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POLÍTICA

GUARDIÃO DA DEMOCRACIA
MOÇAMBICANA
Terça - feira, 26 de Outubro de 2021 I Ano 03, n.º 230 I Director: Prof. Adriano Nuvunga I www.cddmoz.org

Limitação do direito à
manifestação põe em causa a
participação democrática dos
cidadãos na vida pública


Todo cidadão tem direito à liberdade de
reunião e manifestação nos termos da
lei”1

Associado à liberdade de expressão, a liber-


dade de manifestação reagrupa a liberdade
de reunião definida como sendo “um ajun-
tamento de várias pessoas pré-ordenadas
em lugares públicos, abertos ou particulares,
para fins não contrários à lei, à moral, aos di-
reitos das pessoas singulares ou colectivas e
à ordem ou tranquilidade públicas”; e a liber-
dade de manifestação stricto sensus, definida
pela sua finalidade como “expressão pública
de uma vontade sobre assuntos políticos e
sociais,de interesse público ou outros”, nos
termos dos números 1 e 3 do artigo 3 da Lei
n. 9/91, de 11 de Julho. As restrições relativas
à emergência sanitária têm colocado várias
ameaças ao exercício de tais liberdades.
A conciliação entre o estado de emergên-
cia declarado para conter a propagação do
vírus da Covid-19 e o respeito aos direitos à
liberdade de reunião e expressão tem sido
objecto de grandes debates, porquanto os
textos visando enquadrar e garantir a saúde
pública e suas técnicas não cessam.
A título de exemplo, no dia 16 de Outubro
de 2021, a Associação Médica de Moçam-
bique foi impedida de exercer a sua liber-
dade de manifestação com fundamento no
risco criar aglomerados e concorrer para
rápida propagação do vírus da Covid-19. O
despacho de indeferimento da solicitação de
manifestação recomendava uma reunião e
manifestação em lugar fechado ou aberto e
não em via pública. Segundo Coralie Richaud
uma tal recomendação caracteriza a técnica
de “cerco” que consiste em “circunscrever e
manter num perímetro dito de segurança um

1
Artigo 52 da Constituição da República de Moçambique em vigor.
2 l Terça - feira, 26 de Outubro de 2021

grupo de pessoas afim de prevenir movimentos os e agentes da Assembleia da República3. operando o justo e necessário equilíbrio en-
de multidões que poderia provocar, controlan- Como liberdade e direito fundamentais, as tre garantir o interesse geral (saúde, ordem
do a zona circunscrita e suas actividades”2. Sem liberdades de reunião e manifestação são de públicas) e o respeito e protecção de direitos
quadro jurídico, tal técnica conduz à privação aplicação directa e eficácia imediata, con- fundamentais necessários à salvaguarda de
de liberdades fundamentais das pessoas. forme decorre do número 1 do artigo 56 da princípios constitucionais, exercício de liber-
Outrossim, no dia 15 de Junho do corrente CRM, e cujo respeito, protecção e garantia dades constitucionalmente garantidos, entre
ano, um grupo de activistas da sociedade civil incumbem ao Estado. As práticas supracit- os quais o direito de manifestar - direito de
viu confiscado os seus materiais de manifes- adas, em clara violação das injunções esta- expressão colectiva de ideias e opinião.
tação e conduzida à esquadra da Polícia de belecidas pela Constituição da República de Esta nota informativa visa analisar as
República de Moçambique (PRM) por ter resisti- Moçambique (CRM), pela Carta Africana de condições em que as liberdades de reunião e
do ao impedimento de realização de manifes- Direitos do Homem e dos Povos e pela Lei de manifestação podem ser restringidas no con-
tação com fundamento na falta de autorização Manifestações, têm caracterizado a actuação texto de prevenção de propagação do vírus
da mesma. Outro exemplo é o da detenção do das autoridades públicas, mormente Con- da Covid-19. Para tal propomos uma abord-
jovem estudante de nome Valdo Cuambe pela selho Municipal de Maputo e do Comando agem em dois tempos: I) Restrições legais do
PRM na sequência de uma manifestação contra da PRM da Cidade de Maputo, atropelando direito à liberdade de reunião e manifestação,
a proposta de lei sobre as regalias de funcionári- seus poderes de polícia administrativa e não II) Controlo das medidas restritivas.

Restrições legais do direito à liberdade


de reunião e manifestação
As restrições relativas à liberdade de mani- cepcionais como o estado de emergência.  conteúdo e alcance das razões podendo levar
festação parecem estar a circundar todas as As liberdades de reunião e manifestação à restrições de liberdades de reunião e mani-
esferas e de forma constante. No plano cons- são igualmente objecto de tutela pela Carta festação (segurança colectiva, moral, saúde,
titucional, decorre do número 2 do artigo 56 Africana de Direitos do Homem e dos Povos, interesse público), a Carta Africana reenvia,
que as liberdades de reunião e manifestação artigo 11. Este instrumento dispõe que as li- através margem nacional de apreciação, ao
não são absolutas, podendo ser limitadas berdades de reunião e manifestação se exer- Estado o cuidado de os definir.
em razão de salvaguarda de outros direitos cem sob reserva de restrições previstas por A CRM, por sua vez, reenvia a prudência
ou interesses protegidos pela Constituição, leis, no interesse de segurança nacional, se- da lei à definição do modo de exercício das
mormente a saúde pública. Deste dispositivo gurança de outrem, saúde, moral ou direitos liberdades de reunião e manifestação5, ao
depreende-se que para evitar arbitrariedade, e liberdades de outrem. mesmo tempo que enquadra a possibilida-
o legislador constituinte desenhou todo um Decorre de jurisprudência constante da Co- de de limitação no artigo 56 e as exigências
quadro em que limitações às liberdades de missão Africana de Direitos do Homem e dos não vão para além das estabelecidas na Car-
reunião e manifestação são possíveis. Povo o sistema africano de direitos humanos ta Africana: fundamento legal para restrição,
Assim, dispõem os números  2, 3 e 4 do ar- não permite distinções entre restrições de em razão da salvaguarda de outros direitos ou
tigo 56, que o “exercício dos direitos e liberda- direitos em circunstâncias e situações excep- interesses protegidos pela Constituição, mor-
des pode ser limitado em razão da salvaguarda cionais e em períodos ditos normais4, e as mente a saúde pública, como foi o caso do
de outros direitos ou interesses protegidos pela restrições permitidas aos direitos consagra- impedimento da manifestação da Associação
constituição”;  a “lei só pode limitar os direitos, dos da Carta  são nos termos definidos pela Médica de Moçambique.
liberdades e garantias nos casos expressamen- Carta, seu artigo 27, número 2. Ora, das disposições dos instrumentos de
te previstos na Constituição”; e que “as restri- O número 2 do artigo 27 da Carta estabelece protecção de direitos do Homem supraci-
ções legais dos direitos e das liberdades devem as mesmas exigências da reserva estabelecida tados resulta que, apesar de o direito às li-
revestir carácter geral e abstrato e não podem no artigo 11, designadamente restrição por via berdades de reunião e manifestação serem
ter efeito retroactivo.” Estas exigências da lei de lei, para respeitar os direitos de outrem, se- tangíveis, na medida em que admitem-se res-
vinculam as autoridades públicas, ainda que gurança colectiva, moral e interesse comum. trições, estas obedecem certos critérios e ain-
tomadas em circunstâncias ou situações ex- Não definindo nenhum dos elementos ou da que fluxo são objectos de estrito controlo.

Controlo das medidas restritivas de direito às liberdades


de reunião e manifestação
Como liberdade e direito afectado por cer- Os critérios estabelecidos, tanto pela Con- resumem-se em três: 
to coeficiente de relatividade e cujas razões stituição (limitação legal, salvaguarda de out- 1. Legalidade - restrição de um direito fun-
são cobertas pela margem nacional de apre- ros interesses protegidos ou direitos de ou- damental apenas pode resultar de lei;
ciação, as restrições às liberdades de reunião trem) como pela Carta Africana (legalidade, 2. Necessidade da restrição, dito moti-
e manifestação não são feitas de forma discri- respeito de direitos de outrem, segurança vos/razões imperiosas; salvaguarda de ou-
cionária. colectiva, saúde, moral e interesse comum) tros interesses protegidos pela CRM, tal como

2
Coralie Richaud “L’enclement de la liberté de manifestation” Gaz. Pal. 29 Junho 2021, n. 423i3, p.31
3
Todos os dados disponíveis em Centro Para Democracia e Desenvolvimento: Página Inicial
4
Vide os casos Commission Nationale des Droits de l’Homme et Libertes c. Chad; Amnistia
Internacional c. Sudão; e Media Rights Agenda e outros. Nigeria;
5
Vide o artigo 51
Terça - feira, 26 de Outubro de 2021 l 3

a segurança, saúde pública ou de direitos de mentos de manifestação.6”  preende-se que o problema das autoridades
outrem; A cultura das autoridades públicas em Mo- públicas prende-se com a manifestação en-
3. Proporcionalidade das medidas restriti- çambique leva a crer que os impedimentos quanto expressão pública de vontade sobre
vas das liberdades e dos direitos fundamen- ao exercício do direito à liberdade de expres- assuntos políticos e sociais, de interesse pú-
tais à situação que as tornou necessárias. são visam desencorajar e sufocar qualquer blico, o que reforça a ideia de sua pretensão
Estas exigências decorrem da preeminência intenção de manifestação. O fundamento da em “sufocar e desencorajar movimentos de
do Estado de Direito mencionado no artigo 3 medida imposta pelo Conselho Municipal manifestação”.
da Constituição e permite reforçar a eficácia de Maputo dispõe de certa carga de incoe- A medida proposta pelo Conselho Mu-
do controlo da interferência das autoridades rência, atento a factos como sobrelotação de nicipal de Maputo acarreta maior risco de
na esfera de direitos das pessoas e recurso transporte público relativamente ao qual as  propagação, e é desmedida ao interesse que
aos órgãos jurisdicionais em caso de excesso autoridades públicas parecem tapar proposi- se pretendia proteger, a restrição do direito
ou abuso de poderes das autoridades públi- tadamente os olhos. à liberdade de manifestação da Associação
cas e consequentes violações de direitos fun- O teste de proporcionalidade impõe que as Médica de Moçambique constitui uma medi-
damentais. medidas restritivas sejam tomadas na estrita da desproporcional e, por conseguinte, viola
Ora, se o despacho de indeferimento da so- medida da necessidade. Qualquer extravaso os direitos fundamentais protegidos tanto
licitação da Associação Médica de Moçambi- faz da medida  desproporcional e abusiva e pela Constituição como pela Carta Africana
que (desde logo abusivo pois nos termos do violadora do direito ou da liberdade restrin- de Direitos do Homem e dos Povos.
número 1 do artigo 3 da Lei das Manifesta- gidos. Implicando a realização de um teste Os exemplos citados de impedimento do ex-
ções o direito de reunião e de manifesta- de substituição, este último  impõe a neces- ercício do direito à liberdade de manifestação
ção se exerce sem dependência de qual- sidade de escolher, dentre várias medidas caracterizam uma prática repetida das autori-
quer autorização) se funda no Decreto de que se apresentam face à situação de neces- dades públicas, mormente o Conselho Munici-
Conselho de Ministros número 76/2021, de sidade imperiosa, a que menos restringe ou pal de Maputo e o Comando da PRM da Cidade
24 de Setembro, e motivo imperioso, protec- limita os direitos e liberdades. de Maputo, colocando em causa um pressupos-
ção da saúde pública contra o risco de propa- Além de indeferir a realização  da manifes- to importante da participação democrática
gação do vírus da Covid-19, o mesmo falha tação da Associação Médica de Moçambique, dos cidadãos na vida pública e o exercício da
ao teste de proporcionalidade. o despacho do Conselho Municipal de Mapu- cidadania. Esta cultura anti-democrática e abu-
A jurisprudência do Tribunal Europeu de Di- to recomenda a realização de uma reunião siva das autoridades é acompanhada de certa
reitos Humanos considera a técnica de “cer- e manifestação em lugar fechado. Ora, uma carência de entidades com mandato na pro-
co” legal, mas sublinha que “as autoridades reunião em lugar fechado pode representar moção e protecção de direitos humanos e def-
nacionais não podem recorrer a tais medidas maior risco para contaminação da Covid-19 esa da legalidade, tal como o Ministério Públi-
de controlo de multidões afim de, directa ou que uma manifestação em lugar aberto, do co, o Provedor de Justiça, a Comissão Nacional
indirectamente, sufocar e desencorajar movi- tipo marcha em vias públicas. Deste facto, de- de Direitos Humanos.

6
CEDH, 15 mars 2012, n. 39692/09, 40713/09 et 41008/09, Austin et autres c/ Royaume-Uni: https://lext.so/6w5Bgk

INFORMAÇÃO EDITORIAL:

Propriedade: CDD – Centro para Democracia e Desenvolvimento


Director: Prof. Adriano Nuvunga
Editor: Emídio Beula
Autora: Leopoldina Gouveia
Equipa Técnica: Emídio Beula, Julião Matsinhe, Dimas Sinoa, Américo Maluana
Layout: CDD

Contacto:
CDD_moz
Rua de Dar-Es-Salaam Nº 279, Bairro da Sommerschield, Cidade de Maputo.
E-mail: info@cddmoz.org
Telefone: +258 21 085 797
Website: http://www.cddmoz.org Por inclui na ficha técnica
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