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Rabello
Construção subjetiva e prematuridade
na UTI neonatal
> Key words: Preterm baby, intensive care unit, process of subjectiveness
Os avanços tecnológicos têm possibilitado Esse trabalho é uma reflexão sobre as con-
intervenções na natureza biológica de for- dições de subjetivação dos bebês prematu-
ma extremamente veloz, promovendo gran- ros que permanecem por um período
des mudanças na forma de subjetivação. As nessas unidades intensivas de tratamento.
UTIs neonatais se constituem num dos ce- Será utilizada uma abordagem psicanalítica
nários importantes desta questão. para compreensão desse processo dentro
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das UTIs neonatais e as possíveis conseqü- traumática do nascimento e das internações
ências destas vivências ao longo do desen- que não puderam ser elaboradas.
volvimento destas crianças. O Instituto Fernandes Figueira, aonde se
Seria bom caracterizarmos que bebê pre- realizou a pesquisa que resultou neste tra-
maturo está sendo definido conforme a OMS balho, tem como uma de suas prioridades a
(Organização Mundial de Saúde) e a FIGO interação mãe bebê, como uma das variá-
(Federação Internacional de Ginecologia e veis importantes para futuras aquisições
Obstetrícia) – a prematuridade ocorre quan- dessas crianças. Muitos estudos têm sido
do há interrupção de gravidez antes de feitos.
completar 37 semanas. O que não significa Contudo, estudos que privilegiam a via fan-
que o bebê deverá ficar numa incubadora, tasmática não são tão numerosos assim.
o que depende de seu estado. Entendemos por via fantasmática a via de
Este trabalho se dirige aos bebês que não acesso possível para a vida imaginária do
podem prescindir dos cuidados das uni- sujeito, que lhe permite representar a si
dades intensivas de tratamento onde esta- mesmo e a sua história na relação com o
belecerão suas primeiras formas de outro de forma única e singular, encarnan-
comunicação extra-útero. Suas primeiras do seu próprio corpo.
inscrições psíquicas se farão neste ambi- Esta singularidade de resposta emerge em
ente estressante para eles, seus pais e a tessitura com o biológico e começa nas par-
equipe. ticularidades do organismo do bebê e nas
Muitos estudos apontam para uma correla- vicissitudes que este organismo irá enfren-
ção entre a saúde mental e a qualidade das tar ao longo de sua existência (Bezerra,
experiências iniciais de vida e algumas pa- 1999).
tologias são consideradas como resultantes Essa expressividade é o exercício do que
de conflitos e sofrimentos que ocorrem nes- Canguilhem (1999) denominou de normativi-
te período. Daí a importância de estabele- dade vital, que é atributo de todo ser vivo
cer estratégias em programas de saúde e que se manifesta de forma singular em
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bês prematuros que passaram pelas UTIs hospitalares, onde a vigência das normas é
nos sinalizam que apesar de todo esforço, importante para o bom andamento do ser-
muitos não são salvos, outros vão para casa viço. Para Canguilhem ser saudável não é
com seqüelas importantes e outros, não in- ser normal, é ser normativo. É atender às
cluídos nestas situações extremadas, apre- exigências do meio e principalmente criar
sentam distúrbios que parecem ser novas formas de funcionamento para si
ressignificações importantes da experiência próprio, sempre que isto se fizer necessário.
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De certa forma isto diz também da questão denominou esta situação. Haveria um pre-
do trabalho – a construção subjetiva. Do paro inicial para este confronto, assegura-
encontro com o outro nos constituímos in- do pelos cuidados maternos.
ternamente ao mesmo tempo em que somos Num ponto do desenvolvimento primitivo,
introduzidos na ordem simbólica da cultura a tensão inicial gera uma necessidade de
a que pertencemos. O que nos permite di- criar algo que a alivie, sem que o bebê sai-
zer que o processo de subjetivação é conco- ba exatamente o que deve ser criado. A
mitante ao processo de socialização. mãe ao oferecer o seio, oferece com isto a
É também nesta articulação entre eu e o capacidade do filho se iludir, fazendo-o crer
outro que emerge o espaço que possibilita a que uma realidade externa corresponde à
criação, onde se produzirão objetos que irão sua capacidade de criar.
condensar a realidade externa e a realida- Há uma sobreposição entre a realidade ex-
de interna, constituindo uma área de expe- terna e a realidade interna, dando ao bebê
rimentação. uma sensação de onipotência, a ilusão de
Os avanços tecnológicos são resultado des- que não só é capaz de criar, como é capaz
ta capacidade e permitiram ao homem de ter um controle sobre a realidade. Esta
criar as unidades intensivas de tratamen- ilusão sustenta a experimentação, o poder
to para melhorar o desenvolvimento dos experimentar o mundo e se confrontar com
bebês. as frustrações.
A criação de instrumentos perpassa a histó- A tarefa final da mãe será a desilusão gra-
ria de cada um e da humanidade desde dativa, possível graças à confiança gerada
sempre. A visão psicanalítica deste fato, o entre eles. O bebê passará a entremear ou-
concebe como resultante da dependência tros objetos “que não eu”, fazendo uso dos
que o recém nascido tem de outro ser hu- mesmos dentro de uma área de experimen-
mano, pelo seu desamparo inicial, o que o tação intermediária, suturando esta separa-
leva a constituir com este de quem depen- ção eu/ambiente com um objeto que supõe
de, um sentimento de “ser uno com o mun- pertencer ao interno e ao externo.
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se proteger. É assim que frente aos perigos entre a brincadeira, a arte, a religião e a
que geram desprazer ou sofrimento, o ho- experiência científica.
mem não cessa de criar instrumentos para Brincava a criança
se proteger e tornar seu universo mais pra- Com um carro de bois.
zeroso. Sentiu-se brincando
Winnicott (1978), psicanalista inglês, vê sob E disse, eu sou dois.
outro prisma este teste de realidade, como Fernando Pessoa, Presságio
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Criar e construir objetos é um recurso hu- nológicas que têm o cerne do pensamento
mano que atravessa a história, mas sabemos contemporâneo, a saber, a transcendência
que nossas práticas sociais não só consti- da condição humana.
tuem a história, como também resultam Isto parece nos referir a um desejo frio,
dela. Aparelhos e ferramentas exprimem as desprovido de um sujeito desejante, silen-
formas sociais que os produzem, formando ciado pelo discurso científico (Tort,2001).
verdadeiras teias de pensamento que per- Mas pelo menos por ora, o apagamento do
passam o corpo social imprimindo novas sujeito não é possível, ele ainda se faz ou-
formas de ser e estar no mundo. (Sibilia, vir. A vida é sempre capaz de opor resistên-
2002) cias aos dispositivos desvitalizantes.
É assim que o sujeito da modernidade, regido Atualmente quase todos os dispositivos da
pela razão, cria instrumentos e técnicas vida são passíveis de serem reproduzidos,
para tentar usurpar as prerrogativas divi- mas a capacidade de amar ainda é o mais
nas da era medieval. Regido pela dicotomia difícil de ser imitado (Sibilia, 2002).
corpo e mente, pretende através da razão O que a psicanálise pode fazer para compre-
criar instrumentos que aperfeiçoem o fun- ender a interferência dos dispositivos téc-
cionamento do corpo, preservando sua con- nicos na construção dos sujeitos, diz
cepção naturalista. respeito ao custo do desejo frente aos limi-
Já na pós modernidade, a certeza racional tes que se impõem nas diferentes organiza-
do sujeito moderno cede lugar às incertezas ções sócio culturais nas quais o sujeito
contingentes do modo de subjetivação. O desponta.
sujeito pós moderno é concebido como não O que compete à psicanálise é ouvir o ques-
tendo uma identidade fixa e as possibilida- tionamento e rearranjos que os sujeitos fa-
des tecnológicas deste tempo trazem em zem diante das novas formas de sujeição
seu bojo o cerne deste pensamento, bus- aos avanços que se apresentam. Mesmo
cando uma transcendência humana, tor- não desconsiderando os referenciais histó-
nando incerta a delimitação do que é ricos e sociológicos que atravessam os dis-
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jetória que nos singulariza, conferindo uma frente ao desejo do próprio sujeito, esta-
história à nossa vida somática. mos como Françoise Dolto (1992), sinalizan-
A tecnologia garante a sobrevivência para do uma fonte autônoma de desejo que se
os bebês que desejam sobreviver, mas para evidencia desde a concepção. Nascer é uma
dar sustentação ao desejo de viver e conti- opção que alguns podem fazer e o fazem.
nuar existindo é preciso que alguém queira Da antiga condição de passividade o bebê
este bebê, que este desejo encontre resso- passa a ser um outro reconhecido em seu
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estatuto de subjetividade, um vir a ser. As antiga terra natal do homem, quando as di-
imagens ultrasonográficas e os avanços da ferenças sexuais ainda não estão em ques-
neonatologia vieram corroborar o que se tão, mas ser um com o outro, sim), a
previa, que os bebês interagem com o meio compulsão à repetição (que traz à tona nos-
e não só de forma reflexa, a partir desta sos pensamentos mais primitivos, recobrin-
interação delimitam uma trajetória singu- do realidade material e psíquica) e o
lar, o que nos permite pensá-los como sujei- confronto com a morte (que persistimos em
tos participativos que tanto se sujeitam a negar).
mudanças quanto as induzem. Esta vivência de estranheza nos leva a crer
Antes da linguagem falada, os bebês estão que estamos diante de uma metáfora do
imersos num campo sensorial, referidos a próprio psiquismo. Ou não seria a vida psí-
outro humano, emitindo e recebendo sinais quica este percurso que fazemos em busca
que os mantêm enredados num sentimen- de um outro e que, em encontros e desen-
to de coesão e unidade. Esta coesão garan- contros, vamos estabelecendo sentidos para
te o sentimento de continuar existindo, o tornar suportáveis as tensões que se esta-
que possibilita frente aos sustos que a vida belecem entre o nascimento e a morte?
nos apresenta, em momentos de mudança, Esta travessia que fazemos regulamente na
a não cedermos a um desmoronamento. vida, na UTI a fazemos em regime de urgên-
Algumas vezes o real choca o “eu”, enfra- cia. Mas o estranho que ao mesmo tempo
quecendo seus contornos, exigindo-lhe re- nos desaloja do lugar onde estávamos, nos
organizações. Estes momentos se tornarão induzindo a um encontro com velhos fan-
traumáticos ou não, dependendo direta- tasmas, é o que pode fazer emergir o novo
mente de como os que estão envolvidos (Kristeva,1994).
neste campo de afetação irão interagir. Esse resgate que nos reposiciona, poderia
Conforme a interação, o sujeito poderá fa- ser entendido como uma das funções sim-
zer circular sentidos ou sucumbir à parali- bólicas da UTI. Todos se lançam na tarefa de
sação. resgate do bebê em risco, resgatando todos
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Esse choque nos leva à sensação de estra- que ali estão, cada um de nós, um pouco de
nhamento que, segundo Freud (1919), nada nós mesmos. O bebê da UTI é, como afirma
mais é que a vinda à tona de tudo aquilo que Druon (1996), “uma vida nas portas da vida”.
deveria permanecer secreto. Portanto, o A UTI pode funcionar como um objeto supor-
estranho é algo de familiar mas que perma- te para a mãe, posto que acena com uma es-
nece oculto. perança de vida para seu bebê, ao mesmo
ano XVII, n. 181, março/2005
Entrar na UTI é um choque. Este lugar cria- tempo que, como limiar, lhe oferece contor-
do pela condensação do que é interno e ex- nos, permitindo-lhe dar expressividade à
terno, na verdade, expõe nossas cisões. sua função junto ao filho. Contudo os confli-
Traz à tona, como nos mostra Freud (1919), tos que lá ocorrem nem sempre permitem
o que recalcamos em nossa trajetória em viabilizar o exercício desta função simbólica.
busca de autonomia: o confronto com o fe- Os pais, frente a dura realidade orgânica
minino (primitiva fantasia de entrada na que o bebê apresenta, se vêem, às vezes,
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impossibilitados de criar um bebê fantasmá- tra coisa que não seja a luta entre a vida e
tico no qual o bebê real possa se projetar. a morte. Neste sentido, bebês e equipe es-
O vir a ser, a promessa de sonhos que a tão investidos na mesma direção, um por-
criança representa, dá lugar a interroga- que isto ameaça sua constituição física e
ções. A qual projeto é possível aderir? Os psíquica e o outro porque isto o constitui
pais perdem a capacidade de imaginar o fu- profissionalmente. Para Pitta (1991) o obje-
turo e se vêm presos ao presente, o que os to de trabalho do intensivista – a dor, o so-
impede de construir histórias. O tempo dos frimento e a morte do outro se constitui
pais de elaboração, às vezes se estende como causa de seu sofrimento profissional.
para além da internação, impedindo-os de Isolados em suas vivências, é possível infe-
se oferecer como ancoragem simbólica para rir que todos funcionam no limite de suas
o bebê ou de fazer um investimento narcí- resistências, com a diferença de que o ego
sico neste período critico para que o filho do bebê é um ego em formação, com poucos
possa se constituir. recursos para lidar com os impactos que
Embora os hospitais tenham aberto as por- ameaçam sua integridade. O risco se impõe
tas para a permanência das mães, muitas pela impossibilidade de fazê-lo entrar num
vezes a realidade do hospital funciona como circuito desejante.
um obstáculo. Não basta manter a presen- Mas, se nos desprendermos da situação de
ça, é necessário animar o discurso materno risco e adentrarmos no campo das oportu-
que impulsiona a construção subjetiva do nidades, é possível dizer que sabe viver
bebê, reconhecendo este discurso. aquele que pode estabelecer, através de
O tempo do bebê é um tempo de antecipa- uma confiança nos laços iniciais, uma opor-
ção e a antecipação do parto exige uma tunidade de experimentar o que a vida nos
reorganização de sua imagem, que ainda apresenta de forma única e original (Winni-
não está preparado para assumir. Não cott, 1978).
pode se projetar na antecipação do campo Talvez, se fosse possível fazer uma articu-
lação desse descompasso de tempo pela li-
do outro e terá que advir de um campo de
nha do afeto, utilizando um intermediário
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plicado.
neo. O investimento está todo concentrado
Colocar palavras sobre o sofrimento de uma
na manutenção da sobrevivência, o que prova para quem pode ouvir e prestar atenção
contribui para o esvanecimento do sujeito. ao sujeito que lhe fala, confiando nele,
Seja com quem for, fazer parcerias neste apazigua a angústia e sem angústia é possível
ambiente não é fácil. Difícil se deixar en- passar a agudez das provas e encontrar a
cantar por este bebê pela sua aparência, solução por si mesmo.
assim como é difícil também, pensar em ou- Dolto, 1992
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Considerando a impossibilidade de palavra existência. Neste contexto não basta
do bebê, o que se propõe é que se crie um procurar resgatar a competência ma-
espaço de ilusão, onde as palavras dos que terna, mas, sobretudo, oferecer um es-
lhe cuidam, permitam uma amarração sim- paço onde se torne possível o estabele-
bólica que produza um efeito de alteridade, cimento de uma continuidade entre a
de subjetividade no bebê. dimensão fantasmática e real, feita de
Zornig (2001) nos aponta para três dimen- palavras.
sões do trabalho psicanalítico dentro de uma Lembremos que o traumático só se constitui
UTI neonatal, que seria interessante trans- como tal, se o silêncio substitui o dizer. Se
crevermos: for possível falar sobre o sofrimento e a dor
• Em relação à equipe médica e de enfer- com alguém que reconheça aí um sujeito que
magem, trata-se de poder sustentar a sofre, é possível transpor as duras provas
alternância necessária entre o bebê en- que se apresentam.
quanto objeto de cuidados (que possibi- O nascimento do sujeito se dá através dos
lita a estes profissionais manuseá-lo e indícios estabelecidos entre as afetividades.
efetuar procedimentos que garantam É preciso imaginar uma categoria de indí-
sua sobrevivência) e o bebê em sua di- cios, vestígios de um contato, de uma espe-
mensão de sujeito que sofre estas inter- ra, de uma maneira de tocar, indicações de
venções através de palavras que evitem que algo se passa, que indo além das pala-
a repetição automática ou a tentativa de vras estabelece a existência de algo ou de
manter esta ruptura entre o bebê e a alguém.
subjetividade do bebê; Falar e escrever sobre este assunto são o
• Em relação aos pais é preciso sustentar resultado de um desdobramento de senti-
uma transferência em um tempo retro- dos causados pela surpresa, tornado possí-
ativo, de ressignificação da história in- vel graças à rede de apoio que se instituiu
dividual dos mesmos, assim como em um com as mães e bebês que me permitiram
tempo de construção da estrutura fami- compartilhar de suas vivências e as que se
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