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DUNKER, C. I. L. - Comments on the Presentation given by Ian Parker and Kazushige Shingu.

The Letter Lacanian. v.31, p.114 - 119, 2006.

Comentário sobre o Debate entre Ian Parker e Kazushige Shingu

Christian Ingo Lenz Dunker

O texto de Kazushige Shingu examina as relações entre as expressões


sintomáticas da anorexia e dos distúrbios alimentares com certas narrativas míticas do
budismo japonês. Aparece assim uma curiosa associação entre a alimentação e o
trabalho de luto, especialmente o luto materno por uma criança perdida. Os detalhes
clínicos do argumento são muitos persuasivos. Eles mostram uma similaridade temática
e discursiva entre a trajetória do luto irresolvido e a saga dos heróis míticos. Sugere-se
uma analogia entre a experiência atual de uma jovem japonesa e a série de provas ou
obstáculos enfrentadas pelos deuses, na medida em que ambos que visam resolver um
estado inicial de desequilíbrio e conflito, com o mesmo tipo de recurso narrativo.
O artigo de Ian Parker segue uma linha aparentemente oposta ao tratar do tema
da tradução do texto de Lacan tanto para universos lingüísticos e culturais distantes de
onde se originou a psicanálise, como o Japão e o Oriente, quanto para o inglês corrente.
O filme Lost in Translation, funciona como uma espécie de alegoria para o problema,
assinalando como algo sempre se perde na tradução. A confiança na permanência do
sentido e na fidelidade semântica dos conceitos é, de certa maneira, tensionada com os
próprios princípios psicanalíticos de extração lacaniana, sobre a linguagem e a
transmissão da cultura. Isso é corroborado por uma análise minunciosa das referências
que Lacan faz ao famoso caso do Homem dos Miolos Frescos, atendido por Ernst Kris
na década de 40. Na leitura que Lacan faz há também algo que se perde na tradução,
mas que não invalida a originalidade da leitura.
Estes dois artigos, de argumentação aparentemente tão diversa, acabam por
recolocar em cena uma questão historicamente muito importante na psicanálise, mas
atualmente um tanto esquecida, ou seja, as relações entre o universal suposto na cultura
e na linguagem com o existencial presente na clínica, na fala e na escrita particular de
um autor. Lembro a vocês que esta foi o veio candente pelo qual Freud se viu obrigado
a formular esta espécie de antropologia ficcional que é Totem e Tabu, que trouxe à luz
textos como O Sentido Antitético das Palavras Primitivas e que antes disso aparecia na
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controvérsia com o grupo de Viena e com Jung acerca do simbolismo universal. Nos
anos 1930-50 foi exatamente esta discussão acerca da universalidade do inconsciente,
das formas da pulsão e da experiência edípica que marcou o debate da psicanálise com a
antropologia e a controvérsia acerca da cientificidade da psicanálise. Na esteira deste
debate se pode entender tanto a absorção do tema da universalidade à noção de estrutura
e de linguagem em Lacan, quanto à absorção das categorias universais do pensamento,
em chave kantiana ou neokantiana, como vemos em Bion. Também a absorção
psicanalítica do universal de corte biológico ou humanista, que se verifica em tantas
outras linhagens psicanalíticas, está exposta à mesma questão.
No fundo a questão chave que encontramos nos dois textos comprime-se na
noção de tradução. No famoso texto de Lévy-Strauss, sobre A Estrutura dos Mitos, que
serviu de modelo para todas as variantes do estruturalismo, e de anti-modelo para vários
dos deslocamentos pós-estruturalistas, encontramos uma afirmação metodológica
crucial: para estudar uma formação de linguagem, no caso a narrativa mítica de Édipo,
jamais podemos confinar nossa própria análise no mesmo nível de linguagem em que tal
formação se expressa. Assim, analisar a narrativa mítica por intermédio de uma outra
narrativa não corresponde a uma verdadeira análise, mas a uma extensão do mito que se
queria examinar. Ou seja, a análise estrutural é imanente à suposição de que existem
níveis crescentemente formais e qualitativamente distintos de linguagem. Cada nível
funciona como uma espécie de meta-linguagem do nível que procura compreender e a
formação de linguagem analisada é abordada como uma língua objeto. Aqui surge um
primeiro problema: seriam os conceitos, no sentido tradicional do termo, de fato
elementos qualitativamente diferentes dos termos narrativos ou eles funcionariam, de
fato, como uma meta-linguagem ? Ao que tudo indica, o interesse de Lacan por Frege,
que se explicita longitudinalmente a partir do Seminário sobre os Problemas Crucias da
Psicanálise (1965-1965) é uma tentativa de resolver este problema. Segundo Frege todo
conceito deve ser analisado segundo sua intensão e sua extensão. A intensão exprime a
forma número que pertence ao objeto, a extensão designa o campo de emprego válido
do objeto a que se refere o conceito. Esse movimento teórico foi importante para fazer
Lacan superar o problema da tradução como metalinguagem, pois, a rigor não haveria
transposição completa e superação de um nível de linguagem por outro, apenas
variações lógicas, e não lingüísticas, de apresentação dos problemas. Compreende-se
porque só depois deste momento Lacan passa a insistir na fórmula: “não há
metalinguagem”. Ou seja, o que é descartado não é exatamente a existência de conceitos
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ou a própria noção de língua-objeto, mas o princípio que ordenava a relação entre


ambos no quadro do estruturalismo primordial, a saber, o princípio de tradução.
Mas a discussão pode voltar a assumir um tom lingüístico se observamos que
esta mesma dificuldade contornada pelo recurso à Frege reverbera em outras categorias,
mas próximas à de tradução. Ora, traduzir, intuitivamente, é passar de uma língua para
outra, fazendo com que nesta operação substitua-se o significante mantendo o mesmo
significado. Ora, esta pressuposição de permanência do significado é precária, e não
precisamos da psicanálise para saber disso. “Tradutor, traidor”, diz o antigo adágio. No
fundo a tradução nos remete ao antigo problema antropológico da comensurabilidade
entre culturas e ao problema filosófico do círculo hermenêutico. Mas a solução fregena
tem um correlato lingüístico nas categorias de transcrição e transliteração. Não se trata
de passar apenas de uma língua para outra, mas eventualmente passar de um meio de
expressão para outro, como da fala oral para a fala escrita, ou ainda de um sistema de
escrita para outro, como do japonês para o inglês.
A confiança estruturalista da linguagem como universal aplica-se apenas à
língua e não à fala, que para Saussure seria objeto de uma outra ciência, talvez a
psicolingüística. Quando adicionamos a escrita o problema se torna ainda mais
complexo. Considerados os diferentes sistemas de escrita, apenas no universo
glotográfico, há uma disparidade irredutível entre os sistemas logográficos e
fonográficos e dentro dos fonográficos há ainda distinções substanciais entre o caso das
escritas silábicas, segmentais ou traçais. Ou seja, no âmbito dos sistemas de escrita
simplesmente não se pode afirmar as grandes propriedades estruturais descritas por
Saussure para a linguagem: linearidade, diferença, articulação de primeira ordem e
segunda ordem, etc.
Isso nos leva a ampliar a hipótese dos “restos” de tradução acumulando sobre
estes a deriva transcritiva e o deslocamento transliterativo, aliás como demonstrou
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Allouch no que toca a suas conseqüências para a psicanálise. A manobra fregeana de
Lacan acaba substituindo o método de descrição lingüístico pelo método de descrição
lógico, com isso o universal de referência deixa de ser a linguagem e passa a ser a
escrita. Neste movimento a lógica passa a ser considerado um sistema de escrita, como
tal, potencialmente universalizável e translingüístico. Aqui surge um novo problema.
Qual destes de sistemas de linguagem será unificado e consistente o suficiente para que

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Allouch, J. – Letra a Letra, Companhia de Freud, Rio de Janeiro, 2000.

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possa garantir sua universalidade ? Neste ponto Lacan encontra os limites do


formalismo, legado pelo projeto de Hilbert na matemática e pelo Grupo Bourbaki, no
campo da lógica. Sua expressão mais conhecida reside no famoso teorema de Godel,
mas esta não é a única maneira de considerar a fragilidade dos universais de tipo lógico.
A empreitada lacaniana chega a uma nova volta quanto em L´Etourdit, Lacan afirma,
como uma espécie de princípio epistemológico geral, de que “não há universal que não
contenha uma existência que o negue”. Retorno à Hegel ?
Observemos como tais problemas se comportam no âmbito de nossos dois textos
de referência. Ao tomar o texto dos mitos épicos japoneses, Shingu não utiliza seus
elementos como categorias fixas que funcionariam como uma espécie de chave
semântica da fala, da paicente. Em primeiro lugar ele textualiza a fala da paciente,
recorta seus elementos convergentes e repetitivos, em segundo lugar ele trabalha com o
texto escrito dos mitos e os reconverte para a fala da paciente em aproximações que não
gravitam sobre a permanência do significado. É por isso que ele não precisa apelar para
um sistema de leitura de tipo arquetipal-junguiano, sua demonstração inclui inclusive
elementos visuais, que neste caso não devem ser lidos como mera ilustração do “dado
textual” ou retórica de seu esclarecimento. Os elementos visuais indicam o problema da
passagem de um sistema de escrita para outro, como no caso do rébus. Isso fica ainda
mais pertinente pelo fato do sistema de escrita japonês, principalmente o empregado em
textos da antiguidade, não ser em absoluto um decalcamento da língua falada. Ou seja, o
que se fala não é em absoluto comensurável com o que se lê, há duas operações
envolvidas aqui na produção do sentido, a transliteração e transcrição. Talvez tenha sido
isso que levou Barthes a abandonar o estruturalismo logo depois de ter contado com a
língua japonesa.
O universal da língua negado pelo existencial da escrita, essa é a grande
demonstração subreptícia ao texto de Shingu. O texto de Parker vai no sentido
complementar. Ao mostrar a impossibilidade de uma tradução radical do texto de Lacan
para o inglês, e aqui há vários bons argumentos levantados. Fica claro que o universal
da escrita é negado pelo existencial da língua. É um caso prático no qual se demonstra
que a transmissão completa, representada pela confiança no matema, é impossível não
porque o matema prescinda de tradução ou porque ele teria uma base conceitual sem a
qual se torna inútil, mas porque a existência da língua é a forma como verificamos a
negação do universal do sentido. Ambos os trabalhos nos fazem retornam, portanto, aos

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problema dos fundamentos de uma antropologia psicanalítica que nãos e queria mera
expressão de um novo humanismo.

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