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Angela M.

Rabello
Construção subjetiva e prematuridade
na UTI neonatal

Os avanços tecnológicos têm possibilitado intervenções na natureza biológica de


forma extremamente veloz, promovendo grandes mudanças nas formas de
subjetivação. As UTIs. Neonatais se constituem num dos cenários importantes desta
questão. Esse trabalho é uma reflexão, dentro de uma concepção psicanalítica, sobre
as condições de subjetivação dos bebês prematuros que permanecem por um
período nessas unidades intensivas de tratamento.
> Palavras chaves: Bebê prematuro, unidade de terapia intensiva, construção subjetiva

Technological advance has permitted intervening on biological nature in an extreme


rapid way, promoting deep transformations in the forms of subjectiveness. Neonatal
ICU is one of the most important scenarios for this question. This research is a
reflection, according to a psychoanalytical conception, about the subjectiveness
conditions of preterm babies that stay for a period in those intensive treatement
units.
pulsional > revista de psicanálise > artigos > p. 46-53

> Key words: Preterm baby, intensive care unit, process of subjectiveness

... se quem fui é enigma/ E quem serei


visão, /Quem sou ao menos
sinta/Isto no coração ...
Fernando Pessoa, Isto
ano XVII, n. 181, março/2005

Os avanços tecnológicos têm possibilitado Esse trabalho é uma reflexão sobre as con-
intervenções na natureza biológica de for- dições de subjetivação dos bebês prematu-
ma extremamente veloz, promovendo gran- ros que permanecem por um período
des mudanças na forma de subjetivação. As nessas unidades intensivas de tratamento.
UTIs neonatais se constituem num dos ce- Será utilizada uma abordagem psicanalítica
nários importantes desta questão. para compreensão desse processo dentro
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das UTIs neonatais e as possíveis conseqü- traumática do nascimento e das internações
ências destas vivências ao longo do desen- que não puderam ser elaboradas.
volvimento destas crianças. O Instituto Fernandes Figueira, aonde se
Seria bom caracterizarmos que bebê pre- realizou a pesquisa que resultou neste tra-
maturo está sendo definido conforme a OMS balho, tem como uma de suas prioridades a
(Organização Mundial de Saúde) e a FIGO interação mãe bebê, como uma das variá-
(Federação Internacional de Ginecologia e veis importantes para futuras aquisições
Obstetrícia) – a prematuridade ocorre quan- dessas crianças. Muitos estudos têm sido
do há interrupção de gravidez antes de feitos.
completar 37 semanas. O que não significa Contudo, estudos que privilegiam a via fan-
que o bebê deverá ficar numa incubadora, tasmática não são tão numerosos assim.
o que depende de seu estado. Entendemos por via fantasmática a via de
Este trabalho se dirige aos bebês que não acesso possível para a vida imaginária do
podem prescindir dos cuidados das uni- sujeito, que lhe permite representar a si
dades intensivas de tratamento onde esta- mesmo e a sua história na relação com o
belecerão suas primeiras formas de outro de forma única e singular, encarnan-
comunicação extra-útero. Suas primeiras do seu próprio corpo.
inscrições psíquicas se farão neste ambi- Esta singularidade de resposta emerge em
ente estressante para eles, seus pais e a tessitura com o biológico e começa nas par-
equipe. ticularidades do organismo do bebê e nas
Muitos estudos apontam para uma correla- vicissitudes que este organismo irá enfren-
ção entre a saúde mental e a qualidade das tar ao longo de sua existência (Bezerra,
experiências iniciais de vida e algumas pa- 1999).
tologias são consideradas como resultantes Essa expressividade é o exercício do que
de conflitos e sofrimentos que ocorrem nes- Canguilhem (1999) denominou de normativi-
te período. Daí a importância de estabele- dade vital, que é atributo de todo ser vivo
cer estratégias em programas de saúde e que se manifesta de forma singular em
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materno-infantil que tenham como alvo de cada indivíduo.


atenção estas primeiras experiências que Com este conceito podemos falar de algo
estabelecerão padrões de respostas e pau- que é da ordem da singularidade em cone-
tas de conduta nestes seres humanos em xão com a sujeição às normas. Ponto inte-
formação. ressante para ser remarcado, porque este
Os resultados dos acompanhamentos de be- trabalho diz respeito também às instituições
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bês prematuros que passaram pelas UTIs hospitalares, onde a vigência das normas é
nos sinalizam que apesar de todo esforço, importante para o bom andamento do ser-
muitos não são salvos, outros vão para casa viço. Para Canguilhem ser saudável não é
com seqüelas importantes e outros, não in- ser normal, é ser normativo. É atender às
cluídos nestas situações extremadas, apre- exigências do meio e principalmente criar
sentam distúrbios que parecem ser novas formas de funcionamento para si
ressignificações importantes da experiência próprio, sempre que isto se fizer necessário.
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De certa forma isto diz também da questão denominou esta situação. Haveria um pre-
do trabalho – a construção subjetiva. Do paro inicial para este confronto, assegura-
encontro com o outro nos constituímos in- do pelos cuidados maternos.
ternamente ao mesmo tempo em que somos Num ponto do desenvolvimento primitivo,
introduzidos na ordem simbólica da cultura a tensão inicial gera uma necessidade de
a que pertencemos. O que nos permite di- criar algo que a alivie, sem que o bebê sai-
zer que o processo de subjetivação é conco- ba exatamente o que deve ser criado. A
mitante ao processo de socialização. mãe ao oferecer o seio, oferece com isto a
É também nesta articulação entre eu e o capacidade do filho se iludir, fazendo-o crer
outro que emerge o espaço que possibilita a que uma realidade externa corresponde à
criação, onde se produzirão objetos que irão sua capacidade de criar.
condensar a realidade externa e a realida- Há uma sobreposição entre a realidade ex-
de interna, constituindo uma área de expe- terna e a realidade interna, dando ao bebê
rimentação. uma sensação de onipotência, a ilusão de
Os avanços tecnológicos são resultado des- que não só é capaz de criar, como é capaz
ta capacidade e permitiram ao homem de ter um controle sobre a realidade. Esta
criar as unidades intensivas de tratamen- ilusão sustenta a experimentação, o poder
to para melhorar o desenvolvimento dos experimentar o mundo e se confrontar com
bebês. as frustrações.
A criação de instrumentos perpassa a histó- A tarefa final da mãe será a desilusão gra-
ria de cada um e da humanidade desde dativa, possível graças à confiança gerada
sempre. A visão psicanalítica deste fato, o entre eles. O bebê passará a entremear ou-
concebe como resultante da dependência tros objetos “que não eu”, fazendo uso dos
que o recém nascido tem de outro ser hu- mesmos dentro de uma área de experimen-
mano, pelo seu desamparo inicial, o que o tação intermediária, suturando esta separa-
leva a constituir com este de quem depen- ção eu/ambiente com um objeto que supõe
de, um sentimento de “ser uno com o mun- pertencer ao interno e ao externo.
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do externo como um todo” (Freud, Como conseqüência haverá uma aceitação


1930[1929]). gradativa da realidade, mas nunca de for-
Em momentos posteriores de sua vida, em ma definitiva, porque nenhum ser humano
que se sinta outra vez desamparado, irá em ficará livre da tensão de relacionar reali-
busca do resgate deste sentimento, em dade interna e externa. Esta zona interme-
busca desta unidade com o universo para diária mantêm uma linha de continuidade
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se proteger. É assim que frente aos perigos entre a brincadeira, a arte, a religião e a
que geram desprazer ou sofrimento, o ho- experiência científica.
mem não cessa de criar instrumentos para Brincava a criança
se proteger e tornar seu universo mais pra- Com um carro de bois.
zeroso. Sentiu-se brincando
Winnicott (1978), psicanalista inglês, vê sob E disse, eu sou dois.
outro prisma este teste de realidade, como Fernando Pessoa, Presságio
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Criar e construir objetos é um recurso hu- nológicas que têm o cerne do pensamento
mano que atravessa a história, mas sabemos contemporâneo, a saber, a transcendência
que nossas práticas sociais não só consti- da condição humana.
tuem a história, como também resultam Isto parece nos referir a um desejo frio,
dela. Aparelhos e ferramentas exprimem as desprovido de um sujeito desejante, silen-
formas sociais que os produzem, formando ciado pelo discurso científico (Tort,2001).
verdadeiras teias de pensamento que per- Mas pelo menos por ora, o apagamento do
passam o corpo social imprimindo novas sujeito não é possível, ele ainda se faz ou-
formas de ser e estar no mundo. (Sibilia, vir. A vida é sempre capaz de opor resistên-
2002) cias aos dispositivos desvitalizantes.
É assim que o sujeito da modernidade, regido Atualmente quase todos os dispositivos da
pela razão, cria instrumentos e técnicas vida são passíveis de serem reproduzidos,
para tentar usurpar as prerrogativas divi- mas a capacidade de amar ainda é o mais
nas da era medieval. Regido pela dicotomia difícil de ser imitado (Sibilia, 2002).
corpo e mente, pretende através da razão O que a psicanálise pode fazer para compre-
criar instrumentos que aperfeiçoem o fun- ender a interferência dos dispositivos téc-
cionamento do corpo, preservando sua con- nicos na construção dos sujeitos, diz
cepção naturalista. respeito ao custo do desejo frente aos limi-
Já na pós modernidade, a certeza racional tes que se impõem nas diferentes organiza-
do sujeito moderno cede lugar às incertezas ções sócio culturais nas quais o sujeito
contingentes do modo de subjetivação. O desponta.
sujeito pós moderno é concebido como não O que compete à psicanálise é ouvir o ques-
tendo uma identidade fixa e as possibilida- tionamento e rearranjos que os sujeitos fa-
des tecnológicas deste tempo trazem em zem diante das novas formas de sujeição
seu bojo o cerne deste pensamento, bus- aos avanços que se apresentam. Mesmo
cando uma transcendência humana, tor- não desconsiderando os referenciais histó-
nando incerta a delimitação do que é ricos e sociológicos que atravessam os dis-
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humano. cursos, o que interessa é reconhecer o


Tudo isto se reflete num desenvolvimento sujeito em causa naquele momento dado
científico que se prontifica a monitorar as (Tort,2001).
produções de vida e a manipular os limites O trauma não se constitui no absoluto. Os
da vida e da morte. Esta paisagem sócio cul- arranjos e narrativas que se farão a respei-
tural moderna e pós moderna, se constituiu to das referências simbólicas, na história de
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na matriz que possibilitou o surgimento das cada um, é da ordem da singularidade e é


UTIs neonatais. disto que podemos cuidar.
Fundamentadas a princípio nas prerrogati- Criadas dentro desta paisagem sócio técni-
vas modernas, nas quais artefatos técnicos ca descrita, as UTIs neonatais são resulta-
eram utilizados para ampliar as capacidades do deste trabalho incessante de articulação
próprias ao corpo humano, hoje já se pode entre o que é interno e o que é externo. É
visualizar neste espaço, possibilidades tec- uma zona de fronteira que busca uma arti-
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culação entre a permanência e a fugacida- nância. Aos cuidados iniciais com seu corpo
de da vida. corresponderão suas experiências imagina-
Todos os que lá trabalham sabem, sem dizê- tivas e o interesse dos que os cercam não
lo, estar vivenciando a ilusão de serem ca- pode se limitar somente a seu corpo, é pre-
pazes de driblar os limites impostos pela ciso que se estabeleça uma comunicação
morte, pela fragilidade e pelas doenças, pela via do afeto para que a emergência do
para que os que lá estão, entregues aos eu se torne possível.
seus cuidados, possam sustentar suas vidas, Esta linguagem do afeto expressa mensa-
criando suas próprias versões a respeito. gens que se dão através dos procedimentos
Contudo a capacidade de criar esta zona de e para além deles, provendo de sentido e
ilusão, parece correr o risco de ficar com- história os corpos que estão envolvidos. Os
prometida nos bebês prematuros que per- cuidados maternos se constituem num cam-
manecem nas UTI s, limitando sua po privilegiado desta forma de expressão.
capacidade criativa de poder lidar com a Uma pré história acolhe o sujeito, através
vida. de seu nome será inscrito na ordem simbó-
Um descompasso de tempo entre os que lá lica e social e seu sobrenome o legitimará
estão – equipe, pais e bebês, parece contri- nesta linhagem. Frente a este discurso
buir para o estabelecimento de conflitos preliminar o sujeito deve se localizar e ad-
cuja repercussão incide no desenvolvimen- vir. O adulto traz para a criança o seu po-
to dos bebês. sicionamento frente ao mundo e a criança
Este descompasso de tempo dificulta o esta- deverá se posicionar de forma singular
belecimento de uma rede afetiva que faça frente ao que lhe é apresentado. A este
circular sentidos através de experiências processo denominamos de transmissão
compartilhadas. A construção da subjetivi- transgeracional.
dade exige tempo e o estado dos bebês pre- As atitudes inconscientes dos cuidadores
maturos exige instantaneidade. Esse agem sobre o inconsciente dos filhos deter-
descompasso gera problemas. minando pautas de conduta. Mas o determi-
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Quando estamos falando de experiências nismo desta genealogia não é absoluto, é


compartilhadas que geram sentidos, esta- contrabalançado pelo desejo do próprio su-
mos nos referindo a um tipo de comunica- jeito e pela capacidade dos cuidadores de
ção que possui formas diversas de colocar em palavras o não dito que por ve-
expressão. Este tipo de comunicação des- zes se expressa no corpo do filho.
lancha o processo de subjetivação, esta tra- Ao sinalizarmos os limites do determinismo
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jetória que nos singulariza, conferindo uma frente ao desejo do próprio sujeito, esta-
história à nossa vida somática. mos como Françoise Dolto (1992), sinalizan-
A tecnologia garante a sobrevivência para do uma fonte autônoma de desejo que se
os bebês que desejam sobreviver, mas para evidencia desde a concepção. Nascer é uma
dar sustentação ao desejo de viver e conti- opção que alguns podem fazer e o fazem.
nuar existindo é preciso que alguém queira Da antiga condição de passividade o bebê
este bebê, que este desejo encontre resso- passa a ser um outro reconhecido em seu
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estatuto de subjetividade, um vir a ser. As antiga terra natal do homem, quando as di-
imagens ultrasonográficas e os avanços da ferenças sexuais ainda não estão em ques-
neonatologia vieram corroborar o que se tão, mas ser um com o outro, sim), a
previa, que os bebês interagem com o meio compulsão à repetição (que traz à tona nos-
e não só de forma reflexa, a partir desta sos pensamentos mais primitivos, recobrin-
interação delimitam uma trajetória singu- do realidade material e psíquica) e o
lar, o que nos permite pensá-los como sujei- confronto com a morte (que persistimos em
tos participativos que tanto se sujeitam a negar).
mudanças quanto as induzem. Esta vivência de estranheza nos leva a crer
Antes da linguagem falada, os bebês estão que estamos diante de uma metáfora do
imersos num campo sensorial, referidos a próprio psiquismo. Ou não seria a vida psí-
outro humano, emitindo e recebendo sinais quica este percurso que fazemos em busca
que os mantêm enredados num sentimen- de um outro e que, em encontros e desen-
to de coesão e unidade. Esta coesão garan- contros, vamos estabelecendo sentidos para
te o sentimento de continuar existindo, o tornar suportáveis as tensões que se esta-
que possibilita frente aos sustos que a vida belecem entre o nascimento e a morte?
nos apresenta, em momentos de mudança, Esta travessia que fazemos regulamente na
a não cedermos a um desmoronamento. vida, na UTI a fazemos em regime de urgên-
Algumas vezes o real choca o “eu”, enfra- cia. Mas o estranho que ao mesmo tempo
quecendo seus contornos, exigindo-lhe re- nos desaloja do lugar onde estávamos, nos
organizações. Estes momentos se tornarão induzindo a um encontro com velhos fan-
traumáticos ou não, dependendo direta- tasmas, é o que pode fazer emergir o novo
mente de como os que estão envolvidos (Kristeva,1994).
neste campo de afetação irão interagir. Esse resgate que nos reposiciona, poderia
Conforme a interação, o sujeito poderá fa- ser entendido como uma das funções sim-
zer circular sentidos ou sucumbir à parali- bólicas da UTI. Todos se lançam na tarefa de
sação. resgate do bebê em risco, resgatando todos
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Esse choque nos leva à sensação de estra- que ali estão, cada um de nós, um pouco de
nhamento que, segundo Freud (1919), nada nós mesmos. O bebê da UTI é, como afirma
mais é que a vinda à tona de tudo aquilo que Druon (1996), “uma vida nas portas da vida”.
deveria permanecer secreto. Portanto, o A UTI pode funcionar como um objeto supor-
estranho é algo de familiar mas que perma- te para a mãe, posto que acena com uma es-
nece oculto. perança de vida para seu bebê, ao mesmo
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Entrar na UTI é um choque. Este lugar cria- tempo que, como limiar, lhe oferece contor-
do pela condensação do que é interno e ex- nos, permitindo-lhe dar expressividade à
terno, na verdade, expõe nossas cisões. sua função junto ao filho. Contudo os confli-
Traz à tona, como nos mostra Freud (1919), tos que lá ocorrem nem sempre permitem
o que recalcamos em nossa trajetória em viabilizar o exercício desta função simbólica.
busca de autonomia: o confronto com o fe- Os pais, frente a dura realidade orgânica
minino (primitiva fantasia de entrada na que o bebê apresenta, se vêem, às vezes,
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impossibilitados de criar um bebê fantasmá- tra coisa que não seja a luta entre a vida e
tico no qual o bebê real possa se projetar. a morte. Neste sentido, bebês e equipe es-
O vir a ser, a promessa de sonhos que a tão investidos na mesma direção, um por-
criança representa, dá lugar a interroga- que isto ameaça sua constituição física e
ções. A qual projeto é possível aderir? Os psíquica e o outro porque isto o constitui
pais perdem a capacidade de imaginar o fu- profissionalmente. Para Pitta (1991) o obje-
turo e se vêm presos ao presente, o que os to de trabalho do intensivista – a dor, o so-
impede de construir histórias. O tempo dos frimento e a morte do outro se constitui
pais de elaboração, às vezes se estende como causa de seu sofrimento profissional.
para além da internação, impedindo-os de Isolados em suas vivências, é possível infe-
se oferecer como ancoragem simbólica para rir que todos funcionam no limite de suas
o bebê ou de fazer um investimento narcí- resistências, com a diferença de que o ego
sico neste período critico para que o filho do bebê é um ego em formação, com poucos
possa se constituir. recursos para lidar com os impactos que
Embora os hospitais tenham aberto as por- ameaçam sua integridade. O risco se impõe
tas para a permanência das mães, muitas pela impossibilidade de fazê-lo entrar num
vezes a realidade do hospital funciona como circuito desejante.
um obstáculo. Não basta manter a presen- Mas, se nos desprendermos da situação de
ça, é necessário animar o discurso materno risco e adentrarmos no campo das oportu-
que impulsiona a construção subjetiva do nidades, é possível dizer que sabe viver
bebê, reconhecendo este discurso. aquele que pode estabelecer, através de
O tempo do bebê é um tempo de antecipa- uma confiança nos laços iniciais, uma opor-
ção e a antecipação do parto exige uma tunidade de experimentar o que a vida nos
reorganização de sua imagem, que ainda apresenta de forma única e original (Winni-
não está preparado para assumir. Não cott, 1978).
pode se projetar na antecipação do campo Talvez, se fosse possível fazer uma articu-
lação desse descompasso de tempo pela li-
do outro e terá que advir de um campo de
nha do afeto, utilizando um intermediário
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defesas contra a invasão do ambiente. Mes-


que acolhendo o vivido, o experimentado,
mo a sensação de continuidade de sua pele
ajudasse aos protagonistas destas cenas a
que poderia lhe dar algum contorno, se per-
colocar palavras que os situassem, redire-
de nas inúmeras vezes em que é invadido
cionando-os em relação às suas histórias,
pelos procedimentos médicos.
atravessar esta prova fosse menos com-
O tempo da equipe é o tempo do instantâ-
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plicado.
neo. O investimento está todo concentrado
Colocar palavras sobre o sofrimento de uma
na manutenção da sobrevivência, o que prova para quem pode ouvir e prestar atenção
contribui para o esvanecimento do sujeito. ao sujeito que lhe fala, confiando nele,
Seja com quem for, fazer parcerias neste apazigua a angústia e sem angústia é possível
ambiente não é fácil. Difícil se deixar en- passar a agudez das provas e encontrar a
cantar por este bebê pela sua aparência, solução por si mesmo.
assim como é difícil também, pensar em ou- Dolto, 1992
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Considerando a impossibilidade de palavra existência. Neste contexto não basta
do bebê, o que se propõe é que se crie um procurar resgatar a competência ma-
espaço de ilusão, onde as palavras dos que terna, mas, sobretudo, oferecer um es-
lhe cuidam, permitam uma amarração sim- paço onde se torne possível o estabele-
bólica que produza um efeito de alteridade, cimento de uma continuidade entre a
de subjetividade no bebê. dimensão fantasmática e real, feita de
Zornig (2001) nos aponta para três dimen- palavras.
sões do trabalho psicanalítico dentro de uma Lembremos que o traumático só se constitui
UTI neonatal, que seria interessante trans- como tal, se o silêncio substitui o dizer. Se
crevermos: for possível falar sobre o sofrimento e a dor
• Em relação à equipe médica e de enfer- com alguém que reconheça aí um sujeito que
magem, trata-se de poder sustentar a sofre, é possível transpor as duras provas
alternância necessária entre o bebê en- que se apresentam.
quanto objeto de cuidados (que possibi- O nascimento do sujeito se dá através dos
lita a estes profissionais manuseá-lo e indícios estabelecidos entre as afetividades.
efetuar procedimentos que garantam É preciso imaginar uma categoria de indí-
sua sobrevivência) e o bebê em sua di- cios, vestígios de um contato, de uma espe-
mensão de sujeito que sofre estas inter- ra, de uma maneira de tocar, indicações de
venções através de palavras que evitem que algo se passa, que indo além das pala-
a repetição automática ou a tentativa de vras estabelece a existência de algo ou de
manter esta ruptura entre o bebê e a alguém.
subjetividade do bebê; Falar e escrever sobre este assunto são o
• Em relação aos pais é preciso sustentar resultado de um desdobramento de senti-
uma transferência em um tempo retro- dos causados pela surpresa, tornado possí-
ativo, de ressignificação da história in- vel graças à rede de apoio que se instituiu
dividual dos mesmos, assim como em um com as mães e bebês que me permitiram
tempo de construção da estrutura fami- compartilhar de suas vivências e as que se
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liar, procurando mediar a descontinui- instituíram entre os pares profissionais


dade provocada pelo descompasso entre para pensar e discutir o assunto. Estas vi-
o bebê fantasmático, o bebê do narcisis- vências viabilizaram o texto e mais impor-
mo parental e a realidade do bebê que tante que tudo, me permitiram descobrir
ali está, apontando para um mais além quem eram os bebês que tive a oportunida-
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do que é possível ser visto; de de conhecer para além de suas impossi-


• A terceira dimensão se relaciona ao bilidades.
bebê no sentido de resgatar sua dimen- Este estranhamento que causam, é também
são de alteridade, ressaltando não só a o que permite que nos coloquemos numa
ação do desejo parental sobre o bebê, posição a partir da qual se torna possível
mas também seus próprios recursos que conduzir a “imagem”, o “aspecto visível”,
modelam o tipo de maternagem que lhe para além do que delimitam. É quando a
é oferecida e determinam seu estilo de pintura propõe uma inquietação, quando a
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cor não colore mais os objetos, ela própria KRISTEVA, J. Estrangeiros para nós mesmos. Rio
é matéria pela sua intensidade (Didi- de Janeiro: Rocco, 1994.
Huberman, 1995). PITTA, A. Hospital, dor e morte como ofício. São
Paulo: Hucitec, 1991.
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BEZERRA JR., B., Seremos sujeitos amanhã? In: jetividade e tecnologias digitais. Rio de Janei-
Cadernos de Psicanálise. Rio de Janeiro: CPRJ, ro: Relume-Dumará, 2002.
v. XXI, n. 13, 1999.
TORT, M. O desejo frio – Procriação artificial e
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de crises dos referenciais simbólicos. Rio de Janei-
Janeiro: Forense, 1999. ro: Civilização Brasileira, 2001.
DIDI-HUBERMAN, G. Fra-Angelico –dissemblance et WINNICOTT, D. W. Da pediatria à psicanálise. Rio
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DOLTO, F. A imagem inconsciente do corpo. São ZORNIG, S. Prematuridade e trauma. In: Tempo
Paulo: Perspectiva, 1992. psicanalítico: Revista da Sociedade de Psicaná-
DRUON, C. A l’écoute du bebé prematuré. Une vie lise Iracy Doyle. Rio de Janeiro, v. 33, 2001.
aux portes de la vie. France: Aubier, 1996.
FREUD, S. Obras completas. In: Edições Standard
Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
_____ O estranho, v. XVII, 1919.
_____ (1930[1929]). Mal estar na civilização, Artigo recebido em outubro de 2004
v. XXI. Aprovado para publicação em janeiro de 2005
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