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À COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH)

À SECRETARIA EXECUTIVA DA CIDH

Organização dos Estados Americanos


1889 F Street N.W.
Washington D.C. 2006
Estados Unidos da América

Ref.: Caso P-xxxxx (xxxxx)


Assunto: Apresentação de observações adicionais
sobre o mérito da petição nº xxxx

ILUSTRÍSSIMOS(AS) SENHORES(AS) COMISSIONADOS(AS),

O NÚCLEO ESPECIALIZADO DE CIDADANIA E DIREITOS


HUMANOS DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO / BRASIL
(XXXXX)1, atuando em favor de xxxxxxxxxxxxxxx, vem, respeitosamente, por
meio de seus representantes abaixo subscritos, perante esta Comissã o
Interamericana de Direitos Humanos (“CIDH”) 2, e em observaçã o ao disposto no
artigo 37(1)3, do Regulamento da Comissã o Interamericana de Direitos Humanos,
apresentar as observaçõ es adicionais quanto ao mérito.

2
É atribuiçã o expressa da Defensoria Pú blica da Uniã o postular perante os Sistemas Internacionais
de Direitos Humanos, vide art. 4º, VI da Lei Complementar nº. 80/94: Art. 4º Sã o funçõ es
institucionais da Defensoria Pú blica, dentre outras: VI – representar aos sistemas internacionais de
proteçã o dos direitos humanos, postulando perante seus ó rgã os; (Redaçã o dada pela Lei
Complementar nº 132, de 2009).
3
Regulamento da CIDH – Artigo 37(1.) Com a abertura do caso, a Comissã o fixará o prazo de quatro
meses para os peticioná rios apresentarem suas observaçõ es adicionais quanto ao mérito. As partes
pertinentes dessas observaçõ es serã o transmitidas ao Estado em questã o, para que este apresente
suas observaçõ es no prazo de quatro meses.
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I – BREVE SÍNTESE DOS FATOS

A vítima sofreu processo criminal pela prá tica dos crimes


previstos no art. 28, da Lei Federal n.º 11.343/06 (porte de drogas para consumo
pessoal) e art. 331, do Có digo Penal brasileiro (crime de desacato)4.

Desacato
Art. 331 - Desacatar funcioná rio pú blico no exercício da funçã o ou
em razã o dela:
Pena - detençã o, de seis meses a dois anos, ou multa.

Na defesa da vítima, destacou-se, em relaçã o ao crime de desacato,


que o artigo 331 do Có digo Penal fora derrogado pelo artigo 13 da Convençã o
Americana de Direitos Humanos, conforme o entendimento da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, bem como, da sua Relatoria para
Liberdade de Expressão. da Relatoria para Liberdade de Expressã o da Comissã o
Interamericana de Direitos Humanos. Assim, num juízo de convencionalidade com
referido tratado, requereu fosse afastado o artigo 331 do Có digo Penal
(atipicidade), com a consequente absolviçã o do réu.

Ocorre que o juiz de primeiro grau condenou xxxxxxxxxx pelo


crime de desacato, fundamentando que:

“a Convençã o Interamericana de Direitos Humanos, em que pese


constituir-se em um Tratado Internacional, ratificado pelo Brasil,
é cediço que a derrogaçã o de uma norma legal somente opera-se
em virtude de outra norma. Ainda que haja incompatibilidade do

4
DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm
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tipo penal do art. 331 com a mencionada convençã o, isso por si só ,
nã o tem o condã o de revogar a norma do art. 331, do CP. Diante de
tais razõ es, permanece em vigor a norma penal aludida”.(fl. 38)

A Defensoria Pú blica recorreu à Turma Recursal (instâ ncia


superior de apreciaçã o), mas os juízes que entã o compunham a Turma Recursal
Cível e Criminal do Colégio Recursal da 16.ª Circunscriçã o Judiciá ria de Sã o José do
Rio Preto – Estado de Sã o Paulo, em relaçã o ao art. 331 do Có digo Penal brasileiro,
mantiveram a condenaçã o, fundamentando que:

“A liberdade de expressã o e pensamento garantida pelo art. 13 da


Convençã o Interamericana de Direitos Humanos nã o autoriza que
se irrogue contra servidor pú blico expressõ es injuriosas,
ofensivas e humilhantes; por isso, descabe cogitar de derrogaçã o
do delito de desacato”.

Em relaçã o ao delito de desacato, a pena privativa de liberdade


ficou estipulada em 7 meses de detençã o, em regime aberto com a suspensã o
condicional da execuçã o da pena, determinada no ano de 2012.

A vítima teve a sua liberdade pessoal indevidamente tolhida, em


razã o de condenaçã o pela prá tica de crime incompatível com a Convençã o
Americana sobre Direitos Humanos. Assim, a decisã o final proferida pelo Poder
Judiciá rio do Estado de Sã o Paulo violou os artigos 7 (2) e 13 da Convençã o
Americana sobre Direitos Humanos.

Eis a razã o pela qual os peticioná rios recorreram a esta Comissã o


Interamericana de Direitos Humanos, consoante amplamente elucidado em
manifestaçõ es anteriores.

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II – A VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 7 (2) E 13 DA CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE
DIREITOS HUMANOS

A decisã o judicial final que condenou a vítima ao cumprimento de


pena por ter cometido o crime de desacato viola a Convençã o Americana sobre
Direitos Humanos nos artigos 7 (2) – Liberdade Pessoal e 13 – Liberdade de
pensamento e expressã o. Ninguém pode ser condenado criminalmente e ter a sua
liberdade pessoal restringida por uma norma de direito interno que colide com a
Convençã o.

II.1. A INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 13 DA CADH EM FACE DO CRIME


DE DESACATO

Há decadas, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos


se debruça sobre as problemáticas causadas em decorrência da existência
das leis de desacato em toda a região. O conjunto de informes e documentos
da Comissão - em especial o Relatório sobre a Incompatibilidade das Leis de
Desacato e a Convenção Americana 5, a Declaração de Princípios sobre a
Liberdade de Expressão6 e ainda os informes sobre as Leis de Desacato e
Difamação Criminal elaborados pela Relatoria Especial sobre Liberdade de
Expressão ao longo dos últimos anos -, bem como os casos já apreciados pela
Corte Interamericana, - especificamente, o caso Caso Kimel Vs. Argentina 7,

5
CIDH. Relatório Anual 1994. Capítulo V: Relatório sobre a Compatibilidade entre as Leis de Desacato
e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Título III. OEA/Ser. L/V/II.88. doc. 9 rev.
<Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/94span/cap.V.htm#CAPITULO%20V>, Acesso em:
2 ago. 2020.
6
CIDH. Declaração de Princípios Sobre Liberdade de Expressão, Relatório Anual da CIDH, 2000,
Volume III, Relatório da Relatoria para a Liberdade de Expressão, Capítulo II (OEA/Ser.L/V/II.111
Doc.20 rev. 16 abril 2001). Disponível em:
https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.Convencao.Libertade.de.Expressao.htm>
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Caso Palamara Iribarne Vs. Chile8 e Mémoli Vs. Argentina9 -, demonstram que
a permanência do crime de desacato nos países da região é
significativamente perniciosa às sociedades democráticas, colocando em
risco toda a construção internacional protetiva à liberdade de expressão.

a) Posicionamentos da CIDH acerca da incompatibilidade do desacato com a


CADH

Desde 1994, a Comissão Interamericana já se pronucia no


sentido de afirmar que as leis de desacato são incompatíveis com o artigo 13
da Convenção Americana. Segundo a Comissão, no “Relatório sobre a
Compatibilidade entre as Leis de Desacato e a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos”10, as leis de desacato “são uma classe de legislação que
penaliza a expressão que ofende, insulta ou ameaça um funcionário público
no desempenho de suas funções oficiais”.

Ao final, nas suas conclusões, a Comissão afirma que “as leis


que criminalizam a expressão de ideias que não incitam à violência
anárquica são incompatíveis com a liberdade de expressão e pensamento
consagrada no artigo 13 e com o propósito fundamental da Convenção
Americana de proteger e garantir o modo de vida plural e democrático”.

7
Corte I.D.H., Caso Kimel Vs. Argentina. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 2 de maio de 2008.
Série C, N° 177.
8
Corte I.D.H., Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005. Série C, N° 135.
9
Corte I.D.H., Caso Mémoli Vs. Chile. Sentença de 22 de agosto de 2013. Série C No. 265.
10
CIDH. Relatório Anual 1994. Capítulo V: Relatório sobre a Compatibilidade entre as Leis de Desacato
e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Título III. OEA/Ser. L/V/II.88. doc. 9 rev.
<Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/94span/cap.V.htm#CAPITULO%20V>, Acesso em:
2 ago. 2020.

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Nesta linha, a Relatoria para Liberdade de Expressã o da
Comissã o Interamericana de Direitos Humanos, no Informe sobre “Leis de
Desacato e Difamaçã o Criminal” de 200411, concluiu que as leis de desacato são
incompatíveis com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos.

No item “B” do citado Informe, a Comissã o Interamericana de


Direitos Humanos deixa claro as razõ es que a levaram a declarar a referida
incompatibilidade, a saber:

“5. (...) A CIDH concluiu que tais leis não são compatíveis com
a Convenção porque se prestavam ao abuso como um meio
para silenciar ideias e opiniões impopulares, reprimindo,
desse modo, o debate que é crítico para o efetivo
funcionamento das instituições democráticas. A CIDH
declarou, igualmente, que as leis de desacato proporcionam
um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que
aos cidadãos privados, em direta contravenção com o
princípio fundamental de um sistema democrático, que
sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar
o abuso de seus poderes coercitivos.  (...)  Inclusive aquelas
leis que contemplam o direito de provar a veracidade das
declarações efetuadas, restringem indevidamente a livre
expressão porque não contemplam o fato de que muitas
críticas se baseiam em opiniões, e, portanto, não podem ser
provadas.  As leis sobre desacato não podem ser justificadas
dizendo que seu propósito é defender a “ordem pública” (...),

11
http://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=533&lID=4
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já que isso contraria o princípio de que uma democracia, que
funciona adequadamente, constitui a maior garantia da
ordem pública.  Existem outros meios menos restritivos, além
das leis de desacato, mediante os quais o governo pode
defender sua reputação frente a ataques infundados, como a
réplica através dos meios de comunicação ou impetrando
ações cíveis por difamação ou injúria.  Por todas estas razões,
a CIDH concluiu que as leis de desacato são incompatíveis
com a Convenção, e instou os Estados que as derrogassem.”

O somatório destes informes, relatórios e posicionamentos


foram cristalizados na Declaração de Princípios sobre Liberdade de
Expressão, emitida pela Comissã o Interamericana de Direitos Humanos, que, em
outubro de 2000, aprovou a Declaraçã o12, promulgada pela Relatoria para a
Liberdade de Expressã o.  A Declaraçã o constitui uma interpretaçã o definitiva do
Artigo 13 da Convençã o, sendo que o Princípio 11 refere-se à s leis sobre desacato,
estabelecendo que: “Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior
controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva
dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de
desacato’, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.”

Merece relevância, ainda, o fato de que recentemente, em


2018, em razão da sua visita oficial ao Brasil e frente ao cenário crescente de
militarização das políticas de segurança cidadã, a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos determinou que o país descriminalize os crimes contra
a honra - desacato, calúnia, difamação e injúria13.

12
Ver em  “Relatório Anual da CIDH, 2000”, Volume III, Relatório da Relatoria para a Liberdade de
Expressão, Capítulo II (OEA/Ser.L/V/II.111 Doc.20 rev. 16 abril 2001).
13
https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf
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b) Jurisprudência da Corte IDH

No âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos,


importantes casos que tratam desta temática já foram julgados,
possibilitando a construção de parâmetros de análise para outros casos que
envolvam restrições ilegítimas do direito à liberdade de expressão pelas vias
criminais.

Importante ressaltar que, ao longo dos anos, a jurisprudência


da Corte Interamericana consolidou uma interpretação especialmente
valorativa do direito à liberdade de expressão. A respeito dos crimes contra
a honra, incluindo-se neste rol a figura do desacato, apesar de determinadas
ponderações observadas em 2013 no caso Mémoli v. Argentina 14, a Corte de
IDH indica, enfaticamente, que determinados requisitos devem ser
observados pelos Estados-Membros nos casos de aplicação de leis penais. Em
uma primeira perspectiva, a Corte determina que as leis domésticas não
devem restringir de maneira indevida discursos especialmente protegidos
pelo SIDH, como aqueles que envolvem interesse público ou atingem
funcionários públicos.

E ainda, frente ao fato de que determinadas leis domésticas


constituem legislações vagas e genéricas que possibilitam interpretações
abusivas, a Corte já determinou que as jurisdições internas adotassem leis
taxativas, cumprindo com o príncipio da estrita legalidade. Por último, a
Corte IDH permanece indicando que as leis penais possuem um expressivo
efeito inibidor à liberdade de expressão de toda a coletividade.

14
Corte I.D.H., Caso Mémoli Vs. Chile. Sentença de 22 de agosto de 2013. Série C No. 265.
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No sentido de apoiar e estimular o ambiente de
redemocratização dos países da região, o Sistema Interamericano passou a
se dedicar profundamente e intensamente à criação de referências,
normativas e precedentes que abordassem as principais problemáticas com
relação à efetivação do direito à liberdade de expressão e informação,
visando garanti-los em todas as suas formas e manifestações. Assim,
historicamente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos passou a
estabelecer interpretações cada vez mais avançadas e valorativas ao artigo
13 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Importante reforçar que o artigo 13. 1 da Convenção


determina que:

"toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de


expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar,
receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem
consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou
em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro
processo de sua escolha."

A partir disso, pode-se extrair que a liberdade de expressão


desempenha uma função essencial nas sociedades democráticas ao permitir,
de maneira instrumental, a vocalização, articulação e mobilização para a
garantia de outros direitos fundamentais. Dessa maneira, a Corte
Interamericana considera que a liberdade de expressão possui tripla função
nos sistemas democráticos, em uma primeira visão, representa um direito
individual, possibilitando a formação das subjetividades e opiniões, bem
como, o compartilhamento de ideias e pensamentos.

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Em uma outra perspectiva, a Corte IDH reforça a relação
estrutural deste direito com as democracias e, por fim, tem ressaltado o
caráter instrumental da liberdade de expressão e do acesso às informações
públicas, visto que representam um direito-chave para o alcance e efetivação
de todos os direitos fundamentais.

Nesse sentido, e a partir de uma análise jurisprudencial da


Corte IDH, verifica-se que a Corte já declararou, em diferentes situações, que
as tipificações de desacato possuem o potencial de violar o direito à
liberdade de expressão previsto no artigo 13 da Convenção Americana, visto
que (i) restringem de maneira indevida discursos especialmente protegidos
pelo SIDH, (ii) constituem legislações vagas e não-taxativas que possibilitam
interpretações abusivas, (iii) invertem o princípio da não criminalização e o
sistema de responsabilização posterior, e (iv) provocam um acentuado efeito
inibidor à liberdade de expressão de toda a coletividade.

(i) Restrições indevidas de discursos especialmente protegidos pelo


SIDH

Primeiramente, é importante destacar que o direito à


liberdade de expressão protege um amplo leque de discursos,
principalmente aqueles que chocam e incomodam a sociedade e os próprios
agentes públicos. Entretanto, apesar das normativas interamericanas
protegerem uma gama extensa de discursos, três deles são especialmente
protegidos, entre eles, os discursos políticos e sobre assuntos de interesse
público e o discurso sobre funcionários públicos no exercício de suas
funções.

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No caso Palamara Iribarne Vs. Chile 15, em que havia sido
condenado por desacato, em decorrência de críticas publicadas contra
funcionários da justiça penal militar, a Corte Interamericana determinou que
os funcionários públicos, em razão do interesse público que permeia a
função que ocupam, estão mais expostos ao controle social e críticas ácidas,
afirmando assim que seria “lógico e apropriado que as expressões
concernentes a funcionários públicos ou a outras pessoas que exercem
funções de natureza pública gozem, nos termos do artigo 13.2 da Convenção,
de uma maior proteção que permita uma margem de abertura para um
debate amplo, essencial para o funcionamento de um sistema
verdadeiramente democrático”16.

(ii) Legislações vagas e não-taxativas possibilitam interpretações


abusivas

Porém, isso não significa dizer que a liberdade de expressão é


absoluta, podendo ser modulada para a proteção de outros direitos
humanos. Em hipóteses, por exemplo, de ofensas ilegítimas a reputação de
um funcionário público ainda é possível que este busque a sua reparação e a
responsabilização pelas violações sofridas, contudo, este caminho deverá ser
percorrido a partir dos princípios do pluralismo democrático 17 e através de
medidas proporcionais que não tenham um potencial lesivo ao direito à
liberdade de expressão, nas suas dimensões individuais e coletivas.

15
Corte I.D.H., Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005. Série C, N° 135.
16
Corte I.D.H., Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22 de novembro de 2005. Série C, N°
135, , § 82
17
Corte I.D.H., Caso Herrera Ulloa Vs. Costa Rica. Sentença de 2 de julho de 2004. Série C, N°
107, § 128
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Nesse sentido, o artigo 13.2 da Convenção Americana - na
esteira do que já havia sido anteriormente previsto pelo artigo 19 do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos - estabelece o teste das três
partes, isto é, qualquer restrição ao direito à liberdade de expressão deve
cumprir com três condições básicas: (1) a restrição deve ter sido definida de
forma precisa e clara por meio de uma lei formal e material, (2) a restrição
deve se orientar à proteção de objetivos legítimos previstos na Convenção, e
(3) a restrição deve ser necessária e proporcional em uma sociedade
democrática.

Diante do caso Kimel Vs. Argentina18, a Corte ao analisar o


livro publicado pelo jornalista e escritor Eduardo Kimel, no qual criticava a
atuação de um juiz e afirmava que o mesmo havia atuado de forma
condescendente com a ditadura, decidiu que as normativas vagas ou
ambíguas que concedem faculdades discricionárias demasiadamente
genéricas às autoridades são incompatíveis com a Convenção Americana,
constituindo-se como instrumentos de censura prévia 19, visto que possuem o
potencial de dissuadir informações e opiniões pelo efeito intimidatório de
sanções, ocasionando interpretações judiciais amplas que restringem
indevidamente a liberdade de expressão.

(iii) Inversão do princípio da não criminalização e do sistema de


responsabilização posterior

Ao analisar o último mandamento do teste tripartite,


identifica-se um dos principais fundamentos que balizam os entendimentos

18
Corte I.D.H., Caso Kimel Vs. Argentina. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 2 de maio
de 2008. Série C, N° 177.
19
Caso Kimel Vs. Argentina. Sentença de 2 de maio de 2008. Série C, N° 177, § 54;
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da Comissão Interamericana acerca da incompatibilidade do desacato com a
Convenção Americana, já que isso porque o artigo 13.2 é taxativo ao
determinar que qualquer restrição à liberdade de expressão deve ser
necessária e proporcional. Dessa forma, os padrões internacionais apontam
que as sanções penais são desproporcionais e excessivas, restringindo
sobremaneira o debate aberto sobre temáticas de interesse público.

As responsabilizações criminais, além de produzirem e


consolidarem estigmas sociais discriminatórios - e que muitas vezes
reproduzem violações estruturais de direitos humanos -, provocam um grave
efeito intimidatório e de silenciamento. O artigo 11 da referida Declaração
de Princípios sobre a Liberdade de Expressão da CIDH é categórico ao
afirmar que "os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da
sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários
públicos, geralmente conhecidas como ‘“leis de desacato’”, atentam contra a
liberdade de expressão e o direito à informação".

No caso de Eduardo Kimel, assim, como em outros casos, a


Corte decidiu que o poder punitivo do Estado foi utilizado de forma
desnecessária e desproporcional, determinando que a Argentina revisasse as
suas legislações penais, considerando, especificamente, a estrita legalidade
exigível em matéria penal pela “falta de precisão suficiente no marco das
normativas penais que sancionam os crimes de calúnia e injúria" 20. A Corte
asseverou, ainda, que a crítica de Kimel estava permeada pelo interesse
público e se referia a atuação de um juiz no exercício de sua função.

Em 2013, ao analisar o caso Mémoli Vvs. Argentina, em que


Carlos e Pablo Mémoli foram condenados criminalmente por publicarem a

20
Caso Kimel Vs. Argentina. Sentença de 2 de maio de 2008. Série C, N° 177, § 39;
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suposta venda irregular de jazigos públicos no cemitério da cidade por parte
de uma sociedade mutuária, a Corte Interamericana, em um julgamento não-
unânime, apesar de não afastar a condenção por injúria, manteve o seu
posicionamento quanto à necessidade de se proteger amplamente as
manifestações de interesse público, afirmando que expressões sobre
funcionários públicos no exercício das suas funções estão cobertas pelo
princípio da máxima proteção, não sendo passíveis de sanções penais 21.

Neste caso, a partir de um delineamento mais objetivo acerca


das diferenças entre casos situaçõ es que envolvem somente críticas a
particulares daquelaes que envolvem agentes públicos, a Corte reafirmou
uma perspectiva já presente no caso Kimel no que diz respeito à a
possibilidade dos Estados determinarem sanções penais no âmbito da
proteção dos demais direitos fundamentais.

No entanto, tanto no caso Mémoli, como no caso Kimel, a


Corte foi assertiva ao indicar que as legislações penais constituem medidas
excepcionais, devendo cumprir com o princípio da estrita legalidade, a partir
de "análises especialmente cautelosas que ponderem com extrema seriedade a
conduta lesiva, se houve dolo, as características dos danos causados
injustamente e outros dados que revelem a necessidade absoluta de usar, de
uma maneira verdadeiramente excepcional, medidas criminais. Em todo o
momento, o ônus da prova deve recair sobre a pessoa que está acusando" 22.

Por tratar-se de um caso que desenhou mais profundamente


as balizas sobre os usos de instrumentos penais para estabelecer restrições à
21
Corte I.D.H., Caso Mémoli Vs. Chile. Sentença de 22 de agosto de 2013. Série C No. 265, §
146.

22
Caso Kimel Vs. Argentina. Sentença de 2 de maio de 2008. Série C, N° 177, § 78
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liberdade de expressão, a decisão no âmbito do caso Mémoli obteve ampla
repercussão regional. Entretanto, faz-se essencial reforçar que a própria
Corte destacou que este caso, somente obteve um entendimento distinto do
caso envolvendo Eduardo Kkimel, pois considerou-se que as críticas
proferidas por Carlos e Pablo Mémoli não foram direcionadas aà
funcionários ou figuras públicas.

(iv) Efeito inibidor à liberdade de expressão

Por fim, os padrões interamericanos são enfáticos ao afirmar


que as responsabilizações criminais produzem um efeito inibidor que
ocasiona e amplifica um cenário de auto-censura em toda a coletividade,
constituindo, assim, uma restrição indireta à liberdade de expressão de toda
a sociedade.

O chamado "chilling effect" tem sido largamente analisado


em diversos casos pela Comissão e Corte Interamericana, e inclusive, sobre
isso, no caso Herrera Ulloa Vs. Costa Rica, nas suas alegações 23, a Comissão
sublinhou que os instrumentos penais utilizados para responsabilizar
assuntos de interesse público ou que envolvam funcionários públicos viola
"em si mesma o artigo 13 da Convenção Americana, posto que não há um
interesse social imperativo que a justifique; que ela termina sendo
desnecessária e desproporcional, e, além disso, pode se converter em um meio
de censura indireta, em função de seu efeito amedrontador e inibidor do
debate sobre assuntos de interesse público".

23
CIDH. Alegações perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Herrera
Ulloa Vs. Costa Rica.Transcritos em: Corte I.D.H., Caso Herrera Ulloa Vs. Costa Rica. Sentença
de 2 de julho de 2004. Série C, N° 107, § 101

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Assim, nã o resta dú vida de que a condenaçã o de alguém pelo
Poder Judiciá rio brasileiro pelo crime de desacato viola o artigo 13 da Convençã o
Americana sobre Direitos Humanos, consoante já concluiu esta Comissã o
Interamericana de Direitos Humanos e, também, pela própria Corte
Interamericana.

II.2. A VIOLAÇÃO DA CONVENÇÃO AMERICANA QUANTO À LIBERDADE


PESSOAL

Tendo em vista que a Comissã o Interamericana de Direitos


Humanos já firmou o entendimento de que leis que tipificam o crime de desacato
sã o incompatíveis com a Convençã o Americana sobre Direitos Humanos, qualquer
cerceamento da liberdade pessoal baseada em leis dessa natureza fere o artigo 7º,
inciso 2, da Convençã o, que estabelece:

“Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo


pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas
constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de
acordo com elas promulgadas.”

Tal artigo da Convençã o deve ser interpretado tendo em conta o


que dispõ e o artigo 29, especialmente na alínea “a”, ou seja, que nenhuma
disposiçã o da Convençã o pode ser interpretada no sentido de “permitir a qualquer
dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e
liberdades reconhecidos na Convençã o ou limitá -los em maior medida do que a
nela prevista.”

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Portanto, se alguma norma de direito interno colide com as
previsõ es da Convençã o Americana sobre Direitos Humanos para restringir a
eficá cia e o gozo dos direitos e liberdade nela estabelecidos, a interpretaçã o a ser
dada é no sentido da prevalência da norma do tratado e nã o a da legislaçã o interna.

É necessá rio esclarecer que, da forma que é tipificado no Brasil, o


delito de desacato poder gerar, inclusive, privaçã o de liberdade efetiva, ao
contrá rio do que o Estado afirmou em suas alegaçõ es. De fato, no presente caso
houve a imposiçã o de pena de 7 meses de detençã o, em regime aberto com a
suspensã o condicional da execuçã o da pena. Ocorre que, conforme o Có digo Penal
brasileiro, a suspensã o da pena deve obedecer à diversas condiçõ es estabelecidas
pelo juiz24 que, se descumpridas, podem ensejar a revogaçã o do benefício e a
consequente execuçã o da pena.

Embora pelo montante de pena aplicada sua execuçã o deva


ocorrer no Regime Aberto25, o sistema brasileiro admite a mudança do regime de
cumprimento da pena, tanto pela progressã o (pena mais grave para outra menos
grave), quanto pela regressã o (pena menos grave para outra mais grave). Assim,
ainda que inicialmente o indivíduo criminalizado por desacato nã o seja privado de

24
É este o sentido do art. 78 do Có digo Penal brasileiro: Art. 78 - Durante o prazo da suspensã o, o
condenado ficará sujeito à observaçã o e ao cumprimento das condiçõ es estabelecidas pelo
juiz. (Redaçã o dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) § 1º - No primeiro ano do prazo, deverá o
condenado prestar serviços à comunidade (art. 46) ou submeter-se à limitaçã o de fim de semana
(art. 48). (Redaçã o dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) § 2° Se o condenado houver reparado o
dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, e se as circunstâ ncias do art. 59 deste Có digo lhe forem
inteiramente favorá veis, o juiz poderá substituir a exigência do pará grafo anterior pelas seguintes
condiçõ es, aplicadas cumulativamente: (Redaçã o dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996) a) proibiçã o
de freqü entar determinados lugares; (Redaçã o dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) b) proibiçã o
de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorizaçã o do juiz;  (Redaçã o dada pela Lei nº 7.209,
de 11.7.1984) c) comparecimento pessoal e obrigató rio a juízo, mensalmente, para informar e
justificar suas atividades.  (Redaçã o dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).

25
Art. 33, c, do Có digo Penal brasileiro. (Decreto-Lei nº 2.848/1940 disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm).
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liberdade, é inegá vel que há um risco concreto de que isso venha a acontecer,
podendo ser ele submetido ao cumprimento da pena inclusive em regime fechado.

Neste sentido, ainda que o Estado Brasileiro tenha alegado que o


peticioná rio nã o sofreu restriçã o à liberdade pessoal pela prá tica do crime de
desacato, nã o há como se desconsiderar por completo o risco de privaçã o de
liberdade, pelos motivos expostos acima.

Por outro lado, importa destacar que, no Brasil, quando um


indivíduo é processado e condenado pelo cometimento do crime de desacato ele
perde sua primariedade e, portanto, em caso de nova condenaçã o criminal
necessariamente terá sua pena severamente agravada e sofrerá diversas
consequências que impactarã o no direito à liberdade pessoal26.

É evidente, portanto, que ao se contemplar


Assim, ao se contemplar o artigo 331 do Có digo Penal brasileiro
em conjunto com o artigo 13 da Convençã o Americana sobre Direitos Humanos
deve prevalecer este ú ltimo, que mais bemmelhor ampara o direito à liberdade
pessoal. Desta maneira, a vítima no presente caso jamais poderia ter sido
processada e condenada pelo crime de desacato.

II.3. DA OBRIGAÇÃO DE ADEQUAÇÃO DA LEGISLAÇÃO INTERNA

26
A reincidência no direito penal brasileiro tem diversas consequências, tais como o agravamento
da pena (art. 61, I, do Có digo Penal), impedir a concessã o da suspensã o condicional da pena em
caso de crime doloso (art. 77, I, do Có digo Penal), impede a substituiçã o da pena privativa de
liberdade por multa (art. 60,§2º e 44,§2º, do Có digo Penal), aumentar o prazo para obtençã o de
livramento condicional (art. 83, II), entre outras. (Decreto-Lei nº 2.848/1940 disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm).
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DO CONTEXTO DO CASO E O ATUAL CENÁRIO DA LIBERDADE DE
EXPRESSÃO

Desde a ocorrência dos fatos que ensejaram a presente denú ncia,


o Estado brasileiro tem aplicado o tipo penal de desacato de maneira frequente em
episó dios envolvendo policiais militares, como em detençõ es arbitrá rias em
protestos e nas periferias, além de performances artísticas realizadas em espaços
pú blicos.

Vale destacar que o país tem passado por ondas sucessivas de


manifestaçõ es, ressaltando-se as ocorridas em 2013 por ocasiã o dos aumentos de
tarifa no transporte pú blico, as durante a Copa do Mundo de 2014, as de 2016 por
ocasiã o das Olimpíadas e do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Nesstas ocasiõ es, o Exército foi autorizado a assumir funçõ es de


polícia em comunidades cariocas, sujeitando os moradores desstas regiõ es à
justiça militar, inclusive no caso do desacato. Em 2015, um levantamento realizado
pela organizaçã o Justiça Global e pelo jornal O Dia revelou a existência de 64
processos envolvendo civis acusados por desacato, desobediência e resistência
(respectivamente, artigos 177, 299, 300 do Có digo Penal Militar) na Justiça Militar
no Rio27. Tal situaçã o foi legitimada por uma decisã o do Supremo Tribunal Federal,
em 2014, que, a partir de um Habeas Corpus (HC 112932)28, decidiu ser de
competência da Justiça Militar o julgamento de desacato cometido por civis contra
militares em exercício durante uma operaçã o de garantia de lei e ordem.

Merece destaque também o processo de militarização e


autoritarismo que vem se intensificando no país e que foram observadas por
27
Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-dejaneiro/2015-07-05/justica-militar-
condena-cidadaos-no-rio-semdireito-de-defesa.html
28
STF, HC 112932. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4221052
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esta ilustre Comissão na ocasião de sua visita in loco ao Brasil em novembro
de 2018. Naquela ocasião, a CIDH reiterou sua preocupação em relação a
uma crescente militarização das políticas de segurança cidadã ao afirmar
que “a crise de segurança pública, especialmente no contexto urbano, se
evidencia principalmente nas capitais dos estados, onde se registra um
aumento de casos de uso excessivo da
força pela polícia, crescente militarização das políticas de
segurança pública e a repressão a protestos”29.

Inclusive, a respeito disso, Comissão Interamericana


recomendou expressamente, em seu relatório contendo as observações
preliminares da visita in loco da CIDH ao Brasil, que:

“Em relação à militarização das políticas de segurança


pública, a CIDH recomenda:

1. Garantir que nos protestos e manifestações sociais que


ocorrem no exercício do direito à reunião e manifestação
pacífica no Brasil, os manifestantes tenham seus direitos à
vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal protegidos.

(...)

4. Descriminalizar os crimes contra a honra - desacato,


calúnia, difamação e injuria - e convertê-los, no caso de
funcionários públicos ou casos de interesse público, em uma
ação civil, de acordo com os padrões internacionais e as
melhores práticas”. (grifo nosso)30
29
https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/238OPport.pdf
30
idem
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Entretanto, em que pese esta recente recomendação, o Estado
brasileiro permanece utilizando a incriminação pela tipificação do desacato
em larga escala. Os dados são expressivos e demonstram que nas
manifestaçõ es sociais, assim como em regiõ es periféricas e favelas, ambos
contextos tradicionalmente marcados pela violência e o arbítrio das autoridades
pú blicas, a detençã o por desacato se mostra como instrumento de silenciamento
daqueles que ousam se opor ou denunciar uma açã o irregular de agentes estatais.

Este cenário é evidenciado pelos números de uma importante


pesquisa realizada em 2019. Os dados revelados por um estudo 31 elaborado
pelo Grupo de Pesquisa sobre Liberdade de expressão no Brasil (PLEB),
vinculado ao Núcleo de Estudos Constitucionais da PUC-Rio, indicam o vasto
uso do desacato no país e o seu potencial criminalizador.

O grupo analisou as apelações criminais relativas ao crime de


desacato julgadas pelo Juizado Especial Criminal (JECrim-RJ) e pelo Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) entre janeiro de 2018 aà
dezembro do mesmo ano e demonstrou que, somente no ano de 2018, foram
julgadas 143 apelações criminais, das quais em apenas 9% houve absolvição
dos réus, sendo que houve a confirmação da condenação em 68% dos casos.
Os dados são ainda mais expressivos ao indicar que os agentes de segurança
pública (policiais militares, policiais civis e guardas municipais) aparecem
como vítimas “mediatas” em 93.5% dos casos no TJRJ e em 64.2% dos casos
no JECrim. Já ao incluir outras categorias, como delegados, bombeiros

31
Grupo de Pesquisa sobre Liberdade de expressão no Brasil. Núcleo de Estudos
Constitucionais da PUC-Rio. Fábio Carvalho Leite (coord.). Desacato no JECRim e Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.plebpuc.science/desacato-no-jecrim-
e-no-tjrj. Acesso em 2 de ago. 2020.
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militares e agentes penitenciários, os percentuais aumentam para 98.7%
(TJRJ) e 79.1% (JECrim).

Em uma conjuntura reconhecida internacionalmente -


inclusive por esta ilustre Comissão - pelos altos índices de violência policial,
de racismo estrutural e de seletividade penal, o dispositivo penal que tipifica
o desacato ainda é largamente utilizado no país, principalmente, pelos
agentes de segurança pública.

Fato é que o Brasil descumpriu a obrigaçã o estabelecida no artigo


2º da Convençã o Americana sobre Direitos Humanos, na medida em que até hoje
nã o retirou de sua legislaçã o a norma do artigo 331 (crime de desacato) de seu
Có digo Penal.

O artigo 2º da CADH é expresso quanto a esse ponto:

Artigo 2.  Dever de adotar disposições de direito interno


Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no
artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições
legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes
comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas
constitucionais e com as disposições desta Convenção, as
medidas legislativas ou de outra natureza que forem
necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

Graças a essa indesculpá vel omissã o do Estado brasileiro, a vítima


indicada neste procedimento foi acusada da prá tica do crime de desacato, no dia 4
de abril de 2011, quando foi lavrado um documento policial denominado “Termo
Circunstanciado” pela Delegacia Seccional de Sã o José do Rio Preto, da Polícia Civil
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do Estado de Sã o Paulo. Desde entã o, vem sofrendo as consequências negativas
deste fato. A mesma omissã o estatal gera inú meras outras vítimas regularmente no
Brasil.

Caso o Brasil já tivesse eliminado de sua legislaçã o penal o crime


de desacato, a vítima deste procedimento P-1500-12 nã o teria sido sequer
processada, quiçá condenada, donde se conclui que a omissã o estatal causou,
diretamente, a violaçã o dos direitos de liberdade de expressã o do pensamento e da
liberdade ambulatorial de xxxxxxxxxxxxx. Impossível ignorar, todavia, que o
descumprimento da obrigaçã o, pelo Estado brasileiro, de adequar sua legislaçã o
penal de modo a excluir o tipo correspondente ao crime de desacato, vem sendo
causa de violaçã o diá ria aos direitos dos brasileiros, consistentes na liberdade de
expressã o e liberdade ambulatorial.

Nas manifestaçõ es apresentadas neste procedimento, o Estado


brasileiro admite cabalmente que as leis sobre desacato continuam em
vigência e em aplicação no território nacional, contrariando as obrigações
internacionais do país perante o Sistema Interamericano.

O Estado brasileiro ainda confessa que descumpre as suas


obrigaçõ es internacionais ao afirmar que tramita o “Projeto de Lei do Senado (PLS)
nº 236, de 2012, em seu capítulo dedicado aos “CRIMES CONTRA A
ADMINISTRAÇÃ O PÚ BLICA”, o qual nã o mais preveria o tipo penal do desacato”.
Ora, desde 2012, então, há mero projeto de lei, sem perspectivas de
aprovação, tramitando em uma das casas do legislativo brasileiro, o que por
si caracteriza o descumprimento das obrigações internacionais do Brasil.

Entretanto, eEm verdade, em sentido totalmente oposto ao que


foi fundamentado argumentado pelo Estado brasileiro nas manifestações do
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Estado brasileiroapresentadas neste procedimento, o que se vê atualmente no
Congresso Nacional é um conjunto de projetos de lei criminalizadores e
restritivos à liberdade de expressão. A partir de uma observação atenta da
movimentação dos próprios parlamentares, é possível verificar o aumento
da propositura de projetos de lei restritivos e criminalizadoresque restringem e
criminalizam aà liberdade de expressão, que ocorre desde junho de 2013, pelo
menos.

Um levantamento realizado pela organização internacional


de direitos humanos, ARTIGO 1932, evidenciou que, a partir de 2013, em uma
nítida reação aos protestos populares, foram contabilizados ao menos 59
iniciativas legislativas restritivas à liberdade de expressão e manifestação,
inclusive, propostas legislativas que visam o aumento das penalidades
previstas para o crime de desacato e objetivam, igualmente, a criação de
proteções especiais aos agentes de segurança.

Isto éAssim, a afirmação do Estado brasileiro no que se refere


à tramitação do PLS 236/2012 não merece prosperar, ; pelo contrário,
apenas demonstra que, até o momento, não se verificou-se qualquer
movimentação célere e ativa por parte dos agentes políticos para avançar na
revogação deste do tipo penal de desacato. Importante destacar que, igualmente
aoTal qual o mencionado projeto, outras propostas quase idênticas tramitam
no Congresso Nacional brasileiro. Contudo, na atual conjuntura, não é
infundado afirmar que apenas os projetos restritivos à liberdade de
expressão – que aumentam as penas do crime de desacato e criam proteções
especiais aos policias militares – possuem tramitação legislativa acelerada.

32
ARTIGO 19. Projetos de Lei sobre Protestos, 2017. Disponível em:
<https://projetosdelei.protestos.org/>
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Vale relembrar que, fruto de uma audiência temática
realizada na Comissão sobre o tema, a Relatoria para Liberdade de
Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em conjunto
com a Relatoria das Nações Unidades, se manifestou-se em uma Nota
Técnica33 endereçada ao Congresso Nacional brasileiro acerca do PLS
236/2012, no sentido de não somente apoiar a descriminalização do
desacato, bem como,mas também defenderndo a revogação de todos os crimes
contra a honra (calúnia, injúria e difamação). Na nota técnica, a Relatoria,
inclusive, demonstrou o quanto outros países da região já avançaram na
revogação deste tipo penal e, assim, consequentemente, na efetivação do
controle de convencionalidade em seus países.

De É fato, que a demora na tramitaçã o legislativa conflita


frontalmente com o artigo 2º da Convençã o Americana de Direitos Humanos, que
obriga os Estados Partes a adotar as medidas legislativas ou de outra natureza que
forem necessá rias para tornar efetivos os direitos e liberdades previstos na
Convençã o.

Enquanto o Brasil nã o procede à necessá ria alteraçã o legislativa


para excluir o tipo penal de desacato, os Tribunais brasileiros continuam
reafirmando entendimento contrá rio à quilo que estabelece a Convençã o
Americana sobre Direitos Humanos, embora haja forte consenso doutriná rio
acerca da nã o-recepçã o do artigo 331 do Có digo Penal pela Constituiçã o brasileira
de 1988, ante a absoluta incompatibilidade entre tal disposiçã o legal e os preceitos
constitucionais bá sicos de liberdade de expressã o e manifestaçã o do pensamento.

Em decisã o no Recurso Especial n. 1.640.084, o Superior Tribunal


de Justiça brasileiro alinhou-se ao posicionamento desta Comissã o Interamericana
33
http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/Otros/Nota_tecnica_Brasil_2013.pdf
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de Direitos Humanos, concluindo pela nã o recepçã o pela Constituiçã o Federal
brasileira do artigo 331 do Có digo Penal.

No entanto, pouco tempo depois, o mesmo Superior Tribunal de


Justiça decidiu em sentido totalmente oposto, ao julgar o Habeas Corpus n.
379269/MS, entendendo que o crime de desacato serviria como meio de proteçã o
ao agente pú blico contra possíveis ofensas, pelo que deveria ser mantido o tipo
penal no ordenamento jurídico brasileiro.

Já no Supremo Tribunal Federal, a questã o foi debatida em sede


de arguiçã o de preceito fundamental (ADPF 496), cuja conclusã o final foi no
sentido de que o artigo 331 do Có digo Penal brasileiro é compatível com a
Constituiçã o Federal brasileira. Em seu voto, acompanhado pela maioria dos
ministros, o ministro Luís Roberto Barroso sustenta, no entanto, que “o tipo penal
do art. 331 do Có digo Penal deve ser interpretado restritivamente, a fim de evitar a
aplicaçã o de puniçõ es injustas e desarrazoadas”, no entanto, reconhece a
prevalência do tipo penal do desacato.

Ao afastar a alegada nã o observâ ncia a tratados internacionais, o


Ministro relator Barroso afirmou que nem o texto expresso da Convençã o nem a
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos vedam que os
Estados-membros se valham de normas penais para a proteçã o da honra e do
funcionamento adequado da administraçã o pú blica, desde que de modo
proporcional e justificado. Segundo o Ministro Barroso, nos precedentes
internacionais, a violaçã o ao artigo 13 da Convençã o nã o decorreu da mera
tipificaçã o em abstrato de crimes contra a honra ou de desacato, mas da utilizaçã o

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indevida do direito penal como instrumento de perseguiçã o e de inibiçã o da
liberdade de expressã o.

O Ministro Barroso defendeu que a continuidade da tipificaçã o do


crime de desacato protegeria a “funçã o pú blica exercida pelo funcioná rio, por meio
da garantia, reforçada pela ameaça de pena, de que ele nã o será menosprezado ou
humilhado enquanto se desincumbe dos deveres inerentes ao seu cargo ou funçã o
pú blicos”.

Entretanto, aAlguns pontos referentes a esta decisão


necessitam de um olhar atento ainda sob o prisma dos padrões
interamericanos. Primeiro, com relação ao argumento de que a Corte
Interamericana já se pronunciou no sentido de autorizar, excepcionalmente,
o uso de sanções penais para a proteção da reputação, é importante dizer
que a própria Corte IDH afirmou que esta incriminação não deve ocorrer
diante de expressões de relevante interesse público ou que envolvam
funcionários públicos no exercício de suas funções. Tanto é assim que no
caso Memóli v. Argentia34, a Corte afirmou que:

"Diferentemente de outros casos resolvidos por este Tribunal,


no presente caso, as expressões pelas quais os Srs. Mémoli
foram condenados não envolviam funcionários públicos nem
eram sobre o funcionamento de instituições do Estado. Pelo
contrário, este Tribunal observa que as queixas e expressões
pelas quais os Srs. Mémoli foram condenados teriam ocorrido
no contexto de um conflito entre indivíduos particulares sobre

34
Corte I.D.H., Caso Mémoli Vs. Chile. Sentença de 22 de agosto de 2013. Série C No. 265, §
146.

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questões que, eventualmente, afetam apenas os membros de
uma Associação Mútua privada."(tradução nossa)

Ainda, com relação ao argumento proferido naconstante da


decisão do Supremo Tribnal Federal, de que a Corte Interamericana não
afasta a tipificação em abstrato, é importante destacar que o artigo 331 do
Código Penal brasileiro é excessivamente vago e genérico, permitindo, em
geral, interpretações discricionárias, em que os próprios agentes públicos
que se sentiram ofendidos interpretem de forma arbitrária o seu texto,
decidindo, assim, se uma expressão é legítima ou não. O pró prio Ministro
Barroso reconhece a que o artigo que tipifica o crime de desacato é vago e nã o-
taxativo, tanto é que, em seu voto, fez constar, expressamente, que “o tipo penal do
art. 331 do Código Penal deve ser interpretado restritivamente”.

A pesquisa mencionada anteriormente, realizada pelo Grupo


de Pesquisa sobre Liberdade de expressão no Brasil (PLEB), demonstra os
reflexos da falta de taxatividade da lei brasileira, na medida em que evidencia
que, em muitos casos, a incriminação por desacato ocorreu sem a presença
de nenhuma testemunha, a não ser da própria autoridade ofendida. Em um
universo de 143 processos levantados, em 69 casos não houve testemunha,
dos quais houve condenação em segunda instância em 58 (85%).

Estes dados, conjugados com os números expostos


anteriormente que revelam o alto uso em larga escala do tipo penal de
desacato no país, evidenciam comprovam que este dispositivo a criminalizaçã o
de condutas enquadradas como desacato está longe de constituir uma medida
excepcionalé prá tica comum no Brasil. Em um país com raízes autoritárias, não
é raro que os agentes estatais abusem do poder que lhes é conferido.

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Dessa maneira, o Supremo Tribunal Federal, em sua decisão,
deixou de reconhecer que as leis de desacato brasileiras (i) restringem de
maneira indevida discursos especialmente protegidos pelo SIDH, como
exemplo, os discursos de interesse público e/ou que atingem funcionários
públicos (ii) constituem legislações vagas e não-taxativas que possibilitam
interpretações abusivas, (iii) invertem o princípio da não criminalização e o
sistema de responsabilização posterior, e (iv) provocam um acentuado efeito
inibidor à liberdade de expressão de toda a coletividade, o chamado “chilling
effect”.

Importante, lembrar, igualmente, reforçar que a decisã o do


Supremo Tribunal Federal brasileiro desconsiderou que a pró pria Comissã o
Interamericana, em 2018, apó s sua visita in loco ao país, recomendou
expressamente a descriminalizaçã o do desacato.

Vale destacar que dois ministros manifestaram votos divergentes:


Rosa Weber e Luiz Edson Facchin. Em seu voto, o Ministro Facchin declarou que:

“em uma sociedade democrática, não há como justificar a


maior reprovabilidade da conduta que atinge a honra da
Administração ou de seus funcionários. Não há como
defender que os agentes privados tenham menor proteção da
lei. O que desonra a Administração Pública não é a crítica,
mas a conduta de seus funcionários.

É exatamente esse o sentido da liberdade de expressão


assegurada no Pacto de São José da Costa Rica e no Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos. A Organização dos
Estados Americanos, por meio de sua Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, fez aprovar em
outubro de 2000, a Declaração de Princípios sobre a
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Liberdade de Expressão, donde se extrai o princípio 11,
segundo o qual os funcionários públicos estão sujeitos a
maior escrutínio da sociedade: ‘as leis que punem a
expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente
conhecidas como ‘leis de desacato’, atentam contra a
liberdade de expressão e o direito à informação’. No mesmo
sentido, o Relator Especial sobre Liberdade de Expressão
Abid Hussain fez notar, em janeiro de 2000 (E/C.4/2000/63,
par. 205), que a prisão como punição a expressão de uma
opinião contra o governo era um grave violação à liberdade
de expressão.

O que esses documentos estão a indicar é a manifesta


ausência de legitimidade na punição mais severa para
ofensas irrogadas a funcionários públicos. Porque os
funcionários públicos estão sujeitos a um maior escrutínio
público – e porque livremente assim optaram por se
submeter – têm eles a grave responsabilidade de tolerar
discursos e palavras que contra ele são dirigidas. À luz do
sistema internacional de proteção à pessoa humana, é, pois,
inequívoca a conclusão de que é ilegítima a previsão
normativa constante do art. 331 do Código Penal.

À mesma conclusão se chegaria, caso a questão fosse


examinada à luz do texto constitucional”.

Importante, igualmente, reforçar que a decisã o do Supremo


Tribunal Federal brasileiro desconsiderou que a pró pria Comissã o Interamericana,
em 2018, apó s sua visita in loco ao país, recomendou expressamente a
descriminalizaçã o do desacato.

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Assim, em que pese os votos contrá rios de dois ministros, o
julgamento final do Supremo Tribunal Federal sobre a questão foi no sentido
oposto do entendimento que vem sendo esposado por esta Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, escancarando o descumprimento pelo
Brasil de suas obrigaçõ es perante o Sistema Interamericano de proteçã o aos
direitos humanos.

Dessa forma, enquanto a legislaçã o penal brasileira segue


inalterada no que se refere à tipificaçã o do crime de desacato, graves violaçõ es de
direitos humanos vêm sendo causadas a inú meros cidadã os brasileiros, pelo que
necessá rio o pronunciamento desta Comissã o Interamericana.

III – DAS MEDIDAS DE COMPENSAÇÃO

Requer-se a esta Comissã o sejam recomendadas medidas de


compensaçã o, tais como indenizaçã o por danos morais e por erro judiciá rio.

III.1. DOS DANOS MORAIS

A decisã o judicial que condenou a vítima desta representaçã o pelo


crime de desacato gerou inequívoco dano moral, decorrente do sofrimento pelo
qual passou ao ser processada e condenada por ato tipificado como crime – o que,
como se viu, viola seus direitos humanos.

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O simples fato de se ver caracterizado como réu em processo
penal, sendo acusado pelo fato de ter unicamente manifestado sua opiniã o é
gerador de sofrimento indevido e, por isso, deve ser indenizado.

Além disso, no Brasil, as penas decorrentes de condenaçõ es


criminais sã o cumpridas de maneira unificada, nos termos do que determina a
chamada “Lei de Execuçã o Penal” (Lei Federal nº 7.210/1984 35), de forma que as
penas de diversas condenaçõ es devem ser somadas para todos os efeitos legais,
inclusive para a determinaçã o do regime de cumprimento de pena (fechado,
semiaberto ou aberto). É o que dispõ e o artigo 111 da citada lei:

Art. 111. Quando houver condenação por mais de um crime,


no mesmo processo ou em processos distintos, a
determinação do regime de cumprimento será feita pelo
resultado da soma ou unificação das penas, observada,
quando for o caso, a detração ou remição.

No caso da vítima deste procedimento, ele foi condenado


criminalmente em três processos. A condenaçã o pelo crime de desacato refere-se
ao processo nº 7000042-94.2013.8.26.0576, da 3ª Vara Criminal de Sã o José do Rio
Preto (có pias já enviadas). Neste processo, o peticioná rio foi condenado pela
prá tica de dois crimes, sendo que no caso do desacato foi fixada pena de 1 ano de
detençã o em regime aberto, pena essa que foi reduzida para 7 meses de detençã o
no mesmo regime, pelo acolhimento parcial do recurso da defesa. Ocorre que,
havendo outras condenaçõ es, o juiz de direito responsá vel pelo processo de
execuçã o penal do peticioná rio unificou as penas (como manda o artigo 111
acima referido) e fixou o regime fechado para o cumprimento unificado de
todas elas.

35
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm
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Vale lembrar, ainda, que o dano moral experimentado pela vítima
decorre nã o só da condenaçã o por crime cuja tipificaçã o atenta contra os direitos
humanos, mas do fato de a Repú blica Federativa do Brasil nã o ter cumprido a sua
obrigaçã o de retirar de sua legislaçã o penal o crime de desacato, em clara violaçã o
à obrigaçã o de respeitar e garantir os direitos humanos, estabelecida nos artigo 1º
e 2º da Convençã o Americana sobre Direitos Humanos. Assim, a reparaçã o por
danos morais também assume o cará ter de responsabilizar o Estado pelo
descumprimento do dever de agir com boa fé em relaçã o à s obrigaçõ es
internacionais assumidas quando da ratificaçã o da Convençã o Americana sobre
Direitos Humanos, nos termos do que estabelece o artigo 26 da Convençã o de
Viena sobre o Direito dos Tratados, também ratificada pelo Brasil.36

O Brasil deveria ter agido de boa fé e de maneira diligente no


sentido de retirar o crime de desacato de sua legislaçã o, desde a ratificaçã o da
Convençã o Americana sobre Direitos Humanos, em 1992, ou, ao menos, desde a
ediçã o da Declaraçã o de Princípios sobre Liberdade de Expressã o, pela Comissã o
Interamericana de Direitos Humanos, em outubro de 2000, ou então, mais
recentemente, em razão da recomendação expressa emitida por esta ilustre
Comissão Interamericana, a qual foi direcionada especificamente ao Estado
brasileiro no âmbito de sua visita in loco em 2018.

III.2. DA INDENIZAÇÃO POR ERRO JUDICIÁRIO

Dispõ e o artigo 10 da Convençã o Americana sobre Direitos


Humanos que “Toda pessoa tem direito de ser indenizada conforme a lei, no caso
de haver sido condenada em sentença passada em julgado, por erro judiciá rio.”
36
Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7030.htm

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No caso é evidente o erro cometido pelo Poder Judiciá rio
brasileiro, que condenou a vítima por crime incompatível com a Convençã o
Americana sobre Direitos Humanos, tratado internacional ratificado pelo país e
com natureza de supralegalidade, como já reconheceu o pró prio Supremo Tribunal
Federal brasileiro.

Assim, embora sejam os juízes livres para formar o seu


convencimento, nã o podem eles limitar a liberdade pessoal com base em normas
manifestamente violadoras dos direitos humanos, na forma da Convençã o
Americana sobre Direitos Humanos.

Igualmente, cometeram erro ao afirmar que a Convençã o


Americana sobre Direitos Humanos nã o é norma brasileira, especialmente quando,
em primeira instâ ncia, o Mm. Juiz de Direito afirmou que o artigo 331 do Có digo
Penal somente poderia ser derrogado por outra norma.

É de conhecimento basilar para todo operador do direito no Brasil


que as normas dos tratados internacionais de direitos humanos, uma vez
ratificados pelo Brasil, tornam-se parte de sua legislaçã o interna, na forma do que
dispõ e o artigo 5º, § 2º, da Constituiçã o da Repú blica Federativa do Brasil.

A Convençã o Americana sobre Direitos Humanos foi promulgada


no Brasil pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, do Presidente da
Repú blica, apó s aprovaçã o pelo Congresso Nacional.

Tanto a Convençã o Americana sobre Direitos Humanos é norma


jurídica incorporada ao direito brasileiro que o Supremo Tribunal Federal já

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decidiu que é ilícita a prisã o civil de depositá rio infiel, em atençã o ao enunciado no
artigo 7º (7) da Convençã o Americana sobre Direitos Humanos.

Assim, ao decidirem por nã o aplicar a Convençã o Americana de


Direitos Humanos, apesar de terem sido expressamente instados pela Defensoria
Pú blica do Estado de Sã o Paulo, proferiram decisã o tecnicamente inadmissível e
que atenta contra a pró pria efetividade do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos.

É inquestioná vel, portanto, que a Repú blica Federativa do Brasil


cometeu erro judiciá rio ao nã o aplicar a Convençã o Americana de Direitos
Humanos e garantir a absolviçã o da vítima xxxxxxxxxxxxxxx quanto ao crime de
desacato.

IV – DOS PEDIDOS

Diante dos fatos narrados, vêm os peticioná rios reiterar solicitar


à Comissã o Interamericana de Direitos Humanos os pedidos constantes no
Relatório de Admissibilidade, a fim de que:

1. Seja proferida recomendaçã o no sentido de declarar que o artigo 331 do


Có digo Penal brasileiro é incompatível com o artigo 13 da Convençã o
Americana de Direitos Humanos.;

2. Seja proferida recomendaçã o à Repú blica Federativa do Brasil para que:


a. Afaste a condenaçã o sofrida pela vítima xxxxx, no processo criminal
nº xxxxxxxx/000000-000 (nú mero de controle 203/11), que
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tramitou em primeiro grau perante a 3.ª Vara Criminal da Comarca
de Sã o José do Rio Preto, Sã o Paulo, Brasil, quanto ao crime de
desacato, devendo ele ser declarado inocente. Deve ser recomendada
a retirada de seu nome de todo e qualquer registro de natureza
criminal em relaçã o à condenaçã o acima referida;.
b. Indenize o senhor xxxxxxxxxx pelos danos morais sofridos e pelo
erro judiciá rio de que foi vítima, em valor nã o inferior a U$
50.000,00 (cinquenta mil dó lares norte-americanos), em moeda
nacional brasileira;
c. Retire de sua legislaçã o o artigo 331 do Có digo Penal, que prevê o
crime de desacato, devendo ser revistas todas as condenaçõ es
realizadas pelo Poder Judiciá rio brasileiro a esse título, bem como
recomendada a retirada do nome de todo e qualquer registro de
natureza criminal em relaçã o a pessoas condenadas pelo crime de
desacato;
d. Determine que os tribunais façam o controle de convencionalidade,
adequando sua jurisprudência à interpretaçã o da CIDH e Corte IDH
sobre a inconvencionalidade do crime de desacato;
e. Ordene que pessoas nã o sejam detidas e levadas coercitivamente à
delegacia em razã o de delitos contra a honra.;; e
f.
g. Em adendo aos pedidos acima expostos, os peticioná rios solicitam à
Comissã o Interamericana de Direitos Humanos:

3.
4. 4. Seja proferida recomendaçã o à Repú blica Federativa do Brasil para que:
a. f. Retire de sua legislaçã o o artigo 299 do Có digo Penal Militar, que
prevê o crime de desacato militar, com pena de detençã o, de seis
meses a dois anos, devendo ser revistas todas as condenaçõ es
realizadas pelo Poder Judiciá rio brasileiro a esse título, bem como
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recomendada a retirada do nome de todo e qualquer registro de
natureza criminal em relaçã o a pessoas condenadas pelo crime de
desacato.

3. Seja o caso remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso a


Repú blica Federativa do Brasil nã o cumpra as recomendaçõ es da Comissã o
Interamericana de Direitos Humanos decorrentes do presente caso.

Em adendo aos pedidos acima expostos, os peticioná rios solicitam à Comissã o


Interamericana de Direitos Humanos:

4. Seja proferida recomendação à República Federativa do Brasil para que:

Retire de sua legislação o artigo 299 do Código Penal Militar, que prevê o crime de desacato
militar, com pena de detenção, de seis meses a dois anos, devendo ser revistas todas as
condenações realizadas pelo Poder Judiciário brasileiro a esse título, bem como recomendada
a retirada do nome de todo e qualquer registro de natureza criminal em relação a pessoas
condenadas pelo crime de desacato.

Nestes termos, pede deferimento.

Sã o Paulo, xxxxxx

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Defensor(a) Pú blico(a)
Unidade de XXXXXXXXX

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