendo para sua formação pessoal a in-

20
teração conteúdo-liturgia, fé-vida. Com outras Abordada a relação entre iniciação cristã e
palavras, se os tradicionais “cursinhos” prepa- formação permanente, pretendemos, agora, à
ratórios aos sacramentos estão com os dias luz da ministerialidade do catecumenato, refle-
contados, a tradicional formação de catequis- tir sobre os ministérios na paróquia.
tas também está convocada a assumir novo iti- Para levar a cabo o objetivo a que se pro-
nerário que integre conteúdo, mística, palavra, põe, o catecumenato dispõe de uma estrutura
celebração, rito, experimento. de ministérios e serviços, com base em um
É no ministério sacerdotal que mais se evi- projeto articulado de acompanhamento pes-
dencia a necessidade da formação permanente, soal e coletivo ao longo de todo o processo da
entendida como processo de contínua conver- iniciação à vida cristã. Entram em cena, no iti-
são, de aprofundamento e atualização nas áre- nerário catecumenal, uma diversidade de mi-
as do saber humano, teológico e bíblico, para nistérios, serviços e carismas, necessários à ma-
dialogar de modo maduro com os diversos ní- turação da fé daqueles que estão no processo
veis de interlocutores e com as novas lingua- de tornar-se cristãos. Para a dinâmica catecu-
gens da sociedade plural. menal, nenhum serviço ou ministério é irrele-
Vale lembrar que a mudança de época atin- vante ou se encontra em segundo plano. Para
ge também o clero, provocando, muitas vezes, Borobio, o catecumenato leva a uma “potencia-
crise de identidade sacerdotal, o que pode fa- lização dos ministérios da Igreja”, pois neles se
cilmente conduzir aos tão comuns quadros de encontram várias dimensões de sua missão
carreirismo institucional, entre outras deturpa- (BOROBIO, 2007, p. 78).
ções, no exercício do ministério. O tornar-se Se, por um lado, é inquestionável a riqueza
adulto na fé, tão enfatizado ao longo do artigo, da variedade de serviços, carismas, ministérios
e o tornar-se adulto no ministério caminham catecumenais, necessários à tarefa da iniciação
juntos. à vida cristã, por outro, a questão torna-se pro-
Outro aspecto nem sempre frisado com a blemática quando confrontamos o quadro aci-
devida necessidade diz respeito à formação ma com a real situação ministerial paroquial em
dos seminaristas. Nas novas gerações dos que o catecumenato é realizado. Para proble-
presbíteros, verifica-se acentuada tendência matizar ainda mais a questão, algumas pergun-
ao clericalismo, quando não ao fundamenta- tas são necessárias: a comunidade paroquial,
lismo, haja vista a preocupação com o rubri- hoje, é madura o suficiente, ministerial e mis-
cismo ou a ostentação de vestes. sionariamente, para acompanhar o candidato à
Sem avançar para águas mais profundas em vida cristã, como idealiza a metodologia cate-
nossa reflexão, importa perceber que, dado que cumenal? O RICA supõe densa consciência mi-
a estrutura formativa da iniciação à vida cristã nisterial e participativa da comunidade, o “mi-
está passando pelo processo de reestruturação nistério coletivo”, conforme já recordado, isto
sintetizado no catecumenato, também o mode- é, a participação de toda a comunidade de fé
lo formativo dos candidatos ao sacerdócio pa- nos ritos, no parecer e na aprovação do inician-
rece urgir uma revisão. Lamentavelmente, mui- te, entre outras formas de atuação. Trata-se de
tos seminaristas assimilam já desde cedo que, uma realidade ou de uma meta a ser alcançada?
nº- 309

no futuro ministério sacerdotal, serão responsá- Importa a pergunta: o que a ministerialida-


veis-proprietários de uma paróquia. de catecumenal diz ao processo de renovação

ano 57

paroquial, e esta àquela? Algumas afirmações,


4.2 Da ministerialidade do quase antecipadas tentativas de resposta a essas
catecumenato a uma paróquia toda questões, serão norteadoras da reflexão que se-

Vida Pastoral

ministerial gue: 1) a rede de ministérios do catecumenato

21
e a consciência ministerial expressa na ativa ministérios, carismas e serviços de que ela é
participação da comunidade nos ritos e cele- portadora. O centro não são os ministérios or-
brações catecumenais constituem muito mais denados, nem os não ordenados, mas o tecido
uma realidade a ser construída do que algo já comunitário, em que todos os ministérios e
existente na configuração paroquial. Portanto, serviços têm sentido de ser.
aquilo que o RICA concebe como modelo de
comunidade ministerial conscientiza, questio-
5. As etapas da iluminação/
na, provoca e motiva a renovação
purificação e mistagogia e
ministerial paroquial; 2) neste “A riqueza catecumenal
a conversão mistagógica
processo dialético, ainda que a consiste em garantir
paroquial
nova consciência ministerial não
seja algo já dado, e sim realidade
forte densidade Resta ainda apontar alguns
eclesial a ser conquistada, a co- orante, mistagógica elementos da paróquia à luz dos
munidade, à medida que dois últimos tempos da caminha-
e experiencial da
participa, mesmo que timida- da catecumenal, a saber, ilumina-
mente, da vida e do acompanha- fé durante todo o ção/purificação e mistagogia. A ri-
mento dos catecúmenos, desper- processo formativo. queza catecumenal consiste em
ta para a consciência missionária garantir forte densidade orante,
e ministerial; 3) ao perceber que Do início ao fim, o mistagógica e experiencial da fé
a paróquia é ou está se tornando antes, o durante e o durante todo o processo formati-
uma rede de ministérios, o cate- vo. Do início ao fim, o antes, o du-
cúmeno estará mais disposto a
depois da recepção rante e o depois da recepção dos
assumir um serviço eclesial. O dos sacramentos visam sacramentos visam imprimir o ca-
modelo de Igreja que ele encon- ráter mistagógico e orante da ini-
imprimir o caráter
tra é o que ele vai assimilar em ciação à vida cristã. Os últimos
sua vivência cristã; 4) a qualidade mistagógico e orante momentos do itinerário catecu-
da iniciação à vida cristã é condi- da iniciação à menal, iluminação/purificação e
ção para o futuro ministerial da mistagogia, remetem a essa di-
paróquia. Assim, negativamente, vida cristã.” mensão mais orante e experiencial
quando as pessoas não são devi- da fé, sem dicotomia ou exclusi-
damente iniciadas na vida cristã ou quando são vismo. Trata-se de acento, de ênfase cronológi-
portadores de uma fé imatura, dificilmente as- ca, e não de exclusivismo.
sumem seu batismo ou exercem ministérios e Iluminação/purificação, tempo para maior
serviços eclesiais. interiorização e conversão no processo catecu-
Muito poderíamos refletir sobre a urgente menal, recorda à paróquia o imperativo da con-
conversão estrutural dos ministérios pastorais versão pastoral e estrutural. Conversão pastoral
na Igreja. Em síntese, permanece sempre o de- em que ou para quê? À expressão conversão
safio, tendo ciência dos avanços, de buscar a pastoral, podem atribuir-se inúmeros significa-
concretização de uma configuração ministerial dos, todos legítimos e necessários. O caminho
nº- 309

que tem sido denominada “comunidade-mi- percorrido até o momento, na busca de novo
nistérios” ou “comunidade-carismas e ministé- perfil de paróquia, de certa forma contemplou

ano 57

rios”. Não se trata apenas de mudança de no- várias dimensões relativas à expressão. Conver-
menclatura, mas das relações estabelecidas a são para uma paróquia toda ministerial, con-
partir dela. No paradigma comunidade-ministé- versão ao novo estilo formativo, para o impulso

Vida Pastoral

rio, o acento está na comunidade e na rede de à missionariedade, à colegialidade, a nova men-

22
talidade pastoral que, mais do que sacramenta-
lizar ou ensinar, proporcione processos pasto-
rais que levem à descoberta e ao aprofunda- Discípulos e missionários
mento da fé etc. Como síntese de todas as con- Reflexões teológico-pastorais sobre a
missão na cidade
versões a que a paróquia é convocada, trazemos
Dom Benedito Beni dos Santos
agora o termo “mistagogia”, em debate no últi-
mo tempo do itinerário catecumenal. Dito de
maneira diferente, enfatizaremos, aqui, como
que a síntese de todos os aspectos já menciona-
dos, a conversão pastoral à mistagogia. Perce-
be-se, portanto, que, com a expressão conversão
pastoral à mistagogia, envolvemos as duas últi-
mas etapas catecumenais: conversão (ilumina-
ção/purificação) e mistagogia.
A experiência ou mistagogia da fé é um di-
reito não somente dos catecúmenos, mas de
todas as pessoas, dos frequentadores assíduos,

96 págs.
dos casuais, dos “clientes’’ ou dos afastados da
paróquia. Contudo, bem sabemos que a di-
mensão experiencial da fé é, sem dúvida, a A articulação entre discipulado e
grande lacuna na paróquia, seja pelo excesso missão é a ideia central dessas
de atividades, refém de uma infinidade de tare- páginas, cujo título reproduz
fas, seja pela forte carga burocrática e institu- o tema da 5ª Assembleia do
cional, sem proporcionar, na maioria das vezes, Episcopado Latino-Americano
e do Caribe (Aparecida,
a experiência mistagógica. A afirmação já feita maio de 2007). O ponto de
de que grande parte dos já batizados não é ini- partida e de referência de
ciada na fé pode ser retomada agora em pers- todas as reflexões é o projeto
pectiva mistagógica: ou seja, considerável nú- eclesiológico do Vaticano II,
mero de batizados carece de experiência de que é seguido pela exposição
Deus, de uma religiosidade mais vivencial, cuja dos fundamentos teológicos da
missão evangelizadora da Igreja
consequência é ou o cumprimento de preceito, e a análise de alguns aspectos
ou a busca de serviço religioso, ou o afastamen- práticos da missão.
Imagens meramente ilustrativas.

to definitivo da paróquia. Daí se entende com


mais facilidade o porquê de muitos viverem,
hoje, uma espiritualidade fora da instituição
paroquial ou mesmo fora da religião.
Quando se alude à mistagogia no catecu-
menato, à experiência na paróquia ou nas pas- Vendas: (11) 3789-4000
0800-164011
torais e movimentos, independentemente do
SAC: (11) 5087-3625
nº- 309

termo utilizado, trata-se, fundamentalmente,


de condição para o futuro do cristianismo. Vale V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL

paulus.com.br
ano 57

a pena enfatizar que todo o esforço da busca de


renovação paroquial em andamento, à luz da
pedagogia catecumenal, visa favorecer uma

Vida Pastoral

profunda experiência de Deus. Nova lingua-

23
gem, símbolos, homilias, estrutura, pastorais, todos os nossos fiéis um encontro pessoal com
serviços e movimentos, enfim, qualquer reali- Jesus Cristo, uma experiência religiosa profun-
dade existente na paróquia não são fins em si da e intensa” (DAp 226).
mesmos, mas sua pertinência reside na capaci-
dade de gerar experiência mistagógica. Com
Conclusão
base na dialética proposta entre catecumenato e
paróquia, com a mesma intensidade que se afir- Sinteticamente, nosso trabalho esteve as-
ma o novo paradigma de inicia- sim estruturado: à luz do pré-ca-
ção à vida cristã voltado à experi- “A implantação/ tecumenato, refletimos sobre as
ência, a estrutura paroquial quer dimensões missionária e querig-
consolidação do
se reconfigurar, tendo como eixo mática da paróquia; à luz do cate-
norteador esta mesma experiên- catecumenato é algo cumenato, abordamos alguns ele-
cia, a fim de se tornar casa da em construção, assim mentos da formação e dos minis-
mistagogia, ou ainda, em tom térios; à luz da iluminação/purifi-
mais enfático, em estado perma- como a renovação cação e da mistagogia, apontamos
nente de mistagogia. Trata-se do paroquial se encontra para as dimensões orante, con-
esforço ininterrupto para, em templativa, experiencial, mistagó-
tudo o que a paróquia fizer, favo- nesse mesmo gica na instituição e nas pastorais
recer aos fiéis a mistagogia. Do processo. A paróquia paroquiais.
contrário, o esforço de reorgani- Afirmar que o catecumenato
não será uma nova
zação paroquial será paliativo, constitui uma pedagogia privile-
sem tocar as raízes do problema. estrutura eclesial de giada para iniciar na fé não signi-
Nessa perspectiva, vemos que o um dia para o outro.” fica estar nele a solução para o
círculo dialético vai acontecendo. desafio da transmissão da fé. A
Do mesmo modo que mistagogia implantação/consolidação do ca-
não é apenas o último tempo do processo da tecumenato é algo em construção, assim como
iniciação cristã, mas sua espinha dorsal, assim a renovação paroquial se encontra nesse mes-
também todas as possíveis mudanças estrutu- mo processo. A paróquia não será uma nova
rais e pastorais na paróquia visam a uma maior estrutura eclesial de um dia para o outro. Da
experiência mistagógica de fé. Mistagogia não é mesma forma que não é o decreto da restaura-
algo que a paróquia oferece aos fiéis, mas é fun- ção do catecumenato que o fará ser catecume-
damentalmente aquilo no qual ela mesma é nal, não será a declaração de uma nova paró-
chamada a se converter, para, então, poder ser quia que a fará ser nova. Trata-se de um pro-
experimentada como locus da experiência de cesso lento, em que estão envolvidas diversas
Deus. Só aí, então, ela será capaz de “oferecer a dimensões.

Bibliografia
nº- 309

BOROBIO, D. Catecumenato e iniciación cristiana: un desafío para la iglesia de hoy. Barcelona: Centre de

ano 57

Pastoral Litúrgica, 2007.


CNBB. Ritual de iniciação cristã de adultos. São Paulo: Paulus, 1980.

______. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. São Paulo: Paulinas, 2013 (Documentos da
Vida Pastoral

CNBB, 100).

24
Antropologia da formação
presbiteral inicial
José Lisboa Moreira de Oliveira*

Biblicamente, o ser humano não é só


corpo ou só alma. Ele é totalmente
N os últimos anos, a Igreja Católica Romana
se viu envolvida em uma série de escânda-
los, tendo padres como protagonistas. Esse fato
corpo, totalmente alma, totalmente afetou sensivelmente a missão evangelizadora.
espírito e totalmente marcado pela Conheço alguns padres que trabalham nos Esta-
dos Unidos da América e tive a oportunidade de
fragilidade. Essa concepção bíblica ouvir deles relatos dramáticos de situações cons-
possibilita uma pedagogia formativa trangedoras. Mesmo os padres honestos e equi-
librados se viram de repente censurados e odia-
que valorize todas as dimensões da vida dos pelo povo, a ponto de não poderem sair às
humana, evitando a fragmentação ou o ruas, pois corriam o risco de ser apedrejados.
Todos esses casos revelam a urgente neces-
descuido de uma delas. sidade de dar maior atenção à dimensão antro-
pológica da formação presbiteral, particular-
*Graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana
(1982), com mestrado em Teologia Sistemática pela Pontificia mente no período inicial da caminhada. Infe-
Facoltà Teologica dell’Italia Meridionale – Sezione San Luigi lizmente a experiência tem mostrado que, em-
(1989) e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade
bora presente nos documentos oficiais, essa
Gregoriana (1991). Licenciado em Filosofia pela Universidade
Católica de Brasília (2008). Professor titular de Ética e dimensão se encontra bastante esquecida, dei-
Antropologia da Religião na Universidade Católica de Brasília e, xada de lado. Às vezes até se chega a fazer algu-
na mesma universidade, gestor do Centro de Reflexões sobre
ma coisa, mas de maneira muito superficial,
nº- 309

Ética e Antropologia da Religião (Crear). Professor convidado


do Curso de Especialização lato sensu para Formadores de não permitindo que os candidatos ao ministé-
Seminários e da Vida Religiosa no Instituto Santo Tomás de
rio presbiteral se encontrem consigo mesmos e

Aquino (Ista) em Belo Horizonte. Tem diversas publicações na


ano 57

área da Teologia das Vocações e da Espiritualidade. O teólogo enfrentem a si mesmos, trabalhando situações
José Lisboa faleceu em 1º de março de 2015, e este artigo existenciais não totalmente resolvidas que po-
foi-nos encaminhado por ele alguns dias antes de sua partida.

Nossa gratidão a Deus pelo dom da vida deste grande homem dem depois atrapalhar seriamente o exercício
Vida Pastoral

e por todo o bem que fez à Igreja. dessa vocação específica.

25
Neste breve artigo, proponho dez passos A partir disso, faz-se indispensável resgatar
que podem ajudar a retomar essa dimensão a visão bíblica de ser humano, na qual há uma
com maior seriedade, permitindo aos formado- integração plena entre corpo (soma), alma (psi-
res e aos próprios vocacionados trabalhar em quê), espírito (pneuma) e fragilidade (sárx). Se-
profundidade essa questão. São apenas rápidas gundo a Bíblia, o ser humano não é só corpo, ou
pinceladas, que exigem um aprofundamento só alma, e assim por diante. Ele é totalmente
maior e um trabalho mais inten- corpo, totalmente alma, totalmen-
so de acompanhamento persona- “Muitas vezes, te espírito e totalmente marcado
lizado dos candidatos. Aliás, em apesar de discursos pela fragilidade. Essa concepção
alguns casos, faz-se necessário bíblica possibilita uma pedagogia
um acompanhamento com espe- bonitos, nossas ideias formativa que valorize todas as di-
cialistas (psicólogo ou psiquiatra) são o resultado mensões da vida humana, evitan-
para detectar problemas mais sé- do a fragmentação ou o descuido
de concepções
rios e até situações existenciais de uma delas.
que impedem a ordenação do jo- reducionistas que Por isso, o segundo passo é
vem. No presente contexto, o tra- limitam a visão de superar o dualismo filosófico e teo-
balho vocacional consiste mais lógico que há séculos macula a
em convencer a pessoa a desistir pessoa a um único vida da Igreja e, particularmente,
da ideia de ser padre do que o aspecto. Por isso, é a formação presbiteral. Por causa
contrário. Parece um paradoxo, da ausência dessa visão bíblica de
mas é isso mesmo! muito importante ser humano, temos criado verda-
que os educadores deiras dicotomias entre humano e
divino, corpo e alma etc. Tal con-
1. Elementos teóricos vocacionais verifiquem
cepção vem desde a entrada do
de fundamentação da
como está isso neles maniqueísmo no cristianismo dos
formação inicial
mesmos e nos jovens primeiros séculos. Francisco Gar-
Os primeiros três passos cía Bazán, no seu livro Aspectos
poderiam ser chamados de fun- vocacionados que incomuns do sagrado (Paulus,
damentos teóricos da formação chegam aos 2002), lembra que o maniqueís-
inicial. Trata-se de verificar mo é “uma gnose intelectual hele-
quais concepções estão na cabe- seminários.” nística baseada na concepção de
ça dos formadores e dos formandos. O pri- que o conhecimento é a causa determinante da
meiro deles se refere à visão de ser humano. É salvação” (p. 179). Prega a existência de dois
de suma importância que os educadores vo- princípios ou naturezas, o bom e o mau, que
cacionais tenham clareza disso, pois, no são eternos, anteriores à criação do mundo, e
mundo atual, fragmentado e confuso, podem estão em nítida oposição e separação entre si.
aparecer visões e concepções totalmente dis- A tradução disso para a prática levou os
torcidas da pessoa. Muitas vezes, apesar de maniqueístas a valorizar excessivamente a gno-
discursos bonitos, nossas ideias são o resulta- se, a alma, e a desprezar tudo aquilo que está
nº- 309

do de concepções reducionistas que limitam revestido de humanidade. De fato, para a visão


a visão de pessoa a um único aspecto. Por maniqueísta, a corporalidade, a dimensão hu-

ano 57

isso, é muito importante que os educadores mana da pessoa, é expressão ou resultado da


vocacionais verifiquem como está isso neles queda do homem primordial. Logo, é preciso
mesmos e nos jovens vocacionados que che- separar as coisas, pois o resgate só virá por meio

Vida Pastoral

gam aos seminários. da separação, que permitirá o triunfo do Bem.

26
E se olharmos para o cristianismo atual e para o pois, no momento atual, existe, tanto da parte
processo formativo, perceberemos como estão dos educadores vocacionais, como dos pró-
infestados de maniqueísmo. A desconfiança prios jovens, o medo de olhar para a própria
para com os aspectos humanos da pessoa (cor- realidade. Infelizmente, como diz Bauman, o
poralidade, sexualidade, liberdade, autonomia que encontramos hoje são “comunidades de
etc.) é visível. E tal desconfiança leva a não tra- fugitivos”, de pessoas distanciadas de si mes-
balhar isso na formação, empurrando muitas mas. Nesse sentido, proponho mais quatro
questões para “debaixo do tapete”. Mais tarde, passos, os quais comporiam a pedagogia da
pressionados por situações da vida concreta, o formação inicial.
“lixo” sai de debaixo do tapete e suja completa- Em primeiro lugar, o cuidado com o tempo
mente a “pureza virginal” da mãe Igreja! Como justo. A maturidade do ser humano tem o seu
aconteceu de forma impressionante nos Estados ritmo e nós não podemos forçá-lo, antecipando
Unidos e na Irlanda, embora no Brasil não ou prolongando etapas. No atual esquema ca-
faltem exemplos disso. nônico, as etapas de formação costumam ter
Por essa razão, é indispensável um terceiro prazos nos quais todos os formandos são incluí-
passo: ter consciência de que a pessoa é história dos, sem nenhum respeito pela história e pelo
encarnada. Também os vocacionados que che- ritmo de cada um. Todos começam e terminam
gam ao seminário trazem consigo uma histó- as etapas no mesmo dia e horário. Assim, o pro-
ria, com suas marcas bem definidas. Hoje, na cesso formativo se torna verdadeiro “balaio de
quase totalidade dos casos, os jovens chegam gatos”, no qual é possível encontrar pessoas di-
quebrados, fragilizados, destruídos. Não por- ferentes, com histórias diferentes, situações di-
que sejam ruins, mas porque são vítimas de ferentes, e para as quais são aplicados os mes-
tantos problemas e situações que os afetam. mos métodos, conteúdos e dinâmicas. Isso quer
Por isso, torna-se quase impossível encontrar dizer que a formação, no atual contexto, precisa
um jovem sem problemas mais sérios e com- ser personalizada. O acompanhamento não
plicados. No dizer de Zygmunt Bauman (Co- pode ser genérico, igual para todos. Quando
munidade. A busca por segurança no mundo atual. isso acontece, há o risco de precipitações e de
Rio de Janeiro: Zahar, 2003), quase todos eles queimas de etapas. E “apressar” ou “congelar” o
são “fugitivos” de si mesmos, dos outros, da tempo ou o ritmo de cada pessoa pode ser
realidade, contentando-se com uma maneira extremamente problemático.
bastante “rebaixada” de viver. Assim sendo, a Por essa razão, o acompanhamento voca-
dimensão antropológica da formação precisa cional deverá ser revestido de outro elemen-
cuidar bem disso. to, que é o discernimento e o cuidado com
cada vocacionado. Toda formação terá que ser
essencialmente discernimento. Ela precisa ser
2. Elementos de pedagogia vocacional
educação (do verbo latino educere), enten-
Em virtude do que foi dito antes, além dos dendo isso como processo que faz a pessoa
fundamentos teóricos, é preciso processos pe- tirar de dentro de si mesma aquilo que ela já
dagógicos que, de fato, facilitem e possibilitem é ou possui. Todo o processo formativo deve
nº- 309

um trabalho sério de acompanhamento voca- levar ao discernimento (do latim discernere =


cional. Tais processos pedagógicos devem, so- separar, cortar ao meio), ou seja, àquela capa-

ano 57

bretudo, permitir que os jovens vocacionados cidade de ir separando e analisando criterio-


se deem conta do que se passa dentro deles e samente, dentro de si, os diversos elementos
queiram assumir a própria história com cora- existenciais para conhecê-los melhor e verifi-

Vida Pastoral

gem e determinação. Isso é muito importante, car se é possível, com tais condições existen-

27
ciais, assumir determinada vocação específi- moderna (Paulus, 1997), eu sou “guarda de
ca. Por essa razão, todo discernimento é dolo- meu irmão”, independentemente do que ele
roso e sofrido, mas precisa ser feito, pois, do faz, vê ou pensa. Do ponto de vista ético, a
contrário, não ajudará a formar pessoas minha responsabilidade é sempre maior que
sadias. Forjará apenas pessoas hipócritas e a dos outros.
ambíguas. Tudo isso, porém, com muito cui- Com base nisso, surge um quarto ele-
dado, pois o ser humano é delicado, e certas mento pedagógico para a formação: avaliar
dinâmicas e pedagogias podem aumentar ain- constantemente os efeitos do processo forma-
da mais os problemas e transformar as pes- tivo. Infelizmente, boa parte dos bispos, su-
soas em verdadeiros monstros. periores e formadores nunca pa-
Nesse sentido, um terceiro “Em que situação ram para fazer avaliação. Têm
elemento pedagógico se faz ne- se encontra o irmão medo da avaliação. Tremem
cessário. O cuidado com a di- diante da possibilidade de uma
mensão ética da formação. Trata- formando? Será verificação corajosa que aponte
-se de ver, em primeiro lugar, o que posso exigir falhas no processo. Por essa ra-
que é melhor para aquela pes- zão, ficam repetindo o que todo
soa que está diante do educador dele tamanha o mundo já está cansado de per-
vocacional. Sabemos, por expe- responsabilidade? ceber que não deu certo. Com
riência, que, infelizmente, na isso, provocam verdadeiros de-
Será que o processo
questão da formação presbite- sastres, pois fomentam um tipo
ral, costuma-se pôr, em primei- formativo o está de formação que prepara mons-
ro lugar, os interesses da insti- preparando de tros, e não seres humanos sim-
tuição. A falta de padre e o de- ples e responsáveis. Aliás, de
sespero diante da quantidade verdade para exercer modo geral, é típico da formação
de “trabalho pastoral” a ser feito um ministério tão presbiteral criar pessoas irres-
levam bispos, superiores e for- ponsáveis, incapazes de assumir
madores a apressar as etapas, a exigente? Toda sua própria responsabilidade
formar de qualquer jeito, pouco formação séria deve diante dos outros. Infelizmente,
importando a situação concreta os seminaristas saem dos semi-
ser “guarda” do irmão
dos sujeitos. nários como padres que apren-
Há verdadeira falta de ética formando. deram a mentir, a fingir, a enga-
na maioria dos seminários. Pen- nar, a pôr a culpa nos outros.
sa-se no número, na quantidade, nas deman- Não aprenderam a assumir os próprios atos.
das existentes, e não nas pessoas concretas. Por isso, hoje, quase todos os padres ficam
Dificilmente, na formação, faz-se a pergunta: agarrando-se a normas firmes, a autoridades,
“Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9). Dito de à obediência cega, à infalibilidade. Porque,
outra forma: em que situação se encontra o no fundo, como diz muito bem Bauman, na
irmão formando? Será que posso exigir dele sua Ética pós-moderna, são homens-camaleão,
tamanha responsabilidade? Será que o pro- que se escondem debaixo dos disfarces da lei
nº- 309

cesso formativo o está preparando de verda- para sufocar a própria insegurança e a pró-
de para exercer um ministério tão exigente? pria incapacidade de assumir por si mesmos

ano 57

Toda formação séria deve ser “guarda” do ir- a própria responsabilidade. E nisso, ainda de
mão formando, e cada formador deve sempre acordo com Bauman, está a crise pós-moder-
se perguntar: o que fiz? De fato, diz-nos ain-

na, pois a atitude de agarrar-se à segurança


Vida Pastoral

da Zygmunt Bauman, no seu livro Ética pós- da lei transforma-se em insegurança dos su-

28
jeitos, pois nunca haverá para eles uma auto-
ridade suficiente para lhes garantir que estão Discípulos e missionários
agindo certo. Por isso, facilmente acabam de Jesus Cristo
transgredindo todas as leis, agindo como se Ser cristão no mundo atual
elas não existissem. Assim, os que parecem Cardeal Dom Cláudio Hummes

“conformistas”, por baixo dos panos e na ca-


lada da noite, fazem o que bem querem.

3. Dimensão “política” da formação


inicial
Podemos, então, concluir que há uma di-
mensão “política” da formação, entendendo
esse termo no sentido de politichè, ou seja, de
cuidado com o bem público, com o que é de
todos. Porque o ministério presbiteral não é
algo destinado para a vantagem dos próprios
64 págs.
sujeitos, mas para o bem da comunidade (At
20,22-35; 1Pd 5,1-4), torna-se necessário que
todo padre chegue à ordenação revestido dessa Atualmente, cresce na Igreja a
consciência da necessidade de
consciência. É claro que o exercício do minis-
sair em missão, em busca dos
tério, quando resultado de um chamado divi- católicos afastados e de todos os
no, traz realização para os ministros. Mas isso é que pouco ou nada conhecem
apenas consequência, e não fim. Desse modo, de Jesus Cristo. Preocupado
mais dois elementos são importantes para o com a situação da nossa Igreja
processo formativo. no Brasil e na América Latina,
e estimulado pela preparação
Antes de tudo, verificar que tipo de forma-
para a V Conferência Geral do
ção está sendo realizado. De fato, dependendo Episcopado Latino-americano
dos métodos e pedagogias usadas, a formação e Caribenho e pelo retiro
poderá ser apenas refúgio para fugitivos, para espiritual que preguei aos bispos
“órfãos”. Quando a formação forma apenas fu- brasileiros reunidos na sua 44º
gitivos, no sentido mencionado anteriormen- Assembléia Geral, em Itaici,
Imagens meramente ilustrativas.

redigi estas páginas que ora


te, ela se torna um desastre, uma tragédia para
publico. Que o Espírito Santo,
as comunidades que receberão os futuros pa- com seu vigor e unção, suscite
dres. Isso porque, como observa Bauman, no muitos missionários entre nós!
seu já citado livro Comunidade, fugitivos cos-
tumam juntar-se a outros fugitivos e criar pa-
Vendas: (11) 3789-4000
drões rígidos e exigentes com a finalidade ex-
0800-164011
plícita de não permitir que “intrusos” se me- SAC: (11) 5087-3625
nº- 309

tam na vida deles.


V I S I TE N OS S A L OJ A V I RTU AL
A consequência disso é o distanciamento

paulus.com.br
ano 57

cada vez maior do povo e a ausência de com-


promissos sérios com a comunidade, uma vez
que a fuga não permite nenhuma forma de

Vida Pastoral

comprometimento com um povo que é visto

29
como ameaça para a liberdade privatizada. Por piritualidade, na formação teológica, na pas-
isso, hoje está se tornando cada vez mais co- toral e na vida comunitária. Se a formação
mum entre os padres, especialmente entre os não cuidar da dimensão antropológica, todas
midiáticos, a agorafobia, ou seja, o medo de essas outras dimensões desaparecerão como
lugares públicos, de multidões. Essas amea- fumaça. E os escândalos envolvendo padres
çam sua fragilidade e sua superficialidade. estão mostrando que os seminários não estão
Contatos mais intensos podem desmascarar o cuidando dessa dimensão como deveriam.
sujeito. Por isso ele prefere ficar Querer ordenar alguém que
em um palco muito alto e dis- “Podemos afirmar não trabalhou suficientemente o
tante, onde não é possível enxer-
que a antropologia seu humano é o mesmo que en-
gar as suas “rugas”. tregar uma taça de cristal para
Como consequência, um vocacional não é que uma criancinha brinque
penúltimo passo se faz urgente: algo irrelevante, com ela. Logo a criança vai dei-
tomar consciência da relação xar a taça cair ou vai arremessá-
entre a formação e a dimensão mas essencial para a -la por terra. E o desastre será
salvadora e libertadora da evan- formação dos padres. total. Enquanto sacramento do
gelização. Nos seminários, são Cristo Pastor, o padre deverá ser
formados os futuros guias do
Ela não pode ser, alguém que vai viver em favor
povo. Não temos o direito de de forma alguma, das pessoas, capaz de ser com-
brincar com algo tão sério e tão
descuidada, pois, se preensivo, especialmente com
significativo para o amanhã da os que erram e fraquejam (cf.
própria Igreja. É claro que Deus assim acontecesse, Hb 5,1-4). Mas, para que o fu-
não vai ficar dependendo da estaríamos pondo em turo padre seja alguém realmen-
figura de um padre para salvar a te comprometido com as causas
humanidade. Mas, mesmo as- sério risco o futuro de da humanidade, vai precisar ter
sim, os presbíteros não deixam tantos presbíteros e de plena consciência de que tam-
de ter importância decisiva para bém ele “é acometido de todos
as comunidades católicas. E,
tantas comunidades. os lados pela fraqueza” (Hb
nesse sentido, a salvação, pelo 5,2).
menos para os católicos, vai de- E essa consciência só se ad-
pender também deles, mesmo porque a pró- quire quando trabalhamos de modo suficien-
pria hierarquia prega isso. te a dimensão humana, antropológica, da
nossa vocação. Quando chega ao ministério
pela via da arrogância (Hb 5,4-5), e não pela
Conclusão: valorizar a dimensão
vida da encarnação, da kénosis (Hb 5,7-10; Fl
antropológica da formação
2,4-11), dificilmente um padre poderá ser si-
Logo, como último passo desse itinerá- nal sacramental de Cristo, “causa de salvação
rio, podemos afirmar que a antropologia voca- eterna” (Hb 5,9). Será, pelo contrário, sacra-
cional não é algo irrelevante, mas essencial mento do diabo, pois não terá ideias e proje-
nº- 309

para a formação dos padres. Ela não pode tos de discípulo de Jesus, mas intentos e ati-
ser, de forma alguma, descuidada, pois, se tudes próprios de Satanás (Mc 8,32-33). E

ano 57

assim acontecesse, estaríamos pondo em sé- como costumava repetir um místico do sécu-
rio risco o futuro de tantos presbíteros e de lo passado, Justino Russolillo, Deus nos livre
desse tipo de padre!

tantas comunidades. Não basta pensar na es-


Vida Pastoral

30
A consciência e o
discernimento sociopolítico
no Catecismo da Igreja
Católica
Pe. Ademir Nunes Farias

Este artigo nos provoca a pensar 1. O que nos ensina o Catecismo


sobre qual é o papel da consciência da Igreja Católica a respeito da
Consciência Moral?
moral no que respeita ao empenho do
O Catecismo da Igreja Católica, no capítulo
cristão na vida social e política da dedicado à reflexão sobre a dignidade da pes-
comunidade humana, e também soa humana, nos números 1776-1802, trata
do tema da consciência moral. O número 1776
sobre qual a maneira mais eficaz
define a consciência como “uma lei que o ho-
para uma devida formação dessa mem não se deu a si mesmo, mas à qual deve
mesma consciência em vista de um obedecer e cuja voz ressoa, quando necessário,
aos ouvidos do seu coração, chamando-o sem-
envolvimento sempre mais pre a amar e fazer o bem e a evitar o mal”, e
comprometido com as realidades essa lei é “uma lei escrita pelo próprio Deus”. E
assim, citando a Constituição Pastoral Gau-
sensíveis da sociedade. dium et Spes, do Concílio Vaticano II, n. 16, o
Catecismo afirma que “consciência é o núcleo
nº- 309

mais secreto e o sacrário do homem, no qual


ele se encontra a sós com Deus, cuja voz ressoa

ano 57

na intimidade do seu ser”. É por isso que,


“quando presta atenção à consciência moral, o
*Sacerdote da Diocese de São José dos Campos-SP. Mes-

homem prudente pode ouvir Deus a falar-lhe”


Vida Pastoral

tre em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana – Roma.


E-mail: ademirfarias@terra.com.br (n. 1777). E é também por isso que se exige a

31
retidão da consciência moral, da qual depende juízo da consciência pode ser nele a testemu-
a dignidade da pessoa humana (cf. n. 1780). nha da verdade universal do bem e, ao mesmo
Diz o número 1780: tempo, da maldade da sua opção concreta [...].
A consciência moral compreende a per- Atestando a falta cometida, lembra o perdão a
cepção dos princípios da moralidade (“sindé- pedir, o bem a praticar ainda e a virtude a cul-
rese”), a sua aplicação em determinadas cir- tivar incessantemente com a graça de Deus”
cunstâncias por meio de um discernimento (Catecismo, n. 1781).
prático das razões e dos bens e, por fim, o juí- Aqui, vê-se a necessidade da formação
zo emitido sobre os atos concretos a praticar contínua da consciência moral, uma vez que
ou já praticados. A verdade sobre o bem mo- “uma consciência bem formada é reta e verídi-
ral, declarada na lei da razão, é reconhecida ca; formula os seus juízos segundo a razão, em
prática e concretamente pelo
“o imperativo moral conformidade com o bem verda-
prudente juízo da consciência. deiro querido pela sabedoria do
Classifica-se de prudente o ho- manifesta-se à pessoa Criador. A formação da consciên-
mem que opta em conformidade como algo que está cia é indispensável aos seres hu-
com este juízo. manos, submetidos a influências
Também o Documento 50 no ser humano, mas negativas e tentados pelo pecado
da Conferência Nacional do Bis- que não é dele, não se a preferir o seu juízo próprio e a
pos do Brasil, fruto da 31ª As- recusar os ensinamentos autoriza-
sembleia Geral, ocorrida em
reduz à sua vontade. dos” (n. 1783).
Itaici-SP, de 28 de abril a 7 de O ser humano se Esta formação da consciência
maio de 1993, em conformida-
descobre não como é o dever ético mais fundamental
de com o Catecismo, apresenta- e tarefa para toda a vida, desde os
-nos uma definição de consciên- dono do mundo e primeiros anos, quando a criança
cia e sua função: dos outros, mas como desperta para o conhecimento e
para a prática da lei interior reco-
A consciência se apre- responsável nhecida pela consciência moral.
senta – na linguagem que
tenta expressar simbolica- perante eles.” Exige-se uma educação prudente,
em que se destaque o ensino da
mente a sua experiência – como uma “voz”
virtude (cf. n. 1784). E é certo também que,
ou uma “luz”. As religiões, também a cris-
quanto mais pesadas as responsabilidades que
tã, dirão: a voz de Deus, a luz de Deus.
vão sendo assumidas na sociedade, tanto maior
Porque o imperativo moral manifesta-se à
deve ser a preocupação com apropriada forma-
pessoa como algo que está no ser humano,
ção da consciência moral. Essa formação ga-
mas que não é dele, não se reduz à sua
rante a liberdade e gera a paz do coração. A li-
vontade. O ser humano se descobre não
berdade, a responsabilidade e o bem moral es-
como dono do mundo e dos outros, mas
tão estritamente ligados ao compromisso da
como responsável perante eles (responsá-
constante formação da consciência. Aqui, terá
vel = chamado a dar uma resposta à voz ou
um papel fundamental, como principal forma-
nº- 309

ao apelo da consciência). O ser humano


dora da consciência, a Palavra de Deus, que
descobre o que revela a imensa dignidade
ilumina o caminho do ser humano, de modo

de que é portador (CNBB, Doc. 50, n. 71).


ano 57

que “devemos assimilá-la na fé e na oração, e


Daí que é a consciência que permite assu- pô-la em prática. Devemos também examinar
mir a responsabilidade dos atos praticados, de a nossa consciência, de olhos postos na cruz do

Vida Pastoral

forma que, “se o homem comete o mal, o justo Senhor. Somos assistidos pelos dons do Espíri-

32
to Santo, ajudados pelo testemunho e pelos ciência e o exercício do bem comum, a vida
conselhos dos outros e guiados pelo ensino au- comunitária, enfim, o empenho sociopolíti-
torizado da Igreja” (n. 1785). co. A carta de são Paulo aos Filipenses nos
Não se pode esquecer que a competência e diz que: “Tudo o que é verdadeiro, nobre e
a responsabilidade da família devem ser realça- justo, tudo o que é puro, amável e de boa
das de maneira especial. Antes de tudo, em rela- reputação, tudo o que é virtude e digno de
ção à formação básica. Também outros agentes louvor, isto deveis ter no pensamento” (Fl
da formação, a começar da escola, não podem 4,8). De forma que “a virtude é uma disposi-
renunciar às responsabilidades que lhes dizem ção habitual e firme para praticar o bem. Per-
respeito na formação da consciência moral. Este mite à pessoa não somente praticar atos bons,
compromisso, por sua vez, não pode deixar de mas dar o melhor de si mesma. A pessoa vir-
ser sentido, de uma maneira ainda mais decidi- tuosa tende para o bem com todas as suas
da, pela comunidade cristã. A verdade do Evan- forças sensíveis e espirituais; procura o bem e
gelho, que lhe foi confiada, pede-lhe que se tor- opta por ele em atos concretos” (n. 1803).
ne, como Paulo, “tudo para todos, a fim de, a Entre todas as virtudes, se destacam as teo-
todo custo, salvar alguns” (1Cor 9,22-23). A logais, que “fundamentam, animam e caracteri-
exigência do testemunho produz fruto que con- zam o agir moral do cristão. Informam e vivifi-
duz ao caminho dos valores. cam todas as virtudes morais. São infundidas
Por fim, o número 1789 do Catecismo nos por Deus na alma dos fiéis para torná-los capa-
apresenta algumas regras básicas e essenciais zes de proceder como filhos seus e assim mere-
que favorecem a devida formação da consciên- cer a vida eterna. São o penhor da presença e da
cia e possibilitam o discernimento moral, a sa- ação do Espírito Santo nas faculdades do ser
ber: “nunca é permitido fazer mal para que daí humano” (n. 1813). E, entre as virtudes teolo-
resulte um bem; a ‘regra de ouro’ é: ‘Tudo gais, destaca-se, ainda, a caridade.
quanto quiserdes que os homens vos façam, Aliás, o Catecismo nos diz que “o exercício de
fazei-o, de igual modo, vós também’ (Mt 7,12); todas as virtudes é animado e inspirado pela ca-
a caridade passa sempre pelo respeito do pró- ridade. Esta é o ‘vínculo da perfeição’ (Cl 3,14) e
ximo e da sua consciência: ‘Ao pecardes assim a forma das virtudes: articula-as e ordena-as entre
contra os irmãos, ao ferir-lhes a consciência, é si; é a fonte e o termo da sua prática cristã. A ca-
contra Cristo que pecais’ (1Cor 8,12). ‘O que é ridade assegura e purifica a nossa capacidade hu-
bom é não [...] [fazer] nada em que o teu irmão mana de amar e eleva-a à perfeição sobrenatural
possa tropeçar, cair ou fraquejar’ (Rm 14,21)”. do amor divino” (n. 1827). Dessa forma, é im-
Assim, “a consciência boa e pura é iluminada possível falar em realizar o bem de forma cristã
pela fé verdadeira. Porque a caridade procede, prescindindo da prática das virtudes, sobretudo
ao mesmo tempo, ‘dum coração puro, de uma da caridade. É impossível ter uma consciência
boa consciência e de uma fé sincera’ (1Tm retamente formada se não se leva em conta a ne-
1,5)” (Catecismo, n. 1794). cessidade de crescer virtuosamente. E é impossí-
vel, ainda, um autêntico envolvimento cristão na
vida social e política da comunidade sem a cari-
nº- 309

2. As Virtudes: ponte necessária


dade. A primeira encíclica do papa Bento XVI
entre a consciência e o empenho
tratou justamente do tema da caridade, apontan-

sociopolítico
ano 57

do essa virtude como elemento essencial que fir-


O Artigo 7, que segue ao que trata da ma a identidade do cristão, amado por Deus e
consciência, fala das virtudes. As virtudes chamado a ser sinal desse amor no meio da so-

Vida Pastoral

servem de ponte fundamental entre a cons- ciedade. Nos ensina o papa:

33
Deus amou-nos primeiro e esse amor ciedade e da participação do cristão na vida
de Deus apareceu no meio de nós, fez-se política. A Igreja tem uma preocupação bastan-
visível quando Ele “enviou o seu Filho te grave quando se refere à vida social e políti-
unigênito ao mundo, para que, por Ele, ca, pois é ali na vida concreta, na comunidade,
vivamos” (1Jo 4,9). Deus fez-se visível: nas relações humanas, no quotidiano da exis-
em Jesus, podemos ver o Pai tência do ser humano que devem aparecer os
(cf. Jo 14,9) [...] Na história de amor que frutos não menos concretos que emergem do
a Bíblia nos narra, Ele vem ao nosso en- imperativo cristão, da consciência cristã devi-
contro, procura conquistar-nos [...] Tam- damente formada, que se torna experiência
bém na sucessiva história da Igreja, o Se- cristã aplicada. Nesse sentido é que o docu-
nhor não esteve ausente: incessantemente mento número 40 da Conferência Nacional
vem ao nosso encontro, dos Bispos do Brasil, fruto da 26ª
através de homens nos quais “Na sucessiva história Assembleia Geral, ocorrida em
Ele se revela; através da sua da Igreja, o Senhor Itaici-SP, de 13 a 22 de abril de
Palavra, nos Sacramentos, 1988, lembra:
especialmente na Eucaristia
não esteve ausente:
A consciência que tem a Igreja
[...] Deus não nos ordena incessantemente vem da sua missão evangelizadora a
um sentimento que não
ao nosso encontro, leva a: publicar documentos sobre
possamos suscitar em nós a nossa situação política e suas
próprios. Ele ama-nos, faz- através de homens nos exigências de justiça social e de
-nos ver e experimentar o quais Ele se revela; consciência moral; criar organis-
seu amor, e desta “antecipa- mos de solidariedade em favor
ção” de Deus pode, como através da sua Palavra, dos oprimidos e valorizar as orga-
resposta, despontar também nos Sacramentos, nizações populares e suas iniciati-
em nós o amor (Deus Cari- vas de participação; denunciar as
especialmente na
tas Est, n. 17). violações dos direitos humanos,
Eucaristia.” alertando contra novos mecanis-
Assim, as virtudes teologais,
sobretudo a caridade, dispõem- mos discriminatórios e contra en-
-nos a viver uma relação com Deus e, ao mes- tidades que se apresentam com falsa feição
mo tempo, animam-nos no nosso agir moral, democrática; encorajar a opção evangélica
uma vez que vivificam em nós todas as virtu- pelos pobres e a suportar a perseguição e,
des morais, tornando-nos capazes de agir às vezes, a morte, como testemunho de sua
missão profética; contribuir para a educa-
como filhos de Deus em benefício do próxi-
ção política, a fim de que a pessoa humana
mo. As virtudes educam a consciência e a
seja sujeito de sua história e exerça com
fortalecem no discernimento que impulsiona
responsabilidade a sua cidadania política;
ao envolvimento na vida concreta da comu-
acompanhar os cristãos engajados na polí-
nidade humana.
tica partidária (CNBB, Doc. 40, n. 214).
nº- 309

O Catecismo nos ensina, no número 1878


3. O empenho sociopolítico no
que “todos os homens são chamados ao mes-

Catecismo da Igreja Católica


ano 57

mo fim, que é o próprio Deus”, e dessa forma


O segundo capítulo da primeira seção da “existe certa semelhança entre a unidade das
terceira parte do Catecismo da Igreja Católica

pessoas divinas e a fraternidade que os ho-


Vida Pastoral

trata da comunidade humana, da vida em so- mens devem instaurar entre si, na verdade e

34
no amor”. Ou seja, Deus é Comunidade de dade da pessoa deve ser sempre defendida e
pessoas que se amam mutuamente. É o que salvaguardada. E é por isso que o cristão
chamamos de pericórese trinitária, ou seja, deve ser e ter uma postura verdadeiramente
“inter-relacionamento eterno que existe entre cristã na sociedade, para lutar contra todas
os Divinos Três. Cada Pessoa vive da outra, as estruturas de morte presentes. “A inversão
com a outra, pela outra e para a outra Pessoa. dos meios e dos fins, que chega a dar valor
Elas estão desde sempre interlaçadas e inter- de fim último ao que não passa de meio para
penetradas, de sorte que não podemos pen- a ele chegar ou a considerar as pessoas como
sar nem falar de uma pessoa, como, por puros meios com vista a um fim, gera estru-
exemplo, do Pai, sem ter que pensar e falar turas injustas que ‘tornam árduo e pratica-
também do Filho e do Espírito Santo” (BOFF, mente impossível um procedimento cristão,
1999, p. 173). Assim, vemos que o amor ao conforme com os mandamentos do divino
próximo é inseparável do amor a Deus, e que legislador’” (Catecismo, n. 1887).
o fato de amar a Deus, traz necessariamente É na participação ativa no meio da
a exigência do amor ao próximo, o que im- sociedade, no socorro dos irmãos, nas
plica necessariamente o envolvimento na práticas concretas do bem, no envolvimento
vida dos indivíduos e dos grupos. com os problemas e dificuldades dos outros,
Aqui, porém, não se pode perder de vista enfim, no bom desempenho das atividades
que os conceitos de caridade e de justiça ca- sociais, que se vai, cada dia, tornando-se
minham juntos, e não podem ser dissocia- mais santo. Se o amor é a chave, a fonte, a
dos da dimensão política. Estas duas virtu- porta, o meio e fim para a santidade, sem dú-
des complementam uma à outra. Estão inti- vida a caridade “constitui o maior manda-
mamente ligadas, de modo que a integração mento social. Ela respeita o outro e os seus
completa da justiça e da caridade ou amor é direitos, exige a prática da justiça, de que só
uma característica essencial da doutrina mo- ela nos torna capazes e inspira-nos uma vida
ral individual e social cristã. O amor ao pró-
de entrega: ‘Quem procurar preservar a vida,
ximo se revela ineficaz se não tivermos a in-
há de perdê-la; quem a perder, há de salvá-la’
tenção de modificar as causas das situações
(Lc 17,33)” (Catecismo, n. 1889). O cristão é,
nas quais ele se encontra, sejam situações de
pois, chamado a agir nas instâncias públicas,
ordem social, cultural, econômica ou políti-
a fim de favorecer o estabelecimento de situa-
ca. Nessa perspectiva, diante de um pobre,
ções legais, econômicas e políticas justas, nas
não podemos nos contentar com o dar-lhe
quais os direitos da pessoa sejam respeitados,
comida, mas devemos buscar as causas da
de forma que não haja nenhuma espécie de
sua pobreza e, uma vez encontradas, junta-
discriminação e as pessoas, por si próprias,
mente com ele, vencê-las para que ele se sin-
tenham a possibilidade de vencer os limites
ta verdadeiramente uma pessoa. Isso nos faz
da pobreza e da exclusão social. Nesta pers-
lembrar do bispo brasileiro dom Helder Câ-
pectiva, compreendemos o que nos ensina o
mara, que disse certa vez: “Quando dou co-
papa Bento XVI, logo no início da sua tercei-
mida aos pobres, me chamam de santo.
nº- 309

Quando pergunto por que os pobres não ra carta encíclica:


têm comida, me chamam de comunista”. A caridade na verdade, que Jesus

ano 57

Somos, então, chamados pela Igreja a lu- Cristo testemunhou com a sua vida terre-
tar contra toda espécie de inversão dos meios na e sobretudo com a sua morte e ressur-
e dos fins. O ser humano não pode, em cir-

reição, é a força propulsora principal


Vida Pastoral

cunstância alguma, ser coisificado. A digni- para o verdadeiro desenvolvimento de

35
cada pessoa e da humanidade inteira. O respeito da pessoa como tal, onde, em nome
amor é uma força extraordinária, que im- do bem comum, os poderes públicos são
pele as pessoas a comprometerem-se, obrigados a respeitar os direitos fundamen-
com coragem e generosidade, no campo tais e inalienáveis da pessoa humana (cf. Ca-
da justiça e da paz. É uma força que tem tecismo, n. 1907), o bem-estar social e o desen-
a sua origem em Deus, volvimento da própria sociedade,
“Toda ação deve
Amor eterno e Verdade ab- de forma que à autoridade com-
soluta. Cada um encontra o ser para promover pete arbitrar, em nome do bem
bem próprio, aderindo ao o bem comum, a comum, entre os diversos inte-
projeto que Deus tem para resses particulares; mas deve tor-
ele a fim de o realizar plena- partir da aplicação nar acessível a cada qual aquilo
mente: com efeito, é em tal coerente da lei moral. de que precisa para levar uma
projeto que encontra a ver- vida verdadeiramente humana:
Isso vale, sobretudo, alimento, vestuário, saúde, tra-
dade sobre si mesmo e, ade-
rindo a ela, torna-se livre para aqueles que balho, educação e cultura, infor-
(Caritas in Veritate, n. 1). desempenham a grave mação conveniente, direito de
constituir família (cf. n. 1908),
Toda ação deve ser para pro- missão do exercício da e, finalmente, o bem comum im-
mover o bem comum, a partir
da aplicação coerente da lei mo-
autoridade em meio plica a paz, quer dizer, a perma-
nência e segurança duma ordem
ral. Isso vale, sobretudo, para à sociedade.” justa, de maneira que a autorida-
aqueles que desempenham a de assegure, por meios honestos,
grave missão do exercício da autoridade em a segurança da sociedade e dos seus membros
meio à sociedade. Tal autoridade “só é exerci- (cf. n. 1909). É por isso também que “é
da legitimamente se procurar o bem comum necessário que todos tomem parte, cada qual
do respectivo grupo e se, para o atingir, em- segundo o lugar que ocupa e o papel que
pregar meios moralmente lícitos. No caso de desempenha, na promoção do bem comum.
os dirigentes promulgarem leis injustas ou to- Este é um dever inerente à dignidade da
marem medidas contrárias à ordem moral, tais pessoa humana” (n. 1913).
disposições não podem obrigar as consciên- Mas, na prática, como se pode realizar este
cias. “Neste caso, a própria autoridade deixa imperativo? “A participação realiza-se, primei-
de existir e degenera em abuso do poder’” (Ca- ro, ao encarregar-se alguém dos setores de que
tecismo, n. 1903). assume a responsabilidade pessoal: pelo cuidado
Mas, afinal, que bem comum é esse? O que põe na educação da família, pela consciên-
que significa? No número 1906, o Catecismo, cia com que realiza o seu trabalho, o homem
citando a Constituição Pastoral Gaudium et participa no bem dos outros e da sociedade”
Spes, n. 26, explica que, por bem comum, (Catecismo, n. 1914). E ainda, “os cidadãos de-
deve entender-se “o conjunto das condições vem, tanto quanto possível, tomar parte ativa
sociais que permitem, tanto aos grupos como na vida pública. As modalidades desta partici-
nº- 309

a cada um dos seus membros, atingir a sua pação podem variar de país para país ou de
perfeição, do modo mais completo e adequa- uma cultura para outra” (n. 1915).

ano 57

do” e que “o bem comum interessa à vida de O Catecismo fala também da necessidade
todos. Exige prudência da parte de cada um, de uma conversão incessantemente renovada
sobretudo da parte de quem exerce a autori- dos parceiros sociais, em que seja combatida

Vida Pastoral

dade”. E inclui três elementos essenciais: o toda espécie de fraude e subterfúgios, usados

36
para se esquivar do dever social (cf. n. 1916). E e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt
aqui uma tarefa bastante grave, daqueles que 6,33) (cf. Catecismo, n. 1942).
exercem cargos de autoridade, de garantir, so- De fato, o ser humano se realiza nas suas
bretudo por meio da educação e da cultura, os relações com os outros, na prática do bem, na
valores que motivam o serviço ao próximo (cf. participação da vida social, no cuidado para
n. 1917). Dessa forma, todos devemos zelar com seus semelhantes, na busca incessante
para que haja verdadeiro respeito para com a de parceria no desenvolvimento de seu pró-
dignidade do ser humano respaldada nos seus prio ser sociocultural, na promoção da sua
direitos genuínos, que diferem de reivindica- própria dignidade exercendo seus direitos e
ções abusivas e falsas. Este dever vale, sobretu- deveres, mas também na promoção da digni-
do, para as autoridades (cf. n. 1930). dade do outro, reconhecendo e favorecendo
Mais uma vez, aparece em destaque a ne- o exercício desses mesmos direitos. E a vida
cessidade de promover sempre mais uma pública, a política, revela-se um meio privile-
cultura da caridade. Não de um assistencia- giado por meio do qual o ser humano pode
lismo interesseiro, ou forma de desencargo dar a sua contribuição particular no propósi-
de consciência, mas a prática de uma carida- to da construção de um mundo cada vez
de genuinamente evangélica, a única capaz mais justo, de uma humanidade cada vez
de fazer desaparecer os temores, os precon- mais humana, de uma sociedade cada vez
ceitos, as atitudes de orgulho e egoísmo, que mais equilibrada, de uma caridade cada vez
são obstáculo ao estabelecimento de socieda- mais efetiva. Sem dúvida, o envolvimento na
des verdadeiramente fraternas. Uma caridade vida da sociedade, sobretudo na participação
verdadeira, que, antes de tudo, quer a justiça, ativa na vida pública, caracteriza uma situa-
base necessária da vida social. Uma caridade ção propícia para a realização do ser huma-
que não seja somente afetiva, mas efetiva e no. O documento conclusivo de Puebla, no
eficaz. Só por meio da caridade é que se pode número 521, diz:
reconhecer cada ser humano como um próxi-
A política, em seu sentido mais amplo,
mo, um irmão (cf. n. 1931). Nesse contexto,
que visa ao bem comum [...] corresponde-
categoria muito importante usada pelo Cate-
-lhe precisar os valores fundamentais de
cismo é a da solidariedade, também enuncia-
toda comunidade – a concórdia interna e a
da sob o nome de amizade ou de caridade so-
segurança externa – conciliando a igualda-
cial, exigência direta da fraternidade humana
de com a liberdade, a autoridade pública
e cristã (n. 1939). A solidariedade “manifes-
com a legítima autonomia e participação
ta-se, em primeiro lugar, na repartição dos
das pessoas e grupos, a soberania nacional
bens e na remuneração do trabalho. Implica
com a convivência e solidariedade interna-
também o esforço por uma ordem social mais
cional. Define também os meios e a ética
justa, em que as tensões possam ser resolvi-
das relações sociais. Neste sentido amplo,
das melhor e os conflitos encontrem mais fa-
a política interessa à Igreja e, portanto, a
cilmente uma saída negociada” (n. 1940).
seus pastores, ministros da unidade. É
É certo que a solidariedade vai além dos
nº- 309

uma forma de dar culto ao único Deus,


bens materiais e inclui também os bens
consagrando o mundo a Ele (Documento de
espirituais da fé, que precede qualquer bem,

Puebla, n. 521).
ano 57

mas, ao mesmo tempo, deve favorecer, por


acréscimo, o desenvolvimento dos bens tem- É importante recordarmos as palavras do
porais, conforme diz a Palavra de Deus: “Pro-

papa Pio XI, no seu discurso aos dirigentes da


Vida Pastoral

curai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, Fuci (Federação Universitária Católica Italia-

37
na), em que respondia à tenta- “aprendemos que campo em que se pode trabalhar,
ção de certo número de católi- mais importante é a exigência. E
a pessoa humana é
cos italianos de renunciar à ação
tal é o campo da política que diz
política em uma sociedade que dotada de razão e
se inspirava em princípios dife- consciência. É isto que respeito aos interesses da socie-
rentes destes. Ali se desenvolveu dade e que, sob este perfil, é o
a ideia de “caridade política”, lhe permite discernir o maior campo da caridade, da ca-
para qualificar o empenho dos que é verdadeiramente ridade política, a qual se poderia
cristãos na realização do bem
comum. Pio XI afirmou que o bom e justo. A filosofia
dizer sem dúvida, fora da reli-
domínio da política é o campo antiga e a tradição gião, ser superior (L’Osservatore
mais propício à caridade, de
cristã ensinam que a Romano, 23 dez.1927, p. 3).
modo que a caridade política
consiste em um compromisso consciência distingue o Por fim, aprendemos que a
ativo e operante, fruto do amor justo e o injusto e que a pessoa humana é dotada de ra-
cristão aos outros homens, zão e consciência. É isto que lhe
considerados como irmãos, em pessoa só se realiza
permite discernir o que é verda-
vista de um mundo mais justo na polis, na ordem
e fraterno, com uma atenção deiramente bom e justo. A filoso-
particular às necessidades dos social.” fia antiga e a tradição cristã ensi-
mais pobres: nam que a consciência distingue o justo e o
Cumprem um dos maiores deveres injusto e que a pessoa só se realiza na polis, na
cristãos, porque é mais vasto e importante o ordem social (cf. CNBB, Doc. 50, n. 11).

Bibliografia

BENTO XVI. Deus Caritas Est (25 dez. 2005): carta encíclica sobre o amor cristão. São Paulo: Paulinas,
2006 (Voz do Papa, 189).
______. Caritas in Veritate (29 jun. 2009): carta encíclica sobre o desenvolvimento humano integral na
caridade e na verdade. São Paulo: Paulinas, 2009 (Voz do Papa, 193).
BOFF, Leonardo. A Santíssima Trindade é a melhor comunidade. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 3. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas, Loyola, Ave-Maria,
1993.
CELAM. Documento de Puebla: evangelização no presente e no futuro da América Latina. São Paulo:
Paulinas, 1979.
CNBB. Igreja: comunhão e missão na evangelização dos povos, no mundo do trabalho, da política e da
nº- 309

cultura. São Paulo: Paulinas, 1988 (Documentos da CNBB, 40).


______. Ética, pessoa e sociedade. São Paulo: Paulinas, 1993 (Documentos da CNBB, 50).

ano 57

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Gaudium et Spes (7 dez. 1965): constituição pastoral sobre a
Igreja no mundo de hoje. São Paulo: Paulinas, 1967 (Voz do Papa, 41).

PIO XI. Discorso agli universitari cattolici (18 dez. 1927). L’Osservatore Romano,
Vida Pastoral

Roma, 23  dez. 1927, p. 3.

38
homiléticos
Roteiros

Celso Loraschi*

Também na internet:
vidapastoral.com.br
6º Domingo da Páscoa
1º de maio

A humanidade nova,
morada de Deus
I. Introdução Geral
Quem ama Jesus ouve sua Palavra. Meditada e praticada em
comunidade, a Palavra produz muitos e bons frutos. O Espírito
Santo, dom de Deus, recorda aos discípulos tudo o que o Mestre
ensinou. Uma comunidade que ama é, por excelência, o espaço
nº- 309

sagrado, pois nela habita a Trindade. Onde mora Deus, há a


nº- •309

verdadeira paz (Evangelho). O Espírito Santo também inspira e


* Mestre em Teologia Dogmática
fortalece os discípulos de Jesus para continuarem sua missão.
57 •57

com Concentração em Estudos


• ano

Bíblicos, professor de evangelhos Como anunciadores da verdade do Evangelho, encontram opo-


sinóticos e Atos dos Apóstolos sições por parte dos que seguem as propostas do mundo. A paz
• ano
Pastoral

no Instituto Teológico de Santa


Catarina (ITESC). E-mail:
de Deus é diferente da paz que o mundo dá. A paz de Deus não
Pastoral

loraschi@itesc.org.br é ausência de conflitos. No dinamismo do Espírito Santo, os


VidaVida

39
Roteiros homiléticos

seguidores de Jesus precisam encontrar-se, Pai vivem intimamente unidos. O que Jesus diz
dialogar, discernir e decidir pelo melhor cami- e faz é a própria expressão de Deus Pai. Jesus e
nho (I leitura). As comunidades cristãs são o Pai são UM. A intimidade amorosa entre am-
convidadas a acolher a “nova Jerusalém”, a ci- bos estende-se às pessoas que praticam o amor.
dade da paz, que desce do céu, fruto da graça Nelas Deus faz sua morada. O mesmo foi dito
divina e da fidelidade dos que ouvem sua Pa- do Espírito Santo (v. 17). Então, a pessoa que
lavra. É a nova humanidade, cujos alicerces se crê torna-se morada da Trindade. Cumpre-se a
encontram no testemunho dos apóstolos, os antiga promessa da habitação de Javé no meio
quais viram, acolheram e transmitiram a Pala- de seu povo: “Estabelecerei a minha habitação
vra da vida: Jesus Cristo morto e ressuscitado no meio de vós e não vos rejeitarei jamais. Esta-
(II leitura). Iluminados e encorajados pelo mes- rei no meio de vós, serei o vosso Deus e vós
mo Espírito Santo, continuamos a testemunhar sereis o meu povo” (Lv 26,11s). Em João, po-
a fé em Jesus, reunindo-nos para rezar, para rém, é ainda mais profundo: a habitação divina
comungar a “Palavra-eucaristia”, para dialogar, não se dá apenas “no meio”, mas “dentro”. É
discernir e viver o amor, conscientes de que a uma experiência única e maravilhosa.
Trindade fez sua morada no meio de nós. A comunidade cristã, portanto, é a expres-
são viva de Deus-Amor. As pessoas participan-
tes ouvem a sua Palavra, que é o próprio Jesus
II. Comentário dos textos feito carne, presente no meio delas. O Espírito
bíblicos Santo, dom do amor de Deus, recorda todos
os ensinamentos de Jesus. Como ouvintes e
1. Evangelho (Jo 14,23-29): praticantes da Palavra, unidas na fé e no amor,
Ser humano, morada de Deus as comunidades cristãs transformam-se num
espaço da paz e da alegria de Deus. O termo
A redação do Evangelho de João se dá ao “paz”, na Bíblia, expressa a síntese dos bens
redor do ano 100. Constitui uma reflexão pós- necessários para uma vida plena, tanto tempo-
-pascal das comunidades joaninas. O texto rais como espirituais.
deste domingo faz parte do discurso de despe-
dida de Jesus aos seus discípulos. Percebe-se 2. I leitura (At 15,1-2.22-29):
íntima relação entre Jesus e Moisés. Assim Conflitos fazem parte da
como Moisés fora enviado para guiar o seu caminhada
povo rumo à terra prometida, Jesus foi enviado Após a primeira viagem missionária, Pau-
por Deus para dar a vida à humanidade. Assim lo e Barnabé permaneceram algum tempo na
como Deus se manifestou no Êxodo por meio comunidade cristã de Antioquia da Síria. Ela
de dez sinais, Jesus realiza sete sinais libertado- se tornou importante centro irradiador da
res. Assim como Deus revelou, por meio de proposta cristã. A experiência que trouxeram
Moisés, os Mandamentos como estatutos para da viagem foi partilhada e meditada na co-
o povo de Israel, Jesus revela o Mandamento munidade. O principal ponto polêmico le-
do Amor, estatuto do novo povo de Deus, con- vantado por Lucas, neste texto, é a questão
nº- 309

forme o texto do domingo passado. da circuncisão. Trata-se de polêmica suscita-


Há, porém, uma novidade radical, sinteti- da por judeu-cristãos que manifestam ainda

ano 57

zada no texto da liturgia de hoje. É fruto da ex- muita dificuldade de desvencilhar-se da lei
periência de fé, ao longo da caminhada das co- judaica como constitutiva da salvação. Al-

munidades joaninas, que iluminou a compre- guns deles se deslocam de Jerusalém para
Vida Pastoral

ensão da pessoa e da proposta de Jesus: ele e o Antioquia a fim de pregar a obrigatoriedade

40
da circuncisão como manifestação de fideli- salvadora de Jesus. Também a Jerusalém his-
dade à Lei de Moisés. A seu ver, somente as- tórica se situa no monte Sião.
sim se poderia obter a salvação. O alto monte contrasta com o deserto para
Paulo e Barnabé, missionários junto às onde o visionário João havia sido levado ante-
nações, não concordam com essa obrigato- riormente (cf. 17,3). Enquanto o deserto é,
riedade, pois a verdadeira fonte de salvação é simbolicamente, a morada da meretriz, a mon-
Jesus Cristo. Com tal convicção dirigem-se à tanha é o lar da Noiva de Cristo, a nova Jerusa-
Igreja-mãe, Jerusalém. O conflito é evidente. lém constituída pelo povo justo. A meretriz
Para discernir qual o caminho a ser seguido, representa a “Babilônia”, nome simbólico de
é convocada uma assembleia. Realizou-se, Roma, promotora da morte e da destruição. A
então, o que é normalmente conhecido por nova Jerusalém é a cidade perfeita que desce
“Concílio de Jerusalém”. Estamos no ano 49. do céu trazendo a própria glória de Deus. A
O relato de Lucas tem a preocupação de muralha, grossa e alta, tendo os anjos como
mostrar a disposição dos participantes desse guardas, está totalmente protegida e segura.
“concílio” para salvar a unidade da Igreja. Per- O número doze é articulado no texto
cebe-se isso, especialmente, pela acolhida mú- como expressão da nova realidade da qual
tua e carinhosa entre os representantes da Igre- participa o novo povo de Deus. É o número
ja de Antioquia e os de Jerusalém. A unidade da perfeição teocrática que lembra as doze
vem junto com a preocupação de inclusão de tribos de Israel, os doze apóstolos e, por ex-
toda a gente, pois a salvação que Jesus trouxe é tensão, o povo fiel a Jesus Cristo. Esse núme-
para todos os povos. O decreto final determina ro cruza-se com o número três, referindo-se
a abstenção de algumas atitudes que feriam quatro vezes às portas abertas para os quatro
profundamente a fé judaica: das “carnes sacri- cantos do mundo. É, portanto, a realidade-
ficadas aos ídolos”, pois isso significaria parti- -síntese de um mundo novo.
cipar dos cultos pagãos, o que seria um sacrilé- A cidade perfeita é dom de Deus. Nela já
gio; do “sangue e das carnes sufocadas”, pois o não há templo, pois toda ela é habitação divina.
sangue expressa a própria vida, que só a Deus Essa perspectiva teológica do Apocalipse apon-
pertence (por isso, ao ser sacrificado, o sangue ta para a realização plena do desígnio de Deus
do animal deveria ser totalmente derramado – inaugurada com a vinda de Jesus, o Messias. Ele
cf. Lv 1,5); das “uniões ilegítimas” (cf. Lv 18). é o Cordeiro: a lâmpada que ilumina a cidade.
Transparece claramente, nas decisões da as- A situação da humanidade transformou-se. Seu
sembleia, uma estratégia pastoral com o objeti- relacionamento com Deus se dá de forma ínti-
vo mais alto: proporcionar a acolhida do Evan- ma, perfeita e definitiva. A aliança é plenamente
gelho da salvação por todas as culturas. acolhida e vivida com fidelidade.
3. II leitura (Ap 21,10-14.22-23): A
nova humanidade III. Pistas para reflexão
Os dois últimos capítulos do Apocalipse A utopia do “novo céu e da nova terra”
apontam para a nova criação, em que já não exerceu um papel de resistência, de coragem
nº- 309

há lugar para a maldade. O texto da liturgia e de perseverança nas comunidades cristãs


deste domingo relata essa visão utópica que do Apocalipse. As violentas perseguições pe-

ano 57

se dá num alto monte. Na tradição judaica, a las quais passaram as pessoas discípulas de
montanha carrega um significado simbólico Jesus, por causa do testemunho de fé em Je-

de muita importância. Basta lembrar a con- sus Cristo, desafiaram a sua fidelidade. Mui-
Vida Pastoral

cessão dos Mandamentos a Moisés e a morte tas foram mortas. O seu martírio, porém, é o

41
Roteiros homiléticos

sinal por excelência que ilumina e confirma o quem é Jesus, conforme já anunciado nas Sa-
caminho do seguimento de Jesus. gradas Escrituras: o Messias sofredor que é
O testemunho dos primeiros cristãos nos glorificado. Revelam também que a missão
interpela profundamente. A fidelidade aos valo- de Jesus deve ser continuada pelos seus dis-
res evangélicos permanece como caminho para cípulos. Em nome dele, a boa notícia do per-
um mundo novo. É neste mundo onde vivemos dão dos pecados, mediante o arrependimen-
que Deus deseja estabelecer sua morada. Tudo, to, deverá ser proclamada a todas as nações.
então, torna-se sagrado. Quando nossas pala- O Espírito Santo, promessa de Deus, é a força
vras e nossas ações respeitarem a presença de do alto que revestirá os discípulos missioná-
Deus em cada ser humano, na natureza e em rios. Sem essa força, prevalecem os interesses
toda a sociedade, o mundo será outro. próprios e as ambições de poder. Confessar a
No Evangelho, Jesus anuncia e garante a fé em Jesus, que morreu, ressuscitou e subiu
presença de Deus Trindade nas pessoas que o ao céu, é voltar o olhar para a realidade deste
amam e ouvem a sua Palavra. Dessa verdade mundo e comprometer-se com sua transfor-
decorre nosso compromisso de contemplar mação (Evangelho e Atos). Sejam dadas hon-
cada pessoa como morada de Deus e, portan- ra e glória a Deus, pois nos ama de maneira
to, respeitá-la em sua dignidade. Daí decorre humilde e criativa. Sua grandeza e seu amor
também nosso compromisso de proteger e revelam-se plenamente em Jesus Cristo. O
promover a vida em todas as suas dimensões. seu Espírito abre a nossa mente para que
Por isso, iluminados pelas atitudes dos possamos conhecê-lo verdadeiramente. E
primeiros discípulos e missionários, reuni- nos chama a participar do Corpo Místico, a
mo-nos em comunidade para celebrar, reali- Igreja, cuja cabeça é Cristo, o qual está acima
zar encontros e assembleias para discernir e de todo poder (II leitura). Esta unidade pre-
decidir o que fazer, tendo em vista a vida dig- cisa ser conservada e cultivada em cada co-
na sem exclusão. munidade e também entre as Igrejas cristãs,
pois as divisões entre os membros do mesmo
Valorizar os diversos momentos de reuni- corpo impedem a vida digna e saudável.
ões, encontros, celebrações, estudos e assembleias
que se realizam na paróquia (e em outros espa-
ços), bem como refletir sobre a importância da
II. Comentário dos textos
participação neles como Igreja viva que somos. bíblicos

1. Evangelho (Lc 24,46-53):


Ascensão do Senhor A bênção de Jesus
(8 de maio)
O Evangelho de Lucas e os Atos dos

Missão de Jesus: Apóstolos são dois volumes da mesma obra.


Tanto no final do Evangelho como no come-

missão dos discípulos ço do livro de Atos consta o relato da ascen-


são de Jesus, de formas diferentes. Original-
nº- 309

mente, como muitos estudiosos defendem,


não havia dois volumes, mas, sim, uma uni-

I. Introdução geral
ano 57

dade, com apenas um relato da ascensão (o


Os relatos da ascensão do Senhor não que se encontra em Atos). O que importa

querem indicar o afastamento de Jesus deste aqui, porém, é o sentido teológico dos dois
Vida Pastoral

mundo. Querem, sim, revelar plenamente relatos, assim como se encontram na Bíblia.

42
No Evangelho de Lucas, percebemos que vador mediante a morte e ressurreição de Je-
todos os fatos acontecidos após a morte de sus. A partir desse espaço, a proclamação do
Jesus se realizam no mesmo dia. Em Atos, Je- arrependimento e da remissão dos pecados
sus ressuscitado permanece 40 dias entre atingirá o mundo inteiro: é a boa notícia da
seus discípulos, ensinando-lhes coisas refe- salvação oferecida a toda a humanidade.
rentes ao Reino de Deus. Teologicamente, o Lucas, porém, distingue a Jerusalém teo-
tempo de um dia ou de 40 dias tem o mesmo lógica da cidade em seu sentido político-eco-
significado: é o tempo propício concedido nômico, com suas instituições opressoras.
aos discípulos para serem testemunhas quali- Não é por acaso que Jesus os tira dessa cida-
ficadas de Jesus Cristo ressuscitado. Esse tes- de e os leva a Betânia. Isso lembra o êxodo do
temunho inaugura um novo tempo e deverá povo de Israel, tirado da escravidão do Egito.
ser irradiado para o mundo inteiro. Para essa É em Betânia que ele os abençoa enquanto se
missão, eles precisam ser preparados. eleva ao céu. As pessoas aí abençoadas tor-
É por isso, então, que Lucas enfatiza a pre- nar-se-ão portadoras da bênção divina a to-
ocupação de Jesus em “abrir a mente” (v. 45) dos os povos.
dos discípulos a fim de que entendam as Es-
2. I leitura (At 1,1-11): A exaltação
crituras. Aprofunda a tarefa catequética de Je-
de Jesus
sus, já demonstrada no episódio dos dois dis-
cípulos a caminho de Emaús (24,13-35). Pa- O prólogo de Atos dos Apóstolos faz liga-
rece insistir na necessidade de uma retomada ção com o início do Evangelho de Lucas, es-
dos textos do Primeiro Testamento à luz do clarecendo que se trata da continuação da
evento Jesus de Nazaré. Assim, tudo ficará es- obra endereçada ao mesmo destinatário, Teó-
clarecido a respeito do Messias, o Salvador. filo (etimologicamente “amigo de Deus”), o
De fato, entre os apóstolos, bem como en- qual, no plano simbólico, pode representar a
tre as comunidades cristãs, o processo de en- comunidade cristã. Enquanto o primeiro vo-
tendimento da pessoa de Jesus e de adesão lume tratou da vida de Jesus Cristo, o segun-
profunda ao seu projeto não foi tão tranquilo do vai ocupar-se da vida da Igreja, guiada
como se pode pensar à primeira vista. É o que pelo Espírito Santo. Ela está intimamente li-
se percebe pelas reações dos discípulos diante gada à vida e à missão de Jesus, bem como à
das aparições de Jesus ressuscitado: os de história de Israel, representada pelo seu cen-
Emaús caminham um longo trecho sem reco- tro religioso, Jerusalém, e pelo cumprimento
nhecê-lo, pois eram “lentos de coração para da promessa anunciada na Sagrada Escritura.
crer no que os profetas anunciaram” (24,25); O cristianismo tem suas raízes no judaís-
ao apresentar-se aos onze, desejando-lhes a mo. Não há ruptura entre Israel e a Igreja: há
paz, eles ficaram “tomados de espanto e te- continuidade. O testemunho dos apóstolos
mor, imaginando que fosse um espírito”, além deverá percorrer uma trajetória sempre mais
de “perturbados e cheios de dúvidas em seus ampla, partindo de Jerusalém até os confins
corações”, a ponto de Jesus insistir para que o do mundo (1,8). Para isso, deverão antes
apalpassem e entendessem (cf. 24,36-40). mergulhar na experiência do Espírito Santo,
nº- 309

Diante dessas dificuldades, Jesus lhes que descerá sobre eles no dia de Pentecostes.
anuncia o que o Pai prometeu: a força do Para a narrativa da ascensão em Atos, Lu-

ano 57

alto. Enquanto isso não acontece, pede-lhes cas inspira-se em passagens do Primeiro Tes-
que permaneçam em Jerusalém, que, para tamento, como o arrebatamento de Elias aos

Lucas, tem uma importância teológica muito céus (2Rs 2,1-18). Eliseu, discípulo de Elias,
Vida Pastoral

especial, pois aí se deu o acontecimento sal- por testemunhar o arrebatamento do seu

43
Roteiros homiléticos

mestre, recebe “dupla porção” do seu espírito III. Pistas para reflexão
e torna-se o continuador da missão profética;
A ascensão de Jesus não significa que ele te-
como testemunhas oculares da ascensão de
Jesus, seus discípulos receberão o Espírito nha ido embora para retornar no final dos tem-
Santo para continuar a sua obra. Os dois ho- pos. Na verdade, ele é exaltado, mas permanece
mens vestidos de branco são os mesmos de no meio de nós. Os olhos da fé o veem perfeita-
Lc 24,4, que anunciam às mulheres a ressur- mente e o coração dos que acreditam o acolhe
reição de Jesus e as fazem recordar as pala- com amor e gratidão.
vras por ele ditas. Aqui, em Atos, eles recor- Jesus Cristo e a Igreja formam um corpo.
dam aos discípulos a verdade da ascensão. Ter essa consciência implica cuidar uns dos ou-
Ressurreição e ascensão são dois mo- tros com muito carinho e respeito. Significa
mentos que exprimem o novo modo de ser responsabilizar-se pela promoção da vida, dan-
de Jesus: aquele que foi obediente ao Pai até do prioridade aos membros que sofrem. Signifi-
a morte é glorificado e exaltado, mas perma- ca acolher os que são diferentes, sem julgamen-
nece na comunidade. O transcendente mani- tos superficiais, mas exercitando o diálogo e a
festa-se na história humana. mútua compreensão.
Nesta semana, situada entre as festas de As-
3. II leitura (Ef 1,17-23): Jesus, censão e Pentecostes, celebra-se no Brasil a “se-
cabeça da Igreja mana de oração pela unidade dos cristãos”. Parti-
A carta aos Efésios, com muita probabili- cipar desse grande mutirão em favor da unidade
dade, é fruto da reflexão das comunidades das Igrejas cristãs é expressão concreta de perten-
fundadas por Paulo. Escrita ao redor do ano ça ao Corpo de Jesus e de edificação do seu reino
90, enfatiza o projeto de salvação de Deus de fraternidade no mundo.
para todos os seres humanos. O texto de É boa oportunidade de lembrar os nomes
hoje, num estilo litúrgico, apresenta a figura das Igrejas cristãs que possuem comunidades
de Jesus glorioso como aquele que tem a so- no espaço geográfico da paróquia ou da região.
berania sobre toda a criação, está acima de Durante a semana, pode-se celebrar um culto
toda autoridade e de todo poder. ecumênico e/ou outras iniciativas com as Igrejas
O conhecimento de Deus dá-se por sua que desejarem. Para informações sobre a sema-
graça. É ele que nos concede “o espírito de na de oração e ecumenismo: www.conic.org.br.
sabedoria e de revelação”; é ele que “ilumina
os olhos do coração” para compreendermos Pentecostes
“a extraordinária grandeza do seu poder para
15 de maio
nós” manifestada em seu Filho, Jesus Cristo.
A ressurreição e a ascensão de Jesus são aqui
lembradas como sinais que revelam sua gló- Espírito Santo:
ria e soberania em tudo e em todos.
O discernimento da verdade a respeito dom de Deus para
de Jesus estende-se à verdade sobre a Igreja:
a vida do mundo
nº- 309

formamos o Corpo Místico, cuja cabeça é


Cristo. Ao mesmo tempo que está sujeita à

ano 57

autoridade de Jesus Cristo, a Igreja vive in-


timamente unida a ele. É uma união vital,
I. Introdução geral

pois, sem a cabeça, não existe corpo e não A vinda do Espírito Santo sobre os discí-
Vida Pastoral

existe vida. pulos é o cumprimento da promessa de Je-

44
sus: “Recebereis uma força, a do Espírito San- quais Maria, a mãe de Jesus, e os seus irmãos”
to, que descerá sobre vós, e sereis minhas (At 1,14). O tempo da espera se completou e
testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia a promessa de Jesus se cumpre.
e Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8). Os judeus da diáspora acorrem a Jerusa-
É, portanto, em vista da irradiação universal lém, “vindos de todas as nações que há de-
do testemunho de Jesus Cristo que a graça do baixo do céu”. Estão aí para celebrar a festa,
Espírito nos é dada. Todo discípulo é tam- fiéis à sua tradição religiosa. Tornam-se tes-
bém missionário. A missão deve atingir todos temunhas da efusão do Espírito Santo sobre
os povos, pois a salvação oferecida gratuita- a comunidade dos discípulos e discípulas de
mente por Deus é universal (I leitura). Jesus Jesus. O acontecimento de Pentecostes quer
mesmo é o missionário do Pai e é quem envia mostrar a continuidade com a história de Is-
os discípulos: “Como o Pai me enviou, tam- rael. O Deus que se revelou aos antepassa-
bém eu vos envio” (Jo 19,21). Soprando so- dos é o mesmo que se revela em Jesus Cristo
bre eles, concede-lhes o dom do Espírito, e se dá a conhecer ao mundo inteiro.
juntamente com o poder de perdoar pecados. Lucas enumera ainda a presença de vários
O Espírito, então, liberta-nos de tudo o que povos, do Oriente e do Ocidente, represen-
impede a graça de Deus de atuar em nós tantes de todas as nações. A Palavra do Evan-
gelho deverá alcançar a todos. Em suas pró-
(Evangelho). É pelo Espírito Santo que reco-
prias línguas ouvirão o anúncio das maravi-
nhecemos a Jesus Cristo como Senhor e Sal-
lhas de Deus. Portanto, o dom do Espírito
vador. É ele quem nos une num só corpo e
tem, essencialmente, uma finalidade missio-
distribui os dons diversos para a edificação
nária. A comunidade de Jerusalém é o ponto
da comunidade (II leitura). A graça divina
de partida para a difusão da fé cristã; é a mãe
nos é concedida em abundância. Somos con-
de todas as comunidades cristãs. Por isso, vai
vidados a acolhê-la e fazê-la frutificar.
ser caracterizada como a comunidade ideal
(cf. 4,32-35). Com base nesse modelo, em
II. Comentário dos textos círculos sempre mais amplos, a Palavra será
bíblicos disseminada universalmente.
O Espírito Santo é o principal protago-
1. I leitura (At 2,1-11): O Espírito nista da evangelização. É quem garante a
Santo, dom de Deus unidade da fé em Jesus Cristo na diversida-
de de línguas e culturas. Como podemos
Originalmente, entre os israelitas, Pente- constatar no conjunto do livro de Atos dos
costes era a festa da colheita (cf. Ex 34,22). Apóstolos, os discípulos, após a experiên-
Era celebrada num clima de muita alegria e cia transformadora do Espírito, enchem-se
de ação de graças. Posteriormente, passou a de ousadia e coragem e lançam-se nessa ta-
ser a comemoração do aniversário da pro- refa profética de testemunhar a fé no Salva-
mulgação da Lei de Deus no monte Sinai. Lu- dor, Jesus Cristo (em muitos casos, che-
cas, ao descrever o Pentecostes cristão, rein- gando até o martírio).
nº- 309

terpreta essa festa como o momento propício


2. Evangelho (Jo 20,19-23): A paz,
não mais da concessão da Lei, mas da graça

dom do Ressuscitado
ano 57

do Espírito Santo. Os símbolos do furacão e


do fogo lembram a teofania no Sinai. Numa O texto se inicia indicando o dia em que

casa, em Jerusalém, estão reunidos em ora- Jesus ressuscitado se manifestou aos discípu-
Vida Pastoral

ção os apóstolos, “algumas mulheres, entre as los. O primeiro dia da semana tem ligação

45
Roteiros homiléticos

com o primeiro dia da criação. Portanto, a meiro ser humano, infundindo-lhe a vida. O
ressurreição de Jesus marca uma nova cria- Espírito cria uma nova condição: a vida di-
ção. A situação em que se encontram os dis- vina nos discípulos lhes garante a capacida-
cípulos, trancados e com medo, será trans- de de amar como Jesus amou. É um amor
formada com a presença de Jesus no meio que liberta o mundo de todo o pecado, o
deles. A alusão à hora do dia (ao anoitecer) qual, para João, representa a ordem social
guarda relação com o momento em que os baseada na opressão e na injustiça. O Espí-
discípulos enfrentam forte tempestade na rito Santo, que age por meio dos seguidores
travessia do mar. Jesus vem ao seu encontro, de Jesus, oferece todas as condições para o
caminhando sobre as águas, e manifesta seu estabelecimento da paz, da justiça e da fra-
poder de salvação (cf. 6,16-20). Percebe-se ternidade no mundo.
que João retrata a situação em que se encon-
tram as comunidades cristãs ao redor do ano
3. II leitura (1Cor 12,3b-7.12-13):
100: atemorizadas e escondidas devido à
Diversos serviços, um só Espírito
hostilidade e perseguição tanto da parte do Paulo, ao escrever à comunidade cristã
império romano como de grupos judaicos. de Corinto, intenta orientá-la nas questões
Jesus jamais abandona os seus, como ainda não bem esclarecidas que estão cau-
havia prometido: “Não vos deixarei órfãos” sando conflitos no meio dela. Uma dessas
(14,18). Ele se põe no meio deles como o questões refere-se aos dons do Espírito
doador da paz. A fé em Jesus, presente no Santo. Para tratar disso, o apóstolo dedica
meio da comunidade, garante a superação os capítulos 12 a 14. O texto da liturgia de
do medo e da insegurança que estagnam. hoje enfatiza que a diversidade de dons,
Ele é o centro ao redor do qual se forma a ministérios e modos de ação provém da
comunidade. Ele é o fator de união e de Trindade santa: do mesmo Espírito, do
garantia da paz. Já havia anunciado em seu mesmo Senhor e do mesmo Deus que rea-
discurso de despedida, antes de sua morte: liza tudo em todos. De Deus provém so-
“Eu vos disse essas coisas para terdes paz mente o que é bom para os seus filhos e
em mim. No mundo tereis muitas tribula- filhas. A diversidade revela a magnanimi-
ções, mas tende coragem: eu venci o mun- dade e a criatividade divinas.
do” (16,33). A graça de Deus não pode ser acolhida
Ao mostrar-lhes as mãos e o lado, Jesus de forma egoísta. Por isso, todo dom ou ca-
lhes revela os sinais de seu amor vitorioso. risma desdobra-se em serviços concretos em
Nenhuma força será capaz de destruir a vida, favor do bem comum. Não importa o tipo
pois a morte foi vencida definitivamente. Ao de ministério, pois, sendo graça divina, to-
verem o Senhor, os discípulos enchem-se de dos têm a mesma importância. Daí decorre
alegria e recobram o ânimo. a atitude de serviço humilde e solidário.
A paz, a alegria e a coragem deverão Cada ação deve estar ligada ao conjunto das
acompanhar os apóstolos na missão que re- demais. O que deve projetar-se não é a figu-
cebem do Senhor Jesus. Deverão seguir o ra da pessoa que serve. Isso seria utilizar os
nº- 309

exemplo do Mestre, que cumpriu fielmente dons de Deus, que é Amor, em proveito pró-
a missão recebida do Pai. A fidelidade à mis- prio. O que deve brilhar é o projeto comum,

ano 57

são, porém, não se deve à boa vontade dos que, no caso de uma comunidade cristã, é o
enviados. Deve-se, sim, à ação do Espírito mesmo projeto de Jesus. No Espírito reco-

Santo. O sopro de Jesus sobre os discípulos nhecemos que ele é nosso Senhor e com ele
Vida Pastoral

lembra o sopro de Deus nas narinas do pri- formamos um só corpo.

46
III. Pistas para reflexão mente com a bênção da comunidade sobre
os ministros e ministras.
A festa de Pentecostes nos oferece a
oportunidade de reconhecer o dom do Es-
pírito Santo em cada pessoa e na comuni- Santíssima Trindade
dade. Quem o acolhe tem todas as condi- 22 de maio
ções de vencer a timidez, o medo, a triste-
za, o desânimo e a solidão. Em cada um de
nós, a partir do batismo, existe essa força
A comunidade
do alto que nos enche de autoestima e nos
impulsiona a fazer o bem, do mesmo modo
divina: modelo
como Jesus fez. O Espírito Santo nos im-
pulsiona a participar ativamente da comu-
para a comunidade
nidade, leva-nos ao engajamento em servi-
ços diferentes e ao compromisso de trans-
humana
formar as realidades de pecado e de morte.
Ele nos dá a capacidade de diálogo entre I. Introdução geral
nós, com as diversas Igrejas e as diversas A fé em Deus Trindade nos leva a re-
culturas. É para a vida em abundância que conhecer a beleza e a profundidade da
Deus nos chamou. Nós respondemos afir- rea­lidade humana. Deus é UM em três
mativamente, pois acreditamos no mesmo pessoas, mistério de amor e comunhão,
sonho de Jesus. perfeita unidade na diversidade. A comu-
Ao redor de Jesus ressuscitado se orga- nidade humana encontrará a sua verda-
niza a comunidade cristã. Sua presença é deira realização se buscar conviver numa
garantia de união, de paz, de alegria e de relação de igualdade entre todos os seus
segurança. Como seus discípulos missioná- membros, respeitando as diferenças. Pela
rios, vivemos e anunciamos seu amor e seu fé, tivemos acesso a essa revelação. Pela
perdão. A realidade de egoísmo, de opres- fé, conhecemos a Deus e entramos na sua
são e de todas as formas de injustiça será intimidade. O caminho que nos conserva
transformada se nos amarmos como Jesus na comunhão com Deus e com os irmãos
nos amou. é o da sabedoria. Ela é a primeira de todas
Portanto, o empenho pela promoção da as obras divinas, a que orienta o destino
unidade no mesmo projeto de vida digna de tudo e de todos (I leitura). Dessa rela-
para todas as pessoas é sinal concreto de ção íntima com Deus e com o próximo
adesão a Jesus. A acolhida e a contemplação provêm a paz, a perseverança nas tribula-
das diversas expressões religiosas e culturais ções e a firmeza no amor, derramado em
colaboram para um mundo de paz, dom de nossos corações pelo Espírito Santo (II
Jesus ressuscitado. A valorização dos dife- leitura). Ele nos dá a conhecer toda a ver-
rentes ministérios, exercidos com amor, é dade revelada em Jesus Cristo (Evange-
nº- 309

expressão de louvor e gratidão a Deus, fonte lho). Essa certeza nos faz assumir com
de todas as graças. convicção e destemor a missão de teste-

ano 57

A celebração da festa de Pentecostes munhar, no meio deste mundo, o amor


pode ser bom momento de valorização dos que torna possível a inclusão de todos os

diversos ministérios exercidos na comunida- seres numa sociedade justa e fraterna,


Vida Pastoral

de. É oportuno para a renovação deles, junta- imagem e semelhança da Trindade santa.

47
Roteiros homiléticos

II. Comentário dos textos de comprovada produz a esperança”. Trata-se


bíblicos da esperança militante, manifestada por meio
do empenho cotidiano em acolher e fazer
1. II leitura (Rm 5,1-5): A esperança frutificar o amor de Deus derramado pelo Es-
não decepciona pírito Santo em nossos corações. Essa espe-
rança “não engana”.
Um dos temas prioritários que Paulo se
dedica a aprofundar, especialmente na carta 2. Evangelho (Jo 16,12-15):
aos Romanos, é o da justificação pela fé. Para O Espírito da verdade
ele, não é o cumprimento das leis nem qual- O texto faz parte do “livro da comunida-
quer obra humana que nos tornam justos de”, também conhecido como o “livro da glo-
diante de Deus. Se assim fosse, a justificação rificação” (Jo 13-17). Após o gesto do lava-
teria por base os méritos pessoais. Paulo parte -pés, Jesus faz um longo discurso de despedi-
da premissa de que todos somos radicalmente da. De modo afetuoso, anuncia aos discípu-
pecadores e, portanto, necessitados da inter- los a sua partida iminente. É um discurso que
venção gratuita de Deus. Ela se deu em Jesus possui caráter de testamento. De coração
Cristo, o libertador de todos os pecados. Por aberto, Jesus revela tudo o que recebera de
meio dele, Deus realizou sua ação misericor- seu Pai e demonstra a íntima relação entre
diosa de salvação para todo o gênero humano. ambos. Os discípulos, porém, demonstram
Percebe-se que Paulo indica um processo incompreensão diante das palavras de Jesus.
de amadurecimento no caminho da fé, até Apesar de conviverem com Jesus por um
que, de livre vontade e com consciência lúci- bom tempo, permanecem num estágio de
da, aceitemos a Jesus como nosso Salvador e imaturidade espiritual. São incapazes de
vivamos, como ele nos ensinou, na vontade apreender o sentido verdadeiro do testamen-
divina. Pelo seu sangue, ele nos reconciliou to de Jesus. Necessitam de ajuda.
com Deus e nos concede a paz em plenitude. O texto faz, então, referência ao Espírito
A paz de que o texto nos fala carrega o senti- Santo, que dará prosseguimento à missão de
do do termo hebraico shalom, o qual indica o Jesus. Ele instruirá os discípulos e os liber-
estado de perfeita intimidade e harmonia en- tará das amarras que impedem o reconheci-
tre os seres humanos, com a natureza e com mento do Salvador. É o Espírito que conduz
Deus. Dele provêm todas as bênçãos que ga- à verdade plena que é o próprio Jesus Cris-
rantem uma vida de dignidade, de bem-estar to, Deus encarnado, conforme já havia ante-
e de profunda alegria. riormente se revelado: “Eu sou o caminho, a
A fé, portanto, não se reduz ao assenti- verdade e a vida” (Jo 14,6). A verdade é,
mento racional a um sistema doutrinário. pois, a própria realidade divina manifestada
Também não consiste apenas em momentos no amor de Jesus, que entrega sua própria
de oração. A fé é a atitude de entrega total e vida em resgate da vida de todos. Jesus reza
confiante a Deus, que nos salva mediante seu para que os discípulos sejam santificados na
Filho, Jesus Cristo. Por meio dele, pela fé, te- verdade (17,17.19) e possam viver na per-
nº- 309

mos acesso à graça da salvação, mantemo- feita unidade, assim como ele e o Pai são
-nos e nos alegramos nela. UM (17,21-23).

ano 57

Tudo isso nos motiva a gloriar-nos em A comunidade de João demonstra a sua


Deus mesmo nas tribulações, pois “a tribula- caminhada de amadurecimento na fé em Jesus

ção produz a perseverança, a perseverança Cristo. As novas circunstâncias que emergem


Vida Pastoral

produz a fidelidade comprovada e a fidelida- do contexto ao redor do final do século I exi-

48
gem novas reflexões e novas posturas. Cresce O texto quer ressaltar que todas as coisas
a compreensão a respeito de Jesus, de sua ínti- têm sua fonte em Deus; cada ato criador é
ma relação com o Pai e de sua missão de amor manifestação de sua sabedoria eterna e sobe-
neste mundo. Ilumina-se, com maior profun- rana; cada criatura é comunicação de seu
didade, o sentido da morte e ressurreição de próprio ser infinito. O livro da Sabedoria diz
Jesus. Ele veio “para que todos tenham vida e que ela “tudo atravessa e penetra”, é o pró-
a tenham em abundância” (10,10). prio “hálito do poder de Deus e a pura ema-
Os discípulos e discípulas são convida- nação da glória do Onipotente” (Sb 7,24-25).
dos a abrir-se às novas interpretações e exi- O último versículo desta 1ª leitura reve-
gências suscitadas pelo Espírito Santo no la a imensa satisfação que a Sabedoria en-
contexto histórico em que vivem. Prestar contra na superfície da terra e o seu prazer
atenção no Espírito é assumir os desafios da de estar entre os seres humanos. A terra e
história e viver, com novas expressões e novo seus habitantes são obras divinas. A relação
ardor, o mesmo amor revelado em Jesus. íntima da Sabedoria com o Criador, desde
As três pessoas divinas são manifestamen- toda a eternidade, ocorre agora com as cria-
te citadas no texto. Entre elas há perfeita co- turas. Da mesma maneira que esteve presen-
municação e perfeito entendimento. Essa rea- te nos atos da criação de Deus, está presente
lidade divina, em toda a sua beleza e profundi- para governar o universo, conservar a or-
dade, é comunicada por Jesus aos seus discí- dem e dirigir a vida dos habitantes da terra.
pulos. O Pai deu tudo ao Filho; assim também Vemos que a Sabedoria guarda uma ligação
o Filho dá a conhecer tudo o que recebeu do muito estreita com a missão do Espírito
Pai aos seus filhos e filhas. Podemos aqui tra- Santo, conforme vai ser concebida no Se-
zer presente o que são Paulo escreve: gundo Testamento.
Todos os que são guiados pelo Espírito
de Deus são filhos de Deus. E vocês não rece-
beram um espírito de escravos para recair no
III. Pistas para reflexão
medo, mas receberam um Espírito de filhos A festa da Santíssima Trindade é momen-
adotivos, por meio do qual clamamos: Abba! to especial para refletir sobre nossa própria
Pai! O próprio Espírito assegura ao nosso es- identidade e missão no mundo. Somos a fa-
pírito que somos filhos e filhas de Deus. E, se mília humana, formada por povos diversos e
somos filhos, somos também herdeiros: her- de culturas diferentes. Somos homens e mu-
deiros de Deus, herdeiros junto com Cristo lheres chamados a nos acolher no respeito
(Rm 8,16-17). mútuo e na igualdade de direitos. Somos di-
ferentes uns dos outros: na diferença nos
3. I leitura (Pr 8,22-31): A exaltação completamos. Somos diversos: na diversida-
da Sabedoria de nos unimos.
O livro dos Provérbios apresenta a Sabe- No texto da carta aos Romanos, ouvimos
doria como uma personagem. Ela já estava que o amor de Deus se revela com total be-
com Deus mesmo antes da criação do mun- nevolência e gratuidade. De nossa parte,
nº- 309

do. Ou melhor: ela é a primeira obra da cria- resta-nos acolhê-lo com gratidão e perseve-
ção e toma parte ativa em todas as outras coi- rar na fidelidade a esse amor sem limites. A

ano 57

sas criadas por Deus, como se fosse mestre de justificação pela fé não legitima atitudes de
obras ou arquiteto. Deus e a Sabedoria, por- egoísmo e acomodação, mas nos incentiva a
viver segundo o modo de Deus agir em nós:

tanto, estão em íntima comunhão; Deus é a


Vida Pastoral

própria Sabedoria personificada. na doação plena e gratuita. É um caminhar

49
Roteiros homiléticos

na esperança militante que nos faz viver, 9º domingo do tempo comum


aqui e agora, a vida plena que nos será dada 29 de maio
por Deus, sabendo que a “esperança não
decepciona”.
O livro dos Provérbios fala da Sabedoria
Deus se revela
que convive intimamente com Deus. Tudo o
que ele faz é expressão de seu próprio ser;
a todos os povos
portanto, o universo, com tudo o que nele
existe, é penetrado pelo Espírito da Sabedo- I. Introdução geral
ria divina. Todas as coisas são revestidas de As leituras deste domingo nos proporcionam
dignidade e devem ser respeitadas, confor- a oportunidade de refletir quem é Deus, onde ele
me nos orienta a verdadeira Sabedoria. De mora e qual o seu plano para a humanidade. O rei
acordo com o modo pelo qual nos relacio- Salomão constrói um grandioso templo em Jeru-
namos entre nós e com todas as coisas cria- salém como habitação para Deus. Nesse lugar,
das, colhemos frutos de bênção ou de mal- pelo que se percebe na oração de Salomão, todos
dição, de vida ou de morte. os povos teriam oportunidade de conhecer o
No Evangelho, Jesus nos promete o nome de Deus conforme revelado ao povo de Is-
Espírito Santo para nos ajudar a viver rael (I leitura). A abertura a todos os povos com-
conforme o modelo da Trindade santa, a pleta-se com a vinda de Jesus. Ele (e não mais o
perfeita comunidade. “O mistério da Trin- templo) é a fonte e o caminho de salvação univer-
dade é a fonte, o modelo e a meta do mis- sal. Jesus é “Deus-conosco”, independente do
tério da Igreja. Uma autêntica proposta de templo. Ele revela o verdadeiro nome de Deus,
encontro com Jesus Cristo deve estabele- que não se circunscreve num recinto sagrado,
cer-se sobre o sólido fundamento da Trin- mas comunica-se no lugar social das pessoas ne-
dade-Amor. A experiência de um Deus cessitadas, libertando-as (Evangelho). Deus não
uno e trino, que é unidade e comunhão faz acepção de pessoas, ultrapassa barreiras cultu-
inseparável, permite-nos superar o egoís- rais e manifesta-se a todos os povos, oferecendo-
mo para nos encontrarmos plenamente -lhes gratuitamente a salvação em Jesus Cristo.
no serviço para com o outro”. Nesse sen- Esse é o Evangelho assumido e pregado pelo
tido, as comunidades eclesiais de base apóstolo Paulo. Na defesa dessa boa notícia da
caracterizam-se como “casas e escolas de salvação gratuita, Paulo enfrenta toda espécie de
comunhão” (DAp 155, 170 e 240). conflitos (II leitura). Para nós, hoje, como discí-
A celebração da festa da Santíssima pulos missionários de Jesus, é importante com-
preender, acolher e anunciar com ousadia o Evan-
Trindade é boa oportunidade de valorizar as
gelho da vida plena para todos, sem exclusão.
diferentes manifestações do amor de Deus
na comunidade e no mundo: os serviços e
ministérios, as etnias, as denominações e II. Comentário dos textos
nº- 309

tradições religiosas, os movimentos e orga- bíblicos


nizações sociais, as iniciativas diversas em

favor da vida, da ecologia etc. 1. I leitura (1Rs 8,41-43): A


ano 57

grandeza do nome de Deus


O roteiro de CORPUS CHRISTI (26 de maio), pode ser

acessado no site da Vida Pastoral: www.vidapastoral. Esta pequena oração de Salomão situa-se
Vida Pastoral

com.br.
no contexto da festa da Dedicação do Templo

50
de Jerusalém. Lendo todo o capítulo 8 de 1 -se em suas concepções de pureza e impureza,
Reis, percebe-se que a Arca da Aliança, que mantendo o povo sob o jugo de um emara-
acompanhou o povo de Israel desde a sua sa- nhado de leis.
ída da escravidão no Egito, é agora transpor- A prática de Jesus, porém, não corres-
tada para dentro do templo num cerimonial ponde à doutrina disseminada pelos douto-
de grande pompa. Salomão, além de rei, res da lei. Enquanto estes consideram os
exerce a função de sacerdote. Declara que pobres e estrangeiros como impuros e ex-
edificou uma casa para residência eterna de cluídos do povo santo de Deus, Jesus pro-
Deus (8,13), cumprindo-se assim a promessa move a vida sem exclusão, como se constata
feita ao seu pai Davi. Em sua oração, o rei no relato evangélico deste domingo. Um
Salomão exalta o templo como o centro gra- centurião romano dirige-se a Jesus, cheio de
vitacional de todos os povos. Apesar de con- confiança, para fazer-lhe um pedido a favor
fessar que nem “os céus dos céus podem con- de um servo. Os centuriões normalmente
ter Deus” (8,27), é para o templo de Jerusa- não eram bem-vistos pelos judeus. Repre-
lém que os estrangeiros poderão acorrer para sentavam a opressão que o império romano
reconhecer “a grandeza do vosso nome, a exercia sobre o povo. Aquele centurião, po-
força de vossa mão e o poder do vosso bra- rém, sabia manter boas relações com a po-
ço”, conforme expressa o texto deste domin- pulação de Cafarnaum e manifestava simpa-
go. Ainda mais, é a partir desse lugar que tia pela própria religião judaica. Não só
“todos os povos da terra conhecerão o vosso construiu uma sinagoga, mas interessou-se
nome, vos temerão como o vosso povo de Is- pelo que diziam de Jesus.
rael e saberão que o vosso nome é invocado Este centurião, segundo o Evangelho de
sobre esta casa que edifiquei”. Lucas, não vai pessoalmente ao encontro de
Sabe-se que a construção do templo e a Jesus. Envia anciãos judeus para fazer-lhe um
centralização do culto em Jerusalém tiveram pedido. Na versão de Marcos (8,5-13), é o
por objetivo legitimar o poder monárquico e, próprio centurião que se dirige a Jesus. Te-
mais tarde, o sistema sacerdotal de pureza que mos a impressão de que Lucas enfatiza a
excluiu a maioria das pessoas da pertença ao consciência de “indignidade” manifestada
povo eleito. No entanto, a teologia do texto pelo centurião diante da grandeza do nome
indica uma abertura universal. A experiência de Jesus que ele ouvira falar.
religiosa de Israel não pode ser exclusivista. O centurião representa aqui o povo gen-
Deve ser irradiada a todos os povos. O Deus tio. A mediação dos anciãos judeus resgata a
da vida pode ser conhecido e invocado por ju- vocação de Israel de promover a inclusão
deus e estrangeiros. Afinal, todos são seus fi- também dos estrangeiros na graça libertado-
lhos e filhas. ra de Deus. A missão de Jesus não se restrin-
ge ao povo de Israel. Ele veio para todos.
2. Evangelho (Lc 7,1-10): Jesus e a
Tem o coração aberto para acolher e valori-
fé de um estrangeiro
zar o testemunho de amor, de humildade,
Deus encarnou-se em Jesus de Nazaré. de respeito e de fé dado por um estrangeiro.
nº- 309

Fez sua morada no meio da humanidade. So- Testemunho de amor porque o centurião
lidarizou-se com as vítimas do sistema religio- manifesta cuidado pela vida de um servo; de

ano 57

so de pureza organizado pela casta sacerdotal humildade porque se sente indigno de ache-
do templo de Jerusalém. Em vez de promover gar-se a Jesus; de respeito porque sabe que

a abertura universalista segundo a vocação um judeu ficaria impuro se entrasse na casa


Vida Pastoral

que Deus dera a Israel, a elite religiosa fechou- de um pagão; e finalmente o testemunho de

51
Roteiros homiléticos

fé porque, a partir de sua própria experiên- tos se deixavam influenciar por esses judai-
cia de obedecer e de dar ordens, reconhece zantes. A autoridade de Paulo, como após-
o poder das palavras. Pelo que ele ouviu fa- tolo e fundador daquelas comunidades cris-
lar de Jesus, tem certeza da eficácia de suas tãs, estava sendo desprestigiada. Ao ser in-
palavras. Jesus impressiona-se com a atitude formado dessas coisas, Paulo fica muito in-
daquele centurião. Volta-se para o povo e dignado. A indignação é manifestada até
declara: “Em verdade vos digo: nem mesmo mesmo no modo como escreve a carta: não
em Israel encontrei tamanha fé”. começa com a costumeira ação de graças
O texto enfatiza a importância da Palavra nem termina com a bênção. Ele escreve num
de Jesus. As comunidades cristãs, organiza- tom de muita firmeza, gravidade e convic-
das após a morte e a ressurreição de Jesus, ção. Já de início esclarece que seu apostola-
alimentam-se essencialmente da Palavra. do não é por uma decisão humana, mas
“Dize somente uma palavra e meu servo será “por Jesus Cristo e por Deus Pai que o res-
curado”. As comunidades de fé e de amor são suscitou dos mortos”. Portanto, a carta aos
o novo templo, o lugar da presença liberta- Gálatas se reveste de uma profunda serieda-
dora de Jesus. Nelas não pode haver discri- de. Caracteriza-se como forte advertência
minação de pessoas. Judeus e estrangeiros com a intenção de fazer que aquelas comu-
são igualmente portadores da boa notícia da
nidades cristãs retomem o caminho do úni-
vida em plenitude. É missão dos cristãos di-
co Evangelho.
fundir o Evangelho pelo mundo afora. Lucas
A que Evangelho Paulo se refere? No
vai dedicar-se, no livro de Atos dos Apósto-
conjunto da carta, constata-se que se refere
los, a mostrar a trajetória da Palavra “de Jeru-
ao “Evangelho da liberdade”, que se baseia
salém aos confins do mundo” (At 1,8). A Pa-
na certeza de que a salvação é obra gratuita
lavra que liberta não tem fronteiras. Não é
de Deus por Jesus Cristo. Já não tem sentido
um sistema religioso nem os laços de sangue
a obrigatoriedade da circuncisão nem do le-
que determinam a pertença ao Reino de
Deus, e sim a prática da justiça, como vai ex- galismo. Já não têm sentido as barreiras en-
pressar o apóstolo Pedro na casa de outro tre povos. Agora todos fazem parte do corpo
centurião, chamado Cornélio: “De fato, estou de Cristo: “Não há mais diferença entre ju-
compreendendo que Deus não faz discrimi- deu e grego, entre pessoa escrava e livre, en-
nação entre as pessoas. Pelo contrário, ele tre homem e mulher, pois todos vocês são
aceita quem o teme e pratica a justiça, qual- um só em Jesus Cristo” (3,28). Cristo uniu a
quer que seja a nação a que pertença” (At todos numa única família e concedeu a to-
10,34-35). dos a verdadeira liberdade: “É para sermos
livres que Cristo nos libertou. Portanto, fi-
3. II leitura (Gl 1,1-2.6-10): Não há quem firmes e não se submetam de novo ao
dois Evangelhos jugo da escravidão” (5,1).
Paulo, após seu encontro com Jesus res- Para Paulo, é fundamental compreender
suscitado, entregou-se por inteiro à missão e assumir esse Evangelho, que torna as pes-
nº- 309

de evangelizar os povos. Entre os diversos soas maduras, convictas, responsáveis e já


problemas pelos quais ele passou, está o não dependentes de normas externas. É

ano 57

conflito com os chamados “judaizantes”, uma vida pautada segundo o Espírito de


que pregavam a necessidade da circuncisão Deus. Não há outro Evangelho. Caso contrá-

e do cumprimento de outras leis judaicas rio, coloca-se a perder o significado da vida,


Vida Pastoral

aos cristãos provindos do paganismo. Mui- da morte e da ressurreição de Jesus Cristo.

52
III. Pistas para reflexão 10º Domingo do tempo comum
Deus revelou-se na história do povo de 5 de junho

Palavras e gestos
Israel como aquele que liberta os oprimi-
dos de todo tipo de escravidão. A aliança
que fez com o seu povo visou abranger
toda a humanidade. A vocação de Israel é
irradiar o nome do Deus da vida e da li-
que ressuscitam
bertação para todos os povos. Apesar das
tentativas de centralização e de exclusivi- I. Introdução geral
dade da eleição do povo de Israel, Deus Deus se dá a conhecer como aquele que
sempre manifestou, por meio dos movi- caminha com seu povo e o liberta de toda
mentos proféticos e sapienciais, o seu pla- opressão. Demonstra sua ternura e misericór-
no de salvação universal. Enviou o seu Fi- dia especialmente às pessoas que se encon-
lho, Jesus Cristo, cuja proposta de Reino tram em situação de sofrimento. Escolhe e
de Deus visa à inclusão de todos na vida envia os profetas, que, inseridos no lugar so-
em plenitude. O episódio do Evangelho cial dos excluídos, abrem caminhos novos,
deste domingo – Jesus e o centurião roma- suscitando-lhes esperança e vida. O profeta é
no – caracteriza-se como um apelo a todos o portador da Palavra de Deus, capaz de
os discípulos de Jesus, no sentido de abrir- transformar radicalmente a realidade pessoal
-se ao “outro”, acolhendo e valorizando e social (I leitura). Deus envia o seu próprio
sua fé. Outro dado importante é a autori- Filho, que, junto às pessoas marginalizadas e
dade da Palavra de Jesus: o que ele diz exauridas, lhes devolve a vida e a garantia de
acontece. A Palavra de Deus é viva e efi- um futuro feliz. Sua prática revela o caminho
caz! Jesus rompe com as barreiras impos- alternativo para uma sociedade justa (Evan-
tas pelo sistema do templo, supera o lega- gelho). Jesus escolhe e envia discípulos mis-
lismo, ensina com autoridade e oferece sionários, como Paulo, para anunciar a todos
seu amor e salvação a todos. os povos a Palavra que liberta e salva. É a
A salvação gratuita de Deus a todos os proposta de vida plena, revelada por Jesus (II
povos – ofertada por meio da vida, morte e leitura). Os discípulos e discípulas de Jesus,
ressurreição de Jesus – foi assumida pelo hoje, estão convidados a acolher a Palavra de
apóstolo Paulo como “único Evangelho”. Deus como boa notícia e torná-la boa realida-
O seu testemunho de total entrega por essa de por meio de gestos concretos de compai-
causa de inclusão de todos os povos no xão e solidariedade.
plano de salvação de Deus ilumina e forta-
lece a nossa missão hoje como discípulos
II. Comentário dos textos
missionários de Jesus.
Pode-se ligar a Palavra de Deus da li-
bíblicos
turgia deste domingo com a Exortação
nº- 309

1. I leitura (1Rs 17,17-24):


Apostólica do papa Francisco Evangelii
A profecia vence a morte
Gaudium, especialmente o n. 20, no qual o

ano 57

papa se refere à Igreja em constante estado A missão profética de Elias revela-se


de “saída”. Jesus envia seus discípulos e como fundamento de todo o movimento

discípulas em missão, a se fazerem presen- profético ao longo da Bíblia. Ele é conside-


Vida Pastoral

tes em cenários e desafios sempre novos. rado o pai dos profetas. Sua prática serve,

53
Roteiros homiléticos

ademais, de inspiração para a prática liber- ca ao que já se encontra em situação de morte


tadora de Jesus. são atitudes que revelam o método de restau-
A atuação do profeta Elias se dá no Reino ração, transformação e ressurreição. Na verda-
do Norte, durante o reinado de Acab e de de, a profecia é a manifestação da presença e
Ocozias, entre os anos de 874 e 852 a.C. da misericórdia de Deus, que age por meio do
Elias demonstra profundo zelo pela vontade amor afetivo e efetivo. É boa notícia para os
de Iahweh, de quem se põe totalmente a ser- pobres. É o projeto de Deus sendo acolhido a
viço, conforme ele mesmo declara no início partir da casa. Constitui fidelidade à aliança
de sua missão: “Pela vida de Iahweh, a quem sagrada. Os protagonistas são as próprias pes-
sirvo...” (1Rs 17,1). Faz jus, assim, ao signifi- soas excluídas do sistema oficial. Nelas reside
cado de seu nome: “Meu Deus é Iahweh”. a força e a criatividade divinas, capazes de mu-
Suas ações, de forma predominante, são danças radicais. A palavra profética infunde
desdobramento do compromisso com a solu- nelas essa consciência.
ção dos problemas que afetam o cotidiano
das pessoas necessitadas. A necessidade é o
2. Evangelho (Lc 7,11-17): Jesus
critério-chave que faz o profeta aproximar-se
liberta das garras da morte
e pôr-se a serviço de quem precisa de ajuda. O relato do episódio da ressurreição do fi-
Essas pessoas são vítimas de um sistema mo- lho da viúva de Naim encontra-se somente no
nárquico que produz alto índice de exclusão Evangelho de Lucas. Tem estreita ligação com o
social. O desenvolvimento econômico se dá episódio de Elias: ambos tratam da morte do
com a exploração do povo. O fortalecimento filho único, cuja mãe é viúva. Os filhos únicos
político do Estado privilegia um grupo que representam a garantia de futuro para as famí-
concentra poder e dinheiro. A expropriação lias. A situação de morte não pode deixar aco-
dos bens (cf. 1Rs 21) e o abuso da mão de modadas as pessoas que servem a Deus.
obra dos pequenos causam empobrecimen- Nos Evangelhos, os sinais de cura e liber-
to, miséria, fome e morte. tação, em sua maior parte, são realizados por
A viúva de Sarepta e seu filho sintetizam a Jesus em atendimento à súplica dos necessi-
situação da maioria do povo, cujo futuro per- tados. No caso da viúva de Naim, porém, é
manece fechado. As viúvas, os órfãos e os es- Jesus mesmo que toma a iniciativa de ir ao
trangeiros (Sarepta não faz parte do território seu encontro. “Seus discípulos e numerosa
de Israel) representam, na Bíblia, as categorias multidão caminhavam com ele.”
de necessitados. Deus não os quer abandona- Naim é uma cidade amuralhada. Do seu
dos nem quer a morte de ninguém. Elias põe- interior para a porta vem uma procissão,
-se a serviço de Deus, acolhe o clamor das pes- acompanhando o enterro do filho único de
soas que sofrem, vai ao seu encontro para de- uma viúva. “Grande multidão da cidade esta-
fender e promover o direito à vida digna. va com ela.” Duas procissões em sentido con-
O profeta se hospeda na casa da viúva po- trário encontram-se na “porta da cidade”. Je-
bre e estrangeira: a profecia é acolhida pelas sus vê a situação em que se encontra aquela
pessoas empobrecidas e elas se tornam o lugar mãe e fica comovido, isto é, “ele é movido em
nº- 309

teológico-social onde são gestados novos ca- suas entranhas”, conforme o verbo grego
minhos. Essa gente marginalizada é capaz de (splanchnizomai). É o mesmo sentimento de

ano 57

solidariedade e partilha. A proximidade com amor e compaixão que leva o samaritano a


as pessoas sofredoras, o anúncio da Palavra socorrer a pessoa espancada e abandonada à

que liberta, a oração confiante ao Deus da beira do caminho (10,33); é também o mes-
Vida Pastoral

vida, a insistência em passar a energia proféti- mo sentimento que leva o pai do filho pródi-

54
go a ir correndo ao seu encontro, acolhê-lo ciência de que Deus o escolheu desde o seio
nos braços e beijá-lo (15,20). materno e o chamou por sua graça. Em seu
Jesus, movido pela compaixão, dirige-se itinerário pessoal, sempre com maior clareza
à mulher com palavras de consolação e espe- e profundidade, percebe que a salvação ofe-
rança: “Não chores”. Não são palavras de me- recida por Deus se fundamenta na total gra-
ras condolências. Ele se aproxima, toca no tuidade. A sua experiência pessoal o compro-
esquife e pede que o jovem se levante. Perce- va: ele foi agraciado por Deus quando ainda
be-se, aqui também, como na narrativa de era pecador e confiava nas seguranças huma-
Elias, alguns verbos-chave reveladores da nas. Com essa nova compreensão, Paulo se
metodologia que proporciona a transforma- desvencilha de seu apego à raça de Israel e
ção de uma realidade de morte. lança-se ao anúncio do Evangelho da salva-
As pessoas que testemunham o fato glori- ção a todos os povos. Encontra, nessa mis-
ficam a Deus, reconhecem Jesus como profe- são, forte oposição, especialmente da parte
ta e exclamam: “Deus visitou o seu povo”. É de alguns pregadores judeu-cristãos. É o que
o eco do cântico de Zacarias, que bendiz a se depreende ao ler o texto imediatamente
Deus “porque visitou e redimiu o seu povo e anterior ao da liturgia de hoje (cf. Gl 1,6-10).
suscitou-nos uma força de salvação” (1,68s). Esses pregadores, também conhecidos
Não é por acaso que Lucas situa o féretro vin- como “judaizantes”, procuravam convencer os
do da cidade, lugar onde o poder se articula gentio-cristãos a aderir a certas normas judai-
e se organiza. É como um seio que, ao invés cas, especialmente à circuncisão. Certamente
de gerar a vida, provoca a morte. Jesus, força diziam que o Evangelho pregado por Paulo
de salvação, vem com outro projeto que faz não era verdadeiro. Vários cristãos deixam-se
parar essa procissão de gente sem vitalidade. influenciar por tais pregadores. Paulo põe-se
Junto com a vida, também restitui ao jovem a veementemente contra a doutrina desses mis-
palavra. O povo, assim, é chamado a resgatar sionários e alerta as comunidades da Galácia
o direito à palavra e à vida e tornar-se prota- para não se deixarem enganar (cf. Gl 1,6-10).
gonista de uma nova sociedade. Ao enfatizar o seu próprio testemunho de
conversão, Paulo quer reafirmar a ação da
3. II leitura (Gl 1,11-19): A graça da graça de Deus, revelada em Jesus Cristo. A
conversão salvação por ele trazida estende-se a todos os
Na carta aos Gálatas, Paulo aprofunda, es- povos sem discriminação. Este é o Evangelho
pecialmente, o Evangelho da liberdade: “Foi da liberdade a que todos podem ter acesso
para sermos livres que Cristo nos libertou” (Gl pela fé. É dom de Deus!
5,1). A primeira dimensão dessa liberdade se
verifica na própria pessoa. Nesse sentido, Pau-
III. Pistas para reflexão
lo dá o seu próprio testemunho. Quando ar-
raigado no judaísmo, era ferrenho perseguidor Deus, desde a criação do mundo, estabele-
das comunidades cristãs com o intuito de ceu um plano de amor e salvação para toda a
destruí-las. Como judeu, seguia zelosamente humanidade. Firmou uma aliança com o seu
nº- 309

as tradições de Israel. Conhecia muito bem as povo, protegendo-o e amando-o com fidelida-
leis e se esforçava para praticá-las, pois apren- de. O egoísmo humano, porém, quebra a alian-

ano 57

dera que a salvação de Deus seria concedida ça sagrada e organiza sistemas que excluem e
por meio da observância legalista. matam. Deus, no entanto, não abandona o seu
povo. Chama pessoas, como o profeta Elias, ca-

Com a conversão, porém, muda radical-


Vida Pastoral

mente a sua visão teológica. Adquire a cons- pazes de ouvir o grito dos necessitados e com-

55
Roteiros homiléticos

prometer-se com sua libertação. Deus envia o peito desse assunto vai se aperfeiçoando ao
seu próprio Filho, Jesus, que assume o progra- longo da tradição judaico-cristã. Deus se revela
ma de anunciar a boa notícia aos pobres, pro- como misericórdia. Ele perdoa ao pecador ar-
clamar a liberdade aos presos, recuperar a vista rependido por maior que possa ser o pecado
aos cegos e libertar as pessoas oprimidas (cf. Lc por este cometido. O reconhecimento da
4,18s). Tanto o profeta Elias como Jesus de Na- transgressão à lei divina e o arrependimento
zaré revelam o caminho que deve ser seguido sincero demonstram a determinação de deixar-
por todas as pessoas que amam a Deus. -se conduzir pela vontade de Deus, manifesta-
O desafio de uma sociedade justa e fra- da nas palavras do profeta. É o que podemos
terna permanece atual. Os discípulos missio- constatar na atitude do rei Davi perante a de-
nários do Senhor não podem acomodar-se. O núncia do profeta Natã (I leitura). Jesus exerce
testemunho de Paulo nos alerta para a neces- o poder de perdoar pecados, mesmo contesta-
sidade do desapego das seguranças baseadas do pelos adversários. Ele é o rosto misericor-
no poder, normalmente legitimado por siste- dioso de Deus presente no meio da humanida-
mas religiosos. A liberdade em Cristo nos de pecadora. O perdão de Jesus revela que sua
leva a acolher a graça da salvação que ele nos prioridade é a pessoa humana, chamada a ser
trouxe e, por isso mesmo, a amar gratuita- livre e íntegra (Evangelho). O perdão é a mani-
mente os irmãos. “O povo pobre das perife- festação da justiça de Deus baseada não nos
rias urbanas ou do campo necessita sentir a méritos humanos, mas na grandeza de seu
proximidade da Igreja, seja no socorro de amor. Todos somos pecadores e necessitados
suas necessidades mais urgentes, seja na de- da intervenção divina para nos salvar. Jesus
fesa de seus direitos e na promoção comum Cristo, pela sua morte, redimiu-nos dos peca-
de uma sociedade fundamentada na justiça e dos e nos resgatou para a vida. Pela fé acolhe-
na paz. Os pobres são os destinatários privi- mos essa graça e nos deixamos moldar por Je-
legiados do Evangelho” (DAp 550). sus Cristo (II leitura). O perdão que Deus nos
Pode-se fazer a memória dos profetas e concede gratuitamente nos torna capazes de
profetisas de nossos tempos. Pode-se tam- amar como ele nos ama, superando todo ego-
bém levantar as situações de morte que nos ísmo e construindo relações justas e fraternas.
desafiam hoje e valorizar as diversas ações
que estão sendo desenvolvidas em favor da
vida, estimulando a participação e a criativi-
II. Comentário dos textos
dade para novas iniciativas. bíblicos

1. I leitura (2Sm 12,7-10.13): Deus


11º Domingo do tempo comum perdoa ao pecador arrependido
12 de junho
Davi foi ungido para governar o povo de

O Perdão dos Israel. Deus o abençoou e o defendeu das ar-


madilhas dos inimigos. Como escolhido de
nº- 309

pecados: vida nova Iahweh, deveria agir exemplarmente e seguir


os mandamentos. No ápice de seu poder, po-

ano 57

rém, Davi esquece-se de servir a Deus e abne-


I. Introdução geral
gar-se em favor do povo. Enquanto seus sol-

Os textos deste domingo tratam do tema dados estão em batalha, Davi permanece
Vida Pastoral

do perdão dos pecados. A compreensão a res- tranquilamente em seu palácio, usufruindo

56
de uma vida mansa e descomprometida. Dei- caminho que proporciona a inclusão de to-
xa-se conduzir pela luxúria e comete a pri- das as pessoas na proposta de amor e salva-
meira violação grave: adultério com Betsa- ção revelada em Jesus. A casa de Simão, o
beia, a mulher de Urias, general de seu exér- fariseu, serve de cenário para a mensagem a
cito. Ao constatar que ela engravidara, o rei ser assimilada e jamais esquecida pelas co-
deixa-se conduzir pelo orgulho e comete a munidades cristãs. O fariseu convida Jesus
segunda violação grave: assassinato. Manda para comer com ele, em sua casa. Casa e co-
que posicionem Urias no lugar mais perigoso mida são dois elementos que apontam para o
numa guerra contra os amonitas, a fim de projeto de “comunhão de mesa”. As comuni-
que fosse ferido e morresse. O desrespeito a dades primitivas reuniam-se nas casas para
esses dois mandamentos da Lei de Deus lhe atualizar a memória de Jesus, a oração, a par-
valeria a morte (cf. Lv 20,10 e 24,17). tilha da comida e a ceia.
Davi parece não dar-se conta da gravida- Sentar-se à mesma mesa representava a
de de seus pecados. O poder obscureceu a determinação de relacionar-se na igualdade e
sua consciência. Deus, porém, que perscruta na fraternidade, sem discriminação de raça,
os corações, envia o profeta Natã, que, ao sexo ou classe social, expressando as mesmas
apresentar-se ao rei, lhe conta uma história convicções religiosas. Esse projeto, porém,
de dois homens: um rico que retira de um não foi tão tranquilo. A dificuldade maior se
pobre o único bem que este possuía (cf. 2Sm deu na relação entre cristãos de origem judai-
12,1-4). Davi, na sua pretensão de justo, ca e cristãos gentios. Além disso, na época da
mostra-se indignado contra tal explorador. redação do Evangelho de Lucas, percebe-se
Natã, então, aponta o culpado: “Esse homem forte tendência de discriminar as mulheres,
és tu!” Lembra-lhe toda a trajetória da sua abafando o seu protagonismo na animação
vida e como Deus lhe manifestou o seu amor. das comunidades cristãs.
Os pecados de Davi não consistiram numa O fato de Jesus aceitar o convite do fari-
traição somente a Urias, mas a todo o povo seu demonstra que o mestre não faz acepção
de Israel e ao próprio Deus. de pessoas. Sente-se livre em qualquer am-
A intervenção do profeta Natã acorda a biente. É portador do amor de Deus que se
consciência adormecida de Davi, que reco- estende a todos, sem discriminação. Na mesa
nhece seu pecado e se arrepende com sinceri- há outros convivas. Entre eles dificilmente
dade. Deus lhe perdoa e o livra da morte. Po- estariam também mulheres. Decerto seriam
rém não o livra das consequências provenien- os amigos de Simão, pertencentes ao mesmo
tes de suas faltas. A responsabilidade dos atos partido farisaico. Estariam, quem sabe, tam-
deve ser assumida. O perdão, de todo modo, bém os apóstolos?
proporciona a nova oportunidade de entrar na A narrativa apresenta uma mulher que
dinâmica do amor de Deus. Davi pode voltar a aparece de repente e se coloca aos pés de
governar com justiça, respeitando a Lei de Jesus. Ela é da cidade, sem nome e conheci-
Deus e o direito de todas as pessoas à vida dig- da como pecadora. Trouxe um frasco de
na. O perdão reconduz a pessoa arrependida perfume precioso e, entre lágrimas, unge os
nº- 309

ao caminho da vontade divina. pés de Jesus, beija-os e enxuga-os com os


cabelos. Os detalhes da ação da mulher re-

2. Evangelho (Lc 7,36-8,3): Jesus, o


ano 57

velam profundo sentimento de amor e grati-


rosto misericordioso de Deus
dão. Simão, diante do que está vendo, não

O Evangelho de Lucas aprofunda, de ma- ousa criticar abertamente a atitude de Jesus,


Vida Pastoral

neira especial, o tema da misericórdia. É o mas, em seu coração, põe em dúvida a sua

57
Roteiros homiléticos

qualidade de profeta, pois está acolhendo tuito de Deus. Ele sabe o que diz: foi fariseu
uma pecadora. praticante e, agora, após ser encontrado por
A parábola que Jesus conta tem por finali- Jesus, percebe as coisas de forma totalmente
dade desmascarar a atitude de superioridade e diferente. A cruz de Jesus, para Paulo, é a
arrogância da parte dos que se consideravam chave por excelência que permite abrir a
justos diante de Deus. Tem endereço certo. A mente e o coração para a verdadeira compre-
concepção farisaica de justiça divina relacio- ensão do desígnio divino. Está plenamente
nava-se com o cumprimento das leis. O per- convencido de que as obras humanas, a cir-
dão dos pecados e a salvação estariam condi- cuncisão e o cumprimento das leis não ga-
cionados pela observância legalista. Essa segu- rantem a salvação. Se assim fosse, Jesus Cris-
rança que o sistema religioso lhe dava impedia to teria morrido inutilmente. Se ainda depo-
o fariseu de entender e acolher a gratuidade sitamos nossa confiança no poder dos ritos e
do perdão e da salvação. Somente quem deve normas como condicionantes de salvação,
muito, isto é, quem tem consciência profunda então não precisamos de Jesus Cristo.
de seus pecados conseguirá fazer a experiência Mas não! Jesus veio e nos amou de tal ma-
do amor sem limites de Deus. neira que entregou sua vida por nós. Portanto,
A mulher pecadora irrompe, sem pedir na cruz de Jesus, encontra-se o segredo da jus-
permissão, naquele ambiente fechado e ex- tificação. Somos todos pecadores! Na cruz de
cludente. Sua atitude faz abrir os olhos para Jesus podemos morrer também nós para tudo
enxergar a presença de Jesus, o Filho de o que impede o acolhimento da gratuidade do
Deus, que vem trazer o perdão e a paz sem amor de Deus. Nessa entrega confiante pela fé
atrelamento ao sistema legalista do Templo. reside a verdadeira justiça que nos faz viver
Na pessoa e na proposta de Jesus, a mulher se como novas criaturas. A vida iluminada pela fé
sente contemplada. É acolhida como sua dis- no Filho de Deus, que morreu por nós, torna-
cípula; pode comungar da mesma mesa da -nos verdadeiramente livres.
Palavra e do Pão; pode fazer parte da mesma
Igreja, o Corpo de Jesus.
Não é difícil perceber que a narrativa tem III. Pistas para reflexão
uma função de denúncia da exclusão de mu- O tempo em que vivemos prima pela su-
lheres que, com muita probabilidade, está em perficialidade das relações entre nós e com
processo na época da redação do Evangelho, Deus. Paramos e meditamos muito pouco.
pelo final do primeiro século. O texto exerce Damos pouca atenção à Palavra de Deus. Re-
também a função de atualização da proposta zamos apressadamente. Priorizamos celebra-
de Jesus, que inclui no seu seguimento tanto ções triunfalistas. Vivemos dispersos e não
os homens – os Doze – como as mulheres: encontramos o essencial.
Maria Madalena, Joana, Susana e várias outras. São Paulo descobriu que somente Deus
Diz delas o que não diz dos Doze: serviam a nos realiza profundamente. Somente sua gra-
Jesus com seus bens (cf. 8,1-3). ça nos transforma. Ela nos foi dada plena-
mente na morte de Jesus. A cruz tornou-se a
nº- 309

3. II leitura (Gl 2,16.19-21): A vida


chave para entendermos o amor infinito de
nova em Cristo
Deus. Nele podemos apostar com toda a con-

ano 57

Paulo, com base em sua experiência pes- fiança, entregando-lhe a nossa vida inteira.
soal, procura anunciar uma de suas desco- Jesus é nosso mestre. A seus pés nos lança-

bertas mais profundas: a salvação não pro- mos com tudo o que somos e temos, como
Vida Pastoral

vém da observância da Lei, mas do amor gra- fez a mulher pecadora na casa do fariseu.

58
Como seus discípulos missionários, assumi- ficado do seguimento de Jesus. Não basta
mos sua cruz como caminho de vida nova. crer que ele é o Messias. Jesus assume o cami-
A misericórdia divina, se permitirmos, nho da cruz, e não a postura triunfalista; so-
pode penetrar o mais profundo do nosso ser lidariza-se com a dor da humanidade que
e nos transformar em criaturas novas. Se, no anseia por libertação (Evangelho). Na histó-
passado, cometemos muitas e graves faltas, ria de Israel, o sofrimento foi sendo entendi-
podemos, no presente, acolher o perdão de do como processo de purificação do pecado e
Deus e entrar numa nova dinâmica de vida. de encontro com o verdadeiro Deus que ouve
O rei Davi é um exemplo nesse sentido. Ne- a súplica do povo em crise (I leitura). Como
cessitamos radicalmente do perdão que nos filhos e filhas de Deus, somos chamados à
liberta e nos devolve a integridade. Uma pes- autêntica liberdade, deixando-nos guiar pelo
soa reconciliada com Deus sente-se inteira e seu Espírito. Restabelece-se a dignidade e a
feliz. Sente-se fortalecida para irradiar esse igualdade entre todos, superando as barreiras
amor, exercitando o perdão sincero e profun- de raça, gênero e classe social (II leitura). São
do a partir de si mesma e de sua casa. importantes indicações para todas as pessoas
Pode-se incentivar os gestos de perdão de boa vontade que desejam viver uma vida
e reconciliação na vida do casal, entre pais e nova, com renovado entusiasmo e realismo
filhos, vizinhos, Igrejas, religiões, povos. Po-
histórico.
de-se também valorizar o sacramento da pe-
nitência e da reconciliação e oferecer mo-
mentos celebrativos especiais para a sua ad- II. Comentário dos textos
ministração. bíblicos

12º Domingo do tempo comum 1. I leitura (Zc 12,10-11; 13,1):


Deus ouve a súplica do povo
19 de junho
Os estudiosos distinguem, no livro de Za-
Jesus: fé carias, dois blocos distintos: o primeiro (Zc
1-8) teria sido escrito ao redor do ano 520
e seguimento a.C., duas décadas após o exílio da Babilônia.
Nesse bloco, os autores apontam os pecados
do povo como causadores do exílio. Deus, po-
I. Introdução geral rém, concede o perdão e defende os interesses
O Filho de Deus se fez um de nós. Reve- dos repatriados. Jerusalém e o Templo (que
lou o rosto misericordioso do Pai. Formou está sendo reconstruído) são projetados como
uma comunidade de discípulos. Ensinou- fonte de bênçãos e de um futuro messiânico
-lhes o caminho do Reino de Deus. Junto às de paz e de alegria para o povo.
pessoas excluídas, manifestou-lhes o poder O segundo bloco (Zc 9-14), escrito em
de Deus que liberta, cura, perdoa, sacia... Je- torno do final do século IV a.C. e, portanto,
nº- 309

sus conta com os seus seguidores. Envia-os mais recente do que o primeiro, apresenta
em missão para continuarem a sua obra. A um conteúdo centrado no messianismo. Je-

ano 57

compreensão a respeito de Jesus dá-se, po- rusalém – a casa de Davi – é considerada


rém, gradativamente. Predomina nos discí- como centro do mundo; é o lugar onde Deus

pulos a ideia triunfalista de Messias. Precisam mostra sua ternura e proteção ao povo “trans-
Vida Pastoral

ainda tomar consciência do verdadeiro signi- passado” pelo sofrimento, causado especial-

59
Roteiros homiléticos

mente pelas dominações externas e por seus va essa concepção para Pedro, o representan-
tentáculos internos. Desde a invasão babilô- te dos discípulos: “Tu és o Messias de Deus”.
nica em 587 a.C., quando a cidade e o tem- Imediatamente Jesus os proíbe severa-
plo de Jerusalém foram arrasados, muita gen- mente de espalhar essa afirmação para ou-
te foi morta e muitos foram expatriados de tras pessoas. Ele conhece os seus seguido-
sua terra. A idolatria é reconhecida como a res e sabe que estão ainda fanatizados pela
causa desses acontecimentos lamentáveis. ideologia dominante. Podem dar azo ao
Deus mostra-se extremamente solícito seu fanatismo e comprometer a missão de
com o clamor do povo que chora e se lamen- Jesus. Eles sabem que Jesus é o Messias,
ta, reconhecendo seus pecados. Deus mesmo mas ainda não compreendem que tipo de
vai purificá-lo, enviando-lhe um “espírito de Messias é Jesus.
graça e de súplica” para que todos voltem o Segundo Lucas, Jesus vai dedicar uma
olhar para ele. Espírito de graça porque Deus caminhada inteira (novo êxodo), da Galileia
será reconhecido como aquele que ama na a Jerusalém, ao empenho especial de educar
gratuidade, apesar das infidelidades do povo; os discípulos na verdadeira compreensão do
espírito de súplica porque o povo, em situa- Messias. O início dessa caminhada se dá em
ção de extrema necessidade, se volta para 9,51, quando Jesus “toma a firme decisão de
Deus com fé e confiança, invocando sua aju- partir para Jerusalém”. Antes disso, ele faz
da e proteção. dois anúncios de sua paixão e morte. No
Jerusalém, com a vida nova adquirida primeiro, logo após a declaração teórica,
por intervenção divina, transforma-se em por parte dos discípulos, de que ele é o Mes-
fonte irradiadora de purificação e bênção. sias: “É necessário que o Filho do homem
Podemos aqui lembrar a leitura que a comu- sofra muito, seja rejeitado pelos anciãos, pe-
nidade joanina vai fazer a respeito de Jesus, los chefes dos sacerdotes e escribas, seja
morto em Jerusalém, o “transpassado” para o morto e ressuscite ao terceiro dia” (9,22).
qual todos voltarão seus olhos (Jo 19,37). O No segundo anúncio (9,44-45), Jesus pre-
Messias assassinado na cruz torna-se a fonte para os discípulos para o destino do Mes-
de todas as bênçãos para a humanidade. sias, alertando-os: “Abram bem os ouvidos...
O Filho do homem será entregue às mãos
2. Evangelho (Lc 9,18-24): que tipo
dos homens”. O terceiro anúncio (18,31-
de Messias é Jesus?
34), Jesus o fará em plena caminhada, pró-
A compreensão do messianismo de Jesus ximo a Jerusalém: “De fato, ele será entregue
por parte de seus discípulos foi acontecendo aos gentios, escarnecido, ultrajado, coberto
lentamente. Imersos na ideologia religiosa do de escarros, depois de açoitá-lo, eles o mata-
Templo, esperavam um Messias com poder rão...”. Apesar da tríplice insistência, os dis-
de monarca, da linhagem de Davi, capaz de cípulos “não entenderam nada”.
libertar o povo da dominação romana. A cruz e a morte estão intimamente liga-
Portanto, se essa era a mentalidade domi- das ao messianismo de Jesus. A concepção
nante a respeito do Messias, ela deveria cau- triunfalista cai por terra: “Se alguém quer vir
nº- 309

sar grandes problemas para os políticos da após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua
época. De fato, vários líderes messiânicos fo- cruz cada dia e siga-me”. A escolha de Jesus é

ano 57

ram simplesmente exterminados antes de Je- o caminho do “servo sofredor”, inspirado no


sus. Nenhuma das respostas dadas a Jesus Segundo Isaías (Is 40-55). Decorre daí que o

sobre o que as multidões diziam a seu respei- seguimento de Jesus se concretiza por meio
Vida Pastoral

to contempla a ideia de Messias. Lucas reser- de rupturas e opções: rupturas com toda for-

60
ma de egoísmo e poder, com toda preocupa- que Deus fez a Abraão de uma descendência
ção de buscar o brilho próprio dos que domi- numerosa e feliz.
nam; opções pelo serviço humilde e abnega-
do em vista de uma sociedade de amor, de
justiça e de paz. De fato, Jesus não anuncia a
III. Pistas para reflexão
sua morte como fato definitivo. A ressurrei- Temos a graça de conhecer a Jesus por
ção é o destino dos que dão a vida pelo Rei- meio do testemunho dos discípulos que o co-
no. O êxodo pelo qual Jesus tem de passar, nheceram pessoalmente e também das comu-
incluindo a própria morte, vai possibilitar a nidades cristãs primitivas. Constatamos que o
entrada na terra da liberdade e da vida plena, seguimento de Jesus se dá num processo de
onde já não haverá egoísmo nem dominação compreensão gradativo. Assim como aconte-
de nenhuma espécie. ceu com os seus discípulos, todos nós somos
contaminados com falsas ideologias que vão
3. II leitura (Gl 3,26-29): Revestidos introduzindo pseudovalores, segundo os inte-
de Cristo resses dos que dominam a sociedade.
Nesse texto, Paulo continua explicando Desde o âmbito familiar, os pais tendem
às comunidades cristãs a importância da fé a educar os filhos para serem os melhores,
em Jesus Cristo como caminho de superação os mais fortes, os mais espertos. Ao entrar
de todo legalismo. A Lei funcionou como na escola, a maior preocupação é vencer na
“pedagogo” enquanto ainda estávamos num vida, entendendo isso como ter dinheiro,
estágio imaturo. Com seus preceitos e proibi- fama e poder. Num mundo competitivo
ções, foi útil para nos ajudar a descobrir o como o nosso, há pouco lugar para o serviço
que pode nos levar à maldição e o que atrai a humilde e para uma política que vise à in-
bênção. O problema é que a Lei nos tornou clusão de todas as pessoas nas condições de
seus dependentes e até nos escravizou, a uma vida digna. É grande ainda a discrimi-
ponto de condicionar a salvação ao cumpri- nação entre pessoas devido à sua condição
mento de inúmeras normas. social, à cor da pele ou ao sexo. Precisamos
Com o advento de Jesus, é-nos dado o realizar um “novo êxodo” rumo a uma terra
tempo da maturidade. Então, podemos sair sem males, onde as diferenças sejam respei-
da dependência da Lei e abraçar a autêntica tadas e acolhidas; onde as relações se funda-
liberdade de filhos e filhas de Deus. Não se mentem na dignidade intrínseca de cada ser
pode voltar atrás, sob o risco de anular a gra- humano; onde a liberdade se concretize em
ça de Deus. ações a favor da vida sem exclusão.
Pela fé em Jesus Cristo, tornamo-nos se- Como filhos e filhas de Deus, podemos
melhantes a ele. Pelo batismo nos revestimos desenvolver sempre melhor a potencialidade
de Jesus, mergulhamos na sua própria vida. divina que está em nós; como mulheres e ho-
A Lei fazia distinção de pessoas e legitimava a mens, podemos exercitar cotidianamente o
exclusão de mulheres, pobres e estrangeiros. serviço mútuo, dando-nos as mãos para
Agora nos tornamos uma unidade na diversi- construir o Reino de Deus. Jesus nos ensinou
nº- 309

dade. Portanto, “não há mais diferença entre o caminho da vida plena, caracterizado pelas
judeu e grego, entre escravo e livre, entre ho- rupturas com o poder que domina e pelas

ano 57

mem e mulher”. Ficam assim eliminadas as opções de profunda solidariedade com o


barreiras que nos separavam, seja de raça, de povo transpassado pelo sofrimento. Somos

gênero ou de classe social. Pertencendo, as- convidados a seguir a Jesus, o Messias. Lem-
Vida Pastoral

sim, a Cristo, somos herdeiros da promessa bremos, porém, que, em seu messianismo,

61
Roteiros homiléticos

ele não ambicionou fama e triunfalismo, mas toda espécie de mal. Em que pese a missão
escolheu livremente ser fiel ao Pai, sendo ser- recebida de Jesus, os discípulos manifestam
vo de todos até a morte. dificuldades para entendê-lo e aderir plena-
Podem-se levantar algumas situações mente ao seu seguimento. O apego a seguran-
evidentes de discriminação e de exclusão na ças pessoais impede a liberdade necessária
família e na sociedade. Ressaltar as atitudes de para seguir verdadeiramente a Jesus (Evange-
serviço humilde e anônimo de muitas pessoas lho). Dentro de nós carregamos a tendência
normalmente esquecidas e desvalorizadas. Es- para os instintos egoístas. Podemos vencê-los
clarecer quais as rupturas e as opções a serem se nos deixamos guiar pelo Espírito Santo. Ele
feitas pelos seguidores e seguidoras de Jesus. nos torna livres em Cristo para uma vida nova
na graça de Deus (II leitura). A vocação, por-
13º Domingo do tempo comum tanto, é convite de Deus para a plena realiza-
ção humana, somente possível se nos desven-
26 de junho
cilharmos de tudo o que impede a ação amo-

Vocação: liberdade rosa de Deus em cada um de nós e na huma-


nidade inteira.

e fidelidade II. Comentário dos textos


bíblicos
I. Introdução geral
A Bíblia relata muitos episódios de voca- 1. I leitura (1Rs 19,16b.19-21): A
ções: de Abraão, Moisés, Samuel, dos profetas profecia precisa continuar
e de muitos outros. Por meio dessas pessoas,
O profeta Elias dedicou sua vida à causa
Deus comunica seu plano de amor, estabelece
da justiça divina, em favor das pessoas despro-
aliança com seu povo e ensina o caminho da
tegidas. Seu nome significa “Javé é meu Deus”.
fidelidade. A vocação profética, de maneira es-
pecial, nasce de uma profunda experiência de É portador do projeto do Deus que libertou o
Deus no meio da realidade de sofrimento em povo da escravidão do Egito e lhe deu uma
que o povo está imerso. Elias, considerado o terra “onde corre leite e mel”. Nessa terra, o
pai dos movimentos proféticos, vive junto às povo, organizado em tribos, procurou viver a
vítimas do regime monárquico de Israel, soli- proposta de um poder descentralizado e de
darizando-se com elas. Anuncia a vontade de uma economia baseada na partilha, segundo a
Deus, denuncia as falcatruas dos grandes e re- necessidade das famílias. Tudo mudou com o
aliza sinais de libertação em meio aos peque- regime monárquico. Elias, cuja atuação profé-
ninos e pobres. O profeta é portador do proje- tica se dá ao redor do ano 860 a.C., especial-
to de Deus, o qual precisa ser continuado na mente durante o governo de Acab, levanta a
história. A pessoa cumpre sua missão e passa, bandeira da proposta javista como caminho
mas o projeto de Deus não pode passar. Eis, de restauração do direito e da justiça. Tendo a
nº- 309

então, que surge a vocação do profeta Eliseu (I Javé como o seu Deus, Israel poderia libertar-
leitura). Jesus chama os discípulos para ficar -se da corrupção e mudar a sua história.

ano 57

com ele, ensina-lhes e revela-lhes a vontade do Elias, inspirado por Deus, preocupa-se
Pai, realiza diante deles sinais de libertação no com a continuação de sua missão profética. A

meio do povo necessitado e envia-os para pessoa tem seu tempo histórico. O projeto de
Vida Pastoral

anunciar o Evangelho e libertar as pessoas de Deus, porém, não pode parar. O movimento

62
profético vai continuar agora com Eliseu. A No caminho são descritas três espécies de
narrativa da sua vocação é reveladora. Trans- vocações. Nelas os discípulos devem reco-
mite a intenção subjacente ao texto. nhecer-se. Em cada uma delas, Jesus define
Eliseu é trabalhador da roça. Com 12 jun- quais devem ser as verdadeiras atitudes dos
tas de bois, cultiva a terra juntamente com ou- seus seguidores e seguidoras. O texto é ela-
tros trabalhadores. Ele conduz a última junta. borado de tal modo que situa no centro um
A ligação simbólica com as 12 tribos é prová- chamado feito diretamente por Jesus. A pri-
vel neste relato. Assim como Elias, também meira e a terceira personagens desejam seguir
Eliseu é portador do ideal de uma sociedade a Jesus por iniciativa própria. As três são per-
governada segundo o projeto de Deus. Ao co- sonagens sem nome e, portanto, representa-
locar sobre Eliseu o seu manto, Elias lhe trans- tivas de todas as pessoas discípulas de Jesus.
mite a autoridade profética. Imediatamente Lucas quer enfatizar as exigentes condições
Eliseu deixa sua profissão e se despede de sua para o seguimento.
família. Sacrifica a junta de bois e partilha a A primeira demonstra disposição inco-
carne com seus companheiros, aproveitando a mum: “Eu te seguirei para onde quer que tu
madeira do arado para cozinhá-la. Depois, le- fores”. A expressão faz lembrar as palavras de
vanta-se e segue Elias. Está em plena liberdade Pedro um pouco antes de negar Jesus: “Senhor,
para exercer a missão profética. estou pronto a ir contigo à prisão e à morte”
(22,33). A resposta de Jesus à primeira perso-
2. Evangelho (Lc 9,51-62): Ser livre
nagem alerta para a necessidade de ruptura
para seguir a Jesus
com as seguranças e confortos que impedem a
O texto situa o exato momento em que Je- prontidão permanente. As “tocas” e os “ninhos”
sus toma a firme resolução de ir a Jerusalém. estão ligados à acomodação do poder em suas
Inicia-se o “êxodo” de Jesus, cujo principal ob- instituições. Neste sentido, não é por acaso que
jetivo é educar seus discípulos, abrindo-lhes Jesus vai chamar Herodes de “raposa” (13,32)...
os olhos a respeito das condições e conse­ A terceira personagem também se oferece
quências do seu seguimento. No texto do do- espontaneamente para seguir a Jesus, com a
mingo passado (9,18-24), os discípulos, por condição de despedir-se primeiro do pessoal de
meio de Pedro, haviam declarado a Jesus que sua casa. A expressão grega denota o sentido de
ele era o “Messias de Deus”. Não sabiam, po- desvencilhar-se de uma incumbência. A perso-
rém, o verdadeiro significado dessas palavras. nagem demonstra indecisão, própria de quem
A concepção triunfalista de messianismo pre- tem dificuldades de desapegar-se dos seus ne-
dominava em sua mente. Isso já ficou evidente gócios e de quem ainda está amarrado a laços
pelo tipo de discussão que tiveram logo de- afetivos prejudiciais à liberdade e à autonomia
pois da confissão de Pedro: quem deles seria o necessárias para responder ao chamado divino.
maior? (cf. 9,46-48). Fica evidente também A personagem central é convidada por
pela atitude de Tiago e João diante da hostili- Jesus. Está, porém, ligada às tradições pater-
dade dos samaritanos. Estes são inimigos fer- nas. Jesus pede-lhe que deixe o passado para
renhos dos judeus. Certamente os dois men- entrar na nova dinâmica do reino de Deus.
nº- 309

sageiros que Jesus havia enviado à sua frente Lembra a dificuldade manifestada pelos dis-
deviam ter preparado os ânimos dos samarita- cípulos de desatrelar-se da ideologia judaica.

ano 57

nos. Mas parece que fracassaram. O que disse- Os três tipos de vocações sintetizam as ati-
ram e como fizeram? O fato é que sua missão tudes que devem caracterizar o verdadeiro dis-

não foi eficaz... Jesus repreende a Tiago e João cipulado. A liberdade deve ser radical para que
Vida Pastoral

e dirige-se para outro lugar (cf. Lc 9,51-56). a opção pelo Reino seja feita com inteireza.

63
3. II leitura (Gl 5,1.13-18): a sua vontade. Ele conta conosco para irradiar
Chamados à liberdade o seu plano de amor em atos e palavras. O
profeta Elias é exemplo de disponibilidade e
Um dos problemas sérios que Paulo en- de dedicação ao projeto de Deus. Preocupa-se
frenta em sua missão é a influência dos pre- com a continuidade da missão profética e por
gadores judaizantes, que insistiam na neces- isso, sob a inspiração de Deus, transmite o
sidade de os cristãos cumprirem certas nor- chamado a Eliseu. Como ele, podemos nos
mas judaicas, querendo obrigá-los a circunci- desapegar de todas as coisas que impedem a
dar-se. Diante dessas pregações persistentes, vivência plena da vocação que Deus nos dá.
alguns membros das comunidades ficaram Também o Evangelho de hoje nos alerta
um tanto abalados e cheios de dúvidas. Gera- para a importância de cultivar as condições
vam-se discussões e intrigas entre grupos para seguir Jesus: não proteger-se em “tocas”
com diferentes interpretações. Para Paulo, nem acomodar-se nos “ninhos” dos interes-
está totalmente superada a fase da Lei como ses pessoais e das instituições de poder; liber-
condição para a salvação. O tempo da mino- tar-se das amarras econômicas e afetivas para
ridade passou. Jesus Cristo nos libertou de viver a necessária e saudável autonomia no
todo tipo de escravidão, também a da Lei. compromisso vocacional; romper com as tra-
Assim, todas as pessoas, independentemente dições passadas para abrir-se à novidade de
da raça, recebem o privilégio de pertencer ao Deus na história presente, novidade que se
povo santo de Deus. manifesta por meio de sinais que nos desa-
Há pessoas na comunidade, porém, que fiam ao compromisso em torno de um mun-
interpretam a liberdade como caminho de sa- do de fraternidade e paz.
tisfação de interesses pessoais. Mas não! A li- Jesus deseja que sejamos pessoas prontas
berdade em Jesus Cristo não é pretexto para a superar o individualismo, a acomodação, a
satisfazer os instintos egoístas. Pelo contrá- administração egoísta dos bens, a tendência a
rio, é a qualidade que fundamenta o amor fazer somente o que nos agrada pessoalmen-
mútuo. A pessoa livre em Cristo põe-se intei- te... São Paulo chama essas atitudes de “dese-
ramente a serviço dos outros. jos da carne” ou de “instintos egoístas”. Sem
Paulo, então, contrapõe os instintos ego- perceber, podemos nos tornar escravos de
ístas (ou os “desejos da carne”) às obras que coisas, de convenções, de aspirações que ca-
provêm do Espírito Santo. São duas maneiras racterizam o mundo pós-moderno... Corre-
de viver. Os frutos são diferentes. A vida no mos atrás do que a moda exige, mudamos
Espírito é o jeito característico de quem foi constantemente de pensamento e de rumo,
libertado pela morte e ressurreição de Jesus. sob pretexto de realização pessoal... Há, po-
Assim como Jesus, conduzido pelo Espírito rém, outro jeito de viver: sob a condução e a
Santo, viveu a vontade do Pai, entregando-se força do Espírito Santo. Ele nos torna livres
por inteiro para a vida do mundo, também os para vivermos na simplicidade, na alegria de
cristãos recebem a graça de uma vida nova servir, na capacidade de amar como Jesus nos
que se manifesta no amor-serviço. ensinou...
nº- 309

Podem-se lembrar as diversas voca-


ções existentes na comunidade (e no mun-

III. Pistas para reflexão


ano 57

do), seus serviços específicos e os frutos de-


Todos nós somos chamados por Deus à correntes da doação de tantas pessoas que

vida e à santidade. A cada um Deus se revela respondem com generosidade ao chamado


Vida Pastoral

de maneira original e convoca a viver segundo de Deus...

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