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Reduzindo danos e ampliando a clínica: desafios para a garantia do


acesso universal e confrontos com a internação compulsória1

Tadeu de Paula Souza


Universidade de Campinas, Campinas, SP, Brasil.
Sergio Resende Carvalho
Universidade de Campinas, Campinas, SP, Brasil.

Resumo
Neste trabalho problematizamos o desafio de cumprimento do direito universal ao
acesso em saúde para usuários de álcool e outras drogas no Brasil. Para isso
apresentamos alguns vetores que interferem na produção de saúde para esta população.
Analisar os desafios do campo da saúde nos conduziu à necessidade de compreender
alguns vetores construídos historicamente e ao mesmo tempo nos conduziu à
necessidade de avaliar como estes vetores se atualizam no contemporâneo. Além destes
aspectos cabe ressaltar o trabalho conceitual que propôs uma análise histórica do
conceito de universalidade e dos diferentes sentidos que ele pode assumir.
Palavras Chave: Drogas, Universalidade, Rede de Saúde, Redução de Danos.

Abstract
In this paper we problematize the challenge of fulfilling the right to universal access to
health care services by alcohol and other drugs users in Brazil. To do that, we present
some factors that interfere with the health status of these persons. Analyzing the
challenges in the health field led us to the need to understand how these factors were
historically constructed and at the same time how they are contemporary updated.
Besides these aspects it is worth noting the conceptual work that proposed a historical
analysis of the different meanings that the concept of universality can take on.
Key Words: Drugs, Universality, Health Care Sistem, Harm Reduction.

Resumen
En este trabajo problematizamos el desafío de cumplir el derecho universal al acceso a
la salud para usuarios de alcohol y otras drogas en Brasil a partir de la perspectiva de la
reducción de daños. Para esto, presentamos algunos vectores que interfieren en la
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producción de salud para esta población. Analizar los desafíos del campo de la salud
nos condujo a la necesidad de comprender algunos vectores construídos históricamente
y, al mismo tiempo, la necesidad de evaluar como estos vectores se actualizan en lo
contemporáneo. Además de estos aspectos, cabe destacar el trabajo conceptual que
propuso un análisis histórico del concepto de universalidad y de los diferentes sentidos
que puede asumir.
Palabras clave: Drogas, Universalidad, Red de Salud, Reducción de Daños.

Perspectiva da redução de danos Como afirmam Foucault e


Deleuze (1986):
Uma importante estratégia de
Ora o que os intelectuais descobriram
redução de danos surgiu a partir de
recentemente é que as massas não
iniciativas de troca de seringas,
precisam deles para saber; elas sabem
realizadas por uma associação de perfeitamente, claramente, muito
usuários de drogas (a Junkiebonden) no melhor do que eles; e elas o dizem
início dos anos 80, na Holanda (Bastos, muito bem. Mas existe um sistema de
poder que barra, proíbe, invalida esse
2003). Diante das contaminações de
discurso e esse saber. (pp. 71)
hepatites virais causadas pelo
compartilhamento de seringas entre
Este tipo de relação com as
usuários de drogas injetáveis, grupos de
drogas deveria ficar invisível pelas
usuários passaram a criar estratégias
tecnologias de poder que querem a todo
para se proteger. Trata-se de um
custo associar uso de drogas a desejo de
pequeno grupo que conciliou o desejo
morte, descuido, criminalidade, ruína e
de continuar a usar drogas com a
doença. Como veremos, tecnologias
construção de estratégias de cuidado de
estas agenciadas pela lógica da
si e dos outros. Esta experiência local
abstinência, para a qual o uso de drogas
inaugurou novas possibilidades de se
e o cuidado de si são atitudes
falar sobre as drogas e sobre os usuários
incompatíveis. O que a redução de
de drogas. Usuários que queriam se
danos trouxe a contrapelo deste
cuidar para continuar vivos e usando
paradigma foi a dimensão singular da
drogas iniciaram a construção de um
experiência do uso das drogas,
novo plano discursivo sobre si e suas
evidenciando usuários que desejavam
experiências, antes silenciado e posto na
continuar a usá-las. Ao possibilitar que
invisibilidade.
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os usuários falassem em nome próprio a A partir da mundialização da


redução de danos também tornava epidemia de HIV/AIDS a redução de
legítimas estas experiências. O que danos foi inserida num novo circuito
usuários de drogas dizem, pensam e institucional. A Organização Mundial
sentem em relação ao uso de drogas? E da Saúde (OMS) incluiu as estratégias
o que dizem, pensam, sentem e fazem de Redução de Danos (RD) no
quando desejam continuar a usá-las? repertório de ações de combate a esta
São questões que foram inspiradoras do epidemia. As orientações da OMS e os
movimento da redução de danos e que financiamentos vindos do Banco
constitui uma perspectiva de análise Mundial possibilitaram que em muitos
sobre o fenômeno das drogas. países a redução de danos fosse adotada
No regime de criminalização e como uma das ações de prevenção
condenação moral dos usuários de (WHO, 1993 apud Wodak). O anteparo
drogas, estes, quando convocados a institucional criado pelas políticas
falar, são sempre na condição de mundiais de HIV/AIDS possibilitou que
culpados e arrependidos, sendo o questões como direitos dos usuários
primeiro passo o reconhecimento da passassem a ser pautadas localmente.
doença, e o segundo a busca da cura. Desse modo as questões trazidas pela
São convocados a falar somente na RD a respeito das experiências de
condição de doentes, sejam ex-usuários pessoas que desejam usar drogas,
ou candidatos a ex-usuários. Uma passou a se tornar tema de debate
segunda possibilidade seria falar na político em torno de busca de garantia
condição de réu ou criminoso. Não de direitos humanos.
queremos dizer com isso que os A RD passou a ativar um novo
usuários de drogas estivessem movimento, mesmo que minoritário, de
absolutamente silenciados. Nas defesa pelo direito ao uso de drogas,
pequenas rodas e no intimo da enquanto um problema não só de ordem
privacidade ilícita as trocas de pessoal, mas, sobretudo, como uma
experiências sempre correram soltas. afirmação política. Usuários de drogas
Mas esta perspectiva, a dos usuários de falando e agindo em nome próprio,
drogas que vivem a usá-las, nunca pode criando estratégias de cuidado que
ser tomado como um discurso incluem a possibilidade de usar drogas,
politicamente válido. produziram um curto-circuito frente às
políticas hegemônicas que tendem os
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criminalizam. E para que fosse possível que ia a unidade os profissionais de


constituir campos políticos, a RD saúde diziam que ela tinha que “parar
propõe ao invés de regras coercitivas, de beber”. Essa senhora era arrimo de
que cada usuário constitua para si regras família (três filhos e cinco netos) e, para
de cuidado, regras facultativas. esta senhora a bebida, como ela mesma
(Foucault, 2006; Souza, 2007). comentou, não era seu principal
A RD se tornou um dispositivo problema. A dificuldade com os filhos e
em que os usuários de drogas podem netos era sua principal queixa e
falar em nome próprio. Essa apontava para uma difícil situação
possibilidade inaugurada constituiu uma existencial. Ao ser impelida a parar de
perspectiva de análise porque através usar álcool a senhora se sentia
dela podemos nos aproximar dos pessoalmente descriminada e não
usuários de drogas e assim acompanhar acolhida na sua singularidade, na sua
o que eles dizem, sentem e fazem. história, no seu desejo e nas suas
Assim a RD vai deixando de ser um dificuldades. Dessa forma, em nome de
conjunto de estratégias e vai se tornando uma norma (estar abstinente), outros
um conceito que abrange diferentes problemas de saúde não eram
estratégias. A RD vai se tornando um acompanhados. Fora as simplificações
modo de se pensar, falar, sentir e agir que uma breve exposição pode produzir,
sobre as drogas: uma perspectiva. queremos extrair aspectos que não se
distanciam tanto das realidades
Para além das polaridades cotidianas dos serviços de saúde.
A dificuldade com os filhos e
Acompanhando um caso em netos era sua principal queixa e
uma unidade básica de saúde uma apontava para uma difícil situação
equipe de referência nos solicitou apoio existencial. Ao ser impelida a parar de
para elaboração de um projeto usar álcool, essa senhora se sentia
terapêutico de uma senhora de pessoalmente discriminada e não
aproximadamente sessenta anos que acolhida na sua singularidade, na sua
abandonara o tratamento de diabetes em história, no seu desejo e nas suas
função da dependência com o álcool.2 dificuldades. Em nome de uma norma
Ao fazermos uma visita domiciliar a (estar abstinente), outros problemas de
senhora disse que abandonara o saúde não estavam sendo
tratamento da diabetes porque toda vez acompanhados. Não desconsiderando as
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simplificações que essa breve exposição o que não pode no campo da saúde,
pode produzir, pretendemos com ela especificamente no que diz respeito a
apenas extrair aspectos que não se atenção aos usuários de álcool e outras
distanciam tanto das nossas realidades drogas. É esse tipo de imagem
em saúde. formatada que faz com que uma parcela
A abstinência, como condição da sociedade civil, gestores, juristas,
para o acesso ao serviço, foi posta pela familiares, acreditem que a RD, por não
equipe de saúde da família, de modo dizer “NÃO AS DROGAS”, estaria
muito distinto do modo como ela é inevitavelmente dizendo “SIM AS
posta em clínicas e serviços DROGAS”. Associando-a com a
especializados. Mas em ambos os casos, imagem de um bando de usuários
a abstinência comparece como regra, usando drogas livremente pelos
norma que define uma fronteira entre o estabelecimentos de saúde. Se por um
dentro e um fora do sistema e ao mesmo lado esta operação não passa de um
tempo um limite entre a cura e a ataque banal a RD, por outro ela revela
doença, entre o normal e o patológico. uma característica emergente que a RD
São estas imagens polarizadas que traz para o campo das drogas: fazer
vemos começarem a se formar: contra surgir novas regras diferentes da regra
ou a favor; sim ou não; tudo ou nada; da abstinência e de atrelar a saúde a
abstinente ou drogadito; para no limite uma terceira via que possibilite escapar
nos esbarramos com a dualidade bem e do esquema jurídico do contra ou a
mal. A polarização produzida no campo favor, do lícito e ilícito.
das drogas reconhece duas posições e Quando a abstinência é tomada
possibilidades extremas. É neste jogo de como regra única e superior, ela acaba
polarizações e antagonismos que a RD por destituir outras possibilidades de
acaba muitas vezes confundida com o regras. Isolada como única regra, torna
polo oposto a abstinência Se à outras possibilidades de regras em não-
abstinência corresponderia a faceta do regras, logo, num “vale tudo”. Quando
“NÃO AS DROGAS”, a RD acabaria um determinado regime de saber-poder
sendo arrastada para a faceta oposta, a erige o “vale nada” como condição,
do “SIM AS DROGAS”. Acusada de toda e qualquer alternativa a esta
incentivar o uso de drogas, a RD se proposta hegemônica é taxada como
enredada neste esquema binário em que “vale tudo”. Mas é exatamente neste
o campo da justiça define o que pode e ponto que a RD se ergue como uma
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alternativa potente a este regime de busca apontar para os cuidados que


saber-poder, pois para reduzir danos devemos ter em relação às experiências
não pode “valer tudo”, não se reduz com as drogas. Esse tipo de postura
danos com enunciações que se alinhem tenta desconstruir a noção de que as
com a lógica do “liberou geral”. drogas são um problema em si,
Antes de se tornar uma norma recusando a substancialização de um
médica e jurídica, a abstinência era um problema complexo que transforma uma
a norma religiosa. Esse dualismo substância em uma entidade quase com
maniqueísta antes de ser operado pelo vida própria: as drogas!
binarismo da lei (lícito e ilícito) ou pela Certa vez andando de ônibus
norma médica (normal e patológico) foi sentei ao lado de uma senhora e logo
operado pelo dualismo religioso (bem e vimos um rapaz morador de rua
mal). Estes três âmbitos de construção cambaleando e tropeçando numa
de práticas sobre o corpo e sobre a vida tentativa de seguir caminhando. A
operam por polarizações. O ideal do senhora assustada exclamou: “veja o
mundo sem drogas congrega, no que o crack faz com as pessoas!”.
contemporâneo, regimes de saber-poder Muitos outros signos, como a miséria,
dentro de novas tecnologias de governo desemprego, desassistência, modos de
das condutas. vida, etc. foram subtraídos por um único
A saúde como campo de saber- signo – o crack – e numa operação
poder não se encontra fora destas cognitiva que permitia tornar localizável
tecnologias de governo, podendo muitas um problema complexo, a senhora
vezes estar a elas submetida, resumiu um problema multicausal num
reproduzindo sua lógica. Mas pode problema de causa única: as drogas
também estar traçando linhas de como causa. A pergunta que me ficou
resistência a essa lógica. A RD não foi se esta constatação deixava a
contesta a abstinência como meta senhora perplexa ou se de certa forma a
possível e desejável, mas a abstinência deixava mais aliviada por poder
como regra absoluta, evidenciando que localizar o problema. A eleição das
entre o “SIM” e o “NÃO” existe uma drogas como um grande mal da
terceira via: o “COMO”? Arguir como atualidade permite concentrar esforços
podemos em sociedade viver com as na sua eliminação e no seu combate
drogas não é uma posição a favor ou gerando uma polarização entre os que
contra as drogas, mas uma posição que
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estão a favor e os que estão contra, caminhos alternativos ao SIM/NÃO


sendo excluída uma terceira via. estaremos aprisionados em um esquema
Veremos como a RD ao se opor bipolar.
a alternativa SIM x NÃO (as drogas) Quando uma equipe de saúde ou
recoloca o problema das drogas fora do mesmo um profissional de saúde, ao
esquema polarizado e maniqueísta que atender uma pessoa usuária de drogas,
busca reduzir um campo de múltiplas coloca para si a tensão “sou a favor” ou
possibilidades em duas categorias “contra as drogas”, está formulando o
rígidas. No diagrama de poder em que problema da abordagem e acolhimento
os enunciados de “NÃO AS DROGAS” a este usuário segundo uma perspectiva
comparecem como oposição aos que o colocará num antagonismo
enunciados de “SIM AS DOGAS”, mais (combate ou simples aceitação) com a
do que a formação de posições experiência de uso de drogas que está
contrárias evidenciam-se complexas em curso na vida deste usuário. Em
tramas de controle da vida. Nesse outras palavras, a clínica será conduzida
sentido o SIM e NÃO como única a partir de um problema que foi mal
alternativa possível de apreensão deste formulado. O combate ou a simples
fenômeno, que fecham um plano de aceitação são formas de não entrar em
múltiplas possibilidades num campo contato com a experiência em curso. A
antagônico, são códigos de um mesmo direção proposta pela redução de danos,
regime de saber-poder. Numa primeira de acolher o outro na sua diferença,
mirada mais superficial podemos acabar atualiza um sentido de universalidade
por concluir que o vale tudo e o vale aliado à dimensão singular da
nada são posições contrárias, mas experiência com o uso de drogas que
precisamos olhar para uma dimensão cada um pode ter.
mais genealógica deste problema e
captar o instante em que as aparentes Individualização do fracasso: da
oposições formam um único esquema abstinência à recaída
que captura por contradição, por
polarização, por antagonismos. Se não Atualmente há um movimento
formos capazes de sair dos de denúncia e análises do fracasso da
antagonismos e polarizações, estaremos guerra às drogas. Autoridades como Bill
enredados nas tramas desta forma de Clinton e Fernando Henrique Cardoso3,
controle. Se não formos capazes de criar dentre outros, avaliam que a guerra as
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drogas não alcançaram seu objetivo conectados não deixarão de ser díspares
inicial e que por isso é preciso revê-la. entre si. “A lógica da estratégia é a
A que outros objetivos, que não o fim lógica da conexão do heterogêneo e não
das drogas, a política de guerra as a lógica da homogeneização do
drogas se destina? A finalidade da contraditório.” (pp. 58).
guerra as drogas não era simplesmente a Racismo e teoria da
extermínio do consumo e produção de degenerescência foram as bases
drogas sobre o planeta. Como uma conceituais para que a medicina
estratégia inviável de saída se fortaleceu impusesse desde o século XVIII a
e ganhou mais consistência na justa internação compulsória como meio para
medida em que seus objetivos expressos tratamento. As primeiras iniciativas
fracassavam? anti-drogas de interesse internacional
Apontar as contradições da foram capitaniadas pelo bispo e
guerra às drogas não é nada mais do que advogado Charles Brent após sua
identificar um estado de coisa, não chegada na Filipinas. Tido como um
podendo ser o fim de uma análise dos principais articuladores da
crítica. Sobretudo numa modalidade de Comissão Internacional do Ópio, se vê
governo em que contradição não é em seu discurso oficial a articulação
sinônimo de fraqueza, nem mesmo de entre moral religiosa e racismo,
fracasso. Não se trata de abordar a verificada na carta enviada pelo bispo
história a partir dos erros e ao presidente Roosevelt, em que
contradições, mas de buscar identificar condenava um governo cúmplice da
que regimes de verdade dão sustentação busca de ópio por raças degeneradas.
as falhas e contradições. É nesse (Escohotado, 2005; Araujo 2012). O
sentido, que Foucault (2008) propõe problema geral do racismo e das raças
substituir a lógica da dialética pela da degeneradas foi o alicerce biopolítico
estratégia. A lógica da dialética é uma que sustentou a associação entre drogas
lógica que põe os termos contraditórios e ameaça a espécie humana. O Estado
para definir uma solução unificadora, Moderno não inventou o racismo, mas
que supera as contradições e constituiu seu uso dentro do regime biopolítico
uma unidade. A lógica das estratégias é ganha contornos inovadores. A
uma lógica que permite analisar os associação entre hábito cultural (de
meios pelos quais termos heterogêneos “raças inferiores”) e ameaça geral a vida
são conectados e que mesmo foi a matriz discursiva para que diversas
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tecnologias de poder fossem agregando da abstinência cumpre para a biopolítica


volume e adensando uma verdade sobre das drogas.
as drogas. Numa sociedade em que a Se novamente a internação
vida é objeto de intervenção política, o compulsória nos conduz para uma
direito a morte e a restrição da vida só estratégia que fracassa em seus
pode ser atribuído a alguma coisa que objetivos é porque precisamos entender
ameaça a própria vida, a vida da espécie sua função estratégia para além dos
humana. A noção de raça estabelece um interesses explícitos. Se uma estratégia
corte no contínuo biológico da espécie fracassa há séculos e ainda mantém um
humana, uma diferenciação que se valor de uso para a sociedade é porque
hierarquiza entre as raças inferiores e esta estratégia cumpre uma função que
raças superiores, entre as raças que se ajusta e se potencializa no próprio
devem viver e as raças que devem fracasso.
morrer. “Isso vai permitir ao poder Teremos que identificar como as
tratar uma população como uma mistura falhas, as contradições e as fissuras são
de raças ou, mais exatamente, tratar a os meios pelos quais se governa. Dito
espécie, subdividir a espécie de que ele de outra forma, será preciso apresentar
se incumbiu em subgrupos que serão, estas falhas, não como ponto fraco do
precisamente, as raças” (Foucault, 2005, atual sistema de governo das condutas,
p. 395) mas como o ponto forte, o meio pelo
Apesar de séculos de qual o governo dos homens aumenta o
ineficiência e fracasso a proposta de poder de definir condutas e normalizar a
internação compulsória continua a vida.
ressurgir nos corredores que ligam o Quando Foucault (1977), por
poder legislativo ao poder executivo, exempla extrai da suposta falha das
inclusive na atual cena da política prisões, não uma análise da sua função
brasileira. Por um lado isso torna específica, mas uma análise da sua
evidente que é em nome da vida que o posição estratégica dentre de um regime
Estado revigora o poder soberano de de poder, ele extrapola uma análise das
sequestro e morte de parcelas falhas e das contradições como dados
específicas da população. Por outro lado finais, mas como meios para se buscar
isso permite avançar no entendimento outras finalidades que se
da função estratégia que a norma geral operacionalizam além do discurso
criminológico, ou seja, além do
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“cientificamente” dito. Numa análise cumpre um papel fundamental. A


sobre o regime disciplinar Dreyfus e recaída comparece como medida não do
Rabinow (2010) trazem a seguinte fracasso da instituição, mas como
análise do pensamento foucaultiano a medida da fraqueza individual e
respeito do fracasso das prisões: gravidade da doença, reforçando a
necessidade de um exercício de poder
A questão não é: porque as prisões que exclui a opção, opinião e desejo do
fracassaram? Ao contrário, a que outros
sujeito doente. O que seria a recaída?
objetivos serviram seu fracasso, que
Ao ser um meio de individuar o
talvez não seja um fracasso? A resposta
de Foucault é direta: “Seria necessário fracasso e índice da gravidade da
então supor que a prisão e, de um modo doença, a recaída ganha estatuto de uma
geral, sem dúvida os castigos, não verdade sobre a natureza deste
fossem destinados a suprimir as
indivíduo. A recaída só se coloca num
infrações, mas, antes, a distingui-las,
sistema de signos e valores governados
distribuí-las, utiliza-las; que eles visem
não tanto a tornar dóceis aqueles que
pela lógica de que o objetivo final desta
estão prontos para transgredir as leis, estratégia é a vida livre de drogas.
mas que tendam a organizar as Por que o retorno ao uso de
transgressões as leis em uma tática
drogas após um período de abstinência
geral das sujeições.”4 As penitenciárias,
tem que ser significado como uma
e talvez todo poder nomalizador
funcionaram onde eram apenas queda? Não poderia este movimento ser
parcialmente bem sucedidos. (pp. 256- significado como um retorno? A noção
257) de queda tem, assim como a noção de
abstinência, um fundamento religioso.
Mesmo que uma pequena Recair é, antes de tudo, uma queda da
parcela, dentre os que são internados alma que se deixou levar pelas tentações
para tratamento, continuam abstinentes pecaminosas. Quando a saúde adota
após este processo, continua-se havendo estes termos como signos que dão
propostas de internação compulsória sentido e constituem um regime de
para usuários de drogas. Para que esse valores e de verdades, entre as
processo seja eficiente em seu poder instituições de saúde e as instituições
discursivo de produção de religiosas passa a se constituir uma
subjetividade, esta maquinaria do contiguidade. A constituição de uma
fracasso precisa se apoiar na gravidade rede pastoral-medicalizada conecta uma
do caso para o qual a noção de recaída infinidade de termos heterogêneos que
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definem uma rede de tem sua sustentação não na sua


governamentalidade da população. A efetividade, mas no seu poder simbólico
recaída se torna o próprio motor de um do ideal de uma sociedade livre desta
ciclo vicioso, de um sistema que se ameaça. A internação compulsória,
alimenta da falha na medida em que sendo um mix de punição e medida de
individualiza. A dependência química, tratamento, mantém provisoriamente
como doença crônica incurável, este ideal. A recaída é um ponto
recoloca nas mãos da medicina o poder fundamental deste circuito que se
de dependência infindável, antes fortalece na medida em que fracassa. É
realizada pelo poder pastoral religioso. sob o signo da doença, e de sua
(Foucault, 2009) Ao definir um gravidade que o fracasso será creditado,
diagnóstico que retira do sujeito o poder sendo a recaída uma manobra de
de decisão sobre si, a medicina define individualização do fracasso. Passa-se a
uma linha de conexão com a segurança se pensar em adequação do sistema de
e com o poder de polícia. exclusão, seu aperfeiçoamento, sua
A abstinência deve continuar a sofisticação para que um dia este estado
ser uma busca, mesmo que para isso se seja permanente para um conjunto
use a força. Se do ponto de vista de maior da população internada.
efetivação da cura, a internação Abstinência como meta, dependente
compulsória é um fracasso, do ponto de químico como diagnóstico e internação
vista de esquadrinhamento e compulsória como medida são
normalização do socius esta medida acionados como um círculo vicioso que
continua a ser potente, servindo como individualiza o fracasso e ao mesmo
regime de visibilidade e dizibilidade tempo possibilita uma intervenção de
sobre as experiências com as drogas. corte populacional, um regime de saber-
Numa sociedade que construiu poder-subjetivação que é ao mesmo
as drogas como figura de ameaça da tempo individualizante e totalizador:
segurança individual e das famílias, o uma biopolítica das drogas.
fracasso da medida repressiva será
apenas índice de que esta repressão não
está sendo suficientemente repressiva.
O fracasso não gera um recuo da
medida adotada, mas sim uma
intensificação da mesma. A abstinência
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Universalidade e clínica ampliada: vez constituídas fora do SUS, podem


confrontos e encontros entre redução interferir no rumo do próprio SUS.
de danos e abstinência Reduzir dano como objetivo das
ações de saúde para usuário de crack,
Partimos do esforço para que o álcool e outras drogas indica que a RD
tema das drogas seja um ponto de investe sobre as experiências com as
problematização do próprio SUS, por drogas que se tonaram danosas. Disso
um lado, e, por outro, faremos com que se subtrai três conclusões lógicas: i) a
os princípios e diretrizes do SUS primeira é que a RD parte do fato
possam fortalecer e qualificar a empírico de que nem todas as
discussão sobre as políticas de drogas. experiências com as drogas são
Interessa-nos, igualmente, discutir o danosas; ii) a segunda é que nem todos
SUS e discutir a especificidade do que têm relações danosas com as drogas
campo das drogas. E faremos isso desejam parar de usar drogas; iii) que os
tratando estas duas instâncias como danos podem ser de diversas ordem,
dobras que não se contém inteiramente: cabendo ações em saúde que atentem
o tema das drogas não cabe inteiramente para esta diversidade e possam trabalhar
no SUS; os problemas vividos pelos com a especificidade de cada caso.
usuários de drogas no sistema de saúde (Tedesco & Souza, 2009)
são constituídos por forças que Parar de usar drogas como meta
atravessam, interferem e redirecionam a terapêutica, se torna uma possibilidade e
política do SUS. Por outro lado, o SUS, não a única meta para todos os casos.
não se resume a problemática das Esse é o primeiro confronto direto da
drogas e enquanto campo em RD com a abstinência: não se trata de
construção pode atualizar e reforçar um um confronto com a abstinência como
conjunto de forças (e relações de poder) meta possível, mas da abstinência como
constituídas historicamente, como pode regra absoluta.
produzir mudanças e alternativas Quando a abstinência
potentes para a vida dos usuários de comparece como uma norma médica e
drogas. É dentro deste jogo de forças jurídica (Souza 2007; Passos & Souza,
que inserimos a Redução de Danos, 2011) que define como campo de
como um conceito que tem uma face possível para o tratamento de usuários
voltada para o SUS e uma face voltada de drogas, a suspensão necessária do
para outras forças políticas, que uma uso de drogas, o campo da saúde é
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posto em contradição, uma vez que em saúde possui condicionantes, mesmo


exclui as pessoas que não aceitam a num sistema universal. Em que medida
abstinência como condição e meta para a abstinência como condição para todos
o seu tratamento; sejam estas pessoas os usuários de drogas gera
conscientes ou não de sua posição inevitavelmente uma limitação de
subjetiva e desejante. O que fazer com direito e acaba por impor, não somente
estas pessoas? Negá-las cuidado em condições, mas restrições ao acesso?
saúde? Forçá-las ao tratamento? Propor Em uma suposta reunião entre
alternativas a abstinência? É o sentido gestores para definir os caminhos da
de universal que entra em cena, uma vez política de saúde para usuário de drogas
que o “todos têm direito” entra em num determinado estado brasileiro
conflito com o “todos devem parar de debateu-se sobre ao atual documento
usar drogas para terem direito”. (portaria) que define as diretrizes para
Precisamos analisar os sentidos de implementação das Redes de Atenção
“todos” operados pela universalidade e Psicossocial: “como pode constar neste
pela abstinência como norma absoluta. documento que a Redução de Danos
Os modos de apropriação do princípio será uma diretriz? Quer dizer que os
de universalidade ganham sentidos usuários de drogas vão poder circular
distintos a partir das diferentes normas livremente usando drogas na
que efetivam o acesso e o cuidado em instituição? Na minha instituição são
saúde. Quando falamos que a realizados exames de urina diariamente
abstinência é uma norma, precisamos para impedir que os usuários usem
analisar o agenciamento universalidade- drogas durante o tratamento” A
abstinência como um operador das pergunta que veio desta arguição foi a
relações em saúde. seguinte: “e o que acontece com os
Quando as práticas de atenção à usuários que não aderiram à proposta de
saúde são direcionadas pela abstinência, abstinência? Voltarão para as
seja como regra, norma ou meta cracolândias sem nenhum tipo de
terapêutica, o sentido de universalidade cuidado em saúde? O SUS como um
de acesso encontra-se condicionado e a sistema de saúde universal não pode
clínica se vê reduzida ao objetivo de deixar de prestar atendimento para a
remissão de sintoma. Isso em si não é parcela da população que não adere à
algo exclusivo da abstinência, uma vez proposta da abstinência”.
que qualquer serviço ou rede de atenção
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A abstinência como regra uma ancora de produções de verdades


absoluta insere o sentido de universal sobre o homem, sobre a saúde, sobre a
proibicionista, operando como um vida e define uma regra única para
conceito que agencia um conjunto de todos os indivíduos. O sentido de
pretensos universais: uma concepção singularidade, neste caso fica
universal de saúde como sinônimo de subsumido a uma regra maior e
vida livre das drogas, o universal de que primeira, o que implica dizer que a
as drogas fazem necessariamente mal a singularidade é um modo específico de
saúde, um universal de que todos devem se aplicar uma regra geral, mas desde
para de usar drogas. Segundo Jullien que esta singularidade esteja em
(2010) a noção de universalidade surge adequação a esta regra. Trata-se,
de três impulsos da história humana, portanto, de um sentido fraco de
que não possuem genealogias em singularidade, pois neste caso o singular
comum. O primeiro é a noção de está submetido ao geral: para cada caso
universalidade do conhecimento, um modo específico de se alcançar a
surgido da filosofia pré-socrática, em abstinência. Um sentido forte de
que o conhecimento verdadeiro surge singularidade deve pressupor uma
do afastamento das singularidades e do relação em que o caminho para cada
caos da experiência. Essa noção de caso tenha como referência a
universalidade constituiu uma primeira constituição não de um plano geral e
separação entre universal e singular e universalmente válido, mas um plano de
foi a base para o conhecimento constituição de coletivos e produção do
científico. Uma segunda noção de comum. A clínica da redução de danos
universalidade vem do direito romano, cria uma potente aliança com a clínica
que constitui as bases para a ampliada e compartilhada, pois se torna
universalidade do acesso, por exemplo. necessário pensar em projetos
Um terceiro sentido de universalidade terapêuticos singulares que acolham a
surge com o cristianismo, em que a singularidade de cada caso. (Campos,
salvação é posta como um universal, 1997, 2007a, 2007b; Cunha, 2005;
diante do qual devemos agir no presente Brasil, 2009) Por outro lado, uma
segundo regras morais que vão garantir equipe de saúde pode trabalhar na
no pós-vida a eterna salvação das almas. perspectiva da clínica ampliada, ou seja,
A abstinência delimita um campo de atento para a subjetividade de cada
práticas totais que fazem do universal sujeito e não reduzindo a ação clínica a
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queixa-conduta pautada na doença, até universal para a noção de comum.


que entre na cena terapêutica a relação (Spinoza 2009; Negri & Hardt 2005;
com as drogas. É possível e comum que Jullien 2010).
muitas equipes, no momento em que a O comum implica no
narrativa da história de vida passa pelo compartilhamento de experiências em
uso de drogas, sejam atravessadas por que as diferentes singularidades possam
valores morais que reduzam sua se expressar. Normalmente somos
capacidade de acolhimento e escuta. guiados por uma racionalidade em que o
Nesse sentido a clínica ampliada, para compartilhamento tende a ser
que se exerça na sua radicalidade, apreendido na forma do conjunto, da
precisa ser também uma clínica da identificação e da semelhança. O
redução de danos. conceito de produção do comum
Na experiência concreta da implica em pensarmos uma forma de
redução de danos para que seja possível compartilhamento e cooperação em que
abordar a especificidade de cada justamente a diferença e a singularidade
situação, de cada usuário e de cada são ao mesmo tempo um efeito do
história de vida é necessário a encontro de corpos e o que se busca
existências de espaços de co-gestão produzir neste encontro. Não
(Campos, 2007a, 2007b) que importando tanto as diferenças em si,
possibilitem o compartilhamento de mas os processos de diferenciação e de
experiências. O compartilhamento de constituição de modos de vida
experiência e posições éticas sobre o singulares. Nessa forma de pensar a
cuidado de cada caso implica num produção de referências que guiam as
exercício de construção de novos nossas ações são produzidas pelo
parâmetros e critérios que orientam a próprio compartilhamento de
ação, sem que para isso tenha se partir experiências e não por um ponto
de uma referência universal que oriente estático além da experiência. A
todos os casos para a mesma direção. produção do comum implica em
Esse exercício de por em análise o processos de construção referências,
processo de trabalho constitui um plano direções e normas em que novas
de referência imanente a experiência, sensibilidades possam ser ativadas.
caso contrário seria o puro caos, ou um Qual o momento para se indicar um
puro relativismo. É nesse ponto que usuário de crack em situação de rua um
vemos uma passagem da noção de tratamento específico para o problema
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de drogas? Quando indicar a um tratamento. Nesse momento ele


usuário em situação de rua que ele percebeu que seria uma abertura para
precisa parar de usar drogas? Um tipo que ela fosse ao Caps-ad, mas ele
de proposição desta natureza, num avaliou que pelo estado físico dele seria
contexto de rua não pode ser uma regra melhor levá-la ao Centro de Saúde para
geral, ou algo que se deseja a todo fazer uma avaliação clínica pois ela
momento para todos os casos. Isso seria estava muito debilitada.
insuportável e frustrante, para os Essa passagem expressa bem o
trabalhadores e para os usuários. processo de produção de direções
Um caso emblemático ocorreu pautadas não por uma norma geral. Não
quando uma mulher que usava dez é possível abordar todos os casos na rua
pedras de crack por dia, em média, sentando e parando para conversar,
recebeu de sua tia a notícia de que sua como não é possível indicar a todos os
mãe havia falecido.5 Essa mulher ficou usuários uma visita ao Centro de Saúde
dias perturbada pois não conseguiu ir ao ou ao Caps-ad. Essa sensibilidade que
enterro da própria mãe. Ao longo de permite lidar com a singularidade de
uma semana ela passou a usar de trinta a cada encontro implica na construção de
quarenta pedras de crack por dia. Até um plano comum, de compartilhamento
que num certo dia outro morador de rua, em que as ações são guiadas por pistas
amigo dela, deu um abraço nela e disse que indicam o momento de ser abordar
–“eu sei que alguma coisa aconteceu com mais profundidade, momento de se
contigo, não sei o que foi, mas você está acompanhar até um CS, momento de se
precisando de ajuda porque assim você acompanhar até um Caps-ad, momento
vai morrer”. O homem deu um abraço de dar preservativo. E estas pistas são
nela e ela começou a chorar sem parar construídas coletivamente.
compulsivamente. Nesse dia essa Como já afirmamos tentar operar
mulher só pensava no Paulinho, redutor de modo homogeneizante é um desvio
de danos referência para aquele do sentido de universalidade. Para
território. Quando, no dia seguinte, o Jullien (2010), a universalidade deve se
Paulinho chegou fazendo o trabalho de resumir a um operador lógico. Sua
campo ele percebeu que havia algo de aplicação é lógica e formal, não
diferente com esta mulher. Ele se podendo ser efetivada como uma prática
aproximou dela e os dois começaram a totalizante. O universal não pode ser
conversar e ele então perguntou sobre confundido com total, sob o alto preço
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de ser reduzido a uma tentativa de institucional sob a alegação de estar a


uniformizar, homogeneizar, quando não serviço do “fazer o bem”.
em forma de autoritarismo. A Não se trata de dizer que esta
universalidade é, portanto, uma força compulsória tenha como fonte de
referência do que deve ser feito – irradiação as instituições da saúde e
garantir acesso a todos – e não do como mais de dizer que as instituições de
deve ser feito. O como deve ser feito saúde podem ser meios para
está melhor descrito pela equidade, pela operacionalizar esta lógica. Não é raro
redução de danos, pela clínica ampliada encontrar diversas instituições que
e por outras diretrizes metodológicas. pregam a abstinência como única meta
(Brasil, 2008) possível, alegarem a seu favor que
A abstinência quando se auto- aqueles que não desejam se tratar, ou
intitula como única regra possível torna até mesmo que não desejam parar de
qualquer outra forma de regra, que não usar drogas, não são obrigados a
esteja a ela submetida, uma espécie de permanecerem em tratamento.
não regra. Mas ao fazer isso a Mas acontece que, malgrado as
abstinência compete diretamente com o posições de certas instituições nesta
sentido de universalidade do acesso direção, as forças que as constituem não
enquanto um recurso jurídico e operam exclusivamente do interior
estabelece limites ao próprio princípio destes estabelecimentos, mas de um
do SUS. No limite do seu exercício ela diagrama de poder em que a abstinência
buscará incluir a todos, logo para passa a operar como regra mestra que
aqueles que não aderem por vontade condiciona de fora para dentro a partir
própria, passam em nome da saúde a de outras forças institucionais. Pois se
serem forçados. A utilização da força, cabe a determinadas instituições definir
se torna uma consequência operatória seus limites internos, outras forças irão
do próprio princípio de abstinência. se ocupar de arguir sobre aqueles
Vemos a abstinência ser o operador, o indivíduos que não aceitaram de forma
código de conduta que faz o espontânea o tratamento: a polícia, a
agenciamento entre o campo da saúde e justiça, a família, a mídia, a medicina, a
o campo da segurança e da justiça. A igreja são só alguns exemplos de forças
abstinência se torna uma espécie de que irão arguir sobre o conjunto da
código totalitário que agencia uma rede população que não aderiu de forma
espontânea ao tratamento para se vê
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livre das drogas. A própria regra da o ponto em que o divórcio entre o


abstinência se torna compulsória, na universal e o singular se torna uma arma
medida em que ela passa a operar sobre perversa em nome da vida, da segurança
o conjunto da população. e da saúde da população; um biopoder.
Iniciativas de “internação A emergência da população, ou
compulsória” e/ou “acolhimento melhor, da vida da população como
compulsório” para usuários de crack, objeto de governo (Foucault, 2008,
álcool e outras drogas, correspondem a 2009) trouxe um conjunto de novas
esta faceta despótica da utilização relações de poder, que nos ajudam a
perversa da universalidade. O anseio de constituir este complexo mapa definido
totalização no campo das práticas são para as políticas de drogas, que tem na
antes de tudo formas autoritárias de abstinência uma norma de conduta. A
governo ou de governos totalitários. É aproximação entre as análises
nesse sentido que apontamos que a foucaultianas sobre a vida e as análises
universalidade só pode ser um operador sobre os sentidos de universalidade nos
lógico e não um operador metodológico. trouxe um mapa em que a saúde,
Ele tem uma função de princípio, de ser enquanto campo de governo dos
referência incondicional em vista do homens é constantemente regulado por
que diversos movimentos podem em normas que redefinem rumos para as
nome da vida se apoiar e afirmar sua práticas universais.
singularidade. Mas o contrário bem que
pode acontecer: de ser uma referência Conclusões
para que em nome da vida se aplique
condutas que apaguem as A Redução de Danos ao se abrir
singularidades, uma vez que a elas são para o encontro de cada experiência
alheias. como uma singularidade constitui
Uma medida compulsória não se vínculos afetivos suficientemente
atenta para as singularidades, para a consistentes para que a vida que se
história de vida de cada sujeito, para o expressa na relação com as drogas possa
modo específico como o uso de drogas criar novas regras que podem ou não
passou a compor com sua vida. Ela se incluir as drogas. Esse processo instaura
aplica de forma total, igualmente a um processo de normatividade, de
todos independente de suas opções, criação de novas regras de si que
modos de vida e escolhas pessoais. Eis emergem do encontro com o outro. Em
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contraponto ao processo de possibilidade de definir como legítima a


normalização em que abstinência busca instauração, quando não de um governo
impor uma única regra, tornando todos totalitário, de situações em que o uso da
igualmente salvos e curados das drogas. força se justifica. Por isso que a defesa
Os modos de vida devem ser da universalidade como função lógica e
apreendidos na sua contingência, na sua não prática depende não só de uma
multiplicidade, nas diferenças e nas compreensão filosófica e
singularidades. Logo, não cabe ao epistemológica, mas dos modos como
direito, ou se preferirem ao Estado, a este conceito é acessado. A articulação
função de totalizar no campo das entre redução de danos e clínica
práticas. O exercício estatal de ampliada indicam caminhos
totalização no campo das experiências promissores para que as práticas de
da vida se dará necessariamente sobre a atenção e gestão para usuários de álcool
forma do autoritarismo. Quando o e outras drogas estejam ancoradas no
universal do direito é acessado por sentido libertador de universalidade,
forças autoritárias, passa a valer um como garantia ao acesso com inclusão
sentido de universal enquanto das singularidades de cada sujeito.
imposição. O “todos” da lei pode ser
operado por tecnologias de governo que Notas
definem que todos devem ser:
1
saudáveis, livres das drogas, alocados O artigo é inédito, não apresenta
em lugares protegidos, etc. Não qualquer conflito de interesses e é fruto
estaríamos aqui nos referindo às cenas da tese de Doutorado em Saúde
do higienismos, ou quando, mesmo em Coletiva pela Unicamp, intitulada “A
nome de um direito universal, se propõe norma da abstinência e o dispositivo
medidas como Internação Compulsória “drogas”: direitos universais em
que independem das singularidades de territórios marginais da saúde”,
cada vida? A universalidade é defendida em fevereiro de 2013 pelo
apropriada por práticas de dominação primeiro autor, Tadeu de Paula Souza,
num uso despótico do conceito. O efeito tendo como Professor Orientador o
inevitável é uma suspensão dos direitos segundo autor, Dr. Sérgio Resende
e liberdades individuais, a instauração Carvalho.
2
de um estado de exceção. Estamos o Este caso foi acompanhado junto a
tempo todo às voltas com esta disciplina de saúde coletiva do quinto
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ano de medicina da Unicamp em que Bastos, F. I. (2003). Redução de danos e


eles, com a supervisão dos professores, saúde coletiva: reflexões a
tem que elaborar um projeto terapêutico propósito das experiências
singular, a partir de um caso trazido internacional e brasileira. In C.
pela equipe de saúde da família. Este Sampaio & M. Campos (Orgs.).
material foi fonte da pesquisa de Drogas, dignidade e inclusão
doutorado em Saúde Coletiva-FCM- social. A lei e a prática de
Unicamp (Biopolítica das Drogas e redução de danos. (pp. 15-44).
Redução de Danos) e aprovado pelo Rio de Janeiro: ABORDA.
Comitê de Ética de Pesquisa das Brasil. (2003). A política do ministério
Faculdades de Ciências Médicas - da saúde para atenção integral a
Unicamp. usuários de álcool e ouras
3
Este movimento fica bem descrito no drogas. Brasília: Ministério da
filme Quebrando Tabu e Cortina de Saúde.
Fumaça ______. (2008). Humanizasus:
4
Foucault, M. Vigiar e Punir, apud documento base para gestores e
Dreyfus e Rabonpw trabalhadores do sus. Brasília:
5
Este caso foi acompanhado junto a Ministério da Saúde.
supervisão de redutores de danos do ______. (2009). Clínica ampliada e
município de Campinas-SP na pesquisa compartilhada. In Brasil. Série
de doutorado em Saúde Coletiva-FCM- Cartilhas Humanizasus. Brasília:
Unicamp (Biopolítica das Drogas e Ministério da Saúde.
Redução de Danos) e aprovado pelo Campos, G. W. (2007a). Um método
Comitê de Ética de Pesquisa das para análise e co-gestão de
Faculdades de Ciências Médicas – coletivos. São Paulo: Hucitec.
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São Paulo: Hucitec.
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Forense Universitária.
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Redução de Danos e Saúde E-mail: tadeudepaula@gmail.com
P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , N ú m e r o T e m á t i c o , 2 0 1 2 P á g i n a | 58

Sergio Resende Carvalho: Professor


Doutor em Saúde Coletiva pelo
Departamento de Saúde Coletiva,
Unicamp.
E-mail: 2srcarvalho@gmail.com

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