Você está na página 1de 8

A RUÍNA

Georg Simmel

A grande luta entre a vontade do espírito e a necessidade da natureza, o


balanço entre a alma que aspira à elevação e a gravidade que tende a descer,
alcançaram, respectivamente, uma paz verdadeira e uma equação exata
somente em uma única arte: a arquitetura. A autonomia do material na poesia,
na pintura e na música serve, muda, o pensamento artístico. Na obra
concluída, ele aspirou à matéria em si, tomou-a como que invisível. Mesmo na
escultura, o pedaço de mármore palpável não é a obra de arte; a contribuição
do que é próprio da pedra ou do bronze para ela atua apenas como meio de
expressão da visão anímica criadora. A arquitetura, no entanto, utiliza e divide
a gravidade e a força da matéria segundo um plano só possível na alma, e é
apenas internamente a este que a matéria atua com sua essência imediata; ela
como que realiza aquele plano com suas próprias forças. Esta é a mais sublime
vitória do espírito sobre a natureza - assim como se guia uma pessoa de
maneira tal que nossa vontade seja por ele realizada, não pela subjugação de
sua própria vontade, mas pela própria, de modo que a direção de sua
autonomia sustente nosso plano.
Este balanço singular entre a matéria mecânica, pesada, passivamente
resistente à pressão e a espiritualidade enformante, que impele ao alto quebra-
se, no entanto, no instante em que o edifício rui, pois isso não significa outra
coisa senão que as meras forças da natureza começam a predominar sobre a
obra humana: a equação entre natureza e espírito desloca-se em favor da
natureza. Este deslocamento toma-se uma tragicidade cósmica que na nossa
percepção leva qualquer ruína para a sombra da melancolia, pois o
desabamento aparece agora como a vingança da natureza pela violação que o
espírito lhe impingiu, por meio da formação segundo sua imagem. Todo o
processo histórico da humanidade constitui o predomínio paulatino do espírito
sobre a natureza, que ele encontra fora de si - mas de certa maneira também
em si. Tendo ele, nas outras artes, curvado as formas e acontecimentos desta

1
natureza a seus mandamentos, diversamente, a arquitetura forma suas massas
e forças próprias imediatas, até que elas dêem, como que de si, a visibilidade
da idéia. Mas é somente enquanto a obra existe em sua perfeição que as
necessidades da matéria se juntam à liberdade do espírito, que se expressa
totalmente a vivacidade do espírito nas forças meramente pesadas e
sustentantes daquela. Mas no momento em que o desabamento do edifício
destrói a coerência da forma, os partidos separam-se novamente e explicitam
sua inimizade original, que perpassa o mundo: como se a formação artística
houvesse sido apenas um ato de violência do espírito, ao qual a pedra se
submeteu a contragosto, como se ela deitasse fora paulatinamente essa canga
e retomasse às leis autônomas de suas forças.
Mas, com isso, a ruína torna-se, não obstante, um fenômeno mais
significativo e pleno de sentido que os fragmentos de outras obras de arte
destruídas. Uma pintura, da qual partículas de cor tenham caído, uma estátua
com membros mutilados, um texto poético antigo, do qual palavras e versos se
perderam - todos atuam somente a partir do que neles ainda existe de
formação artística ou daquilo que a fantasia pode construir baseando-se nesse
resto: sua visão não constitui nenhuma unidade estética, ela não oferece nada
mais que uma obra de arte subtraída de determinadas partes. Ao contrário, a
ruína da obra arquitetônica significa que naquelas partes destruídas e
desaparecidas da obra de arte outras forças e formas - aquelas da natureza -
cresceram e constituíram uma nova totalidade, uma unidade característica, a
partir do que de arte ainda vive nela e do que de natureza já vive nela.
Certamente, no que se refere à finalidade que o espírito materializou no palácio
e na igreja, no castelo e no átrio, no aqueduto e nos monumentos, sua forma
desmoronada constitui um acaso desprovido de sentido; somente um novo
sentido acolhe este acaso, abarcando-o junto com a formação espiritual numa
unidade não mais fundamentada em uma finalidade humana, mas na finalidade
profunda, onde esta configuração espiritual e o tecer das forças naturais
inconscientes superam suas raízes comuns. Por isso, falta a algumas ruínas
romanas, não importando quão interessante elas sejam, a sedução específica
da ruína: na medida em que notadamente se percebe nelas a destruição pelo
homem; posto que isso contradiz a oposição entre obra humana e efeito da
natureza, na qual se apóia o significado da ruína como tal.

2
Tal contradição gera não apenas a atividade positiva do homem, mas
também sua passividade, se e por que o homem passivo atua como mera
natureza. Isso caracteriza algumas ruínas de cidade que ainda são habitadas,
como ocorre freqüentemente na Itália fora das grandes avenidas. Aqui temos o
peculiar na impressão: os homens, apesar de não destruírem a obra humana --
sendo, antes, a natureza responsável por isso -, deixam-na ruir. Este deixar
acontecer é, não obstante - visto da perspectiva da idéia do homem -, por
assim dizer uma passividade positiva. O homem faz-se com isso cúmplice da
natureza e agente da atuação desta, que vai no sentido oposto à sua própria
essência. Esta contradição toma da ruína habitada o equilíbrio entre o sensitivo
e o supra-sensitivo, com o qual as tendências opostas da existência atuam na
ruína abandonada, e lhe dão aquilo que é problemático, aflitivo, fre-
qüentemente insuportável, com o qual estes sítios que escapam à vida
continuam, no entanto, a atuar sobre nós como moldura de uma vida.
Dito de outra maneira: o que constitui a sedução da ruína é que nela
uma obra humana é afinal percebida como um produto da natureza. As
mesmas forças que, por meio da decomposição, da enxurrada, do
desmoronamento e do crescimento da vegetação, proporcionam à montanha
sua forma comprovaram-se aqui efetivas na ruína. Mesmo a sedução das
formas alpinas, que nas mais das vezes são maciças, casuais e artisticamente
não-fruíveis, sustenta-se no jogo recíproco de duas direções cósmicas:
elevação vulcânica ou sobreposição gradual de camadas ergueram a
montanha, chuva e neve, decomposição e deslizamento, dissolução química e
o efeito da vegetação invadindo gradualmente serraram e escavaram o cume,
deitaram abaixo partes de cima, dando assim ao contorno a sua forma. Nela
sentimos a vivacidade daquelas direções de energias diversas e, abstraindo de
todo formal-estético, sentindo instintivamente em nós mesmos esta
contradição, percebemos a importância da forma, na qual elas se encontravam
em uma unidade. Na ruína elas são repartidas em frações da existência ainda
mais distantes. O que erigiu o edifício foi a vontade humana, o que lhe confere
sua aparência atual é o poder da natureza, mecânico, rebaixador, corrosivo,
demolidor. Mas ela, entretanto, não permite que a obra afunde na informidade
da mera matéria - desde que se trate ainda de uma ruína e não de um monte
de pedras. Surge, pois, uma nova forma, que, da perspectiva da natureza faz

3
sentido, é concebível e diferenciada. A natureza fez da obra de,arte o material
para sua formação, como antes a arte se servira da natureza como sua
substância.
Na estratificação de natureza e espírito trata-se de apresentar, seguindo
seu ordenamento cósmico, a natureza como o alicerce, a matéria ou o produto
semimanufaturado e o espírito como o formador definitivo, coroador. A ruína
inverte este ordenamento, na medida em que o que foi elevado pelo espírito
torna-se objeto das mesmas forças que formaram o contorno da montanha e a
margem do rio. Se surgiu, deste modo, uma significação estética, ela se
ramifica da mesma maneira em uma significação metafísica, como foi revelado
pela pátina no metal e na madeira, no marfim e no mármore. Foi com ela
também que um mero processo natural agarrou a superfície da obra humana e
deixou uma pele cobrir inteiramente a original. A harmonia misteriosa: o fato de
a construção tornar-se mais bela, por meio do químico e do mecânico; o fato de
o proposital tornar-se aqui - pelo casual e não impositivo - algo visível e novo,
freqüentemente mais belo e novamente unitário, isto constitui a sedução
fantástica e metafísica da pátina. Preservando esta sedução, a ruína chega a
alcançar ainda uma segunda sedução: a destruição da forma espiritual pela
atuação das forças naturais, aquela inversão do ordenamento típico, será
percebida como um retorno à "boa mãe" - como Goethe chamou a natureza. O
fato de que tudo que é humano "vem do pó e ao pó retomará" eleva-se aqui
além de seu niilismo monótono. Entre o "ainda não" e o "não mais" existe um
traço do espírito, cujo trajeto já não mostra mais, em realidade, sua altura, mas
que, farto da riqueza desta sua altura, desce para seu torrão natal - assim
como o "momento fecundo", para o qual aquela riqueza constitui um modelo
que a ruína tem como antecedente.
O fato de a violação da obra da vontade humana, mediante o poder da
natureza, poder ter um efeito estético tem como pré-requisito a condição de o
direito da mera natureza nunca ter sido completamente extinto nesta obra,
apesar de ela ter sido formada pelo espírito. Com respeito à sua matéria, à sua
realidade, ela sempre permaneceu natureza, e se esta volta agora a
predominar, ela executa com isso apenas um direito que até então estivera em
desuso, mas ao qual ela nunca renunciou. Por isso a ruína tem tão amiúde um
efeito trágico - mas não triste. Isto porque a destruição não é algo sem sentido

4
vindo de fora, mas a realização de uma direção colocada no mais profundo
estrato de existência do destruído. Por isto falta tantas vezes a impressão
esteticamente satisfatória - ligada ao trágico ou à eqüidade secreta da
destruição quando designamos um homem como uma "ruína", pois, se aqui o
sentido também é que as camadas da alma denominadas, em um sentido
restrito, naturais - os instintos ou recalques afetos ao corpo, as preguiças, o
casual, o que se refere à morte - predominam sobre o especificamente
humano, o que é valorizado pela razão, então justamente não se consuma com
isso, para nosso sentimento, um direito latente daquelas direções. Antes, tal
direito sequer existe. Consideramos - não importando se correta ou in-
corretamente - que tais efeitos rebaixantes dirigidos contra o espírito, como o
homem em seu sentimento mais profundo crê, não habitam a essência
humana; sobre tudo o que lhe é exterior estas tendências têm um direito, que
nasceu com elas, mas não sobre o homem. Por isso - abstraindo de outras
observações e complicações -, o homem como ruína é mais triste que trágico e
carece daquela quietude metafísica que se insere na queda da obra material,
como que a partir de um a priori profundo.
Aquele caráter de retomo ao lar é apenas uma interpretação da paz,
cujo ambiente se encontra ao redor da ruína, ao lado daquele outro no qual
ambas as potências do mundo - a aspiração ao alto e a queda para baixo – co-
atuam para criar uma imagem imóvel de uma existência puramente natural.
Expressando esta paz, a ruína une-se à paisagem a sua volta, assim como
árvore e pedra nela se ligam; ao contrário, o palácio, a vila e a casa de campo,
mesmo onde eles se conformam melhor ao ambiente de sua paisagem, provêm
sempre de um outro ordenamento das coisas e só associam-se posteriormente
ao ordenamento da natureza. No edifício muito antigo que está no campo, mais
especialmente na ruína, nota-se amiúde uma peculiar igualdade de coloração
com a tonalidade do chão a seu redor. A causa deve ser de alguma maneira
análoga àquela que produz a sedução do tecido velho. Por mais heterogêneas
que tenham sido suas cores como novas, o longo destino comum, a secura e a
umidade, o calor e o frio, a fricção por fora e o amolecimento por dentro,
atingindo-as todas através dos séculos, trouxeram consigo uma unicidade de
tom, uma redução a um mesmo indicador geral de cor, que nenhum tecido
novo consegue imitar. Aproximadamente da mesma maneira, os influxos da

5
chuva e do sol, do medrar da vegetação, do calor e do frio tomaram
semelhantes as tonalidades de cor do edifício abandonado a estas intempéries
e as da terra entregue ao mesmo destino: elas afundaram o realce que outrora
as diferenciava na unidade pacífica do co-pertencer.
E de um outro lado, ainda, a ruína traz a impressão da paz. De um lado
daquele conflito típico tivemos sua forma e seu simbolismo puramente
exteriores: o contorno da montanha determinado por meio da constituição e do
desmoronamento. Considerando, entretanto, o outro pólo da existência, a
impressão da paz vive inteiramente no âmbito da alma humana, neste campo
de batalha entre a natureza, que ela própria é, e o espírito, que ela própria é.
Na nossa alma, as forças, que podemos nomear apenas pela comparação
espacial de aspiração à elevação, constroem ininterruptamente. E
ininterruptamente elas são quebradas, desviadas, rebaixadas pelas outras, que
atuam em nós como nossa apatia, vileza e nosso - no mal sentido -"apenas
natural".
A partir da medida e do modo como elas se misturam, resulta em cada
momento a forma de nossa alma. Mas ela nunca alcança - nem com a vitória
decisiva de uma parte, nem com um compromisso entre ambas - um estado
definitivo, pois não apenas o ritmo inquieto da alma não admite tal estado
definitivo, mas principalmente há por trás de cada fenômeno singular, de cada
impulso singular algo que continua a existir; permanecem exigências que não
levam a decisão momentânea à quietude. Desta maneira o antagonismo destes
dois princípios recebe algo de inconclusivo, sem forma e que explode qualquer
moldura. Nesta inconclusibilidade do processo moral, nesta carência profunda
de uma configuração arredondada que consegue uma quietude plástica,
impostas pelas intermináveis exigências de ambas as partes da alma,
encontra-se, talvez, o último motivo formal para a inimizade das naturezas
estéticas contra as naturezas éticas. Onde miramos esteticamente, exigimos
que as forças opostas da existência cheguem a algum equilíbrio, que a luta
entre o alto e o baixo cesse; mas, contra elas, somente uma forma que
concede uma visão defende-se do processo moral-anímico, com seu
interminável acima e abaixo, sua contínua transposição de limites, com a
inesgotabilidade das forças contrárias que nele estão em jogo. A forma
profunda, que envolve a ruína como um sacro círculo encantado, traz,

6
entretanto, esta constelação: que o obscuro antagonismo que condiciona a
forma de toda existência - uma vez atuando no âmbito das meras forças da
natureza, uma outra no âmbito da vida anímica por si só e uma terceira vez,
como em nosso objeto, ocorrendo entre a natureza e a matéria - também aqui
não é reconciliado em um equilíbrio, antes, ele deixa um lado preponderar e o
outro afundar no aniquilamento, e, assim, oferece, não obstante, uma imagem
com forma segura, que permanece imóvel. O valor estético da ruína unifica o
desequilíbrio, o eterno devir da alma que luta consigo mesma, com o
contentamento formal, com a delimitação fixa da obra de arte. Por isso, onde
não há mais restos da ruína suficientes para fazer sentir a tendência à
elevação, ela perde sua sedução metafísico-estética. Os restos das colunas do
Forum Romanum são simplesmente feios e nada mais, enquanto uma coluna
espedaçada até a metade pode desenvolver um máximo de sedução.
Sem dúvida, aquela tranqüilidade é facilmente associada a um outro
motivo: o caráter de passado da ruína. Ela é o sítio da vida, do qual a vida se
separou - isto não é algo simplesmente negativo e nem um pensamento
acrescentado, como nas incontáveis coisas que outrora flutuaram na vida, que
foram casualmente lançadas à sua margem, mas que, com respeito à sua
essência, poderiam ser novamente levadas por sua correnteza, mas sim a vida
que com sua riqueza e suas mudanças uma vez habitou aí. Aqui temos um pre-
sente imediatamente visível. A ruína cria a forma presente de uma vida
passada, não segundo seus conteúdos ou restos, mas segundo seu passado
como tal. Isto constitui também a sedução das antiguidades, sobre as quais
somente uma lógica limitada poderia afirmar que uma imitação absolutamente
exata se lhes igualaria em valor estético. Não importa se somos traídos em um
caso específico com aquele fragmento que temos perante os olhos,
dominamos espiritualmente todo o período desde seu surgimento. O passado
com seus destinos e suas mudanças é reunido neste momento de observação
estética. Aqui - como em relação à ruína, esta elevação e preenchimento
máximos da forma presente do passado atuam energias tão profundas e
sintetizadoras de nossa alma que a separação cortante entre visão e
pensamento se toma completamente insuficiente. Uma totalidade anímica atua
e abrange - da mesma maneira como seu objeto funde a oposição entre
passado e presente em uma forma unitária - toda a extensão da visão corporal

7
e da espiritual na unidade da fruição estética, que se enraíza sempre em uma
unidade mais profunda que a unidade estética.
Assim, finalidade e acaso, natureza e espírito, passado e presente
afrouxam neste ponto a tensão entre suas oposições, ou antes, guardando,
preservando essa tensão, elas conduzem, não obstante, a uma unidade da
imagem externa, da atuação interna. É como se fosse necessário que primeiro
um pedaço da existência ruísse, para esta se tomar tão sem resistência às
correntes e forças que vêm de todas as direções da realidade. Talvez seja esta
a sedução da queda, da decadência: ir além de seu mero lado negativo, de seu
mero estado rebaixado. A cultura rica e multifacetada, a capacidade ilimitada
de impressionar e a compreensão aberta a todos os lados, que são próprios
das épocas decadentes, significam justamente o encontro de todas as
aspirações contrárias. Uma justiça que equilibre, liga o encontro desenfreado
de tudo que cresce apartando-se e contrapondo-se na queda, vindo daqueles
homens e daquela obra humana, que agora apenas continuam cedendo, mas
não podem mais criar e manter, a partir de suas próprias forças, suas formas.

Extraído de: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold. Simmel e a modernidade. Brasília:


UnB. 1998. p. 137-144.

Você também pode gostar