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Até o século XIX, era comum a dissecação de cadáveres

em hospitais, sem que os médicos tomassem quaisquer cuidados higiênicos

http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/contagio/contagio-29.php

Semmelweis conseguiu reduzir as doenças nas maternidades, obrigando

os médicos a se lavarem cuidadosamente, antes e deopis das cirurgias

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Medicina hospitalar no século XIX
O século XIX foi caracterizado por grandes mudanças, pode-se afirmar que este estava
assente numa dicotomia entre a prática médica do ponto de vista teórico – Anatomia
clínica, e a Medicina Laboratorial, correspondendo respectivamente à primeira e
segunda metade do século XIX. A Medicina Laboratorial encontrava-se apoiada numa
crescente interacção entre ciências biológicas e não biológicas. As áreas como a
fisiopatologia, etiologia, físico-química e biologias modernas sofreram um grande
desenvolvimento, tendo sido protagonizadas por grandes nomes como o de Louis
Pasteur (1822-1895), Koch (1843-1910) e Claude Bernard (1813-1878).

No período correspondente à primeira metade do século XIX observou-se uma


crescente evolução ao nível das descobertas no campo científico e biomédico, assim
como na expansão de hospitais e na forma organizacional dos mesmos. No entanto, esta
evolução estava a afectar preferencialmente os países mais evoluídos da Europa,
(Inglaterra, França, Alemanha) e os Estados Unidos da América.

Criada por Anaisabelleonor

Na Inglaterra, houve um aumento significativo do número de hospitais, graças a empresários


que desafiaram padrões tradicionais e contribuíram para que houvesse suporte financeiro.
Começaram então a existir diferentes instituições hospitalares, gerais e especializadas. Em
1860 estavam estabelecidos em Londres, pelo menos, 66 hospitais especializados. Alguns dos
melhores hospitais especializados, ao nível de conhecimentos foram estabelecidos nos
primeiros dois terços do século XIX, podemos então ter como referências o Royal Hospital
(1814) especialista em doenças do peito; o St´s Mark Hospital (1835) em doenças cólon-
rectais; The Hospital for Sick Children (1852); The hospital for Diseases of Skin (1863); The
National Hospital (1860) em doenças nervosas; o St Peter´s Hospital (1864) em doenças
urológicas, entre outros. Estes hospitais eram encarados como opositores de hospitais de
clínica geral por aceitarem casos que estes tinham negado. Para não serem ultrapassados, os
hospitais de clínica geral começaram então a criar departamentos especializados. O médico
coordenava nesta altura, a admissão de pacientes, os trabalhadores, a marcação de consultas
e a politica hospitalar.

Apesar de existirem muitos hospitais especializados na Inglaterra a expansão deste tipo


de hospitais também passou por Paris (1802), Berlim (1830), São Petersburgo (1834),
Viena (1837) e nos Estados unidos da América (Massachusetts em 1824, Boston em
1832, Nova Iorque em 1836, na Filadélfia em 1855), tendo estes diferentes
especializações.

Em Londres as intuições era sólidas, no entanto, nos Estados Unidos da América devido
às grandes diferenças sociais existentes, houve necessidade de se estabelecer uma
organização social diferente. Para que pudesse existir uma consolidação, alguns
hospitais especializados dos Estados Unidos da América associaram-se a sociedades
particulares alemãs, italianas e judias, criando-se fortes laços.

Na Alemanha e Áustria as universidades e hospitais tinham uma íntima ligação e


cooperação. Mais tarde a Inglaterra criou também esse tipo de ligação.

O ensino trouxe os hospitais para a vanguarda da prática médica, consequentemente


houve necessidade de evolução no âmbito da cirurgia. No início do século XIX algumas
operações já eram realizadas nos hospitais.

Os hospitais de Paris tiveram uma grande ênfase ao nível cirúrgico, nos anos 40 do
século XIX, resultante da entrada da anestesia na medicina.

A expansão não veio simplesmente atrás do desenvolvimento. De facto, a meio do


século, tanto na Europa como na América assistia-se a uma enorme falta de confiança
nos hospitais devido a infecções que pareciam ser endémicas e a um elevado número de
mortes causadas por doenças provenientes das enfermarias cirúrgicas. Vários regimes
foram surgindo para combater esta fase, passando pela limpeza e desinfecção das
enfermarias, tal como a ventilação, tentado deste modo afastar a crença da infecção.

Ignaz Semmelweis (1818-1865) e Florence Nightingale (1820-1910) contribuíram com


teorias para estas reformas. Muitos planos diferentes para a redução da mortalidade na
cirurgia foram propostos antes de Joseph Lister (1827-1912). Ele apresentou o seu
regime anti-séptico baseado na teoria do germe de Pasteur, argumentando que devido à
presença de um germe específico que causava putrefacção nas feridas. Lister foi muito
importante para a transformação hospitalar e cirúrgica, onde a assepsia, anti-sépticos e
anestesia tornaram-se amplamente praticados no hospital. Com estas novas práticas a
cirurgia passou a ocorrer com mais frequência e permitiu a resolução de situações de
maior complexidade.

Os cirurgiões formados na Alemanha, foram lideres no desenvolvimento da cirurgia, os


quais iniciaram operações mais delicadas, como a abertura do abdómen sob condições
de assepsia.

Theodor Billroth (1829-1894), cirurgião alemão que se tornou mais tarde professor de
Viena, foi pioneiro na cirurgia abdominal, usando anti-sépticos, e posteriormente
métodos assépticos.

Richard Volkman (1850-1905), professor de cirurgia em Halle, Theodor Kocher (1841-


1917), professor da clínica cirúrgica em Berna, Johann von Mickulicz-Radecki 81830-
1889), professor de cirurgia em Breslau, Johann von Nussbaum (1829-1890), cirurgião
em Munique prestaram grandes contributos para a expansão cirúrgica. Todos eles
trabalharam em associação com grandes hospitais, e desempenhavam o papel de
professores em muitas cadeiras de cirurgia nas mais importantes escolas de medicina.
Desde 1860, que os laboratórios de química se associaram a grandes investigações, já
nos anos 80 e 90 do século XIX investigações bacteriológicas ligaram-se a laboratórios
hospitalares.

Claud Bernard, um fisiologista de renome, foi considerado um dos fundadores da


medicina experimental ou laboratorial, que veio assim destronar a medicina anátomo-
clínica. Descobriu em 1851 o glicogénio e a sua produção pelo fígado e em 1865
publicou Introdução ao estudo da medicina experimental.

Criada por Anaisabelleonor

Louis Pasteur, teve muita importância pois criou a bacteriologia patológica com o seu Memoire
sur la fermentation lactique (1857), em 1864 descobriu a existência de micro - organismos, que
provocavam doenças, criando as bases de uma nova teoria - teoria do germe; descobriu ainda
em 1880 o estreptococo, em 1881 desenvolveu a vacina contra o carbúnculo, em 1885,
alcançou o sucesso mais notável ao vacinar um jovem pastor, mordido por um cão raivoso,
injectando-lhe extractos da medula espinhal de um cão portador da doença.

O alemão Koch ficou conhecido pela identificação do bacilo da tuberculose, isolou


também o vibrião da cólera e definiu metodologias fundamentais para a investigação
bacteriológica e epidemiológica.

Koch juntamente com o inglês R. Ross (1857 – 1932), um dos grandes impulsionadores
da medicina e higiene tropicais.

Graças a Koch e ao seu trabalho, os laboratórios de bacteriologia tornaram-se parte


integrante dos hospitais, sendo também mais tarde integrados laboratórios patológicos.

Até então o papel do médico era observar e examinar extensamente o doente, tendo de
interrogá-lo, apalpá-lo e auscultá-lo, ponderando várias hipóteses para chegar a um
diagnóstico. Vindo em certos casos a anatomia tanatológica apoiar este tipo de
investigações. No entanto, este procedimento estava a mudar e começava a ser
introduzido o laboratório, usando aparelhos que doseiam e numeram as alterações
fisíco-quimicas. Um elevado número de elementos da classe médica passou não só a
examinar apenas, mas também a enviar amostras para esses, o que foi determinante para
a evolução da medicina.

Criada por Anaisabelleonor

A descoberta do raio X, por Wihelm Roentgen em 1895 foi bastante importante, pois
rapidamente começou a ser utilizado pelos médicos uma vez que permitia um diagnostico
mais preciso.

Neste século, também foram efectuadas inúmeras descobertas ao nível da genética, mas
só vieram a ter relevância no século XXI.

Com tanta inovação, não eram apenas os pacientes atraídos para o hospital como
também pessoas que queriam participar como agentes activos nestas novas técnicas de
investigação. Os hospitais foram então perdendo o seu estigma de caridade e tornaram-
se mais atractivos para os pacientes. O papel do hospital era agora mais do que uma
simples visita ao doutor ou farmacêutico.

A posição da enfermagem foi muito debatida, pois a imagem dos enfermeiros sofreu
uma grande transformação. A antiga falta de instrução era agora substituída por um
ensino e informação mais cuidada. Estas alterações levaram a classe média a procurar
hospitais. Graças à afluência da classe média aos hospitais, estes criaram serviços
especiais e quartos privados. Na Inglaterra alguns profissionais empreendedores
aproveitaram o aumento da procura dos cuidados hospitalares para estabelecerem as
suas próprias instituições.

No final do século XIX os hospitais tornavam-se um local de afirmação do poder


médico, graças à sua aliança com a ciência, como também devido à expulsão daqueles
que exerciam indevidamente a profissão. As práticas bárbaras da terapêutica médica,
citando como exemplo a purga e a sangria, foram remetidas para o campo tradicional. A
sociedade ocidental encontrava-se em euforia, com o início da aplicação do princípio da
vacinação preventiva e da soroterapia curativa relativamente às doenças microbianas.
Verificou-se então o aumento da generosidade por parte da sociedade para com os
investigadores, ficando estes com um melhor estatuto graças ao prestígio da ciência.

Graças a grandes descobertas e à implementação laboratorial, a medicina pôde e pode


evoluir.

http://pt.ars-curandi.wikia.com/wiki/Medicina_hospitalar_no_s%C3%A9culo_XIX
87. Graça, L. (2000) - Evolução do Sistema Hospitalar:
Uma Perspectiva Sociológica (III Parte). Europa: O
Sistema Tradicional (1096-1867) [The History of
Hospitals, Part III. Europe: The Traditional System
(1096-1867) ](a)

O hospital é uma das criações originais das cidades medievais do


Ocidente cristão.

A própria etimologia do termo é muito esclarecedora, não só sobre a


história da instituição como também sobre a sua acepção contemporânea.
A casa dos hóspedes, a domus hospitalis, tornou-se na Idade Média um
nome, o hospitalis, que por sua vez vem de hostis, o estrangeiro, quer se
trate de um amigo, de um hóspede, ou de um inimigo, um ser hostil.

O hospital é, de certo, este lugar com uma dupla faceta, as duas faces de
Janus, ao mesmo tempo atracção e repulsão. Traduz todas as
ambiguidades de um espaço, primordialmente destinado aos indigentes e
aos velhos, independentemente de toda e qualquer doença, e depois aos
doenets hipertécnicos, antes de ser  recupoerado pelos eu passado com a
chegada de pessoas precárias para quem o hospital é muitas vezes o
último recurso.

In "L'histoire de l'hôpital"

Fédération Hospitalière de France (2005.03.27) (tr. de L. G.)


http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos87.html
http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos88.html

1. Introdução: O Reconhecimento da Medicina como


Profissão

   

De acordo com o esquema proposto por Steudler (1974), e por mim


adaptado, esta fase vai genericamente de 1850 até à II Guerra Mundial. Em
França, é criado em 1945 o hôpital toutes classes, o hospital aberto a toda a
população, a todas classes sociais, na sequência da institucionalização da
Sécurité sociale (Chauvenet, 1978; Rochaix, 1996).

O pós-guerra é, além disso, marcado pela revolução terapêutica que, a par do


progressivo aumento do plateau técnico do hospital e do número dos seus
efectivos, irá provocar uma subida em flecha dos seus custos de exploração,
nomeadamente a partir da década de 1970.

Ao longo deste período de um século, o hospital vai tornar-se, pois, a pouco


e pouco, uma organização complexa: além das funções tradicionais de
acolhimento dos doentes pobres e da prestação de cuidados, tende cada vez
mais a ser um lugar de trabalho, de investigação, de ensino e de formação
dos profissionais de saúde.

A medicina hospitalar conservará, no entanto, uma estrutura liberal, no seio


de uma organização que tende a burocratizar-se, com a funcionarização
(mais do que profissionalização) da sua administração e com o crescimento
dos seus serviços de apoio (Steudler, 1974).

Embora com um atraso em relação às empresas, o hospital (nomeadeamente


nos EUA) começa a mostrar-se permeável à necessidade de profissionalizar
a sua gestão, com a criação da figura do administrador executivo ou do chief
executive officer (Perrow, 1963).

Historicamente, esta fase corresponde à 1ª revolução científica e técnica no


campo da medicina e, grosso modo, abrange o período de transição entre a 1ª
e a 2ª revolução industrial, caracterizado pelo desenvolvimento demográfico,
pela expansão do capitalismo liberal, pelo crescimento das grandes
organizações públicas e privadas, pela passagem do empirismo para a
racionalização técnica e económica da produção - consubstanciada no
scientific management (Taylor, Fayol, Ford) -, e ainda pelo desenvolvimento
embrionário dos modernos sistemas de saúde, com o surgimento dos
primeiros esquemas públicos e privados de protecção social na doença, nos
acidentes, na invalidez, na velhice e na morte.

Last but not least, esta fase de evolução do sistema hospitalar coincide com
o reconhecimento de jure e de facto da medicina (incluindo a cirurgia) como
profissão, isto é, dotada de autonomia técnica e de poder jurisdicional ou de
auto-regulamentação (Steudler, 1974; Freidson, 1984).

Em síntese, eis os principais traços característicos desta fase, que iremos


abordar a seguir:

(1) Função supletiva do Estado Liberal em matéria de saúde;

(2) Desenvolvimento embrionário dos sistemas de protecção social;

(3) Colapso financeiro do hospital tradicional;

(4) Progresso das ciências e técnicas biomédicas;

(41) Triunfo da clínica (ou da arte do diagnóstico por excelência);

(42) A medicina pré-industrial: o acto médico indivisível;

(43) Desenvolvimento da medicina laboratorial e experimental;

(44) Os primórdios da civilização do gene;

(45) Afirmação do poder médico ou a medicalização do hospital;

(5) Início da especialização médica;

(6) Ensino e profissionalização da enfermagem;

(7) Industrialização do medicamento;

(8) A reforma hospitalar;

(9) Prevenção e controlo das doenças transmissíveis;

(10) Desenvolvimento da saúde pública.


MELHOR DE TODOS FURA BOLO CATA PIOLHO

1.   Introdução: A empresarialização do hospital


  É a fase contemporânea, a da ruptura conceptual (e organizacional) com o
passado tanto do hospital cristão medieval como do hospital assistencial do
Séc. XIX e da primeira metade do Séc. XX. Segundo Clement (1993), essa
ruptura verifica-se essencialmente em quatro domínios:

 Em relação à missão do hospital: passa-se de um objectivo hoteleiro


para um objectivo de produção de cuidados de saúde;

 Em relação à prática profissional: passa-se de uma prática  individual


("trabalho a solo") a uma prática colegial ("trabalho em equipa");

 Em relação ao processo de produção: passa-se de uma produção


artesanal (ou pré-industrial) a uma produção industrial (ou em massa);

 E, finalmente, em relação à gestão: passa-se do conceito de


administração (centralizada) para o de gestão (descentralizada).

Depois da II Guerra Mundial, o hospital tende a tornar-se uma empresa, com


um crescente peso da componente tecnológica. No entanto, não se pode falar
de uma clara ruptura em relação ao seu passado como instituição e até como
organização. A modificação do seu sistema técnico de trabalho não é
necessariamente acompanhada de mudanças organizacionais, nomeadamente
ao nível do seu subsistema cultural e psicossocial. A organização do trabalho
continua em grande parte centrada no acto médico e na lógica insular do
serviço.
A sua arquitectura deixa de se inspirar na Domus Dei (a casa de Deus), para
se tornar sobretudo funcional. A sua volumetria é cada vez maior. Na sua
concepção e programação, colaboram cada vez mais equipas
pluridisciplinares e pluriprofissionais. A importância das suas instalações e
equipamentos leva à criação de uma nova função, a da engenharia hospitalar.
E a complexidade da sua organização e funcionamento obriga à
profissionalização da sua administração e à funcionarização do seu pessoal
(com particular dos médicos, dos enfermeiros e demais prestadores directos
de cuidados).

Uma medicina hospitalar cada vez mais tecnicodependente não deixará, no


entanto, de ter efeitos perversos, ao nível do processo de trabalho e dos
prestadores como do objecto de trabalho  que é o doente (parcelarização e
especialização dos cuidados, listas de espera, despersonalização do doente,
desumanização das condições de internamento, etc.).

De facto, ao acentuar a parcelarização e a especialização dos cuidados, a


industrialização da produção hospitalar vem aumentar a diferenciação e a
hierarquização dos prestadores e, eventualmente, agravar a
despersonalização e a desumanização do doente (Grasset, 1975; Chauvenet,
1978).

Por outro lado, não é óbvio que o hospital toutes classes, o hospital aberto a
todos os grupos da população, independentemente da sua condição
socioeconómica, garanta a equidade no acesso aos cuidados de saúde
(Chauvenet, 1978).

Em termos necessariamente sumários e especulativos, apresentarei os


principais factores que terão modelado a evolução da última fase do sistema
hospitalar e enunciarei algumas das muitas questões que essa evolução
levanta:

(1) Impacto da 2ª revolução científica e técnica no campo da medicina;

(2) Papel do Estado na modelação das políticas e sistemas de saúde;

(3) Adopção do modelo de gestão empresarial;

(4) Associação dos profissionais à gestão hospitalar;

(5) Proletarização e sindicalização dos profissionais de saúde;

(6) Novos desafios à enfermagem;

(7) Desumanização do hospital, despersonalização do doente.

2. Impacto da 2ª revolução científica e técnica no campo


da medicina
   A organização hospitalar  e a própria prática médica  vão ser profundamente
alteradas com a   2ª  e sobretudo com a 3ª revolução científica e técnica.

De facto, depois da II Guerra Mundial, tornam-se mais evidentes (e são


aplicados mais rapidamente do que no período anterior) os avanços
científicos e técnicos nos mais diversos domínios disciplinares: bioquímica,
farmacologia, física nuclear, electrónica, imagiologia, informática, genética,
biologia molecular,  etc., com  implicações   tanto no diagnóstico como na
terapêutica  e na reabilitação.

Citem-se alguns destes progressos das ciências e técnicas biomédicas a título


meramente exemplificativo (Lyons e Petrucelli, 1991; Sournia, 1995):
  

 Genética e biologia molecular (v.g., identificação da


síndroma de Dow,   diagnóstico pré-natal de deficiências
congénitas,  mapeamento do genoma humano);

 Imunologia   (v.g., explicação biológica da rejeição do


organismo ao transplante de órgãos);

 Virologia (v.g.,   antibiótico,   vacinação);

 Oncologia (v.g., reconhecimento da possibilidade teórica


e prática do diagnóstico precoce, da  prevenção e do
tratamento de muitas das neoplasias, durante muito tempo
consideradas “doenças incuráveis“, radioterapia,
quimioterapia);

 Anatomia patológica (v.g., melhor compreensão da


química da subcélula, com a introdução do microscópio
electrónico);

 Psiquiatria e a medicina psicossomática (v.g.,


compreensão da base  genética da esquizofrenia e dos
estados maníaco-depressivos, tratamento químico das
doenças e perturbações mentais, psicanálise  ou
exploração do inconsciente,  terapias de grupo);

 Reabilitação (v.g., fisoteraparia, próteses de sílicon na


cirurgia plástica);
 Imagiologia (v.g., ecografia, tomografia axial
computorizada, ressonância magnética);

 Instrumentação cirúrgica (v.g., bisturi “laser”);

 Outros domínios e aplicações (v.g., anestesia e


reanimação, transfusões sanguíneas, diálise renal,
transplante de órgãos).

Acentua-se o desenvolvimento da especialização médica em áreas como a


cardiologia, a cirurgia cardíaca,  a cirurgia vascular, a gastroenterologia, a
endocrinologia, a oftalmologia, a otorinolaringologia, a ortopedia, a
neurologia, a ginecologia e a obstetrícia, etc.

O início deste período  será  sobretudo marcado pela  revolução terapêutica:


por volta de meados do Séc. XX, o antibiótico traz o tratamento e a cura para
muitas das doenças infecciosas, transmissíveis ou não.

E, na década  de 1960, a vacinação preventiva irá  dar a milhões de crianças


a tão desejada protecção imunitária que, nos países desenvolvidos, permitiu
reduzir drasticamente a mortalidade infantil, a par de outros factores, quer
ambientais quer comportamentais, incluindo a melhoria dos próprios
cuidados materno-infantis (v.g., assiustência à grávida, parto assistido), da
alimentação, da higiene pessoal e do meio, da universalização da cobertura
sanitária das populações, do aumento do nível de educação e informação,
etc.

 Em segundo lugar, há que referir a crescente aplicação da electrónica, do


laser e das novas tecnologias da informação e comunicação às técnicas de
diagnóstico e terapêutica e de intervenção cirúrgica (v.g., TAC, bisturi laser,
microscópio electrónico) (Horisberger, 1987; Block, 1990).

 É incontestável que o desenvolvimento da genética, da imunologia e da


farmacologia permite à medicina alcançar grandes vitórias contra certas
doenças crónicas e hereditárias. No entanto,  surgem novos problemas de
saúde como a pandemia  do HIV/Sida, a par da crescente prevalência das
chamadas doenças da civilização, de etiologia multifactorial, e do regresso
das “doenças malditas” como a tuberculose. Novos virús como o do
HIV/Sida e do ébola, até há pouco desconhecidos, e para os quais ainda não
há cura nem vacinação vêm nos lembrar que a luta contra as doenças
transmissíveis é algo como um suplício de Sísifo.

Por outro lado, começam a  surgir os efeitos perversos do uso e abuso do


antibiótico nos últimas décadas, enquanto o consumo de psicofármacos sobe
em flecha.   Autores como Illich (1975) denunciam a iatrogénse e põem em
causa a eficácia da medicina tecnicista e hospitolacêntrica, enquanto em
Alma-Alta (no Casaquistão) a OMS lança, em 1978, o seu programa
(obviamente utópico) da Saúde para todos no ano 2000 , fundamentalmente
baseado num novo conceito, o de cuidados de saúde primários, que implica
uma outra filosofia, uma outra estratégia e um outro modelo organizativo
(Vuori, 1984).

Em contrapartida, acentua-se a “espiral tecnológica” no hospital:

 Multiplicação das especialidades médicas e, por arrastamento,


paramédicas: o universo concentrário de ontem, a total institution que
foi o hospital de ontem, dá lugar a um mundo de batas brancas e de
tecnologias de ponta, asséptico mas desumanizado;
 Novas disciplinas e especialidades participam na actividade médico-
hospitalar (biólogos, químicos, físicos, informáticos, etc.), pondo em
causa a tradicional unidade do acto médico e transformando a
natureza da relação médico/doente (Chauvenet, 1978; Vogue e
Grasset, 1975; Madelin, 1981). 

Por outro lado,  o plateau técnico médico, em relação à hotelaria, estima-se


que tenha passado, em França, de 7% em 1945 para 35% em 1985 (Figura
1): nos grandes hospitais de hoje a superfície consagrada à parte hoteleira
propriamente dita atingirá um terço, enquanto o restante está ligado ao
plateau technique médicale, ao sistema de produção de cuidados de saúde,
dos serviços clínicos aos serviços de apoio; antes da II Guerra Mundial, a
parte hoteleira do hospital podia representar cerca de 80% da superfície de
construção.

Figura  1 -  A crescente tecnologização do hospital do pós-guerra  (França, 1945-1985)

 
 

Fonte: Adapt. de Maillard (1986.67)

O contraste entre um hospital central de há cem anos e de um hospital


moderno, do ponto de vista da tecnologia de engenharia, é quase abissal.
Caetano (1995.432) descreve-o nestes termos:

 “Era um edifício grande, dispondo de alguns componentes diferenciados, de


um pequeno número de instalações técnicas especiais e de uma reduzida
quantidade de equipamentos, nomedamente de natureza médica”.  No que
tocava ao internamento,  havia “uma enfermaria aberta (também chamada de
Nightingale), uma sala de tratamentos (em alguns casos), uma copa, um
compartimento para produtos farmacêuticos, despejos, instalações sanitárias
e, nos hospitais mais evoluídos, um quarto para isolamento e um gabinete de
médico; as instalações técnicas especiais limitavam-se a redes simples de
águas e esgotos, em alguns casos a redes de vapor ou de água quente para
aquecimento central, a alguns pontos de iluminação eléctrica (nos principais
centros) e a pontos de gás combustíbvel na cozinha, lavandaria e
laboratórios (nas cidades que dispunham da respectiva distribuição); os
equipamentos de natureza médica reduziam-se aos instrumentos cirúrgicos,
estetofonenoscópios e medidores de tensão arterial, sendo a desinfecção feita
em ebulidores e a esterilização em autoclaves, que, na realidade, eram
simples panelas onde se gerava vapor por meio de lenha (nos centros mais
evoluídos, por gás)”.

 Não admira, por isso, que na época vitoriana, há um século atrás,  o custo
da construção civil representasse mais de 95% do custo de um hospital
central em Londres. Em contrapartida, em alguns hospitais de ponta, hoje
em dia, o custo do equipamento médico  pode atingir os 35% do custo total
(Caetano, 1995).

3. Papel do Estado na modelação das políticas e sistemas


de saúde
  Com o Estado-Providência (ou Welfare State), que tende a suceder ao
Estado Liberal na maior parte dos países industrializados, a saúde torna-se
definitivamente um problema social e político (Santos, 1987).

O crescente peso das despesas do hospital público reflecte o alargamento


progressivo da sua clientela bem como a evolução da tecnologia médica e da
pulverização das qualificações. A medicina hospitalar torna-se cada vez
mais "tecnicodependente" e o hospital passa a gastar cerca de dois terços do
seu orçamento com os encargos de pessoal (Figura 2).

A extensão da protecção social a toda a população vai implicar a


industrialização da própria medicina, com o aumento exponencial dos
efectivos  de pessoal: em França, por exemplo, no espaço de quatro
décadasa, o pessoal médico hospitalar aumenta 7 vezes mais e o pessoal não
médico 10 vezes mais (Quadro 1).

 
Figura 2 - Estrutura de custos do hospital contemporâneo, em percentagem (França,
1984)

Encargos
médico-
Encargos c/
farmacêuticos;
reparação e
8,2
manutenção; 2,5

Encargos com a
hotelaria; 8,3

Encargos
financeiros e Encargos com o
outros; 15,6 pessoal; 65,4

Fonte: Adapt. de CERC (1984) - L'hospitalisation en France. Cit. por  Maillard (1986.142)

A saúde passa a ser um novo “enjeu” político, económico e social: o direito


à saúde tende a ser constitucionalmente garantido como direito social e a
generalidade da população está coberta por esquemas, públicos ou privados,
de seguro/doença. O recurso à hospitalização pública sobe em flecha. Em
França, o número de admissões hospitalares, a partir de 1960, passa de 2,8
milhões para 6,5 milhões, em vinte anos e o de consultas quadriplica
(Quadro1).

Quadro 1 - Indicadores de expansão do hospital contemporâneo em França


2,8 milhões 6,5 milhões
Nº de admissões

(Ano)  (1962) (1981)

Nº de consultas 5,4 milhões 22,4 milhões

(Ano) (1965 1980)

Nº de pessoal médico 6 mil 41 mil

(Ano) (1939) (1981)

Nº de pessoal não
50 mil 522 mil
médico

(Ano) (1939) (1981)

Fonte: Adapt. de  Maillard (1986.65)

O próprio conceito de saúde é alargado e enriquecido, obrigando à própria


reformulação das funções do hospital moderno que passam a incluir,
também, a prevenção da doença e a promoção da saúde, além do ensino,
investigação e formação.

No entanto, a investigação social põe em evidência o fraco contributo das


ciências e técnicas médicas para o desenvolvimento sanitário das
sociedades modernas, enquanto por outro lado persistem profundas
desigualdades face à doença e à morte, por grupos ou categorias sociais,
regiões e países.

 Os anos 80 irão  assistir, entretanto, à ofensiva neoliberal contra um dos


pilares do Estado moderno, os sistemas de saúde e de protecção social, num
contexto de crise estrutural das economias, das ideologias e dos sistemas
políticos. Ainda recentemente, no livro verde sobre a política social da
União Europeia, punha-se sobretudo o acento tónico nas preocupações
(predominantemente economicistas), partilhadas por todos os Estados-
membros cujos custos de saúde (públicos e privados, medidos em proporção
do PIB) não param de crescer desde 1970.

A este propósito, retomo aqui as ideias desenvolvidas por mim próprio e por
Faria sobre aquele documento (Graça e Faria, 1994).

 Em primeiro lugar, o único artigo do volumoso Tratado da União


Europeia que respeita à saúde pública (artº 127º) "aponta para uma certa
desmedicalização da saúde, ao dar mais ênfase à prevenção da doença do
que ao seu tratamento e cura". Ou seja,  não se reduz a saúde ao sistema
prestador de cuidados (nem muito menos à medicina), embora também se
sublinhe que a uniformização das políticas e sistemas de saúde não é, em si,
uma finalidade a atingir pela UE.

Em segundo lugar, a saúde é, historicamente,  um dos pilares em que


assentou a construção do Estado-Providência, nomeadamente na Europa:
"Com Bismarck e Beveridge, o direito à saúde foi entendido como um
direito   ao acesso a cuidados médico-hospitalares em caso de doença e à
reparação (ou compensação monetária), devida a incapacidade por usura
física imputável ao trabalho (acidente de trabalho e doenças profissionais
como tal reconhecidas pelo sistema médico-legal)".

Se é certo que a universalização dos cuidados de saúde veio acabar com a


distinção entre uma medicina pública para os pobres e uma medicina privada
para os ricos, também não deixa de ser verdade que o hospital "toutes
classes" está, por sua vez, na origem do desenvolvimento da espiral
biotecnológica e do aumento exponencial dos custos, com a crescente
indução da procura pela oferta.

 Em terceiro lugar, o Estado-Providência também coincide, historicamente,


com o reconhecimento, pelas elites dominantes, da medicina enquanto
profissão autónoma, dotada de poder jurisdicional (ou de auto-
regulamentação). O sistema de saúde que os actuais e futuros Estado-
membros  da União Europeia  herdaram resultaria, em grande parte, da
confluência do Estado-Providência com o poder médico (sobretudo no caso
dos países do Norte e Centro da Europa)

Em quarto lugar - sublinham os autores citados -,  a orientação


medicocêntrica e hospitalocêntrica da saúde é objecto de contestação nos
anos 60/70, desembocando numa nova filosofia, estratégia e modelo
organizativo da prestação de cuidados de que a OMS será o principal
protagonista, "ao recuperar a velha fileira da saúde pública (ou ‘higiene
social') que emerge da primeira revolução industrial e ao casá-la com as
crescentes preocupações relativamente aos efeitos perversos do crescimento
económico do pós-guerra, aos limites da sociedade de consumo, à alteração
dos padrões de morbimortalidade, à qualidade de vida,  à redescoberta do
corpo e da sexualidade, aos movimentos sociais e às desigualdades
Norte/Sul que se agravam com a descolonização".

 Em quinto lugar, a ofensiva neoliberal e o colapso do império soviético não


deixaram de ter repercussões, na década de 1980,  na crise do modelo (algo
fundamentalista) proposto pela OMS, o qual dava primazia aos cuidados de
saúde primários, à articulação entre diferentes níveis de cuidados, à
prevenção da doença, à promoção da saúde, à cooperação intersectorial em
saúde,  à auto-responsabilização dos indivíduos, famílias e grupos, à
equidade, etc. É um modelo que, em todo o caso,  vinha pôr “em questão a
tradicional abordagem biomédica da saúde/doença, contrapondo-lhe (ou
talvez antes acrescentando-lhe) a componente psicossocial".

 Em sexto lugar, a pandemia do HIV/Sida, as proezas da engenharia


genética e  as questões polémicas em torno da bioética vão permitir à
medicina (ou à sua facção mais tecnocrática) "recuperar algum do seu poder
simbólico e sobretudo societal, entretanto perdido".

Todavia,  os desafios que se põem hoje à saúde, dentro e fora da União
Europeia, "não podem deixar de ter em conta o debate (necessariamente
teórico-ideológico) sobre os modelos de saúde/doença e de organização e
administração dos serviços de saúde (que não se esgotam nas questões do
financiamento)" (Graça e Faria, 1994).

Esse debate está, em grande parte, por fazer, por uma multiplicidade de
razões:  "por inépcia da classe política, por estratégia defensiva da
corporação médica e do 'lobby' da indústria biomédica, por fraqueza
estrutural das organizações de utentes de saúde e, muito provavelmente
também, por ausência de movimentos sociais e de participação de outros
importantes stakeholders, como os cientistas sociais".

 Do ponto de vista dos autores, o pano de fundo desse debate passaria
também "pela desconstrução do modelo biomédico e hospitalocênctrico que
se desenvolveu tentacularmente com o Estado-Providência, e que tenderá
muito provalvelmente a reforçar-se com o avanço espectacular das
biotecnologias e da genética  molecular".

 Em sétimo e último lugar, defende-se o ponto de vista de que a garantia de


equidade face à saúde, à doença e à morte não pode deixar de ser “uma
das prioridades da política de saúde da União Europeia, sob pena de
continuarem a persistir (e a agravarem-se) as desigualdades em saúde (em
relação aos factores determinantes da saúde e não apenas ao acesso dos
cuidados de saúde), ao nível dos diferentes grupos sociais, regiões e Estados-
membros".
É previsível que essas desigualdades se agravem  "com a pobreza e a
exclusão social, com o enfraquecimento da família, da comunidade, e das
redes tradicionais de suporte social, com a precarização das condições de
vida e de trabalho, com o desemprego, o emprego temporário e o
subemprego, com o aumento do ‘distress' fora e dentro do local de trabalho,
com o envelhecimento das populações, com as assimetrias económicas a
nível das regiões, com a concentração urbana, com a estratificação
socioespacial, etc" (Graça, e Faria, 1994).

4. A adopção do modelo de gestão empresarial


  O hospital toutes classes passa a ser gerido como uma empresa: daí a
introdução de técnicas de gestão empresarial como o planeamento, a
avaliação de resultados, a criação de carreiras profissionais (médicas e
paramédicas), a profissionalização da função de administrador hospitalar, a
criação da figura do Chief Executive Officer (CEO) nos grandes hospitais
nos EUA e, enfim, uma nova lógica e um novo discurso, marcados pela
racionalização (Steudler, 1974; Chauvenet, 1978; Campos, 1984).

O exercício da medicina hospitalar, depois da II Guerra Mundial, é


caracterizado não só por sucessivas tentativas de racionalização financeira,
económica e organizacional como também por uma "certa industrialização
da produção hospitalar".

Além disso, com o hospital toutes classes não irá desaparecer


automaticamente a lógica da segregação social em que, durante séculos,
assentou o desenvolvimento da instituição hospitalar no Ocidente europeu e
cristão. Esta tese de Chauvenet (1973) será mais tarde retomada e
desenvolvida no seu livro Médecines au choix, médecine de classes (1978).

De acordo com uma leitura crítica desta teoria, feita por mim  noutro lugar
(Graça, 1995), a especialização médica não pode ser vista apenas como uma
forma de divisão técnica do trabalho no hospital. Pelo contrário, ela introduz
uma noção de hierarquia social e, com ela, um sistema de selecção. Ou seja,
passa a haver uma hierquização dos médicos, dos serviços e das fileiras de
cuidados, e consequentemente  um acesso desigual dos doentes.

Por outro lado, fala-se em industrialização da produção hospitalar no sentido


em que o acto médico (ou seja, o conjunto até então indivisível do
diagnóstico, da decisão terapêutica e do tratamento) passa a ser decomposto
numa série de intervenções complementares efectuadas por pessoal médico e
paramédico especializado no seio de unidades, também elas, tecnicamente
diferenciadas (Chauvenet, 1973. 61).

Na realidade, o que nos permite falar da industrialização da medicina


hospitalar é a abordagem científica da doença: é a introdução da medida e,
com ela, da tecnologia, que "dá definitivamente ao objecto médico (...) o
estatuto científico" que até então não tinha (Chauvenet, 1978. 20).

Com a exclusão da verificação pelo próprio sujeito, a medicina deixa de ser


uma arte. O acto médico passa a ter uma crescente inteligilidade e
legibilidade: o olhar clínico singular em que assenta a arte do diagnóstico na
fase pré-industrial, é suplantado ou largamente apoiado por uma panóplia de
aparelhos e técnicas que fotografam, analisam, medem e fixam os sintomas e
os desvios clínicos, circunscrevendo e legitimando o saber médico (Graça,
1995).

O acto médico pode então, finalmente, ser analisado, decomposto e


reorganizado num espaço técnico socialmente controlado, segundo uma
lógica taylorista. O acto médico torna-se técnica e economicamente
mensurável, podendo a partir daí passar a ser enquadrado e gerido pela
organização. A relação dual médico-doente, ou o solilóquio médico, é
substituído por um trabalho colectivo de produção de cuidados, cada vez
mais dividido técnica e socialmente, ou seja, a nível horizontal e vertical.

Com as necessárias adaptações e limitações, é a tentativa de aplicação ao


hospital os princípios e os métodos da organização científica do trabalho.
Essa racionalização organizacional irá fazer-se por várias etapas (Chauvenet,
1978):

 A funcionarização do pessoal médico hospitalar, a sua dedicação a


tempo inteiro (embora em França, o estatuto dos médicos plein temps,
instituído em 1961, não conferisse ainda as garantias do
funcionalismo público, nomeadamente no que dizia respeito à
protecção social);

 Separação das funções de hotelaria, transporte e limpeza (o que só


por si constituem um importante factor de condicionamento da
actividade médica);

 A subordinação técnica dos serviços clínicos, com a criação dos


laboratórios centrais (biologia, anatomia patológica, exploração
funcional, imagiologia) e, mais tarde, dos serviços centrais de
urgência e reanimação);

 A departamentalização dos serviços (por ex., reunindo as


especialidades ligadas à saúde da criança e da mãe) vai no mesmo
sentido, contrariando a tendência para a balcanização do hospital e
opondo-se à lógica tradicional do serviço como centro de decisão
autónoma;

 A crescente automatização dos laboratórios;


 A integração dos blocos operatórios e das enfermarias no sistema
técnico e organizacional do trabalho hospitalar.

Posteriormente, a informatização dos dossiês clínicos, a introdução dos


grupos de diagnóstico homogéneos, a criação de centros de custo e
responsabilidade, etc., são outras tantas formas de racionalização da
organização do trabalho hospitalar.

De resto, há muito que a contabilidade nacional francesa classifica o hospital


na categoria de empresas, ou seja, produtores cuja actividade económica
pode ser medida pelo seu valor bruto acrescentado (VAB), enquanto que a
administração pública, as colectividades locais e a própria segurança social
pertencem à categoria de administrações (Steudler, 1974).

Apesar desta lógica empresarial, os hospitais (e demais serviços de saúde)


continuam a ter dificuldade em definir um critério de sucesso, o mesmo é
dizer,  em avaliar o seu desempenho. As organizações de saúde são mais
complexas e específicas do que as empresas, por razões quer internas quer
externas (Costa, 1994).

A nível interno, as organizações de saúde distinguem-se das empresas - e


nomeadamente das de produção industrial - devido a (Costa, 1994):

 Conflitualidade latente entre as finalidades dos proprietários, dos


gestores e dos profissionais de saúde;

 Acumulação de papéis de alguns profissionais de saúde que são, ao


mesmo tempo, prestadores e consumidores (a chamada relação de
agência);
 Existência de duas linhas de autoridade (hierárquica e profissional);

 A garantia de qualidade dos cuidados não se baseia no produto mas


nos recursos e no processo de produção.

A nível externo, a especificidade das organizações de saúde decorre das


próprias características do mercado de saúde (Costa, 1994) :

 Existência de uma pluralidade de agentes (incluindo o Estado, que


pode ser simultaneamente regulador, proprietário e pagador);

 Escassa relevância do factor preço como regulador da produção e do


consumo, ou seja, produto é expresso em termos de valor de uso
(satisfação) e não de troca (preço);

 Procura derivada ("Procura-se saúde, oferecem-se cuidados de


saúde");

 Procura expressa não em termos de preferências, vontade ou desejo,


mas de necessidades;

 Escassa a soberania do consumidor.

 Simultaneamente, o hospital torna-se um sistema consultivo em que,


contrariamente ao modelo burocrático weberiano, os centros de decisão são
múltiplos e a níveis muito diferentes (Steudler, 1974).

A associação do poder médico à gestão hospitalar (por ex., representação do


director clínico no conselho de administração) leva à criação de instâncias de
informação, consulta, negociação e decisão, podendo-se falar de uma
verdadeira tecnoestrutura que doravante passa a orientar e a controlar o
desenvolvimento do hospital (Perrow, 1963). Ou seja, o hospital dos nossos
dias acaba por tornar-se numa verdadeira burocracia profissional.

ORIGEM DO NOME

1. Ethos cristão e hospitalidade

   O hospital é uma criação da cristandade da Alta Idade Média.


Etimologicamente, a palavra  vem  do baixo latim  hospitale (lugar onde se
recebem pessoas que necessitam de cuidados, alojamento, hospedaria), do
latim   hospitalis, relativo a hospites ou hospes, hóspedes ou convidados.

 Na   Europa medieval que irá ser profundamente marcada pela terrível
fragilidade da condição humana e pela escatologia cristão, esses hóspedes
eram originariamente qualquer pessoa que necessitasse de qualquer tipo de
cuidados (alojamento, alimentação, abrigo, ajuda, conforto, assistência ou 
tratamento):  não só os doentes, os incapacitados, os deficientes, os velhos,
os pobres, os vagabundos como também os peregrinos e os viajantes
(Rosen, 1960; Coe, 1973, Steudler, 1974).

O hospital confundia-se assim com a albergaria ou o hospício  (do latim


hospitiu, alojamento, hospitalidade, também derivado de hospes).  Em
geral,   ficava  junto às  catedrais ou aos mosteiros, em conformidade  com
as instruções dos concílios ecuménicos de Niceia (325) e de Cartago (398),
realizados já no período da cristianização do império romano.

Com a progressiva cristianização do império romano, e sobretudo com a


transformação do cristianismo em religião de Estado por parte do império
romano do Oriente, irão surgir diferentes tipos de estabelecimentos com
funções assistenciais, que depois se generalizam a toda a cristandade do
Ocidente, graças ao desenvolvimento do monaquismo bem como ao
movimento das Cruzadas  (Rosen, 1960; Lyons e Petrucelli, 1984):

 xenodochia (albergarias para os estrangeiros, os peregrinos, os


viajantes e todos aqueles que, em trânsito ou viagem, necessitassem
de  alojamento);
 nosocomia (hospitais ou enfermarias que prestavam cuidados  aos
doentes ou enfermos);
 gerontochia (estabelecimentos geriátrico ou, pelo menos, destinados
ao  acolhimento de idosos);
 ptochia  (hospícios  ou albergues para os pobres);
 lobotrophia (locais destinados aos leprosos ou doentes pestiferados);
 orphanotrophia (orfanatos);
 brephotrophia (locais destinados a receber e a criar as crianças
abandonadas  ou sem família).

 Não havia, no entanto, uma clara distinção entre  o cuidar dos  corpos e o
cuidar das almas. Segundo a mentalidade cristã da  época, a doença, o
sofrimento, a pobreza e a morte estavam submetidas à vontade divina. A
assistência aos enfermos e aos demais "pobres de Cristo", por sua vez, era
considerada como uma virtude cristã e como uma manifestação da
misericórdia de Deus. A caridade era então uma espécie de certificado de
alforro: Dar aos pobres era emprestar a Deus, ou seja, quantas mais boas
obras se amealhassem na terra, mais garantias tinha um cristão de alcançar
o céu e, com ele, a salvação eterna.

Figura 1-  Interior do Hôtel-Dieu  de Paris por volta do início do Séc. XVI

Fonte: Adapt. de Lyons e Petrucelli (1984.34)

Não admira, por isso, que o hospital cristão medieval vá ser estruturado,
até na sua própria arquitectura e na sua organização espacio-temporal,
como a casa de Deus,  um lugar onde, mais do que  curar a doença,   se
cuida sobretudo da salvação da alma. Daí os primitivos hospitais em
França adoptarem a designação de Hôtel-Dieu, como o de Paris, fundado
no Séc. VII  (provavelmente por volta de 651), e considerado hoje o mais
antigo dos hospitais existentes em todo o mundo (Imbert, 1958).

 A   Figura 1 retrata uma cena do quotidiano do Hôtel-Dieu de Paris no


início do Séc. XVI. Observe-se os seus principais elementos iconográficos:

(i) a arquitectura ainda românica;

(ii) a atmosfera de recolhimento espiritual;

(iii) a centralidade da figura de Jesus Cristo, Crucificado, por cima do altar,


ao fundo,

(iv) e em primeiro plano a figura do rei, de joelhos, em oração, sob um


pórtico, constituído por duas colunas encimadas, a da esquerda,  pela
imagem da Virgem-Mãe com o menino Jesus ao colo, e a direita, pela
imagem de um santo (provavelmente S. João Baptista).

 Numa ampla sala,  com colunas, vêem-se três camas, duas delas, dispostas
sob colunas,  alinhadas contra a parede lateral,  e viradas para o altar-mor.
Situação que era então muito frequente na época, há cinco doentes para
três camas. E mais pessoal do que doentes: nada menos do que onze. São
todos religiosos, a avaliar pelo vestuário e pelas funções que estão a
desempenhar. Nove são mulheres. Dos homens, um é o capelão, que está a
distribuir a comunhão e o outro é um acólito, transportando uma vela
acesa.  Das mulheres, quatro trazem a comida aos doentes, enquanto uma
está a fazer um tratamento. Outras duas estão atarefadas a amortalhar dos
doentes que faleceram. Finalmente, as duas restantes consolam, cada uma
delas, a sua criança, muito provavelmente órfã ou abandonada.

O brasão de armas da coroa e da comuna de Paris, ao cantos superiores


esquerdo e direito, respectivamente, informa-nos que este Hôtel-Dieu
pertence à cidade de Paris e tem  um regimento provavelmente autónomo,
embora esteja sob a protecção régia.

2. O hospital como 'pia causa'

Também na estrutura do financiamento do hospital medieval é patente a sua


origem como pia causa e a natureza caritativa da sua missão. De facto, as
suas receitas provinham exclusivamente da caridade dos ricos. O seu
património original resultava, muitas meses, do remanescente de uma
herança, doada em vida ou à hora da morte,  por um cristão, leigo ou
religioso, que se sentia em dívida para com Deus.

Não admira, por isso, que o essencial das receitas do hospital, quer em
espécie quer em géneros, provenha do seu património fundiário (alugueres
de prédios urbanos, foros e rendas de prédios rústicos,  exploração agrícola
directa, etc.).

Por exemplo, em 1450 o Hôtel-Dieu de Beauvais, uma cidade a norte da


Île-de-France, tinha de rendimentos em espécie 173 libras, que no entanto
representavam apenas 26% do total das suas receitas.  Numa economia
ainda fracamente monetarizada, grande parte das receitas do hospital eram
 
arrecadadas  em géneros. Por sua vez, a exploração directa das suas
propriedades agrícolas contribuía em mais de 70% para o total dos seus
rendimentos (Quadro  1).

Quadro 1 - Estrutura dos rendimentos do hospital medieval (Hôtel-Dieu de Beauvais)

 Unidade: Libra

Total %
Tipo de rendimentos
Em espécie 173 26.6
Foros e  rendas de bens fundiários  144 18.8
Legados, doações, ofertas, etc. (a) 27 3.5
Direitos senhoriais 2 0.3
Em géneros 593 77.4
Foros,  dízimos, etc. 33 4.3
Exploração directa (v.g., vinho, trigo) 560 73.1
Total geral 766 100.0
 (a) Incluindo 11 libras para a compra de  camas, roupa, etc.

  Fonte: Adapt. de Rosen (1963.11)

Como mera curiosidade, refira-se  a enorme importância que o vinho e o


pão deveriam ter,  em meados do Séc. XVI na alimentação dos doentes
internados, a avaliar pelo tipo de produtos agrícolas que eram directamente
explorados pelo Hôtel-Dieu de Beauvais: em primeiro lugar surge o vinho,
seguido do trigo e de outros cereais, representando mais de 93% do valor
total dos rendimentos da exploração directa da terra (Quadro 2).

Quadro 2 - Rendimentos em géneros provenientes da exploração agrícola  directa (Hôtel-Dieu de


Beauvais, 1450)

                                                                                 Unidade: Libra

Total %
 Produtos
Vinho 297 53.0
Trigo 170 30.4
Cereais 56 10.0
Animais 35 6.3
Madeira 2 0.3
Total 560 100.0
 Fonte: Adapt. de Rosen (1963. 11)

ARQUITETURA E ENGENHARIA
HOSPITALAR

Durante todo o Séc. XIX os hospitais continuam vocacionados para a sua


função primordial, a de acolhimento dos doentes pobres. Na realidade, o
liberalismo não trouxe grandes novidades em termos de organização e
funcionamento hospitalar que, no nosso caso, continuará, em grande parte e
até 1974, nas mãos das misericórdias ou de confrarias menores (neste caso
com acesso reservado aos seus membros).

De facto, a rede hospitalar continua, no essencial, sob a administração de


instituições privadas (e em particular das misericórdias), o mesmo é dizer,
fora da tutela do Estado, não obstante as leis de desamortização (entre as quais
a de 1866), cuja aplicação terá afectado seriamente o seu património.

Em contrapartida, o triunfo do liberalismo vai modificar a composição das


elites locais e, por conseguinte, a própria composição dos corpos sociais das
misericórdias. Inclusive, irão fundar-se novas misericórdias, entre finais do
Séc. XIX e as primeiras décadas do Séc. XX, nomeadamente na região a norte
do Mondego.

Nas vilas e cidades do Reino, sob o impulso da Regeneração, há contudo uma


renovação dos equipamentos sanitários das misericórdias, cuja extensão está,
no entanto, por documentar e avaliar, na ausência de estudos monográficos
sobre a maior parte destas confrarias. São construídos novos hospitais, já de
acordo com os padrões de higiene da época, embora obedecendo às exigências
de uma arquitectura funcional e de um construção de baixo custo.

De qualquer modo as velhas misericórdias, descapitalizadas e em decadência,


não parecem estar em condições de se abalançar a investimentos de grande
vulto. Tome-se como exemplo o Hospital de Alcobaça Bernardino Lopes de
Oliveira (hoje hospital distrital, de nível 1, com 63 camas) construído há mais
de cem anos.

A sua inauguração, em 15 de Agosto de 1890, foi pretexto para a edição de


um número extraordinário do defunto Correio de Alcobaça, que insere um
detalhado informe do novo hospital, curiosamente assinado por um dos seus
facultativos, o Dr. Francisco Baptista Zagallo, ele próprio, um destacado
benemérito com direito a nome de uma das enfermarias.

À data, o custo do novo edifício, que iria substituir o velho hospital da


misericórdia, somava já 15 contos (15 000$000 réis), uma verba relativamente
avultada, se considerarmos alguns dos principais indicadores económicos da
época (Quadro 1):

 O PIB era então calculado em 300 mil contos de réis enquanto a dívida
pública ia ao dobro;

 As receitas orçamentais não ultrapassavam os 40 mil contos;

 As exportações cobriam apenas 50% das importações (as quais


ascendiam a 44 mil contos).
 

Dois terços do custo do novo hospital de Alcobaça foram cobertos por


"donativos particulares" da Câmara Municipal e do Estado (Zagallo, 1890). O
resto foi essencialmente complementado pela "caridade pública", através de
subscrição, já que na época a misericórdia local "só a muito custo poderia
dispensar a verba de 1800$000 réis" (!), de acordo com as palavras do
respectivo provedor, Bernardino Lopes de Oliveira, no discurso de
inauguração.
Quadro 1- Alguns indicadores económicos no final da Regeneração (1890)

Unidade: Mil contos de réis

Indicador Valor

Produto nacional bruto (a) 300

Dívida pública 600

Receitas totais do orçamento de Estado 40

Importações 44

Exportações 22

Rendimento colectável do milionário Burnay (a) (b) 18

Crescimento médio anual da dívida pública (c) 11

(a) Estimado (b) 1892 (c) Desde 1855

Fonte: Adapt. de Ramos (1994. 157-163)

Entre os beneméritos de maior vulto, figuram gente da burguesia local recém-


enobrecida (nada menos do que três viscondes), além de dois médicos, um
conselheiro e mais alguns licenciados, provavelmente todos eles pertencentes
à irmandade.

Segundo a descrição de Zagallo (1890), o hospital foi intencionalmente


construído numa zona alta e isolada, sobranceira à vila, com boa exposição ao
sol.
"O edifício, visto exteriormente, impressiona-nos pela magnitude da fábrica",
tendo a sua fachada principal uma extensão de cerca de 64 m. Constituído por
um só piso (excepto no corpo central em que se elevou mais um andar),
dispunha das seguintes instalações (seguindo a ordem da planta):

 Para nascente, casa de entrada e de espera dos doentes, pequena capela


para o culto diário (mas também com funções de capela mortuária),
quarto de vela do enfermeiro, casa de arrecadação da roupa dos
doentes, um quarto de um só leito de 3ª classe, gabinete médico (para
consultas e admissão dos doentes), enfermaria para homens (4 camas),
e outra enfermaria maior (14 camas);

 Para poente, necrotério (onde "serão feitas as investigações científicas


ou judiciais"), enfermaria exclusivamente destinada aos irmãos da
misericórdia local, casa de arrecadação das roupas do hospital, mais um
quarto (de uma só cama e de 3ª classe), mais uma enfermaria de 14
camas;

 Para sul, enfermaria-prisão de homens (2 camas), enfermaria de partos


(2 camas), pátio interior, cozinha ("equipada com bateria de cozinha
francesa"), dispensa, enfermaria para mulheres (4 camas), mais três
quartos individuais, pátio exterior com duas retretes "com água, sifão e
bidet" (uma para cada sexo);

 Na cave, aposentos dos familiares do hospital, enfermaria-prisão para


"mulheres encarceradas e toleradas" (com 4 camas);

 No piso superior do corpo central, sala "denominada da administração"


(onde se realizam as reuniões da mesa e estão expostos os retratos dos
benfeitores de maior vulto) e, finalmente, mais dois quartos "que
podem ser aproveitados para o tratamento de doenças contagiosas";

 Junto à estrada real Lisboa-Porto, mas ainda dentro da cerca do


hospital, havia ainda "um modesto chalet destinado a dar pousada aos
viandantes pobres", dentro da tradição de hospitalidade que vinha da
Idade Média.

O edifício estava já equipado com comunicação eléctrica, havendo em cada


leito um botão de chamada, e instalação de água (elevada por bomba para
depósito, situado na despensa e com capacidade de mil litros).

Estamos ainda longe das opções das modernas  arquitectura e engenharia 


hospitalares, mas é evidente que na construção deste hospital, dotado de mais
de meia centena de camas, há preocupações novas, que são próprias do triunfo
da revolução bacteriológica:
 Há sobretudo uma preocupação com a ventilação e com a higiene: por
exemplo, "a superfície lisa do estuque dos tectos e paredes não deixará
depor facilmente substâncias morbígenas" e, além disso, "cabe a cada
doente cerca de 49 metros cúbicos" de ar, diz Zagallo (1890) que, na
sua qualidade de médico, acompanhou a elaboração da planta do
hospital;

 Mas há também preocupações novas com o conforto hoteleiro, já que o


estabelecimento (dotado de quartos privados e de enfermarias de 4
camas) está preparado para receber uma clientela mais alargada do que
os tradicionais doentes sem recursos económicos.

Não sem uma ponta de imodéstia, mas também consciente do seu emergente
protagonismo como facultativo, comenta o nosso articulista:

"Quando se acaba de examinar este edifício e que se vê o escrúpulo com que


se atendeu a todas as condições higiénicas e que se reconhece o conforto que
deve desfrutar o que dele carecer, avalia-se quão injustificada é a repulsa que
o nome de hospital, em geral, inspira" (itálicos meus). E depois acrescenta:
"Sem embelezamentos nem luxo, impróprios de um estabelecimento de
beneficência, sustentado pela caridade pública, nada falta do que possa
facultar a satisfação de uma necessidade".

De qualquer modo, levanta-se já a dúvida sobre a capacidade financeira da


misericórdia local para, apenas com os seus escassos recursos, fazer face às
despesas de funcionamento de um hospital desta dimensão. Não sabemos o
resto da história, mas não é difícil de imaginar as dificuldades e as vicissitudes
por que terá passado o hospital de Alcobaça, tal como os demais hospitais
pertencentes às misericórdias, ao longo do tempo que medeia entre o fim da
Monarquia e o fim do Estado Novo:

 Subequipados e subfinanciados, sem um corpo clínico próprio, sem


pessoal de apoio qualificado, sobreviveram apesar de tudo à morte da
velha ordem senhorial;

 Em todo o caso, mesmo continuando a usar e a abusar da exploração do


sentimento do amor ao próximo (veja-se o recurso aos cortejos de
oferendas durante o Estado Novo), foram na maior parte dos casos
incapazes de se modernizar (em termos tecnológicos e
organizacionais).

No caso de Alcobaça, é de referir que em 1906 ainda foi construído, em


anexo, um pavilhão para doentes infectocontagiosos mas será preciso esperar
pelo ano de 1973 (sete décadas depois!) para se proceder ao início da
remodelação dos seus serviços.
Oficializado em 1976, só na década de 1980 e princípios dos anos 90 é que o
hospital beneficiaria de importantes obras de remodelação e renovação.
Embora tardia, a modernização dos hospitais das misericórdias só se fará,
apesar de tudo, após a criação do Serviço Nacional de Saúde (em 1979).

O contraste entre um hospital central de há cem anos e de um hospital


moderno, do ponto de vista da tecnologia de engenharia, é quase abissal.
Caetano (1995. 432) descreve-o nestes termos (Itálicos meus):

 "Era um edifício grande, dispondo de alguns componentes


diferenciados, de um pequeno número de instalações técnicas especiais
e de uma reduzida quantidade de equipamentos, nomeadamente de
natureza médica";

 No que tocava ao internamento, havia "uma enfermaria aberta (também


chamada de Nightingale), uma sala de tratamentos (em alguns casos),
uma copa, um compartimento para produtos farmacêuticos, despejos,
instalações sanitárias e, nos hospitais mais evoluídos, um quarto para
isolamento e um gabinete de médico";

 Quanto a instalações técnicas especiais, elas  "limitavam-se a redes


simples de águas e esgotos, em alguns casos a redes de vapor ou de
água quente para aquecimento central, a alguns pontos de iluminação
eléctrica (nos principais centros) e a pontos de gás combustível na
cozinha, lavandaria e laboratórios (nas cidades que dispunham da
respectiva distribuição)";

 Quanto aos equipamentos de natureza médica, eles reduziam-se então


"aos instrumentos cirúrgicos, estetofonenoscópios e medidores de
tensão arterial, sendo a desinfecção feita em ebulidores e a esterilização
em autoclaves, que, na realidade, eram simples panelas onde se gerava
vapor por meio de lenha (nos centros mais evoluídos, por gás)".

Não admira, por isso, que na época vitoriana, há um século atrás, o custo da
construção civil representasse mais de 95% do custo de um hospital central
em Londres. Em contrapartida, em alguns hospitais de ponta, hoje em dia, o
custo do equipamento médico pode atingir os 35% do custo total (Caetano,
1995).

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