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A CONSTRUÇÃO

DAS CIÊNCIAS
IN TRO D U ÇÃ O À F ILO SO FIA E À É T IC A D AS C IÊ N C IA S

Gérard Fourez
A CONSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS
I N T R O D U Ç Ã O À FILO SO FIA
E À ÉT ICA D A S CIÊN CIA S
FU N D A Ç Ã O PARA O D ESEN V O LV IM EN T O DA U N ESP

Presidente do Con selh o Cu rad or


A r t h u r Roqu ete d e M aced o
DiretorPresidente
Am ilt o n Ferreira
Diretora de Fomento à Pesquisa
H er m ion e EUy M elar a d e C a m p o s Bicu d o

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Jo sc C ast ilh o M ar q u es N et o

E D I T O R A U N E SP

Diretor
Jo sc C ast ilh o M ar q u es N et o
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Jo sé Rob er to Ferreira
Rob er to Kraen k el
Editores A ssisten tes
Jo sé Alu ysio Reis de A n d r ad e
M ar ia A p p ar ecid a F. M . Bu ssolot t i
T u lio Y. Kaw ata
GÉRARD FOUREZ

A CONSTRUÇÃO
DAS CIÊNCIAS
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
E À ÉTICA DAS CIÊNCIAS

T r ad u ção de
Luiz Pau lo Rou an et

UNESP
Fu n dação para o
Desen volvimen to
da UNESP
Cop yr igh t © 1988 by D e Bocck-W esm ael S.A .
T ít u lo or igin al em fr an cês: La construction des sciences
In t r od u ction à la p h ilo so p h ie e t à 1’ét h iqu e d es scien ces

Cop y r igh t © 19 9 5 d a tr ad u ção br asileir a:


Ed it or a U n e sp d a Fu n d ação p ar a o D esen volvim en to
d a U n iv er sid ad e Est ad u al P au lista (FUNDUNESP)
Av. Rio Br an co, 12 1 0
01 2 0 6 - 9 0 4 - São P au lo - SP
T e l./ F a x : (011)223- 9560

D ad o s In ter n acion ais d e C at alogação n a P ublicação (CIP)


(Câm ar a Br asileir a d o Livro, SP , Br asil)

Fourcz, Gérard, 1937 -


A con strução das ciên cias: in trodução à filosofia e à ética das
ciên cias / Gérard Fourez; tradução de Luiz Paulo Rouan et. - São
Paulo: Editora da Un iversidade Estadual Paulista, 1995. - (Biblioteca
básica)

Bibliografia.
ISBN 85-7139-083-5

1. Ciên cia - Filosofia 2. Érica I. Titulo. II. Série.

950853 CDD-501

ín d ices par a cat álogo sist em ático:


Ciên cia: Filosofia 501
SUMÁRIO

11 Prefácio

17 Cap ít u lo 1
In tr odu ção
O que é a filosofia? Códigos “restrito” e “elaborado”
O apartamento, o porão, o sótão Diversas tradições filosóficas
O porquê da filosofia em um programa de ciências Filosofia
e indiferença As questões particulares visadas neste en saio
A ciência e os códigos éticos O que é a normalidade?

37 Cap ít u lo 2
Reflexões epistem ológicas. O m étodo cien tífico:
a observação
Um método dialético Um a “tese”: a representação de Claude
Bern ard A observação científica Observar é estruturar um modelo
teórico O que é um “fato”? Ponto de partida: as proposições
empíricas ou teóricas? O que é um a definição cientifica? Sobre
os objetos semelh antes ou diferentes: o problem a da semelh an ça,
o m esm o e o outro Objetividade absoluta ou objetividade
6 GÉRARD FOUREZ

socialmente instituída? O s diferentes sentidos da “atividade


do sujeito” A ideologia da imediatez científica O sentimen to
de realidade E o "real”? A convicção do observador: "as provas”
Con clusão: a revolução copem ican a da filosofia da ciência

63 Cap ít u lo 3
O m étod o cien tífico: ad oção e rejeição de m od elos
Teorias, leis, m odelos Pode-se deduzir leis das observações?
A ciência é subdeterminada A evolução de n ossas teorias e ^
m odelos científicos? Modelos ligados a projetos São os n ossos ^
m odelos necessários ou contingentes? Verificações, falseamen tos
• O critério de “falseabilidade” Exemplos de proposições não
falseáveis As experiências que decidimos “cruciais”* Modificações
das lin h as de pesquisas O razoável n ão é puramente racional
A diversidade das metodologias científicas Existe
a “melh or” tecnologia? Um a racionalidade n ão absoluta
A lógica das descobertas científicas/

91 Cap ít u lo 4
O m ét od o cien tífico: a com u n idade cien tífica
Um pon to de vista agnóstico sobre a natureza última da ciência
Definir a com un idade científica A com un idade científica faz parte
do método científico As am bigüidades do conceito d e ^ '
“com un idade cientifica” Um grupo m en os un ido do que se diz
A com un idade científica pertence à classe média U m a corporação
com seus próprios interesses O s cientistas como técnicos
intelectuais

103 Cap ít u lo 5
O m ét od o cien tífico: a ciên cia com o disciplin a in telectual
As disciplin as e os paradigmas científicos As con dições culturais
do nascimen to de uma disciplin a A construção das regras
disciplin ares As rupturas epistemológicas O s conceitos
fun damen tais são con struídos e não, dados O s falsos objetos
empíricos Evoluções n ão previsíveis Um exemplo de um
paradigma e de suas con dições sociais: a medicin a científica
Ciên cia normal e revolução científica Nascim en to de uma
disciplin a: período pré-paradigmático Disciplin as estabelecidas:
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 7

período paradigmático O desenvolvimento das abordagen s


paradigmáticas O lugar do paradigma: o lab or at ór io^
O esgotamento dos paradigmas: em direção ao período
pós-paradigmático Traduções, reduções, explicações
In comensurabilidade dos paradigmas As traduções: necessidade
de toda abordagem técnica O s riscos das traduções: abuso de saber
ou acidentes A ciência: uma linguagem técnica com o as outras?
A in terdisciplinaridade: a busca de um a superciência?
A in terdisciplinaridade com o prática particular A ciência:
ferramenta intelectual para um a econ omia de pen samen to?
A ciência: tecnologia intelectual? A produção científica

145 In term ezzo


A ciên cia e os qu ad r in h os sem legen da
Um jogo ch eio de convenções As observações As leis e as teorias
As “verificações” e a resistência em aban don ar uma teoria
A in comen surabilidade dos paradigmas Mudan ça de paradigmas
A ciência n ão é subjetiva, é uma instituição social Há somen te
uma verdade científica?

155 Cap ít u lo 6
Perspectivas sócio-h istóricas sobr e a ciên cia m od er n a
O universo autárquico da Alta Idade Média O universo
dos comerciantes burgueses Um a objetividade permitin do uma
comunicação universal Um a cultura do dom ín io Eficácia e limites
do dom ín io científico Da física, paradigma das ciências eternas,
à história da ciência O casamento da ciência e da técnica
A sociologia da ciência moderna O estatuto da h istória da ciência

1 79 Cap ít u lo 7
Ciên cia e ideologia
Discursos ideológicos e eficácia crítica da ciência Crítica
da ideologia pela ciência In capacidade da ciência em esclarecer
inteiramente as questões éticas Dois graus de véus ideológicos
A ciência com o ideologia" O caráter n ão consciente e implícito
das ideologias e a ética diante das ideologias A ciência varia
de acordo com o grupo social?
8 GÉRARD FOUREZ

195 Cap ít u lo 8
Ciên cias fu n d am en t ais e ciên cias aplicadas
As n oções e seus múltiplos usos O círculo das legitimações
recíprocas Um fun dam en to epistemológico para a distin ção
Um a perspectiva histórica para as ciências puras A árvore
da ciência e as ramificações cientificas Tod o con h ecimento
científico é poder, m as em lugares diversos

207 Cap ít u lo 9
Ciên cia, poder político e ético
Ciên cia e poder Modelos tecnocrático, decisionista
e pragmático-político O abuso de saber da tccnocracia
Distin guir entre os m eios e os fins, os valores e as técnicas?
Um exemplo: estabelecer programas de en sin o A tecnologia
com o política de sociedade A vulgarização científica, efeito
de vitrine ou poder?

227 Cap ít u lo 10
Id ealism o e h istória h u m an a
O s enfoques idealista e histórico Noção, idéia, conceito Critica
do idealismo Tu do se diluiria então no relativo? Um a teoria
da con strução dos conceitos do pon to de vista h istórico
O s conceitos e os relatos A produção social dos conceitos
na h istória A grade econômica A grade femin ista A grade
ecológica As grades complementares

251 Cap ít u lo 11
Ciên cia, verdade, idealism o
Visão idealista da ciência Visão histórica da ciência A ciência
como estrutura dissipativa Ciên cias e teorias da verdade Reflexões
sobre a “coisa-em-si” Acreditar na ciência? A ciência com o
trabalh o sobre os limites

263 Cap ít u lo 12
Ética idealista e ética h istórica
Ética, moral, culpabilização Ética idealista Um pon to de vista
h istórico sobre a ética O que é um a decisão ética? Um a moral
do apelo e o debate ético Con strução de um a ética ou de um
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 9

paradigma ético Con fron tações com os valores e as pessoas


Moral cristã idealista e histórica A in dispensável análise no debate
ético Debate ético e justiça Um a concepção política e positiva
do direito Justiça e am or Ideologias da justiça Moral individual
e moral estrutural

297 Cap ít u lo 13
C o m o articular ciên cia e ética?
Articulação da reflexão ética e dos resultados científicos Diante
da ética e da política, os limites dos paradigmas As contribuições
das an álises especializadas na escolha da liberdade Um exemplo:
a psicologia e a ética n as relações afetivas

307 Bibliografia
PREFÁCIO

Esta ob r a destin a-se àqu eles qu e d esejam com p r een d er a


prática cien tífica e su a in ser ção em n ossa vida in dividu al e coletiva.
Ela m ostr a de qu e m od o o esforço cien tífico é per m an en t em en t e
relacion ad o com u m pr ojeto h u m an o. Salien t a assim o sen tido
h u m an o d a ciên cia, a criatividade qu e lh e é in eren te; esclarece
t am b ém a m an eira pela qu al ela é produ zida pela sociedade, e com o
repercute sobre a m esm a. Trata-se, por con segu in te, de u m a obr a
de reflexão filosófica e ética.

C o m o b ase deste en saio ach am -se algu m as escolh as, com o em


tod o trabalh o in telectual. En tre estas, algu m as são con scien tes,
ou t r as situam -se fora deste d om ín io. N ão se pod e jam ais perceber
tod as as op ções qu e se tom a ao escrever. Explicitarei aqu i, con tu d o,
algu m as qu e m e parecem claras.

Em prim eiro lu gar, com o p an o de fu n d o par a essa reflexão,


en con tra-se o sen tim en to de qu e a ciên cia con stitui u m a form idável
criação d a h istória h u m an a, m as t am b ém de qu e ela é am bígu a.
Esta am b igü id ad e revelou-se par a m im q u an d o term in ava o m eu
d ou t or ad o em física teórica pela U n iver sid ad e de M arylan d, n os
12 GÉRARD FOUREZ

an os 60. D u as situ ações, em particular, fizeram -m e refletir. A


pr im eir a su rgiu n o dia em qu e recebi o m eu pr im eir o pagam en to
com o “p esq u isad o r assist en t e ” (research assistan t): descob r i com
esp an t o qu e, m esm o sen d o o tem a de m in h as p esqu isas d o s m ais
t eóricos e sem aplicação diretam en te im agin ável, era p ago por m eio
de u m con trato com as For ças Aér eas Am er ican as... A segu n d a
t om ad a de con sciên cia ocorreu q u an d o m e dei con ta de qu e os
m eu s colegas am er ican os recebiam ofertas de em pr egos bem
m elh or es q u an d o p r ovin h am d o s serviços de p esqu isa m ilitares...
Sem elh an t es d escober tas n ão m e con du ziram de m od o algu m
à con clu são de qu e tan to fazia o u so cien tífico ou m ilitar. Levaram -
m e, porém , a refletir sobr e a m an eira pela qu al se im br icam a
ciên cia e a sociedade. N a época, a prin cipal qu est ão d a filosofia da
ciên cia qu e m e ocu pava era: “Pode a ciên cia alcan çar o verd ad ei­
r o?”. Pergun tava-m e com freqü ên cia cad a vez m aior: “O qu e fazem
os cien tistas n a h istória h u m an a?”. Além d isso, u m a op ção ética
p esso al levou-m e a especificar essa qu est ão pr ivilegian do o lu gar
d aqu eles qu e, de u m a m an eir a ou de outra, são op r im id os.
Coloco-m e especialm en te a qu est ão: “De qu e m od o a ciên cia
con tr ibu i par a a liberação ou op r essão h u m an as?”.
A s m in h as in cu m bên cias com o pr ofessor en carr egado da
for m ação h u m an a de estu dan tes qu e se especializam em ciên cia ou
m atem ática fizeram-me refletir t am bém sobre a m an eir a pela qu al
a for m ação d o s cien tistas os con d icion a em seu s com por t am en t os
in dividu al, fam iliar e social.
Essas situ ações e ou t r as d as qu ais eu possivelm en t e percebo
m en os a im por tân cia em relação a este en saio levaram -m e à
con vicção de qu e os cien tistas pod em ben eficiar-se de u m a reflexão
filosófica. Acredito ser sem elh an te reflexão útil t am b ém par a
in telectuais n ão for m ad os em facu ldades de ciên cias. A m in h a
experiên cia com o or gan izad or n o In stitu to Su p er ior de Cu lt u r a
O p er ár ia - In stitu t Su pér ieu r de Cu lt u r e O uvrière (ISC O ) m e
en sin ou , ain d a, qu e os trabalh ad or es p od iam situar-se b em m elh or
em su as m ilitân cias q u an d o eram ap r esen t ad os às ciên cias e às
técn icas sem serem m istificados p or elas. D e tu do isto su rgiu esta
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 13

ob r a qu e qu er valorizar a fan tástica con tribu ição da ciên cia à cultura


e à socied ad e ap on t an d o, ao m esm o tem po, os seu s lim ites.

O objetivo deste en saio é pr om over u m a reflexão p essoal e


au t ôn om a de cien tistas - e de n ão-cien tistas - qu e n ão se especia­
lizaram em filosofia. Para tan to, ofereciam -se a m im d u as estraté­
gias. A prim eira teria con sist id o em apr esen t ar u m a visão “tão
objetiva q u an t o p ossível” de diversas corren tes d a filosofia, da
sociologia e d a p sicologia d a ciên cia. A segu n da, a qu e escolh i, visa
a apr esen t ar u m a visão coeren te particular d o cam p o est u d ad o,
con vid an d o o leitor a situar-se de m an eir a au t ôn om a em relação a
essa visão.
A prim eira possib ilid ad e teria con vergido com u m a d as práticas
d a filosofia u n iversitária: situ ar t om ad as de p osição em m eio à
exposição r igor osa d as p osições de ou t r os p en sad or es. Sem elh an t e
m ét od o parece-m e eficaz par a leitores t rein ados em h erm en êu tica,
e, port an to, capazes de perceber qu e as exposições m ais r igor osa­
m en te con st r u íd as n ão fazem m ais, afin al, d o qu e apr esen t ar os
p en sam en t os d o s ou t r os segu n d o a n ossa perspectiva (foi aliás
H eidegger, creio, qu e d isse u m dia qu e u m filósofo n ão pod ia
jam ais exp or sen ão u m ú n ico pon t o de vista: o seu). A apr esen tação
de p en sam en t os ou t r os qu e os n osso s com por ta u m a am b igü id ad e
im por tan te d a qu al M au rice Blon d el estava p r ofu n d am en t e con s­
cien te q u an d o escolh eu , par a a su a fam osa tese de d ou t or ad o sobr e
a Ação (1893), n ão fazer citações p r ecisas.1
Cr eio qu e os n ão-especialistas em filosofia - e em particu lar os
est u d an t es de ciên cias - percebem com m en os facilidade d o qu e
os filósofos de p r ofissão até qu e pon t o exposições aparen tem en te

1 Em u m a n ora n o in icio d e seu pr im eir o capit u lo, diz, a p r op ósit o d e exp r essões
t o m ad as d e em p r ést im o a algu n s d o s escr itores co n t em p o r ân eo s: “ Preferi n ão
citá-los, a fim d e n ão par ecer im pu tar- lh es in d iscr et am en t e in ten ções q u e eles talvez
n ão t en h am ” .
14 GÉRARD FOUREZ

“ob jet ivas” são sem pre particulares. É por isto qu e m e parece
im por tan te salien tar a especificidade de m eu en saio. Decidi expor
a m in h a m an eir a de ver as práticas cien tíficas, m esm o in d ican d o
ou t r as visões cad a vez qu e isto m e pareceu útil, par a qu e o leitor
p o ssa t om ar o p r óp r io partido. E pr eciso ter lucidez, porém , sobr e
o fato de qu e, q u an d o escolh i expor ou t r os p on t os de vista, foi
p or qu e isto me pareceu ad equ ad o para eviden ciar as diferen tes
escolh as possíveis. N ão qu er o p assar a ilu são d a p ossib ilid ad e de
u m a exp osição exau stiva e “objetiva” d os ou t r os p o n t os de vista.
U m a tal perspectiva parece-m e m ais in dicada p ar a pr om over a
au t on om ia d o leitor n ão-especialista d o qu e u m a pr et en são a u m a
aparen te objetividade. Prim eiram en te, p or qu e a p lu r alid ad e d os
p o n t os de vista já está garan t id a d esd e o in ício pelo fato de qu e
cada leitor ou leitora - assim com o cada cien tista - tem sem pre a
su a filosofia da ciên cia esp on t ân ea. Ela lh e foi in cu lcada p or m eio
d o b an h o cultural n o qu al ele, ou ela, está su b m er so, ou pela
for m ação cien tífica segu ida. Pode-se, além d isso, falar de u m
fen ôm en o de con dicion am en to, p ois esta filosofia esp on t ân ea
n asce em u m con texto em qu e é difícil perceber as difer en ças d as
p osições possíveis. Q u an d o d a leitura de u m en saio com o este,
pelo con trário, in dico claram en te qu e o leitor en con tra-se em
pr esen ça d o meu p on t o de vista, com o qu al ele pod e con fr on t ar
o seu , esp on t ân eo ou refletido. P essoalm en te, creio qu e o qu e
perm ite fin alm en te escapar ao totalitarism o n o d iálogo é a con s­
ciên cia de qu e a perspectiva d o ou tro n ão é jam ais a m in h a.
Poder-se-ia d iscor rer lon gam en te sobr e o m od o com o a apr e­
sen t ação de u m pen sam en t o poder ia ser a m ais liber ad or a. Cr eio
qu e, q u an d o se afirm a (q u an d o eu afirm o) com clareza a su a
(m in h a) p osição, os ou t r os são levados a refletir sobr e a su a. E se,
por vezes, estu dan tes ou leitores sen tem -se u m pou co ab alad os pelo
rolo com p r essor qu e é u m pen sam en t o m ais for m ad o n a dialética
d o qu e o seu, a experiên cia m ostr a qu e eles sab em criar defesas
par a si, q u an d o su speitam qu e poder iam sofr er u m a violação
in telectual! P en so qu e m ais vale p r oclam ar com clareza qu e só se
p od e ap r esen t ar o seu pon t o de vista, d o qu e p assar pelo artifício
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 15

de exp osições apar en t em en te m ais objetivas. Ist o em n ad a su btrai


o in teresse de apr esen t ações de p en sam en t os diferen tes, tais com o
a h ist ór ia d a filosofia prática: esta obedece a critérios r igor osos n o
âm b it o de u m par ad igm a d ad o. E aliás o m otivo pelo qu al certas
p e sso as preferem esse tipo de abor dagem . M u ito d ep en d e da
h istór ia in telectual e psicológica de cada u m . D e qu alqu er m od o,
o q u e me parece im por tan te é qu e se esteja con scien te de qu e
existem m ú ltiplas m an eir as de pen sar , e de q u e a m in h a é
particu lar, assim com o a de m eu leitor. Acredito qu e, n essa
perspectiva, trocas e con fr on t ações p od em se tor n ar in t er essan t esf
N o en tan to, par a colocar em evidên cia o con texto cultural
d en t ro d o qu al con du zo a m in h a exposição, cito n u m er osas ob r as,
sem d esen volver n ecessar iam en t e o pen sam en t o evocado pela
citação. C ad a vez qu e cito u m au tor é por qu e ele m e parçceu u m
d ia “in teressan te” em relação à m in h a pesqu isa: seja p or qu e ele a
su scitava, seja p or qu e a corroborava, seja por qu e a con fron tava
com ou t r as op in iões, seja en fim p or qu e se op u n h a a ela. Ach o
im por tan t e qu e o leitor perceba este pan o de fu n d o sobr e o qu al
se destaca a m in h a reflexão.
Est as ob servações p r elim in ares parecem -m e ú teis par a situ ar
este en saio de filosofia e de ética da ciên cia, para “rião-especialistas”
(n ão-especialistas seja em filosofia, seja em ciên cia)...

A p ó s u m capítu lo de in trodu ção destinado aos não-filósofos,


algu n s capít u los con sid er ar ão o m ét od o cien tífico d o m od o com o
ele se desen volveu n o O cid en te n os ú ltim os sécu los. Exam in ar e­
m os pr im eir am en te com o fu n cion am os cam in h os p r óp r ios à
r acion alid ade cien tífica (observação, con stru ção, ad oção e rejeição
de m od elos); em segu ida, am p liar em os o con ceito de m ét od o par a
ver o fu n cion am en t o d as com u n id ad es cien tíficas e d as diversas
d iscip lin as. Isto n os con du zirá a con sid er ar a ciên cia m od er n a
com o u m fen ôm en o h istór ico e u m a in stitu ição particu lar à n ossa
civilização.
16 GÉRARD FOUREZ

A d istin ção en tre ciên cias e ideologias, assim com o a dificu l­


d ad e em separá-las claram en te ocu par ão os capítu los segu in tes. Em
especial, será exam in ada a distin ção en tre ciên cias fu n d am en t ais e
ciên cias aplicad as, assim com o a n oção de in terd isciplin ar idade, o
qu e n os con du zirá a con sid er ar as relações en tre as ciên cias e os
pod er es políticos e éticos.
Est as reflexões n os levarão a qu e n os in terr ogu em os sobr e
d iver sas m an eir as de ver as n oções de verdade. E esta etern a e
ab solu ta, ou sem p re con st r u íd a h istoricam en te e em u m con texto
específico? Em que,,$en tido a ciên cia pod e pr eten der à verdade, e
de qu e m od o? Paça con clu ir o n o sso projeto de situ ar a ciên cia
d ian t e de n ossas escolh as p essoais e coletivas n os restará en tão
con st r u ir u m a represen tação da reflexão ética e d o seu vín cu lo com
a política para, fin alm en te, est u d ar a relação d essas d u as in stân cias
com a ciên cia.

Q u er o agradecer a m eu s colegas qu e estim u laram ou criticaram


o m eu trabalh o, particularm en te J. Du ch ên e, P. Favrau x, B. Feltz,
D. Lam bert, T . Ngu yen , F. Saar , M . Sin glet on , G . Th ill. U m
agrad ecim en to todo especial às m in h as colabor ad or as C . Gortebec-
ke, M . M eert e M . Sch on b r od t , sem as qu ais esta ob r a jam ais teria
sid o con clu ída.
C A P Í T U LO 1

INTRODUÇÃO

O que é a filosofia?

A filosofia n ão é u m a d isciplin a qu e forn eça, fora d o âm bit o


da ciên cia, u m a r espost a a t od os os p r ob lem as nÃo r esolvidos d a
h u m an id ad e. E u m a disciplin a de pen sam en t o cu ja tradição re­
m on ta bastan te lon ge em u m certo n ú m er o de cu ltu ras, p or
exem plo, n o O cid en te, e, so b ou tr as for m as, n a ín d ia. O objetivo
deste livro é o de in trodu zir a ela. O objetivo n ão é, portan to, d ar
ao leitor u m a série de r espost as, m as de forn ecer ou t r os m ét od os
de p en sam en t o qu e n ão os d as ciên cias, n a esp er an ça de qu e isto
con tr ibu a par a tor n ar as práticas sociais, p or u m lado, m ais
“r esp on sáveis” e, p or ou tro, m ais “h u m an as” (term o qu e eviden ­
tem en te deve-se pr ecisar m elh or!). U m a d as fin alid ad es d esta ob r a
é t am b ém a de forn ecer aos cien tistas e p r ofessor es de ciên cias,
com o p essoas in d ividu ais, u m a abertura qu e os aju de a perceber
diversas ab or d agen s d a realidade e a n ão en cerrá-la d en t r o d o
m étodo u n id im en sion al d as ciên cias.
18 GÉRARD FOUREZ

A ssim com o ocorre com ou t r as d isciplin as (com o a m atem áti­


ca, a física, a qu ím ica, a biologia), a filosofia con vid a a en trar em
u m a tradição in telectual. Ela desen volve u m m ét od o, con ceitos
técn icos, ferram en tas in telectuais qu e perm item com p r een d er cer­
tas qu est ões. E p or esse m otivo qu e, d o m esm o m od o qu e seria
in sen sat o qu er er fazer m atem ática sem se su bm eter, p or exem plo,
à d iscip lin a d o cálcu lo diferen cial e in tegral, é im possível fazer
filosofia sem ad qu ir ir u m a cerca técn ica e o vocab u lár io ad equ ad o.
P ode parecer rabu gice recor dar isto, m as é algo n ecessár io em u m a
cultu ra n a q u al m u itos cien tistas parecem esqu ecer t od a exigên cia
de r igor q u an d o deixam o d om ín io de su a d isciplin a. Para refletir
sob r e o s p r ob lem as d a socied ad e e sobr e as qu est ões h u m an as é
pr eciso p o ssu ir “ferr am en t as” d o m esm o m od o qu e par a fazer
física; em am b os os casos n os in ser im os em t radições in telectuais
e u tilizam os os r esu lt ad os d as gerações qu e n os precederam .

Códigos “restrito” e "elaborado”

A reflexão filosófica parte de u m a experiên cia m u ito sim ples:


d o fato de qu e, em u m a prim eira aproxim ação, servim o-n os de dois
t ipos de lin gu agem par a falar d o m u n d o; o filósofo Bern st ein (em
D ou glas, 1970) os disrin gu iu e ch am ou de cód igos “r estrito”e
“elab or ad o”.
Q u an d o descrevo os ob jet os qu e estão sobr e a m in h a escriva­
n in h a, esta lâm p ad a de leitura, este ditafon e, est as flores, estas
folh as de papel, descrevo-os sem m e p r eocu par com o alcan ce
d e ssas descrições. O qu e m e im por ta é qu e u m a p essoa a p ar das
práticas lin gu ageiras de n o ssa cultura p o ssa recon h ecer a lâm p ad a
d e leitura, o s livros, a can eta etc. D o m esm o m od o, se digo qu e
fu lan o esp oso u beltran a, n or m alm en t e n ão m e lan çarei com base
n isso em u m a reflexão elabor ada sobre a sign ificação d o casam en t o
e d o am or . Utilizo en tão o código restrito: a lin gu agem d o dia-a-dia,
útil n a prática e qu e n ão leva adian te t odas as d ist in ções qu e se
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 19

poderia fazer para ap r ofu n d ar o m eu p en sam en t o. Caracteriza-se


f)elo fato de que aqueles que a utilizam partilh am as m esm as pressu­
posições de base sobre o sujeito de que falam ; o d iscu r so cien tífico
en tra n essa categoria.
Por outro lado, se com eço a colocar-me qu estões sobre a amizade,
a vida, a m orte, a justiça etc., produzirei u m outro tipo de discurso,
bem diferen te daqu ele d o código restrito. O bservarei, por exem plo,
qu e a n oção de am izade n ão é clara. Para torná-la m ais precisa,
contarei histórias, e efetuarei m últiplas distin ções. Precisarei u ltrapas­
sar a m in h a experiên cia de vida cotidian a, a fim de atin gir cam adas
“m ais pr ofu n d as” de m in h a person alidade e da n ossa vida em
com u m . Bern stein ch am ou de “código elaborado” o tipo de discu rso
qu e produ zim os qu an d o ten tam os su perar dessa m an eira a lin gua­
gem cotidian a e prática (ch am ada tam bém p or vezes de “lin guagem
da u ten silidade”). O qu e caracteriza o discu rso elaborado é qu e ele
é utilizado para falar de sujeitos a respeito d os qu ais n ão partilham os
necessariam ente as mesmas pressuposições de base.
Em u m a pr im eir a apr oxim ação, o código restrito fala d o
“com o” d as coisas, d o m u n d o e d as p essoas, ao p asso qu e o código
elab or ad o procu ra dizer algo d o “p or qu ê” e d o “sen t id o”. D e m od o
geral, as ciên cias se ocu pam com a lin guagem restrita. N o O ciden te,
ain d a falan d o de m an eir a geral, a filosofia - e p or vezes t am b ém a
religião - ocupa-se com o código elabor ad o (n ão se deve con tu d o
jam ais levar d em asiad o lon ge as distin ções n em as teorias, aliás.
Pode h aver m om en t os em qu e o físico ou o biólogo se colocam
qu est ões “m ais elab or ad as” sobr e a m atéria ou a vida. Pode-se dizer
qu e eles com eçam en tão a filosofar. Q u alq u er qu e seja a m an eir a
pela qu al se con sidera essa ten d ên cia d os cien tistas a filosofar,
p od em os dizer, em u m a prim eira abor dagem , qu e a distin ção en tre
os cód igos “restrito” e “elab or ad o” fu n cion a bast an t e bem ).
D en t r o desta perspectiva, o código restrito cor r esp on d e ao
in teresse qu e têm o s h om en s e as m u lh eres em colocar or d em em
seu m u n d o, em con trolá-lo e com u n icar a ou t r em a m an eir a pela
qu al o vêem . H ab er m as (1973) falará de u m interesse técnico. E u m
código prático. Além d isso, utiliza-se o cód igo elab or ad o q u an d o
20 GÉRARD FOUREZ

se trata de in terpretar os acon tecim en tos, o m u n d o, a vida h u m an a,


a socied ad e. A ssim , H ab er m as dirá qu e esse in teresse filosófico
está ligad o ao in teresse hermenêutico ou interpretatório d os seres
h u m an os. A in d a m ais, o código elabor ad o - e a filosofia - é
utilizado q u an d o se trata de “criticar” in terpretações h abitu alm en te
r ecebidas (ou seja, de em itir u m a op in ião m ais refletida qu e
especifiqu e os seu s “critérios”; a palavra “criticar” vem d o grego e
sign ifica “efetuar u m ju lgam en t o”, n ão tem n ad a a ver com
“d en egr ir ”). Essa su p er ação d as idéias geralm en te adm itid as cor ­
r esp on d e a u m interesse em ancipatório. C o m o so m os por vezes
pr ision eir os de esq u em as de in terpretações da vida, d o m u n d o e
d a sociedade, u m a lin gu agem crítica tem por fin alidade libertar-n os
d e ssa p r isão e ren ovar o n o sso olh ar.

D esse m od o, se con sid er o a n oção de “m u lh er ” , p o sso pr im ei­


ram en te utilizá-la n o código restrito: n esse caso, t od os com pr een ­
d em o qu e sign ifica. Em u m ou t r o plan o, porém , u lt r ap assam os
essa visão pragm ática da n oção “m u lh er ” par a u tilizar u m a repre­
sen t ação qu e dê u m a in terpretação m ais “fu n d am en t al” dela; esta
se liga eviden tem en te à cultura de u m a civilização, de um m eio
social, de n ossa h istór ia p essoal etc. (assim , as p e ssoas verão a
m u lh er de m od o diferen te n a Idade M éd ia e n a era in du st rial -
civilizações diferen tes - ; m eios de sociedade diferen tes - por
exem plo, as classes bu rgu esa ou operária, ou ain d a os h om en s e
as m u lh eres - veicularão u m a im agem qu e lh es será pr ópria; e cada
in d ivíd u o terá u m a repr esen tação da m u lh er in flu en ciada pelas
atitu des q u e tiveram os seu s pais). U m a reflexão filosófica ten tará
forn ecer u m a r epresen tação da m u lh er (in teresse in terpretatório ou
h erm en êu tico) qu e u lt r apasse as n oções alien an tes de fem in ilidade
(in teresse em an cipatório). O fato de qu e a n oção de m u lh er é
algu m as vezes ligada à visão de u m ser relativam en te in defeso e
p ou co in teligen te, se bem qu e sen sível, e ou t r as vezes à repr esen ­
tação de u m parceiro igual ao h om em , m ostr a bem qu e u m a certa
atividade “crítica” pod e ser n ecessária par a su p er ar visões qu e
ap r ision am . D o m esm o m od o, u m a reflexão crítica pod e liberar
visões m or ais d em asiad o estreitas.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 21

C o m o ou t r o exem plo, con sid er em os com o a n oção de “ciên ­


cia” é utilizada n o cód igo restrito e n o código elabor ad o. O código
restrito é aqu ele utilizado n a m aior parte d o s cu r sos de ciên cias.
Su põe-se sab er d o qu e se fala, e n ão se exige reflexão ulterior.
Porem , caso se procu re fazer u m a idéia d o qu e seja “em defin itivo”
a ciên cia, isto é, d ar u m a in terpretação qu e faça “sen t id o” par a n ós,
a tarefa se t orn a m ais com plexa. T o d as essas in terpretações n ão
são equ ivalen tes. N esse n ível in terpretatório, a n oção qu e se tem
da ciên cia será ligada, graças a u m a lin gu agem elabor ad a, a ou t r os
con ceitos, tais com o a felicidade d o s h u m an os, o pr ogr esso, a
verd ad e etc. Essa lin gu agem elabor ad a - essa filosofia d a ciên cia -
perm itirá u m a in terpretação d aqu ilo qu e a lin gu agem restrita diz a
respeito d a ciên cia. Além d isso, a palavra “ciên cia” p od e p or vezes
“ap r ision ar ”, p or exem plo, q u an d o algu n s p assam a im p r essão de
qu e, u m a vez qu e se falou de cien tificidade, n ão h á n ad a m ais a
fazer sen ão se su bm et er a ela, sem dizer ou p en sar m ais n ad a a
r espeito. U m filósofo “critico” ou “em an cipat ór io” da ciên cia
pr ocu r ar á port an to com p r een d er com o e p or qu e as id eologias d a
cien tificidade p od em m ascar ar in teresses de sociedade diversos.

O apartamento, o porão, o sótão

A d istin ção d esses d ois códigos pod e ser ilu str ada por u m a
an ed ota cu jo h erói é o filósofo da ciên cia G ast o n Bach elar d. Esse
p en sad or fran cês, n o fim de su a vida, estava sen d o en trevistado
p or u m jor n alista. D ep ois de algu n s m in u t os, Bach elar d o in ter­
r om peu : “O sen h or , m an ifestam en te, vive em u m apar t am en to e
n ão em u m a casa.” E o jor n alista, su r pr eso, pergun tou-lh e o qu e
qu er ia dizer com isso. O filósofo lh e r espon d eu qu e a diferen ça
en tre u m a casa e u m apar tam en to é qu e a prim eira possu i, além
da zon a de h abitação, u m sótão e u m porão; e o qu e h á de
particular, acrescen tou, é qu e sem pre su b im os ao sótão, e descem os
ao porão.
22 GÉRARD FOUREZ

Bach elar d qu er ia assim in dicar qu e m u itos vivem sem jam ais


d eixar o n ível d o código restrito. Q u est ões com o “O qu e é o am or,
ou a am izade?” parecem -lh es ociosas; assim com o a m aioria d as
q u est ões relativas às idéias ad qu ir id as. Pela im agem d o sótão ou
d o p or ão, Bach elar d m ostrava qu e, par a ele, ser “h u m an o ” sign i­
ficava p o r vezes “su b ir ao sót ão” , isto é, viver u m a b u sca de
sign ificações d a existên cia p or m eio d o s sím b olos filosóficos,
poéticos, artísticos, r eligiosos etc. E “descer ao p o r ão” im plicava ir,
p o r vezes, olh ar o qu e se p assa n os su b solos e fu n d am en tos
psicológicos ou sociais de n o ssa existên cia e d iscer n ir n os con d i­
cion am en t os o qu e n os op r im e ou libera.
U m d os in teresses d essa im agem m e parece ligado ao fato de
qu e se p assa a m aior parte d a existên cia n a sala de estar e n ão n o
sót ão ou n o porão. M as aqu eles qu e “n ão sob em jam ais ao sót ão”
e “n ão descem jam ais ao p o r ão” carecem talvez de u m a certa
d im e n são (n ot em os qu e esse tem a d a “car ên cia” n ecessitaria de
u m a elabor ação par a derivar os seu s sign ificados e fazer u m exam e
crítico!). Por ou tro lado, aqu eles qu e vivessem o t em po todo n o
sótão, ou n o p or ão seriam talvez facilm en te con sid er ad os com o
p ou co eq u ilib r ad os (com o p or exem plo aqu eles qu e se p r eocu p am
sem p r e com t od as as razões de su a ação).
P er m an ecem os a m aior parte d o t em po n o m u n d o prático de
n o sso s cód igos restritos. Se n os afast ássem os dele o t em po tod o
torn ar-n os-íam os literalm en te lou cos. Pois, se est ou em vias de
efetu ar u m a experiên cia de laboratór io, n ão t en h o von t ad e, n esse
m om en t o, de m e colocar a qu est ão d a sign ificação ú lt im a d aq u ilo
qu e faço. E o m esm o ocorre se qu er o dizer a algu ém qu e gosto
d essa p essoa. N ão obstan te, pod e h aver u m sen t id o, tan to par a
n ós com o par a os qu e est ão à n o ssa volta, n o fato de p od er m os,
em certos m om en t os, “in terpretar” o qu e fazem os, ou “criticar”
idéias com u n s ad qu ir id as.
Parece-me n or m al, portan to, qu e u m a reflexão filosófica n ão
assu m a, n a for m ação prática de u m cien tista, u m lu gar exagerado.
A ssim m esm o, ju lgo im portan te qu e aqu eles qu e r ecebem u m a
for m ação em ciên cia n ão se t or n em seres “u n id im en sio n ais”,
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 23

in capazes de ver algo m ais além de su a prática técn ica. N ão seria


lam en tável, tan to par a a socied ad e q u an t o p ar a os in d ivíd u os, qu e
seres h u m an os tivessem u m a for m ação extrem am en te apr im or ad a,
q u an d o se trata d o código restrito, e for m ação algu m a q u an t o à
utilização de n o ssas tradições relativas ao código elabor ado? Em
ou t r os ter m os, con sid er ar ia lam en tável, par a am b as as partes,
for m ar cien tistas qu e ten tariam ser rigor osos q u an d o se trata de
ciên cias, m as aceitariam facilm en te u m a total apr oxim ação em
ou t r os d o m ín ios. Em ou t r os term os ain da, u m a ab or d agem filosó­
fica se op õe ao con dicion am en t o d os cien tistas “técn icos perfeitos” ,
m as in capazes de refletir sobr e as im plicações h u m an as de su as
práticas (seria in teressan te, aliás, e isto faz parte de u m a reflexão
filosófica, in terrogarm o-n os sobr e as razões pelas q u ais m u itos
ad m item sem d ificu ldade per m an ecer ign oran t es q u an d o se trata
de qu est ões h u m an as - de ter q u an t o a esse assu n t o u m a espécie
de “fé de carvoeiro”, fé h u m an a ou r eligiosa ao p asso qu e
r ecu sam ab solu tam en t e p ossu ir con h ecim en t os ap en as aproxim a-
tivos em u m d o m ín io técn ico).
A ab or d agem filosófica qu e irem os em pr een d er opõe-se t am ­
b ém à existên cia d aqu ilo qu e C . P. Sn ow (1963) ch am ou de u m a
“d u p la cu ltu ra”, isto é, u m a separação en tre as práticas p r ofissio­
n ais cien tíficas e as reflexões m ais p essoais. E típico, com efeito,
en con t r ar em n o ssa sociedade p essoas qu e, em su a vid a p essoal ou
pú blica, são p u r os execu tan tes, ou p u r os técn icos, in capazes ou se
r ecu san d o a refletir n as im plicações sociais de su as práticas; em
su as vid as “p r ivad as” ou “fam iliar es”, con tu d o, advogam valor es
h u m an os.
Q u an d o o s cien tistas d esejam ter u m a certa abertura, esta se
faz geralm en te à m argem de seu t rabalh o pr ofission al: in teressam -
se, p or exem plo, pela m ú sica, p or ob r as sociais ou car id osas, pela
arte ou ou tr as for m as de exp r essão sim b ólica ou religiosa. T êm
m ais facilidade em lid ar com gr an des idéias sobr e o m u n d o, D eu s,
a b u sca d o verd adeiro, d o qu e com reflexões con cretas sob r e as
qu est ões relacion ad as com su a vid a p r ofission al. P r ecisar em os
voltar às razões qu e levam a n ossa sociedade a pr od u zir u m a classe
24 GÉRARD FOUREZ

m édia de cien tistas técn icos, apolíticos, in capazes de en fr en tar as


sign ificações h u m an as de su as vidas pr ofission áis e con fin an d o os
seu s q u est ion am en t os éticos a su a vida p r ofission al ou privada.

Diversas tradições filosóficas

N o cam p o da ciên cia, pod e h aver diversas m an eiras de abor dar


certas qu est ões - d iver sas tradições. A ssim , existem diver sos m é­
t od os par a se efetuarem an álises qu ím icas. A m aior parte d esses
m ét od os p o ssu i relação en tre si, m as são distin t os. Q u an d o se
for m a u m qu ím ico, p ou cas vezes ele é in trodu zid o a t od os os
m ét od os de an álise em qu ím ica. Even tualm en te, m ais tarde, o
est u d an t e apr en d er á ou t r os de acor d o com seu s d esejos e n ecessi­
d ad es. D e qu alq u er m od o, ap ós ter utilizado pelo m en os u m
m ét od o, com preen de-se u m p ou co m elh or o qu e é a an álise
qu ím ica.
O m esm o vale para a filosofia. Existem diver sas tradições
filosóficas n o O ciden te, e n u m er osas escolas. U m est u d an t e de
filosofia deve ser con fr on t ad o com várias d elas, ain d a qu e seja
im possível con fron tá-lo com t odas. Para u m “cien tista”, já é difícil
m u it as vezes com p r een d er u m só en foqu e filosófico. N e m p en sar
em con fron tá-lo com as m ú ltiplas m an eir as pelas q u ais se pod e
“fazer filosofia”. Se algu n s “qu iser em m ais”, p od em com eçar a ler
o b r as de filosofia.
O objetivo desta ob r a será, prin cipalm en te, iniciá-lo em u m a
ab or d agem filosófica, aqu ela qu e o au tor prefere, m esm o est an d o
con scien te d e qu e existem ou tras. A p ó s ter ap r ofu n d ad o u m a, será
possível com p r een d er m ais facilm en te com o situ ar ou t r as ab or d a­
gen s. A in d a m ais por qu e cada u m já tem u m a, a su a filosofia
esp on t ân ea (Alth usser, 1974); por este term o en ten d em os a im a­
gem n ão-crítica qu e p o ssu ím os d as coisas. Para os cien tistas, essa
filosofia esp on tân ea é em geral con d icion ad a pela visão tran sm itida
p or seu s p r ofessor es, m esm o qu e estes estivessem p er su ad id os a
“só fazer ciên cia, e de m od o algu m filosofia”.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 25

A fin alidade desta in iciação à filosofia, portan to, n ão é forn ecer


um a en ciclopédia filosófica: é u m a in trodu ção, per m it in do ao leitor
adqu ir ir u m a visão m ais crítica pelo fato de qu e se poder á com par ar
a su a visão e sp o n tân ea (e as de seu s pr ofessor es) à exposta aqu i
(obser vem os qu e é ilu sór io qu er er apr esen t ar u m en foqu e neutro,
pr et en d en d o, p or exem plo, desen volver “ob jetivam en te” d iver sas
filosofias d a ciên cia: a sín tese de tal m od o pr od u zida ser á sem pre
aqu ela d o pon t o de vista d o expositor; e a im pr essão de objetividade
seria fin alm en te devida a u m a m an ipu lação!). N ad a im pede, aliás,
qu e os leitores leiam ou t r os livros para sab er m ais a respeito. Vár ias
vezes, portan to, se in dicará com o ou t r os en foqu es são possíveis.
N a bibliogr afia assin alar em os u m a ou ou tra ob r a qu e ab or d e a
filosofia de acor do com u m p on t o de vista relativam en te diferen te
d o ad ot ad o n este cu rso.

O porquê da filosofia em um programa de ciências

“Por qu e d ar u m lu gar à filosofia n a for m ação d os cien tistas?”.


P od er íam os per gu n tar tam bém : “Por qu e u m cu r so de in form ática
par a u m q u ím ico?” , ou : “Por qu e u m cu r so de ciên cias n atu rais
par a u m m atem ático?”. A essas qu est ões n ão existe u m a r espost a
cien tífica: a r esp ost a é d o âm b it o de u n ia política u n iversitária.
Im põcm -se m atérias em u m program a p orqu e “se” (ou seja, aqu eles
qu e têm o pod er de im por pr ogr am as) con sidera qu e essas m atérias
são n ecessár ias seja par a o b em d o estu dan te, seja par a o bem da
sociedade; trata-se sem p re d o “b em ” d o m od o com o os organ iza­
d or es d as for m ações o r epresen tam , de acor d o com seu s pr ojetos
e in teresses p r óp r ios.
Em certos p aíses, o legislador p en sou qu e u m u n iversitário
d ip lom ad o n ão pod e ser pu r a e sim plesm en t e iden tificado com o
u m pu r o técn ico. Con sid er ou qu e os u n iversitários, já qu e a
socied ad e lh es dará un i certo poder, devem t am bém ser capazes de
exam in ar com certo rigor qu est ões qu e n ão sejam con cern en tes à
su a técn ica específica. Trata-se de u m a escolh a política e ética, n o
26 GÉRARD FOUREZ

sen t id o de qu e aqu eles qu e a fizeram ju lgaram qu e seria ir r espon ­


sável for m ar “cien tistas” sem lh es d ar u m a certa for m ação n esse
d o m ín io h u m an o (isto n os rem ete ao fato de qu e a u n iversidade
n ão form a “m at em át icos”, “fisicos”, “q u ím icos” etc., de m an eira
abstrata, m as seres h u m an os qu e cu m prirão u m certo n ú m er o de
fu n ções sociais, as q u ais o s levarão a assu m ir r espon sabilid ad es).
Se m dú vida, t am b ém , além d o in teresse par a a sociedade em
ter cien tistas capazes de refletir, algu n s políticos d a u n iver sid ade
con sid er ar am qu e n ão seria “ético” su b m et er p e ssoas joven s ao
con d icion am en t o qu e é u m a for m ação cien tífica sem lh es d ar u m a
espécie de an tíd oto pelo viés d as ciên cias h u m an as (dizer qu e
con sid er am o s qu e algo h ão é “ético” eqüivale a dizer qu e n ão
gost ar íam os de u m m u n d o on d e essa coisa acon tecesse).
A p r op ósit o d essas decisões políticas, assin alem os u m fato
em pírico. P esqu isas m ostr ar am (H olton , 1978) qu e, em n ossa
sociedade, h á m ais est u d an t es qu e se preten dem “ap olít icos”, ou
n ão in ter essad os pelas qu est ões qu e fu jam ao cam p o de su as
técn icas en tre aqu eles qu e se d est in am às ciên cias, d o qu e en tre
aqu eles qu e escolh em ou t r as áreas. O s qu e escolh em a ciên cia
prefeririam ser m en os im plicados n as qu est ões relativas à socieda­
de. Pode-se pergu n tar p or qu ê ? Talvez p or qu e facilm en te pod em os
im agin ar os cien tistas em u m a espécie de torre de m arfim !
D e qu alq u er m od o, a “política” desta obr a é con st it u ir u m
con t r ap eso a essa ten dên cia, p r op on d o u m a ab or d agem filosófica.
N asceu ju n t o a u m a decisão de política u n iversitária in ser in d o n o
pr ogr am a u m cu r so de filosofia e ou t r os cu r sos de form ação
h u m an a. Esta prática de “con t r ap eso” existe tam bém , aliás, n o
in terior d as pr óp rias d isciplin as cien tíficas. D esse m od o, recusar-
se-á a for m ar u m físico teórico sem lh e d ar ao m en os algu n s
exercícios de laboratório; é igu alm en te u m a decisão de política
u n iversitária. A s decisões n o cam p o da política u n iversitária qu e
elab or am os pr ogr am as são sem pre u m agregado de com p r om issos
t en tan do r espon d er ao qu e diferen tes gr u pos, m u itas vezes op ost os
p or su as con cepções e / o u in teresses, con sid er am “b o m ” para
aqu eles qu e segu em a for m ação e / o u par a a socied ad e... e t am bém
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 27

- ain d a qu e isto seja m u itas vezes d issim u lad o - par a os seu s


pr óp r ios in teresses.

Filosofia e indiferença

E realm en te possível algu ém jam ais colocar-se u m a qu est ão de


or d em filosófica? Pode-se dizer: “Q u an t o a m im , a filosofia n ão m e
in teressa?”
Para ab or d ar essa qu est ão (o qu e n ão sign ifica r esp on d er a ela,
pois, com relação a m u it as qu est ões, p od em os abordá-las, esclare­
cê-las, m as n ão faz sen t id o lh es d ar um a r esposta), d istin gam os
ain d a d o is t ipos de in teresses. O prim eiro liga-se à globalidade d a
h istória h u m an a: diz r espeito ao sen t id o d essa h istória. O segu n d o
tipo, qu e d en om in ar ei de setorializado, con cern e a u m a variedade
de coisas pelas q u ais p od em o s ser atraídos. A ssim , p od em os n os
in teressar pelo cultivo d o s ch am pign on s, pela m ú sica, p or u m a
b oa refeição, pelos cost u m es d as tribos zulus etc. São assu n t os pelos
q u ais o su jeito decide se vai se in teressar ou n ão. P od em os en tão
fazer u m a r epr esen tação da vida com o u m a m u ltiplicidade de
cen tros de in teresse den tre os qu ais é n ecessár io escolh er.
N a m ed id a em qu e con sid er am os os in teresses pelo sen t id o da
vida, a religião ou a filosofia com o in teresses setorializados, colo­
cam o-n os a segu in te qu est ão: “Ser á qu e'eu t en h o von t ad e de m e
in teressar pela filosofia, ou pekttreHgiÜo, ou pelo sen t ido da vida
etc.?”. C o n t u d o , p o d em o s n os'p er gu n t ar t am bém se é ad equ ad o
classificar-um 1in teresse global relativo ao sen t ido da existên cia en tre
os in teresses setorializados. In teressar-se pela ju st iça n a sociedade
n ão sign ifica exatam en te a m esm a coisa d o qu e se in teressar pelo
cultivo d o ch am p ign on . N o prim eiro caso, com efeito, o in teresse
é de fato ligado ao próprio m u n do em que vivem os, ao passo que n o
segu n do trata-se de u m a questão m ais evidentemente setorializada.
A lgu n s setorializam t od os os in teresses: é aliás a t en dên cia de
n o ssa socied ad e de con su m o e de m ercado. N o lim ite, tu do deve
en tão ser con sid er ad o com o m ercadoria, qu e se apr esen t ar á even ­
28 GÉRARD FOUREZ

tu alm en te em pú blico. Se algu ém se in teressa pela religião lh e será


oferecido u m cu r so de religião. Porém , se a m esm a p essoa estiver
in ter essad a pelo cultivo de ch am p ign on s, será isto qu e lh e oferece­
rão. U m a con cepção com o essa, n a verdade, decid e o sen t id o d a
existên cia, pois eqüivale a declarar qu e n ão existe h ist ór ia h u m an a,
e t am p ou co sign ificação u m pou co global: só h averia in teresses
setorializados. E u m a r esposta qu e n ão con fere sen t ido à existên cia,
t om ad a em su a glob alid ad e: o sen t id o proviria u n icam en te de
m ú lt iplos pr ojetos cuja totalidade n ão sign ificaria n ada.
Para ou tros, existem qu est ões globais, m ais im portan tes d o qu e
os in teresses setorializados. Sem qu er er n ecessar iam en t e im pô-los
aos ou t r os, é para eles u m a escolh a existen cial recon h ecê-los.
Con sid er ar que só h á in teresses setorializados é decidir perm an e­
cer para sem pre n o dom ín io da linguagem restrita. Pelo contrário,
aceitar a questão global da existência é abrir-se a um a pesqu isa e a um
debate em u m a lin gu agem elabor ada, in ician d o u m a bu sca de
sen tido. E essa segun da escolh a que está n a base deste en saio. Q u e
o s leitores qu e tiverem feito a escolh a de n ão ter n a existên cia sen ão
in teresses setorializados tom em con sciên cia de que lh es é pedido agora
qu e com p r een d am a m an eira pela qu al algu m as p essoas ab or d am
as qu est ões da existên cia de m od o diferen te delas.
Esta p esqu isa filosófica tem sign ificação apen as par a aqu eles a
qu em a h istória e as decisões h u m an as colocam u m a qu est ão. Sem
qu er er im p or esta qu est ão a t od os (isto seria u m a dom in ação), a
política u n iversitária su bjacen te aos cu r sos de filosofia im põe isto
a t od os os estu dan tes qu e a con sid erem .

As questões particulares visadas neste ensaio

Procurar-se-á aqu i com pr een d er (isto é, arriscar-se a u m a lin ­


gu agem elabor ada sobre) a lógica n o seu sen t ido m ais am plo.
D en t r o desta perspectiva, o term o “lógica” recobre o est u d o da
m an eir a pela qu al os saber es h u m an os se estr u tu r am ; im plica
p esqu isar em qu e con dições eles p od em ser con sid er ad os com o
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 29

válidos. Esse d o m ín io cor r espon d e ao qu e se ch am ou p or vezes


tam bém com o filosofia d a ciên cia (a parte da filosofia d a ciên cia j
qu e con sid era a m an eir a pela qu al os sab er es se organ izam
ch am a-se epistem ologia, em grego, “a ciên cia d o sab er ”).
Q u an t o à ética, é a parte da filosofia qu e reflete sobr e as
escolh as qu e têm u m a im por tân cia n a vida d o h om em , particular­
m en te dian te d o fato em pír ico de qu e, em t od as as sociedades,
existem cód igos m or ais, ou n oções sem elh an tes.
A b or d ar essas qu est ões de m an eir a tão am pla será difícil. E
por isso qu e n ós as ab or d ar em os aqu i sob u m viés particular. N ó s
n os per gu n t ar em os em que m edida a ciên cia p od e con tr ibu ir par a
a felicidade d os seres h u m an os e ajudá-los a resolver in telectual e
praticam en te os seu s pr ob lem as de vida. Esta ob r a visar á port an to
a relação en tre a ciên cia e a ética, e en tre a ciên cia e o sociopolítico.
O u , par a “particularizar” ain d a m ais a qu est ão, n ós n os per gu n t a­
rem os em qu e m edida a ciên cia pod e n os aju d ar a resolver certos
pr ob lem as éticos e / o u sociopolít icos particu lares, com o a qu est ão
d o ab or t o, d a bioética, da corrida arm am en tista etc.
A bu sca de u m a solu ção a essas qu estões levar-nos-á em especial (
a pr ecisar d u as qu est ões im por tan tes n a tradição filosófica. A
prim eira diz respeitosas escolh as éticas. Ten t ar em os com pr een d er
m elh or o qu e qu er em dizer aqu eles qu e preten dem qu e u m a ação
seja m oralm ente boa., A segu n d a qu est ão con cern e - e isto será
im portan te para apr een d er a articulação en tre a m oral e a ciên cia
- ao qu e n ós en ten d em os por “verdade cien tífica” . Em ou t r os
term os, será p r eciso com preender m elhor o que se entende por
objetividade científica, e apreender m elhor o alcan ce, o v alore os limites
dos conhecim entos científicos.

A ciência e os códigos éticos

A prim eira vista, certos códigos éticos pod em estar ligados a


q u est ões cien tíficas. A ssim , pode-se con sid er ar qu e a qu est ão de
sab er se u m pacien te deve ou n ão ser op er ad o p ossu i u m a
30 GÉRARD FOUREZ

d im en são m oral. E a m aioria aceitaria de b om gr ad o qu e é legítim o


in trodu zir, dian te d essa qu est ão, con h ecim en t os cien tíficos em
m ed icin a (a qu est ão se colocaria de m od o diferen te se o pacien te
tem , estatisticam en te, p ou cas ch an ces de sobreviver, ou se, pelo
con tr ár io, a op er ação oferece m u it as ch an ces de pr olon gar a su a
vida). D et er m in ad as qu est ões cien tíficas, portan to, p od em in fluen ­
ciar os ju lgam en t os éticos. O m esm o pod e ocorr er em q u est ões
com o o aborto. D esse m od o, algu m as p essoas se volt ar ão par a os
b iólogos e m éd icos con sid er an d o qu e estes são capazes de dizer se,
sim ou n ão, h á cir cu n stân cias em qu e o abor t o seria aceitável.
O u t r os, pelo con trário, con sid er ar ão in ap r op r iad a essa con su l­
ta a esp ecialistas cien tíficos an te qu est ões éticas. O u t r os ain d a
estarão de acor d o em dirigir-se a esses esp ecialistas, m as con sid e­
rarão qu e é preciso mais*, pr opor iam , por exem plo, qu e aos m édicos
ou aos b iólogos se ju n t em t am bém p sicólogos ou sociólogos.
O u t r os, en fim , afirm arão qu e existe realm en te heterogeneidade entre
a decisão ética e os resultados científicos.
Sem elh an t es q u est ões p od em su rgir t am bém n o d om ín io d a
Ecologia. Aliás, o p r óp r io ter m o “ecologia” é am b ígu o. Por um
lado, parece represen tar u m a m oral relativa ao m eio am bien te. Por
ou tro, é t am bém u m a d isciplin a cien tífica qu e faz parte d a Biologia.
N a m esm a perspectiva, pode-se per gu n tar tam bém se os geó­
gr afos (ou os econ om istas, ou ...) p ossu em r esu lt ad os cien tíficos
gr aças aos q u ais pod er iam deter m in ar o qu e é m oral ou n ão em
m atéria de desen volvim en to.
O u ain d a: “T êm os b iólogos ou os p sicólogos algo a dizer a
p r op ósit o d a m oral sexu al?” O u : “H averia cien tistas qu e pod er iam
dizer se o h o m ossexu alism o é ‘n or m al’?”
Eis u m a série de qu est ões q u e esta ob r a gost ar ia de aju d ar a
abor dar.

O que é a normalidade?

N o par ágrafo preceden te apareceu a palavra “ n or m al” . E u m a


palavra-ch ave, m as m u ito am bígu a. Se, p or exem plo, d igo qu e n ão
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 31

r n or m al qu e os seres h u m an os façam con stan tem en te a guerra,


qu al o sign ificado d essa palavra, “n or m al”? O u ain da, se digo qu e
(> h om ossexu alism o n ão é n or m al, o qu e isto sign ifica? Existe u m a
m ultiplicidade, de sen t id os ligados a esta palavra. P roporei pelo
m en os qu at ro qu e m e parecem úteis de serem d ist in gu id os. Para
torn ar isto m ais claro, situarei esses sen t idos em u m cen ário - u m a
h istória - qu e in dicará a m an eir a pela qu al o term o é com p r een d i­
d o n ela.

Prim eiro cenário. U m objeto está em vias de subir, en qu an t o


“n or m alm en t e” ele deveria cair. Se m e d ou con ta de qu e se trata
de u m b alão ch eio de gás h élio, digo: “Ali, é n or m al!” Aqu i, a
palavra “n or m al” sign ifica qu e con segu im os introduzir um fenôm e­
no no âm bito de n ossa com preensão do m undo. N esse sen tido, poder ia
dizer qu e “u m cach or r o ter cin co patas é n or m al”. Dizê-lo sign ifica
sim p lesm en t e qu e eu m e dou con ta de qu e isso pod e acon tecer.

N est e sen tido, t u do é, em pr in cípio, n or m al. C o m efeito,


metodologicam ente, qu er em os rein tegrar tu do o qu e vem os em u m a
certa com p r een são. E n ão cessar em os de fazê-lo an tes de ter
com p r een d id o os fen ôm en os qu e estão dian te de n ós, isto é, an tes
de ter d it o qu e eles eram n or m ais. Se, em u m caso particular, u m
fen ôm en o fosse “an or m al”, de acor do com esta prim eira sign ifica­
ção, sim plesm en t e n ós ain d a n ão t eríam os com p r een d id o; m as
esp er arem os m ais cedo ou m ais tarde com preen dê-lo. N esse sentido,
para os cientistas, todos os fenôm enos são “n orm ais”, pelo mero fato de
que existem.

Segundo cen ário: “U m cach orro ter cin co patas, isto n ão é n or ­


m al”. Q uer-se in dicar p or isto, em geral, qu e, de acor d o com certos
critérios estatísticos, u m cach orro de cin co pat as n ão está den t ro
d as “n o r m as”. D o m esm o m od o, n esse sen tido, pode-se dizer qu e
o h o m ossexu alism o n ão é n orm al, se en t en d em os p or isto qu e
som en t e u m a m in or ia d a popu lação é h om ófila. Esse segu n d o
sen t id o d a n oção de n or m alid ad e refere-se pura e sim plesm ente a
estatísticas.
32 GÉRARD FOUREZ

En tretan to, o estabelecim en to de estatísticas d ep en d e sem pre


de pressupostos teóricos. Por exem plo, para dizer qu e, d o pon t o de
vista estatístico, h á u m n ú m er o X de cach or r os com cin co patas,
n ecessito de u m a teoria pela qu al determ in arei qu e d et er m in ado
an im al é de fato u m cach orro. Pode ser qu e, em n om e de u m a
teoria, decida-se qu e u m an im al de cin co pat as n ão é u m cach orro.
N est e caso, n ão h averá eviden tem en te cão de cin co pat as. Q u an d o
se utiliza a estatística, tom am -se assim decisões em relação aos
critérios e categorias utilizados.

Além d isso, ser ão n ecessár ias ain d a decisões par a deter m in ar


o qu e se en ten de p or u m fen ôm en o “estatisticam en te an or m al”;
de u m a m an eir a ou de ou tra, h averá u m a teoria dizen do aqu ilo
qu e se espera. A m en os qu e se oculte a decisão t om ad a ao dizer
q u e tu do qu e u lt r ap assar u m a certa porcen tagem é “an or m al”, é
pr eciso con sid er ar qu e é por u m a escolh a de critérios qu e se decide
qu e algo é an or m al. A ssim , de acor do com certos critérios estatís­
ticos, poder-se-á dizer qu e a fecu n dação é u m fen ôm en o an or m al,
u m a vez qu e h á u m a ín fim a m in or ia de esper m atozóides qu e
seivem à fecu n dação. Além d isso, certos fen ôm en os qu e só apar e­
cem em u m p o r ce n t o d os casos pod em ser con sid er ad os n or m ais.
Esses exem p los m ostr am qu e a estatística n ão en sin a, em m atéria
de n orm alid ade, n ada m ais d o qu e aqu ilo qu e foi n ecessário colocar
com o p r essu p ost os n ecessár ios para con struí-la (em u m âm bito
teórico ad m itid o, porém , ela pod e ser m u ito útil, p or exem plo,
q u an d o se diz, em u m pr ocesso de pr od u ção, qu e é pr eciso rejeitar
as peças “an or m ais”).

Terceiro cenário. “O h om ossexu alism o n ão é n or m al”. Isto


p od e sign ificar sim plesm en t e qu e, n esta sociedade, h á u m a espécie
de co n sen so par a dizer qu e n os en con t r am os dian te de u m
fen ôm en o qu e n ão cor r espon d e ao qu e esp er am os. N est e sen tido,
ch am am o s de an or m al ao qu e é contrário à expectativa social. E
in teressan te dar-se con ta de qu e esse sen t id o é provavelm en te o
qu e está p r ofu n d am en t e fixado em n o ssas m en talidades. Q u an d o
dizem os qu e algu m a coisa é an or m al, isto sign ifica qu e, n a socie-
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 33

ilade em qu e n os en con t r am os, isto é con tr ár io à expectativa


com u m .
D esse m od o, pode-se dizer qu e t od as as cren ças éticas em u m a
d ad a socied ad e perm item u m a classificação d o s fen ôm en os em
n or m ais e an or m ais. Se, por exem plo, n essa sociedade, n ão se
adm ite qu e u m m ar id o bata em su a esp o sa (ou qu e u m a m u lh er
bata em seu m arido), dir-se-á qu e “bater n o seu côn ju ge é an or m al”.
N est e sen tido, a palavra “n or m al” se refere a u m a n or m alid ad e
socialm en te ad m itid a (obser vem os qu e essa n or m a n ão é n ecessa­
riam en te ética, m as pod e ser sim plesm en t e cultural: in dica u m a
expectativa).

Q u arto cenário. Diz-se por vezes qu e deter m in ada coisa n ão é


n orm al q u an d o ela é con trária ao qu e “deve” ser. Por exem plo,
p o sso dizer: “A cor r id a ar m am en tista n ão é n or m al”. N esse
sen tido, n ão recorro a u m a m era cren ça social, m as coloco^um ju ízo
de valor. Segu n d o esta com p r een são ética e n orm ativa d a palavra
“n or m al”, fala-se d aq u ilo qu e eu (ou n ós) con sid er o an or m al. E
possível qu e eu con sidere esta coisa an or m al referin do-m e sim ples­
m en te à m an eira pela q u al coloco os valores, ou p or qu e pr et en do
referir-me a n or m as ab solu t as, ou a n or m as éticas socialm en te
adm itid as.
C o m freqü ên cia, essas qu at ro sign ificações d a palavra “n or ­
m al” são con fu n d id as. E p od em se ju st ap or . N ão é raro t am bém
qu e algu ém tom e a prim eira sign ificação (é n or m al porqu e eu
com pr een d i) pela ú ltim a (é algo qu e adm ito). A ssim , p o sso m u ito
b em com p r een d er qu e det er m in ada p essoa bata em seu côn ju ge e
dizer qu e “d ep ois de t u do qu e ele ou ela o fez sofrer, ach o su a
reação n or m al”, sem decid ir se, n o qu ar to sen tido, p ar a m im , é
n orm al: isto é, m or alm en te aceitável. D o m esm o m od o, h á m u itas
vezes u m a con fu são en tre o sen t ido estatístico de u m a n or m a e o
seu sen t id o m oral. P osso dizer assim qu e o fen ôm en o d a h o m o s­
sexu alid ad e é an or m al (ou n or m al) de acor d o com o s m eu s valor es
éticos. E, em u m ou t r o sen tido, algu n s p od em con sid er ar qu e o
h o m ossexu alism o é ad m issível eticam en te (m oralm en te n or m al) e
34 GÉRARD FOURF.Z

ao m esm o tem po con siderar , talvez segu n d o ou t r os critérios esta­


tísticos, qu e é estatisticam en te an or m al. D o m esm o m od o, ain da,
pode-se con sid er ar qu e deter m in ada coisa é, em u m âm bit o teórico
b em preciso, estatisticam en te rara, m esm o levan do em con ta qu e,
segu n d o a expectativa social, ela é n or m al.
Em su m a, a utilização d a palavra “n or m al” é am bígu a por qu e
p od e d issim u lar posições b em diferen tes. T o m e m o s u m ú ltim o
exem plo: “A pr ostit u ição é, em u m a sociedade, n or m al?” D e
acor d o com o pr im eir o cen ário, pode-se com pr een d er o fen ôm en o
e dizer qu e ele é n or m al. D e acor d o com o segu n d o, com o em
q u ase t od as as socied ad es h á u m a for m a ou ou t r a de prostitu ição,
pode-se dizer qu e é estatisticam en te n or m al (m as só se em ite essa
op in ião, em geral, com base em critérios n o m ín im o pou co claros).
Em m u itas sociedades, ela n ão é con sid er ad a com o n or m al de
acor d o com o terceiro cen ário. En fim , h á u m certo debate ético
p ar a sab er se, em u m a d ad a sociedade, deve-se con sid er ar com o
n or m al legalizar a prostitu ição.

D e acor d o com as sign ificações, a ciên cia tem coisas diferen tes
a dizer em relação ao qu e é n or m al. C on for m e o pr im eir o sen tido,
a ciên cia n ão tem n ada a dizer porqu e, p or p r essu p ost o, par a a
ciên cia, tu do o qu e acon tece deve ser explicado, ou seja, tu do é
n or m al. N o sen t id o estatístico, a ciên cia pod e ter bast an t e a dizer,
m as sob con dição de ter pr ecisad o bem - de u m a m an eir a qu e n ão
será jam ais in teiram en te cien tífica - os critérios sobr e os qu ais se
b asear á a estatística. Q u an t o à n or m alid ade com o cren ça social, a
sociologia pod e con statá-la, m as percebe-se qu e, sobr e p on t os
particu lares, ela n ão tem n ad a a ver com r esu lt ados cien tíficos.

Fin alm en te, e esta será u m a qu estão ab or d ad a n esta obra: “Pode


a ciência dizer algo a respeito do que ‘deveria’ ser?". Em ou tr os term os,
pode a ciên cia servir de fun dam en to à ética? Pode ela det er m in ar o
q u e é o bem ou o m al? (Con cr etam en te, u m m éd ico pod er ia dizer,
por exem plo, qu e com por t am en t os são b on s ou m au s em m atéria
de ética sexual? O u em m atéria de aborto? Pode u m geógrafo dizer
algo sob r e o qu e é ju st o em m atéria de u r b an im so? etc.).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 35

An t es de p od er ab or d ar essas qu est ões, p r ecisam os fazer u m


pouco d e “filosofia d a ciên cia”, isto é, in terrogarm o-n os sobr e o
alcan ce d o saber cien tífico. Em ou t r as palavras, é preciso ter em
m en te qu est ões como*. “O qu e é a verdade cien tífica?”, ou “O qu e
qu er dizer fazer ciên cia?”, ou ain d a “Em qu e sen t id o se pod e dizer
qu e a ciên cia é objetiva?”. Este será o ob jet o d os capít u los qu e
seguem .

Resumo

1 Defin ição de filosofia:


In st r u m en t os: o cód igo “ restr ito” (prático) e o cód igo “e lab o r ad o ”
In ter esse:
• u lt r ap assar u m a v isão u n id im en sion al d a vida;
• sab er refletir de m an eir a rigorosa sob r e o s d o m ín io s n ão-técn icos.

Lim ites: u m ú n ico en fo q u e n ão sign ifica u m en fo q u e n eu tr o e ob jet ivo


Ju stificação:
• u m a escolh a política e ética d a u n iver sidade;
• u m in st r u m en t o p ar a ab o r d ar as r e sp on sab ilid ad e s sociais.

A im agem d o ap ar t am en t o, d o p o r ão e d o sótão.

2 Interesses setorializ ados e interesse pelo “sen t id o” glob al

Escolh a en tre b u sca d e u m sen t id o ou o non-sens d o s in t er esses


setor ializados.

3 Filosofia d a ciên cia; epistem ologia; ética.

4 Exem plos de questões em que ciên cia e ética são solicitadas:


• d ecisão d e u m a op er ação cirú rgica, d e u m ab or to;
• d esen volvim en to;
• p r oteção d o m eio-am bien te;
• r eações em relação ao h om osse xu alism o;

O p ap el d o s esp ecialist as cien t íficos n esses d om ín io s.


36 GÉRARD FOUREZ

5 O problema da normalidade:
• sen tido científico e trivial;
• sen tido estatístico;
• sen tido fornecido pelo con sen so social;
• sen tido dependente de um juízo de valor.

Palavras-chave

Código restrito/código elaborado/idéias adquiridas/rigor/aproxim a-


ção/epistem ologia/in teresses setorializados/in terpretativos/críticos/
emanei patórios.
C A P Í T U LO 2

REFLEXÕES EPISTEMOLÓGICAS
O MÉTODO CIENTÍFICO: A OBSERVAÇÃO

Um método dialético

N as p ágin as qu e segu em , em pr egar em os u m método critico


ialético. D e acor d o com esse m étodo, parte-se d a m an eir a pela
|ual, esp on tan eam en t e, as p essoas se^ r epr esen t am algo. N a se-
[üên cia d esse p r ocesso, propõe-se u m a n ova m an eir a de ver. Este
n étodo é ch am ad o de dialético, p ois reproduz u m esq u em a m u ito
lifu n d ido d esd e H egel: prim eiro, se afirm a u m a tese, isto é, a
n an eira pela qu al a r ealidade se apr esen ta. D ep ois, apresen ta-se
ima an títese, ou seja, a n egação d a tese, n egação qu e é pr ovocada
>ela apar ição de ou t r os p on t os de vista, su r gid os com b ase n o
xam e crítico qu e se fez. En fim , apresen ta-se u m a sín tese, qu e é
ima n ova m an eir a de ver, resu ltan te d o p r ocesso crítico.
A sín tese n ão é porém u m a visão ab solu ta d as coisas: é
im plesm en te u m a n ova m an eir a de ver, r esu ltado d a in vestigação
ealizada. Tor n a-se além d isso u m a n ova tese qu e, p or su a vez,
>oderá ser con fr on t ada a u m a an títese, a fim de produ zir u m a n ova
ín tese q u e se t or n ar á u m a n ova tese, e assim p or dian te. Se m e­
38 GÉRARD FOUREZ

lh an te m ét od o n ão ten de a produ zir u m a verd ade últim a e sim ,


u m a verd ade “crítica”, ou seja, u m a n ova r epresen tação qu e se
esp er a n ão seja tão “in gên u a” qu an t o a preceden te.
A fim de ilustrar esse m étodo, su p o n h am os qu e olh em os para
u m a flor artificial. Em u m prim eiro olh ar, p od em os tomá-la
p or u m a flor n atural: pod er íam os dizer qu e se trata da “tese”.
D ep ois, t en d o efetuado exam es m ais pr ecisos, p od em os dizer:
“N ão é u m a flor”. Fin alm en te, isto pode con du zir a u m a n ova
m an eir a de ver: “E u m a flor artificial feita de sed a” . O pr ocesso
p od e con tin u ar , e essa n ova “t ese” pod e ser n egad a, pr od u zir u m a
“an títese” e d ep ois u m a n ova sín tese. O refin am en to crítico ocor­
rerá cada vez que a n ova “tese” n ão satisfizer m ais a n osso s projetos.

Um a “tese”: a representação de Claude Bernard

N est e capítulo, pr ocu r ar em os exam in ar o m ét od o crítico ba­


sean d o-n os em u m a represen tação relativam en te corren te em n o s­
so sécu lo (SN E C , 1979), r epresen tação tom ad a de em pr éstim o,
com m u itas sim plificações, a Clau d e Bern ar d. Este ú ltim o, m édico
d o sécu lo XIX, escreveu u m im portan te livro in titu lado Introdução
ao estudo d a m edicina experim ental [Introduction à Vêtude de la
m édecine expérim entale, 1865, 1934]. Descreve n essa obr a, com
m u ita sutileza e n u an ça - b em m ais do qu e n a m aioria d o s m an u ais
d e ciên cias atuais, qu e con t u d o se servem de seu esqu em a - , o
m ét od o cien tífico.
Por alto, u m a descr ição clássica d o m ét od o cien tífico fu n cion a
com o se segue: “A s ciên cias partem d a observação fiel d a realidade.
N a seqü ên cia d essa observação, tiram-se leis. Est as são en tão
su b m et id as a verificações exper im en tais e, d esse m od o, post as à
prova. Est as leis t estadas são en fim in ser id as em teorias qu e
descrevem a r ealid ad e.”
E esse m od elo qu e irem os exam in ar agora p or m eio d o m étodo
dialético, m ost r an d o de qu e m od o se pod e t om ar u m a certa
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 39

d istân cia cm relação à visão esp on t ân ea qu e se pod e ter d a


observação, d as leis, d as provas, d os pr ocessos de verificação etc.,
sem p re de m an eira a obter u m a visão m ais critica.

A observação científica

D e acor d o com a visão esp on tân ea qu e a m aioria tem d a


observação* esta diz r espeito às “coisas tais com o são ”. E sob este
p r essu p o st o qu e se diz com freqü ên cia qu e a observação deve ser
fiel à realidade, e qu e, ao descrever u m a observação, só se relata
aqu ilo-qu e existe. A observação seria u m a m era aten ção passiva,
u m puro estudo receptivo.

Observar é estruturar um modelo teórico

E, n o en tan to, se digo qu e h á u m a folh a de papel sobr e a


escr ivan in h a, só p o sso dizê-lo sob con d ição de já ter u m a idéia d o
qu e seja u m a folh a de papel. D o m esm o m od o, se digo qu e a m in h a
can eta cai n o m om en t o em qu e a solto, isto só é possível se já
p o ssu o u m a certa idéia “teórica” d aqu ilo qu e está em cim a e d o
qu e está em baixo. Se, além d isso, observo o d esen h o qu e está sobre
40 GÉRARD FOUREZ

a págin a, verei, d e acor d o com a m an eira com o m e organ izo, seja


u m coelh o, seja u m pato; u m a escad a vista de cim a ou de baixo.
Estes exem plos m ostr am qu e a observação n ão é puram ente
passiv a: trata-se an tes de u m a certa organ ização da visão. Se observo
o qu e está em cim a de m in h a escr ivan in h a é u m a m an eira, par a
m im , de colocar u m a or d em n aqu ilo qu e observo. Só verei as coisas
n a m ed id a em qu e elas cor r espon d er em a d et er m in ad o in teresse.
Q u ase de m an eir a au tom ática, elim in arei de m eu cam p o de visão
o s elem en t os “qu e n ão fazem parte d aqu ilo qu e ob ser vo” (por
exem plo, se exam in o o qu e está em u m qu adro-n egro em u m a sala,
elim in arei o qu e foi m al ap agad o n a au la preceden te; cf. Fourez,
1974, p. 19-42).
Q u an d o ob servo “algu m a coisa” , é pr eciso sem pre qu e eu “a”
descreva. Para tan to, utilizo u m a série de noções qu e eu possu ía
an tes; estas se referem sem p re a u m a represen tação teórica, geral-
> m en te im plícita. Sem essas n oções qu e m e perm item organ izar a
m in h a observação, n ão sei o qu e dizer. E, n a m ed id a em qu e m e
faltaria u m con ceito teórico ad equ ad o, sou ob r igad o a apelar a
ou t r os con ceitos básicos: p or exem plo, se qu er o descrever a folh a
q u e está sobr e a m in h a escr ivan in h a e n ão t en h o n oção do qu e
seja folh a, farei u m a descrição falan do d essa coisa b r an ca qu e está
sobr e a m in h a escrivan in h a, sobr e a qu al parece qu e existem lin h as
ap r esen t an d o u m a certa regularidade e tam bém certa irregularidade
etc. (Teria qu e se refletir aqu i sobr e a p ossib ilid ad e psicológica para
o s h u m an os de “sim b olizar ”, isto é, falar de “tal coisa”, de “tal
o b jet o”, e de con siderá-lo com o u m objeto, com o u m a coisa, isto
é, separá-lo d o fluxo de n ossas ações reflexas par a fazer dele u m
ob jet o de n o ssa lin guagem , de n osso p en sam en t o e de n ossa
com u n icação.).
Em su m a, par a observar , é preciso sem pre r elacion ar aqu ilo
qu e se vê com n oções qu e já se p ossu ía an teriorm en te. U m a
ob ser vação é u m a interpretação: é in tegrar u m a certa visão n a
r epr esen tação teórica q u e fazem os d a realidade. O qu e a filosofia
afirm a em particular d esd e Kan t, a psicologia r een con tr ou especial­
m en te n a psicologia cognitiva. Essa ab or d agem d as ciên cias p sicoló­
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 41

gicas in siste pr ecisam en te sobr e o caráter con st r u íd o de n o sso s


con h ecim en t os. C o m o n otava Arn k off: “A s teorias con stru tivistas
d as cogn ições con trapõem -se àqu eles qu e con sid er am qu e o con h e­
cim en to d o m u n d o extern o vem diretam en te, d e m an eira im ediata.
O p on t o d e vista é con stru tivo n a m edida em qu e a sign ificação de
u m acon tecim en to ou a con figu ração d as en tr ad as d o s d ad os é
con st r u íd a pela in d ivíd u o.” (Arn koff, 1980)
A parte teórica d as observações foi est u d ad a t am bém pelos
filósofos e sociólogos da ciên cia (ver Grady, 1973, citado por Pin ch ,
1985). A ssim , H an so n (1958) n ot a qu e, q u an d o Galileu fala de
su a ob servação de “crateras” n a lua, este term o n ão é pu r am en te
“em pír ico”, m as ach a-se ligado a u m a in terpretação teórica. Ach in s-
tein (1968, p .181 ss.) con clu i a su a an álise sobr e a possib ilid ad e
de sep ar ar o s ter m os observacion ais d os ter m os teóricos escreven ­
do: “O qu e foi m ost r ad o n ão foi qu e divisões sejam im possíveis,
m as qu e, de acor d o com os critérios u tilizados, m u itas distin ções
p od em su rgir... u m t erm o classificado com o observacion al (ou
teórico) segu n d o u m critério será n ão-observacion al (ou in d ep en ­
den te da teoria) segu n d o u m ou t r o”. Além d isso, n ota Pin ch (1985)
qu e as relações de observação podem m u d ar de sign ificações de
acor d o com o con texto teórico n o qu al o s sit u am os. O con ju n t o
d as teorias utilizadas para produzir u m a relação de observação pod e
ser m ais ou m en os im portan te, ou m ais ou m en os discutível. T od as
as p r op osições em pír icas d ep en d em de u m a rede de h ipót eses
in terpretativas d a experiên cia. Porém , elas n ão se referem às
exper iên cias d o m esm o m od o: n ão se “ob ser va” d o m esm o m od o
u m n eu trin o, u m m icr óbio, u m a cratera sobr e a Lu a, u m a n ota de
m ú sica, u m gost o de açúcar ou u m pôr-do-sol.
O qu e con fere u m a im p r essão de im ediatez à ob ser vação é qu e
n ão se colocam de m an eir a algu m a em qu est ão as teorias qu e
servem de b ase à in terpretação; .a observação é u m a certa interpre­
tação teórica n ão con testada (pelo m en os de m om en t o). A o p asso
qu e, se, ob ser van d o u m a flor sobr e a m in h a escr ivan in h a, coloco
em q u est ão o m eu con ceito de “flor ”, n ão terei m ais o sen t im en t o
de observar , m as de teorizar. U m a observação seria port an to u m a
42 GÉRARD FOUREZ

m an eira de olh ar o m u n d o in tegran do-o à visão teórica m ais an tiga


e aceita. E essa ausên cia de elemento teórico novo qu e dá o efeito
ucon ven cion al" ou “cu lt u r al” d a observação direta de u m objeto.
Pode-se ob servar a can eta qu e está sobr e u m a escr ivan in h a se - e
som en t e se - possu i-se o con ceito de “can eta” . C a so coloqu em os
em dú vida a ad equ ação d esse esq u em a de in terpretação, con du zi­
r em os a observação a u m ou t r o d iscu r so (sem pre teórico), falan do,
p or exem plo, d esse objet o r ed on d o com pr id o e b r an co qu e está
sobr e a escr ivan in h a. Em segu ida, se p ost u lar á com o tese teórica
qu e isto poderia ser con sid er ad o com o u m a can eta. Para dize-lo
ain d a d e ou tro m od o, ob ser var é forn ecer-se u m modelo teórico
d aq u ilo qu e se vê, utilizan do as r epresen tações teóricas de qu e se
d isp u n h a (H u sser l, em Merleau-Pon ty, 1945).

O que é um “fato”?

N ão se observa, portan to, passivam en te, m as se estrutura


aq u ilo qu e se qu er observar u tilizan do as n oções qu e parecem úteis
visan d o a u m a observação adequada, isto é, qu e r esp on d a ao projeto
qu e se p ossu i. E é en tão qu e dizem os observar “fat os” (de m an eira
u m tan to pedan te, a etim ologia da palavra “fato” rem ete a seu
caráter con stru to, m esm o se n ão for devido a isto q u e d en o m in a­
m os fato a u m “fato”). Se, por exem plo, digo qu e “o Sol gira ao
r ed or d a Ter r a é u m fato” , in dico sim plesm en t e qu al é a m in h a
in terpretação teórica, aqu ela q u e m e perm ite com pr een d er (e
p or t an to utilizar) o m u n d o. D igo qu e é u m “fato” se con sid er o qu e
é algo in discu tível, qu e n in gu ém , pelo m en os até agor a, o coloca
em qu est ão (o qu e foi u m fato par a gerações an teriores, con tu do,
foi m u itas vezes colocad o em q u est ão m ais tarde, a partir do
m om en t o em qu e se h avia d ad o u m a ou tra repr esen tação teórica
d a coisa: d esse m od o, o qu e se t or n ou u m fato é qu e é a Ter r a qu e
gira ao redor d o Sol).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 43

En fim , o que ch am am os um fato já ê um modelo de interpretação


qu e será pr eciso aliás estabelecer ou provar (Bach elard, 1971;
D u h em , 1906). E o qu e fazem os q u an d o fòr n ecem oau m a “pr ova”
de n o ssa observação. Por exem plo, se d igo qu e vejo u m a r aposa,
apoiar ei a m in h a observação pela prova, qu e con sist ir á em m ostr ar
su a cau da, su as or elh as, seu focin h o etc. Se, n o d esen h o, qu er o
m ost r ar qu e é u m p at o q u e eu vejo, pr ecisar ia in terpretar t oda
u m a série d e elem en t os em razão d essa visão glob al. E se
pr ecisasse, agora, m ostr ar qu e é u m olh o qu e se en con tr a n o m eio
d a cabeça, utilizaria ain d a su bin ter pr etações, dizen do, p or exem ­
plo, qu e d eter m in ad o traço ar r ed on d ad o perten ce à det er m in ada
parte d o olh o etc.

Q u an t o à “p r ova” da observação, com o de resto a m aioria d as


“p r ovas” q u e en con t r am os n os m an u ais cien tíficos, ela con sist e
em u m a releitura d o m u n d o utilizan do o m od elo qu e se colocou .
Por exem plo, p o sso “pr ovar ” qu e o d esen h o é realm en te de u m
pato, m ost r an d o de qu e m od o essa in terpretação m e perm ite ler o
d esen h o d e m an eir a satisfatória par a m im . D o m esm o m od o,
p o sso “pr ovar ” o pr in cípio d a alavan ca relen do experiên cias com
aju d a d esse m od elo teórico (M ach , 1925).

E característico de n ossa cultura qu e u m a observação visual seja


geralm en te con sid er ad a m ais válida d o qu e ou tras. Afirm a-se sem
dificu ldad e qu e “o verm elh o qu e vejo” é u m fato; p ar a ou t r os
sen t id os com o o olfato ou a au dição tem-se term os m en os precisos.
Voltarei a este pon t o, in d ican d o com o se tem u m a im p r essão
m en os forte de qu e as n ot as de m ú sica são objet os, ju st am en te
p or q u e fazem parte d esse universo do som que é menos instituído,
m en os ligado a u m d iscu r so con ven cion al par t ilh ado em com u m
d o qu e o universo d a visão.

N a m ed id a em qu e se percebe com o a observação d o s fatos é


sem p re a con st ru ção de u m m od elo de in terpretação (em in glês o
term o theoretical construct, pelo qu al se d esign am as n oções utiliza­
d as, salien ta esse aspect o con strutivo). Percebe-se qu e esse m od elo
relacion a-se com o qu e n os in teressa n o m om en to. De acor d o com
44 GÉRARD FOUREZ

os pr ojetos, certas prescrições são m ais ad eq u ad as d o qu e ou tras.


N ão se vê bem , portan to, com o u m a observação pod er ia d ar con ta
de u m “real em si”; ela con stitui n a verdade u m a descrição útil tendo
em vista um projeto.1

Ponto de partida:
as proposições empíricas ou teóricas?

Se as ob servações con têm sem p r e elem en t os de in terpretação


e de teorias, n ão se vê com o se poder ia partir de um a observação
que seria “o ponto de partida indiscutível da ciên cia”. Se, p or exem plo,
ob ser vo u m a célula n o m icr oscópio, já se trata de u m m od elo
in terpretatório, ligado a u m a certa com p r een são de u m fu n cion a­
m en to, e n ão de u m p on t o de par t ida ab solu to. Chega-se portanto
sem pre tarde dem ais para descobrir o prim eiro ponto de partida.
Além d isso, n ão se pod e observar sem utilizar a linguagem , seja
verbal, seja m en tal. E a lín gu a já é u m a m an eir a cultural de
estru tu rar u m a visão, u m a com p r een são. U m a descr ição em u m a
lín gu a n ão d ar á os m esm os efeitos qu e em u m a ou tra. So m o s,
d esse m od o, irrem ediavelm en te p r esos à lin gu agem , qu e existe
an tes de n ós e con tin u ar á exist in d o d ep ois de n ós. O s cien tistas,
p o r con segu in te, n ão são in d ivíd u os ob ser van d o o m u n d o com
b ase em n ada; são 05 participantes de um universo cultural e lingüístico
n o qu al in ser em os seu s pr ojetos in dividu ais e coletivos (Prigogin e
(St St en ger s, 1980). D o m esm o m od o, a n oção de observação
“com p let a” eviden tem en te n ão tem sen t ido algu m , u m a vez qu e
ob ser var é sem p re selecion ar, estru tu rar e, portan to, ab an d on ar o

1 “A cim a d o sujeito, além d o objeto im ed iato, a ciên cia m od er n a fun da-se sobro o
projeto. N o p en sam en t o cien tífico, a m ed iação d o ob jet o p elo su jeit o tom a sem p r e a
for m a d o p r ojet o.” E d en t r o d est a per spectiva, pode-se dizer q u e os “ fatos” são
in t er p r et ações q u e n ão se coloca em q u est ão, ger alm en t e p or q u e se esqu ece (in divi­
d u al e coletivam en te) p o r m eio d e qu e “corte” (découpage) d o m u n d o eles foram
co n st r u íd o s. (Bach elar d , 1 9 7 1 , p .15).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 45

qu e n ão se utiliza. N ad a é m ais est r an h o à ob servação cien tífica d o


qu e u m a observação “com plet a”; se per segu íssem os esse objetivo
jam ais faríam os ciên cia, m as con tin u ar íam os sem pre a observar!

A im agem cultural - porém afin al in ad equ ad a - d o in divídu o


ob ser van d o de u m a m an eir a com pletam en te n eu tra u m m u n d o
est r an h o a si será m ais facilm en te com preen sível q u an d o perceber­
m os (cf. in fra Cap ít u lo 6) o vín cu lo qu e existe en tre a observação
cien tífica e o olh ar “estrangeiro” do com erciante burguês sobr e o
m u n d o qu e ele irá gerir. C o n t u d o , esse olh ar n eu tro d o in divídu o
sobre o m u n d o é u m a ficção: an tes d o in divídu o h á sem pre a lín gua
qu e ele utiliza, e qu e o h abita com o u m a cultura. A observação
n eu tra d ian te d o objet o é u m a ficção.
N a m esm a lin h a, pode-se dizer qu e as probosições em píricas q u e
t ap en as relatariam aqu ilo q u e se vê, e qu e seriam a b ase fu n d am en ­
tal de t od os os con h ecim en t os cien tíficos, são já p r op osições em
parte teóricas. A s p r op osições em pír icas n ão são “o p o st as” às
proposições teóricas; elas já são teóricas.
A im agem d o t r abalh o cien tífico pela qu al se com eçaria p or
recolh er ob servações qu e expr im ir íam os p or m eio de. p r op osições
em pír icas in discu tíveis; par a as q u ais pr ocu r ar íam os em segu ida
p r op osições teóricas explicativas, é u m a im agem pu r am en te ficcio­
n al. O q u e parece se d ar é qu e, n a prática cien tífica, em determ i­
n ad o m om en t o, con sidera-se com o “fato em pír ico” certos elem en ­
tos d e u m a descrição. Por ora, n ão qu est ion ar em os esses “fatos
em p ír icos”.
A s p r op osições em pír icas diferem en tão d as p r op osições teóri­
cas, n o sen t id o de qu e, p or m eio de u m a convenção prática ligada
ao trabalh o cientifico do m om ento„ n ós as privilegiam os com o n ão
d iscu tíveis de m om en t o., Se d igo qu e “a águ a ferve a 1 0 0 °C ” é u m
d ad o em pír ico; isto sign ifica qu e n ão qu est ion ar ei essa afirm ação.
A lém d isso, m ais tarde, em m in h a prática, p od e ser qu e eu
t ran sfor m e essa p r op osição “em pír ica” em u m a pr op osição teórica
(e, aliás, an tes de ser con sid er ad a com o em pírica, ela foi con sid e­
rada com o teórica).
46 GÉRARD FOUREZ

Cacia vez qu e u m a ob servação n ão con cor da com u m a teoria,


é sem p r e possível, m ais d o qu e m od ificar a teoria, m odificar as
regras de interpretação d a observação e descrever diferen tem en te o
q u e vem os. Volt ar em os d ep ois à utilização d aq u ilo qu e d en om in a­
m os as “h ipót eses ad hoc”.

O q u e é u m a d e fin iç ã o c ie n t ífic a ?

N a ciên cia n ão se parte de definições, Para defin ir, utilizam os


sem p r e u m esqu em a teórico adm itido. U m a defin ição, em geral, é
a releitura de um certo número de elementos do m undo por meio de
u m a teoria; é port an to u m a in terpretação. A ssim , a defin ição de
u m a cclu la em biologia n ão é u m p on t o de partida, m as resu ltado
d e u m p r ocesso in terpretativo teórico. D o m esm o m od o, n ão se
com eçou d efin in d o u m elétron p ar a en tão ver com o en con trá-lo
n a r ealidade: a teoria de u m elétron desen volveu-se pou co a pouco,
ap ó s o q u e pôde-se d efin ir o qu e se en ten de p elo term o. De igual
m od o, con sid er em os o con ceito de cen tro d e gravidade ou de u m a
alavan ca. O qu e, para u m d iscu r so, é o ob jet o de u m a defin ição
será para um ou tr o o ob jet o de u m a p r op osição teórica (M ach ,
1925, p .4 9 ss., m ostrou em u m a an álise h istór ica com o esses
con ceitos n ão p od iam se com pr een d er fora d o âm b it o de u m a
elabor ação teórica).
A s defin ições e os p r ocessos teóricos têm p o r efeito dar-n os
“objetos científicos padron izados” (Factor & Kooser , s.d.). A ssim ,
jam ais se en con tra ‘V ’ m açã, m as tal ou tal m açã particular
diferen te de u m a outra. O con ceito, o “ m od elo” e a teoria - isto
d á praticam en te n o m esm o - da “m açã” perm item p en sar um
ob jet o teórico qu e, em n osso raciocín io, su bstitu ir á o con creto da
m açã. Pode-se con sid er ar da m esm a m an eira “ob jet os cien tíficos
p ad r o n izad o s" m ais com plexos, com o u m a “diabete", ou um
“p r ocesso d e oxid ação”, u m a “célu la" etc.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 47

Sobre os objetos semelhantes ou diferentes:


o problema da semelhança, o mesmo e o outro

A ob servação levan ta tam b ém o pr oblem a d a diferen ça e d a


equ ivalên cia, d o “m esm o” e d o “ou t r o”, com o dizia Platão. Dizer,
p or exem plo, qu e ob ser vo duas m açãs (ou u m a m açã sem elh an te
às ou tras) su p on h o q u e estabeleci u m a relação d e equ ivalên cia
en tre d o is “ob jet os” diferen tes. O m esm o ocorre se falo d e d u as
d iabetes, de d u as crises econ ôm icas, de d ois lápis, de d ois p aíses
su b d esen volvid os, d e d o is cor p os con du t or es etc. A ssim , ob ser var
é estabelecer, em nome de um a percepção e de critérios teóricos,
relações de equ ivalên cia entre o que eu poderia tam bém con siderar
como diferente. A 11sem elh an ça” n ão é recebida d e m od o p assivo n a I
ob servação, m as c decidida em u m a visão teórica. E por m eio de
u m a decisão (n em sem p re con scien te ou explícita), p or exem plo,
q u e utilizarei a n oção de “flor” para falar de u m certo n ú m er o de
ob jet os. O m esm o ocorr e com a n oção de “ciên cia”: será p o r m eio
de u m a d ecisão qu e agru parei ou n ão as atividades bem diferen tes
d o s an tigos egípcios, d e Galíleu e de seu s con t em p or ân eos, d o s
físicos m od er n os, d o s psican alist as, d os b ioqu ím icos etc. A sem e- [
lh an ça n ão é jam ais d ad a, ela é im posta à n ossa estru tu ração teórica |
p or qu e a ju lgam os prática. 1

Objetividade absoluta ou objetividade


socialmente instituída?

M as en tão, o qu e ocorre com os ob jet os qu e ob ser vam os?


A in d a tem os a im p r essão de ver as coisas objetivas, tais com o são.
O p r ob lem a d essa m an eir a d e ver é qu e ela parte de,u m a defin ição _
esp on t ân ea d a objetividade qu e seria “ab solu t a", isto é, sem i
n en h u m a relação com ou tra coisa qu alqu er . O r a, parece eviden te '
qu e n ão p od em os falar de u m objeto sen ão por m eio de u m a |
lin gu agem - r ealidade cultural - qu e p od e ser u tilizada para .
48 GÉRARD FOUREZ

explicá-lo a ou t r os. N ão p o sso falar d a lâm p ad a q u e está sob r e a


m esa a n ão ser sob a con d ição de ter d ad o a m im m esm o elementos
de linguagem suficientes, com uns e convencionais, a fim de ser com­
preendido.
Falar de ob jet os é sem p r e situar-se e m u m u n iver so con ven cio­
n al de lin gu agem . E p o r isso qu e se diz com fr eqü ên cia qu e os
objetos sã o objetos devido a seu caráter in stitucional, o qu e sign ifica
| qu e é em virtu de d as con ven ções culturais d a lin gu agem qu e eles
são ob jet o s.2 U m ob jet o só é u m ob jet o sob con d ição d e ser
d et er m in ad o ob jet o descritível, com u n icável em u m a lin guagem .
D it o d e ou t r o m od o, falar de “ob jet os” é decid ir sob r e u m a relação
de equ ivalên cia en tre “aqu ilo de qu e se fala”.
Dizer q u e “algu m a coisa” é objetiva é p or t an to dizer qu e é
“algu m a coisa” da qu al se p od e falar com sen tido; é situá-la em u m
u n iver so com u m de percepção e de com u n icação, em u m un iverso
con ven cion al, in st it u íd o p or u m a cultura. Se, pelo con trário, eu
q u isesse falar de u m “ob jet o” qu e n ão en traria cm n en h u m a
lin gu agem , a m in h a visão seria pu r am en te su bjetiva, n ão com u n i­
cável; n o lim ite: lou ca. O mundo se torna objetos n as com unicações
culturais, A objetividade, com pr een d id a desse m od o, peto m en os,
n ão é ab solu ta, m as sem pre relativa a u m a cultura.
D o m esm o m od o qu e an tes cu h avia assin alad o qu e existe u m a
lin gu agem an terior a toda descr ição, é pr eciso acrescen tar agora
qu e existe t am bém , an terior a t od o objeto, u m a estru tu ra or gan i­
zada d o m u n d o n a q u al se in serem os objet os. E o qu e sociólogos
com o Peter Berger Sl T h o m as Lu ck m an n (1978) ch am ar am de “a
con strução social da realidade”, Por isto, en ten d em essa organ ização
d o u n iver so ligada a u m a det er m in ada cultura, seja a d e u m a tribo
de p escad or es n a Am azôn ia, seja a n ossa cultura in du st rial, e qu e
sit u a a visão d e tal m od o qu e cada u m a d as coisas p od e en con tr ar
o seu lu gar (ou an tes), qu e determ in a o qu e ser ão os objet os.
Co r n eliu s Cast or iad is in trodu ziu u m con ceito filosófico sem elh an ­

2 A esse r espeit o, cf. Ber ger &. l-iiclcm an n , 1967 c C ast o r iad is, 1 9 7 8 . C f. cam béra
H u sser l (in éd it o), cit ado p or Mcrlcait-Pon ty, 1945.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 49

te falan d o d a in stituição im agin ária do m undo (1978). A ssim , o


“m u n d o " é or gan izad o em fu n ção d e u m a sociedade (cf. Fou r ei,
1974, p. 1 9 4 2 ).
O s ob jet os n ão são d ad os “em si", in depen den tem en te de todo
con texto cultural. C on t u d o, n ão são con st r u ções subjetivas n o
sen t id o corren te d a palavra, isto é, “in d ivid u ais”: é ju st am en t e
graças a u m a m an eira com u m de vê-los e descrevê-los qu e os objetos
são ob jet os. Se, por exem plo, pr et en do fazer d a flor ou tr a coisa d o
qu e aq u jlo q u e está pr evisto em m in h a cultura, con cluir-se-á qu e
est ou lou co. N ão p o sso descrever o m u n d o ap en as com a m in h a
su b jet ivid ad e; pr eciso in serir-m e em algo m ais vasto, u m a in stitui­
ção sociat, ou seja, u m a visão organ izada adm itid a com un itariam en -
te. Se, p o r exem plo, pr et en do qu e u m p eq u en o elefan te r osa está
a p on t o d e dançaT sobr e a m in h a m esa, é provável qu e me
con sid er em com o m en talm en te p er t u rb ad o... a m en os qu e eu
con siga relacion ar a m in h a “visão” com u m d iscu r so socialm en te
adm itido!
Para ser "ob jetivo” é pr eciso q u e eu m e in sir a n essa rede social;
è isto qu e m e per m itir á com u n icar as m in h as visões a ou t r os; sem
isto, se d ir á sim plesm en t e qu e estou sen d o su bjetivo. E por ist o
q u e Bach elard observava qu e “a objetividade n ão pode se separar das
características sociais da prov a” (1971, p. 16; ver tam b ém Lat ou r &.
W oolgar , 1979, qu e descrevem m ar avilh osam en te t od os o s m ean ­
d r os, p or vezes su r p r een d en tes, d o estabelecim en to de u m “fato"
cien tífico).
Em ou t r os ter m os, o lu gar d a objetividade n ão é n em u m a
realidade-en vsi ab solu ta, n em a su bjetividade in dividu al, m as a
socied ad e e su as con ven ções or gan izadas e in st it u íd as (cf. Bloor ,
1 9 7 6 ,1 9 8 2 ). Relacion an d o d esse m od o o con ceito de objetividade
ao de in terações sociais or gan izadas, n ão se trata d e n egar a
im p or tân cia d a objetividade (dizer qu e algu m a coisa n ão é ab solu ta
n ão sign ifica d e m o d o n en h u m n egar a su a im por tân cia; p or
exem plo, dizer qu e p od er íam os ter en con t r ado ou t r os m eios de
t r an sp or te sen ão aqu eles qu e ch am am os d e car r os é afir m ar a
relatividade d essa tecn ologia, m as n ão n egar a su a im por tân cia ou
50 GÉRARD FOUREZ

in teresse!). O q u e está em qu est ão é t om ar u m a distân cia em


r elação ao m od elo artificial de acor d o com o qu al u m in divídu o só
ob ser var ia “objetivam en te” e de m an eira in d epen d en t e de qu al­
q u er h istória, de m od o ab solu to, as “coisas tais com o são ”; trata-se
d e p r o p o r u m m od elo segu n d o o qu al a observação seja u m a
con st r u ção social relativa a u m a cultura e a seu s pr ojetos.

Os diferentes sentidos da “atividade do sujeito”

Pode-se dizer, portan to, qu e a observação n ão d ep en d e som en ­


te d e u m d ad o, m as de u m a atividade d o “su jeit o”. Este term o,
con tu d o, é am bígu o, pois pode recobrir vários con ceitos diferen tes.
Para m u it os, a n oção de su bjetividade se refere a u m a visão parcial
d o tod o. Fala-se en tão d o “sujeito em pírico”, d esign an d o a p essoa
qu e faz u m a ob servação e é in flu en ciad a pelo qu e ela tem de
particu lar e de in dividu al, even tu alm en te p or seu s in teresses ou
paixões. N est e sen tido, se in terpreto u m a observação em fu n ção
de m in h a p r óp r ia su bjetividade, dir-se-á qu e a m in h a observação é
“su b jet iva” e, em se t ratan do de ciên cia, n ão é u m a apreciação
positiva. A ciên cia veicula u m a ética d o ocu ltam en to, ou do
ap agam en t o d o su jeito in dividu al em pírico.
P orém , d esd e Kan t pelo m en os, a su bjetividade rem ete pr im ei­
r am en te a u m a construção. O term o “su jeit o” d esign a en tão o
con ju n t o d as atividades estru tu ran tes n ecessár ias à observação.
Este con ju n t o de atividades estru tu ran tes form a aqu ilo q u e Kan t
d en o m in a u m asujeito transcen den tal”. E, com o ob ser var é sem pre
con st r u ir e estru turar, pode-se dizer qu e a observação é a atividade
d o su jeito ou su bjetiva (m as n ão n o sen t ido corren te d a palavra,
qu e acab am os de recordar). E su bjetiva n o sen t ido d e qu e observar
é or gan izar a n ossa visão segu n d o regras qu e são sociais e ligadas
à h ist or icidad e de u m a cultura.
Em ter m os m ais sim ples, se t en h o u m giz verde sobr e a m esa
j e, ob servan do-o, con sidero-o com o verm elh o p or qu e sou dalt ôn i­
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 51

co, dir-se-á, n a lin gu agem corren te, qu e a m in h a in terpretação é


“su b jet iva”, p ois d ep en d e de m in h a m an eir a in dividual de estru tu ­
rar o m u n d o. ,Todavia, se falo de u m giz verde, u tilizan do as n oções
d e giz e de verde e vár ias ou tr as, dir-se-á qu e a m in h a observação
é “objetiva” ; e con t u d o é p o r m eio de u m a atividade estru tu ran te
d o su jeit o e pela m ediação de u m a cultura p ar t ilh ad a qu e pu d e
p r od u zir essa observação. M ais ain da, pode-se dizer qu e o caráter
objetivo provém diretam en te d as con ven ções qu e são veicu ladas
pelas atividades d o s “su jeit os” .
O “su jeito t r an scen d en tal” n ão é de m od o algu m algo qu e
d ep en d a d o in divídu o: trata-se n a verdade de u m a série de elem en ­
tos, ligad os a n o ssa b iologia, a n o ssa lin gu agem , a n ossa cultura
etc. C o m o afirm aram H u sser l e Merleau-Pon ty,3 “a su bjetividade
t ran scen d en tal p od er á ser u m a in tersu bjetividade”; em ou t r os
ter m os, esse “su jeit o” é u m a com u n id ad e h u m an a organ izada em
u m a lín gu a, cost u m es etc. O qu e dá ao objeto o seu caráter objetivo
é ju st am en te essa con st ru ção por esse sujeito, de acor do com regras
socialm en te ad m itid as e recon h ecidas. Em ou t r os ter m os ain d a, só
h á objeto por meio da “subjetiv idade” da linguagem e das convenções,
m as isto n ão sign ifica qu e a observação seja subjetiva, se en ten ­
d er m o s p or isso qu e depen d er ia da in terpretação livre de u m
in divídu o.
O u so em in form ática de b an cos de d ad os pod e t or n ar m ais
claro o qu e é a objetivação. Para qu e u m “ob jet o” exista em u m
b an co de d ad o s é pr eciso qu e ele en tre em u m a d as categorias
pr ogr am ad as n esse ar qu ivo. O qu e d eter m in a u m a classe de
ob jet os n ão vem sim plesm en t e “de for a” , m as t am bém d a classifi­
cação qu e foi d ad a. Esta perm ite reu n ir em u m con ju n t o de
“ob jet o s” coisas diferen tes; é u m a m an eir a con creta, con ven cion al
m as n ão arbitrária de resolver o p r ob lem a d o “m esm o” e d o
<( ^ »
ou tro .

3 H u sser l, Die Krisis europaisch en W issen sch aften un d die tran szen den tale Phànom enolo-
gie, III (in éd ito), cit ado p or M . Merleau-Pon ty, ín : Phénom enologie de la perception,
P refácio, p.VII, G allim ar d , 1945.
52 GÉRARD FOUREZ

Poder-se-ia tam bém in trodu zir aqu i a n oção de “sujeito científi­


co”, en t en d en d o p or isto o con ju n t o de atividades estru tu ran tes
ligad as a u m a ab or d agem cien tífica det er m in ad a sob r e o m u n d o,
a fim de pr od u zir o “objet o cien tífico” a ser est u d ad o. Pode-se dizer
q u e existe u m “su jeito cien tífico” particular par a cad a disciplin a,
ligado ao qu e ch am ar em os de “p ar ad igm a”, ou “m atriz d isciplin ar ”
d a d iscip lin a; est u d ar em os m ais a fu n d o em qu e con sist e esse
“su jeit o” q u an d o ab or d ar m os o s seu s con ceitos. In d iq u em os sim ­
p lesm en te p o r or a qu e é o con ju n t o de regras estru tu ran tes qu e
d ão à d iscip lin a os seu s objet os. E claro qu e esse con ceito de
“su jeito cien tífico” n ão rem ete a u m ou a vários in divídu os m as a
tu m a m an eir a socialm en te estabelecida de est r u tu r ar o m u n d o.
D ito d e ou tro m od o, de acor do com as palavr as de Prigogin e
<St Sten ger s (1980), “a ciên cia se afirm a h oje ciên cia h u m an a,
ciên cia feita p or h om en s e par a h om en s” (p.281). Se gu n d o eles,
com efeito, a ciên cia su p õe u m “en raizam en to social e h ist ór ico”
(p .280) e u m a “in terpretação global qu e n ão deixa d e ter in flu ên cia
sob r e as p esq u isas locais” (p .88); os cien tistas “perten cem à cultura
par a a qu al p or su a vez con t r ib u em ” (p.277).

A ideologia da imediatez científica

A p esar de tu do, a ideologia d a “observação fiel d os fatos”


con t in u a viva. N o espír ito de u m gran de n ú m er o de p essoas,
ob ser var é sim p lesm en t e situar-se passivam en t e dian te d o m u n d o
tal com o é. M ascara-se assim o caráter con st r u íd o e social de toda
ob servação; recusa-se, d esse m od o, a ver qu e “ob ser var ” é in serir-se
n o m u n d o d os projetos qu e se possu i. Esse apagam en to do sujeito
(ao m esm o tem po in dividu al e social, em pírico e t ran scen den tal
ou cien tífico) n ão é in ocen te. O bliteran do-o obtém -se a im agem de
u m a objetividad e ab solu ta, in d epen d en t e de qu alq u er projeto
h u m an o. E u m a m an eira de absolu tizar a visão cien tifica e n ossa
visão d o m u n d o, e de velar-n os a su a particularidade. Ter em os qu e
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 53

n os per gu n tar sob r e as razões pelas q u ais as práticas cien tíficas


ap agam tão b em as su as or igen s, a p on t o de J. M . Lévy-Leblon d
p od er dizer qu e geralm en te fala-se de cien tificidade q u an d o se lida
com u m sab er cu jas or igen s for am su p r im id as;4 os saber es d a vid a
cot id ian a, aqu eles qu e vem os ain d a a qu e pr ojetos estão ligados,
são rar am en te ch am ad os de cien tíficos.
D aí se or igin a u m a espécie de in gen u idad e qu e se assem elh a
à de n o sso s an t ep assad os q u an d o con sideravam qu e ér am os
civilizados, ao p asso qu e as ou t r as socied ad es d o m u n d o n ão o
eram . Acr ed it am os qu e a n ossa observação cien tífica d o m u n d o
p o ssu i u m a objetividade absolu ta. Efetu ar esse ju lgam en t o só é
possível sob con d ição de escon der a particularidade de n ossa visão,
de n o ssa sociedade e d a n o ssa situ ação. Esse “ap agam en t o” acaba
levan d o a u m a sociedade tecnocrática on d e se b u sca fu n d ar ou
legitim ar d ecisões sociopolít icas ou éticas sobr e raciocín ios cien tí­
ficos pr eten sam en te n eu tr os e ab solu t os (cf. Sten ger s em Fourez,
1986).
Tod avia, toda observação carrega con sigo u m elem en to de
fidelidade, n o sen t ido de qu e ela se situ a em u m a com u n id ad e
h u m an a e em relação a ela. E essa com u n id ad e é p or su a vez ligada
a u m a h ist ór ia e a u m m u n d o qu e n ão se con trola. Em su m a, n ão
se ob ser va sim p lesm en t e o qu e se qu er ver, insere-se em algo m aior,
em um a história h u m an a e em um m undo.

O sentimento de realidade

Resta dizer algo sobr e o fato de qu e tem os com freqü ên cia a


im p r essão de q u e o qu e n ós ob ser vam os é verdadeiram en te o
“r eal”. O sentim ento de realidade5 é u m sen t im en t o su bjet ivo e

4 Lévy-Leblon d, 1981. Lem b r em os tam b ém o pr ovér bio american o.- “U m especialist a


é o id iota d a ald eia vizin h a"; ou ain d a, “N in gu ém é pr ofeta em seu p r ó p r io p ais” .
5 A r esp eit o d o sen t im en t o d e r ealid ad e, ver M ar ech al, 1937 e t am b ém Fou rez, 1974,
1979.
54 GÉRARD FOUREZ

afetivo qu e faz com q u e t en h am os con fian ça n o m u n d o tal com o


vem os.

Se m in sist ir d em ais sobr e a origem d e tal sen tim en to, assin a­


lem os q u e ele n ão deixa de estar ligado ao fato de qu e m u itas
p esso as de qu em gost am os (os n osso s pais, p o r exem plo) vêem o
m u n d o com o n ós. A crian ça tem a im p r essão de qu e o m u n d o n o
qu al ela vive é real n a m edida em qu e sen te qu e as-pessoas-que-
con tam -para-ela vêem a m esm a coisa qu e ela. Se, pelo con trário, o
seu pai ou a su a m ãe afir m assem qu e o qu e ela vê n ão é real, ela
logo teria a im p r essão de viver em u m m u n d o irreal. D oen ças
p sicológicas são aliás m u itas vezes r elacion ad as a esse tipo de
im agen s am b ígu as p assad as pelos pais ao colocar con tin u am en te
em qu est ão o sen t im en t o d e r ealidade d a experiên cia da crian ça.
D e igual m od o, os cien tistas tam bém p ossu em com freqü ên cia a
im p r essão de ver o “real” q u an d o estão in ser id os em u m a d ad a
com u n id ad e - a com u n id ad e cien tífica - qu e apr ova a su a descri­
ção.6 Pelo con trário, q u an d o têm a im p r essão de ser em os ú n icos
a ob ser var u m fen ôm en o, ficam t om ad os por u m sen t im en t o de
irrealidade e têm a m esm a ten dên cia a n ão crer em su as ob ser va­
ções. N ão tar d am en tão a ab an d on ar as su as p esqu isas (con tu do,
se levaram em con sid er ação t od os os critérios de observação
objetiva tais com o d efin id os pela com u n id ad e cien tífica, pod er ão
con t in u ar a d efen der o r esu ltado de su as observações).

Além de seu vín cu lo com a visão de gr u p os particu lares com o


a com u n id ad e cien tífica, as visões qu e se têm d o m u n d o ligam -se,
em ú ltim a in stân cia, a relato m íticos qu e, em u m a d ad a sociedade,
en con tram -se n a b ase de t oda represen tação. Sem elh an t es m itos
são com o u m h orizon te fora d o qu al n ão existe sen t ido. Em n ossa
socied ad e ociden tal, o conceito de m atéria d esem p en h a p or vezes
u m papel d esse tipo. E im possível defin ir o qu e é “a m at ér ia”. Esse
con ceito refere-se à visão ú ltim a d a organ ização cien tífica d o m u n d o

6 A p r o p ó sit o , ver a d escr ição d o lab or at ór io de q u e fãlam Latou r &. W oolgar , 1979.
V e r t am b ém Latour , 1984-
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 55

(ou, m ais particularm en te, à visão últim a da organ ização d o m u n d o


pela física).
Em n o ssa sociedade, con trariam en te à d a Idade M édia, qu an d o
era a religião qu e tin h a essa fu n ção, a ciên cia parece d esem p en h ar
o papel d e m ito fu n dam en tal, ou seja, qu e é p ar a ela qu e as p essoas
se dirigem para en con t r ar o qu e seria o real ú ltim o.

E o “real”?

A n oção de real parece fu n cion ar com o u m a m an eir a de


an u n ciar u m a in terpretação privilegiada; assim , se dirá qu e u m
so n h o n ão é “real”... Ten t ar dizer o qu e é o real em últim a in stân cia
é p r ocu r ar u m d iscu r so, u m a in terpretação à qu al se d ar ia u m
estatu to privilegiado. Dizer qu e “isso é realm en te ist o”7 é privilegiar
a segu n d a in terpretação (isto) sobr e a prim eira (isso). Por exem plo,
se d igo qu e d et er m in ada d oen ça n ão é realm en te fisiológica, m as
p sicológica, a palavra “realm en te” m arca a in terpretação privi­
legiada.
Q u an d o se está h abitu ad o a ver o m u n d o de certo m od o,
torn a-se q u ase im possível ver as coisas de m an eir a diferen te.
Q u est ion ar essa visão criaria u m a p r ofu n d a crise afetiva. A visão
qu e se tem d o m u n d o su rge en tão com o ab solu tam en t e objetiva.
Ist o p od e ir até o p on t o que, se, em determ in ada sociedade, algu ém
n egasse essas visões “n ecessár ias”, ela seria rapid am en t e declarada
lou ca. O qu e coloca u m a qu est ão em relação ao con ceito de
lou cu ra: dizer qu e algu ém é lou co p ossu i u m a sign ificação ab solu t a
ou sign ifica sim p lesm en t e qu e a su a visão d o m u n d o n ão se in tegra
b em n a in stitu ição im agin ária d o m u n d o de su a sociedade? (cf.
Fou cau lt, 1961)

7 Em fr an cês, ceci esc réellem ent cela; optou -se p or tr adu zir ceci p o r isso, sign ifican d o
algo q u e se vê, p ar a o qu al se p o d e ap on t ar , e cela p o r isto, p r ecisan d o m elh or o qu e
se fala (N. T.).
56 GÉRARD FOUREZ

A fim de tor n ar m ais claro d e qu e m od o a con st r u ção social


d o m u n d o provoca o sen t im en t o de objetividade, e com o a
objetividad e é u m a in stitu ição social, o exem plo d o solfejo é
in teressan te. Sem o solfejo, sem u m a certa teoria d as n ot as
m u sicais, as n ão n ot as n ão existem objetivam ente. E con tu d o, graças
a essa teoria, as n ot as existem objetivam en te. Elas n ão existem “em
si m e sm as”, m as ap en as p or m eio d essa visão sociocu ltu ral qu e
in stitu i o m u n d o d o som : o solfejo. C o m o porém , em n ossa
cu ltu ra, o m u n d o d o som é relativam en te m en os in stitu íd o d o qu e
o m u n d o d a visão, tein-se a im p r essão (pelo m en os a m aioria d as
p essoas, m as n ão n ecessar iam en te os m ú sicos) qu e o m u n d o d o
so m é m en os “objetivo” d o qu e o m u n d o d a visão. N o lim ite, é-se
t en tad o a dizer qu e as n ot as de m ú sica são m en os r eais d o qu e as
cores. M u itos têm a im p r essão de qu e ver o “ver m elh o” é objetivo,
m as escu tar u m “lá” é ter u m a experiên cia ligada à cultura. N a
verd ade, o p r óp r io verm elh o é tam bém ligado a u m a con stru ção
social d o m u n d o (n ot em os qu e, par a qu e as n ot as de m ú sica
exist am com o objetos, n ão é p r eciso n ecessar iam en t e qu e -elas
sejam d efin id as de m an eira técn ica p o r m eio d o solfejo; basta,
assim com o par a as cores, qu e ten h am u m a d efin ição in form al
(H all, 1959).

En t ão, q u an d o observam os,, ob ser vam os o real? O b ser vam os


a “coisa-em -si” tal com o seria in d epen d en t e de n ós? Volt ar em os
m ais tarde sob r e a qu est ão de sab er se é possível alcan çar o “objeto
em si” , e n o s p er gu n t arem os m esm o em qu e m ed id a essa n oção, 6
útil. N o en tan to, as an álises qu e acab am os de fazer n os levam a
recon h ecer qu e o qu e n ós ob ser vam os é sem pre u m m u n d o já
est r u tu r ad o p or n o ssa m an eir a de ver e de organ izá-lo. N est e
sen t id o, pode-se dizer qu e, em ciên cia, n ão se pod e falar sen ão de
“ob jet os fen om en ais” (isto é, ob jet os tais com o aparecem , vistos
pelo su jeito tran scen den tal ou pelo su jeito cien tífico). T o d as as
ob servações cien tíficas se situ am em t or n o d essa visão estru tu rada;
o q u e h averia em ú ltim a in stân cia “at r ás” ou “ab aixo” de n ossas
ob ser vações está fora de n o sso alcan ce; ch egam os sem p r e m u ito
tarde: o su jeito estruturan te já está lá qu an d o falam os d e u m objeto.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 57

A s ob servações cien tíficas n ão se pr eocu pam com a “realidade


ú lt im a” d o m u n d o ob ser vad o; con ten tam -se com o m u n d o fen o­
m en al tal com o aparece, tal com o n ós os or gan izam os (cf. Kan t,
1785; Blon d el, 1893). E o sen t id o d a fam osa exp r essão atr ibu ída
a N ew ton : “Hypotheses non fin go” (“N ão im agin o n ad a a r espeito
d o real ú lt im o”).8

A convicção do observador: as “provas”

N a m ed id a em qu e a con vicção está ligada a u m a in ser ção em


u m a com u n id ad e, pode-se an alisar os vín cu los qu e existem en tre
os p r ocessos de validação d as teorias cien tíficas e a lavagem cerebral
(Fou rez, 1974, Cap ít u lo 1). O s p sicólogos e os sociólogos est u d a­
ram a m an eir a pela q u al se p od e m odificar su a visão d o m u n d o.
Para qu e esta seja m od ificad a, parece qu e qu at ro elem en t os são
n ecessár ios (H all, 1959; Fourez, 1974, p.38-40).
E pr eciso u m a estru tu ra de plau sibilid ade, ou seja, u m a lin gu a­
gem qu e dê u m a certa coerên cia à n ova organ ização d o “real”. E
n ecessár ia u m a segu ran ça afetiva (su bstitu to d a pr esen ça assegu-
ran te d o s pais, qu e garan tem à crian ça a realidade d o m u n d o): n o
m u n d o cien tífico, é a com u n id ad e cien tífica qu e d esem p en h a esse
papel. E preciso t am b ém u m a separação afetiva d a visão an terior
(n ão se está n u n ca su ficien tem en te con ven cido de qu e se está
d istan te d aqu eles qu e crêem de ou tro m od o!); aí t am bém o “m eio
cien tífico” tem u m certo papel. E, en fim , é pr eciso qu e a n ova visão
p o ssa rein terpretar a an tiga - ou pelo m en os aqu ilo qu e ju lgam os
im por tan te n ela. O film e A confissão [Uaveu] colocou em evidên cia
os elem en t os d esse pr ocesso.
E n esse âm b it o qu e se p od e rein terpretar o qu e é apr esen t ad o
n os m an u ais de ciên cia e em m u it os artigos com o “provas cien tí­

8 T r ad u ção bast an t e “livre” de Fou rez; u m a ver são m ais pr ecisa pod er ia ser: “ N ão
t r ab alh o com h ip ót eses” (N. T.).
58 GÉRARD FOUREZ

ficas” . Trata-se geralm en te de releituras do m undo através da teoria,


qu e t en d em a torn á-la crível. A ssim , se eu qu iser “pr ovar ” qu e vejo
verd adeiram en te u m a lâm p ad a sobre a m in h a m esa, só con seguirei
redizer t od os o s elem en tos de in terpretação qu e m e levaram a falar
d e u m a lâm p ad a. Efetuo ap en as u m a releitura de m in h a visão d o
m u n d o. D o m esm o m od o, se q u iser “provar ” a m in h a teoria d o
elétron n ão farei m ais d o qu e reler o m u n d o p or m eio d essa teoria.
T u d o o qu e as “pr ovas” qu e aparecem n os cu r sos de ciên cias
con segu em dizer é qu e as teorias en sin ad as forn ecem u m in stru ­
m en to satisfatório de “leitu ra” d o m u n d o ob ser vad o. E tod os os
p r ofessor es sab em a qu e pon t o o “m u n d o ob ser vad o” é estru tu rado
em u m cu r so a fim de qu e n ão apareça m u ito aqu ilo qu e poder ia
colocar em qu est ão o m od elo en sin ad o. A d escr ição d o “ m u n d o
^observado” já é feita em fu n ção d a teoria qu e será “p r ovad a”; n esse
sen t id o, pode-se dizer qu e t oda descr ição cien tífica e toda observa­
ção já são estabelecim en tos de u m m od elo teórico. A exp r essão
“pr ovar essa ob ser vação” n ão é utilizada, m as p od er ia sign ificar
q u e o m od elo qu e se escolh eu fu n cion a par a n ossa satisfação
(deve-se grifar “n ossa satisfação”, pois tu do o qu e se pede d o m odelo
é q u e ele n os satisfaça em n o sso s projetos).
V er em o s t am b ém , m ais tarde, qu e u m m od elo ser á rejeitado
n ão p or q u e ele será “p r ovad o” falso, m as porqu e, fin alm en te, ele
n os satisfar á m ais, e n os d eixará em d ébito em r elação ao qu e
d esejam os fazer, isto é, n osso s pr ojetos (e em ciên cia, esses projetos
são em geral par t ilh ados, ao p asso qu e, em certas ob ser vações de
n o ssa vida in dividu al, in teivêm critérios m ais pessoais).

Conclusão: a revolução copernicana


da filosofia da ciência

Essa seção sobr e a ob servação cien tífica t in h a p or objetivo


oper ar, com o dizia Kan t, u m a espécie de revolução copern ican a em
relação à observação (atribui-se a Cop ér n ico n os ter en sin ad o a n ão
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 59

m ais ver o So l gir an d o em t or n o d a Ter ra, m as esta em r ed or do


Sol).
Em n o ssa cultura, con sid er am os esp on tan eam en t e qu e o o b ­
ser vador “gir a” em t or n o d o objeto, sen d o este con sid er ad o com o
o qu e prod u z a ob servação, ao p asso qu e o su jeito observan te
aparece com o essen cialm en t e receptivo. A revolução copern ican a
con sist e em d eslocar o acen to e dizer qu e a observação será an tes
de m ais n ad a u m a con st r u ção d o sujeito, e n ão a d escober ta de
qu e algu m a coisa estar á lá in d epen d en t em en te d o su jeito ob ser ­
van te (m as dizer qu e algu m a coisa é u m a p r od u ção h u m an a, n ão
é, com o crêem algu n s, d im in u ir a su a im por tân cia: as tecn ologias
au tom obilíst icas n ão são m en os im por tan tes se as con sid er ar m os
com o con st ru ções h u m an as d o qu e se as con sid er ássem os com o
“d escob er t as” de algo qu e n ão existia an tes!).
A im por tân cia d essa revolu ção copern ican a é de legitim ar a
visão d a ciên cia qu e a apr esen t a com o u m p r ocesso ab solu t o e de
m od o algu m h istórico. Psicologicam en te, essa m u d an ça de per s­
pectiva é difícil, pois “essa idéia d a su bjetividade com o con strução-
criação im plica u m a errân cia, a r en ú n cia à certeza de u m já-la à
esp er a d a d escob er ta” (Ben asayag, 1986, p.42-4). Trata-se d e fazer
o en terro de u m so n h o qu e n os h abita de u m m od o ou de ou tro:
o de u m a ob servação absolu ta, direta, global, im ediata, qu ase
fu sion al com o m u n d o, de u m a relação du al com a realidade. E,
u m a vez ab an d o n ad o esse m ito da im ediatez, coloca-se a qu est ão
d o s p r ojetos h u m an os su bjacen t es e a d o sen t id o d essa atividade
h u m an a.
Fom os assim levados a rever a n oção de “su jeito de observa­
ção”. N a m ed id a em q u e- a observação se liga à lin gu agem e a
p r essu p o st os cu lturais, falar de u m su jeito de ob servação p u r am en ­
te in d ivid u al é u m a ficção. O s observadores em carn e e o sso n ão
estão jam ais “só s”, m as sem pre pré-h abitados por t oda u m a cultura
e p or u m a lín gu a. E q u an d o se trata de u m a ob servação cien tífica,
é a coletividade cien tífica qu e “h abit a” os p r ocessos de ob servação.
D ist in gu in d o as n oções de su jeito em pírico, su jeito tr an scen den tal
e su jeito cien tífico, ch egam os à con clu são de qu e a objetividad e
60 GÉRARD FOUREZ

n ão tem lu gar n em n a su bjetividade, n em em u m “real em si”, m as


n a in stitu ição social d o m u n d o.9

Resumo

a) Método dialético: representação espontânea (tese), análise e negação


crítica (antítese), nova representação (síntese, isto é, nova tese).

b) Representação de Claude Bernard (simplificada): observação, leis, veri­


ficações experimentais, leis provadas, teorias.

c) l 0 A observação científica: nunca puramente passiva, supõe uma


organização da visão, seguida de uma descrição (isto é, de uma interpre­
tação em termos teóricos pré-adquiridos), estruturada em fun ção de um
projeto, estruturado por um “sujeito” a n ão se con fundir com a subjeti­
vidade individual.

O s fatos são portanto modelos teóricos a serem “provados”.


O s “fatos” não são um ponto de partida absoluto das ciências.
O s fatos se ligam à linguagem, à cultura; não são neutros.
As proposições empíricas já são teóricas, assim com o as definições.
A objetividade se liga ao sen so com um e à linguagem (cf. “construção
social da realidade”, “instituição imaginária do m un do”, “h um an idade”
da ciência).
Subjetividade e objetividade.
Desabsolutização da ciência; possibilidade de recusar a tecnocracia.

9 P od e ser in t er essan t e est ab elecer u m a relação en t re essas an álise s c o esqu em a


ar istotélico se gu n d o o qu al o s o b jet os se com p õem d e m atéria e d e for m a (e, par a
Ar ist ót eles, a for m a est á sem p r e ligad a a u m a certa in t en cion alid ad e, isto é, a
d et er m in ad o pr ojeto). O con ceit o d e “m atéria p r im eir a” d esen volvid o p elos filósofos
escolást icos (a “m atéria p r im eir a” n ão é n en h u m a realidade especifica, m as in dica
q u e n ad a existe fora d e u m a referên cia a u m a passividad e) co r r esp o n d e b em ao q u e
ap r esen t am o s, in d ican d o qu e, m e sm o q u e t od o ob jet o seja co n st r u id o, ele n ão p od e
se d efin ir co m o p u r a co n st r u ção. Além d isso , em u m a con cep ção aristotélica, só
existe ob jet o p o r su a “for m a” , ela m esm a ligad a à in t en cion alid ad e. Poder-se-ia, n a
m esm a per spectiva, con sid er ar a r elação d o s d esen volvim en t os d est e capit u lo com a
filosofia d a ciên cia de Blon d el (1893) ou o p en sam en t o d e Fich te.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 61

2- Quid do “sentimento de realidade”? Ligado ao sentimento subjetivo, ao


vín culo afetivo com “pessoas importantes para n ós”, a relatos míticos;
“objeto em si” e “objeto fenomenal”.
3S Quid do conceito de “real”? Ligado a um discurso privilegiado e n ão a
uma existência objetiva em si; validade das teorias científicas e “lavagens
cerebrais”.
Con clusão: Deslegitimar a visão da ciência como “absoluta”. Valorizar o
seu aspecto con struído pelos h uman os.

Palavras-chave

Método crítico dialético/ leis cien tíficas/ experim en tação/ observação/


fato/ real em si/ proposições em píricas/ proposições teóricas/ defin ição/
objetividade/ instituição social do m u n d o/ sentimento de realidade/
pr ovas/ sujeito em pírico/ sujeito tran scen den tal/ sujeito cien tífico/
in terpretação/ im pressão de imediatez/ objeto fen om en al/ ponto de
partida da ciên cia/ olh ar do comerciante bu rgu ês/ hipótese ad hoc/
modelo teórico/ psicologia cogn itiva/ ideologia da imediatez/ fidelidade
da observação/ sociedade tecnocrática/ apagamento do su jeito/ mitos
fu n dam en tais/ perspectiva construtivista.
C A P Í T U LO 3

O MÉTODO CIENTÍFICO:
ADOÇÃO E REJEIÇÃO DE MODELOS

Teorias, leis, modelos

D e acor d o com o m od elo m ais apr esen t ad o n os m an u ais do


secu n d ár io1 e m uitas vezes n a un iversidade, supõe-se que, com base
cm ob servações, “pr opõem -se”, ou se “ded u zem ” , ou se “d esco­
b r em ” leis cien tíficas. Por exem plo, diz-se qu e basean do-se n a
ob servação de alavan cas poder-se-á tirar a lei da alavan ca. Ir em os
con sid er ar essa repr esen tação com o u m a tese in icial, par a aplicar
o m esm o m ét od o dialético utilizado n o capítu lo an terior.

Pode-se deduzir leis das observações?

U m físico, u m pou co filósofo tam bém , Em st M ach (aquele que


deixou o seu n om e ligado ao m u ro do som ) exam in ou detidam en te
esse problem a em seu livro: La m écanique, exposé historique et critique

1 C f., p o r exem p lo, o p r ogr am a d o cu r so d e ciên cias d o e n sin o cat ólico belga. Essa
r ep r esen t ação é u m a sim p lificação d a d e C lau d e Ber n ar d , 1934.
64 GÉRARD FOUREZ

de son développem ent (1925, p .l 5-30) [A m ecânica, exposição histórica


e crítica de seu desenvolvimento]. Esta obr a, p or seu s d esen volvim en ­
t os h ist ór icos e críticos, con tribu iu par a r ecolocar em qu est ão a
física n ew ton ian a, e d esse m od o p r epar ar os desen volvim en tos d a
teoria d a relatividade. Ela m ostr a com o, cada vez qu e se preten de
ded u zir d e u m a ob servação a lei d a alavan ca, n a verd ade ela já
estava im plícita n o p r óp r io d iscu r so d a observação. Por exem plo,
falan d o de p on t o de ap oio, de distân cia em relação ao pon t o de
apoio, de equ ilíbr io, de cen tro de gravidade, já se aceitou im plici­
tam en te n esses term os teóricos o equ ivalen te d a lei d a alavan ca.
N ão se deduzirá port an to a lei d a alavan ca d as observações, p ois
d esd e esse m om en t o a lei já tin h a sid o in jetada p elos ter m os teóri­
cos u tilizados. N o en tan to, t en do em vista a lei da alavan ca (ou
algu m a coisa d o gên ero), torn a-se possível efetuar ob ser vações qu e
in dicar ão de qu e m od o as forças a serem aplicad as à alavan ca são
p r op or cion ais às distân cias d o pon t o de apoio. Em ou t r os term os,
ela p od e ser “verificada” , ou seja, ser con st atad o o seu b om fu n cio­
n am en t o, u m a vez ad m it id os u m certo n ú m er o de pr essu p osições.
D e m od o m ais geral, desde o m om en t o em qu e se ab or d a u m a
situ ação, tem-se sem pre u m a certa idéia d a m an eir a pela qu al
p od em o s represen tá-la: ad ot am os u m “ m od elo”. C o m b ase n essas
idéias, pode-se ver até q u e p on t o “isto fu n cion a”. Se, por exem plo,
con sid er o u m a lei sobr e a qu ed a d o s cor pos, precisarei, para
aplicá-la, e par a qu e ela ten h a u m sen tido, de certos con ceitos
teóricos, p o r exem plo, p ar a o de direções pr ivilegiadas qu e são o
alto e o baixo. A s leis ou os m od elos teóricos se “verificam ”
u tilizan do-se os con ceitos qu e lh es são ligados. Em ou t r os term os,
verificar u m a lei é m en os u m pr ocesso pu r am en te lógico d o qu e a
con st atação de qu e a lei n os satisfaz .

A ciência é subdeterminada

U m a m an eira relativam en te sim ples de ver qu e n ão se pode


dedu zir u m a lei basean do-se em u m a série de observações em píricas
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 65

é con sid er ar (segu n d o o s filósofos d a ciên cia D u h em , 1906 e


Q u in e, 1969) qu e, sen d o d ad o u m n ú m er o fin ito de observações
em pír icas, existe u m n ú m er o in fin ito de teorias cor r espon d en t es
a elas. Para com p r een d er p or qu e, com p ar em os as observações
em pír icas ao s d esen h os de h istór ias em q u ad r in h os: é possível
con st r u ir u m n ú m er o in fin ito d e h ist ór ias qu e ser ão com patíveis
com o s d esen h os. D e m an eir a sim ilar, sen d o colocado u m n ú m er o
fin ito de d ad o s em pír icos, pode-se en con t r ar u m a in fin idad e de
leis ou m od elos qu e lh es cor r espon d em . A s teorias cien tíficas são
su b d et er m in ad as n este sen t id o de qu e n ão são com pletam en te
d et er m in ad as pelas p r op osições em pír icas d as q u ais, d e acor d o
com u m a epistem ologia in gên u a, ser iam os t en t ad os a extraí-las.
Este “teorem a” segu n do o qu al é possível ter u m núm ero infinito
de teorias para um núm ero finito de proposições em píricas é im portan te
por q u e relativiza as n o ssas represen tações cien tíficas. Ele in dica
qu e n ão se p od e dizer jam ais qu e os r esu lt ados em pír icos n os
“ob r igam ” a ver o m u n d o de tal ou tal m an eira. Ele seria com p a­
tível, p o r exem plo, com os d ad o s em pír icos d o s q u ais se preten de
tirar teorias cien tíficas, d efen d er u m a teoria p r et en d en d o qu e são
an jo s qu e fazem fu n cion ar a in tegralidade d o m u n d o; n o n ível
lógico, essa teoria pod er ia m u ito bem fu n cion ar. Sem dú vida,
sem elh an t es teorias n ão são n ad a práticas se se qu iser realizar u m
certo n ú m er o de pr ojetos, m as se con sid er ar m os qu e a ciên cia se
d estin a sim p lesm en t e a d ar con ta de u m n ú m er o fin ito de ob se r ­
vações cien tíficas, t od as essas teorias serão equ ivalen tes.

A evolução de nossas teorias e modelos científicos?

Pode-se en tão represen tar a ab or d agem cien tífica com o se


segu e. Co m e çam o s sem pre olh an d o o m u n d o já com u m certo
n ú m er o d e idéias n a cabeça: idéias preconcebidas, representações,
modelos, sejam científicos, pré-científicos, ou míticos. Essas r epr esen ­
tações p ossu em sem p re u m a certa coerên cia, m esm o qu e, levadas
66 GÉRARD FOUREZ

' ao extrem o, p o ssam revelar-se in coeren tes. C h am ar e m os de teo­


rias, leis ou m od elos t od as essas r epr esen tações qu e n os d am o s d o
m u n d o. Lon ge de provir u n icam en te d as experiên cias q u e se acaba
de fazer, elas d ep en d em sem pre d as idéias qu e se aceitava de in ício.
Q u an d o essas r epr esen tações n ão n os con vêm , p or u m a razão
ou p o r ou tra, n ós as su b st it u ím os p o r ou tras qu e n os sirvam
t m elh or p ar a fazer o qu e qu iser m os. Se d esejo corrigir u m a má-for-
m ação con gên ita, será m elh or qu e eu ten h a u m a r epr esen tação d o
m u n d o fortem en te ligada à Biologia d o qu e u m a r epr esen t an d o o
cor p o de m an eir a artística. M as, p ar a ou tr os pr ojetos, é possível
q u e u m a visão artística d o m u n d o seja m ais prática. A s repr esen ­
t ações apar ecem por t an to m ais ou m en os válidas d e acor d o com
o s p r ojetos h u m an os n os q u ais q u er em os situá-las (M ach , 1925,
p.81).

Modelos ligados a projetos

D e acor d o com o p on t o de vista acim a desen volvid o, a ciên cia


su rge com o u m a prática qu e su bstitu i con tin u am en te p or ou tr as
as repr esen t ações qu e se tin h a d o m u n d o. Aliás, com eça-se a fazer
ciên cia q u an d o n ão se aceita m ais a visão esp on tân ea com o
ab solu tam en t e n ecessária, m as com o u m a in terpretação útil em
d et er m in ad o m om en t o. O s n o sso s m od elos partem sem p re de
u m a visão ligada à vida cotidian a, de u m a visão esp on tân ea,
eviden tem en te con d icion ad a pela cultura. Ligam -se a u m a m an eir a
de viver, a u m a cultura, a in teresses, a u m a m u lt iplicidade de
I pr ojetos. Se olh o o m eu qu arto, forn eço a m im m esm o u m m od elo
ligad o à m in h a vida cotidian a (ao qu e se ch am a às vezes de m u n d o
u tilitário). A organ ização d essa r epresen tação n ão é det er m in ad a
p elos ob jet os qu e estão em m eu qu ar to, m as pela m an eir a pela
q u al organ izo a m in h a vida, pela qu al a vejo, assim com o a m eu s
p r ojetos. Pode-se dizer a respeito de n osso s m od elos o m esm o qu e
foi d it o sobr e as observações.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 67

N a m ed id a em qu e t om o u m a certa distân cia em relação a essa


vida cotidian a, pergu n tan do-m e p or exem plo com o essa cadeira
p o d e se su sten tar, com eço a con st ru ir u m esp aço con ceituai
p o d e n d o m e forn ecer u m ou tro m od elo d o m u n d o, ligado, p or
exem plo, à física estática. N est e sen tido, os sistem as teóricos
apar ecem com o in terpretações qu e organ izam a n o ssa percepção
d o m u n d o. São criações do espírito hum ano, assim como as visões
poéticas, artísticas, estéticas etc. Trata-se de con st ru ções h u m an as
em q u e acab ajse en con t r an d o o espírito. E p or isso qu e, em u m
sen t id o b em sign ificativo, pode-se qualificá-las de visões “poét icas”,
lem b r an d o, em grego, o sen t ido d o ver b o poiein: fazer, criar
(Prigogin e & St en ger s, 1980, p .291).
N a m edida em qu e n ão são pu ram en te in dividu ais, essas visões
p od em se m od ificar em d et er m in ad a cultura. P odem ser con sid e­
r ad as com o espécies de ferram en tas in telectuais; m ais tarde falare­
m os de utécnicas” in telectuais (Fourez, 1983). C on sid e r ar a m in h a
cadeira, p o r exem plo, segu n d o o p on t o de vista d a física estática,
é dar-m e u m a represen tação qu e m e perm ite faz er u m certo n ú m er o
de coisas com ela, n este m u n d o social em qu e vivem os e on d e ela
p od e servir. O s m od elos, p or con segu in te, assim com o o s ob jet os,
n ão são subjetivos, m as são instituições sociais ligadas a p r ojetos;
técn icas.

São os nossos modelos necessários


ou contingentes?

O qu e acab am os de expor leva a ou tr as qu est ões. A s visões d o


m u n d o qu e for n ecem os a n ós m esm os são n ecessár ias ou con t in ­
gen tes? E n ecessár io qu e eu organ ize as visões d o m eu escritório
d a m an eir a qu e faço? São os con ceitos d a física estática n ecessar ia­
m en te d ad os? De qu e m od o se ch ega a u m acor d o par a falar d os
fen ôm en os de ilu m in ação d o m eu escritório em ter m os d e eletri­
cidade? Ser ia possível en con t r ar ou tr as r epr esen tações qu e ser iam
68 GÉRARD FOUREZ

equ ivalen tes ou qu e ser iam igualm en te “b o as”? Existem regras


u n iversais? O qu e determ in a qu ais são as “b o as” represen tações?
O co n sen so em t or n o de u m a teoria obedece a regras rígidas ou
flexíveis?
Cer t as represen tações n os parecem com o ab solu tam en t e n eces­
sár ias; assim , se digo qu e, q u an d o eu largo este lápis, ele cai,
parece-n os im possível falar de ou tro m od o. O u t r as r epr esen tações,
pelo con trário, parecem -n os bem m ais su jeitas à d iscu ssão: se
q u iser descrever u m a sin fon ia de M ozart, utilizarei u m a repr esen ­
t ação q u e n ão será d et er m in ada p or regras ab solu tam en t e estritas.
A qu est ão é sab er se as r epresen tações qu e n os parecem n ecessár ias
par ecem assim devido a um longo hábito de nos representarm os certas
coisas de determ in ada m an eira, ou porqu e elas o são de u m a m an eira
absoluta. O u , ain da, a q u est ão é sab er se, em ú ltim a in st ân cia, toda
r epresen tação ach a-se ligada a con ven ções. As an álises p or n ós
desen volvid as cam in h am n o sen t id o d a au sên cia de critério ab so­
lu to par a dizer com o “se deve” represen tar as coisas (r ecor dem os
q u e a palavr a “ab solu t o” sign ifica “sem vín cu lo”, n ão relativo a
qu alq u er ou tra coisa).
O s m od elos e as teorias p od em ser com p ar ad os a m ap as
geográficos. Estes n ão são cópias de u m terren o. São u m a m an eir a
d e p od er se localizar. O con teú d o de u m m ap a é det er m in ado, d a
m esm a for m a qu e o s m od elos, pelo projeto qu e se teve ao fazê-los.
D esse m od o, u m m ap a rodoviár io n ão d á as m esm as in dicações
qu e u m m ap a geológico, e cada u m deles é est r u tu r ado segu n d o
u m pr ojeto diferen te. N ão se pod e falar port an to de n ad a ab solu t o
ou “n eu tr o” n a pr od u ção de u m m apa: fazer-se-á aqu ele qu e parecer
m ais prático ten d o em vista pr ojetos particulares. E u m b om m apa
é u m qu e perm ita qu e eu m e localize, ten d o em vista os pr ojetos
qu e ten h o.
Para ler bem u m m apa, é pr eciso com p r een d er d e qu e m od o
o s sím b olos foram det er m in ad os. Igualm en te, par a com pr een d er
u m m od elo cien tífico, é preciso apreen der com o os con ceitos foram
con st r u íd os. A lém d isso, existe u m a “objet ividad e” d e u m m apa
n o sen t id o de qu e, quan do se sabe utiliz ar, ele perm ite com unicar
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 69

con h ecim en t os a respeito d o terren o. O m esm o ocorre com os


m od elos cien tíficos. E a possib ilid ad e de utilizá-los n o in terior de
u m a com un idade cien tífica que conhece o seu modo de utiliz ação qu e
lh es dá a su a “ob jet ivid ad e”, isto é, a su a p ossib ilid ad e de servir
com o “ob jet o” n essa com u n id ad e h u m an a.

Verificações, falseamentos

D e acor d o com a im agem m ais popu lar izada d a ciên cia,


q u an d o se prod u ziu u m certo n ú m er o de leis ou teorias, deve-se
“verificá-las” p or m eio d a experiên cia. Este term o “verificar” com ­
p ort a algu m as am b igü id ad es.
A pr im eir a qu est ão se liga à utilização d o term o “ver d ad eir o”.
O q u e sign ifica a afirm ação de qu e u m a teoria é “ver d ad eir a”?
Pode-se dizer qu e u m a teoria é “verd adeira”? Exam in ar em os p o s­
teriorm en te essa qu est ão d a “verd ade” da ciên cia; aqu i, n os con ­
t en tar em os em exam in ar o qu e se en ten de p or “verificar” u m a
teoria (ou ain d a p or “testar u m a teor ia”, ou p or “debilitá-la” ou
“falseá-la”).
Q u an d o se p en sa verificar as leis cien tíficas, a idéia qu e
prevalece é a de qu e, p ar t in d o de u m a h ipót ese ou de u m m od elo,
efetuam -se experiên cias par a ver se essa lei é verdadeira. A prim eira
dificu ldade d essa m an eir a de ver é que, in depen den tem en te d o fato
d e qu e o term o “verd adeira” seja m al d efin ido, n ão se está jam ais
segu ro d e qu e u m a experiên cia su p lem en t ar n ão poder ia d ar u m
r esu lt ad o diferen te d a experiên cia an terior. A fin al de con tas, se
faço m il experiên cias verifican do qu e “t od os os corvos são n egr os”,
n ad a im ped e qu e u m d ia eu en con tre u m corvo bran co. A p r o­
p ósit o d as verificações, pode-se repetir o qu e se d isse a respeito d as
p r ovas: são releituras do m u n d o com aju d a d a teoria qu e se
“verifica”; e com a qu al est am os satisfeitos. C on fr o n t ad o s com as
am b igü id ad es de t od a verificação, o s filósofos d a ciên cia m odifica­
r am as su as r epr esen tações d os testes d as leis (ou d as teorias, ou
70 GÉRARD FOUREZ

d o s m od elos - con sid er ar em os aqu i esses t er m os com o equ i­


valen tes).
r O s m od elos - com o a Lei de New ton - são sem p r e con sid er a­
d o s com o h ipotéticos e são u tilizados en quanto “n os” satisfizerem .
M as qu an d o, em det er m in ado m om en t o, eles n ão “n o s” prestarem
o s serviços q u e se esperava deles, n ós os su bst it u ir em os p or ou tros,
se o s en con t r ar m os. O qu e r epresen ta esse “n o s” de qu e falam os
aqu i deve ser precisado. Foi d esse m od o qu e, n o in ício deste século,
os físicos su b st it u ír am a física de N ew ton pela física relativista de
Ein st ein . So b esta ótica, n ão se coloca m ais a q u est ão de sab er se
os m od elos são “ver d ad eir os”, m as in teressa-se sim plesm en t e por
su a eficácia em u m âm b it o d et er m in ad o (para r et om ar u m a frase
de E. M ach , in teressa-se pela econom ia de pensam ento q u e eles irão
n os perm itir. M ach , 1925, p .121). N a m ed id a em qu e eles “n o s”
pr est am o serviço qu e se esper a deles, os m od elos são con ser vad os.
E n ós os ad ot am os a partir d o m om en t o em q u e con sid er am o s
qu e eles p od em “n o s” ser úteis ou sim plesm en te p or qu e n ão tem os
idéias m elh or es de m om en t o. Se estou h abit u ad o a olh ar p ássar os
e d isp o n h o de toda u m a série de teorias a seu r espeito, eu
aplicá-las-ei qu ase au tom aticam en te n a pr im eir a vez qu e vir u m
m orcego. E utilizá-las-ei en q u an t o estiver satisfeito com os resulta­
d os. N o en tan to, se ch ego ao p on t o em qu e as m in h as idéias
relativas aos p ássar os (os m eu s m odelos) se aplicam cada vez m en os
aos m or cegos, serei ob r igad o a criar u m n ovo m od elo ou a
con ser var o an tigo.
A decisão de, em det er m in ad o m om en t o, con ser var ou rejeitar
u m m od elo, n ão provém diretam en te de critérios abst r atos e gerais.
N a prática, aban dona-se um modelo (ou um a lei, ou u m a teoria) por
razões com plexas que n ão são jam ais inteiram ente racion alizáveis.
H á sem p r e u m a d ecisão m ais ou m en os “volu n t ar ista” e n ão
n ecessária.
A esse r espeito, pode-se refletir sobr e a m an eir a pela qu al
algu ém ob serva u m a p essoa qu e abr e o cap ô d e seu car ro par a
verificar o óleo. N a m edida em qu e essa p essoa efetua os gestos
q u e cor r esp on d em ao q u e se esper a, con tin uar-se-á a m an ter essa
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 71

h ipótese: “o fen ôm en o é explicado para algu ém qu e verifica o óleo”.


N o en tan t o, se su r gem gest os in sólit os, pode-se com eçar a p en sar
em ou t r as h ipóteses, ou seja, a se d ar u m ou tro m od elo. Em qu e
m om en t o estar-se-á su ficien tem en te ab alad o par a ab an d on ar a
pr im eir a h ipót ese e dizer qu e se visa a u m a outra? Isto d ep en d er á
t an to d o s con h ecim en t os qu e se tem de u m m ot or de carro com o
d a m an eir a pela qu al se está aten to etc. Esse m om en t o, porém , n ão
p od e ser dedu zido de u m a lógica an terior: ele dep en d e de u m a série
d e “im p on d er áveis” . N o m om en t o em qu e o ob ser vad or vê o s
gest os in sólit os da p essoa, d u as “estratégias” lh e são p ossíveis: seja
decidir ab an d o n ar a h ipót ese d a verificação d o óleo, seja decidir
in trodu zir h ipót eses ad hoc a fim de “salvar” a su a teoria - p or
exem plo, su p o n d o qu e a p essoa verifica o seu óleo, m as t am bém
asso a o n ariz (voltarem os d ep ois a essas d ecisões d e ab an d o n o de
u m m od elo ou de in tr od u ção de h ipót eses ad hoc n as práticas
cien tíficas).
D e acor d o com essa represen tação, as práticas cien tíficas n ão
b u scam tan to verificar as teorias com o, p ar a utilizar o t erm o d o
filósofo Karl P opper (1973), “falseá-las” . En ten de-se p o r isto qu e,
n a prática, o s cien tistas avan çam em su as p esqu isas p r ocu r an d o
d eterm in ar os lim ites d os m od elos utilizados; ten tam m ostr ar com o
o s m od elos são “falso s”, a fim de pod er en tãq substituí-los.

O critério de “falseabilidade*

A ciên cia “m od er n a” se qu er “exper im en tal”. P or este term o,


en ten de-se qu e u m a de su as características é só con sid er ar os
m od elos ou d iscu r sos n a m ed id a em qu e eles têm certos efeitos
p r át ico sj Em ter m os m ais precisos, só se aceitará com o d iscu r so
cien tífico o discurso a respeito do qu al se possa eventualm ente determ i­
n ar u m a situ ação em que o modelo poderia n ão fun cion ar. E o qu e se
ch am a d e critério d e falseabilidade, d et er m in ad o p or P opper. In d o
a con tracorren te de seu s am igos d o Cír cu lo de Vien a, P opper
72 GÉRARD FOUREZ

con sid era qu e “é im possível en con trar u m critério (ou u m con ju n to


d e critérios) qu e perm ita pr ovar a verdade de u m a p r op osição ou
teoria; porém , se n ão se p od e provar qu e u m a p r op osição é
verd adeira, pode-se pr ovar qu e ela é falsa, so b con d ição de qu e se
p o ssa testá-la, colocá-la à prova. Se ela satisfizer a essa con dição, é
u m a teoria cien tífica. Pelo con trário, u m a teoria qu e é capaz de tu do
in terpretar, sem con tradição, e qu e volta a cair sem p r e sobr e os
seu s pés, n ão deve ser t om ad a p or u m a teoria cien tífica” (Lam otte,
1985).
Se, p o r exem plo, d igo q u e a aceleração de u m objet o qu e cai é
con st an t e, trata-se de u m a p r op osição qu e pod er ia se revelar falsa
p or ocasião de u m a experiên cia par a a qu al se utilizassem critérios
p r ecisos; é port an to “falseável”; é en tão u m a p r op osição qu e pode
ser aceita segu n d o o critério acim a. Além d isso, a p r op osição
segu n d o a qu al eu d u r m o por qu e u m a “força dor m itiva” m e faz
d or m ir ser á rejeitada, p ois n ão se vê com o con ceber u m a experiên ­
cia q u e pod er ia d ar u m r esu lt ad o em con seq ü ên cia d o qu al se
d ecid isse ab an d on ar a teoria (com efeito, seja qu al for a cau sa de
m eu so n o, pode-se dizer qu e se trata de u m a força dorm itiva).
O s cien tistas rejeitam port an to os d iscu r sos qu e fu n cion ariam
par a t u d o (com o o qu e preten deria qu e t odos os fen ôm en os físicos
se d evessem à ação de an jos visíveis e in observáveis!). Em ou tr os
t er m os, só se aceitam os d iscu r sos qu e p od em “fazer” u m a diferen ­
ça n a prática; m ais precisam en te, só se aceitam o s d iscu r sos
“falseáveis” (um d iscu r so “falseável” n ão é, é claro, u m d iscu r so
n ecessar iam en t e “falso”, m as u m d iscu r so d o q u al se p od e dizer:
“n ão é au tom aticam en te verdadeiro; isto poder ia se revelar falso;
isto p od e ser t estado e o r esu lt ad o pod er ia n ão ser positivo).

Exemplos de proposições não falseáveis

A p r op osição “ajo assim p or qu e é d o m eu in teresse agir assim ”


p o d e ser com p r een d id a com o u m a pr op osição n ão falseável, n a
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 73

m ed id a em qu e p o sso in ven tar par a m im m ú lt iplos in teresses qu e


farão com qu e esses in teresses sejam sem pre a cau sa d a m in h a
ação. Por exem plo, se n ão existem in teresses fin an ceir os, poder ei
dizer qu e h á u m in teresse político, ou afetivo etc., de m od o qu e se
agirá sem p r e p or in teresse. E possível an alisar qu alqu er com p or t a­
m en to ch am an d o de “in teresse” o qu e o cau sa. A ssim , pode-se
ch egar a u m a situ ação em qu e, o qu e qu er qu e acon teça, a
p r op osição n ão estará n u n ca errada. N ão se está lid an d o en tão com
u m a p r op osição experim en tal, m as com u m a pr op osição “p ad r ão ”
(cadre) q u e se im põe à realidade.
Essas p r op osições p ad r ões jam ais se su jeitam a u m teste
exper im en tal estrito. N o en tan to, p od em ser extrem am en te práti­
cas n a m ed id a em qu e forn ecem u m a m an eira de ab or d ar esses
fen ôm en os.
Em ciên cia, certos con ceitos pod em ser m u ito úteis, m esm o
sen d o n ão-falseáveis (Bin ge, 1983). Por exem plo, a lei da con ser ­
vação d a en ergia fu n cion a em geral ju n t o aos físicos de u m a
m an eir a n ão falseável, n a m ed id a em qu e, p or pr in cípio m et od o­
lógico, os físicos b u scar ão sem pre u m a “for m a” altern ativa à
en ergia, caso u m a for m a com ece a desaparecer. A ssim , se a en ergia
calórica desaparece, buscar-se-á sob qu e form a ela poder ia ter
apar ecid o, p or exem plo, so b for m a de en ergia elétrica. E se, em
d et er m in ad o m om en t o n ão se visualiza bem sob qu e for m a ela
reaparece, colocar-se-á a h ipót ese de u m a n ova for m a de en ergia.
Em biologia, o con ceito de evolução fu n cion a d o m esm o m od o:
pr essu põe-se sem pre qu e u m a espécie viva provém de u m a outra.
E se u m a espécie viva n ão parece ter n en h u m an cestral, ele será
p r essu p ost o. O sim ples fato de qu e n ão se en con t r am an cestrais
de u m a espécie n ão acarretará u m a dú vida em relação ao m od elo
da evolução, m as an tes a h ipótese de qu e deve existir ou ter existido,
em algu m a parte, u m a espécie viva qu e cu m priu esse papel.
Esse s exem plos m ost r am qu e o con ceito de falseabilidad e de
P opper n ão é tão claro q u an t o parece à prim eira vista. À prim eira
vista, d e fato, esse critério de falseabilidade parece dizer qu e, em
ciên cia, só se aceitará p r op osições q u e perm itam det er m in ar u m a
74 GÉRARD FOUREZ

experiên cia em con seqü ên cia d a qu al se dir á seja qu e a h ipótese é


reforçada, seja qu e ela é rejeitada. Este seria o critério de falseabi-
lidade em seu sen t id o estrito. M as a prática cien tífica é m ais
com plexa: n ão som en t e pode-se utilizar “leis” n ão falseáveis, com o
ir em os ver qu e é pr eciso u m a d ecisão volu n tarista par a con clu ir
qu e u m a experiên cia con tradiz u m a lei.

As experiências que decidimos “cruciais”

U m a experiên cia - p or si - n ão falseia u m m od elo, p ois n ão


forn ece o r esu ltado esp er ad o, pode-se sem pre atribu ir esse fr acasso
a pertu rbações de várias or d en s ou a ou tras h ipóteses ad hoc. A ssim ,
se u m d oen te recebe u m d iagn óst ico de “gr ip ad o”, n ão é por qu e
certos sin t om as n ão se en caixam tão facilm en te n o “m od elo”
“gripe” q u e u m m édico ab an d on ar á de im ediato essa h ipótese. O u ,
se a aceleração de u m objeto, con trariam en te ao m od elo, n ão é
con stan te, p o sso atribu ir esse fen ôm en o, p or exem plo, à fricção
d o ar. O fracasso d o m od elo dian te d a experiên cia n ão im plica
au tom aticam en te a su a rejeição.
D ecid ir qu e u m a experiên cia é crucial (cf. T ou lm in , 1957) é
p or t an to in trodu zir u m elem en to volu n tarista. En ten de-se p or isto
qu e se está d ecid ido, caso a experiên cia n ão dê os r esu lt ados
esp er ad os, a ab an d on ar o m od elo qu e se exam in ava.
Essa decisão de con sid er ar u m a experiên cia com o crucial é
essen cial ao p r ocesso cien tífico, m as n ão se deve de modo algum a
raciocínios científicos n o sen t ido u su al ou restrito d o term o. D e fato,
n o m om en t o em qu e u m m od elo fu n cion a m al, pode-se sem pre
“salvá-lo”, so b con d ição de in trodu zir u m certo n ú m er o de h ip ó­
t eses ad eq u ad as. Essas h ipót eses p od er ão ser ad hoc ou “sistem áti­
cas”. A s h ipót eses ad hoc são h ipót eses qu e se fazem n o âm b it o d a
teoria par a explicar por qu e u m a experiên cia n ão r esu ltou n o qu e
se esp er ava (se, p or exem plo, u m plan et a n ão segu e a trajetória
esp er ad a de acor d o com as leis d a relatividade, pode-se colocar
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 75

com o h ipót eses ad hoc qu e u m ou tro astr o pr ovocou o desvio da


trajetória; lem b r em os t am b ém a h ipótese d e qu e a p essoa qu e
verifica o óleo d e seu carro p od e estar se assoan d o!).
P róxim as às h ipót eses ad hoc, r ecor dem os as h ipót eses e teorias
de in terpretação qu e m en cion am os n o capítulo sobr e a observação.
U m a experiên cia só forn ece resu lt ados m edian te in terpretações
teóricas. A ssim , a experiên cia u tilizan do u m apar elh o, com o u m
m icr oscóp io ou u m con tad or de partícu las, só p od e fu n cion ar
d evid o à existên cia d e u m a teoria relativa à in terpretação d os
r esu lt ad os. O m esm o ocorre q u an d o utilizo os m eu s sen t id os: p or
exem plo, se exper im en to u m a pim en t a verm elh a e decreto q u e se
trata de açú car, trata-se d e u m a in terpretação teórica discutível. O
m esm o se aplica a u m a teoria qu e m e perm ite dizer qu e m edi u m
n êu tr on . Se a experiên cia fu n cion a de m an eir a in esper ad a, é
sem p re possível, a fim de salvar as teorias testadas, acu sar as
h ip ót eses relativas à in terpretação d os r esu lt ad os exper im en tais.
U m a h ipót ese sistem ática se liga a u m d o s gr an des p r in cípios
de qu e eu falava acim a: p or exem plo, o pr in cípio de con ser vação
d a en er gia é u m a h ipót ese sistem ática. Se, em d et er m in ad a situ a­
ção, u m a en ergia parece realm en te ter “d esap ar ecid o”, colocarei a
h ipótese de qu e ela deve ter aparecido sob ou tra “for m a”. O m esm o
se d á a r espeito d a h ipót ese sistem ática da evolução. Em econ om ia,
a lei d a oferta e d a pr ocu r a tem a m esm a característica. E u m
con ceito n ão verificável n o qu al se faz en trar de m an eira sistem ática
toda u m a série de ob servações econ ôm icas: se algu m a coisa n ão se
en caixa n a lei da oferta e d a procu ra, buscar-se-á in ven tar ou t r as
for m as de ofertas e de procu ra; p or exem plo, dir-se-á qu e existe
tam b ém u m a pr ocu r a d e “estatu to social” etc.
A lém d isso, p od e ser o caso qu e, em det er m in ad as situ ações,
u m p esq u isad o r ou u m gr u po de pesqu isad or es decidem fazer u m a
experiên cia “cru cial”. E u m a experiên cia estru tu rada em u m a teoria
d et er m in ad a, e de tal m od o qu e se con sid er a qu e, se certos
resu lt ad os n ão su rgirem , a teoria deve ser ab an d on ad a (n ot em os
qu e se pod er ia dizer “a teoria deve ser con sid er ad a falsa” , m as o
qu e q u er dizer “falso”?). Sem recorrer a exem plos cien tíficos
76 GÉRARD FOUREZ

elab or ad os, b ast a ver a experiên cia “cru cial” qu e fazem os com
freqü ên cia par a sab er se d et er m in ado pr od u t o é sal ou açúcar:
coloca-se u m pou co sobr e o ded o, e se o gost o n ão é o d o sal ou
d o açú car, ab an d on a-se a h ipótese cor r espon d en t e. Ist o só é
possível p or q u e se t rabalh ou den t ro de u m âm b it o teórico preciso,
q u e su p õ e qu e, se o p r od u t o qu e tem essa form a bran ca n ão tem
u m gost o d o qu al t en h o a m em ória, direi qu e n ão é sal (ou açúcar).
M as, par a qu e esse tipo de r aciocín io fu n cion e, é pr eciso ter
“d ecid id o” isso de an tem ão. E preciso, por exem plo, ter “d ecid id o”
qu e é im possível qu e u m pr od u t o qu e n ão m e dê u m sab or d o
qu al eu m e recordo p o ssa ser sal (assin alem os aqu i a diferen ça
en tre as experiên cias “posit ivas” e “n egativas” , isto é, aqu elas qu e
farão com qu e se “aceite” ou “rejeite” u m m odelo. Existe com efeito
u m a diferen ça en tre a experiên cia qu e m e con du zir á à h ipótese
segu n d o a qu al esse p r od u t o b r an co é açú car e aqu ela qu e m e fará
rejeitar a h ipótese segu n d o a qu al esse p r od u t o b r an co é sal).
E som en t e se se decidiu aceitar u m q u ad r o teórico pr eciso qu e
u m a experiên cia p od e d ar u m a r esp ost a em u m sen t id o ou em
ou t r o. O q u ad r o teórico deter m in ar á t am b ém os elem en t os qu e
reterão com o “pertin en tes” ou “n ão-pertin en tes”. Por exem plo, é
u m a leitura teórica qu e fará com qu e o m édico qu e está test an d o
o d iagn óst ico “gr ip e” con sid ere com o n ão-pertin en te a observação
de u m san gr am en t o proven ien te de u m corte feito p or u m a faca.
E t am b ém u m esqu em a teórico qu e fará com qu e ele con sidere
com o n ão-pertin en te par a esse d iagn óst ico a úlcera estom acal d a
qu al o pacien te sofria h á m uito. Porém , u m dia p od e ser qu e u m
n ovo esq u em a teórico - u m n ovo d iagn óst ico - ven h a a r eu n ir os
sin t om as “gr ip ais” e os d a “úlcera n o est ôm ago”...

Modificações das linhas de pesquisas

Q u an d o se ab an d on a u m a h ipótese, n ão se ab an d on a jam ais


u m a p r op osição isolad a, m as t oda u m a lin h a de p esqu isas ou de
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 77

in terpretações d o m u n d o; é u m pou co com o o ab an d on o d e u m


d iagn óst ico. A ssim , q u an d o observo u m an im al voan d o n o cre­
pú scu lo, levan tarei pr im eir am en te a h ipótese de qu e se trata de u m
p ássar o. D ep ois, se o vejo voar de m an eir a irregular, a m in h a
pr im eir a ten d ên cia ser á con tin u ar dizen do qu e é u m p ássar o qu e
tem esse tipo de vôo. P orém , pod e ser qu e, em d et er m in ad o
m om en t o, eu ab an d on e in teiram en te essa “p ist a”, m u d an d o o m eu
q u ad r o in terpretativo e coloqu e a h ipótese de qu e se trata de u m
m orcego. O u , se n ão con h eço m or cegos, poderei levan tar a h ip ó­
tese d e u m p ássar o de t ipo diferen te, a p on t o talvez de n ão qu er er
ch am á-lo m ais de p ássar o.

Em ciên cia, agim os m ais ou m en os d o m esm o m od o. Existem


lin h as d e p esqu isas, pistas, p r ogr am as q u e parecem p r om issor es.
D ep ois, p od e ocorr er qu e, em u m d ad o m om en t o, p or u m a razão
ou p o r ou tra, ou m ais freqü en tem en te p or razões m ú ltiplas,
ab an d on e-se essa lin h a. Foi d esse m od o qu e, n o sécu lo XIX,
ab an d on ou - se a lin h a segu n d o a qu al o calor era r epr esen t ado
com o u m fluido. A s razões para se ab an d on ar sem elh an te descrição
são com p lexas ao extrem o. Ter ia sid o possível con st ru ir m od elos
in terpretativos b em eficazes, tão eficazes talvez qu an t o os m od elos
atu ais, con ser van d o a h ipót ese d o flu ido (aliás, a teoria d o s fon on s
(phonons) cor r esp on d e a essa estratégia). M as h á m om en t os em
qu e, só D eu s sab e p or qu e, u m certo m od elo in terpretativo n ão
parece in teiram en te satisfatório; en tão, se u m ou tro estiver d isp o ­
n ível, ele é ad ot ad o (n este parágrafo, utilizei a palavra “eficaz”; isto
levan ta a segu in te qu est ão: em relação a que?). A lgu n s au tores
(Sten gers, 1987) an alisar am o s est r an h os d est in os de con ceitos
cien tíficos “n ô m ad e s” qu e p assam de u m a ciên cia a ou tra, com
m aior ou m en or “su cesso”.

N est a perspectiva, seria preciso con sid er ar com o u m p ou co


in gên u a a idéia segu n d o a qu al o s cien tistas se p r op õem u m a lei
ou m od elo, p ois realizam experiên cias qu e os levam a aceitar ou
rejeitar o m od elo. Em ter m os práticos, parece qu e os cien tistas
escolh em u m a d et er m in ad a direção par a ab or d ar u m a qu est ão.
78 GÉRARD FOUREZ

Eles p er segu ir ão essa direção p or tan to t em po quan to elas lhes


parecer prom issora (u m a qu est ão a se colocar “p r om issor a de qu e”?).
Som en t e q u an d o ela lh es parecer pou co “in teressan te” é qu e a
rejeitarão. M as esse “pouco interessante n ão pode ser reduzido a um a
pu ra racion alidade cien tífica” n o sen tido restrito ou ideologizado do
term o. E sem p re p o r m eio de u m ju ízo prático qu e se ab an d on a
u m a lin h a de p esqu isa. N ão se p od e n u n ca, p o r m er a ded u ção,
ch egar a dizer qu e é pr eciso ab an d on ar tal ou tal m od elo, ou tal
ou tal con ceito (Sten gers, 1987).

Essas práticas cien tíficas pod em ser esclarecidas t am bém pela


com p ar ação com as técn icas m ateriais (p en sem os, p o r exem plo,
n as técn icas d os m eios de tran sporte). Estas su r gem com o u m a
m an eir a d e ab or d ar u m certo n ú m er o de p r ob lem as, u m certo
n ú m er o de pr ojetos h u m an os. E en qu an t o elas forem satisfatór ias,
con tin uar-se-á a utilizá-las. Existem verd adeiras lin h as de p esqu isa
par a cad a u m a d as técn icas. Por exem plo, n o d om ín io em qu est ão,
existe a lin h a de m eios d e t ran spor te m ar ítim os, aéreos, terrestres
etc. Exist em t am b ém as lin h as de técn icas par a o m ot or a explosão,
ou par a o m ot or elétrico etc. O s m otivos qu e levam a ad ot ar ou a
rejeitar u m a d et er m in ada técn ica são com plexos e n ão obed ecem
a u m a lógica qu e d eterm in aria a priori em qu e elas são ou n ão
eficazes. Por exem plo, n ão é t ão fácil ver p or qu e o pr ogr am a de
p esqu isas sob r e o m ot or elétrico, par a os carros, foi ab an d on ad o
n o fin al d o sécu lo p assad o . Fatores econ ôm icos, in ter p essoais,
políticos, afetivos, cu ltu rais etc. cruzam -se com aqu eles qu e d e­
n om in am os pu ram en te técn icos (por qu e, aliás, os ch am am os
de “pu r am en te t écn icos”?). O s m otivos d a rejeição de u m a pista
n ão são jam ais u n icam en te “r acion ais”; ou , se os ch am am os assim ,
é de u m a m an eira n ão-falseável (é com efeito sem p r e possível
en con t r ar u m a b oa “razão” par a dizer p or qu e a ab an d on am os,
seja essa razão de or d em econ ôm ica, afetiva, cultural etc.).
M as a ú n ica coisa qu e parece clara é qu e n ão existem razões
“cien tíficas” , n o sen tido u su al d a palavra, qu e p o d em deter m in ar
de m an eira clara se h á ou n ão m otivo para se firm ar em u m a direção
qu alqu er .
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 79

A lógica d a descoberta tecn ológica surge en tão com o u m a lógica


da su bstitu ição, ligada a razões q u e é m ais correto d en om in ar de
a posteriori d o qu e o con trário.

O razoável não é puramente racional

O fato de qu e n ão é p or m eio de dedu ções lógicas qu e se decide


aceitar ou recu sar u m a teoria leva a devolver ao sentim ento, n o
sen t id o forte d a palavra, u m lu gar qu e lh e h avia sid o retirado n a
prática cien tífica. O qu e faz com qu e m u d em os de p on t o de vista
é qu e, em d et er m in ad o m om en t o, con sid er am os - de m an eir a
razoável, m as n ão p or pu r a razão - qu e u m a tal in terpretação
ap r esen t a in con ven ien tes dem ais, ou qu e u m a ou tra é atraen te
dem ais. A cada vez, a palavra “d em ais” in dica u m sen tim en to. E se
p r et en d o qu e é devido a u m a experiên cia crucial qu e, fin alm en te,
m u d am o s d e op in iãq, essa experiên cia só é crucial p or qu e se
decidiu assim . N ovam en t e aí aparece n o p r ocesso cien tífico o
aspecto “volu n tar ista” n ot ad o p or P opper. N o en tan to, n ão se trata
de u m volu n t ar ism o arbitrário, m as de u m a d ecisão “razoável”,
con seq ü ên cia de u m a b u sca de adaptação à existên cia (Tou lm in ,
1972). N ão são m ais escolh as in dividu ais: n a b ase d essas d ecisões
en con tram -se t od as as in terações sociais qu e fazem com qu e certas
p osições sejam “in su por t áveis”, en qu an t o ou t r as parecem se im ­
por. A b u sca de “r acion alid ad e” cien tífica pod e ser an alisad a
tam b ém com o u m fen ôm en o de sociedade, u m a luta ou u m a
com petição (Latour, 1984, Sten ger s, 1987).
En fim , as n o ssas an álises críticas m ostr am qu e o pr oced im en to
cien tífico se parece m ais com as ou tr as d ecisões d a existên cia d o
q u e com a im agem etérea, pu r am en te ligada ao m u n d o d as idéias,
q u e se tem n or m alm en t e. Existem m ú lt iplos fatores qu e p od em
levar u m gr u po de cien tistas, ou u m det er m in ad o cien tista, a
ab an d o n ar certas teorias: esses fatores são glob ais e p ossu em
com p on en t es econ ôm icos, técn icos, afetivos, políticos em sen tido
80 GÉRARD FOUREZ

am p lo (e m u itas vezes - p en sem os em Lyssen ko - em sen tido


restrito; cf. Kotek, 1986).

A diversidade das metodologias científicas

U m a vez con st atada a relatividade d os m ét od os pelos q u ais os


cien tistas n egociam as su as provas, deve-se in sistir sobr e a coerên cia
qu e elas p od em apr esen tar . D ian t e de qu est ões, os cien tistas
u tilizam m ét od os e m an eir as diversas de apreen dê-las.
A ssim , pode-se ver certos laboratór ios dar m ais im por tân cia ao
qu e se ch am a d e método an alítico. Por alto, este m ét od o con sist e
em se d ar u m m od elo qu e m ostre o “real” com o construído
considerando-se seus elementos de base (Descartes, Discurso do método,
1637). Para en con tr ar u m m od elo ad equ ad o, os p esqu isad or es
ten tam deter m in ar t od os o s com p on en t es de u m sistem a par a
recon struí-lo. Costu m a-se op or esse m étodo ao “m ét od o sistêm i­
co”. q u e se in teressa m en os pela r econ stru ção de u m sistem a com
b ase em seu s com p on en t es, m as privilegia a com p r een são d o
sistem a com o u m “t od o”. Segu n d o esse m étodo, con sidera-se com o
p r im or d iais as in terações en tre os com p on en t es, a p on t o de
con sid er ar o sistem a com o u m a caixa preta sobr e a qu al se vai
avaliar o efeito d o s diferen tes inputs sobr e os outputs (para an álises
pr ecisas d os pr oced im en t os an alítico e sistêm ico, ver Th ill e Feltz,
1986).
Em m atem ática, pode-se ver d iver sas m an eir as de t rabalh ar
par a se ch egar ao s r esu lt ad os. Algu n s in sist ir ão sobr e u m a h eu r ís­
tica p ar t in d o d os casos particu lares, ou tr os, sobr e a gen er alidad e
d as h ip ót eses etc.
Deve-se evitar port an to acreditar qu e a prática con creta d os
cien tistas segu e exatam en te o qu e eles dizem qu e ela faz. N o s
ú lt im os an os, vários est u d os epistem ológicos (Th ill, 1983; B.
Latou r, 1984; W oolgar , 1977; Feltz, 1986) in teressaram -se em
exam in ar de perto de qu e m od o, con cretam en te, fu n cion am os
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 81

laboratór ios, a fim de p od er descrever, p or m eio de u m a an álise


epistem o-socioan t ropológica a m an eira pela qu al as p esqu isas
d ecorr em , tan to n o qu e diz respeito aos seu s m étod os h eu r ísticos
qu an t o em seu fu n cion am en t o in stitucion al e pelas m an eir as com o
elas se legitim am extern am en te.

Existe a “melhor” tecnologia?

Pode-se con sid er ar a ciên cia com o u m a tecn ologia in telectual


d est in ad a a forn ecer in terpretações d o m u n d o qu e cor r esp on d am
a n o sso s pr ojetos. C o m o dizia Er n st M ach , algu n s vão m ais lon ge
em d et er m in ad a direção e m en os lon ge em u m a ou tr a (M ach ,
1925, p .8 1 ). O m esm o vale para as técn icas m ateriais: p or exem plo,
par a o s t r an spor tes, algu n s ser ão m ais r ápid os, m as m en os con for ­
táveis; ou t r os, m ais poéticos, ou m ais econ ôm icos, ou m ais sociais,
e assim p o r dian te.
U m a im por tan t e diferen ça cultural qu e pod er ia existir en tre as
técn icas m ateriais e as técn icas in telectuais é qu e, q u an d o se trata
d e técn icas m ateriais, n ão se preten de jam ais p o ssu ir en fim a
m elh or , a m ais avan çada. M ais d o qu e isso, n ão parece q u e se
raciocin e com o se h ou vesse u m a tecn ologia m elh or. Pelo con trário,
de m an eir a geral, con sidera-se qu e, par a cada u m a d as técn icas,
im por ta perceber a relatividade d o s critérios qu e se q u er aplicar
p ar a avaliá-la. Por exem plo, pou cas p essoas im agin am qu e h aja u m
sen t id o em preten der b u scar “o m elh or ” m eio de tran spor te.
Pede-se q u e se especifiqu em os critérios q u e se qu er utilizar par a
avaliar u m det er m in ado m eio de tran sporte. Já n o caso das técn icas
in telectuais, o con ceito (a ideologia) d e “verd ade cien tífica” parece
fu n cion ar com o se h ou vesse, em u m m u n d o d as idéias, talvez, m as
em t od o caso de m an eir a absolu ta, “o m elh or ” m od elo par a
repr esen t ar o m u n d o. Esse m od elo seria “a ver d ad e”.
Q u an d o se trata de técn icas m ateriais, so m o s ten tad os, em
n o ssa cultura, a n os referirm os sem p re a n o sso s pr ojetos sociais e
82 GÉRARD FOUREZ

a n o sso s d esejos in dividu ais par a avaliá-los; p ar a as técn icas


in telectuais, u m efeito ideológico parece n os im ped ir de fazê-lo (e
é esse efeito qu e se en con tr a n a b ase d as ideologias tecn ocráticas).
A respeito d as técn icas in telectuais de r epresen tação d o m u n d o, a
n o ssa cu ltura parece p r essu p o r a existên cia “d o m elh or m od elo”,
qu e ser á con sid er ad o com o a verdade. E en q u an t o n ão se ch egar
a e ssa verd ad e ú ltim a, dir-se-á qu e só se p o ssu i u m m od elo
aproxim ativo.
D o m esm o m od o, q u an d o se trata de falar d a resolu ção de
p r ob lem as tecn ológicos, ad ot am os u m a atitude diferen te d a qu e
ad ot am os q u an d o se trata de pr oblem as “cien tíficos”. Por exem plo,
se for o caso d e resolver o pr ob lem a da arm azen agem d os m ateriais
radioativos, n in gu ém pen sar á tê-lo resolvido de m od o absolu to.
Dir-se-á, pelo con trário, se for alguém u m pou co h on est o pelo
m en os, qu e se en con tr ou u m a solu ção qu e cor r espon d e a u m certo
n ú m er o de critérios qu e se sabe relativos (critérios de segu ran ça,
de r en tabilidad e econ ôm ica etc.). Aliás, est r an h am en t e, os cien tis­
tas parecem às vezes qu er er resolver certos p r ob lem as de m od o
ab solu to. Algu n s dirão, p or exem plo, qu e o pr ob lem a d a atra­
ção d o s cor p os ou o d a h ereditariedade estão r esolvidos. Escolh o
de p r op ósit o esses d ois exem plos qu e con du zem o pen sam en t o em
dir eções diferen tes: o p r ob lem a da atração d o s cor pos foi resolvido
p or New ton , e d ep ois os “p r ogr essos” cien tíficos in dicar am qu e
era pr eciso delim itar e colocar critérios m ais pr ecisos par a se p od er
falar em r esolu ção n esse caso; pelo con trário, q u an d o se trata de
p r ob lem as de “h ereditariedade”, existem b iólogos q u e en ten dem
qu e se p od e h oje con sid er ar esses p r ob lem as com o resolvidos de
m od o ab solu t o. Sten ger s (1987) e ou t r os an alisar am com o certos
con ceitos p od em ser “en d u r ecid os” a pon t o de servir d e referên cia
a p r ob lem as práticos e p od er assim con siderá-los com o ab solu t a­
m en te r esolvidos!
C ad a vez qu e, em ciên cia, se fala de u m problem a “resolvido”,
seria p r eciso sem dú vida com pr een d er essa “r esolu ção” n o m esm o
sen t id o d o qu e q u an d o falam os d as técn icas m ateriais. Pode-se
dizer, p o r exem plo, qu e se “r esolveu ” o pr ob lem a c!a con st ru ção
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 83

d e u m a pon te de m ais de u m qu ilôm et ro de com pr im en t o. Esse


p r ob lem a n ão tin h a solu ção h á algu n s sécu los. A qu est ão qu e se
coloca é p o r q u ais razões culturais n in gu ém im agin a qu e ten h a
e n con tr ad o a ú ltim a palavra em tecn ologia, ou m esm o qu e h aja
u m a tecn ologia m ais avan çada para con stru ir u m a pon t e desse tipo,
ao p asso q u e m u it os cien tistas con sid er am qu e existe u m m od elo
in telectual m ais perfeito par a “resolver o pr ob lem a d a h ereditarie­
d ad e ” (seria in teressan te, aliás, pergun tar-se p or qu e, d ois sécu los
atrás, os “cien tistas” d a época t in h am u m a im p r essão m en os n ítida
d e estar p r od u zin d o verd ades ú ltim as d o qu e agora).
A com p ar ação com as técn icas m ateriais p od er á fazer in tervir
t am b ém o con ceito d e “conhecim entos ap r o p r i ad o sSabe-se qu e se
ch am a de “tecn ologia ap r o p r iad a” u m a tecn ologia qu e se ad apta
par ticu lar m en te bem a certos p r ob lem as, em u m am bien te físico e
_social det er m in ado. A ssim , u m m ot or sim p les e reparável p od e ser
m ais ap r op r iad o d o qu e u m m ot or m ais poten te m as qu e, em
d et er m in ad o país, n ão poder ia ser con ser t ad o p or falta de peças;
ou d o q u e u m tipo de m ot or qu e d ep en d er ia de u m país estr an gei­
ro. D o m esm o m od o, p od em existir m od elos teór icos m ais ap r o ­
p r iad os d o qu e ou t r os par a u m det er m in ado projeto. Por exem plo,
u m m ét od o de resolu ção de equ ação pod er á ser m ais ou m en os
ap r op r iad o se se trata de com pr een d er o fu n cion am en t o de u m
m artelo par a fazer u m bu raco, ou outra cóisa qu alqu er . Repitam os:
“A verd adeira relação qu e existe en tre diferen tes teorias é de or d em
h istórica. U m a con du z m ais lon ge em u m a or d em de idéias, m as
u m a ou tr a con du zir á m ais adian te n o qu e diz respeito a ou tras
q u est ões.” (M ach , 1925, p .81)
E n o m esm o sen t id o qu e u m a n oção com o “a fren te de batalh a
(fron t) d o s con h ecim en t os” p od e ad qu ir ir u m a pr ecisão m aior.
M u itas vezes, a p esqu isa cien tífica con sid er a qu e u m a p esq u isa é
or igin al q u an d o ela pr opicia avan ços em u m pr ob lem a tal com o
d efin id o pela com u n id ad e cien tífica. N o en tan to, existem con h e­
cim en tos qu e p od em ser igu alm en te úteis, m as qu e ser ão m en os
apr eciad os. N in gu ém , por exem plo, receberá u m p r êm io N ob el de
m ed icin a p or ter feito com qu e doen tes d e u m p aís em d esen vol­
84 GÉRARD FOUREZ

vim en t o aceitassem t om ar u m a m edicação sim ples (com o a reidra-


tação or al p ar a a diarréia d o s bebês). Esses títu los h on or íficos são
r eser vad os a ou t r os est u d os, ligad os à bacteriologia, à im u n ologia
etc. Co n t u d o , q u alqu er u m q u e con siga en con tr ar u m m étodo
d aqu ele tipo prod u zirá u m con h ecim en to n ovo, e é possível qu e
esse con h ecim en t o seja b em m ais “útil” aos pacien tes d o qu e
aqu eles qu e forem p r em iad os.
Poder-se-ia pergu n tar, en tão, se é ad equ ad o d eixar u n icam en te
aos especialistas d et er m in ar q u ais são os con h ecim en t os origin ais
e o s p r ob lem as qu e estão n o front d o s con h ecim en t os. Foi p o r este
m otivo q u e Prigogin e &. Sten ger s p r op u ser am a realização de u m
“cru zam en t o” d o s diver sos t ipos de con h ecim en to: os d os m ari­
n h eir os, d o s cam p on eses, d o s poetas, d o s cien tistas etc. (Prigogin e
&. St en ger s, 1980; cf. t am bém Fourez, 1979a).

Um a racionalidade não absoluta

A s con sid er ações acim a n os levam a con ceber qu e, n a prática


cien tífica, o p on t o cen tral n ão é o d a aceitabilidade d as p r op osições
cien tíficas de u m a m an eir a ab solu ta. D e fato, q u an d o n os p er gu n ­
t am os se u m a p r op osição cien tífica é aceitável, n ós n os referim os
sem p r e a u m a série de critérios práticos. D esse m od o, u m a teoria
qu e perm itirá qu e se com pr een d a m elh or com o fu n cion a u m lazer,
ou a trajetória d e u m plan eta, será con sid er ad a com o aceitável.
N esse sen t id o, com pr een d er u m a pr op osição cien tífica n ão é
alcan çar u m a espécie de verdade etern a, m as é sab er servir-se de
u m m od elo de m an eira con creta, em ligação com u m certo n ú m er o
d e pr ojetos. E assim qu e T ou lm in se situ a em relação a Popper:
“as qu est ões de P opper se situ am em u m a pr oblem át ica de aceita­
bilidade de proposições, m ais d o qu e em u m a aplicabilidade de
conceitos ’ (Tou lm in , 1972, p .480).
Com p r een d er , p o r exem plo, o qu e é a evolução é sab er fazer
fu n cion ar esse con ceito n o âm b it o d a biologia. D o m esm o m od o,
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 85

com pr een d er o qu e é u m a célula é ser capaz de utilizar esse con ceito


par a se repr esen tar u m certo n ú m er o de fen ôm en os b iológicos
(n ot em os qu e a p ossib ilid ad e de utilizar o con ceito de m an eir a
prática é n ecessár ia t an to par a qu e ele p o ssa trazer u m a con tr ibu i­
ção com o par a qu e ele seja falseável; e, pelo con trário, u m a
p r op osição com o “u m a força dorm itiva m e faz d o r m ir ” é inutilizá-
vel praticam en te; precisaria ain d a se refletir sobr e o sen t id o d a
palavra “pr aticam en te”).
Ist o n os leva a recon h ecer qu e o t rabalh o cien tífico n ão é de
u m a “pu reza” racion al tal com o se preten de m u itas vezes. Para
con sid er ar u m r esu lt ado cien tífico com o aceito e aceitável, os
cien tistas p õem em jogo t od a u m a série d e critérios qu e se p od e
m ais facilm en te deter m in ar a posteriori d o qu e a priori. Se u m
r esu lt ad o vem d o laboratór io de u m P rêm io N ob el, p or exem plo,
h á m ais ch an ces de qu e ele seja aceito d o q u e se vier d e u m
laboratór io m en os con h ecid o. Já h á algu m as décad as, a sociologia
d a ciên cia tem exam in ad o, n o detalh e, com o se realizavam as
n egociações con cretas qu e con du ziam a com u n id ad e cien tífica a
aceitar esta ou aqu ela teoria. N e ssas n egociações en tr am elem en tos
de várias or d en s, d esd e relações de força até con sid er ações de
or d em fin an ceira, p assan d o por am bições de carreira, p r essu p ost os
filosóficos, políticos etc. (cf. Sten gers, 1987). A ssim , q u an d o se
exam in a a con trovérsia en tre Pasteur e Pouget a respeito d a
“geração esp on t ân ea”, está-se lon ge de u m debate qu e se situ aria
p u r a e sim p lesm en t e n o p lan o d a “racion alid ade u n icam en t e
cien tífica” (Latou r, 1984).
A lém d isso, essa “r acion alidade cien tífica” é u m con ceito
relativam en te ab st r ato qu e, em geral, apen as reproduz a h ist ór ia d a
ciên cia vista p elos ven ced or es. Q u an d o u m a teoria cien tífica é
fin alm en te aceita, tem-se a ten dên cia a dizer q u e ela é e qu e ela
sem p r e foi racion al. N o en tan to, n o con creto d a h istória, en tr a em
jogo t oda u m a série de elem en tos qu e, pelo m en os em n ossa época,
n u n ca for am con sid er ad os cien tíficos. N a ar gu m en t ação de New-
ton , p o r exem plo, h avia tan to raciocín ios filosóficos, teológicos
q u an t o r aciocín ios “cien tíficos” (em bora a d istin ção en tre esses
86 GÉRARD FOUREZ

vár ios t ip os de raciocín ios seja feita post er ior m en te p or n ós, ao


p asso qu e N ew ton pen sava de m an eir a global, m ist u r an d o o qu e
n ós ch am am os de física e teologia). Aliás, u m tipo d e raciocín io
qu e con sid er am os “racion al” em d eter m in ada época pode, m ais
tarde, ser con sid er ad o com o n ão sen d o (Bloor , 1976).
O con ju n t o d essas con sid erações in dica qu e, m u it as vezes, o
d iscu r so d a racion alid ade cien tífica arrisca-se a fazer esqu ecer qu e,
com o n otava W ittgen stein , n ão saím os jam ais d a lin gu agem coti­
d ian a, e q u e “n ão d o m in am o s com o olh ar o u so de n ossas
p alavr as” (W ittgen stein , 1976, § 122, p. 49c [cf. trad. brasileira]).
A racion alid ad e cien tífica tem a ver, em su m a, n ão com u m a lógica
absolu ta, m as com a arte d o cotidian o: “som os su bm et idos, em bor a
n ão iden tificados, à lin gu agem com u m . C o m o n a n au d o s in sen ­
sat os, em b ar cam os sem p o ssib ilid ad e de sobr evôo ou totalização.
E a ‘p r osa d o m u n d o ’ de qu e falava Merleau-Pon ty. Ela en glob a
t od o d iscu r so, m esm o se as experiên cias h u m an as n ão se reduzem
ao qu e ela pod e exprim ir. A s cien tificidades perm item -se esquecê-la
par a se con st it u ir ...” (Cer teau , 1980, p. 48).

A lógica das descobertas científicas

O per cu rso p or n ós descrito perm ite con statar a diferen ça en tre


u m a visão positivista d a ciên cia e a lógica d as descober tas cien tíficas
tal com o p r op ost a por Popper. Para os positivistas, a ciên cia decorre
praticam en te em lin h a direta basean do-se em ob servações. Ela
b u sca a verd ad e cien tífica. O im portan te em ciên cia é ver se as leis
e teor ias são aceitáveis (P opper, 1973; Tou lm in , 1972).
N a lógica p op per ian a, o qu e ocorre é bem diferen te. A s
repr esen t ações cien tíficas decorr em de n o ssas repr esen t ações m íti­
cas an terior es. A teoria e a lin gu agem est ão sem p r e p r esen t es an tes
d e n o ssas observações., O t rabalh o cien tífico será u m t r abalh o de
im agin ação, de in ven ção, p or m eio d o qu al a com u n id ad e cien tífica
su b st it u ir á certas r epr esen tações p or ou t r as, con sid er ad as m ais
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 87

ad eq u ad as d e acor d o com os n o sso s pr ojetos. O qu e faz com qu e


o s ser es h u m an os p en sem é o sen t im en t o de qu e eles n ão estão
ain d a perfeitam en te à von t ad e n o m u n d o, é a carên cia (m anque).
A s teor ias se su cedem em u m a h istór ia h u m an a; elas são feitas
p elos h u m an os e par a os h u m an os (a respeito d e P opper, cf.
M alh erb e, 1976).
A m esm a lógica p od e, aliás, ser utilizada tan to pelas ciên cias
n atu r ais q u an t o pelas ciên cias h u m an as. Em am b o s o s casos,
trata-se de pr od u zir u m a visão d o m u n d o qu e n os perm ita dizer o
qu e qu er em os dizer e agir da m an eir a qu e qu er em os. Porém , on d e
o p osit ivista dizia: “O m u n d o é assim ”, as tradições p op p er ian as
t en d er ão a dizer sim plesm en t e: “N est a situ ação, parece-n os m ais
in teressan te r epresen tar o m u n d o desta m an eir a”. N ão se cai n o
relativism o, m as torn a-se possível perceber qu e, em n o ssa h ist ór ia
h u m an a, h á lu gar par a u m a variedade de verd ades, em vez de u m a
só, t ão facilm en te totalitária n a m edida em qu e se qu er im pô-la a
t od os e em q u alqu er circu n stân cia.
N o capítu lo d ed icad o à observação, pôde-se ver qu e este n ão
era o p r ocesso p assivo descr ito pela ideologia d om in an t e; revalori­
zou-se o su jeito e seu s projetos. Q u an d o se trata d as m an eir as de
escolh er ou de testar as leis, a ideologia d om in an t e se refere a u m a
r acion alid ad e u n iversal e clara. A s an álises p r op ost as in dicam qu e,
fin alm en te, é preciso, t am bém n esse cam po, reportar-se a decisões
h u m an as, ligad as a h ist ór ias h u m an as. O s r aciocín ios cien tíficos
aparecem com o ligados de m an eira in exorável a h istórias h u m an as.
Sã o d esm istificad os n a m ed id a em qu e su r gem par a m u itos com o
or igin ad os de u m a lógica sobre-h u m an a, proven ien tes d o m u n d o
“p u r o ” d o s raciocín ios e d as idéias.
En fim , deve-se salien tar ain d a u m a vez q u e o fato de acreditar
q u e a ciên cia seja u m a tecn ologia in telectual feita pelos h u m an os,
p ar a o s h u m an os e t en d o em vista os seu s p r ojetos n ão d im in u i
em n ad a o seu valor. Afirm a-se aqu i ap en as qu e n ão se acredita
q u e a ciên cia ven h a “d o céu ”, com o pr et en dem d iver sas “sociolo-
gias d o s d eu se s” (sejam estes a razão, ou a verdade, ou a n atureza
etc.; Tou r ain e, 1980). N ão é, aliás, p or q u e n ão se acredita qu e a
88 GÉRARD FOUREZ

tecn ologia d o au tom óvel pr oven h a diretam en te d o s d eu ses qu e se


deixa d e con siderá-la com o prática; o m esm o vale par a a ciên cia.
A descob er ta d e seu caráter h u m an o con du z, con tu d o, a u m
q u est ion am en t o de seu papel, su a h istór ia e o seu valor n a h istór ia
h u m an a; escam oteiam -se essas qu est ões, eviden tem en te, se se
acredita qu e a ciên cia provém d o s “d eu ses”. Falar d a ciên cia com o
d as técn icas é port an to in sist ir sobr e o fato de qu e ela só faz sen tido
n o con texto h u m an o.

Resumo

Teorias, leis, modelos:

As leis n ão são deduzidas das observações; elas se verificam se nos


satisfazem.
Há um a infin idade de teorias possíveis para um número finito de
observações (subdetermin ação da ciência).
O s m odelos estão ligados ao imaginário cultural, a projetos; são contin­
gentes.

Verificação, falseamento:

Não é a verdade, mas a eficácia de um modelo que importa.


Um modelo é utilizado en quanto n ão for falseado por um outro mais
eficaz. Critério de falseabilidade: somente as proposições falseáveis (não
automaticamente verdadeiras) seriam “científicas”.
E por meio de uma decisão voluntarista que se aban don a um modelo
(experiência “crucial”). Um m odelo pode sempre ser “salvo” por hipóte­
ses ad hoc ou “sistemáticas”. A experiência é determin ada também por
um contexto teórico que, entre outros, determina o que será visto como
“pertinente”. As decisões científicas n ão se referem a proposições isola­
das, mas sobre linh as de pesquisa.
A diversidade dos métodos científicos; as abordagens analítica e sistêmi­
ca; os estudos epistemo-socioantropológicos.
Existe a “melh or” tecnologia? Por que a n ossa cultura parece negá-la para
as tecnologias materiais, mas n ão para as tecnologias intelectuais?
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 89

Aceitabilidade das proposições ou aplicabilidade dos conceitos; conheci­


men tos apropriados.
O s critérios últimos de adoção de um modelo n ão são jam ais “puramen­
te” racionais.

Conciusões:
Implicações do fato de que a observação e as teorias científicas são
con struídas por “sujeitos” social e politicamente situados, perseguindo
seus “projetos”.

Palavras-chave

Dedu ção/ subdeterminação da ciên cia/ origem dos m odelos/ criação


poética dos m od elos/ absolu to/ contingência das teorias/ verificar/
testar/ falsear/ falseam en to/ proposições não-falseáveis na ciên cia/ deci­
sões voluntaristas na rejeição de uma le i/ cien tificidade/ experiências
cru ciais/ hipóteses ad h oc/ hipóteses sistem áticas/ linh as de pesqu isa/
procedimento an alítico/ procedimento sistêm ico/ racionalidade da rejei­
ção de um m odelo/ verdade como eficácia/ problema resolvido/ conhe­
cimento apropriado/ decisões n o trabalho cien tífico/ critérios/ ciência e
projetos/ sociologia dos deuses.
C A P Í T U LO 4

O MÉTODO CIENTÍFICO:
A COMUNIDADE CIENTÍFICA

Um ponto de vista agnóstico sobre


a natureza última da ciência

Exam in am os a r epr esen tação d om in an t e d a ciên cia; ela se


caracteriza p or u m a visão cen trada sobr e o in elutável ou o n eces­
sário: a ob servação exam in ar ia as coisas tais com o são, sem qu e
in terven h a n en h u m fator h u m an o; as leis seriam tiradas d essas
ob servações e d ep ois verificadas por experiên cias qu e obed ecer iam
a u m a lógica e u m a racion alid ad e ú n icas e claras.
A an álise crítica.m ostr ou os lim ites de sem elh an te r epr esen ta­
ção: as ob servações já são con st ru ções h u m an as, o s m od elos
p r ovêm de n ossas idéias an teriores, e p or m eio de u m a lógica
p r agm ática e h istórica (e n ão p or m eio de u m a r acion alid ade
n ecessária) qu e os cien tistas decidem rejeitar ou con ser var m od elos
particulares. Essa an álise rem ete as práticas cien tíficas a su a situação
h istórica. Ela d esm istifica a ciên cia, p o n d o em qu est ão a su a
a-h istoricidade, a su a u n iversalidade, a su a absolu tez, o seu caráter
q u ase sagr ad o.
92 GÉRARD FOUREZ

M ost r an d o a su a h istoricidad e, essas an álises n ão “den igr em ”


a ciên cia: elas se con ten tam em situá-la em m eio a ou t r as gr an des
realizações h u m an as com o a arte ou as técn icas. Elas p od em
con t u d o ser u m p ou co “ch ocan t es” par a aqu eles e aqu elas qu e
tiverem in vestido n a ciên cia u m a d im en são absolu ta, praticam en te
religiosa, e q u e esperavam n ela en con t r ar u m a certeza ou u m
ab solu t o ao s q u ais m u it os asp ir am em u m a sociedade tão m utável
com o a n ossa.
A p ar t ir d o m om en t o em qu e se aceita qu e a. r acion alid ad e
cien tifica n ão é^eterna, m as se associa a u m a m an eir a socialm en te
r econ h ecid a e eficaz de ab or d ar a n o ssa r elação com o m u n d o,
vem o-n os rem etidos a u m a reflexão sob r e a m an eir a pela qu al
essa racion alid ad e fu n cion a. N ão n os sit u am os m ais dian t e de u m
con ceit o ab st r ato de r acion alid ad e cien tífica, m as dian t e de
pr át icas con cr etas. A com u n id ad e cien tífica e su as pr át icas se
t or n am en tão u m fen ôm en o h u m an o com o m u it os ou t r os.
P od em os estu dá-los sem lh es d ar de an t em ão u m est at u to excep­
cion al; n ós o s ab or d am os u m p ou co com o se est u d ásse m os, p or
exem p lo, u m a tribo ban t u qu e resolve os seu s p r ob lem as por
m eio de co n se lh o s.1 Esses “co n se lh o s”, com efeito, são, com o a
prática cien tífica, m an eir as socialm en te ad m it id as d e refletir em
com u m . P od em ser con sid er ad as com o u m a espécie de técn ica
in telecu al d est in ad a a resolver p r ob lem as. D o m esm o m od o, o
raciocín io cien tífico é u m a m an eir a socialm en te r econ h ecida, e
_extrem am en te eficaz, ao qu e parece, de r esolver as n o ssa s relações
com o m u n d o.
S* Esse p on t o de vista sociopolít ico sobr e a ciên cia e a com u n id a­
de cien tífica p od e est u d ar a ciên cia sem ter de an tem ão u m ju ízo
sob r e o qu e ela seria p or n atureza ou por essên cia. E o qu e
ch am am os d e u m p on t o de vista agn óst ico sobr e a n atu reza ú ltim a
/ d a prática cien tífica e sobr e a ciên cia (cf. Bloor, 1976; Latou r &.
I W oolgar , 1979; Latour, 1984; St en ger s, 1987).
x
1 Palabres, em fran cês, q u e d esign a con fer ên cias com u m ch efe n egr o (Lar ou sse)
(N. T.).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 93

Definir a comunidade científica

Em n o ssa m od er n a sociedade, a com u n id ad e cien tifica é u m


gr u p o social relativam en te b em defin ido. Estrutura-se em parte por
si m esm o: é u m a con fraria on d e os in divídu os se recon h ecem com o
m em b r os de u m m esm o cor p o. Ela pod e se apr oxim ar , d o pon t o
de vista d o an t r op ólogo ou d o sociólogo, de ou t r os gr u p os sociais
tais com o o s sap ateiros, o s alqu im ist as ou o s feiticeiros. Em cada
caso, t em os u m gr u po social qu e se au todefin iu de acor d o com su a
atividade, cu jos m em b r os se r econ h ecem en tre si e qu e tem ,
port an to, a su a coerên cia pr óp ria.
N o en tan to, a com u n id ad e cien tífica difere d a d o s alqu im istas,
n a m ed id a em qu e ela é oficialm en te, ou qu ase, recon h ecida em
n o ssa sociedade. Aq u eles q u e são aceitos com o “cien tistas” são
con sid er ad os com o p o ssu id o r es de con h ecim en t os específicos,
úteis e m esm o passíveis de retribu ição. A com u n id ad e cien tífica,
portan to, n ão só goza de recon h ecim en to in tern o com o extern o,
t am b ém (ou seja, n ão ap en as d en t ro de seu p r óp r io gru po, m as
t am b ém de fora). Esse r econ h ecim en to é ad m itid o pu blicam en te,
o qu e, em lin gu agem m ais técn ica, pode-se expr im ir assin alan d o
qu e se trata de u m r econ h ecim en to p elos gr u pos d om in an t es, isto
é, pelos gr u p os qu e p ossu em peso suficien te den t ro d a sociedade
par a qu e, u m a vez t en d o lh es recon h ecido algo, praticam en te
n in gu ém p od e ign orá-lo. E n em todo con h ecim en t o recebe sem e­
lh an te recon h ecim en to. A ssim , a parapsicologia n ão é recon h ecida
pelos gr u p o s d om in an t es. C o n t u d o , esse recon h ecim en to pú b lico
parece u m a característica essen cial d a ciên cia tal com o a vem os
h oje. Se m ele, n ão se falará m ais em ciên cia...
A n ecessid ad e de r econ h ecim en to extern o traduz-se p or lu tas
sociais, p or m eio d as q u ais os d efen sor es d as su b com u n id ad es
particu lares (por exem plo, a acu pu n t u ra ou a h om eopatia) ten tam
ser socialm en te r econ h ecidas. E essa n ecessidade n ão é de t odo
d esin t er essad a, p ois o recon h ecim en to reflete-se em apoio econ ô­
m ico, em p od er social e em prestígio. Isto se realiza graças a “aliados
94 GÉRARD FOUREZ

privilegiad os”. A o lon go da h istória, foram os p r ín cipes sobr et u d o


qu e recon h eceram a com u n id ad e cien tífica; m ais recen tem en te, os
aliad os pr ivilegiados d as com u n id ad es cien tíficas for am , de fato, o
qu e o G en er al Eisen h ow er ch am ou de com plçxo m ilitar-in dustrial
(sob r e as in terações sociais relativas ao r econ h ecim en to cien tífico,
cf. Latou r, 1984; t am bém Cetin a-Kn orr, 1985).
A com u n id ad e cien tífica n ão pode, p or con segu in t e, defin ir-se
u n icam en t e com o u m gr u po capaz de lidar com u m certo tipo de
con h ecim en tos. C o m o gr u po com um acesso privilegiado ao saber,
será freqü en tem en te solicitado de seu s m em b r os d esem p en h ar u m
papel social e, em particular, d ar o seu parecer com o especialistas
{experts), ou seja, com o p essoas deten tor as de u m certo sab er qu e
lh es perm ite op in ar em q u est ões d a sociedade. A com u n id ad e
cien tífica goza de u m estatu to privilegiado, sem elh an t e ao d os
feiticeiros ou d o s pad r es em d et er m in ad as culturas.
D e u m p on t o de vista sociológico, são esses r econ h ecim en tos,
tan to in tern os qu an t o extern os, qu e d ão ao con ceito de com u n i­
d ad e cien tífica o seu con teú d o específico.

A comunidade científica
faz parte do método científico

D a m an eir a acim a con sid er ad a, a com u n id ad e cien tífica p od e­


ria parecer com o u m elem en to extern o à ciên cia e a seu s r esu ltados.
H averia a ciên cia e os seu s pr ogr essos; e d ep ois - elem en to
pu r am en te adjacen te - h averia o fato de qu e são pr at icadas p or u m
gr u p o h u m an o. O m ét od o cien tífico poder ia ser an alisad o - e é
assim qu e ele é n a m aior parte d o t em po - in d epen den t em en te da
com u n id ad e cien tífica.
Sem elh an t e con cepção d o m étodo cien tífico é in capaz de sè dar
con ta d a ob t en ção d o s r esu lt ad os in teressan tes. Afin al, u m labor a­
tório terá u m a b oa perform ance tan to p or seu p essoal ser bem
or gan izad o e ter acesso a apar elh os precisos, com o p or raciocin ar
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 95

corretam en te. A fim d e pr od u zir r esu lt ad os cien tíficos, é pr eciso


t am b ém p o ssu ir r ecu rsos, acesso às revistas, às bibliotecas, a
con gr esso s etc. E pr eciso t am bém qu e, n as u n id ad es de pesqu isa,
a com u n icação, o d iálogo e a crítica circulem . O m ét od o de
p r od u ção d a ciên cia p assa, portan to, pelos p r ocessos sociais qu e
per m item a con st it u ição de equ ipes estáveis e eficazes: su b síd ios,
con tr at os, alian ças sociopolít icas, gestão de equ ipes etc. M ais u m a
vez, a ciên cia aparece com o u m p r ocesso h u m an o, feito p or
h u m an os, par a h u m an os e com h u m an os.

As ambigüidades do conceito
de “comunidade científica”

D o m esm o m od o qu e desen volvem os u m a visão crítica d a


jobservação ou d as verificações experim en tais, ir em os agora aplicar
o m esm o m ét od o dialético à com u n id ad e cien tífica e ver com o a
“t ese” (a jvisão esp on t ân ea q u e m u itos, em n o ssa sociedade,
.. p o ssu e m a respeito d esse m étodo) pod e ser su per ad a.
O t er m o “com u n id ad e cien tífica” n ão deixa de ser am b ígu o.
Q u an d o se diz: “a com u n id ad e cien tífica p en sa de tal ou tal m o d o ”,
ou “r econ h ece tal ou tal fen ôm en o”, esse su jeito “com u n id ad e
cien tífica” n ão é m u ito preciso. Se eu afirm o: “acredito qu e este
dit afon e se en con tr a sobr e a m esa”, o su jeito sou eu. Se digo,
p or ém , “a com u n id ad e cien tífica acredita qu e este dit afon e se
en con t r a sobr e a m e sa”, n ão se sabe m ais qu em é o su jeito. O
m esm o tipo de am b igü id ad e su rge n a utilização d a palavra “socie­
d ad e ”, e d e m u itas ou t r as palavras. Por exem plo, q u an d o se diz:
“A sociedade favorece a p r od u ção in d u st r ial”, n ão se sab e qu em é
o su jeito d essa p r op osição. Trata-se de t od os ou ap en as d aqu eles
“cu ja o p in ião con ta”?
Q u an d o a exam in am os de perto, a “com u n id ad e cien tífica”
revela-se com o u m pequ en o m u n d o bastan te estru tu rado. H á os
“gr an d es” exper im en t adores d e laboratório, qu e p o ssu em relativa­
96 GÉRARD FOUREZ

m en te bastan t e poder , d ep ois ou t r os qu e são com o “op er ár ios


especializad os” , e en fim existem os “pr oletários d o s lab or at ór ios”,
os assist en t es de laboratór io. H á u m a am b igü id ad e, portan to,
q u an d o se diz, p or exem plo, qu e “tal é o in teresse d a com u n id ad e
cien tífica”. Trata-se d o in teresse d os ch efes de lab or atór io ou d os
assisten tes? Falar de com u n id ad e cien tífica em geral p o d e ocu ltar
divergên cias de in teresse bem p r ofu n d as. N a verdade, n a m edida
em q u e os gr an d es labor atór ios m ostram -se com o em p r esas de
p r od u ção d o saber, podem -se produ zir con flitos qu e pod er iam até
m esm o ser an alisad os em ter m os de luta de classes (Gor z, 1974).

Um grupo menos unido do que se diz

Pratica-se n a com u n id ad e cien tífica, com o em ou t r os gr u pos,


u m a d ivisão de t rabalh o qu e en gen dr a divergên cias de in teresses.
O s est u d an t es percebem isso logo: q u an d o têm de en tregar u m
texto p ar a con clu ir a licen ciatura, vivem m u itas vezes u m a ten são
en tre o s seu s in teresses (o seu apren dizado) e o s d o laboratór io ou
d o serviço em qu e t r abalh am . E q u an d o se fala d o in teresse do
serviço n o qu al t rabalh am , design a-se por t an to o in teresse d os
cien tistas já t ar im b ad os qu e t rabalh am n o local. Aliás, a m esm a
am b igü id ad e su rge q u an d o se fala d os in teresses d a sociedade:
dizer, p o r exem plo, qu e é d o in teresse d a sociedade qu e a in flação
seja m ín im a, n ão qu er dizer qu e isso seja d o in teresse de t od os, ou
d e t od os o s gr u pos.
A o se falar d os in teresses d a com u n id ad e cien tífica, design am -
se port an to os in teresses d e u m a cor poração; m as o s in teresses
d esse m o d o d esign ad os pod em ocultar as divergên cias. Poderia ser,
p o r exem plo, qu e u m assist en t e d e laboratór io se en con t r asse em
u m a m aior solid ariedade “objetiva” com op er ár ios d a in d ú st ria d o
q u e com o seu ch efe de laboratór io. E certos d iscu r sos, colocan d o
em evidên cia o in teresse da com u n idade cien tífica, p od em ter com o
fu n ção, en tre ou tras, m ascar ar essas divergên cias de in teresses: os
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 97

in teresses de u m p r ofessor u n iversitário, o s d o s laborator ist as, os


d o s assist en tes, d o s p esqu isad or es qu alificados, d o s d ou t or an d os,
d os estagiár ios, d os técn icos ou secretários etc. divergem m u ito
m ais d o qu e o term o geral de “com u n id ad e cien tífica” in duz a crer.
C o n t u d o , com o em t od a cor poração pod er osa, m esm o o s m en os
pr ivilegiados en tre os qu e vivem d a ciên cia ten dem a se iden tificar,
e às vezes de m an eira in versam en te pr op or cion al ao pod er qu e eles
p o ssu em den t ro d essa “cor p or ação” .

A comunidade científica
pertence à classe média

N o en tan to, com t oda a su a diversidade, a com u n id ad e cien tí­


fica n ão ocu p a u m a p osição aleatória n a sociedade: ela perten ce à
classe m édia de n ossa sociedade in dustrial (n os p aíses em d esen vol­
vim en to, a com u n id ad e cien tífica ocu p a u m a posição social dife­
ren te, o qu e exigiria lim a an álise m ais apu r ad a, m u it o im portan te
par a com p r een d er o papel d a ciên cia e d a técn ica n esses países).
Ela perten ce, portan to, a gr u pos qu e n ão têm u m en or m e p od er
social, m as qu e, assim m esm o, est ão n o cen tro d a socied ad e e
t en d em a iden tificar-se com os “in teresses d a socied ad e”, tais com o
d efin id os pelos gr u p os privilegiados ou pelos gr u p os d om in an t es,
r e ssa “classe m éd ia” caracteriza-se ain d a p or u m a iden tificação
bastan t e forte com a or d em social existen te (afin al, par a essa classe
social, a sociedade “ n ão está tão m al assim !”), acom p an h ad a de
u m r essen t im en to (“r ou bam -n os u m a parte de n o sso trabalh o
através d o s im post os, pela m á organ ização d a sociedade, pelo
d esp er d ício etc.”). U m a b oa parte d essas características d a classe
m édia (Bellah , 1985) surge n a com u n id ad e cien tífica.
A com u n id ad e cien tífica, com o gr u po com pou co p od er direto,
tem u m a ten dên cia a pr ocu r ar aliad os. N a m edida em qu e os
cien tistas vivem com certas classes sociais e n ecessitam d elas (a
classe m édia e, com b ase em d et er m in ado n ível n a h ier arqu ia
98 GÉRARD FOUREZ

cien tífica, a classe m édia alta), a su a com u n id ad e ten derá a iden ti­
ficar-se com o s in teresses d esses gr u pos. Essas “alian ças” in flu en ­
ciarão o s seu s p esqu isad or es, torn an do-os p or vezes m ais aten tos
a certas qu est ões d o q u e a ou t r as, ou d an d o a u m a d iscip lin a u m a
fision om ia qu e lh e é peculiar. E d esse m od o qu e, se u m gr u po de
m atem áticos estu da pr ob lem as de tráfego em u m aglom erad o
u r b an o, é p ou co provável qu e ele deixe de levar em con ta os
in teresses d a popu lação qu e h abita as cidades-dorm itório em tor n o
d a m etr ópole. M as n ão será im possível qu e ele esqu eça os in teres­
ses d as p opu lações m ais p ob r es qu e h abitam n o cen tro. E d ep ois
ver em os com o a m edicin a cien tífica se estru tu rará em t or n o de u m
par ad igm a em b oa parte det er m in ad o pela prática social de u m a
m edicin a in dividu alizada, curativa, visan d o àqu eles qu e p od em
pagar p o r seu s serviços (Lam b ou r n e, 1970, 1972).
A com u n id ad e cien tífica b u sca t am bém en con tr ar aliados qu e,
even tu alm en te, su bsidiarão as su as pesqu isas; é port an to u m gr u po
social q u e tem “algo a ven d er ”, e qu e pr ocu r a “com p r ad or es”. E
d esse m o d o qu e ela se voltou cada vez m ais par a o com plexo
m ilitar-in du strial (e par a o Est ad o, qu e ten de cada vez m ais a
afirm ar o seu pod er por m eio d o con trole qu e ele tem d as d esp esas
m ilitares. M en ah em , 1976; W aysan d , 1974; D evo ogh t em N aisse,
1987; Valen d u c, 1986; Ken ly, 1986).
N o ú lt im o século, a ciên cia qu ase sem pre pr ogr ediu q u an d o
os m ilitares (ou gr u pos param ilitares e estatais com o a NASA) a
su b sid iar am de m an eir a m aciça. H oje, a m aioria d as p esqu isas
cien tíficas n o m u n d o são direta ou in diretam en te m ilitares, m as
os m ilitares, tan to de u m lado com o d o ou tro d a Cor t in a de Ferro,
a fim d e con ser var u m a in flu ên cia sobr e a com u n id ad e cien tífica,
su b sid iam as p esq u isas dit as “fu n d am en t ais”.
A t en d ên cia da ciên cia m od er n a de se aliar aos m ilitares,
porém , n ão deve p assar sem u m a an álise m ais apu r ad a. A “milita-
rização” d a ciên cia n ão é a m esm a em t od os os lu gares e em todas
as ép ocas. A ssim , n os EUA, sob a ad m in ist r ação Car t er, u m a
r esp on sab ilid ad e m aior d as p esqu isas cien tíficas recaiu sobr e os
civis; já a ad m in ist r ação Reagan devolveu u m a b oa parcela d essas
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 99

r esp on sab ilid ad e aos m ilitares. O s projetos d a “gu erra n as estr elas”
parecem sign ificar u m a n ova m ilitarização d a p esqu isa espacial, da
p esq u isa em in form ática etc. Eles ten dem a su b or d in ar u m a
r etom ad a cien tífico-técn ica a objetivos m ilitares. U m a parte d a
com u n id ad e cien tífica sen te u m certo m al-estar dian te d essa situa- ,
ção, m as, com o é freqü en te n a classe m édia, m u ito in dividu alista, '
n ão reage de m an eir a eficaz (Tocqu eville, 1840).

Um a corporação com seus


próprios interesses

A com u n id ad e cien tífica se estrutura parcialm en te, com o vi­


m os, p or in teresses det er m in ad os pelas organ izações sociais às
q u ais ela se alia, e pelas estru tu ras econ ôm icas n ecessár ias a seu
fu n cion am en t o. Ela n ão é o gr u p o “n eu tro e d esin t er essad o” qu e
p or vezes ela im agin a ser. A m an eir a de p en sar d a m aior parte d os
cien tistas ser á in flu en ciada pelo seu lu gar social de origem .
D esse m od o, em con tato m en os direto com os pod er es econ ô-
m ico-sociais d o qu e o s em pr esários, o s cien tistas ser ão em geral
m en os con d icion ad os pelos in teresses econ ôm icos; é p or isso qu e
eles su r gir ão às vezes com o u m pou co m ais “p r ogr essist as” d o qu e
ou t r os gr u p os sociais, com o os en gen h eiros, p or exem plo. Aliás,
com o gr an d e parte d a classe m édia, ten d er ão a racion alizar a su a
falta de p od er p or m eio de ideologias d efen d en d o a apolitização e
o in d ivid u alism o (Tocqu eville, 1840).
Fin alm en te, os cien tistas têm m u itas vezes a im p r essão de j
serem d esap r op r iad os de seu trabalh o. D ep en d em de poder es \
sob r e os q u ais n ão p ossu em u m con trole direto (a in dú st ria, os ;
m ilitares e o Estado). São ou t r os qu e decidem por eles. Em su a _[
“im pot ên cia social”, os cien tistas, com o a m aior parte d a classe
m édia, criticarão com m u ita facilidade e d ir ão qu e, se d eixassem
q u e eles agissem , as coisas an dar iam b em m elh or. Expr im em o seu
100 GÉRARD FOUREZ

ressen t im en to m an ten d o sob r e a gestão pú blica d iscu r sos “r abu ­


gen t os”, tan to m ais sim plist as qu an t o m en os eles forem for m ad os
par a fazer an álises sociais (os d iscu r sos “gagás...” - o qu e se tem
q u e fazer é isto).
D evid o a essa con dição de classe m édia despolitizada, a com u ­
n id ad e cien tífica tem t am bém a ten dên cia a se t or n ar u m sistem a
bu rocrático. Q uer-se per segu ir os pr óp r ios in teresses, “d eixan d o a
socied ad e a si m esm a”; m as isto só é possível se essa sociedade
fu n cion a segu n d o as regras de u m gran de sistem a tecno-bu roerá tico
im pessoal. U m a an álise d o fu n cion am en t o d a com u n id ad e cien tí­
fica n ão p od e limitar-se à con sid er ação d as alian ças e de seu s
in teresses. E preciso tam bém levar em con ta o fen ôm en o bu rocr á­
tico, ou seja, o s in teresses criados p or su as or gan izações in tern as,
qu e criam pod er es, clien telas etc.
O con ju n t o d esses con d icion am en t os explica, sem dú vida, u m
certo “cor porat ivism o” d o s cien tistas: eles se m obilizam com
facilidade par a a defesa d o s in teresses glob ais de seu gr u po, e
sen tem -se “pat r iot as” de u m a pátria ch am ad a com u n id ad e cien tí­
fica. T ê m dificu ldad e em perceber in teresses su per iores aos de seu
gr u po, e acreditarão qu e o qu e é b om par a eles t am bém o é para
a n ação. O s qu e n ão forem in teiram en te fiéis aos in teresses d o
gr u p o su r gir ão a seu s olh os com o “traidores” de su a cau sa. Porém ,
essa “cau sa” rar as vezes será apr esen t ada de m an eira diretam en te
ligada a seu s in teresses; ela será defen dida em term os tão gen éricos
com o “o p r ogr esso cien tífico”, “o avan ço d o con h ecim en t o” etc.
Esses d iscu r sos, con tu d o, m ascar am ideologicam en te os in teresses
de u m gr u p o particular.

Os cientistas como técnicos intelectuais

O u t r a característica d os “cien tistas”, relacion ada a essa situ ação


de classe m édia, terá efeitos sobr e os seu s con d icion am en t os e
for m ação. N as sociedades m od er n as, a classe m édia, n ão sen d o
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 101

d est in ad a a partilh ar d o p od er social, é em geral con d icion ad a a


con stituir-se em fiel executan te. Q u an d o se deseja u m técn ico, n a
socied ad e in du strial, prefere-se qu e ele n ão reflita d em ais sobr e as
im plicações de seu trabalh o: tu do o qu e lh e é p ed id o é execu tar o
qu e lh e dizem par a fazer. O farm acêutico qu e trabalh a n a in dú stria,
p or exem plo, n ão deve per tu rbar o p r ocesso de p r od u ção per gu n ­
t an do-se até qu e p on t o a in dú st ria farm acêutica tem , de fato, u m
efeito positivo sob r e a saú de!

A socied ad e in du strial baseia-se n essa d istin ção en tre os pr oje­


tos e a su a execução. A ssim , u m m ecân ico deve con ser t ar o carro
e ele n ão deve se per gu n tar para qu e servirá esse carro. Em ou tr as
socied ad es, sem elh an te h iato en tre os pr ojetos e a su a realização
seria im pen sável. N a n ossa, on d e existe essa separação, os técn icos
recebem u m con d icion am en t o par a n ão refletir sobr e o qu e fazem :
o qu e lh es é p ed id o é qu e façam . E n esse con texto qu e certas
qu est ões levan tadas n o prim eiro capítu lo sobr e o in teresse de u m a
for m ação crítica d o s estu dan tes de ciên cia m ostr am o qu e está
su b jacen t e d o p on t o de vista social.

T o d a a for m ação d o s cien tistas parece d estin ad a a fazer com


q u e eles esqu eçam a qu e pod e servir a ciên cia. T u d o se p assa com o
se se tratasse d e pr odu zir resu ltados cien tíficos sem se colocar a
q u est ão de su as im plicações sociais, e sem se pr eocu par com su as
fin alid ad es (com o u m en can ad or qu e coloca u m registro sem se
per gu n t ar para qu e ele vai servir). N ão é p or acaso, en tão, qu e a
filosofia esp on t ân ea de m u itos cien tistas con siste em acreditar qu e
a ciên cia “cai d o céu ”, in depen den t em en te de t od o pr ojeto social.
T u d o con tribu i par a fazer d o cien tista u m artesão m ais ou m en os
cego à qu est ão social. Con cretam en te, essa atitude produz cien tistas
q u e aceitam a “d u p la cu lt u r a” qu e assin alam os n o pr im eir o
capítulo: a separação d o h u m an o e d a prática pr ofission al cien tífica
(Sn ow , 1963). N ão é por acaso qu e u m a d as características d os
con h ecim en t os recon h ecid os com o cien tíficos é qu e a su a origem
con creta n a sociedade e n a h istór ia foi apagad a (Levy-Leblon d,
1973; Cer teau , 1980).
102 GÉRARD FOUREZ

Resumo

De um pon to de vista agnóstico em relação à natureza da ciência, a


com un idade científica é um grupo social bem definido, cujos membros
se reconhecem entre si (reconhecimento interno) e são oficialmente
reconhecidos em n ossa sociedade (reconhecimento externo), recompen­
sados e valorizados por seus aliados privilegiados (complexo militar-
industrial, em particular), e reconhecidos como especialistas. Grupo de
classe média. A gestão e o comportamento da comunidade cientifica são
partes constitutivas dos métodos científicos.

Suas ambigüidades:
• sua falsa imagem de “com un idades”;
• sua hierarquização interna e sua divisão de trabalho;
• os interesses divergentes em seu interior;
• a sua dependência econômica do poder;
• a sua tendência à burocratização;
• a sua filosofia geralmente pouco crítica em relação à sociedade, e sua
tendência a só lidar com grandes idéias abstratas.

Palavras-chave

Com un idade cien tífica/ reconhecimento in tern o/ reconhecimento exter­


n o / complexo militar-in dustrial/ alianças da com unidade cien tifica/
classe m édia/ ressentimento da comunidade cien tífica/ in dividualism o/
sistema tecno-burocrático e in dividualism o/corporativism o.
C A P Í T U LO 5

O MÉTODO CIENTÍFICO:
A CIÊNCIA COMO DISCIPLINA INTELECTUAL

O qu e é a ciên cia com o t ecn ologia in telectual? V im o s o seu


lad o m aterial (bib liot ecas, lab or at ór ios, rede de revistas etc.).
P r ecisam os agor a exam in ar com o ela se est r u tu r a en q u an t o
sist em a in telectual.

As disciplinas e os paradigmas científicos

U m a d iscip lin a cien tífica é d et er m in ada p or u m a organ ização


m en tal. E o qu e ch am am os, em filosofia d a ciên cia, de u m a m atriz
disciplin ar ou u m paradigm a, ou seja, u m a estru tu ra m en tal,
con scien te ou n ão, qu e serve par a classificar o m u n d o e pod er
abordá-lo (a n oção d e par ad igm a se deve a Ku h n , 1962. V er
t am b ém Bar n es, 1982).
Se, p or exem plo, q u iser m os efetuar u m a p esqu isa n o d om ín io
d a saú d e, é preciso, para com eçar, já p o ssu ir algu m as idéias a
r espeito d a qu est ão. E a d isciplin a qu e n ascer d essas p esqu isas
sobr e a saú d e estruturar-se-á em t or n o d essas idéias prévias. O
104 GÉRARD FOUREZ

con ceito de “saú d e” n ão cai d o céu, m as provém d e u m a certa


m an eira de con tar o qu e n ós vivem os p or m eio de relatos qu e todos
con h ecem os e qu e dizem o qu e é para n ós, con cretam en te, estar
com b oa saú de.
D e igual m od o, a biologia será in fluen ciada por u m a certa idéia,
par t ilh ad a p or u m d ad o con ju n t o cultural, d a diferen ça en tre o qu e
está vivo e o q u e n ão está. Aqu i, com o em ou t r as situ ações, fala-se
de u m a diferen ça e port an to da d ecisão - em geral in con scien t e ou
i pré-con scien te - pela qu al escolh em os valorizar a diferen ça e n ão
a sem elh an ça. Em n ossa cultura, p or exem plo, t raçam os u m a lin h a
de dem arcação qu ase tão gr an d e en tre o vegetal e o an im al qu an t o
en tre o ser vivo e o n ão vivo; aliás, essa lin h a de dem arcação deixou
o s seu s traços em biologia n a distin ção en tre a botân ica e a zoologia.
I esses elem en t os culturais estão n a b ase d a d isciplin a qu e se
! d en o m in a biologia; fazem parte de seu paradigm a.

As condições culturais
do nascimento de uma disciplina

M esm o certos con ceitos qu e parecem absolu tam en te eviden tes,


com o o de “ m atéria”, são cu ltu ralm en te con st r u íd os, e servem de
b ase a d iscip lin as com o a física. Som en t e a partir d o sécu lo XVII
e, de m an eir a clara, n o sécu lo XVIII, é qu e n asce a n oção m od er n a
de m atéria, q u an d o as p essoas distin gu em en tre o qu e é “an im ad o”
e o qu e é sim plesm en t e “m aterial”. N o fin al do sécu lo XVII,
Gilber t, d escob r in d o o m agn et ism o terrestre, p en sa estar lid an d o
com a alm a d a Ter ra. Lem brem o-n os de qu e, para os alqu im istas,
os m etais têm praticam en te u m a vid a, m u ito sem elh an te aliás às
d o s vegetais.
D o m esm o m od o, h á objet os de est u d os qu e só aparecem em
u m d ad o m om en t o h istórico. Por exem plo, para qu e se p o ssa falar
d a psicologia, é n ecessár io qu e se ten h a u m a certa con cepção d o
ser h u m an o com o in divídu o. E é som en t e a partir d o sécu lo XIX
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 105

qu e ser ão con sid er ad os d ois est u d os particu lares d o ser h u m an o,


u m q u e se aterá pr in cipalm en t e ao ser h u m an o com o in divídu o,
e ou t r o, ao ser h u m an o com o social, d an d o n ascim en t o a d u as
d iscip lin as: a psicologia e a sociologia.
Em n o sso s d ias, p u d em os assist ir ao n ascim en t o de u m a n ova
d iscip lin a cien tífica: a in form ática. C o m base em n oções bastan te
vagas relativas à com u n icação e à in form ação, e estruturan do-se em
t or n o de u m a técn ica d et er m in ad a (o com pu t ador), foi criada u m a
tecn ologia in telectual, qu e perm ite p en sar os p r ob lem as d a com u ­
n icação e d a in form ação. Aliás, a bem da verdade, a in form ática (e
t od as as d iscip lin as fazem o m esm o) irá redefin ir o qu e são par a
ela a com u n icação e a in form ação.
Pode-se con tin u ar a con sid er ar ou tr as d isciplin as: a b iologia
m olecu lar, por exem plo, con sist e t am b ém em u m a m an eira parti­
cu lar de ab or d ar os p r ob lem as d os seres vivos, ligada ao m od elo
cien tífico d o p at r im ôn io gen ético e d a “d u pla h élice”.1
Em cada u m d esses casos, u m a disciplin a cien tífica n asce com o
u m a n ova m an eir a de con sid er ar o m u n d o e essa n ova m an eir a se
estru tu ra em r esson ân cia com as con d ições culturais, econ ôm icas
e sociais de u m a época.

A construção das regras disciplinares

Em t or n o e n a b ase de cada disciplin a cien tífica, existe um certo


núm ero de regras, princípios, estruturas mentais, instrum entos, n orm as
culturais e/ou práticas, que organizam o m undo an tes de seu estudo
m ais aprofun dado. Essa classificação separará, p or exem plo, o qu e
é vivo d o qu e n ão é, os fen ôm en os físicos d os fen ôm en os qu ím icos,
as m ed id as d a física relativista daqu eles d a física n ão-relativista etc.
U m a vez op er ad as essas distin ções, elas pr od u zem classificações

1 For m a d c or gan ização d o DNA (N. T.).


106 GÉRARD FOUREZ

qu e parecem q u ase eviden tes, a p on t o de servirem de base e de


referên cia ao pen sam en t o su bseqü en te.
Essa “evidên cia” é u m efeito qu e sobrevêm som en t e após o
estabelecim en to de u m a d iscip lin a cien tífica. A ssim , an tes d o
n ascim en to d a física, n a época de Galileu , con siderar os fen ôm en os
m ateriais de m an eir a in depen den t e de qu alqu er “an im ação” par e­
cia u m a coisa q u ase aberran te. Lem b r em os qu e Gilb er t, ao d esco­
brir o m agn et ism o terrestre n o in ício d o sécu lo XVII, p en sava ter
descob er to a alm a d a Ter ra. U m sécu lo m ais tarde, N ew ton ain d a
n ão terá efetu ado u m a sep aração com pleta en tre a ciên cia e a
teologia.
H á m om en t os em qu e a evidên cia de u m “par ad igm a cien tifi­
co” é recolocada em qu est ão. A ssim , n o in ício deste século,
praticam en te t od os os est u d os relativos à saú d e iden tificavam -se
com o o s est u d os de b iologia “pu r am en te m at er iais” . H oje, os
fatores p sicossom át icos e os fatores am bien tais gan h am u m espaço
cada vez m aior. Está presen te aí u m a m an eir a de “reestru tu rar” u m
ob jet o d e con h ecim en to.
“O objet o de u m a d iscip lin a” n ão existe por t an to an tes d a
existên cia d essa pr ópria d isciplin a; ele é con st r u íd o p or ela. O u ,
com o diz H eidegger (1958, p .199): “a ciên cia n ão atin ge m ais d o
q u e aqu ilo qu e o seu p r óp r io m od o de r epresen tação já adm itiu
an teriorm en te com o objet o possível par a si”. Por exem plo, só se
pod er á falar d a física, n o sen t id o m od er n o d o term o, a partir d o
] m om en t o em qu e será d ad a a r epr esen tação in telectual de fen ôm e­
n os físicos de m an eira in d epen d en t e d o s fen ôm en os d in âm icos.
Em ou t r os term os, u m a d isciplin a cien tífica n ão é d efin id a pelo
ob jet o q u e ela estu da, m as é ela qu e o deter m in a (n a Id ad e M édia,
a escolástica dizia qu e u m a ciên cia n ão é defin id a p o r seu “objeto
m ater ial” , m as p or seu “objet o for m al” , isto é, por u m a m an eir a
de ver o m u n d o). E, n a evolu ção de u m a d isciplin a, esse objeto
p od e variar. A ssim , a qu ím ica orgân ica com eçou com o u m a
d iscip lin a relativam en te r evolu cion ária, o u san d o aplicar aos seres
vivos o s m ét od os da qu ím ica. Defin ia-se pela utilização d esses
j m ét od os sob r e o s seres vivos. C o m o seu desen volvim en t o e su as
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 107

m ú ltiplas aplicações, ela foi em segu ida redefin ida com o a qu ím ica
d as cad eias car bôn icas.

As rupturas epistemológicas

N a b ase de t oda disciplin a, h á u m corte, u m a ação h u m an a


qu e “sep ar a” e qu e “p r oíb e” con fu n d ir , sem pre em virtu de d e u m
projeto. Para a biologia, é o qu e estabelece a diferen ça en tre o vivo
e o n ão-vivo; par a a física, o qu e coloca a n oção de “ m atéria”,
in d epen d en t em en te d o s pr ojetos h u m an os ou de t od o o seu
con teú d o; par a a psicologia, é o qu e d istin gu e o in divídu o da
socied ad e e de seu m eio e assim p or dian te. Essa separação, essa
con stru ção d o objeto pela com u n id ad e cien tífica, é o qu e Bach elard
ch am a de “ru ptu r as ep istem ológicas” (1971), ou seja, as r u ptu r as
qu e d ão u m estatuto a u m saber det er m in ado. N a b ase d a prática
cien tífica existe essa ação h u m an a, e n ão u m objet o qu e seria
“d ad o ”.
A ciên cia em erge p ou co a pou co d o d iscu r so cot idian o e / o u
artesan al: d o d iscu r so d o jar din eir o, p or exem plo, ver-se-á aparecer
os d iscu r so s sistem áticos qu e se t o m ar ão o tem a d a botân ica.
P orém , ela t am b ém se caracteriza pela r u ptu r a em relação ao
d iscu r so cotidian o.
A liás, é característico d o d iscu r so cien tífico apagar as su as
or igen s; ele se apr esen t a m u itas vezes com o o d a objetividade,
fazen do r apid am en t e esqu ecer qu e u m p on t o de vista foi selecio­
n ad o de in ício. A ssim , par a con st ru ir u m a “ciên cia d as cid ad es”,
é pr eciso en con tr ar u m a defin ição d o qu e é u m a cidade; ist o só
será possível ap ó s se ter escolh ido u m p on t o de vista pr eciso par a
descrever as cidades.
U m p ar ad igm a estabelece u m a ru ptu ra com os pr ojetos d a vid a
cotidian a, e perm ite elim in ar u m a série de qu est ões qu e n ão serão
m ais con sid er ad as com o pertin en tes. Poder-se-á, p o r exem plo,
elim in ar d o est u d o d as cid ad es tod as as aldeias. E essa “ru ptu ra
108 GÉRARD FOUREZ

ep istem ológica” qu e delim itará o objet o e con ferirá, t am bém , su a


“objet ivid ad e” a u m a d isciplin a cien tífica.

Os conceitos fundamentais são


construídos e não, dados

O in teresse de u m a filosofia da ciên cia qu e en fatize essas


r u ptu r as epistem ológicas é d en u n ciar a ideologia positivista qu e
p r et en d a observar “as cidad es tais com o exist em ” , p or exem plo,
q u an d o o p r óp r io con ceito de “cidad e” é u m a con st ru ção in telec­
tual, ligada a u m paradigm a ou a u m a teoria. E-se rem etido portan to
aos pr ojetos h u m an os su bjacen tes a essa con st ru ção.
A partir d o m om en t o em qu e sab em os qu e o est u d o cien tífico
d as cid ad es d ep en d e de u m a d ecisão relativa a u m a ru ptu ra
epistem ológica con tin gen te, torn a-se possível levar em con ta o fato
de qu e esse con ceito já d ep en d e de u m a certa visão d o m u n d o e
d a socied ad e, de u m certo projeto. Sab er qu e o con ceito de cidade
é con st r u íd o n os faz lem br ar qu e ele n ão foi con st r u íd o p or acaso,
m as em fu n ção de in teresses precisos, h istoricam en te det er m in a­
d os, e qu e poder ia ser in teressan te esclarecer em algu m m om en t o.
O qu e acaba de ser dito a respeito d o con ceito de “cidad e” pod e
ser est en d id o a t od os os con ceitos fu n d am en t ais da ciên cia. T o ­
m an d o os de “saú d e” , “ser h u m an o”, “desen volvim en t o", “m até­
r ia”, “con sciên cia” , “recurso en ergético”, “cid ad es”, “regiões petro-
1 •£ » «t » a. 1j i » «• r y> u • - >»
iireras , lou cu ra , igu aldad e , in form ações > com u n icaçoes ,
“partícu las elem en t ar es”, “relações de in certezas”, “vid a”, “equ ilí­
brio ecológico”, “n ecessid ad e”, “d r oga”, “cien tífico”, “p r ecisão”,
“n atu reza h u m an a”, “sexu alid ad e h u m an a”, “am or h u m an o”,
“r aças” , “in teligên cia” etc., t em os exem plos típicos d e con ceitos
qu e p od em ser con sid er ad os de diferen tes m an eir as. O u ain d a
con siderá-los com o d ad os d esd e sem p re e n ão con st r u íd os (m ais
adian te, classificar em os esse pon t o de vista com o idealista). O u ,
p or ou tra, con sid er ar qu e são o r esu ltado de u m a d ecisão episte-
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 109

m ológica ou teórica, qu e op er ou u m a r u ptu ra em relação à utiliza­


ção vaga d o term o.
A cad a vez, a defin ição con st m íd a cien tificam en te é u m a
t radu ção da noção corren te ligada a esse t erm o. Porém , ela n ão lh e
é equ ivalen te; assim , a defin ição m édica d a saú de, n a m ed id a em
qu e se qu er precisa e d et er m in ad a d en tro de u m âm b it o teórico,
jam ais recobrirá a n oção global qu e n ós p o ssu ím os. Existe u m a
força afetiva ligada à glob alid ad e d a lin gu agem cotidian a, qu e n ão
en con t r am os n o d iscu r so cien tífico (M arcu se, 1968). Além d isso,
a escolh a de u m a defin ição cien tífica det er m in ad a n ão será jam ais
ideologicam en te n eutra. Vê-se isso facilm en te ao se con sid er ar a
n oção de “d esen volvim en t o”: a m an eira pela qu al se defin ir á o
desen volvim en t o está ligada a u m a visão d o m u n d o, a u m projeto,
a m ú lt iplas legitim ações, ou seja, a todo u m d iscu r so ideológico.

Os falsos objetos empíricos

U m a visão esp on t ân ea ten de a acreditar qu e as d isciplin as são


d et er m in ad as p or ob jet os qu e seriam d ad os “em pir icam en t e”.
Algu n s, p o r exem plo, qu er er ão defin ir a farm acologia com o a
ciên cia d o s m ed icam en t os, com o se u m m edicam en to fosse u m
ob jet o em piricam en te d ad o. O r a, é devido a u m a ação h u m an a
con sid er an d o algo com o u m m edicam en to q u e a pr óp r ia n oção de
m edicam en t o gan h a algu m sen tido. E u m pr ojeto h u m an o qu e
con st rói a disciplin a e o par adigm a da farm acologia, e n ão a
existên cia “d ad a” de m edicam en t os. Percebe-se facilm en te a “ru p­
tura epistem ológica” se se con sidera o con ju n t o de regras (n ão
explícitas, eviden tem en te) qu e n os fazem ch am ar algo de “m edica­
m en t o” (esse con ju n t o de regras faz parte d a defin ição p ar ad igm á­
tica d a farm acologia). O asp ect o con ven cion al da farm acologia e os
lim ites colocad os pelo par adigm a su rgem d o fato de q u e n ão se
con sid er a u m a m u leta com o u m m edicam en to. O leitor pode,
com o exercício, pergun tar-se qu ais são as regras im plícitas qu e se
110 GÉRARD FOUREZ

ad ot a p ar a dizer qu e algu m a coisa é u m m edicam en to, e per gu n ­


tar-se sob r e a p ossib ilid ad e d e u m a ou tra estru tu ração possível
d essa n oção.
N o caso da farm acologia ou d a m atem ática, pode-se perceber
a atividade h u m an a realizan do a ruptura epistem ológica. Em ou tr os
casos, ela é m en os eviden te. E com u m , p or exem plo, ou vir geólogos
defin ir a su a d isciplin a com o a ciên cia d a Ter r a, com o se esta fosse
u m ob jet o em piricam en te d ad o. O r a, para qu e o con ceito de
“T e r r a” p o ssa defin ir a geologia ele precisa ser con stru ído. P ossu in ­
d o a T er r a u m a alm a, tal com o pen sava Gilb er t p or volta de 1600,
ao d escob r ir o m agn et ism o, n ão defin e de m od o algu m a geologia.
Pode-se porém - exercício deixad o a critério d o leitor - descrever
os elem en t os con stitu tivos d o con ceito teórico de Ter r a, n a base
d a geologia m od er n a. N ão se trata de u m con ceito em pír ico, m as
de u m con ceito defin ido p or diferen ças valorizadas (ru ptu ra epis­
tem ológica). Por exem plo, a geologia exam in a a “T e r r a” , sep ar an ­
do-a d os h u m an os qu e a h abitam . Esse caso ilustra, aliás, a força
d o p ar ad igm a, pois este d isp en sa u m a con sid er ação de tu do ao
m esm o tem po.
N a m esm a lin h a, pode-se en u m erar m u itos falsos objet os
em pír icos qu e pr eten sam en te se en con tr am n a b ase de u m a
d iscip lin a: a m atéria, a saú de, a Ter r a, o fen ôm en o econ ôm ico (ou
p síqu ico, ou sociológico), a oper ação lógica, a reação qu ím ica, o
território geográfico, o am bien te ecológico, o ser vivo, a in form ação
etc. N en h u m d esses con ceitos é “d ad o”, eles são t od os con st r u íd os
segu n d o o pr ojeto qu e se persegu e e são socialm en te aceitos. E p or
isto qu e se poder ia dizer qu e um a disciplin a científica é menos
determ in ada por seu objeto do que por seu objetivo.

Evoluções não previsíveis

An t es qu e u m a d isciplin a n asça, n ão é sem dú vida possível


dizer a for m a qu e ela tom ar á m ais tarde. N ist o pode-se com par ar
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 111

a ciên cia - tecn ologia in telectual - com as tecn ologias m ateriais: o


q u e su ceder á à tecn ologia au tom otiva n ão é pré-determ in ado, m as
é o fruto de u m desen volvim en t o h istórico contingente (isto é , n ão
ab solu tam en t e n ecessário).

Assim , a in form ática n ão aguardava em u m a espécie d e m u n d o


d as idéias p ar a ser “d escob er ta” pelos cien tistas d o sécu lo XX. E
provavelm en te m ais ad equ ad o dizer qu e u m a série de p essoas
for jaram par a si m esm as, em m ead os do sécu lo XX, r epresen tações
de fen ôm en os de com u n icações e de in form ações qu e se tor n aram
t ecn ologias extrem am en te eficazes. Essas p essoas for m aram u m a
com u n id ad e de especialistas qu e se au t od en om in ou de “in for m á­
tica” . O s fen ôm en os in form át icos são en tão fin alm en te d efin id os
com o aqu ilo de qu e se ocu pam os especialistas em in form ática.
D esse m od o represen tada, a evolução d as disciplin as cien tíficas
n ão cor r esp on d e a u m a lógica da h istória pré-determ in ada e
previsível. Deve-se m ais a u m a verdadeira h istór ia n a qu al o n ovo
é possível, assim com o bifu rcações im previsíveis, o t odo con d icio­
n ad o p or u m con ju n t o de con dições sociais, econ ôm icas, culturais
etc., m as n ão in teiram en te d et er m in ado por elas. Esse m od elo d a
evolu ção d a ciên cia está ligado a u m par ad igm a, o d as estru tu ras
d issip at ivas. Ter íam os fen ôm en os, alim en tan do-se de en ergias
exteriores, cu jas estr u tu r as m acr oscóp icas n ão são previsíveis pois,
com o ou t r os fen ôm en os h istóricos, p od em ser cau sad as p or m o­
dificações m icr oscópicas d as con dições in iciais. A ciên cia teria u m a
verd adeira h istória, ao p asso qu e os r esu lt ados cien tíficos seriam
u m a con st ru ção e n ão o desen volvim en to d as verd ad es cien tíficas
qu e, d esd e sem pre, teriam esp er ad o ser “d escob er t as” (sobre essa
visão h istórica d a ciên cia, ver Prigogin e <Sl Sten ger s, 1979).
Em su a ob r a D'un e Science à 1’autre, des concepts nôm ades [De
u m a ciên cia à outra, os conceitos nôm ades], St en ger s e seu s colab o­
radores (1987) an alisam com o os con ceitos se “p r op agam ” de u m a
d iscip lin a à ou tra, fortalecen do n ovos pon t os de vista qu e os
cien tistas con sid er ar ão m ais ou m en os fr eqü en tes. M ostra-se aí
t am b ém com o se op er a o “en du r ecim en t o” de certos con ceitos qu e
112 GÉRARD FOUREZ

se t or n am referên cias in con testes, qu e eu d en om in ei de “falsos


ob jet os em p ír icos”.

Um exemplo de um paradigma e de suas


condições sociais: a medicina científica

A descr ição d o p ar ad igm a de u m a d isciplin a deve sem pre se


fazer em u m a espécie de m etalin guagem , isto é, ad ot an d o u m a
lin gu agem com u m , diferen te port an to daqu ela da p r óp r ia discipli­
n a. Pode-se en con tr ar n a literatura diversas descr ições d o par ad ig­
m a de certas d isciplin as. A ssim Fran çois Jacob (1970), em seu livro
La logique du vivant [A lógica do ser vivo] apr esen t ou u m a h istória
d a biologia qu e se con verte em u m a descr ição d a evolução d o
p ar ad igm a d essa disciplin a. Prigogin e & Sten gers, em La Nouvelle
A llian ce [A nova alian ça, 1979], fizeram o m esm o em relação à
física, colocan d o em evidên cia a ru ptu ra en tre o an tigo p ar ad igm a
clássico e as n ovas perspectivas.
Ap r esen t ar em os aqu i o par adigm a d a m edicin a cien tífica, tal
com o ele p od e ser per cebido p or m eio d o con ceito de saú d e
d esen volvid o pelo Dr. Lam b ou r n e (1970 e 1972). In sist ir em os
sobr e o s vín cu los existen tes en tre esse par adigm a e algu n s valores,
assim com o algu m as práticas sociais. Sab em o s qu e esse par ad igm a
con cedeu u m a eficácia n otável à prática da m edicin a; verem os aqu i
os seu s asp ect os particulares.
O con ceito de “m ed icin a” n ão é d ad o de u m a vez p or todas.
En con tra-se ligado às culturas. D esse m od o, diz-se q u e o m édico
ch in ês é p ago n a m edida em qu e o seu clien te goza de b oa saú de,
ao p asso qu e n a m edicin a ociden tal o m édico só recebe rem u n e­
ração q u an d o o seu pacien te está sofren do. E claro qu e isto provoca
m odificações n o qu e se refere ao qu e será valorizado e con sid er ad o
im por tan te em m edicin a! Tam p o u co o con ceito de saú d e cai do
céu: é u m a con st ru ção ligada a u m a cultura.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 113

Para defin ir o con ceito de saú de, o D r. Lam b ou r n e p r op õe u m


esq u em a b id im en sion al: segu in d o u m eixo vertical, ele n ot a a
ext en são d o cam p o d a m edicin a, e d ep ois o da m icr obiologia, o
or gan ism o, o in divídu o, a fam ília, a vizin h an ça, o m eio-am bien te,
até o m u n d o in teiro (ver Figu r a 1). Segu in d o o eixo h orizon tal
n otam -se en tão m an eir as de con ceber os cu id ad os com a saú de:
“extração” d o m al, cura d o doen te, cu id ad os e bem -estar d o doen te,
crescim en to p essoal graças à doen ça, fortalecim en to d as asp ir ações
e d o p r óp r io doen te, in iciação a n ovos m o d os de vida.

O m un do

O m eio-am bien te

A vizin h an ça

A fam ilia

Cr escim en t o For talecim en to In iciação


Extr ação Cura C u id ad o e p esso al graças d as asp ir ações a n ovos

d o m al d o d oen t e bem -estar • à d oen ça e d as forças m odos


• d c vid a




• O in d ivíd u o

• O o r gan ism o

• A m icr obiologia

• O át o m o
m edicin a
cien tifica
D ir eção d o s valor es su st e n t ad os pelo m ét od o
• • • ^ cien tífico n a m edicin a.

Figu r a 1 - M ap a d o con ceit o d e saú d e segu n d o o Dr . Lam b ou r n e (1972).


114 GÉRARD FOUREZ

' D efin id o este q u ad r o, n ão é difícil ver qu e a m edicin a cien tífica


se caracterizou h istoricam en te p or u m a escolh a de valor es, privile­
gian d o a área su d oest e de n o sso gráfico. Q u an t o m ais restrito for
o d o m ín io d a m edicin a - d a m icrobiologia, p or exem plo - , e m ais
b em d efin ido for u m pr oblem a - a “extração” d o m al, por
exem plo - , m ais essa m edicin a será con sid erad a com o “cien tífica”.
O in teresse d a m edicin a m od er n a se situ a em algu m a parte, sobre
o eixo h orizon tal, en tre a extração d o m al e a cura d o doen te e, n o
eixo vertical, en tre a m ed icin a orgân ica e a m edicin a fam iliar. A
im por tân cia qu e se atribui de algu m as décad as par a cá aos aspectos
psicológicos d a m edicin a m od ificaram esse in teresse, deslocan do-o
u m p ou co em direção à área n or deste d o gráfico. A s id eologias
ecologist as acen tu am esse efeito.

Essa escolh a d a m edicin a cien tífica foi d eter m in ada pela prática
m édica. O fato de qu e ela ten h a in icialm en te se dir igido a pacien tes
capazes de se cu idar e de pagar, o m édico n ão deixa de estar ligado
à valorização qu e exam in am os an teriorm en te. Se os cu id ad os com
a saú d e se dir igissem pr im eiro às m assas, a ciên cia d a saú d e teria
d ad o m u it o m ais im portân cia à h igien e d o qu e de fato foi dad a.
Sem dú vida, tam bém , o aspecto preven tivo teria prevalecido sobr e
o curativo.

A m an eir a pela qu al o p ar ad igm a é est r u tu r ado h oje possu i


con seq ü ên cias sociais. A ssim , ele privilegiará os d iagn óst icos d a
d oen ça e d aqu ele qu e, n a equ ipe d a saú de, está m ais pr óxim o: o
m édico. Isto fará com qu e se ju lgu e n or m al d isp en sar gr an des
so m as de d in h eir o p or u m a oper ação cirúrgica, ao p asso qu e,
segu n d o a escolh a im plícita, h averá u m a ten dên cia a n egligen ciar
o t rabalh o d os en ferm eiros; a razão d isso é sim ples: a oper ação visa
à d oen ça, en q u an t o os en ferm eiros se in teressam pelo bem -estar e
con fort o d o doen te. O par ad igm a veicula u m a série de escolh as de
priorid ad e: pr iorid ade d o diagn óst ico sobr e o tratam en to, priori­
d ad e d a cura sobre a h igien e, pr iorid ade d o cor po sobr e a p sicolo­
gia, p r ior id ad e d as especializações sobr e a m edicin a geral, pr iori­
d ad e d a cu ra sobr e o bem viver e assim por dian te.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 115

Escolh as políticas e econ ôm icas d ecorrem d essas pr ior id ad es:


o s or çam en tos destin ar-se-ão m ais às p esqu isas dit as “pu r am en te
m ed icin ais” d o qu e àqu elas con cern en tes à h igien e pú blica, m esm o
qu e as segu n d as tragam m ais “r esu lt ad os” n o cam p o d a saú d e d o
qu e as pr im eir as. Existe u m vín cu lo en tre esse par ad igm a e a
ten d ên cia a n egligen ciar o s efeitos sobr e a saú de d as estr u tu r as
econ ôm ico-sociais ligadas ao t rabalh o n a em p r esa (Th ill et al.,
1980).
D evid o a esse par ad igm a, o term o “cu r ar ” será det er m in ad o
pela ciên cia m édica, b em m ais d o qu e por pr ob lem as con cr etos. E
d esse m od o qu e - n os p aíses su b d esen volvid os, p or exem plo - os
m éd icos p od em se ju lgar capazes de curar verm es in testin ais
m esm o em situ ações em qu e, com t od a a evidên cia, as pop u lações
n ão est ão livres deles. E qu e, par a esses m édicos, o term o “cu r ar ”
sign ifica “cu rar d en t ro de u m h osp it al”, ou seja, t en d o su p r im id o
tod as as ou tr as variáveis d o p r ob lem a con creto - variáveis econ ô­
m icas, cu ltu rais, políticas etc. Pode-se assim con st atar essa situ ação
p ar ad oxal em qu e os m éd icos preten derão ser capazes de cu rar
d et er m in ad a d oen ça, q u an d o as p essoas con tin u ar ão a pad ecer e
m esm o a m orrer delas. Acon tece sim p lesm en t e qu e a n oção
corren te de cura foi d eslocad a n o âm bito d o par adigm a d a m edicin a
cien tífica e redefin ida por ele.
Se o p ar ad igm a d a m ed icin a cien tífica con tr ibu i par a qu e, com
o in tu ito de m elh or ar a saú d e d as p op u lações d os p aíses d esen vol­
vid os, se utilizem m ais os m edicam en t os d o qu e a su p r essão d o
t rabalh o com p au sas, os seu s efeitos são ain d a m ais m ar can tes n os
p aíses em desen volvim en to. N a m aioria deles, as estr u tu r as da
m ed icin a cien tífica só ch egaram à con st ru ção de gr an des h osp it ais
m od er n os; ali algu n s d oen tes são t ratad os de acor d o com t od as as
técn icas d a arte, en q u an t o qu e cen ten as de p essoas fora dali
r essen tem violen tam en te a n ecessid ad e de n ovos m od os de vida.
O fr acasso d a m edicin a cien tífica n esses países é tão gr an d e q u e a
m aioria d o s m édicos for m ad os n os países d esen volvid os n ão
d esejam retorn ar aos seu s p aíses de origem ou , se o fazem , n ão
qu er em t rabalh ar ju n t o à p opu lação m en os privilegiada. A for m a­
116 GÉRARD FOUREZ

ção cien tífica p or eles recebida os tor n a pou co apt os a perceber as


q u est ões d a saú d e tais com o se apr esen t am n esses lu gares. O qu e
p od e fazer u m especialista em oper ações car d íacas q u an d o a
m aior ia da p op u lação sofre d e p ar alisias in testin ais? Para qu e serve
u m d iagn óst ico bem pr eciso se ele só pod e ser aplicado a u m a
m in or ia? Esses exem plos m ostr am qu e o valor de u m saber , com o
o de u m a tecn ologia, é sem pre ligado a u m con texto d a sociedade:
os saber es assim com o as tecn ologias p od em ser m ais ou m en os
apr op r iad os.
A m an eir a pela qu al u m par adigm a pode in flu en ciar a prática
aparece claram en te q u an d o se con sidera a dificu ldade de fazer com
q u e os m éd icos aceitem a prática da reidratação oral par a os casos
de diarréia, em especial n as crian ças. Q u an d o os p esqu isad or es
sab em qu e esse m ét od o é tão eficaz, sen ão m ais, d o qu e os
r em éd ios, q u an d o se sabe qu e é u m m ét od o bar ato qu e pod e ser
ap licad o às m assas, q u an d o o p r ocesso de aplicação é sim ples, ele
é dificilm en te aceito tan to pelos m édicos q u an t o pela popu lação.
E par a con ven cer os seu s colegas, os m édicos são ob r igad os a lan çar
m ão d e ar gu m en t os b ioqu ím icos, q u an d o b on s ar gu m en t os em
t er m os de saú de, n esse caso, ser iam aqu eles pr oven ien es d a
econ om ia e d as estatísticas de r esu lt ados (Papart, 1985).
Poder-se-ia per gu n tar o qu e seria u m con ceito de saú d e n o qu al
a dir eção d o vetor de valor es, em lugar de ap on t ar par a a área
su d oest e d o gráfico, se d ir igisse à área n ordeste. N e ssa situ ação, o
acen to recairia sobr e a b u sca de n ovos m od os de vida e de m orte,
pelo fortalecim en to d a en ergia d as p essoas, pela vizin h an ça e pelo
m u n d o, sem p or isto n egligen ciar o aspecto m icr oscóp ico e o da
extração d a d oen ça. E se recon h ecem t en dên cias pr esen t es em
n o ssa socied ad e m as em geral con sid er ad as com o “ m en os cien ­
tíficas”.
Sem elh an t e m u d an ça de p ar ad igm a teria r esu lt ad os sobr e a
prática d o s t rabalh ad or es n a área de saú de. Privilegiar-se-iam as
equ ip es n as q u ais o m édico qu e efetua o d iagn óst ico n ão teria
n ecessar iam en t e o papel prin cipal. U m a im por tân cia m aior atri-
buir-se-ia aos tratam en tos, à edu cação e à p r om oção d o s valor es d a
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 117

vid a. Esse en foqu e n ão se con cen traria sob r e u m in divídu o “ab s­


trato”, p or qu e en con tra-se sep ar ad o d a realidade afetiva e social em
qu e vive, m as sobr e u m a p essoa in tegrada à su a vizin h an ça, ao seu
m eio de trabalh o, à su a região e ao u n iverso. A p r ofissão de
en fer m eir o seria valorizada, p ois con siderar-se-ia im por tan t e qu e
u m a p essoa fosse b em acolh ida, recon fortada e cu id ad a p essoal­
m en te, a p on t o de p od er se in stru ir com su a doen ça e tirar dela
n ovas forças. T o d a u m a série de ou t r os con h ecim en t os su rgiria,
tão eficazes talvez q u an t o os qu e con h ecem os h oje.
Essa m od ificação de par ad igm a con du ziria a m od ificações n a
estru tu ra social d a equ ipe d o s qu e trabalh am n o cam p o d a saú de:
em vez de ser d om in ad a pelo m édico qu e, em virtu de d e su a
pr ecisão “cien tífica”, dirige o resto d a equ ipe, a equ ipe seria m ais
in tegrada. Por exem plo, q u an d o algu ém se ap r oxim a da m orte, a
equ ip e ocupar-se-ia m ais com o acom p an h am en t o d o m or ib u n d o
d o qu e com o qu e h oje é a técn ica m edicin al. O qu e n ão q u er dizer
qu e a ciên cia d a saú d e seria m en os técn ica, m as a con cepção de
técn ica seria m ais abran gen te.
A an álise qu e acab am os de fazer a respeito d a m edicin a é u m
caso em qu e se p od e ver com clareza o fu n cion am en t o m en tal e
social d o par ad igm a. A força e a fraqu eza d a m edicin a cien tífica
pr ovêm am b os d o asp ect o redu tor d o par ad igm a. Sem redu ção
m etodológica, logo se está gir an d o em círcu los, m as ela t am b ém
ap r esen t a in con ven ien tes. Mutatis m utan dis, é possível m ostr ar
algo sem elh an t e par a t od as as d iscip lin as, d esd e a física ou a
m atem ática até a in form ática, p assan d o p or m u itas ou tras.

Ciência normal e revolução científica

A o in trodu zir o con ceito de p ar ad igm a com o con ju n t o de


regras e de represen tações m en tais e culturais ligadas ao su rgim en to
d e u m a disciplin a cien tífica, T h o m as S. Ku h n valorizou as decisões
(m u itas vezes n ão-in ten cion ais, n ão-racion ais, m as n ão se deven do
118 GÉRARD FOUREZ

ao acaso ou sen d o irracion ais) pelas q u ais u m a d isciplin a t om a su a


for m a h istórica. A o in trodu zir esse con ceito, ele eviden ciou qu e
u m a ciên cia tem data de n ascim en t o, dian te d e q u est ões e pr eocu ­
p ações precisas, em u m a rede de in teresses pr ecisos qu e h oje é fácil
de an alisar (com o n o caso d a ciên cia d a in form ática, em qu e se vê
o con texto in flu en ciar a estru tu ra e a prática d e ssa d isciplin a).
C olocou em qu est ão, assim , fu n dam en talm en te, a repr esen tação
segu n d o a qu al as d iscip lin as existiriam desde sem pre, com o
p en sam o s idealistas.
Ku h n in trodu zia u m con ceito qu e gerou in ú m er as con tr ovér ­
sias. D ist in gu e com efeito d o is m om en t os bem diver sos d as
práticas cien tíficas. O qu e ele ch am a de ciên cia n orm al é o trabalh o
cien tífico qu e, n o in terior de escolh as par ad igm át icas det er m in a­
d as, ten ta resolver p r ob lem as. E o qu e ele ch am a de revolução
cien tífica é o qu e acon tece q u an d o é o âm bito par adigm át ico de
u m a d iscip lin a qu e é qu est ion ad o.

A ssim , n o in ício d o sécu lo XIX, a fisica t rabalh ava den t ro d o


p ar ad igm a n ew ton ian o e a m an eir a pela qu al se agia cor r espon d e
b em ao con ceito de “ciên cia n or m al”. Trabalh ava-se d en t ro de u m
esq u em a teórico con h ecid o, qu e qu ase n ão se qu est ion ava. Além
d isso, n o fin al d o sécu lo, o p ar ad igm a d o esp aço n ew t on ian o foi
cada vez m ais q u est ion ad o; estar-se-ia dian te d e u m a revolução
cien tífica: ap ós u m per íod o de fervilh am en to in telectual, n asceu o
p ar ad igm a relativista. U m a an álise an áloga pod er ia ser feita n o
cam p o d a b iologia d a h ereditariedade qu e t rabalh a den t ro d o
p ar ad igm a d a b iologia m olecu lar 0acob , 1970). Em cada caso,
q u an d o ocorre u m a revolução cien tífica, a d isciplin a redefin e o seu
ob jet o (respectivam en te o esp aço e a h ereditariedade) p or m eio d o
n ovo par ad igm a. Ser ia o caso de pergun tar-se t am b ém se a t en d ên ­
cia n a ciên cia da saú de em revalorizar os fatores psicológicos, sociais
e glob ais n ão sign ifica t am b ém u m a certa revolução cien tífica.

Existem in ú m eras con trovérsias relativas à oper acion alid ade da


d istin ção en tre ciência n orm al e per íodo de revolução cien tífica; de
acor d o com o p on t o d e vista, com efeito, pode-se con sid er ar
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 119

“p eq u en as revolu ções cien tíficas” ou “gr an d es” .2 Porém , pratica­


m en te t od os con cor dam em recon h ecer o valor d a con tr ibu ição de
Ku h n q u an d o ele in dica a existên cia de u m vín cu lo en tre u m a
h ist ór ia cultural e o d esen volvim en to d as d iscip lin as cien tíficas.
M esm o qu e algu n s (Giar d, 1974) acrescen tem qu e ele n egligen ciou
a im por tân cia d a h ist ór ia socioecon ôm ica ligada às d iscip lin as.

Nascimento de uma disciplina:


período pré-paradigmático

O per íod o du r an t e o qu al u m a d iscip lin a está a p on t o de


n ascer, o m om en t o em qu e ela é ain d a relativam en te flexível
ch am a-se, d e acor d o com o gr u po de St an b er g (u m gr u p o de
filósofos alem ães, cf. Sten gers, 1981), a fase pré-paradigm ática. E o
p er íod o em qu e as práticas d as d isciplin as n ão estão ain d a b em
d efin id as com o, h á cerca de 30 an os, a in form ática ou a vulcan o-
logia. Em vu lcan ologia, p or exem plo, H ar ou n Tazieff é o pr ot ótipo
d o cien tista de u m a d isciplin a em fase pré-paradigm ática. Ele se
r ecu sa a utilizar técn icas qu e serão em segu ida ad ot ad as p or ou tr os
vu lcan ólogos. A su a prática cien tífica parece p or vezes qu e se baseia
m ais em u m a fam iliar id ade com os vu lcões d o qu e com m ét od os
ext rem am en te precisos. Essa pr iorid ade d o existen cial sobr e as
regras d a d iscip lin a caracteriza esse per íodo, assim com o a im p or ­
tân cia d ad a às d em an d as sociais exteriores a u m a com u n id ad e
cien tífica cu ja iden tidade n ão está clara ain d a. Sabe-se aliás com o,
em especial q u an d o h ou ve a am eaça d e exp losão d o vu lcão
Soufrière, Tazieff foi con test ado pelos “or t od oxos” d a vu lcan ologia
(ou seja, aqu eles qu e h aviam ad ot ad o o par ad igm a!; Lague, 1977).

2 M ast er m an , in Lak at os & M u r gr ave (1970), de m an eir a epist em ológica, e Salo m o n


(1970), d e m an eir a h istór ica, m ost r am as d ificu ld ad es en con t r ad as ao se qu er er
utilizar o con ceit o d e r evolu ção cien tifica d e m an eir a pr ecisa. V er tam b ém a excelen te
an álise d e H ach in g (1986).
120 GÉRARD FOUREZ

O p er íod o pré-paradigm ático se caracteriza em particu lar pelo


fato d e q u e n ão existem ain d a for m ações u n iversitárias pr ecisas
p ar a se tor n ar u m especialista d essa disciplin a. Estes pr ovêm de
t od os os cam p os, com o se viu, n o in ício d o s an os 60, n o per íod o
pré-paradigm ático da in form ática. O s p r ob lem as se or igin am
de m an eira m ais ou m en os direta d a vida cotidan a ou , em todo
caso, d e fora d a disciplin a: d o m u n d o in du strial, m ilitar, da
pr od u ção, de ou tr as d isciplin as cien tíficas etc. Em in form ática, por
exem plo, ser ão p r ob lem as colocad os em term os de ar m azen agem ,
d e gestão, de p esqu isa operacion al, e assim por dian te. Em ciên cias
ligadas ao cam p o d a saú de, serão pr ob lem as diretam en te colocad os
em ter m os de p essoas q u e estão doen tes ou m or r en d o (o qu e
explica aliás a pr iorid ad e d a m edicin a curativa sobr e a m edicin a
preven tiva). Diz-se, aliás, qu e, du ran te esse período, são as “d em an ­
d as ext er n as” qu e são determ in an tes.
D u r an te o per íodo pré-paradigm ático, as r ealidades sociais são
d et er m in an t es par a a evolução de u m a disciplin a. A ssim , n a
h istór ia d a física, as n ecessidades d a n avegação, da balística m ilitar,
d a m in er ação são pr eocu pações qu e deter m in am as direções n as
q u ais o ob jet o “físico” desen volver-se-á. Para a in form ática, pode-se
an alisar a in flu ên cia d a in d ú st ria, e m ais particu larm en te d a
“gigan te” IBM. A s qu est ões qu e se colocar am os geólogos, por
ocasião d o p er íod o pré-paradigm ático, foram fortem en te in flu en ­
ciad as pelas p esqu isas m ilitares e petrolíferas. Q u an t o à geografia,
ela esteve de m an eir a geral ligada ao “pod er ”: n o per íod o pré-pa­
radigm ático, é p or vezes difícil d istin gu ir u m geógrafo d o batedor
d e u m a in vasão (e aliás, n ão é sem pre tão fácil fazer essa distin ção
at u alm en te, de tal m od o a geografia tem servido ao exercício d o
p od er , em b or a n em sem pre par a “fazer a gu er r a” e estabelecer
im p ér ios - m ilitares ou econ ôm icos). Por alto, pode-se con sid er ar
qu e a geografia n asceu com o u m a tecn ologia in telectual cu jo
objetivo era o de facilitar o govern o (Lacoste, 1976).
A s d iscip lin as cien tíficas são port an to ligadas a m ú lt iplos
m ecan ism os sociais e m esm o a lu tas sociais. São as d em an d as
sociais e a m an eira pelas q u ais os gr u p os de p essoas pr ocu r am
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 121

r esp on d er a elas qu e deter m in am pou co a p ou co a fision om ia


p r óp r ia d as d isciplin as. Por vezes, con tu d o, com o tem po, a
d em an d a social extern a pod e ser ob n u b ilad a a u m tal p on t o qu e
se pod er ia acreditar qu e ela d esd e sem pre existiu. E o caso, p or
exem plo, da física e de ou t r as “velh as” d iscip lin as de con ceitos
“en r ijecid os” (Sten gers, 1987, esquece-se, p or exem plo, d a ligação
qu e a m atem ática teve com as técn icas com erciais e o vín cu lo qu e
ela m an tém atu alm en te com a n ossa socied ade de gestão!). Para
ou tr as d isciplin as, pelo con trário, pode-se ain d a perceber o vín culo
en tre a su a origem social e o seu atual fu n cion am en t o (é o caso
par a a geografia, a geologia, a m edicin a, a in form ática etc.).
A aten ção aos con d icion am en t os sociocu ltu r ais d o s par adig­
m as n ão deve fazer com qu e se perca de vista a im por tân cia d as
det er m in ações ligadas a ou t r os com pon en t es da con d ição h u m an a
e de su a evolução. A ssim , “a física de Galileu rem ete ao fato de qu e
vivem os em u m m eio on d e as forças de fricção são geralm en te
déb eis. Se, sem elh an t es aos golfin h os, tivéssem os vivido em u m
m eio m ais d en so, a ciên cia d os m ovim en tos teria assu m id o u m a
for m a diferen te” (Prigogin e &. Sten gers, 1988, p .21).

Disciplinas estabelecidas: período paradigmático

Q u an d o u m a d isciplin a está “est abelecida”, fala-se d e período


paradigm ático. E a época du r an te a qu al ela tem o seu objet o
con st r u íd o de m an eir a relativam en te estável, e su as técn icas são
relativam en te claras. N e sse m om en t o, o s p r ob lem as n ão são m ais
d efin id os tan to pelas d em an d as “ext er n as” q u an t o p or term os
“d iscip lin ar es”. Será preciso, por sin al, traduzir o t em po t odo as
qu est ões d a vida cotidian a em term os par adigm át icos e vice-versa.
D esse m od o, em m edicin a, em term os pré-paradigm áticos,
falar-se-á de u m a d or de barriga, en qu an t o, em t er m os p ar ad igm á­
ticos, será preciso traduzir essa d em an d a extern a em t er m os m ais
disciplin ar es, falan d o p or exem plo em h iperacidez n o est ôm ago ou
122 GÉRARD FOUREZ

coisas sem elh an tes. D ep ois, será n ecessár io traduzir n ovam en te o


p r ob lem a em term os de existên cia cotidian a, pr escr even do rem é­
d ios, p or exem plo, e in d ican d o com o devem ser t om ad os, im p on ­
d o ou d iscu t in d o regim es par a a vida toda.

N o per íod o par adigm ático, as p esqu isas serão efetu ad as em


geral de m an eir a “técn ica” (isto é, em ter m os qu e se referem às
escolh as par adigm áticas): assim , h averá u m a ten dên cia m en or a
fazer p esq u isas sobr e a “d o r de b ar r iga” d o qu e sob r e ob jet os já
d et er m in ad os pela d isciplin a, com o as “úlceras est om acais”, ou
ou t r as q u est ões ain d a m ais técn icas, defin idas em t er m os b ioqu í­
m icos, p or exem plo.

De igual m od o, em in form ática, n o per íodo par adigm ático, o


con ceito de “ar m azen agem ” tem cada vez m en os a ver com o qu e
p en sa o m erceeiro, m as será defin ido de u m a m an eir a b em m ais
precisa n o in terior de u m con ju n t o con ceituai det er m in ad o pela
m atriz d iscip lin ar e pelas teorias d a in form ática.

V im o s tam bém com o, em m edicin a, a sign ificação d a palavra


“cu r ar ” d ep en d e d o p ar ad igm a d essa disciplin a, a p on t o de qu e se
fala qu e se pod e cu rar u m a d oen ça qu an d o, de m an eir a con creta
- ou seja, q u an d o n ão se elim in aram as variáveis econ ôm icas e
cu ltu rais - , ela n ão pod e ser n a verdade curada.

Em t od os esses casos, pode-se perceber ao m esm o t em po a


força e a d eb ilid ad e d as ab or d agen s paradigm áticas. Elas são fortes
p or qu e, sem elas, n ão con segu ir íam os resolver a m etade d as
q u est ões con cretas qu e resolvem as n ossas técn icas m od er n as. Elas
são d éb eis p orqu e, separan do-se cada vez m ais d a existên cia
cotidian a, elas só resolvem os p r ob lem as p en sad os pelos especia­
listas, e n ão aqu eles qu e sen tem as p essoas em seu cot idian o. N o
1fu n d o, a força d a ciên cia provém de qu e os seu s p ar ad igm as
, sim plificam su ficien tem en te o “real” a fim de pod er estudá-lo e agir
sob r e ele. Porém , é t am bém em seu per íodo par adigm át ico qu e se
com eça a criticar a ciên cia p or se sep ar ar d o s p r ob lem as d a
sociedade, assim com o as tecn ologias.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 123

O desenvolvimento das
abordagens paradigmáticas

O fu n cion am en t o d a ciên cia n o per íod o par adigm át ico pode


ser com p ar ad o ao d esen volvim en to d as tecn ologias m ateriais.
T am b é m elas com eçam por per íodos “pré-paradigm áticos”. A ssim ,
n o fin al d o sécu lo XIX, u m a série de p esqu isas aqu i e ali acabou
crian d o u m a n ova tecn ologia e u m n ovo con ceito: o au tom óvel.
N o sécu lo XX, esse con ceito está bem defin ido. D esse m od o,
pode-se ver p esqu isas ligadas ao qu e se poder ia ch am ar de “ciên cia
d o au t om óvel”. Sem elh an t es trabalh os n ão defin em m ais os p r o­
b lem as est u d ad os em t er m os de d em an d as extern as (t r an sp or t es,
con fort o etc.), m as em t er m os técn icos, ligados ao “p ar ad igm a” d o
au tom óvel. Parte-se d as p esqu isas sobr e os m ot ores a exp losão, os
aceleradores, os car b u r ad or es e assim p or dian te. O objet o de
p esqu isa está bem defin id o pelo con texto tecn ológico, m ais d o qu e
pela d em an d a extern a.
N est e sen tido, pode-se con sid er ar o per íodo par adigm át ico
com o o m om en t o em qu e u m a d isciplin a cien tífica, ten d o deter­
m in ad o e con st r u íd o o seu objeto, ap r ofu n d a a p esqu isa n as
direções d et er m in ad as p or su as escolh as par adigm át icas - ocu ltan ­
d o em geral a existên cia d essas escolh as e n egligen cian d o a su a
in flu ên cia (Levy-Leblon d, 1982). Para retom ar a com par ação com
as tecn ologias, pode-se exam in ar de qu e m od o a p esqu isa em
relação ao au tom óvel depen deu de escolh as feitas n o fin al d o sécu lo
XIX. For am elas qu e d et er m in ar am t od o u m p r ogr am a de p esqu i­
sas. D e m an eira sim ilar, a biologia m olecular, u m a vez estabelecido
o seu par ad igm a, levou adian te as su as p esqu isas u tilizan do o
p at r im ôn io gen ético com o “ch ave” d a h ereditariedade (do m esm o
m od o, levar-se-á adian te as p esqu isas em tecn ologia au tom otiva,
com o se o p ar ad igm a d o au tom óvel con st it u ísse a ch ave d os
m od er n os m eios de tran sporte).
Para com p r een d er os elem en tos aleatórios da evolução - ou da
est agn ação - de u m a d isciplin a, poder-se-ia com p ar ar a in form ática
124 GÉRARD FOUREZ

com a cibern ética. U m ob ser vad or su perficial d o in ício d o s an os


50 teria ap o st ad o qu e, algu n s an os m ais tarde, a n ova d isciplin a
qu e era a cibern ética (estu d an d o os sistem as capazes de corrigir a
si m esm os) teria estabelecido o seu par adigm a. O r a, n essa época
n ascia a in form ática, qu e atin giu h oje a su a m at u ridade disciplin ar ,
en q u an t o a cibern ética con tin u a n o estágio pré-paradigm ático,
ap aixon an t e graças a tod as as m u d an ças p or ela pr ovocad as, m as
sen sivelm en te m en os desen volvid a d o qu e a in form ática. Pode-se
su p o r qu e o pr ogr esso d a ciên cia d o s com pu t ad or es deve-se ao fato
de q u e ela logo se ligou a desen volvim en t os econ ôm icos, m ilitares
e com erciais, ap oiad os p or em pr esas m u lt in acion ais (pr in cipal­
m en te u m a?), e por u m a tecn ologia precisa (o com pu t ad or), ao
p asso qu e a cibern ética perm an eceu u m a espécie de clu be in telec­
tual, in terdisciplin ar, fervilh am en to de n ovas idéias, m as lon ge
d aq u ilo q u e Ku h n d en om in ou de “ciên cia n or m al” .
Q u an t o ao exem plo d a biologia m olecu lar, ele m ostr a o
in teresse d o p er íod o par adigm ático. Essa ciên cia ap r im or a u m a
tecn ologia in telectual extrem am en te poten te. Apr ofu n dam -se os
p r ob lem as den t ro de u m esqu em a qu e n ão se qu er m odificar. E
d esse m od o qu e Ku h n com par ou a p esqu isa em per íod o par adig­
m ático (ou seja, a “ciên cia n or m al”) com a r esolu ção de u m
qu ebra-cabeças: con sidera-se qu e as peças for m am u m con ju n t o
q u e se ten ta recon stitu ir. Ku h n com par ar á t am b ém o m om en t o
em qu e se pergun ta se n ão existirão d ois quebra-cabeças m istu r ados
n o p er íod o da “ revolução cien tífica” , du r an te o qu al se qu est io­
n am as su as h ipót eses fu n d am en t ais e o p r óp r io h orizon te d a
pesqu isa.
Por ocasião d o per íodo par adigm ático, pode-se defin ir o p r ó­
pr io t rabalh o p or referên cia a u m âm b it o d isciplin ar preciso: os
p esq u isad o r es se d efin em com o fazen do física, b iologia, qu ím ica,
m atem ática etc. Sen tem -se m en os in clin ados a r esp on d er a d em an ­
d as de con h ecim en tos vin d as d a vida extern a à d isciplin a. E
du r an t e esse per íod o qu e a d iscip lin a defin e as su as qu est ões, de
m an eir a pu ram en te in tern a; exam in ar em os adian te o vín cu lo en tre
essa atitu de e o s con ceitos p op u lar es de “ciên cias p u r as” ou
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 125

“ciên cias fu n d am en t ais”. Pode-se n otar, con tu d o, d esd e já, qu e osí


p er íod os par adigm áticos p ossu em u m papel im portan te em relação
ao p od er social: q u an d o as d isciplin as se im pu ser am (Latou r,
1984), en rijeceram o s seu s con ceitos (Sten gers, 1987), obn u bila-
r am as su as or igen s sociais, e os p esqu isad or es p assar am a u su fr u ir
de u m a relativa in d epen d ên cia dian te d o con texto social d en t r o d o i
q u al evolu em . j

O lugar do paradigma: o laboratório

N o desen volvim en to, razoável m as n ão n ecessár io, lem br e­


m os, d as tecn ologias in telectuais qu e são as ciên cias, h á u m a
in ven ção cultural à qu al se deve d ar u m a im por tân cia capital: o
laboratór io. Foi som en t e n o sécu lo XIX qu e o s lab or atór ios -
sem p r e u m p ou co su sp eit os aos in telectuais, n a m edida em qu e
im plicam práticas m an u ais - gan h ar am direito de cid ad an ia n as
u n iver sid ad es (pr im eiro n a Alem an h a e, m ais tarde, n a Fran ça e
n a In glaterra).
N ão teria sid o ad equ ad o falar d os labor atór ios n o capítulo
con sagr ad o à observação e aos testes exper im en tais. N ão q u e isto
n ão ocorra em u m laboratór io, é bem m ais d o qu e isso. U m
laboratór io, é um lugar abstrato (no sentido etimológico da palav ra:
retirado) e privilegiado, no qu al se pode praticar certos experimentos
controlados. Estes n ão são con tr olad os de qu alq u er m an eira: um
laboratório é construído de m an eira tal que as experiências que nele se
realiz am podem ser an alisad as diretam ente de acordo com conceitos
previstos pelo paradigm a. Se, p or exem plo, u m m édico utiliza u m
m edicam en t o em cir cu n st ân cias com plexas, o teste em laboratór io
p od er á ser feito de m od o qu e ele será im editam en te an alisad o em
ter m os m ais sim ples, det er m in ad o pelos p ar ad igm as d a qu ím ica e
d a b iologia.
Em u m laboratór io, os vír u s - ou as partícu las elem en tares -
fazem parte d o observável; já em m eu cor po, ou n o esp aço à m in h a
126 GÉRARD FOUREZ

’ volta, n ão! D esse m od o, o laboratór io é n ecessár io par a qu e eu


p o ssa verificar as leis cien tíficas, as teorias ou os fatos cien tíficos.
Se m laboratór io, n ad a de víru s! Porém , com u m laboratór io,
cr iam os u m am bien te on d e o con ceito de vírus é aplicável. A ssim ,
o con ceito de “vír u s” n ão é utilizável em qu alqu er situ ação, m as
u n icam en t e em con ju n ção com u m “lab or atór io”, qu e perm ite
colocá-lo em evidên cia.

O lab or at ór io n ão é, p o r con segu in t e, ap en as o lu gar on d e o


cien tista trabalh a, é a in stituição qu e serve par a tradu zir os
p r ob le m as d o cot id ian o em lin gu agem d iscip lin ar , e d ep ois
devolvê-los. Procedem -se ali as exper iên cias con t r olad as qu e
p od er ão ser r econ st itu ídas em ou t r os lu gares. C o n t u d o , par a qu e
elas sejam b em su ced id as fora, n a “gr an d e” socied ad e, será
p r eciso m u it as vezes qu e o labor at ór io se d esloqu e, ist o é, qu e as
con d ições de “ap licações” assem elh em -se o su ficien te às d o
lab or atór io. Sem con d ições su ficien tes de h igien e, p o r exem plo,
u m a vacin ação d o gad o n ão é possível. Esse “d eslocam e n t o” do
lab or at ór io é a ch ave d e m u it as tecn ologias: elas r epr od u zem , em
u m am b ien t e m en os privilegiado, o equ ivalen te d e u m lab or at ó­
rio. E n esse sen t id o, aliás, qu e se p od e dizer qu e m u it as t ecn olo­
gias são aplicações d aq u ilo qu e foi bem su ced id o cm labor at ór io
(Latou r , 1982).

E t am bém em parte ao laboratório qu e se deve a u n iversalidad e


d a ciên cia. Ela talvez n ão seja u n iversal em sen t id o ab solu to, m as
u n icam en t e em relação aos m ét od os de verificação, isto é, aos
lab or atór ios. E a existên cia de lu gares com o esses, pr ot egidos, em
q u e o “r eal” é filtrado segu n d o as n or m as d o s p ar ad igm as, qu e
perm ite d ar às ciên cias o porte de u m d iscu r so u n iversal. Já vim os
q u e o s resu lt ad os cien tíficos são com pr een síveis e com u n icáveis
(com o toda lín gu a)... ten d o com o ú n ica con d ição o apr en d izad o
d a ciên cia (ou d essa lín gua)! D o m esm o m od o, as experiên cias
cien tíficas são u n iversalm en te reprodutíveis... t en d o com o ú n ica
con d ição reprodu zir as m esm as con d ições privilegiadas d o labo­
ratório.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 127

O esgotamento dos paradigmas:


em direção ao período pós-paradigmático

D u r an t e o per íodo paradigm ático, a d isciplin a se m an tém


“viva” n a m ed ida em qu e ela perm an ece em con tato com pr ob le­
m as for m u lad os em t er m os exteriores à d isciplin a (com o o p r ob le­
m a da h ereditariedade dian te d a biologia m olecu lar). Tod avia, a
d iscip lin a pod e per der praticam en te todo o con tato com as q u e s­
tões “ext er n as”. Iden tifican do, p o r exem plo, os pr ob lem as d a
h ereditariedad e com os pr ob lem as d a b iologia m olecu lar, ou
dizen do, o qu e d á n o m esm o, qu e a biologia m olecu lar resolveu o
pr ob lem a d a h ereditariedade. O m esm o p r ocesso poder ia aparecer
n a in form ática, ao se iden tificar os p r ob lem as d a in form ação com
o s d o com pu t ad or.
Em casos sem elh an tes, d u as p ossib ilid ad es se abr em . O u bem
a d iscip lin a se t orn a cada vez m ais in ad equ ad a e se vê con fr on t ad a
com p r ob lem as “racalcitran tes”, “an om alias”; é pr eciso erçtào
esp er ar p or su a ren ovação p or m eio d a rejeição d o s p r essu p ost os
par ad igm át icos an teriores, com o ocorreu n a fisica n o in ício d o
sécu lo XX. Esse p r ocesso cor r espon d e bem ao con ceito de “revo­
lu ção cien tífica”. A segu n d a p ossib ilid ad e é qu e ela r espon d a às
q u est ões qu e se colocam , en tr an do assim em u m ciclo pós-paradig-
m ático.
O gr u p o de St an b er g fala de u m a d isciplin a em período
pós-paradigm ático n o m om en t o em qu e ela se apr esen ta com o u m a
t ecn ologia in telectual acabada, e n a qu al qu ase n ão se faz m ais
p esq u isas (a m en os qu e u m n ovo pr ob lem a extern o obr igu e a
r ep en sar u m elem en to d essa disciplin a). O exem plo da trigon om e-
tria é excelen te: essa disciplin a se desen volveu a u m tal p on t o qu e,
n a prática, ela só é en sin ad a e utilizada. E u m a tecn ologia in telectual
extrem am en te útil ain d a, m as qu e n ão é m ais ob jet o de p esqu isas.
D o m esm o m od o, certas classificações d o s m in er ais, d o s vegetais
ou d o s an im ais, ou certas an álises qu ím icas parecem ter ch egado
a seu est ad o pós-paradigm ático.
128 GÉRARD FOUREZ

Traduções, reduções, explicações

O s p ar ad igm as são in st ru m en t os in telectuais p od er osos n o


d o m ín io d o m u n d o. V im o s qu e eles perm item “traduzir" u m
ter m o d a vida cotidian a em u m a lin gu agem m ais técn ica, m ais
precisa. A ssim , q u an d o o com ercian te pode traduzir o seu p r ob le­
m a em t er m os de p esqu isa oper acion al, sabe-se m ais pr ecisam en te
a qu e se referem os term os: est oqu e ven d ido, n ão ven d id o etc.
Existe en tão u m a con ven ção social, ligada ao p ar ad igm a, qu e
perm ite sab er com m aior exatidão d o qu e se fala (m esm o se, par a
isso, sacrificam -se algu n s elem en t os da d em an d a extern a).
Diz-se qu e se reduz u m pr ob lem a q u an d o só o con sid er am os
de acor d o com a tradu ção d o par ad igm a. Fala-se de “cien tificism o”
q u an d o se está p er su ad id o de qu e a su a redu ção dá con ta de tod o
o p r ob lem a. Fala-se en fim de explicação de u m fen ôm en o q u an d o
se con segu iu traduzi-lo em u m par adigm a diferen te d aqu ele qu e se
tin h a d e in ício. A ssim , se con sid er o o am or, p o sso d ar u m a
“exp licação” em term os de h or m ôn ios e, de u m a perspectiva
cien tificista, p o sso p en sar ter efetuado u m a “r ed u ção” ab solu t a­
m en te ad eq u ad a e preten der qu e essa explicação m e diz t u do a
respeito d o am or. C a so se trate da h ereditariedade (fen ôm en o d a
vida corren te em qu e se con st atam sem elh an ças en tre as p essoas
e o s seu s descen den tes), p o sso en con t r ar u m a “exp licação” n o
âm b it o d a b iologia m olecu lar; algu n s irão além e pr et en der ão qu e
o d iscu r so d a biologia m olecu lar recobre tod as as in form ações
relativas ao fen ôm en o da h ereditariedade vivido n o cot idian o, e se
falará de u m a atitude “r ed u cion ist a”.

Incomensurabilidade dos paradigmas

A s diferen tes tradu ções de u m fen ôm en o em diferen tes par a­


d igm as colocam a qu est ão de sab er até qu e pon t o u m a tradu ção é
redutível a u m a ou tra; é o qu e Ku h n (1972) ch am ou de qu est ão
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 129

d a “com ensurabilida.de” ou da “in com ensurabilidade” d o s par adig­


m as. Essa qu est ão se coloca em m u it os n íveis, p ar a m u it os fen ô­
m en os e m u itas teorias. V im o s o caso d a h ereditariedade, e d o
am or ; lem b r em os qu e, em u m d om ín io bem diverso, colocou -se o
p r ob lem a da com en su r abilid ad e d as teorias d a luz em u m par adig­
m a cor pu scu lar ou em u m par adigm a on d u latór io.

E fácil iden tificar as razões pelas qu ais Ku h n afirm a a in com en ­


su r ab ilid ad e d o s par ad igm as. C o m efeito, os con ceitos teóricos
com o o s testes exper im en t ais se referem a u m d ad o esqu em a
par adigm át ico. H á sem p re u m salto in terpretatório q u an d o se
afirm a qu e d et er m in ado con ceito, den t ro de u m p ar ad igm a, eqü i­
vale a u m ou t r o con ceito, em ou tro par adigm a. Fr an çois Jacob
(1970) m ostrou-o n o exem plo d a h ereditariedade: o d iscu r so d o
sécu lo XVI é h eterogên eo, d o pon t o de vista qualitativo, daqu ele
d o sécu lo XIX, m esm o qu e se p o ssa traduzir u m n o ou tr o. O s
físicos têm bast an t e con sciên cia d isso, p ois se der am con ta, com a
teoria d a relatividade, qu e o con ceito de com p r im en t o só p o ssu i
sen t id o d en t ro d o p ar ad igm a em qu e ele é colocado. O s filósofos
d a ciên cia m ostr ar am tam bém qu e o pr ob lem a se coloca q u an d o
se qu er afirm ar qu e det er m in ada experiên cia deve (ou pode)
in terpretar-se n o âm b it o de tal ou tal teoria (cf. supra sobr e os
con textos d as experiên cias e d as observações).
Em prin cípio, é difícil ju stificar teoricam en te u m a tradu ção.
Para fazê-lo, seria pr eciso su p o r qu e se d isp õe de u m q u ad r o de
referên cia qu e com pr een da os d ois d iscu r sos (o qu e é u m a m an eira
de p r essu p o r o p r ob lem a resolvido).
Esse pr ob lem a d a in com en su r ab ilid ad e de d ois par ad igm as
talvez seja u m caso particu lar d a in com en su r ab ilid ad e de d u as
lín gu as. Q u an d o digo, p or exem plo, qu e os con ceitos de “sorcelle
rie” (“feitiçaria”), “Dieu” (“ D e u s”), “modèle” (“m od elo”) se tradu ­
zem respectivam en te p or “w itchcraft”, “God”, “pattern ”, qu alqu er
u m q u e con h eça o fran cês e o in glês3 sab e qu e a t radu ção sem p r e

3 O u o p or t u gu ês (N. T.)-
130 GÉRARD FOUREZ

trai u m p ou co o sen tido. Em ou t r os term os, n en h u m a tradu ção


m in im am en te com plexa de u m a lín gu a - e com certeza, n en h u m a
t radu ção de n o ssas lín gu as d o dia-a-dia - reproduz exatam en te u m
ou t r o d iscu r so. Em ter m os k u h n ian os, as lín gu as são sem pre
in com en su ráveis; em ter m os m ais tradicion ais, o afor ism a italian o:
traduttore, traditore. Tod avia, sab em os qu e toda a n ossa atividade
lin gu ageira e t od as as n ossas con st ru ções de sen t ido se b aseiam
sobr e esses saltos, n ão redutíveis a u m a ju stificação teórica, qu e são
as tradu ções. E tão verd ad eiro para o bebê qu e ap r en d e a falar
q u an t o par a n o ssas atividades m ais elabor ad as.

As traduções: necessidade de
toda abordagem técnica

T o d a técn ica exige u m a série de tradu ções (Roqu eplo, 1978;


C allo n , 1978). Se for à padaria, par a com p r ar u m pão, irei m e
expr im ir em term os “n ão t écn icos”. Descreverei d esse m od o u m a
m an eira de sen tir u m certo n ú m er o de desejos, de gostos. Em geral,
o m eu p ed id o será tradu zido, seja pelo p r óp r io padeir o, seja pelo
ven d ed or ou ven d edor a, em term os técn icos: dir-se-á, p or exem plo,
qu e d esejo u m p ão m en os gor d u r oso, ou com m en os águ a etc. N o
en tan to, o qu e d esejo n ão é u m p ão m en os go r d u r oso ou com
m en os água, m as u m qu e ten h a u m certo gost o de acor d o com a
m in h a experiên cia. H á en tão u m a passagem , u m a t radu ção, en tre
a m in h a lin gu agem cotidian a e u m certo tipo de lin gu agem agora
m ais técn ica. D ep ois, essa lin gu agem sem dú vida será ain d a
tradu zida em term os m ais técn icos, praticam en te em ter m os de
“ p ar ad igm a d a p ad ar ia", ou seja, em term os de tem peratu ra, de
for n os etc.
Esses p r ocessos de t radu ção são essen ciais à prática cien tífica
e à utilização d a ciên cia (com o d a tecn ologia). Sem eles, o d iscu r so
cien tífico seria in útil, já qu e in aplicável n o cot id ian o. O s con ceitos
cien tíficos m ais pr ecisos n ão teriam sen tido algu m se n ão se
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 131

ap r oxim assem , em d et er m in ad o m om en t o, de u m con ceito m ais


flexível ou de u m a experiên cia d o sen so com u m . A ssim , o con ceito
de tem peratu ra, m esm o em su a defin ição m ais técn ica d a t er m odi­
n âm ica, recebe a su a sign ificação p or m eio d o vín cu lo qu e p ossu i
com as sen sações m ais b an ais (sem as q u ais n ão p od er íam os m e­
d ir n ada).
O s cien tistas im agin am p or vezes p ossu ir con ceitos p r ecisos e
u n ivocam en te d et er m in ad os; estes n ão teriam sign ificação se n ão
fossem traduzíveis n a experiên cia m ais flexível d o cotidian o. U m a
defin ição b iológica elab or ad a d o “ser vivo”, p or exem plo, deve o
seu sen t id o à n oção cot idian a d a vida. O vín cu lo de u m con ceito
cien tífico com o cot id ian o pod e variar (pode-se, p or exem plo,
d efin ir o m etro em relação a u m a on d a eletrom agn ética, m ais d o
qu e em relação à Ter ra), m as perm an ece in evitável.

Os riscos das traduções:


abuso de saber ou acidentes

En tretan to, é t am bém p or t od os esses d eslocam en t os de sen ti­


d o qu e se praticam n as tradu ções qu e p od em ocorr er os abusos de
saber p o r m eio d o s q u ais se preten de dedu zir n or m as de con d u t a
com b ase n a ciên cia, ou ob r igações técn icas (cf. Beau m on t et al.,
1977). O m esm o ocorre q u an d o se preten de reduzir os pr ob lem as
à su a t radu ção em t er m os técn icos. Esses ab u sos de sab er ligados
às t rad u ções p od em acarretar p r ob lem as b em práticos. E r ar am en ­
te, com efeito, q u e su r gem em con sid er ações técn icas er r os q u e
cau sar ão a exp losão de u m a n ave espacial, u m “C h e r n ob il” ou o
n aufrágio de u m a balsa. O s erros fatais devem-se em geral à m an eira
pela qu al se tradu ziram situ ações técn icas con cretas n os t er m os
par ad igm át icos de u m a ciên cia ou de u m a tecn ologia. N ão é n u n ­
ca a u m a cen tral n u clear teórica, a u m a n ave espacial teórica, a
u m n avio teórico, ou p or ocasião de u m a oper ação cirúrgica teóri­
ca qu e acon tecem o s aciden tes, m as a essas “m áq u in as” con cretas
132 GÉRARD FOUREZ

qu e se dizia ad equ ad am en te r epr esen t ad as p o r seu “equ ivalen te”


teórico.
D e sse m od o, n a m edicin a, se se adot ar u m par ad igm a de tipo
b iológico, percebe-se qu e o s ter m os “cu r ar ” e “saber-se cu r ad o”
gan h am sign ificações m ais pr ecisas q u an d o t od as as variáveis se
en con t r am m ist u r ad as - in clu in d o as variáveis econ ôm icas e
cu ltu rais. O p ar ad igm a perm ite sim plificar o p r ob lem a a fim de
p od er abordá-lo de m an eir a m ais precisa. Porém , ao efetu ar essa
t radu ção d o pr ob lem a, esquece-se p or vezes a su a origem (o
pacien te “in satisfeito con sigo m e sm o”, por exem plo); arrisca-se
assim a pr od u zir u m a prática in útil. Esse esqu ecim en t o d a com ple­
xid ad e d o pr ob lem a, redu zido à su a descrição n o in terior d o
par ad igm a, é en tão u m a “r ed u ção” discutível.
A o determ in ar os tipos de raciocín io aceitáveis em det er m in ada
experiên cia, o p ar adigm a d eter m in a u m âm b it o de racion alid ade.
A ssim , u m físico, q u an d o estu da u m a cen tral n uclear, n egligen cia
d elib er ad am en t e a qu est ão de sab er se ela será culturalm en te aceita
pela p op u lação. O qu e n ão en tra em seu esqu em a será recu sado.
V im o s qu e a força d a ciên cia con sist e ju st am en te em en fren tar
p r ob lem as “sim p lificad os” (com o dizia P opper, n ão existe triu n fo
m aior d o qu e u m a redu ção m etod ológica b em su cedida). Porém ,
esta é t am b ém u m a de su as fraqu ezas, p ois o trabalh o cien tífico
aparece sem p r e ligado a u m a sim plificação. A ciên cia n ão estu da
jam ais o m u n d o da for m a com o é repr esen t ado n o cotidian o, m as
sem p r e d o m od o com o é tradu zido n a categoria de u m a d isciplin a
precisa e particular. Parece h aver u m a en or m e distân cia en tre o
cot idian o - o real, d ir ão algu n s - e a ciên cia. E o qu e an alisa
Lam otte (1985) em seu artigo sob r e “Le réductionnism e: méthode ou
idéologie?” l“0 r ed u cion ism o: m ét od o ou ideologia?”], em qu e cita
particu larm en te Popper: “Pode-se descrever a ciên cia com o a arte
d a su per sim p lificação sistem ática. C o m o a arte de d iscer n ir o qu e
se p od e om itir ”. Diz ain da: “A s teorias cien tíficas são com o redes
criadas p or n ós e d est in ad as a captu rar o m u n d o... São redes
racion ais criad as p or n ós e n ão devem ser con fu n d id as com u m a
r epr esen t ação com pleta de t od os os aspect os d o m u n d o real, n em
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 133

m esm o se forem m u ito b em su ced id as, n em m esm o se parecem


forn ecer excelen tes ap r oxim ações d a r ealid ade.” (P opper, 1984,
p .3 6 e 135)

A ciência: uma linguagem


técnica como as outras?

Existe h oje u m vín cu lo en tre a lin gu agem d o cot id ian o e o s


con ceit os cien tíficos. E p or isso qu e E m st M ach n ão fala em u m a
sep aração radical en tre o trabalh o d o artesão e o d o cien tista (1925).
O s ar tesãos, par a com u n icar o seu saber “econ om icam en t e”, criam
ter m os técn icos; criam par a si m esm os u m a r epr esen t ação d o
m u n d o qu e lh es in teressa. Utilizam t am bém n oções qu e rem etem
seja à lin gu agem d o cot idian o, seja a ou t r as qu e for am elab or ad as
em con ceitos m ais p r ecisos p o r ou t r os: assim , p or exem plo, os
m ar cen eiros p od er ão falar d a “du reza” de u m a m adeir a. E q u an d o
isto n ão serve par a os seu s pr ojetos, os ar t esão n ão d ão a m ín im a
par a o qu e in teressa aos cien tistas. A atividade de t od os os cien tistas
assem elh a-se à d o s ar tesãos. D esse m od o, o qu ím ico se in teressar á
p or reações pr ecisas e, de m an eir a geral, as sutilezas d os físicos da
m ecân ica qu ân t ica n ão en trarão diretam en te em seu t r abalh o. N o
m áxim o ele u tiliz ará u m certo n ú m er o d essas n oções, m as o fará
sem se em b ar açar com pr ecisões q u e par ecer ão essen ciais a u m
especialista. E se ele p od e se in teressar pelo fato d e qu e o físico
con sid er a qu e as par tícu las qu e for m am o n ú cleo d o s át om os qu e
com p õem as m olécu las qu e ele estu da são for m ad as por quark s,
n ão se p od e dizer qu e esse con ceito de quark seja im portan te par a
a su a prática. Igualm en te, t od os os ar t esãos utilizam con ceitos b em
p r ecisos em u m cam p o restrito, con ten tan do-se com n oções m ais
vagas n a periferia d e seu saber. O especialista pod e se in teressar
pelas p ossib ilid ad es de t radu ção de seu sab er em ou t r os (“redu zin ­
d o ”, p or exem plo, a qu ím ica à física), m as, d o p on t o de vista
prático, ele n ão tem o qu e fazer com isso.
134 GÉRARD FOUREZ

N e sse sen tido, o cien tista n ão difere de u m b om jar din eir o;


t am b ém ele utiliza con ceitos bem pr ecisos (m esm o qu e n ão sejam
for m alizados) q u an d o qu er, p or exem plo, m edir a q u an t id ad e de
gr ãos; porém , ele n ão p ossu i m ais relação com a biologia gen ética
d o q u e o q u ím ico com a física d as partícu las elem en tares.
T o d o trabalh o cien tífico m ostra-se en tão com o u m t rabalh o
preciso, local, m as qu e sem pre se refere a con ceitos periféricos m ais
ou m en os vagos. Esses con ceitos perten cem seja à lin gu agem
cot id ian a seja à lin gu agem especializada de ou tras d iscip lin as. A
possib ilid ad e de p assar de u m nível a outro é im portan te n a m edida
em qu e se qu er ter a im p r essão de explicar os fen ôm en os.
Preten de-se p or vezes qu e o con h ecim en to d esses con ceitos perifé­
ricos é u m pré-requisito par a praticar u m a disciplin a. Porém ,
m u it as vezes esses “pré-requ isitos” n ão são n ecessár ios à prática;
em geral são m u ito úteis par a am pliar a visão, m as n ão en tram n o
tr abalh o op er acion al d o cien tista (H im sw orth , 1970).
D e acor d o com essa r epresen tação, o cien tista n ão p ossu i u m
sab er fu n d am en t alm en te diferen te d os ou tr os. T o d o s se refefem a
u m corte preciso qu e é o de seu pon t o de vista e qu e t od os
con h ecem bem ; e t od os d esejam p o ssu ir u m a relação com ou t r os
sab er es, ou t r as perspectivas. O s diferen tes t ipos de sab er aparecem
en tão com o esclarecim en tos localizados qu e se deve p ôr em con tato
(P rigogin e &. Sten gers, 1980). E é aí qu e a prática in terd isciplin ar
assu m e t od a a sua' im por tân cia.

A interdisciplinaridade:
a busca de uma superciência?

O tem a d a in terd isciplin ar idade se torn ou p op u lar . N asceu d a


t om ad a de con sciên cia de qu e a ab or d agem d o m u n d o p or m eio
de u m a d iscip lin a particular é parcial e em geral m u ito estreita. Por
exem plo, o exam e d o s p r ob lem as de saú d e u n icam en t e em ter m os
b iológicos n ão vai de en con t r o aos objetivos d et er m in ad os pelas
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 135

d em an d as de saú d e existen tes. D ian t e da com plexidade d o s pr o­


b lem as, é-se levado a pr ocu r ar ou t r os en foqu es: p sicológicos,
sociológicos, ecológicos etc. C ad a vez m ais se adm ite qu e, par a
est u d ar u m a det er m in ad a qu est ão d o cotidian o, é pr eciso u m a
m u ltiplicidade de en foqu es. E a isto qu e se refere o con ceito de
in terd isciplin aridade.
N a prática, esse con ceito recobre d u as atitu des bem diferen tes,
m esm o qu e elas se u n am par a con siderar , p or exem plo, q u e as
“len t es” de u m a d isciplin a são d em asiad o estreitas par a est u d ar os
p r ob lem as em t oda su a com plexidade. A prim eira perspectiva
esp er a q u e u m a ab or d agem in terd isciplin ar con st r u a u m a n ova
r epresen tação d o pr ob lem a, q u e será bem m ais ad equ ad a, falan d o
em ter m os ab solu t os (isto é, in depen den t em en te de q u alqu er
critério particular). Con siderar-se-á, p or exem plo, qu e, caso se
associem o s en foqu es da biologia, da sociologia, d a psicologia etc.,
pode-se obter u m a ciên cia in terd isciplin ar d a saú de, a qu al será
m ais ad equ ad a de u m p on t o de vista ab solu to, m ais objetiva, m ais
u n iversal, p ois exam in ar á u m a qu an t id ad e bem m aior de aspect os
d o pr ob lem a. Pode-se su p or en tão qu e essa “su per ciên cia” n ão terá
m ais o pon t o de vista particu lar a cada u m d os en foqu es d iscipli­
n ares, ou qu e, pelo m en os, ela con stitu irá, de m an eir a absolu ta,
u m p r ogr esso em r elação às an teriores.
Con t u d o, ao ten tar assim con st ru ir u m en foqu e in terdiscipli­
n ar de u m pr ob lem a particular, apen as se reprodu zem as fases
pré-paradigm áticas de u m estu do. Cen t r ad o sobr e u m a exigên cia
exterior a qu alq u er d isciplin a con h ecid a, reún em -se t od os os
con h ecim en t os qu e se p ossu i par a ab or d ar o pr oblem a. D esse
m od o, o in ício da in form ática caracterizou-se ju st am en te p or u m a
ab or d agem d o p r ob lem a d a in form ação u tilizan do diver sas d isci­
p lin as, as q u ais, post as em con ju n t o, iriam forn ecer u m en foqu e
origin al e particularm en te in teressan te, ch am ad o d ep ois de “in for­
m át ica”. D e igual m od o, a geografia pod e ser con sid er ad a com o
u m a d iscip lin a específica, ten d o o seu p r óp r io par ad igm a, m as
sen d o fu n d am en t alm en te in terdisciplin ar, já qu e se pode r econ h e­
cer n ela en foqu es d e d iscip lin as variad as.
136 GÉRARD FOUREZ

A o m esclar - de m an eira sem pre particular - diferen tes d iscipli­


n as, obtém -se u m enfoque original de certos p r ob lem as d a vida
cot id ian a. Tod avia, sem elh an te ab or d agem in terd isciplin ar n ão
cria u m a espécie de “su per ciên cia”, m ais objetiva d o qu e as ou tr as:
ela pr od u z ap en as u m n ovo en foqu e, u m a n ova d iscip lin a; em
su m a, u m n ovo par adigm a. A ssim , ao se ten tar criar u m a super-
ab or d agem , con segue-se som en t e criar u m n ovo en foqu e particu ­
lar. Foi d esse m od o, aliás, qu e se criaram m u itas d isciplin as
particu lares ou especializadas.

A interdisciplinaridade como
prática particular

A segu n d a perspectiva de in t er d isciplin ar id ad e ab an d on a


e ssa id éia de u m a espécie de “su p er ciên cia”. D est e p o n t o de vista,
a in t er d iscip lin ar id ad e n ão se d est in a a criar u m n ovo d iscu r so
q u e se sit u ar ia p ara além d as d iscip lin as par t icu lar es, m as ser ia
u m a “pr át ica” específica visan d o à ab or d agem de p r ob lem as
r elativos à existên cia cotid ian a. A ssim , caso se ab or d e de m an eir a
in t er d iscip lin ar o p r ob lem a d as cen trais n u cleares, n ão é com a
p r et en são de ter u m en foqu e n eu tro. Lim ita-se a qu er er pr od u zir
u m d iscu r so e u m a r epr esen t ação pr át icos e par t icu lar es dian t e
d esse p r ob lem a con creto. D o m esm o m od o, dian te de u m a
d e m an d a extern a com o a de u m a p op u lação m olest ad a p or
ver m es d o in test in o, pode-se p r ocu r ar u m a ab or d agem in ter d is­
ciplin ar . Bu sca-se en tão con fr on t ar as per spect ivas d e esp ecialis­
t as p r oven ien tes de diver sas for m ações: sociologia, m edicin a
cien tífica, an tr op ologia, econ om ia etc. O objetivo n ão ser á criar
u m a n ova d iscip lin a cien tífica, n em u m d iscu r so u n iver sal, m as
r esolver u m p r ob lem a con creto.

A gr an d e diferen ça en tre a prim eira e a segu n d a perspectiva


con sist e em qu e a prim eira, ao preten der r elacion ar diferen tes
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 137

d iscip lin as em u m p r ocesso su post am en t e n eu tro, m ascar a todas


as q u est ões “p olít icas” p r óp r ias à in terd isciplin ar idade: a qu e
discip lin as se atribu irá m aior im portân cia? Q u ais serão os especia­
listas m ais con su lt ados? D e qu e m od o a d ecisão con creta será
tom ad a? E assim p or dian te. Pelo con trário, n a segu n d a perspecti­
va, a in terd isciplin ar idade é vista com o u m a prática essen cialm en te
“polít ica”, ou seja, com o u m a negociação en tre diferen tes p on t os
de vista, par a en fim decidir sobre a represen tação con sid er ad a com o
ad eq u ad a t en d o em vista a ação. Tor n a-se eviden te, en tão, qu e n ão
se p od e m ais utilizar critérios extern os e pu r am en te “r acion ais”
p ar a “m esclar ” as diver sas d isciplin as qu e irão in teragir. E pr eciso
aceitar con fr on t os de diferen tes p on t os de vista e t om ar u m a
d ecisão qu e, em ú ltim a in stân cia, n ão decorrerá de con h ecim en tos,
m as de u m risco assu m id o, de u m a escolh a fin alm en te ética e
política.

A in terd isciplin ar idade su rge en tão com o r em eten do de m a­


n eira con creta à existên cia cotidian a, percebida com o b em m ais
com p lexa d o qu e as sim plificações qu e p od em r esu ltar d as t rad u ­
ções d o pr ob lem a p elos d iver sos p ar ad igm as cien tíficos. O b ser ve­
m os, n o en tan to, com o an alisarem os m ais adian te, qu e sem elh an te
in terd isciplin ar idad e pod e se m an ter em u m a perspectiva in teira­
m en te tecn ocrática, n a m ed id a em qu e as d ecisões d ep en d er iam
u n icam en t e de n egociações en tre especialistas, sem deixar se
d esen volver u m debate dem ocrático m ais am plo.

A segu n d a perspectiva d a in terd isciplin ar idade aceita as con se­


qü ên cias d a an álise segu n d o a qu al, em ú ltim a in stân cia, o pr ocesso
cien tífico n ão pod e se dedu zir de u m a racion alid ad e u n iversal. A
t od o m om en t o, m esm o qu e isto seja m ascar ad o pela ideologia d a
cien tificidade, o p r ocesso cien tífico é o r esu ltado de in terações qu e
se ap r oxim am m ais d o m od elo sociopolítico d o qu e da repre­
sen tação de u m a r acion alidade un iversal. Isto vale tan to para
o trabalh o disciplin ar qu an t o para a prática in terdisciplin ar
(cf. Lat ou r &. W oolgar , 1981; Latou r, 1984 e t am bém Pan dore,
1982).
138 GÉRARD FOUREZ

A ciência: ferramenta intelectual para


uma economia de pensamento?

A s n o ssas an álises do pr ocesso cien tífico, d a observação, do


estabelecim en to de teorias e m od elos pod em estruturar-se em u m a
certa im agem d a ciên cia. C o m o dizia Er n st M ach (1925), esta pod e
m ostrar-se com o a bu sca de u m a m an eira econôm ica de r epresen ta­
ção d o m u n d o; ela fu n cion a com o u m a econom ia de pensam ento,
ligada a u m a com unicação. Produzir u m relatório de observações,
p o r exem plo, é traduzir em u m a lin guagem tão prática (econ ôm ica,
em sen t id o lato) qu an t o possível o m u n d o n o qu al se está in serido.
Essa lin gu agem é a com u n icação de u m certo em pr een d im en t o
d en t r o d o pr ojeto qu e se tem . N est e âm bito, e n o con texto da
filosofia de Er n st M ach , pode-se r epresen tar a ciên cia com o “ferra­
m en ta in telectual” . A ciên cia visaria port an to m en os a u m a repre­
sen t ação d o s ob jet os d o qu e a u m a com u n icação en tre as p essoas;
esta ú ltim a, aliás, torn ou-se possível graças à estru tu ração in telec­
tual d o m u n d o em ob jet os r epr esen tados.
Sem elh an t e visão acarreta t am bém diferen ças n a m an eir a pela
qu al n ós r epr esen t am os o m ét od o cien tífico. Se segu ir m os o
m od elo tradicion al de Clau d e Ber n ar d (1934), descr ever em os esse
m ét od o com o u m p u r o p r ocesso in telectual e experim en tal de u m
cien tista isolad o. C aso ad ot em os o pon t o de vist a de M ach ,
ser em os levados a dizer qu e a m an eira m esm a pela qu al u m a equ ipe
de cien tistas se organ iza par a discu tir as experiên cias faz parte d o
m étod o, tan to q u an t o a m an eir a pela qu al se esterilizarão os t u bos
de en saio.
N o pr im eir o caso, o m ét od o cien tífico é vist o com o u m
pr oced im en t o abstrato; n o segu n d o, trata-se de u m pr ocesso h ist ó­
rico p o ssu in d o d im en sões de lin gu agem , de gestão, d e pod er , de
relações pú b licas, de econ om ia etc. Afin al de con tas, o “m ét od o”
con t em p or ân eo para d escob r ir a cau sa de u m a d oen ça n ão p assa
tan to pela b u sca de fin an ciam en t o, pela gestão de equ ipes, pela
b oa organ ização de sem in ár ios de d iscu ssão, pela com u n icação
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 139

in terd isciplin ar ad eq u ad a, pela m an eir a de redigir u m artigo para


qu e seja aceito em u m a revista etc., tan to qu an t o pelo levan tam en to
correto e pela in terpretação teórica ad eq u ad a de u m pr ot ocolo
experim en tal?
N a visão abstrata tradicion al, a descrição d o m ét od o cien tífico
dirá qu e o cien tista exam in a a pertin ên cia de seu s r esu lt ados; n a
visão d a ciên cia com o econ om ia e com u n icação de pen sam en t o,
diz-se m ais sim plesm en t e: “Ele discu te os seu s r esu lt ados com seu s
colegas” (a diferen ça poder ia levar a refletir sobr e a prática d os
exercícios de laboratór io n a form ação d o s cien tistas: o qu e p en sar
d o s exercícios de laboratór io em qu e a d iscu ssão d os r esu lt ad os
n ão é organ izada, sen d o até m esm o desen corajada?).

A ciência: tecnologia intelectual?

A ssim m esm o, a im agem da ciên cia com o “ferram en ta in telec­


tu al” é relativam en te in ad equ ad a, n a m ed ida em qu e o artífice
d o m in a o in st ru m en t o, ao p asso qu e os cien tistas n ão d om in am
o d iscu r so cien tífico: n a verdade, eles se in ser em n o m esm o. D est a
perspectiva, a im agem da tecn ologia será provavelm en te m ais
ad equ ad a. C o m efeito, u m a tecn ologia n ão é sim plesm en t e u m
in stru m en to, é t am bém u m a organ ização social, even tu alm en te em
tor n o de u m certo n ú m er o de in st ru m en t os m ateriais. N o caso de
certas t ecn ologias m ais sociais (com o a gestão) ou m atrizes lógicas
d a in form ática, pod e se tratar sim plesm en t e de r epr esen tações
in telectuais.
A tecn ologia, con tr ar iam en te ao u t en sílio d o qu al o artífice se
serve, for m a u m con ju n t o n o in terior d o qu al n os sit u am os e qu e
p redeterm in a, bem m ais d o qu e u m u ten sílio, o qu e se pode
esp er ar dela. A tecn ologia é tam bém u m a organ ização social. A
ciên cia p od e en tão ser con sid er ad a com o u m a tecn ologia in telec­
tual ligada a projetos h u m an os de dom in ação e de gestão d o m u n d o
m aterial. N ão é, con tu d o, algo apen as in telectual; en glob a ou t r os
140 GÉRARD FOUREZ

elem en tos, socialm en te organ izados: as bibliotecas, os laboratórios,


as revistas cien tíficas, o s sistem as de d istr ibu ição de revistas cien tí­
ficas e de im p r essos, o sistem a de con cessão d e fin an ciam en t o etc.
C o m o qu alqu er ou tra tecn ologia, só se p od e com preen dê-la com o
u m con ju n t o or gan izado; é o qu e M ario Bu n ge d en om in ou de
sistem a m aterial d a ciên cia, d istin gu in do d o qu e ela é com o sistem a
in telectual ou con ceitu ai (Bu n ge, 1983). A ciên cia surge en tão
com o u m sistem a or gan izado em fu n ção de pr ojetos, e com post a
p o r elem en tos m ateriais e r epr esen tacion ais. Pode-se distin gui-la
d as d em ais tecn ologias.

A produção científica

Pode-se con sid er ar vários t ipos de pr od u ção cien tífica. U m


p r im eir o tipo con sist e pr in cipalm en t e em u m a série de relatórios,
sín teses, pu blicações qu e perm item a realização e in terpretação de
experiên cias pr ecisas. Em ou t r os term os, os cien tistas produ zem
as r epr esen tações d o m u n d o qu e p od em ser ú teis t en d o em vista
u m a d om in ação m aterial deste.
N o en tan to, m esm o qu e a com ercialização e a m ilitarização
cada vez m aior d a ciên cia ten dam a atribuir u m a m aior im portân cia
a essa parte d a p r od u ção cien tífica, n ão p od em os lim itar a isso a
p r od u ção de u m a com u n id ad e cien tífica. Cabe-lh e t am bém t oda
u m a p r od u ção sim bólica, ou seja, u m d iscu r so d ot ad o de u m a au ra
tod a especial, p ois é con sid er ad o com o “objet ivo”, “cien tífico” e
m esm o “ver d ad eir o”. U m tal d iscu r so sim b ólico tem com o p r o­
pr ied ad e servir par a “legitim ar” a prática. A ssim , o d iscu r so d o s
físicos legitim ará decisões relativas às cen trais n ucleares; d o m esm o
m od o, o discu r so d os econ om istas legitim ará práticas sociopolíticas
relativas às in d ú st r ias ou aos p aíses em desen volvim en t o etc.
M u it as p esq u isas cien tíficas n ão têm p or objetivo u n icam en te n os
forn ecer u m a repr esen tação d o qu e é possível fazer, m as visam
t am b ém a legitim ar e m otivar ações. C o m o n ão con segu em jam ais
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 141

in d icar su ficien tem en te o s critérios d essa legitim ação, são ideolo­


gias n o sen t id o m ais pr eciso d o term o.
E p o r m eio d essa d u p la pr od u ção, a d as represen tações utilizá­
veis, p o r u m lado, e a d o s d iscu r sos sim b ólicos legitim adores p or
ou tro, q u e o s cien tistas se in ser em n o circuito econ ôm ico e social.
São p agos p or esses d o is t ip os de pr od u ção. C o m freqü ên cia, a
p r od u ção de eficácia m aterial vela o fu n cion am en t o ideológico da
ciên cia - ou seja, o fato de qu e ela con stitua o sistem a de legitim ação
m ais im por tan te de n o ssas sociedades in du striais.
N ão se pode, con tu d o, reduzir a pr od u ção cien tífica a esses
d ois aspectos. A ciên cia é tam bém u m a pr od u ção cultural. Por m eio
dela, o s seres h u m an os desen volvem u m a ob r a poética: expr im em
o qu e é o m u n d o n o qu al se in serem , d escob r em a su a pr óp r ia
p r od u ção, partilh am u m a represen tação d o m u n d o. H á t am b ém a
p ossib ilid ad e de prazer estético, essa atividade em qu e o ser
h u m an o reen con tra o seu espírito n o m u n d o p or ele estr u tu r ado.

Resumo

Trabalho disciplinar:

• toda disciplin a científica é determin ada por um paradigma (T. S.


Kuhn);
• os paradigmas (matrizes disciplinares) são cultural e historicamente
construídos;
• o objeto de uma disciplin a n ão é preexistente, mas é determin ado pelo
paradigma;
• os falsos objetos empíricos;
• as m pturas epistemológicas;
• um exemplo de paradigma científico: o da medicina.

V ida e morte dos paradigm as:

• a “ciência n ormal” (segundo Kuhn) tenta resolver os problemas n o


interior do paradigma, e tira dele as suas questões, e a “tradução” de
suas respostas;
142 GÉRARD FOUREZ

• em período de nascimento de uma disciplina (pré-paradigmática),


n en h uma filiação universitária precisa e n enh uma base n a vida coti­
diana, seus interesses e suas lutas sociais;
• em período paradigmático, a disciplina leva a sua pesquisa até as
ultimas conseqüên cias, de acordo com sua lógica interna; pode-se falar
de “ciência pura”;
• a invenção cultural do laboratório: o paradigma da casa!;
• em caso de inadequação entre um paradigma e a deman da, pode-se
entrar em um período de “revolução científica”;
• um período pós-paradigmático é um período no qual as pesquisas
quase não se realizam mais, m as quan do a disciplina é utilizada;
• o paradigma é a fonte tanto da força quanto do limite de um trabalho
científico.

Ciên cia e “tradu ção”:

• traduções, explicações, reduções;


• toda extensão técnica de um problema pede a sua “tradução” prévia
na linguagem paradigmática da disciplin a envolvida;
• os deslocamentos de sentido resultantes dessas traduções colocam o
problema da especialidade e do abuso de saber.

A in terdisciplin aridade:

Origem: consciência de que uma questão determin ada pode requerer


um a multiplicidade de abordagens.
Duas filosofias da interdisciplinaridade:

• reun in do diversas abordagens, espera-se uma superciência, superobje-


tiva, mas constrói-se apen as um novo paradigma;
• prática concreta de negociações pluridisciplinares, diante de problemas
concretos do cotidiano.

T en tativ a de defin ição d a ciên cia:

• econ omia de linguagem para comunicar uma certa intervenção no


m un do: instrumentos intelectuais historicamente situados;
• organização social historicamente situada, produzindo e estruturando
saberes: tecnologia intelectual;
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 143

• produção a) de representações úteis ao dom ín io material do mundo;


b) de um discurso sim bólico legitimador.

Palavras-chave

Paradigm a/ matriz disciplin ar/ falso objeto em pírico/ ruptura epistemo­


lógica/ ciência n or m al/ revolução cien tífica/ período pré-paradigmático/
período paradigm ático/ período pós-paradigmático/ tradução/ incomen­
surabilidade dos paradigm as/laboratório/ in terdisciplinaridade/ ciência
fun dam en tal/ economia de lin guagem / estrutura dissipativa/ rupturas
epistem ológicas/ objetivo de uma ciên cia/ ferramentas in telectuais/
tecnologias intelectuais.
IN T ER M EZ Z O

A CIÊNCIA E OS QUADRINHOS
SEM LEGENDA

Podc-se com par ar o pr ocesso cien tífico a u m jogo para os joven s


qu e aparece n o jor n al: o da h ist ór ia em q u ad r in h os sem legen da.
Esse jogo apr esen t a d esen h os par a os q u ais se deve en con t r ar u m a
“legen d a”.

Um jogo cheio de convenções

Esse jogo im plica, assim com o a ciên cia, u m a atividade cultural


d et er m in ad a p or u m con sen so ligado a certo gr u po. Para com ­
pr een d er o jogo, é pr eciso ter “pr é-com pr een dido” u m certo
n ú m er o de elem en t os de n o ssa cultura, em especial a m an eir a pela
qu al as h ist ór ias em q u ad r in h os são escritas. Essa com p r een são
im plica a elim in ação de outras possibilidades: d esse m od o, q u an d o
se com pr een d eu o jogo e o qu e é u m d esen h o im pr esso, elim in am -
se au tom aticam en te os elem en tos qu e n ão parecem “per t in en t es”,
p or exem plo, a m an ch a de café qu e pode-se ju n t ar ao d esen h o.
D a m esm a m an eir a, o “jogo cien tífico” com eça p or elim in ar
u m a série de elem en tos, com o con siderações de acor d o com as
146 GÉRARD FOUREZ

q u ais “D eu s ach ou qu e as m ar gar id as eram b on it as”, a cor d a m esa


d a q u al se est u d a o equ ilíbr io, e assim p or dian te. Con sid er a- se
d esse m od o o m u n d o situ an do-o de im ediato n a su bcu ltu r a
cien tífica. Em ou tr as cu ltu ras, o s elem en tos religiosos ou poéticos
n ão ser ão n ecessar iam en te elim in ad os d a observação, assim com o
N ew ton n ão elim in ava os ar gu m en t os t eológicos de su a “filosofia
n atu r al”, q u e d en om in am os “fisica”.
O jogo d os qu ad r in h os sem legen da com por ta regras - algu m as
explícitas e ou tras, n ão - qu e devem ser com p r een d id as pelos
jogad or es, p o r exem plo a regra de qu e, q u an d o existe u m balão, é
qu e algu ém fala... C om p ar ar e m o s esse con sen so social àqu ele qu e,
em n o ssa cultura, se liga à prática cien tífica.

As observações

O jogo d o s q u ad r in h os com eça p or u m a série de “observa­


ções”: a partir daí determ in ar-se-ão, ab st r ain d o de seu con texto
global, o s elem en tos qu e servirão de b ase à legen da. A ssim ,
distin gu irei u m p er son agem qu e poderei ch am ar Tin t in , u m ou tro,
H ad d ock e u m terceiro, M ilu etc.1 Utilizarei p ar a isso regras
con ven cion ais e aceitas qu e colocam relações de equ ivalên cia en tre
certas partes d o d esen h o. Por exem plo, direi qu e, levan do em con ta
certas sem elh an ças (qu e jam ais defin irei com pletam en te), u m tal
con ju n t o de traços cor r esp on d e a Tin t in , m esm o q u e ele esteja ora
d e pé, or a sen t ad o, or a se ar r ast an d o. Essas “observações de b ase ”
- h u m an am en t e in st au r ad as - serão o equ ivalen te n as h ist ór ias
em q u ad r in h os às p r op osições em píricas.
Em certos casos, asp ect os da “ob ser vação” ser ão colocad os em
dú vid a; será n ecessár io en tão efetuar u m desen volvim en to teórico,

1 P er son agen s cr iad os p or H er gé, au t or belga: T in t in , o r epór ter , o C ap it ão H ad d ock ,


co m an d an t e d e n avios e o cach or r o M ilu . Note-se qu e esse “jo go ” d o s q u ad r in h o s
sem legen d a é o q u e as cr ian ças n ão-alfabetizadas fazem ao in t er pr et ar o s q u ad r in h o s
q u e n ão co n segu em decifr ar, cr ian d o a p r ópr ia h istór ia (N. T.).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 147

ou n arr ar u m a parte d a h istória, par a p od er d et er m in ar o qu e


ob servo. Por exem plo, se, em det er m in ado m om en t o, algu ém tiver
se d isfar çad o em Tin t in , n ão poderei d istin gu ir en tre o “verd adei­
r o” e o “falso” T in t in a n ão ser qu e p ossu a elem en tos d a h istória.
Ist o p od e ser com p ar ad o à utilização de h ipót eses teóricas n ecessá­
r ias à d eter m in ação d o s d ad os “em pír icos”. E, assim com o n o jogo
n ão se p od e sep ar ar esses elem en tos de b ase d o s p ed aços d a
h istória, t am b ém n a ciên cia as “observações em p ír icas” jam ais
p od em ser com pletam en te sep ar ad as d o s elem en t os teóricos.
N o jo go d a h ist ór ia em qu ad r in h os, pode-se, segu in d o a
h istór ia qu e se con ta, m odificar o tipo de observação qu e se faz. Se
a h ist ór ia qu e criam os é a de u m M ilu in teligen te, “observar-se-á”
(isto é, in terpretar-se-á) de m od o diferen te u m a ou ou tr a atitude
d esse p er son agem (ou d essa classe de equ ivalên cia qu e se d en om i­
n ou M ilu ).
N o en tan to, com a con tin u ação d a h istória, pode-se ser levado
a rein terpretar algu m as “observações objet ivas” .
A observação será diferen te se se con sid er a qu e um a só legen da
é “a b o a”, e qu e é pr eciso en con trá-la (aqu ela, p or exem plo, qu e
terá sid o det er m in ada p or u m desen h ista), ou se, pelo con trário,
trata-se sim p lesm en t e de con ferir in teligibilidade a u m q u ad r in h o
qu e n ão com por ta n ecessar iam en t e u m a h istória pr edeterm in ada.
Em ciên cia, isto cor r esp on d er ia a d u as atitu des diferen tes: em u m a
se con sid er a a b u sca de u m a “verdade eter n a” ; n a outra, tenta-se
pr od u zir u m a tecn ologia in telectual ad equ ad a a certos pr ojetos.

As leis e as teorias

Q u an d o se elabor a u m a legen da, estabelecem -se vín cu los en tre


as diferen tes observações: as h ist ór ias con st r oem u m sistem a d e
in teligibilidade ligado aos d ad os de b ase qu e se selecion ou . Elas
p od em ser com p ar ad as às leis cien tíficas, ao s m od elos, aos pr ogr a­
m as de p esqu isa ou às teorias. Existem com efeito diferen tes lin h as
148 GÉRARD FOUREZ

p ossíveis n a h istória qu e se irá con tar, com o p od e h aver diferen tes


tipos de pr ogr am as de p esqu isas em ciên cia. Além d isso, h á sem pre
u m m eio de con tar u m a in fin idad e de h ist ór ias com b ase em
d et er m in ad o d esen h o.
N ão obstan te, se existem expectativas específicas, poder-se-á
ju lgar certas h istórias esqu isitas ou deslocad as. M as, para rejeitá-las,
será pr eciso apelar a algo m ais d o qu e às “observações de b ase ”.
O s d esen h os n ão são su ficien tes par a deter m in ar u m a só e ú n ica
h istór ia. N ão se deduz, aliás, a h istória d os d esen h os, m as se
im agin a u m a h istória com patível com eles (lem br em os, a pr óp r ia
d escr ição d os d esen h os n ão é in depen den t e d os fr agm en t os de
h istór ia qu e se tem em m en te ao observá-los). Essa particu laridade
é an áloga ao fam oso teorem a de Q u in e (1969), qu e im plica qu e as
leis cien tíficas são su b d et er m in ad as pelas observações.
Além d isso, as h ist ór ias n ão são equ ivalen tes; elas pod em
explicar as coisas de m an eir as diferen tes; p od em atribu ir u m a
m aior im por tân cia a u m a ob servação particular, ou deixar ou t r as
de lado. Por exem plo, em u m a h istória, n ão se con ferirá im p or t ân ­
cia algu m a ao pequ en o coelh o qu e se en con tra n o desen h o, ao
p asso qu e em u m a ou tra, esse p equ en o coelh o pod er á ter u m a
im por tân cia en orm e, p ois é ele qu e vai aju d ar Tin t in a sair d o tún el
on d e ele está pr eso. D o m esm o m od o, os m od elos cien tíficos
n egligen ciam certos elem en t os da observação qu e, n a seqü ên cia,
p od er iam parecer extrem am en te im portan tes, com o, p or exem plo,
as trajetórias d os p osítr on s n as câm ar as de W ilson , an tes d a
d escob er ta d o p osítr on p or A n d er son (qu est ão deixad a ao leitor:
o qu e sign ifica a palavra “descob er ta” n esse con texto?).

As "verificações” e a resistência
em abandonar uma teoria

En fim , q u an d o se com eçou a con tar u m a h ist ór ia a respeito de


algu n s q u ad r in h os sem legen da, ela p od e ser “verificada”. Essa
verificação con siste em reler os qu ad r in h os u tilizan do a legen da
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 149

qu e se d eu . Essa releitura assem elh a-se aos testes exper im en t ais e


às “pr ovas cien tíficas”: estas, com efeito, resu m em -se em u m a
releitura de u m con ju n t o d e observações, u tilizan do par a tan to a
teoria qu e se con st ru iu . Em am b os os casos, pode-se en con t r ar u m
certo n ú m er o de d ificu ldad es, seja qu e certos elem en t os d o d ese­
n h o se en caixam m al com a h istória, seja p or q u e se deixou m u ita
coisa de lad o (m as o qu e sign ifica m u ita coisa?). N a ciên cia,
depara-se com o m esm o tipo de qu est ões: u m a teoria pod e levan tar
u m certo n ú m er o de p r ob lem as, ou deixar in explicados u m certo
n ú m er o de fen ôm en os (porém , b asean do-se em qu e p on t o con si-
derar-se-á qu e h á fen ôm en os “d em ais” in explicad os por determ i­
n ad a teoria?).

Q u an d o n os d ep ar am os com dificu ldad es an álogas, p od em os


sem p r e n os livrar p or m eio de h ipóteses ad hoc. Se , por exem plo,
decidi em m in h a h istór ia qu e d et er m in ad o p er son agem foi m orto,
e ele reaparece vivo, t en h o u m pr ob lem a de coerên cia em m eu
sistem a de in terpretação. M as p o sso sair da situ ação p or m eio de
u m a h ipót ese ad hoc, dizen do, p or exem plo, qu e ele estava m orto
apar en t em en te ap en as (com o R ast ap op ou los em T in t in 2). D o
m esm o m od o, u m plan eta pod e ter se d esviad o de su a trajetória
p or cau sa d e u m ast r o pertu rbador. Para qu e a h ipótese ad hoc
p o ssa ser m an tida, será preciso observar u m certo n ú m er o de regras
de coerên cia (con ven cion ais? até qu e p on t o con ven cion ais?). Até
on d e pode-se aceitar a in coerên cia de certas h ist ór ias (ou de certos
m od elos cien tíficos)?

Reestru tu rar a observação é u m a ou tr a m an eir a de sair d as


d ificu ld ad es. Por exem plo, n o jogo d as h ist ór ias em q u ad r in h os,
pode-se dizer qu e o qu e via Tin t in n a im agem an terior era ap en as
u m a m iragem , ou u m a alu cin ação. O u ain d a, qu e p or trás d o
ar b u sto, h avia u m gr an d e leão escon d id o. D a m esm a m an eira, u m
cien tista pod er á con sid er ar qu e este pr od u t o, qu e apr esen t a difi­
cu ld ad es, n ão é açúcar, m as sacar in a. A in d a, qu e este fach o de

2 V er a aven tu ra “ P er d id os n o m ar ”,
150 GÉRARD FOUREZ

par tícu las elem en tares n ão é tão pu r o qu an t o se pen sava, e qu e é


isto q u e pr od u z efeitos in esper ad os. Fin alm en te, pode-se, ain da,
reestru tu rar de m an eir a parcial a h istór ia qu e se está con tan d o.
Volta-se atrás e observa-se qu e o per son agem , qu e parecia m au e
qu e apon t ava o fuzil n a direção de Tin t in , visava ap en as ao
leop ar d o qu e am eaçava o n o sso h erói (este pr ocedim en to n ão deixa
de ter an alogia com a m an eir a pela qu al os cien tistas p od em rever
u m certo n ú m er o de leis).
A q u i, ain d a, a com par ação com as legen das d o d esen h o pode
aju d ar a esclarecer: as razões par a se ab an d on ar ou escolh er u m a
h ist ór ia qu e é realm en te in coeren te d em ais; ou ain d a, qu e n ão
p od er á ser ven d id a; ou qu e careça de im agin ação, ou qu e d esagr a­
d ar á a algu ém im portan te etc. O “razoável” n ão obed ece a u m a
racion alid ad e ú n ica.

A incomensurabilidade dos paradigmas

A an alogia d o s qu ad r in h os perm ite t am b ém com pr een d er


m elh or a dificu ldad e qu e pod e h aver em com par ar diferen tes tipos
de in terpretações cien tíficas. Se ten h o d u as h istórias diferen tes, n ão
p o sso en con t r ar u m critério pr eciso par a com pará-las, p ois os
critérios pr ecisos só ad qu ir em sen t ido n o con texto glob al d a
h ist ór ia toda. Por exem plo, se ten h o u m a h istór ia em qu e M ilu é
in teligen te e u m a ou tr a n a qu al ele é besta com o u m cach or r o, é
im possívél par a m im com p ar ar o s “m ér it os” d as d u as in terpreta­
ções em p o n t os particulares; a ú n ica coisa qu e m e resta é fazer u m a
com p ar ação global; m as isto qu er dizer qu e eu n ão p o sso m e referir
a trech os precisos, p ois estes assu m ir ão sen t id os b em diferen tes
n os d o is casos.
E possível perceber a coerên cia in tern a de u m a in terpretação
e, p or ou t r o lado, dizer, de m an eir a global, com o eu aprecio as
h ist ór ias. Porém , a com p ar ação en tre as d u as h istór ias n ão pod e
ser feita em relação aos detalh es: elas são in com en su ráveis. V eja­
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 151

m os o qu e Ku h n d isse d a ciên cia: n ão se pod e com par ar , p or m eio


de testes precisos, teorias qu e se referem a “par ad igm as” diferen tes.
N ã o se p od e m ais en con t r ar razões “lógicas” qu e levam a preferir
u m a in terpretação de u m a h ist ór ia em q u ad r in h os em detr im en to
de ou tra.

Mudança de paradigmas

P ode ocorr er t am b ém qu e as in coer ên cias se t or n em de tal


m od o in sat isfatór ias (in satisfatór ias sob qu e critérios?) q u e se
prefere ab an d on ar u m “p r ogr am a de in terpretações” (com o u m
“p r ogr am a de p e sq u isas”). Pode-se decidir, p or exem plo, qu e, em
vez de estar p er segu in d o p er igosos m alfeitores, T in t in esteja à
pr ocu r a de u m tesou r o; ou , em vez d e in terpretar a h ist ór ia em
q u ad r in h o s com o u m a h istór ia de aven tu ras, ela p od e ser con sid e­
r ad a com o u m a h ist ór ia de ficção cien tífica; existem n esses casos
p ist as de p esqu isa bem diferen tes. Pode-se, fazen do u so de n ossa
an alogia e d e con ceit os qu e ser ão desen volvid os adian te, com par ar
esse tipo d e m od ificação com m u d an ças de p ar ad igm as n a per s­
pectiva d e Ku h n (1972), ou p r ogr am as de p esqu isa n o sen t id o de
Lak atos (com o a ad oção d a in terpretação d o calor com o en ergia, e
n ão com o flu ido; Lak atos & M u sgrave, 1970).
Trata-se en tão d e u m a m an eir a in teiram en te diversa de exam i­
n ar o fen ôm en o. Levan do avan te a n o ssa an alogia, pode-se per gu n ­
tar se esse tipo de m u d an ça n ão poder ia t am bém ser com p ar ad o
(lem b r an d o qu e se trata ap en as de an alogias) à ad oção de u m a
ou tra d isciplin a cien tífica par a ab or d ar u m fen ôm en o. Se con sidero
o fen ôm en o d o am or, p or exem plo, p o sso ter u m en foqu e b ioló­
gico, com b ase n o q u al t od a a teoria far-se-á em fu n ção d o s
h or m ôn ios; m as p o sso t am bém ter u m a ab or d agem psicológica,
em q u e en tr ar ão em con sid er ação os con ceitos d o in con scien te, d o
d esejo etc.; p o sso ain d a con sid er ar ou t r as d im en sões d o q u e se
ch am a am or. C ad a u m a d essas in terpretações se rege p o r critérios
d et er m in ad os. Elas ser ão “in ter essan tes” n a m ed id a em q u e sat is­
152 GÉRARD FOUREZ

fizerem aqu eles qu e as pr od u zem (m as, o qu e sign ifica “satisfazer”,


e qu e critérios serão en tão con siderad os?).

A ciência não é subjetiva,


é uma instituição social

Existe todavia u m a gr an de diferen ça en tre a ciên cia e as


h ist ór ias em q u ad r in h os: n o jogo d o s q u ad r in h os, as decisões de
preferir u m a in terpretação à ou tra são p essoais, ao p asso qu e, para
a ciên cia, trata-se de fazer com qu e u m gr u po aceite u m a visão, em
m eio a relações de forças e de coerções de t od o gên ero. A ciên cia,
q u an d o deixou de ser u m a espécie de jogo in terpessoal, com o n o
t em po de D escar tes e M er sen n e, en trou de u m a vez por t od as n a
esfera d o social.

Há somente uma verdade científica?

N o jogo d as h ist ór ias em qu ad r in h os, pode-se per gu n t ar qu al


é a m elh or h istória. E t am b ém se h á u m a m elh or h istória. H averia
u m a h ist ór ia qu e fosse a “verd ad eira”? A regra d o jogo pod er ia ser
en con t r ar a legen da cor r esp on d en t e à qu e H ergé h avia im agin ado.
N e sse caso, h averia u m a h ist ór ia qu e seria a “ver d ad eir a”, ou seja,
u m a in terpretação qu e seria privilegiada. C on t u d o, e ssa “ver d ad e”
d ep en d e d as regras de in terpretação. M esm o ten d o H ergé escrito
a h istór ia, pode-se con sid er ar qu e u m a ou tra legen da t am bém seria
in teressan te.
P r ossegu in d o n a an alogia, pode-se observar qu e algu n s con si­
d er am q u e o m u n d o p ossu i u m a “ver d ad e”. Seria, p or exem plo, o
qu e D eu s p en sa a r espeito; ou , d ep ois de u m sécu lo ou d ois, o qu e
a “n atu reza” produz (m as o qu e sign ifica esse con ceito de n atu re­
za?). O b ser vem os qu e aqu eles qu e dizem qu e as “ver d ad eir as” leis
d a n atu reza são aqu ilo qu e é p en sad o p or D eu s têm u m a idéia
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 153

particu lar de D eu s: a de u m en gen h eiro qu e plan ifica tu do o qu e


faz, u tilizan do a m etáfora d a m áqu in a. O u t r os acreditam em D eu s
sem ver n ele u m a espécie de arqu iteto e sem p r essu p or u m p lan o
m u it o d efin id o p ar a a n atureza. Basta p en sar em u m D eu s qu e
teria u m pou co m ais de im agin ação, e qu e teria u m certo gost o pelo
im previsto. Perm an ece o fato, con tu d o, de qu e algu n s, in spiran do-
se n a visão d a física galilean a, esper am en con t r ar “u m a verdade
glob al da n atu reza” (cf. Prigogin e & St en ger s, 1980).
O u t r os, com o Prigogin e & Sten ger s, con ten tar-se-ão com o
esclarecim en to localizado e particular de qu e a ciên cia con siga
efetuar sobr e as coisas d o m u n d o. N ão p en sam qu e a ciên cia seja
u m a b u sca d a boa in terpretação d o m u n d o, m as u m a m an eir a qu e
tem os d e colocar n ele u m p ou co de or d em . N esse caso, a ciên cia
seria m ais u m a ob r a “poética” (n o sen tido p r ofu n d o d o term o, isto
é, u m a criatividade de sign ificações) d o qu e u m a ob r a de in terpre­
tação d o pen sam en t o de u m outro.
Em n ossa filosofia esp on tân ea, in du zid os ou n ão por h ábitos
h á m u ito h er d ad os d a h istória, ten d em os a con sid er ar a ciên cia
com o a b u sca d a verd ade ún ica, e a defin ir o pr ogr esso cien tífico
com o tu d o aqu ilo qu e n os apr oxim a d essa represen tação privile­
giada. Pelo con trário, q u an d o se trata de tecn ologias m ateriais,
con sid er am os qu e r aram en te p ossu i u m sen t ido falar d a “b o a”; e
a n oção de p r ogr esso deve referir-se a critérios sociais extern os à
prática cien tífica.
Poder-se-ia con sid er ar essas in terrogações com o qu est ões “últi­
m as” , tan to n o qu e respeita às h istórias em q u ad r in h os q u an t o n o
q u e se refere à filosofia d a ciên cia. Em relação aos q u ad r in h os,
deve-se pr ocu r ar sab er qu al a sign ificação d o jogo: en con t r ar o qu e
estava n a m en te d o au tor ou con tar h ist ór ias qu e n os “sat isfaçam ”.
Q u an t o à ciên cia, deve-se b u scar aqu ilo qu e vem de fora, de D eu s,
da n atureza, e o q u e seria de u m a vez p or tod as deter m in ado? O u
trata-se an tes, em m eio às n ecessid ad es d o m u n d o, de u m a
criatividade d o pen sam en t o, do ser h u m an o, da h istória?
C A P Í T U LO 6

PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS
SOBRE A CIÊNCIA MODERNA

O term o “ciên cia” p od e d esign ar d ois t ipos de fen ôm en os.


P rim eiram en te, a r epr esen t ação qu e se faz d o m u n d o, par a q u al­
qu er tipo de civilização ou qu alq u er gr u p o h u m an o. Em seu
segu n d o sen tido, visa m ais precisam en te ao qu e ch am am os de
ciên cia m od er n a, ou seja, essa represen tação d o m u n d o ad otad a
pela civilização ociden tal, em especial a partir d o sécu lo XIV. N o
p r im eir o sen tido, a ciên cia design a o con h ecim en t o de m an eir a
geral, en q u an t o n o segu n d o sen tido d esign a o m od o específico de
con h ecim en t o ad ot ad o pelo m u n d o ociden tal m od er n o. Ist o se
deve ao fato de a ciên cia m od er n a estar sit u ad a n a h istória. M esm o
qu e se p o ssam en con trar an teceden tes n a ciên cia grega e em ou tras,
pode-se con sid er ar qu e ela n asceu du r an t e a Id ad e M éd ia, con ti­
n u an d o com o flor escim en to d a civilização bu rgu esa.
A ascen são da ciên cia m od er n a pede u m est u do m ais detalh ado
n o qu e se refere ao con texto h istórico e à su a evolução. Eviden te­
m en te, sem elh an te an álise é sem pre u m a con st r u ção teórica (e
portan to ideológica) sim plificada. A qu e irem os apresen tar em u m a
só r epr esen tação r esu m e evoluções h istóricas qu e diferem através
d as épocas, lu gares, cu ltu ras, classes sociais e sexo. D eixar á de lad o
156 GÉRARD FOUREZ

n u m er o so s asp ect os, a fim de p ôr em relevo u m en foqu e particu lar


d o p r ob lem a “cien tífico”. O m od elo apr esen t ad o é sim plificad or ,
com o n ão poder ia deixar de ser, e evita qu est ões com o: “Em qu ê
a r acion alid ad e bu rgu esa difere d a d os com er cian tes fen ícios?
D aqu ela d os estóicos? D os epicuristas.7 O qu e h á realm en te de n ovo
n as m u tações qu e vão d o sécu lo XII ao XVII?”

O universo autárquico
da Alta Idade Média

De acor d o com a perspectiva p r op ost a an teriorm en te, pode-se


con sid er ar qu e h á cerca de m il an os, e até apr oxim ad am en te o
sécu lo XII, as p essoas, n o O ciden te, tin h am u m a visão d o m u n d o
fortem en te ligada à su a existên cia n as aldeias au t ár qu icas (Fourez,
1984). Elas n asciam , viviam e m orriam n o mesmo am biente hum ano.
Para elas, os objetos n ão eram in an im ad os, p ois faziam parte d o
u n iver so h u m an o n o qu al viviam . U m carvalh o, p or exem plo, n ão
era ap en as “u m carvalh o q u alqu er ” , m as ligava-se sem pre a u m a
h ist ór ia particular, à aldeia, a seu s acon tecim en tos. U m r epolh o
ou u m p ar de sap at os n ão eram , com o em n o ssa sociedade
m od er n a, m er cadorias im pessoais, m as o r epolh o pr od u zid o p or
fu lan o ou o s sap at os fabr icad os p or beltran o.
D e ssa perspectiva, era praticam en te im possível falar de u m
ob jeto “ pu r am en te m aterial”, u m a vez qu e a N atu reza e o m u n d o
com o u m tod o estavam h u m an izad os. Em u m m u n d o assim , era
q u ase im possível im agin ar o olh ar “frio” de u m ob ser vad or cien tí­
fico. Esse olh ar su p õe com efeito u m a certa distân cia, com o se
h ou vesse de u m lado o ob ser vad or e de ou tro, a N atu reza qu e se
vê. O r a, n o am bien te d as aldeias au tár qu icas, o ob ser vad or e a
Natu reza p od em ser con sid er ad os, pelo m en os em u m a prim eira
ap r oxim ação, com o u m t od o u n ificado.
Em sem elh an te u n iverso, cada ser em seu lugar, em su a espécie
e em seu gên ero, o t od o sen d o facilm en te det er m in ado p or u m a lei
d o m u n d o, criada e qu er id a p or D eu s (Illich , 1982). N esse
u n iverso, as coisas são qu ase tão etern as qu an t o a aldeia n a qu al se
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 157

vive. O t em p o n ão tem a d im en são d o pr ogr esso, m as é u m tem po


cíclico, qu e retorn a a cada estação, trazen do sem p r e a or d em etern a
d as coisas. N esse u n iver so, a Ter ra, o s seres h u m an os, os h om en s,
as m u lh er es, os an im ais, as plan tas, t u do tem o seu lu gar desde
sem p r e e par a sem p re. O s plan etas giram em t or n o d esse u n iver so
terrestre com a ser en id ad e d aq u ilo q u e é etern o. E u m m u n d o qu e
n ão se d om in a, m as on d e se está in ser id o e qu e se ten ta even tu al­
m en te ap r ision ar , particu larm en te com o au xílio d a m agia.
Em todo caso, as p essoas d essa civilização jam ais se sen tiam
dian te d as “leis in exoráveis e frias d a N at u reza”; situavam -se
sem p r e em u m u n iver so an im ad o, en can tado. Em u m m u n d o
assim , aliás, a m or al n ão faz m ais d o qu e refletir essa or d em de
coisas. T o d a t r an sgr essão d a or d em aparece com o a t r an sgr essão
d e u m tabu, a destr u ição de algo sagr ado. N ão era u m a m or al d o
cálcu lo ou d a razão, m as u m a m oral de pr oibições. O im portan te,
n a ação h u m an a, n ão era a r esp on sab ilid ad e, m as o qu e ela fazia
em r elação à or d em d o m u n d o, de m an eir a qu ase in depen den t e
d a in ten ção d o agen te.
A descr ição acim a, d a visão de m u n d o d as p essoas qu e viviam
h á m il an os, ob viam en te foi sim plificada, ten d o em vista a con s­
tru ção de u m m od elo de in terpretação h istórica d est acan d o a
evolu ção. Para ser m os m ais pr ecisos, seria n ecessár io n otar, p or
exem plo, qu e, com a h eran ça estóica ou o p en sam en t o de Lucrécio,
a n o ssa cultura já t in h a u m a certa represen tação de u m m u n d o
in an im ad o; d o m esm o m od o, os com ercian tes gregos e fen ícios já
p ossu íam o h ábito de tr an sfor m ar todas as coisas em m er cadoria
im p essoal. Porem , per m an ece o fato de qu e a d escr ição acim a
cor r esp on d e, p or alto, à cultura agrária d a Idade M édia.

O universo dos comerciantes burgueses

Para com pr een d er a pr ofu n d a t ran sfor m ação ocorr id a em


p ou cos sécu los, p od e ser útil con sid er ar a im agem d o b u r gu ês1

1 Q u a n d o falo aq u i d e “b u r gu ês" ou de “bu r gu esia” , utilizo o ter m o em seu sen t id o


158 GÉRARD FOUREZ

com ercian te (trata-se t am b ém n esse caso d e u m a recon stru ção


teórica v isan d o a u m a com p r een são de certos fen ôm en os, e n ão
de u m en saio h istórico). Esse com ercian te é em pr im eir o lu gar u m
ser sem raízes. Vive u m a b oa parte de su a existên cia fora d o u n i­
verso h u m an o n o qu al n asceu. V ê coisas estr an h as, descon h ecidas,
coisas qu e, aliás, ele ten tará con tar q u an d o r et om ar a su a casa.
M as, on d e é a “su a casa”? O u n iver so aparece a seu s olh os com o
u m lu gar cada vez m ais n eu tro e com u m a estrutura cada vez m en os
h u m an a. N ão se cen tra m ais em t or n o d a aldeia n atal, on d e tu do
é m ar cad o p or objetos fam iliares, m as trata-se de u m u n iverso on d e
se p od e cam in h ar cm dir eção ao n orte, ao sul, ao leste ou ao oeste,
ou seja, a direções defin id as de m an eira bast an t e abstrata. E u m
m u n d o em qu e t od os os lu gares se eqü ivalem , u m m u n d o de pu r a
exten são, de on d e vai poder n ascer a r epresen tação d o esp aço físico
q u e con h ecem os (cf. o con ceito de exten são em Descartes).

En q u an t o o cam p on ês n ão p od ia se im agin ar fora de seu


h ábitat, o com ercian te com eça a viver sozin h o. Além d isso, é n essa
cu ltura qu e se vê d ifu n d ir u m a n ova n oção: a de vid a in terior. O
cen tro d o u n iverso n ão é m ais a aldeia, u m a exterioridade sem pre
an im ad a pela in terioridade, m as torn a-se in terioridad e pu ra, ligada
ao in divídu o. Com eça a h aver u m a diferen ça en or m e en tre o
in terior, o qu e sem pre acom p an h a o in divídu o e é su bjetivo, e o
exterior, m u n d o in an im ad o qu e com eça a ser vist o com o u m
objeto. A s coisas se vêem p ou co a p ou co d esp r ovid as de todo
sen tim en to. O com ercian te observa cost u m es est r an h os aos de su a
aldeia; vê coisas qu e, para ele, n ão p ossu em u m a h ist ór ia: a su a
ob ser vação torn a-se cada vez m ais fria.

A o m esm o tem po, se desen volve a in terioridade d o su jeito. A


esp iritu alid ad e e a prece con sist ir ão m en os em se in ser ir em algo
coletivo (com o o coro d os m on ges) d o qu e em or ar in dividualm en te
e m editar. A oração, com o a leitura, tornar-se-á cada vez m en os

técn ico e n ão, p op u lar . Falo d essa classe social su r gid a n a Id ad e M éd ia, co n segu in d o
ob t er r econ h ecim en t o, e d ep ois su b st it u in d o a ar istocr acia co m o classe dirigen t e
(d o m in an t e , h egem ôn ica) n o O cid en te.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 159

corporal, p assan d o a valorizar a in terioridade pura. N ão é p or ou tro


m otivo q u e In ácio d e Loyola procu r ar á fazer com qu e os seu s
jesu ít as carregu em con sigo, in dividu alm en te, t oda a su a per son ali­
dad e, de m an eira in depen den t e de t od o am bien te. N ão é p or ou tro
m otivo, t am pou co, qu e as casas b u r gu esas são m en os “ p ú b licas”
e m ais fech adas d o qu e a d os aristocratas. A o u n iver so in terior
opõe-se a realidade exterior. O m u n d o m od er n o torn a-se o da
in terioridade, m esm o qu e se trate de u m “exílio in terior ” (Jaccard,
1975).
En q u an t o n as aldeias tu do estava sem p re ligado à vida d as
p essoas, a seu s pr ojetos, a su a vida afetiva e prática, o com ercian te
com eça a falar de even tos sem h istória, e qu e n ão existem u n ica­
m en te par a eles, em u m m u n d o “d esen can t ad o”. N asce u m
con ceito, o de objetividade “pu r a”, isto é, d aqu ilo qu e resta q u an d o
se d esp ojou o m u n d o de tu do o qu e con stitui a su a particularidade,
de seu vín cu lo com este ou aqu ele in divídu o, este ou aqu ele gr u po,
esta ou aqu ela h istória. E d esse m od o qu e, d o p on t o de vist a d a
h istória, a objetividade, lon ge de r epresen tar u m olh ar ab solu t o
sob r e o m u n d o, aparece com o u m a m an eir a particu lar de con s­
truí-lo. E a cultura d o s com ercian tes bu rgu eses qu e in stitui a visão
de m u n d o em u m agregado de objetos in depen den t es d o s ob ser ­
vadores.
N ão obstan te, a lin gu agem d a objetividade pu r a p ossu i ain d a
raízes bem fu n d as; tem o seu lugar. Liga-se ao relato d aqu eles qu e
devem p od er con tar o qu e viram a ou t r os qu e n ão par tilh ar am a
m esm a h istória. E n esse p on t o qu e, segu n d o Latour, situa-se a
diferen ça en tre o con h ecim en t o de u m ar qu ipélago polin ésio da
m an eir a é com o vivida pelos n ativos e a descr ição qu e será feita
por u m ob ser vad or ociden tal (1983). N ão se pod e dizer qu e o
exp lor ad or ociden tal con h ece melhor os ar qu ipélagos da P olin ésia
d o qu e os n ativos; estes aliás são perfeitam en te capazes de se
or ien t ar p o r ali, em geral bem m elh or d o qu e os explor adores.
Con t u d o, a su a represen tação d o m u n d o n ão é transportável; liga-se
a su a vida. O seu relato n ão será com pr een d id o em Paris, Lon d r es
ou Lisb oa. Pelo con tr ár io, o m u n d o ociden tal criou m ét od os de
160 GÉRARD FOUREZ

d escr ição (tecn ologias in telectuais) tais qu e, o qu e se ob ser vou n as


Ilh as M ar q u esas pod e ser “t r an sp or t ad o” a Paris. A objetividade
aparece, assim , com o u m a m an eir a de ver o m u n d o q u e perm ite
d estacar aq u ilo qu e se vê da globalidade: a civilização m od er n a
d isp õe de r epresen tações m en tais m edian te as qu ais ela vai pod er
in serir descr ições de ob jet os sep ar ad os. A “objet ividad e” , en tão,
n ão existiria p or si m esm a, m as seria a pr od u ção de u m a cultura.
Essa atitu de de objet ivid ad e dian t e d e u m a n atu reza con sid e­
rada com o p assiva pod e t am b ém ser r elacion ad a com as m an ei­
ras de per ceber a r elação h om em -m u lh er. A ssim , St en ger s (1984)
m ostr a com o, para se libertar, a ciên cia m od er n a lu tou con tr a
u m a con cep ção an im ist a d a n atureza, em qu e a “feiticeira” tem
u m lu gar im por tan te. A feiticeira sim boliza u m a r elação com “a
n atu reza qu e é t am bém tem ível e d otad a de p o d e r ”. Ela se
com u n ica com a N atu reza “de m an eir a n ão r acion al, m as eficaz” .
A o p asso qu e, segu n d o St en ger s, par a a ciên cia m od er n a, a
m etáfor a fem in in a, p ar a falar d a Natu reza, rem ete a “u m a m u lh er
passiva, qu e se p od e pen et r ar à von t ad e, qu e se p od e con h ecer
ao pen etr ar, qu e n ão é m ais tem ível; a an álise de u m a série de
textos perm ite estabelecer u m par alelo en tre a d escob er t a coletiva
da N atu reza, a su a ap r op r iação coletiva e u m a espécie de violação
coletiva, pen et r ação coletiva d o s h om en s em p osição de in iciativa
volu n t ar ist a em relação a algo q u e é p or si su b m isso , en tregu e ao
con h ecim en t o, qu e b ast a ter von t ad e de pen et r ar p ar a con h ecer ”
(cf. t am b ém Elzin ga, 1981; Easlea, 1980; M en d elsoh n , 1977;
M erch an t, 1980).

Uma objetividade permitindo


uma comunicação universal

A s descrições “objetivas” qu e se pode fazer tan to em O slo com o


em N áp o les d ão efetivam en te a im p r essão de u m d iscu r so un iver­
sal. Tem -se t am b ém a im p r essão de qu e o d iscu r so cien tífico está
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 161

com plet am en t e sep ar ad o d o d iscu r so particular d as aldeias e de


su as características cu ltu rais locais. Esquece-se por ém qu e, par a
com p r een d er u m a descrição cien tífica, é preciso ter um a cultura
científica. A ciên cia for m a u m a lin gu agem com u m qu e forn ece
p on t os de referên cia aos cien tistas assim com o o s elem en tos locais
forn eciam pon t os de referên cia com u n s a t od os os seu s h abitan tes.
Sem essa lin gu agem com u m , é im possível com p r een d er “a ob jet i­
v id ad e” de u m m apa ou a descrição de u m sistem a de polias p or
físicos. U m u n iver so con ceituai m en tal, in teriorizado pelo cien tis­
ta, su b stitu ir á o u n iver so par t ilh ado d as aldeias: é essa cultura d o s
pré-requ isitos qu e perm ite a u m fisico de M oscou explicar a seu
colega de São Fr an cisco a “m esm a” experiên cia.

Para t om ar con sciên cia d a im por tân cia d essa cultura cien tífica
p ar t ilh ad a, b ast a t en tar ler u m a ob r a “cien tífica” d o sécu lo XV I:
logo se estará p er su ad id o de qu e é n ecessár ia u m a cu ltu ra com u m
p ar a q u e a u n iver salid ad e d o d iscu r so cien tífico seja oper acion al.
E aliás, b ast a ap r en d er u m a ciên cia (ou seja, aculturar-se, fam ilia­
rizar-se com e ssa ab or d agem d o m u n d o) p ar a p o d er com p r een d er
os pr át icos d essa d iscip lin a em t od as as par tes d o m u n d o. M as,
se se con vive o t em p o su ficien te com os n ativos de det er m in ada
cultura, acaba-se com p r een d en d o tam bém a su a visão de m u n d o.

O segredo d a u n iversalidade da lin guagem n ão residiria n o fato


de qu e, em t od o lugar, as p essoas apr en d em os m esm os pré-requi­
sitos e con st roem os m esm os laboratórios? Eles se com pr een d em
p or terem un iform izado a su a percepção d o m u n d o, exatam en te
com o fazem o s h ab itan t es de u m a aldeia. O segr edo d o m ét od o
cien tífico teria su as raízes, port an to, n essa t radição b u r gu esa da
com u n icação. A cu ltu r a b u r gu esa teria in ven t ad o r ep r esen t ações
m en tais q u e q u alq u er u m pod e isolar, in teriorizar e p or vezes até
com u n icar , sem com pr een d er , en qu an t o as ou tr as cu ltu r as p r es­
su p õ em sem p re, a fim de per m it ir a com u n icação, o partilh am en -
to total d o m esm o m eio. D aí o vín cu lo existen te en tre a em er ­
gên cia d a ciên cia m od er n a e os m od er n os m ét od os d e escrita ou
de leitura.
162 GÉRARD FOUREZ

A partir d o sécu lo XII, com efeito, com eça-se a escrever


sep ar an d o as palavras. N e ssa época, torn a-se possível ler u m texto
e fazê-lo com preesível a ou tro, m esm o q u e a pr óp ria p essoa n ão o
com p r een d a (o qu e é r igor osam en te im possível n as escritas n ão-
alfabéticas - o s ideogram as ou os sím b olos m atem áticos - , ou n as
lín gu as q u e n ão escrevem n en h u m a vogal, com o o h ebraico). N a
m esm a época, com eça-se a pod er ler m en talm en te, sem m exer os
láb ios. Elabora-se assim , p ou co a pou co, u m a m an eir a de p en sar
q u e apela cada vez m en os ao cor po e m edian t e a qu al pode-se
realizar u m t rabalh o in telectual sem qu e se esteja cor poral ou
p essoalm en t e im plicado; o resu ltado d essa ten dên cia m ostra-se n os
com p u t ad or es, capazes de trabalh ar p or n ós sem q u e com pr een d a­
m os o qu e fazem (cf. a com u n icação - in édita - de Ivan Illich n a
2 nd N ation al Literary Conference, em W ash in gt on D C , fevereiro de
1987).
En t ão a u n iver salidad e d a ciên cia é de tal m od o diferen te d a
u n iver salid ad e de t oda lín gu a? Elas são t od as u n iver sais, sob a
con d ição de qu e as ap r en d am (perm an ece o m istério d a tradutibi-
lid ad e d as experiên cias: com o se dá qu e p o ssam o s tradu zir u m a
lín gu a em ou t r as de m an eir a sign ificativa, m esm o sab en d o qu e é
im possível tradu zir tudo?).

Um a cultura do domínio

U m a ou tra diferen ça im por tan te en tre a m en talidade b u r gu esa


e a m en talid ad e an terior liga-se ao d esejo de con tr olar e d om in ar
o seu m eio. N a aldeia au t osu bsist en t e d a Id ade M éd ia, as p essoas
se inserem . A m en talidade bu rgu esa, pelo con trário, tenta-se d om i­
n ar. A n oção de in vestim en to liga-se aliás a essa ten tativa de
d o m ín io: trata-se, com o a form iga de La Fon tain e, de prever,
calcular, de jam ais se deixar pegar despreven ido. A m atem ática será
u m in st ru m en t o útil n essa arte d a previsão, em m eio a u m a
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 163

socied ad e m ercan til. A m or al, tam bém , su rgirá com o u m con trole
d as paixões, u m d o m ín io de si (Fourez, 1984).
O q u e perm itirá aos con qu ist ad or es d om in ar o plan et a será,
aliás, a arte d a previsão, d o cálcu lo, d o d om ín io. Pouco a pou co,
essa capacid ad e d o s ocid en t ais em ver o m u n d o de m an eir a in d e­
pen d en t e d o s sen t im en t os h u m an os, m as u n icam en t e em razão de
seu s pr ojetos de d om ín io, revelar-se-á de extraordin ária eficácia. O s
n avegadores serão capazes de t r an spor tar os seu s con h ecim en t os
d e u m lu gar a ou tro. O seu saber, por qu e d esp ojad o d o qu e é
in dividu al e local, vai aparecer com o cada vez m ais un iversal.
A partir d o m om en t o em qu e se retirou de u m a m açã o qu e
faz a su a p ar t icu lar id ad e, o qu e lh e d á u m go st o esp ecial p o r q u e
foi ofer ecid a p o r algu ém ou p or q u e cresceu em u m a m acieir a
p ar t icu lar , t orn a-se p o ssíve l falar d o conceito un iv ersal d a m açã.
Tor n a- se p ossível ven dê-la, produzi-la, n est e m u n d o cad a vez
m ais u n id im e n sio n al d o com er cian t e (M ar cu se, 1968). P ar a o
u n iv er so d a b u r gu esia, q u e é t am b ém o d a ciên cia, o s o b je t o s
p er d em cad a vez m ais o qu e con st it u i a su a p ar t icu lar id ad e p ar a
se t orn arem ob jet os de cálculo e dom ín io. A m oral, e a m oral
sexu al em particular, n ão surgirá m ais com o o respeito a u m a or ­
d em m ais ou m en os sagr ada, m as sim plesm en t e com o u m cálculo,
de m ais em m ais utilitário, a fim de d om in ar o m u n d o e organ izá-lo
d a m elh or for m a (Fou cau lt, 1976). E, paralelam en te, o in divídu o
torn a-se o cen tro d o m u n d o ob ser vad o e de seu d estin o ético.

Eficácia e limites do domínio científico

A ciên cia m od er n a ligou-se d essa for m a à ideologia bu rgu esa


e a su a von t ad e de d o m in ar o m u n d o e con tr olar o m eio am bien te.
N ist o ela foi perfeitam en te eficaz. Foi u m in stru m en t o in telectual
qu e perm itiu à bu rgu esia, em prim eiro lugar, su p lan t ar a ar istocr a­
cia e, em segu n d o, d o m in ar econ ôm ica, política, colon ial e militar-
m en te o plan eta.
164 GÉRARD FOUREZ

D u r an t e sécu los sen tiu-se a eficácia d esse m ét od o e os seu s


su cesso s serviram de b ase às ideologias d o p r ogr esso. De fato, os
b en efícios r esu ltan tes foram en or m es: foi gr aças à pr od u ção da
socied ad e bu rgu esa, à su a ciên cia e à tecn ologia qu e a vida h u m an a
con h eceu m ú ltiplas m elh or ias. For am a ciên cia e a técn ica qu e
im ped ir am qu e as p essoas ficassem com pletam en te dep en d en t es
d a en ergia, d os aspectos aleatórios do clim a, de u m a fom e sem pre
am eaçad or a e assim p or dian te. A civilização b u r gu esa produziu ,
par a praticam en te t odas qu e se ju n t ar am a ela, b en s m ú ltiplos, n ão
som en t e par a o s m ais r icos m as, pelo m en os em su a ú ltim a fase,
par a t od os n os p aíses ocid en tais. G r aças a ela, a m aioria da
p op u lação se ben eficia de u m bem -estar econ ôm ico qu e os m ais
r icos n ão pod er iam son h ar h á algu n s sécu los.

N ão obstan te, as recen tes evoluções da sociedade, os perigos


d a polu ição, a corrida arm am en tista - cm especial as ar m as
at ôm icas - , o s p r ob lem as d a en ergia, en tre ou t r os levaram u m
n ú m er o cad a vez m aior de p essoas a se qu est ion ar a respeito d essa
atitu de de d om ín io. Q u an d o o s seres h u m an os se con stitu em
com o sen h or es solitários d o m u n d o, em exp lor ad or es da n atureza
e, m u itas vezes, com o calcu lad or es em relação à p r óp r ia vida, é, a
lon go term o, possível ain d a viver?

E essa atitude de d om ín io desejável n o qu e se refere a t od as as


coisas? Em certos cam p os, em t odo caso, ela parece ter ch egado a
u m fracasso. E o caso em particular da ética sexu al. A partir d o
fin al d o século p assad o, Freud m ostra os lim ites de u m a ética sexual
b asead a n o d om ín io e con trole d as paixões e d a sexu alidade: ela
con du zia a tan tos p r ob lem as de patologia p síqu ica qu e, afin al,
m u it os a ju lgaram in ad equ ad a (Freu d con servou , n o en tan to, u m
pr ojeto de “con tr ole” t ipicam en te bu rgu ês: a psican álise é u m
m ét od o, b asead o n o in divídu o, para ferir su as paixões - ou
pu lsões). H oje, em especial com o m ovim en to ecológico, m u itos
se per gu n t am se a ciên cia e a tecn ologia acarretam sem pre n eces­
sariam en te a felicidade aos seres h u m an os (in teressan te n esse n ível
é a evolu ção de Leprin ce-Rin guet, 1978).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 165

Em n o ssa sociedade, assistiu-se a u m a espécie de revolta dian te


d a atitu de técn ico-cien tífica. A civilização d a ciên cia, civilização d a
precisão, d a escrita é recolocada em qu est ão, com o o d em on st r a o
d esejo de m u itos de r een con tr ar u m con tato m ais autên tico com a
n atureza. O lim ite d a gestão d o m u n d o pelo técn ico-cien tífico se
t orn a paten te q u an d o se con sidera a in capacidade d o p r ogr esso em
r esolver os p r ob lem as sociais d o m u n d o - e em particular a su a
in capacidade de su pr im ir as d om in ações h u m an as, prin cipalm en te
aqu elas criadas pela in dú stria e pela exploração d o Terceiro M u n d o
(dois p r od u t os d a sociedade bu rgu esa). Parece qu e a ciên cia n ão é
de m od o algu m eficaz para resolver as gr an d es qu est ões éticas e
sociopolít icas d a h u m an id ad e (Reeves, 1986). M ais ain da, algu n s
lh e atr ibu em u m papel n o estabelecim en to d as d esigu ald ad es
m u n d iais (M oraze, 1979).
E por isso qu e, h oje, m u itos, ao m esm o tem po qu e recon h ecem
a eficácia e a perform ance d a ciên cia e d a técn ica, recusam -se a
redu zir a elas a su a visão d o m u n d o.

Da física, paradigma das


ciências eternas, à história da ciência

A len ta deriva d a civilização ociden tal (“der iva” n o sen t ido d a


deriva d os con tin en tes) em direção a u m a atitude cada vez m ais
cien tífico-técn ica estruturou-se em t or n o de u m a d isciplin a particu­
lar: a física. A partir d o sécu lo XVI, aqu eles qu e ser ão m ais tarde
ch am ad os de físicos (ou m ecan icistas) com eçar am a criar p ar a si
u m a r epr esen t ação d o m u n d o n a qu al os ob jet os n ão p o ssu íam
m ais n ad a de su bjetivo, de an im ad o. O m u n d o d os astr os obedecia
a leis frias, a u m d et er m in ism o qu e logo seria ch am ad o, com o a
lin gu agem d e “u n iver sal”.
N est a perspectiva, a h istór ia n ão existe m ais, já qu e u m sistem a
com eça com su as con d ições in iciais, q u alq u er qu e seja a m an eir a
pela q u al essas ú lt im as ocorreram . C o m a m ecân ica an alítica, o
166 GÉRARD FOUREZ

t em p o perderá a su a orien tação privilegiada e será redu zido a u m a


n ova d im en são espacial. A m atem ática forn ecerá en tão à física u m a
lin gu agem em qu e cad a p on t o d o esp aço será per ceb id o com o
equivalen te a u m ou tro. D o m esm o m od o qu e, par a o com ercian te,
t od os os ob jet os se t or n am m ercadoria e são redu zidos a esse
equ ivalen te geral qu e é a m oed a; assim t am bém , p ar a os cien tistas,
t u d o se t or n ará m en su rável e o m u n d o tran sform ar-se-á em cifras,
p er d en d o a su a particu laridade e torn an do-se a m era exp r essão de
leis ab solu tam en t e gerais. T al perspectiva n ão será exclu siva d a
fisica. T o d as as d iscip lin as, aí in clu ídas as ciên cias h u m an as,
ten tar ão copiá-la. Em biologia, p or exem plo, M o n o d falará de u m
m u n d o d esen can t ad o, on d e tu d o deve ser r em etido às cau sas
in iciais, p o r m eio d o acaso ou d a n ecessidade (M on od , 1970).
Ser á preciso esp er ar o sécu lo XX e em particular os t rabalh os
d e Prigogin e, para qu e se volte a in trodu zir a n oção de h istór ia de
u m sistem a físico, para qu e se con sidere n ovam en t e a Natu reza
com o p od en d o prod u zir coisas or igin ais, n ovas, acon t ecim en t os
q u e n ão estavam in teiram en te descr itos pelas leis u n iver sais n as
q u ais se qu er ia en cerrar tu do.
D u r an t e su a evolução, a ciên cia pou co a pou co apagou as su as
or igen s. Esqu eceu as qu est ões d o cotidian o qu e fizeram su r gir a
física, a m edicin a, a in form ática, para preten der qu e só existe u m a
ciên cia u n iversal. Com eçou -se a acreditar qu e t u do d ep en d e de
r aciocín ios qu e p od em ser os m esm os em qu alqu er lu gar e se su põe
qu e o d iscu r so cien tífico obedece a u m a r acion alidade in d epen d en ­
te de q u alq u er época. O laboratório é essa in ven ção gen ial p or m eio
d a qu al os cien tistas con tr olam o am bien te par a qu e as experiên cias
se realizem segu n d o as con d ições previstas pelo par ad igm a: d esse
m od o, o s resu ltados serão sem pre tran spon íveis... so b con d ição de
con tr olar o am bien te p or in term édio de u m laboratór io equ ivalen ­
te, ou p o ssu ir u m am bien te totalm en te equ ivalen te àqu ele on d e se
obtiveram o s r esu lt ad os (Latou r, 1982).
Esqu eceu -se q u e o qu e d á à ciên cia u m a apar ên cia u n iversal é
pr ecisam en t e esse desen r aizam en to d os com ercian tes, qu e n ão
d escr evem de m od o algu m o m u n d o tal com o é, m as ap en as um
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 167

m undo tal como pode ser relatado, n ar r ad o e con tr olad o d e u m lu gar


a ou tro. E obn u bilam -se d essa for m a t od os o s d esvios d o s raciocí­
n ios cien tíficos, t od as as n egociações d a observação, t od os os
com p on en t es afetivos, religiosos, econ ôm icos, políticos d a prática
cien tífica, a fim de reter som en t e u m a im agem relativam en te
abstrata. “En du recem -se” d esse m od o o s en foqu es cien tíficos, a
p on t o de apagar t u d o o qu e p ossu em de relatividade h istórica
(Sten gers, 1987).
A m an eira pela qu al se escrevem os artigos cien tíficos é
sign ificativa, d esse p on t o de vista: só se descreve o “raciocín io
cien tífico” e, de m od o algu m , o p r ocesso con creto segu ido; q u an d o
se pr eten de dizer o qu e se fez, apresen ta-se u m per cu rso relido por
in term édio d o s r esu lt ad os.2

Foi d esse m od o qu e a h istór ia d a ciên cia freqü en tem en te


su pr im iu a su a d im en são h istórica. A o escrevê-la, só raras vezes se
bu scou reen con trar a sin gu laridade d o p assad o; pelo con trário, pro­
curou-se m ostr ar o d esen r olar d o pr ogr esso cien tífico, per cebido
em geral com o in exorável e tão lin ear qu an t o o u n iverso de Laplace
(ou qu an t o o m ater ialism o dialético de certos m ar xist as; cf. Sar t on ,
1927- 1948). A h ist ór ia d a ciên cia assem elh a-se port an to aos racio­
cín ios ap r esen t ad os n o s artigos cien tíficos: só se relata aqu ilo qu e,
a posteriori, parece útil, racion al, cien tífico. D esse pon t o de vista, o
“p r ogr esso” avan ça sem p re com u m a lógica im placável, r acion ali­
zan d o o s cam in h os per cor r id os para se ch egar on d e se está.

Para o olh ar crítico, a ciên cia su rge com o u m a in stituição,


h u m an a, com t odas as su as particu laridades h istóricas. Assem elh a-
se a u m a “estru tu ra d issipat iva”. Con figu rou -se den t ro d e u m a
evolu ção h istórica fervilh an te: u m a certa racion alid ade e u m certo

2 O exem p lo m ais t ípico d essa reescritura, c bem est u d ad o p elos h istor iad or es (H olt on ,
1986, p.9-12), é o d e M illik an , em seu fam o so ar t igo “p r ovan d o a exist ên cia” d os
elét r on s. M e sm o q u e a m an eir a pela q u al ele “ picar et eou ” o s se u s r elat ór ios d e
exper iên cia par eça p o u co com pat ível com a ética cien tifica n or m alm en t e ad m it id a,
trata-se ap en as d e u m caso ext r em o ext r ap o lan d o as pr áticas cor r en tes (cf. Latou r ,
1984).
168 GÉRARD FOUREZ

d iscu r so se con st ru ír am e se estru tu raram gr ad u alm en te n o O ci­


den te b u r gu ês e d er am aos m ét od os e saber es cien tíficos a form a
qu e con h ecem os h oje. E h istoricam en te qu e as d iscip lin as se
sep ar ar am d o m od o com o vem os h oje. Sem elh an t e evolu ção n ão
ob ed ece a u m a lógica pré-determ in ada, m as d ep en d e de escolh as
(em geral n ão-in ten cion ais). Essas escolh as cien tíficas - com o todas
as escolh as t ecn ológicas, aliás - ocorreram ao sab or d o acaso, ao
lon go d a h istória, por u m a série de m otivos “razoáveis” , m as n ão
det er m in an t es. For am t am b ém con d icion ad as pelas estr u tu r as de
sociedade e p or relações h u m an as, com todas as d om in ações e lutas
sociais e econ ôm icas p or elas im plicadas.
N ão obstan te, a h ist ór ia d a ciên cia poder ia ser feita de m an eir a
in teiram en te diferen te. D o m esm o m od o qu e é possível pergun tar-
se o qu e teria ocorr id o n a h istór ia do au tom óvel se tivesse sid o o
m ot or elétrico a p r ed om in ar an tes do fin al d o sécu lo XIX, t am bém
é possível colocar qu est ões sobr e o qu e teria sid o d o s r esu ltados
cien tíficos se algu m as escolh as fossem diferen tes. Em am b os os
casos, porém , é im possível qu er er sab er o qu e teria sid o o fu tu ro*
caso ou t r as escolh as tivessem sid o feitas. P erm an ecerá par a sem pre
d escon h ecid o o qu e teria p od id o acon tecer caso os m otores elétri­
cos tivessem sid o escolh id os, assim com o jam ais sab er em os qu e
con h ecim en t os t er íam os, caso a física n ão tivesse segu id o a for m a
qu e lh e der am Galileu , N ew ton e seu s con t em p or ân eos. Além
d isso , u m n ú m er o cad a vez m aior de h ist or iad or es da ciên cia
est u d am h oje os debates d o p assad o, evitan do olh ar par a tu do com
o olh ar d o qu e foi declarado “ven cedor” (cf. Pan dore, 1982; Latour,
1984; St en ger s, 1987).
En tretan to, é possível descrever e exam in ar tod a u m a série de
con d icion am en t os d a h istór ia tal com o ela ocorreu . Pode-se ver,
p or exem plo, q u ais for am os fatores econ ôm icos, cu ltu rais, políti­
cos qu e con tr ib u ír am par a o desen volvim en to técn ico d o m ot or a
exp lo são d os au tom óveis. Pode-se exam in ar t am b ém q u ais são os
fatores econ ôm icos, m ilitares, in du st riais etc. qu e con d icion ar am
o d esen volvim en t o d a física. Pode-se exam in ar as difer en ças de
socied ad e qu e p od em aju d ar a esclarecer a h eterogen eidade da
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 169

evolu ção d o sab er n o O cid en te e n a C h in a (N eedh am , 1972).


Tod avia, t u d o parece in dicar qu e esses d esen volvim en t os n ão
segu em regras e leis u n iversais, com o pareciam acreditar tan to as
id eologias d a racion alid ade cien tífica qu an t o as d o m at er ialism o
dialético m arxista.

O casamento da ciência e da técnica

Para m u itos de n o sso s con tem por ân eos, parece eviden te qu e


ciên cia e tecn ologia estejam ligadas. A in d a m ais, qu e é a ciên cia
qu e perm ite o d esen volvim en t o d a técn ica.
Sem elh an t e visão n ão parece de m od o algu m susten tar-se
h istoricam en te. C o m efeito, du ran te m u ito tem po, ciên cia e técn ica
se d esen volveram em separado. N a verdade, m u itas vezes foi a
técn ica qu e esteve em avan ço em relação às com p r een sões teóricas.
H avia m áq u in as a vapor , p or exem plo, b em an tes qu e se falasse
n o ciclo de Car n ot .
O casam en t o en tre ciên cia e técn ica operou-se de d u as m an ei­
ras diferen tes, de acor d o com a época. A ssim , o in ício da b iologia
m arcou-se pelos t r ab alh os d os m éd icos. O desen volvim en t o d a
qu ím ica n o sécu lo XIX, n a Alem an h a, foi fortem en te con d icion ad o
pelas in d ú st rias de coran tes. E a sideru rgia, assim com o as in d ú s­
trias de m etais n ão-ferrosos e ou tr as, irão, desde o sécu lo XIX,
cam in h ar lad o a lad o com o p r ogr esso d a qu ím ica. A física e a
biologia levaram m ais t em po par a in dustrializar-se, o qu e acabou
ocor r en d o, em r elação à prim eira, com a p r od u ção elétrica, a
in d ú st ria atôm ica, o s sem icon d u t or es etc. Atu alm en te, a biologia,
com a en gen h aria genética, em u m a escala bem m aior do qu e ocorreu
com as in d ú st r ias an teriores d a ferm en tação, p assa p or u m a
p r ofu n d a t r an sfor m ação, em su a in du strialização. Q u an t o à in for­
m ática, pode-se dizer qu e ela praticam en te n asceu in du strializada.
In d eped en t em en t e d esses desen volvim en tos h ist ór icos, o fato
é qu e, h oje, ciên cia e tecn ologia parecem estar com pletam en te
170 GÉRARD FOUREZ

ligad as. A u m p on t o em qu e se t o m a difícil det er m in ar qu e


desen volvim en t os devem ser con sid er ad os com o “técn icos” e
q u ais, “cien tíficos” . C o m o se vê n o caso d o s sem icon d u t or es, u m
“p r ogr esso” técn ico acarreta u m “pr ogr esso cien tífico” e vice-versa,
de m an eir a qu ase con tín u a (M acD on ald , 1975). O casam en t o
en tre técn ica e ciên cia, portan to, parece con su m ad o. Em qu e
m ed id a isto m odificará, con cretam en te e de m an eir a pr ogressiva,
o m ét od o cien tífico, ou seja, os m ét od os par a pr od u zir resu ltados?
Já se p od e observar essas m u tações ao se exam in ar o vín cu lo d as
u n iver sid ad es com as in dú st rias. O futuro dirá, sem dú vida. Em
t od o caso, esse casam en t o m ostr a, a qu em p o ssa du vidar , qu e n ão
existe u m a só ciên cia: a prática cien tífica m odifica-se sem cessar.
Fin alm en te, a “palavr a” ciên cia recobre m ais u m a prática qu e
ju lgam os útil con d en sar em u m a só n oção d o qu e u m objeto qu e
ser iam os for çad os a recon h ecer. E p or isso qu e, par a con h ecer o
fen ôm en o qu e con stitui a ciên cia, se im põem ab or d agen s socioló­
gicas e h istóricas.

A sociologia da ciência moderna

H istoricam en te, a ciên cia é u m fen ôm en o de sociedade. Foi


t am b ém o qu e con st ataram sociólogos qu e com eçar am a estudá-la
com o tal.
A s pr im eir as p esqu isas n o cam po d as ciên cias h u m an as rela­
tivas à ciên cia n ão con cern iam de m od o algu m ao pr óp r io pr ocesso
de p r od u ção d os r esu lt ad os cien tíficos (Bloor , 1982). N ão se
con sid erava qu e a ciên cia com o tal p u d esse ser est u d ad a pela
sociologia, m as adm itia-se qu e, em torno da ciên cia, t oda u m a série
de fen ôm en os p od ia ser con sid er ad a, seja pela sociologia, seja pela
psicologia. A ssim , o p sicólogo d a ciên cia p o d ia in teressar-se pelas
razões e m otivações qu e levavam u m cien tista a fazer ciên cia. O s
sociólogos d a ciên cia p od iam con sid er ar o s vín cu los existen tes
en tre os cien tistas e ou t r as in stituições sociais. Estudava-se, por
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 171

exem plo, a m an eir a pela q u al o m ecen ato d o s pr ín cipes forn ecera


su b síd io s às p esqu isas. D o m esm o m od o, as relações en tre as
or ien t ações d e p esqu isa e os in teresses m ilitares ou in d u st r iais
pod iam ser avaliadas em term os de valor. Con t u d o, n ão se estudava
a prática cien tífica com o tal, m as o meio em q u e se produ zia.
U m a segu n d a corren te, r epr esen tada pelo sociólogo M erton
(1973), in teressou -se m ais diretam en te pela prática cien tífica. N ão
se tratava m ais de ver ap en as o vín cu lo en tre os cien tistas e ou t r as
in stitu ições, m as de est u d ar t am b ém a p r óp r ia sociologia da com u­
n idade cien tífica. Sem an alisar os con teú d os cien tíficos ou os
r esu lt ad os d as p esq u isas (sem pre con sid er ad as com o d a or d em d o
r acion al e, portan to, im possíveis de serem est u d ad as sociologica­
m en te), o s sociólogos qu er iam com pr een der os u sos e cost u m es
d o s in vestigadores, as su as m an eir as de se organ izar, a su a carreira,
a su a m an eira de com petir, as su as am bições etc. Fez-se assim u m a
sociologia d a com u n id ad e cien tífica. Efetivam en te, as carreiras
d esses p esqu isad or es, o s t ipos de r ecom p en sas qu e lh es eram
p r op ost as, as m an eir as pelas q u ais obteriam retribuição, a bu rocra­
cia d as organ izações e d as pu blicações cien tíficas, os con gr essos, os
m o d o s de redigir as com u n icações, as relações sociais em u m
laboratór io, os m ét od os d e avaliação de pr ojetos, t u do isso pod ia
pr op iciar p esq u isas sociológicas. En tretan to, con tin u a n ão se con ­
sid er an d o os con teú d os cien tíficos.
. A terceira corren te caracteriza-se pelos t rabalh os d e Th or n as
Ku h n e su a n oção d e m atriz disciplin ar ou paradigm a (1972). D est a
vez, aceita-se qu e a p esqu isa cien tífica é in flu en ciada pelo seu pon t o
de partida, su as “len t es”, seu s precon ceitos, seu s projetos su bjacen ­
tes etc. Aqu i, a sociologia - ou h istória d a ciên cia - com eça a
con sid er ar como os elementos sociais podem estruturar o conhecim ento
científico. ,
Q u an d o se trata de est u dar sociologicam en te a m edicin a
cien tífica, p or exem plo, vim os qu e a p r óp r ia organ ização d essa
d iscip lin a ach a-se ligada a u m par adigm a qu e privilegia a in terven ­
ção, o d iagn óst ico, o m icr oscópico, o biológico etc., m ais d o qu e
os elem en tos ligados ao m eio, à h igien e, aos valores e assim por
172 GÉRARD FOUREZ

dian te. D o m esm o m od o, o par adigm a da m atem ática n ão deixa


d e estar r elacion ad o à prática d o s com ercian tes, qu e devem estabe­
lecer com pat ib ilidad es, ou a d o s n avegadores, qu e devem calcu lar
a su a p osição, ou a d os en gen h eiros ou , en fim , a d o s ad m in ist r a­
d or es in ter essad os pelos or gan ogr am as d as em p r esas.
C o m a n oção de par ad igm a, os sociólogos com eçam a perceber
qu e os próprios conteúdos da ciência se estruturaram em torno de
projetos, preconceitos e até mesm o dom inações sociais qu e p od em ser
est u d ad os. Est u d os em qu e a sociologia e a h ist ór ia estão em
con tato con stan te, pode-se ch egar a con siderar , por exem plo, u m a
h om ologia en tre as h ier arqu ias feu d ais e as h ier arqu ias d o s plan e­
tas n o sistem a ast r on ôm ico d a Idade M éd ia; en tre o sistem a
h eliocên trico de Cop ér n ico e o sistem a político n o qu al o rei é o
cen tro d o pod er (a exp r essão “ rei-sol” n ão é in teiram en te casual).
C o m a n oção de p ar ad igm a de Ku h n , o asp ect o in stitu cion al
d o s co n t e ú d o s era p o st o em evidên cia. N o en t an t o, em u m
pr im eir o período, os sociólogos se in teressaram pela in flu ên cia d os
fen ôm en os sociais sobr e o par adigm a e sobr e a prática cien tífica,
ao m e sm o t em p o em q u e con ser vavam , com o p an o d e fu n d o,
com o u m a id éia r egu lad or a, a idéia de u m n úcleo duro d a ciên cia.
C o n sid e r av am qu e, n o cen t r o d o t r ab alh o cien tífico, h avia
elem en t o s q u e r ep r esen t avam u m a objetiv idade ab solu ta, m esm o
qu e, n a periferia se p u d e sse p er ceb er os co n d icio n am e n t o s d as
d iscip lin as e su a relatividade h istórica. A h istór ia e a sociologia da
ciên cia eram capazes de falar de tu do o qu e girasse em tor n o d esse
n ú cleo, m as a p r ó p r ia racion alidade cien tífica p er m an ecia ao
abr igo d as p esq u isas psicológicas ou sociológicas: ela só d ep en d ia
d a razão pu ra.
Filósofos, h ist or iador es e sociólogos d a ciên cia acab ar am de­
n u n cian d o essa idealização da h istória e da sociologia da ciên cia,
e m ostr ar am qu e, n o qu e se d en om in a de racion alid ad e cien tífica,
en tr am elem en tos p sicológicos e sociológicos. N ó s o vim os ao
exam in ar com o a “d escr ição objetiva d as coisas” está sem pre ligada
a elem en t os con tin gen tes. Filósofos da ciên cia com o Feyeraben d
(1965), ou sociólogos d a ciên cia com o Bloor (1976), ou pr êm ios
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 173

N ob el com o Prigogin e (1979; cf. t am bém Lakatos & M u sgr ave,


1970) con sid er am agora qu e a ciên cia é u m p r od u t o d a h ist ór ia
h u m an a, e está ligada a essa h istória. O próprio conteúdo da ciência
surge como um a criação h um an a, por e para seres hum anos: com eça-se
a est u d ar a ciên cia com o u m a atividade h u m an a qu alqu er , sem a
priori sobr e o seu valor e, portan to, com p r essu p ost os agn óst icos
qu an t o à n atureza d a ciên cia e qu an t o à verd ade de seu s r esu ltados.
Est u d os sócio-h istóricos exam in am a prática cien tífica sem estabe­
lecer u m a diferen ça en tre os cien tistas qu e teriam “razão” e os qu e,
h istoricam en te, estiveram er r ad os.
A partir de 1965, t am bém , com eçou-se a fazer an álises detalh a­
d as d as práticas de laboratório. U m a d as prim eiras foi a de Geor ges
Th ill, sobr e u m laboratór io de partícu las elem en tares (1972;
assin alem os t am bém Latou r & W oolgar , 1981). Por m eio de
an álises m in u ciosas, esses est u d os m ostr am , com o já in d icam os,
com o aqu ilo qu e parece ser o n ú cleo d u r o da ciên cia é pr od u zido
p or m eio de n egociações h u m an as observáveis. E desse m od o qu e,
h oje, a ten d ên cia d om in an t e é acreditar qu e o “n úcleo d u r o da
ciên cia” con sist ia ap en as em u m artefato d as categorias utilizadas.
Essas p esq u isas, t en d en d o a m ostr ar de qu e m od o os r esu lt ad os e
con ceit os cien tíficos são eles m esm os objeto de certos con d icion a­
m en tos sociais, for am d en o m in ad as de “p r ogr am a forte d a socio­
logia d a ciên cia”(Bloor , 1982).
Segu n d o esses sociólogos da ciência, a eterna objetividade das
observações científicas, m uitas vezes com preten sões a u m a objetivi­
dade absoluta, só aparen ta ser eterna devido à fam iliaridade com u m
certo n ú m ero de p r essu post os e de categorias. Assim , só p osso
observar o riach o da m on tan h a sob con dição de possu ir as categorias
de qu eda-d’água, de riach o, de m on t an h a etc. A objetividade dita
“et er n a” d epen d er ia port an to de categorias in telectuais ou t ecn olo­
gias in telectuais u tilizadas. C o m o m ostr ou D avid Bloor (1982), a
p r óp ria “lógica” d epen d er ia da sociedade d a qu al faz parte: n ão se
trata m ais d a lógica etern a, m as an tes de u m a espécie de r esu m o
d as regras qu e u tilizam os para colocar em or d em o n o sso m eio
circu n dan te, regras qu e parecem , aliás, extrem am en te eficazes.
174 GÉRARD FOUREZ

Essa perspectiva, n o en tan to, n ão faz com qu e se con sidere a


ciên cia com o u m p u r o jogo de p en sam en t os. Ela p ossu i u m a
objetividad e relativa, ou seja, ela p ossu i u m a m an eir a eficaz ao
extrem o de or d en ar a n ossa percepção, em n o sso m u n d o, e
com u n icar o tipo de or d em qu e p od em os utilizar con ju n t am en te.
Dizer qu e ela é h istoricam en te con d icion ad a n ão é n egar a su a
au t on om ia. A ssim , u m a vez d efin ida u m a pr oblem át ica m atem áti­
ca, ela desen volver-se-á n o tem po, sem qu e seja pr eciso pr ocu r ar
de qu e m od o os teor em as ser iam con d icion ad os d o p on t o de vista
social e h istórico. A im agem d as estru tu ras d issipat ivas m ais u m a
vez aju d a a esclarecer: u m fu racão n asce em u m lu gar pr eciso p or
cau sas in determ in áveis, em m eio a u m con d icion am en t o físico
pr eciso. Porém , u m a vez exist in d o, a estru tu ra d o fu racão se
desen volve segu n d o a su a pr óp r ia “lógica”.
Dizer q u e a ciên cia é h istoricam en te con d icion ad a n ão é
t am p ou co n egar o seu valor e eficácia. A com p ar ação com a
tecn ologia m aterial pod e dem on strá-lo: dizer qu e o desen volvim en ­
to tecn ológico é h istoricam en te con d icion ad o n ão sign ifica qu e a
tecn ologia n ão seja eficaz em relação aos objetivos per segu id os. O
qu e p en sad or es com o Bloor n egam é a pr et en são de sep ar ar o qu e
seria “pu r a e objetivam en te cien tífico” d o qu e é h istor icam en te
con d icion ad o (assim com o, se con sid er o a tecn ologia d o au t om ó­
vel, n ão p o sso sep arar o qu e é h istoricam en te con d icion ad o d o qu e
seria “eficaz”).
E in teressan te con sid er ar as resistên cias ao est u d o sócio-h istó-
rico d a ciên cia e com par ar essas pesqu isas com o est u do sociológico
de ou t r os fen ôm en os, em particular d aqu eles qu e se acreditou p or
m u ito t em po qu e n ão p od iam ser est u d ad os pelas ciên cias h u m a­
n as: por, exem plo, os fen ôm en os religiosos. Em am b os os casos,
h ou ve u m a resistên cia ao est u d o sociológico, com o se essa ab or d a­
gem cor r esse o r isco de ofu scar o caráter sagr ad o tan to d a ciên cia
q u an t o d a religião.
D e q u alqu er m od o, é geralm en te adm itid o, h oje, qu e tan to a
religião q u an t o a ciên cia pod em ser est u d ad as pelo sociólogo, sem
n ecessar iam en t e per der o seu valor e au ten ticidade, n em serem
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 175

redu zidas ao qu e delas diz a sociologia. En tretan to, tan to algu n s


cien tistas q u an t o algu n s religiosos parecem tem er n ão ap en as o
relativism o, m as t am b ém o “relativo”. Con t u d o, o crist ian ism o p o­
deria ser esclarecedor a esse respeito, pela con sid er ação d as dou tr i­
n as cristãs relativas à en carn ação: segu n d o estas, u m a realidade
pod e ser su b m et id a às con d ições h istór icas e sociais ao m esm o
t em po em qu e veicula u m a m en sagem de t ran scen dên cia a qu al,
n o en tan to, n ão ser á jam ais sep ar ad a de su as con d ições h istóricas!
H averia u m vín cu lo en tre a atitude de certos cien tistas qu e
qu er em a qu alq u er cu sto qu e a r acion alidade p o ssa ser en cerrada
em u m n ú cleo d u r o design ável, e a atitude estigm atizada n a Bíblia
pelo term o de idolatria, q u e preten de qu e o ab solu t o p o ssa ser
localizado em u m a r ealidade finita? M u itos parecem ter dificu ldade
em acreditar q u e o essen cial poder ia n ão r esid ir em u m a r acion a­
lidade ou objetividade ab solu t as, m as n o relativo d a h istória
h u m an a. E sobr e e ssa dificu ldade qu e falava, sem dú vida, Sain t-
Exupéry q u an d o apr esen t ou o P equ en o Prín cipe d escob r in d o a
existên cia de m ilh ares d e r osas todas sem elh an tes à “su a”: precisou
de algu m t em po par a aceitar qu e o im portan te n ão r esidia em u m a
pr op ried ad e in trín seca especial qu e teria a su a rosa, m as n a relação
h istórica e con creta com “su a” rosa.

O estatuto da história da ciência

O s d esen volvim en tos con tem por ân eos da sociologia d a ciên cia
cam in h ar am lad o a lad o com u m a reflexão sob r e a h istór ia desta.
Até h á pou co tem po, a m aioria con siderava qu e a h istória d a ciên cia
reprod u zia a len ta p r ogr essão d a r acion alidade cien tífica (Sart on ,
1927-1948). C o m bast an t e pr u dên cia, aliás, ela d istin gu ia a h ist ó­
ria d o sab er cien tífico d os elem en tos extrín secos qu e p od iam levar
à com p r een são d os elem en t os con tin gen tes d as d escob er tas cien ­
tíficas, m as n u n ca o n úcleo d u r o d a racion alid ade cien tífica..
C o m freqü ên cia, a h ist ór ia da ciên cia d esem p en h a u m papel
ideológico: n arr ar as gr an d es realizações d o s cien tistas, a fim de
176 GÉRARD FOUREZ

qu e a ciên cia seja apr eciada por seu “ju st o ” valor em n ossa
sociedade. Essa bu sca d as raízes h istóricas d a com u n id ad e cien tífica
tem u m a sign ificação im portan te, n a m ed ida em qu e todo ser
h u m an o deseja experim en tar a solidez e a p r ofu n d id ad e de su as
raízes. A h istória da ciên cia, vista d esse m od o, assem elh a-se a essas
h ist ór ias d as n ações d estin ad as a p r om over o espír it o patriótico ou
cívico. Isto n ão deixa de apr esen t ar in teresse, sem dú vida, m as,
caso n ão se acrescen te u m a perspectiva crítica, sem elh an te en foqu e
arrisca-se a ser m istificador.
Existem várias m an eir as de escrever a h ist ór ia d a ciên cia.
A ssim , o livro de Er n st M ach , A m ecân ica (1925), se preten dia
m en os u m h in o par a a gran deza da ciên cia d o qu e u m retorn o à
m an eir a pela qu al os con ceitos d a física for am con st r u íd os. Essa
p esqu isa h istórica pode, p or exem plo, m ostr ar com qu e dogm atis-
m o certos p on t os d a física p od iam ser en sin ad o s a partir do
m om en t o em qu e se aceitavam sem espír ito crítico p on t os de vista
discu tíveis. M ach m ostr ou , d esse m od o, com o se h avia “esqu eci­
d o ” t od as as h ipót eses qu e serviam de b ase à física n ew ton ian a.
Jo gan d o com as palavras, poder-se-ia dizer que, ao m ostr ar o caráter
relativo d os con ceitos de esp aço e de t em po (relativos n o sen tido
epistem ológico d o term o), M ach pr epar ou a teoria da relatividade
(segu n d o o sen t id o d a palavra em física).
A h istór ia da ciên cia pod e estar, assim , a serviço da p esqu isa
cien tífica, ao m o st r ar a relatividade d os con ceitos u tilizados, p on d o
em relevo a su a h istór ia e r ecor d an d o q u an d o e de qu e m od o as
trajetórias d as con st ru ções con ceituais n a ciên cia ch egaram a
p on t os de bifu rcação. Ela pode, d essa form a, eviden ciar as lin h as
de p esq u isas qu e deixaram de ser explor ad as e qu e poder iam ,
portan to, se revelar fecu n das. D essa m an eira, pode-se edu car a
im agin ação d os p esqu isad or es.
N e ssa m esm a lin h a de pen sam en t o, a p esqu isa n o cam p o da
h ist ór ia d a ciên cia se dedicou u ltim am en te a est u d ar a h ist ór ia d a
ciên cia d os “ven cid os” (W allis, 1979). E d esse m od o qu e a h istória
d a ciên cia tem se ded icad o às con trovérsias cien tíficas relativas a
Galileu , Pasteur, à Escola de Ed im b u r go etc. C ad a vez m ais
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 177

h ist or iad or es d a ciên cia (assim com o h ist or iad or es de ou t r as esp e­


cialidades) têm com o pr ojeto eviden ciar a con tin gên cia d o s d esen ­
volvim en tos h ist ór icos, qu er en d o, d esse m od o, d ar a perceber a
im p ossib ilid ad e de reduzir a h istória a u m a lógica etern a. A
p esq u isa h istórica ten de a m ostr ar qu e a ciên cia é realm en te u m
em p r een d im en t o h u m an o, con tin gen te, feito por h u m an os e para
h u m an os.
Por fim , a h istór ia d a ciên cia pod e ser relacion ad a ain d a a
m ú lt iplos aspectos: vín cu lo en tre a ciên cia e a tecn ologia, con d icio­
n am en t o d a com u n id ad e cien tífica, in teração en tre a ciên cia e
ou t r as in stitu ições sociais etc.

Resumo

A ciên cia m oderna, in stituição histórica:

• m o d o esp ecífico d e con h ecim en t o d esen volvid o n o O cid en t e e ligad o


à bu r gu esia;
• r u ptu r a com o m eio “ sacr alizad o” d a Id ad e M éd ia;
• n ascim en t o d e u m p ar ad igm a d o “com er cian te b u r gu ê s”: in t er ior id a­
de, ob jet ivid ad e, cálcu lò, com p r ee n são, d om ín io ; a ciên cia e a lin gu a­
gem sexu ad a;
• eficácia; id eologia d e u m sab er u n iver sal e d e u m p r o gr e sso con st an t e;
co m o com p r ee n d er a u n iver salid ad e d o s d iscu r so s cien tíficos;
• críticas r ecen tes d evid as à p olu ição, à cor r id a ar m am en t ist a, à n egação
d o s d esejos h u m an o s etc.;
• a física, p ar ad igm a h ist ór ico d a ciên cia.

A sociologia d a ciência:

• q u at r o et ap as d o d esen volvim en t o d e seu ob jet o: em t o m o d a ciên cia,


a co m u n id ad e cien tífica, a estr u tu r ação h istór ica d o s p ar ad igm as, o s
p r óp r io s con t eú d os (p r ogr am a forte d a sociologia d a ciên cia);
• o car át er relativo d a ob jet ivid ad e d a ciên cia n ão d im in u i em n ad a a
su a eficácia;
• o estat u to d a h ist ór ia d a ciên cia.
C A P Í T U LO 7

CIÊNCIA E IDEOLOGIA

Discursos ideológicos e eficácia crítica da ciência

D en om in am -se d iscu r sos ideológicos os d iscu r sos qu e se d ão


a con h ecer com o u m a represen tação ad eq u ad a d o m u n d o, m as
qu e p o ssu em m ais um caráter de legitim ação d o qu e u m caráter
u n icam en te descritivo (sob r e os d iscu r sos ideológicos, ver Fourez,
1979; t am b ém M an n h eim , 1974; Gr am sci, 1959; H ab er m as,
1973; Bloor, 1973; D ou glas, 1970). Con siderar-se-á en tão qu e u m a
p r op osição é ideológica se ela veicula u m a represen tação d o m u n d o
qu e tem p or r esu lt ado m otivar as pessoas, legitim ar certas práticas e
m ascarar um a parte dos pontos de vista e critérios utiliz ados. D it o de
ou t r o m od o, q u an d o tiver com o efeito m ais o reforço d a coesão de
u m gr u p o d o qu e u m a descr ição d o m u n d o.
A ssim , as pr op osições “as m u lh eres são seres frágeis” , “o
h om em é m ais in teligen te d o qu e o m acaco”, ou “os p aíses
desen volvid os exp lor am o Ter ceiro M u n d o ” são p r op osições ideo­
lógicas n a m edida em qu e o qu e é visad o pr in cip alm en t e p o r elas
é u m a certa legitim ação. A o dizer qu e o h om em é m ais in teligen te
180 GÉRARD FOUREZ

d o q u e o m acaco, está se referin do de m an eira geral a u m con ceito


de in teligên cia m al defin ido. D o m esm o m od o, q u an d o se diz qu e
os p aíses d esen volvid os explor am o Ter ceiro M u n d o, o con ceito
de explor ação é t am bém vago. E n ão p r ecisam os falar d a r epr esen ­
tação d o m u n d o veicu lada q u an d o se fala d as m u lh er es com o seres
frágeis.
O s efeitos d os d iscu r sos ideológicos pod em , p or vezes, ocu ltar
a sem elh an ça de práticas qu e p ossu em im por tan t es p on t os em
com u m . A ssim , caso se peça u m a descr ição d e u m a prática
m edian te a qu al as p essoas deixam algu ém d isp o r de u m a parte
ín t im a d elas m esm as, de su a criatividade pr ofu n d a, e isto por
d in h eir o, m u it os são levados a p en sar n a pr ostitu ição. E de fato
essa prática cor r esp on d e m u ito bem à descrição p r op ost a. M u itos
pou cos, porém , se d ão con ta de qu e o con trato de trabalh o t am bém
cor r esp on d e ao m esm o esqu em a: pelo din h eiro, as p essoas aceitam
ven d er a su a criatividade e deixar à ou tra p essoa a d ecisão d o qu e
fazer com ela. A m an eira pela qu al se m ascar am essas sem elh an ças
é típica de u m efeito ideológico. O m esm o ocorre ao se falar da
prática de u m govern o qu e en via m ilh ares de p essoas a m ilh ares
de q u ilôm et r os, em u m clim a pou co fam iliar e on d e m u itos
per d erão a vida. A m aioria d o s ocid en tais pen sar ia n o cam p os da
Sibér ia; m as o en vio de joven s am er ican os ao Vietn ã, du r an te os
an o s 60, cor r esp on d e à m esm a descrição. O qu e faz com qu e essas
práticas pareçam diferen tes é u m efeito ideológico por m eio d o qu al
as op osições en tre as d u as situ ações são privilegiadas e as sem e­
lh an ças d ilu íd as.

Crítica da ideologia pela ciência

Fala-se de u m a crítica d a ideologia q u an d o se coloca em evidên ­


cia os p on t os de vista, as origen s e os critérios su bjacen t es aos
d iscu r so s ideológicos. Se observo, por exem plo, qu e a p r op osição
sob r e a fragilidade d as m u lh er es está ligada à r epr esen tação d om i­
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 181

n an t e q u e faz a seu respeito u m a sociedade patriarcal, desven dei


u m fu n cion am en t o ideológico, critican do-o. N o s capítu los an terio­
res, fizem os a crítica ideológica de u m a con cepção ab solu t a d a
objetividad e cien tífica e vim os com o ela se ligava à d ilu ição d os
p r ojetos h u m an os e d o s in teresses veicu lados pelos par ad igm as
cien tíficos.
O discurso científico p od e servir par a criticar as ideologias
(Kem p, 1977; Fourez, 1979b ; Rasm on t , 1987). Pode-se assim , por
m eio de u m a ru ptu r a epistem ológica, defin ir de m an eir a op er acio­
n al o qu e se en ten de p or “in teligen te”. Pode-se estabelecer, p or
exem plo, u m a bateria de testes d a qu al dir-se-á qu e m ede a
in teligên cia. T o m a- se possível en tão m ed ir se, n esse âm b it o esp e­
cífico, o h om em é m ais in teligen te do qu e o m acaco. Existe, porém ,
u m a distân cia en tre o .con ceito global de in teligên cia qu e fu n cio­
n ava d e m an eir a ideológica par a legitim ar u m a certa relação en tre
o h om em e o m acaco e o con ceito de in teligên cia d efin id o de
m an eira precisa e pon tu al graças a u m a bateria de testes. O segu n do
é ap en as u m a tradução parcial d o prim eiro. Só se refere a testes
locais e n ão p od e jam ais forn ecer u m a pr op osição m ais geral.
O m esm o ocorr e com o con ceito de explor ação. Se, por
exem plo, defin e-se u m a exploração de u m país p o r u m ou t r o com o
u m a situ ação n a qu al se tran sfere u m a qu an t id ade m aior de dólar es
d o país exp lor ad o ao país explor ad or d o qu e o con trário, pode-se
con st r u ir u m teste experim en tal par a verificar se existe de fato
explor ação. C o n t u d o, essa defin ição “cien tífica” (após a ru ptu ra
epistem ológica) n ão recobre a pr op osição geral an teriorm en te
d ad a. A ssim m esm o, o seu in teresse con sist e em qu e, à q u est ão
pr ecisa de sab er se h á u m a m aior qu an t id ad e de dólar es in d o d a
Am ér ica d o Su l p ar a a d o Nor te d o qu e o con trário, p o sso
r esp on d er com certa precisão, ao p asso qu e a p r op osição geral: “a
Am ér ica d o Norte explora a Am érica d o Su l?” n ão pod e ser testada.
D e m od o sem elh an te, dian te d a p r op osição ideológica “a raça
am ar ela é su p er ior à raça b r an ca”, p od em os en con t r ar defin ições
m ais precisas, ligadas a testes, qu e forn ecerão con t eú d os passíveis
d e verificação p on t u al a essa tese ideológica global. O caráter
182 GÉRARD FOUREZ

ideológico d o con ceito geral de “raça am ar ela” p od e en tão ser


d esven d ad o q u an d o se percebe qu e n ão existe defin ição cor r espon ­
den te n o âm b it o específico d a b iologia (Rasm on t , 1987). D o
m esm o m od o, se algu ém afirm a qu e as fin an ças d o Est ad o estão
em per igo p o r cau sa d o excesso de desem pr ego, pode-se elabor ar
testes par a ver até qu e p on t o sem elh an te p r op osição se su sten ta.
Pode-se com parar, p or exem plo, as perdas par a as fin an ças pú blicas
d evidas ao d esem pr ego àqu elas devidas à frau de fiscal. Test es com o
esse p od em ter efeitos críticos im portan tes. E possível ain da, dian te
d o d iscu r so sobr e a previdên cia social ou sob r e o risco d as cen trais
n u cleares, elabor ar testes b asead os em r esu lt ad os cien tíficos. A s­
sim , pode-se d em on st r ar qu e, se u m a cen tral cor r esp on d e a
d et er m in ad o m od elo teórico, ela n ão p od e atin gir as m assas
críticas, con sid er ad as pela teoria com o n ecessár ias par a qu e ocorr a
u m a exp losão atôm ica.
A redu ção de u m a p r op osição global a u m a p r op osição parti­
cu lar precisam en te defin ida tem van tagen s eviden tes m as t am bém
lim ites. O prin cipal in con ven ien te provém d e qu e a segu n d a
su p r im e o sentim ento presen te n o prim eiro. E essa su p r essão
acarreta freqü en tem en te u m efeito de “recu peração” . Se, p or exem ­
plo, u m estu dan te diz qu e os h or ár ios d o s exam es são m al feitos,
t em os u m a p r op osição glob al exp r im in d o u m sen t im en t o vivido.
A fim d e pr ecisar essa p r op osição den t ro de u m âm b it o con ceituai
m ais elabor ad o, será pr eciso in trodu zir critérios par a defin ir o qu e
se en ten de p or “h or ár ios m al feitos” . D ep ois d esse trabalh o, é
provável qu e os est u d an t es se sin t am “r ecu p er ad os” por qu e eles
têm a im p r essão d e q u e o t rabalh o de con ceitualização, com as
r ed u ções in evitáveis qu e ele com por ta, elim in ou o sen t im en t o de
p r ofu n d o ab or r ecim en to (ras-le-bol) qu e t in h am , d ep ois de tod as
essas pr ecisões.
H erbert M arcu se, em seu livro O homem un idim en sional (1968),
m ostr ou de qu e m od o a n o ssa socied ad e m od er n a recupera as
p esso as, con d u zin d o o s seu s pr otestos glob ais ao d iscu r so pr eciso
p or ém u n id im en sion al, d a r acion alidade d o s con ceitos defin id os
de acor d o com par ad igm as. Em t em pos de crise econ ôm ica, por
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 183

exem plo, os grevistas têm a im p r essão de qu e a t radu ção de seu


pr ot esto em t er m os econ ôm icos é ap en as u m a m an eir a de fazê-los
se calarem , r ecu san d o escu tar o seu sen t im en t o de qu e a situ ação
torn a-se in tolerável. O d iscu r so racion al, d esse m od o, p od e su p r i­
m ir m u it os pr otestos, pelo m en os até o m om en t o em qu e o
sen t im en t o explode, m as en tão com violên cia.
A ciên cia é, portan to, u m d os m ét od os m ais p od er osos par a 1
criticar as p r op osições ideológicas: se est as n ão p od em jam ais ser
p r ovad as ou falsead as em su a globalidade, pode-se, d en t ro de u m a .
perspectiva volu n tarista popper ian a, decidir efetuar d et er m in ad os \
testes qu e p od em colocar em evidên cia os lim ites de certos d iscu r ­
sos ideológicos.
Con sid er açõ es cien tífico-técn icas pod em ser m ais ou m en os
con vin cen tes n a crítica ideológica. Elas o são com freqü ên cia
m en os d o qu e acon tecim en tos d o cotidian o. A ssim , se u m d iscu r so
- n ecessar iam en t e ideológico - sobr e a segu ran ça de u m n avio
afirm ava qu e ele n ão p od ia n au fragar com u m t em po calm o,
bastar á u m n au frágio com o o d o H erald ofFree Enterprise par a qu e
ele seja con sid er ad o in ad equ ad o. Porém , colocar-se-ão em dú vida
os d iscu r sos qu e afirm am , com b ase em u m m od elo técnico-cien-
tífico, a segu ran ça ou in segu r an ça de u m a d ad a situ ação: sabe-se
b em com o os p on t os de vista en tram n as ar gu m en t ações e,
prin cipalm en te, aqu eles qu e con du zem à m odelização, a fim de d ar
crédito r apid am en t e a esses ar gu m en t os. Q u an d o os in teresses em
jogo são im por tan t es - com o n o caso d as cen trais n ucleares d ep ois
de Ch ern ob yl - vê-se o tem po todo oporem -se discu r sos ideológicos
b asead os n o cot id ian o e aqu eles qu e utilizam m od elos técnico-cien-
tíficos. P recisarem os voltar a esse p on t o ao exam in ar m os o fen ô­
m en o d o s especialistas.
N o decorrer d o s ú lt im os sécu los, a ciên cia se revelou in st ru -1
m en to extrem am en te p o d er oso p ar a criticar as ideologias: graças a
seu s testes p on t u ais, pu ser am em qu est ão os ab u sos de saber,
pr esen t es em m u itos d iscu r sos éticos, religiosos, políticos etc. E
d esse m od o qu e ela obteve o recon h ecim en to de su a capacidad e
de luta con tra m u it os “ob scu r an t ism os”. N ão obstan te, ela m esm a j
184 GÉRARD FOUREZ

parte de u m a evolução sócio-h istórica, é in capaz de apr esen tar u m a


verd ad e global e u n iversal em su bstitu ição aos d iscu r sos ideológi­
cos. N ist o , d ecepcion aram aqu eles qu e viam n ela a fon te de u m a
I luz absolu ta.
N o âm b it o d esta obr a, atr ibu ím os u m a particular im por tân cia
ao s críticos d as ideologias qu e atu am m edian te a utilização de testes
p on t u ais e precisos, especialm en te os cien tíficos. A ssin ale m o s n o
en tan to qu e h á u m a outra m an eir a pela qu al a crítica d as ideologias
se pratica: p or m eio de gr an des idéias ou sen t im en t os filosóficos,
éticos ou religiosos (Kem p, 1977). A ssim , dian te d a ideologia
racista d o n azism o, a idéia de fratern idade, tal com o veiculada pela
m aior ia d as éticas ocid en tais e pelo crist ian ism o, é u m a pedra
fu n d am en t al, qu e pod e levar as p essoas a refletirem e a se d ist an ­
ciarem de sem elh an te ideologia.

Incapacidade da ciência em esclarecer


inteiramente as questões éticas

A d istân cia en tre o d iscu r so global e as p r op osições pon t u al­


m en te testáveis aparece claram en te n o qu e se refere a certos
p r ob lem as éticos. O escritor Ver cor s, p or exem plo, escreveu u m
r om an ce (1952) n o qu al m ostr a a dificu ldade de recon h ecer a
diferen ça en tre seres h u m an os e an dr óid es avan çados. O pr oblem a
ético-político d essa d istin ção está em sab er até qu e pon t o os
“d ir eitos d o h om em ” devem ser, ou n ão, ap licad os a esses an d r ói­
d es (de m an eir a m ais sim ples, o rom an ce pergun tava-se se se pod ia
explorá-los com o m ão-de-obra barata ou servil). Ver cor s m ostr a de
qu e m od o diversas d iscip lin as cien tíficas p od em vir d ep or sobr e a
m an eir a com qu e vêem , de acor d o com su as len tes, m as n ão t en d o
n en h u m a r espost a clara e sem am bigü id ade.
U m a qu est ão d o m esm o tipo se coloca dian te d a ética d o
abor t o. Q u an d o se coloca a qu est ão: “a partir de qu e m om en t o u m
em b r ião deve ser tratado com o u m in divídu o h u m an o?”, trata-se
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 185

m an ifestam en t e de u m a q u est ão ideológica global ligada a legitima-


ções. Pode-se d ar t od a u m a série de defin ições cien tíficas d o qu e
seria u m “in divídu o h u m an o ”, m as sem pre existirá u m a en or m e
d istân cia en tre a defin ição cien tífica de vida h u m an a e a qu est ão
d a legitim ação levan tada p or essa qu est ão ideológica. Se defin o o
in d ivíd u o h u m an o com o u m em b r ião d ot ad o de u m p at r im ôn io
gen ético com pleto, isto cor r esp on d e à qu est ão d o valor d a vida
h u m an a a qu e ideologicam en t e se visa? E se o d efin íssem os com o
u m ser capaz d e viver de m an eir a au t ôn om a, qu al seria a diferen ça?
E se t om ássem os de em pr ést im o os critérios da in dividu alidade
h u m an a às relações descritas pelos psicólogos? Vê-se p or aí q u e as
d efin ições for n ecidas pela ciên cia são in capazes de resolver a
q u est ão glob al colocad a (Kern p, 1987; M alh erbe, 1985 e 1987;
Rasm on t , 1987).
A defin ição cien tífica de vida h u m an a será sem pre o r esu ltado
de u m a escolh a, de u m a decisão epistem ológica e dificilm en te
poder-se-ia en con t r ar aí os fu n d am en t os de u m a ju stificação ab so­
luta de qu alq u er coisa. En tretan to, certas experiên cias cien tíficas
p od em m ostr ar a coerên cia, ou in coerên cia, sob r e algu n s p on t os
de u m d iscu r so ideológico. N ão é fácil con ciliar, por exem plo, o
d iscu r so segu n d o o qu al a in dividu alidade h u m an a é com plet a­
m en te ad qu ir id a ao observar qu e u m em b r ião p od e se dividir em
gêm eos idên ticos d ep ois de algu n s d ias. D esse m od o, o d iscu r so
cien tífico pod e a q u alq u er m om en t o colocar em qu est ão as n o ssas
visões m ais glob ais d a existên cia.
A n oção de “t rad u ção” pod e aqu i, de n ovo, m ostrar-se prática.
Existe, com efeito, en tre a con cepção global e ideológica da
in d ivid u alid ad e e n ão im porta qu al experiên cia biológica, u m a
tradução d e u m a par a a outra. N a m edida em qu e se preten de qu e
h averá iden tidade en tre os dois con ceitos, efetua-se u m a “redu ção”.
Essas redu ções são ab u sos de sab er e de véu s ideológicos. C o m
efeito, cada vez qu e, em ciên cia, se apr esen tam p r op osições u n iver­
sais com o “a h ereditariedade é pr ovocad a pelo A D N ”, ou ain d a “a
m atéria se com p õe de át om os”, en con tr am o-n os dian te de u m
d iscu r so qu e iden tifica u m a experiên cia d o cotidian o a u m con ceito
186 GÉRARD FOUREZ

d efin id o n o p lan o de u m a teoria cien tífica. Sem elh an t e iden tifica­


ção ten d e a reduzir u m a repr esen tação geral a u m con ceito parti­
cular. Essa iden tificação, ap esar de freqü en te n as ar gu m en t ações
éticas n ão-críticas, fu n cion a com o u m a ideologia, ao m ascar ar a
diferen ça en tre a experiên cia d o cot idian o e a su a tradu ção em u m
con texto cien tífico. Esse tipo de redu ção aparece claram en te
q u an d o se diz, p or exem plo: “O am or é u m a qu est ão de h or m ô­
n io s” etc.

Dois graus de véus ideológicos

N a m ed id a em qu e se qu er ter u m a orien tação, im porta


d istin gu ir os d iscu r sos ideológicos globais de su a tradu ção em
t er m os cien tíficos. N ão ob st an t e, as t radu ções “cien tíficas” de u m
en foqu e ideológico per m an ecem ideológicas n a m ed id a em qu e o
p on t o de vista (ou seja, a m atriz d iscip lin ar ou o p ar ad igm a)
u tilizado se origin ou em u m con texto b em det er m in ado. Se, p or
exem plo, visan d o con st r u ir u m a teoria cien tífica d o desen volvi­
m en to, eu a defin o em t er m os de crescim en to econ ôm ico, veiculo
u m a ideologia in teiram en te diferen te se a defin o em ter m os de
realização in dividual, ou ain da em term os de au t on om ia d as m assas
m ais p ob r es. Em cada u m d o s casos, o con ceito é ideológico. Em
cada u m d o s casos t am bém , pod e resu ltar u m est u d o sistem ático,
cien tífico n o sen t id o u su al d a palavra. A escolh a de u m a defin ição
abr iu u m âm b it o restrito d e est u d os den t ro d o qu al pode-se sab er
sobr e o qu e se discu te e de qu e m an eira se q u er falar a respeito.
Essa escolh a - isto é, en fim , essa ru ptu ra epistem ológica e a adoção
de u m p ar ad igm a - n ão é n eutra, m as ideológica. Em certos casos,
q u an d o p or exem plo d a defin ição d o desen volvim en to em term os
pu r am en te econ ôm icos, o caráter ideológico é fácil de discern ir;
em ou t r os, com o q u an d o se trata de calcu lar a trajetória de u m
foguete, é m ais dificil de perceber e, sem dú vida, está em jogo u m a
fu n ção ideológica m en os relevan te.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 187

D e qu alq u er m od o, n ão se escapa ao d iscu r so ideológico. O


q u e qu er qu e se faça, veiculam -se r epr esen tações d o m u n d o qu e
legitim am , m otivam e ocu ltam sem pre os seu s critérios e or igen s
sociais. E útil p or ém distin gu ir d ois t ipos de véu s ideológicos: u m ,
q u e se pod er ia qu alificar de n orm al, d e in evitável e, portan to,
aceitável e ou tro qu e m ereceria ser sem p re d esm ascar ad o.
N a m edida em qu e se está con scien te de qu e u m term o - com o,
p o r exem plo, o con ceito cien tífico de “desen volvim en t o” - é
h istor icam en te con st r u íd o e, portan to, ideológico, sabe-se os lim i­
tes d o discu r so e n ão se pode con siderar-se m u ito en gan ado. Falarei
en tão de u m discurso ideológico de prim eiro grau , d esign an d o assim
as representações da construção das qu ais se pode ain da facilm ente
en contrar os vestígios. Est a é a situ ação d os d iscu r sos cien tíficos se
se t om ou o cu id ad o d e con st ru ir bem os seu s con ceitos de b ase e
se está con scien te d as decisões qu e im plica t oda prática cien tífica.
Pelo con trário, q u an d o os traços h ist ór icos d essa con st r u ção
q u ase d esapar ecer am e se preten de, prática ou teoricam en te, im ­
plícita ou explicitam en te, qu e a n oção utilizada - por exem plo, a
de “d esen volvim en t o” - seja objetiva e etern a, falarei de um a
ideologia de segundo grau, ou seja, u m a ideologia n a qu al a m aior
parte dos vestígios d a construção foram suprim idos. Sem elh an t e
d iscu r so ideológico é pr ofu n d am en t e m an ip u lad or ao apr esen t ar
com o n atu rais op ções qu e são particulares.
N a m esm a m ed id a em qu e os d iscu r sos ideológicos d o pr im ei­
ro grau (isto é, sejam as exortações m or ais em qu e se sab e qu em
fala, sejam os d iscu r sos cien tíficos n os qu ais se con serva a con s­
ciên cia d e qu e foram con st r u íd os e de qu e são parciais em am b os
os sen t id os da palavra) são em geral con sid er ad os n or m ais em
n o ssa sociedade, assim t am bém os de segu n d o grau (ou seja,
aqu eles q u e ap r esen t am com o eviden te o qu e é discu tível, ^restrin­
gin d o d esse m od o a liber d ade d as p essoas) são vist os com o pou co
aceitáveis d o p on t o de vista ético.
D e sse m od o, q u an d o algu ém diz: “A Igreja Cat ólica é con tra
o ab or t o”, ou “Pode-se m or r er de overdose”, os elem en tos ideológi­
cos presen tes n essas pr op osições n ão parecem m u it o m an ipu lató-
188 GÉRARD FOUREZ

rios. Porém , caso se diga: “É preciso fazer sacrifícios par a se sair da


crise”, ou qu e “O r ou b o é u m m al”, essas p r op osições, talvez
in ocen tes à prim eira vista, ocu ltam os critérios q u e p od em validá-
las, de m an eir a qu e as qu alificarei com o p r op osições ideológicas
d o segu n d o grau. Elas são ideológicas n o sen t id o pejorativo d o
term o.
Est a d istin ção en tre os d ois t ipos de d iscu r sos ideológicos, n o
en tan to, p or útil qu e seja, n ão é “objetiva”, n o sen t ido de qu e n ão
se refere a critérios bem partilh ados con ven cion alm en te; ela rem ete
sem p r e às d ecisões d aqu eles qu e a em pr egam : de fato, dizer qu e
u m d iscu r so ideológico é de segu n d o grau sign ifica d ecid ir qu e,
par a m im , ele m ascara dem ais para qu e eu o aceite sem com en t ário
crítico. Esta distin ção recobre ju ízos de valor, com as decisões p or
eles exp r essas, m esm o qu e se p ossa ap oiar esses ju ízos de valor
com ar gu m en t os con vin cen tes.

A ciência como ideologia

Q u an d o a ciên cia se apr esen t a com o etern a, q u an d o preten de


p od er d ar r espost as “objetivas e n eu tr as” aos p r ob lem as qu e n ós
n os colocam os, con sidero-a com o ideológica de segu n d o grau. Pelo
con tr ár io, q u an d o se apr esen t a com o u m a tecn ologia in telectual
relativa e h istoricam en te deter m in ada, é ideológica de prim eiro
grau , ou seja, n ão ocu lta o seu caráter h istórico.
Pode-se com par ar n ovam en te aqu i a tecn ologia in telectual
r epr esen t ad a pela ciên cia com as tecn ologias m ateriais. Se afirm o
qu e o carro é a r espost a aos pr oblem as de tran spor te, pr od u zo u m
efeito ideológico de legitim ação e de ocu ltam en to, n a m ed id a em
qu e escon d o o fato de o con ceito de carro ser h istoricam en te
pr od u zid o. Se, pelo con trário, digo qu e o carro pod e ser um a
r esp ost a a u m p r ob lem a de tran sporte, só con siderar ei a m in h a
d eclaração com o ideológica de prim eiro grau, n o sen t id o de qu e,
m esm o qu e o con ceito qu e eu utilizo legitim e algu m as de m in h as
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 189

r esp ost as, n ão ocu ltei in teiram en te o caráter relativo de m in h a


afirm ação.
N est a seção con sid er am os qu e os con ceitos cien tíficos b ásicos
ligavam -se geralm en te a represen tações ideológicas. Acen t u am os a
gr an d e distân cia sep ar an d o o qu e visa à represen tação ideológica
global e o con ceito cien tífico particular qu e a traduz. Porém , com o
a ciên cia só é útil q u an d o de u m a m an eir a ou de ou tra atin ge o
cot id ian o e port an to m ascar a essa distân cia, o d iscu r so cien tífico é
sem p re ideológico, pelo m en os em pr im eir o grau. O in teresse d o
con ceito particular, com o vim os, é qu e ele perm ite testes e, p or
con segu in te, críticas p on t u ais a p r op osições ideológicas. O r isco é
qu e, em d eter m in ad o m om en t o, ocorre a tradu ção d a qu est ão
geral, ocu lt an d o o seu caráter particular. N esse m om en t o, o
d iscu r so cien tífico deixa de fu n cion ar com o u m d iscu r so crítico
p ar a op er ar com o u m d iscu r so ideológico “de segu n d o gr au ”.

O caráter não consciente e implícito


das ideologias e a ética diante das ideologias

E em geral de u m a m an eir a in con scien te qu e as p essoas


veicu lam ideologias. Algu ém pod e n ão qu erer, p or exem plo,
iden tificar a vid a h u m an a a su a defin ição de acor d o com o
p ar ad igm a d a b iologia (ou d a psicologia, ou de q u alqu er ou tra
d isciplin a); n a prática, porém , pode efetuar essa redu ção, ap r esen ­
t an d o u m con ceito particu lar com o se ele ab r an gesse a totalidade.
Pode ocorrer t am b ém qu e se veiculem de m an eira in con scien te
r epresen tações com forte con teú d o ideológico; algu ém pod er ia
veicular, p o r exem plo, u m a im agem en viesada d o qu e são as
m u lh eres, q u an d o, con scien tem en te, ele (ou ela) acredita ter u m a
im agem in teiram en te diferen te a respeito.
A s represen tações ideológicas por n ós veicu ladas existem in de­
pen d en t em en te de n o ssas in ten ções. E n ecessár ia u m a an álise
precisa a fim de p od er discern ir o qu e são os con teú d os ideológicos
190 GÉRARD FOUREZ

de n o sso s discu r sos. Som en te depois d essa an álise tom a-se possível
d ecid ir se qu er em os, ou n ão, p r op agar as ideologias veicu ladas p or
n o sso s d iscu r sos.
Essas con sid erações sobr e o caráter con scien te ou in con scien te
d as ideologias n os levam a defin ir o con ceito de propagan da.
Falar em os de p r op agan d a q u an d o d iscu r sos id eológicos forem
veicu lad os p or gr u p os qu e, n o en tan to, estiverem con scien tes
d aq u ilo q u e é ocu ltado p o r esses d iscu r sos, qu e são d esejad os com
vista a pr ojetos políticos ou econ ôm icos. N a m aior parte d o tem po,
con tu d o, o s d iscu r sos ideológicos n ão con st it u em p r op agan d a,
p ois aqu eles qu e os d ifu n d em são relativam en te p ou co con scien tes
d aq u ilo qu e é m ascar ado; ou , qu an d o qu er em con ven cer os ou tr os,
qu er em ter a h on est id ad e de n ão m an ipu lá-los escon d en d o siste­
m aticam en te os seu s critérios.
N ot am o s, en fim , qu e seria u m objetivo im possível e d espr ovi­
d o de sen t id o n ão qu er er veicular ideologia algu m a, pelo m en os
de pr im eir o grau. U m a vez qu e p ossu ím os u m a r epr esen t ação d o
m u n d o - e n ós sem pre t em os u m a ela é in flu en ciada p or n o sso s
critérios e p or n o sso m eio social. Ela n ão é n eu tra. Seria tão vão
n ão qu er er d ifu n dir ideologias com o n ão qu er er p o ssu ir bactérias
em n o sso cor po. En tretan to, em t odo caso, p od e fazer sen t id o n ão
qu er er d ifu n d ir qu alq u er u m a. Existem id eologias qu e, d ad as
n o ssas posições éticas ou sociopolíticas, qu er em os recusar, e ou tras
q u e est am os p r on t os a assu m ir .
A existên cia d as ideologias coloca u m a qu est ão qu e n ão
ap r ofu n d ar em os aqu i, m as q u e é pr eciso levan tar. Até qu e pon t o
con sid er am os eticam en te aceitável qu e p essoas ou gr u pos veiculem
id eologias sem se d ar con ta d isso? E aliás a qu est ão qu e, n o in ício
d este livro, foi apr esen t ad a com o legitim an do u m a ab or d agem
crítica d os p r ocessos cien tíficos. Jam ais evitarem os d e ser p or vezes
en gan ad o s pelas id eologias p or n ó s veicu ladas. A qu est ão ética
rem ete sem dú vida aos m eios qu e u tilizam os par a ter clareza a
r espeito. O s an tigos m or alist as falavam da “ign orân cia cr assa”
(Arregh i, 1961, p.7) q u an d o u m in divídu o (ou u m gTupo) p er m a­
n ecia in con scien te de certas qu est ões, q u an d o ele deveria ter
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 191

en con t r ad o m eios de ter m ais clareza a r espeito. C o m o d ir iam os


am er ican os, “He sh ould have known better!”. U m a reflexão acerca
d esse pon t o é útil t an to par a u m a ética d a ciên cia (n a m ed id a em
qu e o s cien tistas p ossu em r esp on sab ilid ad es sociais) qu an t o para
u m a ética d o en sin o d a ciên cia (em qu e se t ran sm it e tam b ém t oda
u m a visão - n ecessar iam en t e ideológica - d o m u n d o (Fourez,
1985).

A ciência varia de acordo


com o grupo social?

D ep ois de ter m ost r ad o de qu e m od o as represen tações cien ­


tíficas estão ligadas a u m a visão ideológica d o m u n d o, p od em os
n os per gu n tar se poder ia h aver ciên cias diferen tes de acor d o com
o gr u p o social. E possível, por exem plo, qu e a r epresen tação
cien tífica da b u rgu esia seja diferen te daqu ela d a classe op er ária ou
d aqu ela d o s p aíses em desen volvim en to?
V im o s qu e a ciên cia é u m saber ligado a gr u p os sociais
d et er m in ad os. A ciên cia m od er n a, em particular, liga-se à repre­
sen tação d o m u n d o pr óp r ia à bu rgu esia, qu e se sen te exterior ao
m u n d o, ao m esm o t em po em qu e ten ta explorá-lo e dom in á-lo.
Dito de u m a m an eir a n egativa, o pr oced im en t o cien tífico n ão é
característico d o sistem a aristocrático feudal. A ciên cia m od er n a
su rge com o u m a pr od u ção cultural particu lar de u m a civilização
particular.
Além d isso, q u an d o se con sid er am o s saber es particulares
pode-se dedu zir a m an eir a pela qu al a origem social d os par ad igm as
in flui sobr e a evolu ção d as d isciplin as. V im o s isto em particu lar
n o caso d a m edicin a, m ais cen trada n o aspecto curativo d o qu e
sobr e o preven tivo, sobr e a ação terapêutica do qu e sobr e a h igien e,
e isto p orqu e a m edicin a cien tífica se estru tu rou em t or n o d as
d em an d as de saú d e d as classes privilegiadas. N o sen t ido acim a,
portan to, pode-se dizer qu e a ciên cia é bu rgu esa.
192 GÉRARD FOUREZ

Pode-se con siderar tam bém qu e ou tros saberes poderiam ser


con stru ídos sem estar ligados ao m esm o projeto de d om ín io e explo­
ração d a Natureza, ou qu e defen deriam ou tros in teresses sociais.
H á diver sos t ipos d e saber, ligad os a diferen tes t ipos de
sit u ações sociais. A ssim , o con h ecim en to d o cam p on ês qu e se
d estin a a “en rolar” o seu sen h or (n o sen tido feudal) é u m a “ciên cia”
ligada a su a con d ição social.
N ão obstan te, con ceitos com o os de “ciên cias b u r gu esas” ou
“ciên cias pr olet ár ias” são am bígu os, p ois levam a crer qu e é
possível p o ssu ir con h ecim en t os in d epen d en t es d e t oda coerção,
ou q u e a ciên cia pode ser m an ipu lad a d o m esm o m od o qu e a
p r op agan d a. Viu-se n a an tiga U n ião Soviética surgir, com Lyssen-
ko, u m a ciên cia biológica su post am en t e proletária, com pletam en te
sep ar ad a da eficácia prática d a biologia n a agricultura. Esta ciên cia
proletária, con tu d o, revelou-se com o pu r a ideologia e praticam en te
com o u m en god o.
M esm o se, n a an álise, per cebem os qu e o sab er cien tífico se
estru tu ra em t o m o de u m certo n ú m er o de pr ojetos, t od os m ais
ou m en os ten d en ciosos, a experiên cia m ostr a t am b ém qu e n ão se
p od e estru tu rar o m u n d o de m an eir a aleatória, so b o risco de os
p r ojetos fracassarem . A ciên cia n ão surge, portan to, com o u m a
experiên cia pu r am en te gratuita, m as com o a experiên cia de con s­
tru ções vin cu lad as a u m certo n ú m er o de coerções. M esm o qu e,
em m om en t o algu m , se p o ssa defin ir em últim a in stân cia essas
coerções, é sem p re em relação à experiên cia da coerção, d a ob r iga­
toriedade, qu e a ciên cia se con strói. N ad a seria m ais distan te da
experiên cia d a prática cien tífica d o qu e acreditar qu e, m u d an d o de
m eio social, poder-se-ia evitar toda form a de coerção.

Resumo

• A s id eologias: d iscu r so m ais legitim ad or d o q u e d escr itivo.


• Cr ít ica d o s d iscu r so s id eológicos p elo d iscu r so cien t ífico (r u pt u r as
epistem ológicas).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 193

• Lim ite e in ter esse d o s d iscu r so s cien tíficos d ian t e d o s d iscu r so s globa-
lizan tes.
• C o n fr o n t ação d o s d iscu r so s globalizan t es e d o s d iscu r so s cien t íficos
d ian t e d as q u est ões éticas.
• D iscu r so s id eológicos d e p r im eir o gr au : vestígios d a con st r u ção h ist ó ­
rica d o s p ar ad igm as u tilizados.
• D iscu r so s id eológicos d e segu n d o grau : im p or t an t e efeito d e oculta-
m en to.
• A ciên cia é sem pr e id eológica em p r im eir o gr au ; torn a-se com fr eqü ên ­
cia d e segu n d o grau .
• D o is t ipos d e efeitos id eológicos: efeitos id eológicos in con scien t es,
efeitos id eológicos assu m id o s.
• A p r o p agan d a co m o efeito id eológico d u p lam en t e m an ip u lat ór io.
• U n ia ética d ian te d as id eologias.
• C iê n cias d ifer en tes d e acor d o com o s gr u p o s sociais?
• N ecessid ad e d e levar em con t a as coer ções.

P alavr as- ch ave

D iscu r so s id e o ló gico s/ id eologia d e pr im eir o g r a u / id eologia d e segu n d o


g r a u / d iscu r so global e d iscu r so p on t u alm en t e p r e c isa d o / t est ab ilid ad e
de u m a p r o p o sição id e o ló gica/ véu id e o ló gico / crítica d a id e o lo gia/
id eologia in con scien t e e id eologia a ssu m id a / p r o p a ga n d a s/ testes p o n ­
t u a is/ m o d e lização / crítica d a id eologia pela ciên cia.
C A P Í T U LO 8

CIÊNCIAS FUNDAMENTAIS
E CIÊNCIAS APLICADAS

As noções e seus múltiplos usos

P od em os agora refletir de m od o crítico sob r e três n oções


com u m en te u tilizadas q u an d o se fala de ciên cia. Trata-se de ciências
puras, ciên cias aplicadas e tecnologias. Com eçar em os for n ecen do
u m a defin ição em pír ica (ou seja, u m a descr ição referin do-se ao u so
culturalm en te m ais aceito d as n oções e n ão a u m a teoria m ais
elaborada).
Ch am a-se de ciên cias puras, ou tam bém ciên cias fun dam en tais,
a u m a prática cien tífica qu e n ão se pr eocu pa m u ito com as possíveis
aplicações em u m con texto societário, con cen tran d o-se n a aq u isi­
ção d e n ovos con h ecim en t os. D esse m od o, u m físico qu e est u d a
partícu las elem en tares será con sid er ad o com o fazen do ciên cia pu r a
ou fu n d am en t al. Porém , se ele se pr eocu pa em ver com o as su as
p esqu isas p od em ser utilizadas pela tecn ologia d o laser, dir-se-á qu e
se trata de ciên cia aplicada, isto é, de u m trabalh o cien tífico com
d estin ação social direta. O s en gen h eiros ou os m édicos ser ão
con sid er ad os, q u ase q u e p o r defin ição, com o cien tistas aplicad os
196 GÉRARD FOUREZ

(aliás, n a Bélgica, o con ceito de ciên cias aplicad as foi in trodu zido
p ar a d esign ar o s est u d os d o en gen h eiro, qu e an tes se design ava
i m ais h abitu alm en te pelo term o “politécn ico”). Falar em os en fim de
| tecnologia q u an d o se tratar de aplicações con cretas e op er acion ais
em u m d ad o con texto social. Dir-se-á tecn ologia d o com p u t ad or
ou tecn ologia d as ferrovias; falar-se-á ain d a de p esqu isas de p o n ­
ta q u an d o se tratar de p esqu isas d est in ad as a pr od u zir n ovas
tecn ologias.
D e acor d o com as n ecessidades, criam -se e d esapar ecem con ­
ceitos in term ediários, tais com o os de “ciên cias fu n d am en t ais
or ien t ad as” (para certas aplicações) ou “ciên cias com ercializáveis”.
Existem in ú m er os m od os de se caracterizar as ciên cias com o
objet os sociais; elas se r esu m em em geral a legitim ar u m a certa
prática. A ssim , algu n s m atem áticos in sist ir ão sobr e o fato de qu e
eles prod u zem con h ecim en t os fu n dam en t ais, ligados às ciên cias
p u r as, e qu e é im por tan te qu e se m an ten h am sem elh an t es p esqu i­
sas. O u t r os in sist ir ão sobr e o fato de qu e o s seu s con h ecim en t os
pod em ser aplicad os con cretam en te, n a p esqu isa oper acion al, por
exem plo. Em certos casos, o jogo das legitim ações su rge de m an eira
divertida. A lgu m as práticas biológicas, p or exem plo, são d en om i­
n ad as “tecn ologias b iológicas” q u an d o se aplicam a plan t as, e
“ciên cias ap licad as” q u an d o se aplicam aos h u m an os (é p or isso
qu e n ão distin gu irei en tre “ciên cias ap licad as” e “t ecn ologias”).
A s m an eir as de caracterizar as práticas cien tíficas pod em variar
de u m p on t o de vista a ou tro. E assim qu e, n os ú lt im os an os, a
ad m in ist r ação Reagan utilizou u m n ovo con ceito de “ciên cias
fu n d am en t ais” , fu n d ad o sobr e critérios econ ôm icos: serão con si­
d er ad as com o p esqu isas fu n d am en t ais as p esqu isas de tal m od o
d ist an ciad as d as aplicações con cretas com ercializáveis qu e n ão se
en con t r ar á n en h u m in du strial par a fin an ciá-las (Barfield, 1982).
Aliás, a ad m in ist r ação Reagan ch am ar á de p esqu isas aplicad as
aqu elas qu e p od em in teressar às in dú strias, p o r con sid erar em qu e
a curto ou a m éd io prazo p od er ão tirar d elas algu m ben efício. A
idéia su bjacen te a essa classificação é qu e o Est ado deve su b sid iar
as p esq u isas n ão ren táveis, m as n ão deve in tervir se as em pr esas
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 197

pu d er em se ben eficiar com essas p esqu isas. N ot em os qu e essa


d efin ição “econ ôm ica” d a diferen ça en tre as ciên cias fu n d am en t ais
e ap licad as talvez seja aqu ela m ais oper acion al n a prática!

O círculo das legitimações recíprocas

T o d o s esses con ceit os parecem for m ar en tre eles u m círcu lo


d en t r o d o qu al é difícil se localizar. M u itas coisas se t or n am m ais
claras, porém , se con sid er ar m os o círculo (vicioso ou in teressado?)
qu e liga as ciên cias aplicad as e as ciên cias fu n d am en t ais com o u m
em pr een d im en t o de legitim ação pública. A ssim , q u an d o se per gu n ­
ta a u m cien tista “fu n d am en t al” o qu e ele faz e p or qu e o faz, ele
r esp on d e em geral qu e os seu s con h ecim en t os p o ssu em u m valor
p or si m esm os. Acrescen ta porém , m u itas vezes, qu e t am b ém
p o ssu em valor p or perm itirem a con st r u ção de ciên cias aplicad as
e qu e, em ú ltim a in stân cia, as ciên cias fu n d am en t ais se abrem par a
u m a m u ltiplicidade de aplicações (cf. H olton , 1986). A cab a citan ­
d o, p o r exem plo, p esq u isas extrem am en te “fu n d am en t ais” sobr e
a m ecân ica qu ân tica qu e d esem b ocam sobr e aplicações n a tecn o­
logias ligadas ao laser.
Em n o ssa m od er n a sociedade, a m aioria d as legitim ações d as
ciên cias fu n d am en t ais se faz dizen do qu e elas resu ltam , p ost er ior ­
m en te, em ciên cias aplicad as. Aliás, q u an d o os cien tistas “aplica­
d o s” são p ost os em qu est ão sobr e aqu ilo qu e eles trazem par a a
sociedade, eles se legitim am ap oian d o o seu t rabalh o sob r e as
ciên cias fu n d am en t ais. D esse m od o, m u itos en gen h eiros afirm am
dever a su a pr ecisão aos m ét od os cien tíficos u tilizados n as ciên cias
fu n d am en t ais. Con t u d o, n os d ois casos, o par “ciên cias fu n dam en ­
t ais” e “ciên cias ap licad as” fu n cion a em u m jogo de legitim ação re­
cíproca. En fim , as ciên cias fu n dam en t ais se dizem válidas e eficazes
em fu n ção d as aplicações p or elas pr op or cion ad as. Já as ciên cias
aplicad as se preten dem “ciên cias d u r as” e legitim am p or aí o seu
p od er social, ap elan d o ao prestígio d as ciên cias fu n dam en tais.
198 GÉRARD FOUREZ

Em am b os os casos, esse tipo de legitim ação acarreta u m a certa


au t on om ização d a p esqu isa. Para as ciên cias fu n d am en t ais, isto é
b ast an t e claro, p ois, fin alm en te, dizer qu e se faz ciên cia fu n d am en ­
tal é o m esm o qu e dizer qu e se m erece ser su b sid iad o p or u m a
p esq u isa qu e p ou cos com pr een d er ão, a n ão ser os especialistas
d e ssa d isciplin a. Falan d o de ciên cias fu n dam en t ais, exim e-se d a
n ecessid ad e de provar, p or m eio de r esu lt ad os con cr etos par a a
sociedade, o valor social de seu t rabalh o cien tífico. O apelo à
ideologia d a cien tificidade, aliás, perm ite aos “cien tistas ap licad os”
su btrair-se à com petên cia d o gr an de pú blico u m certo n ú m er o de
su as ações. A ssim , o s físicos n u cleares t en derão a apoiar-se n a
cien tificidade de seu trabalh o a fim de p r op or solu ções práticas aos
p r ob lem as d a sociedade r elacion ad os à en ergia. A ideologia d a
cien tificidade perm ite-lh es legitim ar as su as decisões sem pr ecisar
subm eter-se ao jogo d as n egociações sociopolíticas.

Um fundamento epistemológico para a distinção

U lt r ap assan d o agor a o cam p o vago d as d efin ições em píricas,


ir em os p r op or u m a teoria com b ase n a qu al será possível redefin ir
a distin ção até agora efetu ada de acor d o com as con cepções
corren tes. Esta teoria forn ecerá u m fu n d am en t o epistem ológico
par a a d istin ção e recorrerá à n oção de par adigm a.
Esclar eçam os, em pr im eir o lugar, o qu e se segu e por m eio de
u m a com p ar ação com as tecn ologias m ateriais. C o n sid er em o s a
d o carro com m ot or a explosão. Ela su rgiu n o fin al d o sécu lo XIX,
e pode-se con sid er ar qu e, d esd e en tão, desen volveu -se t od a u m a
in d ú st r ia de m eios d e tran spor te b asean do-se n esse “p ar ad igm a”.
A s p esq u isas relacion ad as ao au tom óvel pod em se dividir em d ois
gr u p os, qu e cor r esp on d er ão à distin ção en tre “p esqu isa aplicad a”
n a d iscip lin a d a “au t om obilíst ica” e a de “p esqu isa fu n d am en t al”,
n a m esm a disciplin a.
O p r im eir o tipo de p esq u isa cor r espon d er ia a u m a d em an d a
“externa” , ou seja, a u m a d em an d a in depen den t e d o s técn icos. O s
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 199

clien tes, p o r exem plo, p od em exigir m od ificações a fim de qu e o


car ro con su m a m en os, ou seja m ais segu ro; os acion ist as d a fábrica
p od em exigir m odificações par a qu e os ben efícios d a ven d a sejam
m ais elevados. Falam os n este caso d e u m a “p esqu isa aplicad a” , n a
m ed id a em qu e cor r esp on d a a essas d em an d as “ext er n as” .
Além d isso, é possível qu e os técn icos, em geral p r ession ad o s
p o r d em an d as extern as, p r ossigam em p esq u isas m ais cen t r adas
sob r e a m an eir a pela qu al eles p r óp r ios defin em o carro. P oder iam
exam in ar , p or exem plo, sem p en sar n esse m om en t o em u m a
aplicação precisa, o fu n cion am en t o d o s car bu r adores. Pode-se falar
en tão d e u m a p esq u isa fu n d am en t al n o d o m ín io d a “au t om ob ilís­
tica”. O qu e a caracteriza é qu e o seu ob jet o n ão é d et er m in ad o
p o r u m a d em an d a extern a à d isciplin a, m as p or u m a d em an d a
“in tern a”: a partir d o m om en t o em qu e o s técn icos con sid er am
qu e u m carro com por ta u m car bu r ador, pode-se efetuar p esqu isas
“fu n d am en t ais” sob r e esse tem a. Pode-se con sid er ar d esse m od o
qu e a p esqu isa fu n d am en t al se in icia pelo “esqu ecim en t o”, ou pela
“colocação en tre p ar ên t eses” d as pr eocu pações pr oven ien tes da
existên cia cotidian a, a fim de se cen trar sobr e qu est ões qu e
p o ssu em sen t ido den t ro d a pr óp ria disciplin a. N est e âm b it o, o
p r ob lem a “fu n d am en t al” só faz sen t ido den tro d o círcu lo restrito
d aq u eles q u e con h ecem a “au t om obilíst ica”, os “p r ofan o s”, de
qu alq u er m od o, n ão com p r een d en d o n ad a (a m en os qu e sejam
p o st os a p ar p or algu m a vulgarização).
D e m an eir a sem elh an te, defin ir em os as ciên cias “p u r as” ou
“fu n d am en t ais” com o aqu elas qu e est u d am p r ob lem as definidos no
próprio paradigm a d a disciplin a. A ssim , u m p r ob lem a “fu n d am en ­
tal” d a física d as partícu las elem en tares será d efin id o em ter m os
d as teorias da física d as partícu las elem en tares. A defin ição do
p r ob lem a estará ligada ao par adigm a d e ssa d iscip lin a e o s critérios
de validade d os resu ltados referir-se-ão sem pre aos con ceitos ligados
ao p ar ad igm a e à com u n id ad e cien tífica r eu n id a em t or n o dele.
Pelo con trário, q u an d o se trata d e u m pr ob lem a relativo às
ciên cias “ap licad as”, o gr u p o social qu e ju lgar á sobr e a “valid ad e”
d o s r esu lt ad os será um grupo diferente daquele dos pesquisadores.
200 GÉRARD FOUREZ

U m a p essoa qu e n ão seja u m físico pod e con statar qu e certos


r esu lt ad os são u tilizados p or ou t r os cien tistas, ou ou t r os técn icos
v isan d o a prod u zir u m certo n ú m er o de tecn ologias.
De igual m od o, n a ciên cia m édica fu n d am en t al estudar-se-ão,
p o r exem plo, os m ecan ism os pelos qu ais age d et er m in ada doen ça
( já d efin ida de acordo com u m a con cepção cien tífica), en qu an t o
qu e os m édicos, ao pr ocu r ar cu rar o s doen tes, fazem ciên cia
aplicada.
Para dizê-lo de ou tr o m od o, as qu est ões qu e se colocam n o
cam p o d as ciên cias fu n d am en t ais são qu est ões ligadas às ciências
paradigm áticas (ou, par a r etom ar a exp r essão de Ku h n , ciência
n orm al). Pode-se acreditar assim qu e, até certo pon t o, essas p esqu i­
sas fu n d am en t ais pr od u zem u m sab er “p u r o” de q u alqu er in tera­
ção com a sociedade. Sem elh an t e visão é eviden tem en te parcial,
u m a vez qu e as p esq u isas fu n dam en t ais, tais com o a d o m otor a
exp losão, cor r esp on d em n o fin al d as con tas a u m a certa d em an d a
social e a certos in teresses.
N est a perspectiva, com preen de-se de qu e form a o laboratór io
é o lu gar privilegiado da ciên cia fu n dam en tal, já q u e ju st am en te é
u m local estru tu rado par a filtrar o “m u n d o exterior” de m an eir a a
qu e in terven h am n a prática cien tífica ap en as os elem en t os qu e se
p od e an alisar n o âm bit o de u m par adigm a. O qu e faz com qu e u m
laboratór io seja u m laboratór io é a elim in ação de p r essões qu e n ão
se ad eq u am ao par adigm a: pr essões econ ôm icas, culturais, psico­
lógicas, fisiológicas etc., assim com o tu do o qu e é relacion ad o a
ou t r as d iscip lin as (por exem plo, em u m labor atór io de qu ím ica
con trolar-se-á a tem peratu ra, os p r od u t os u tilizados, a pr essão etc.).
Tem -se assim razão q u an d o se diz, n o sen t id o h abitu al da palavra,
qu e o laboratór io é o lu gar d a ciên cia “p u r a”...
t

Um a perspectiva histórica para as ciências puras

U m p ou co de h istór ia da n oção de “ciên cia p u r a” pod e n os


aju d ar a com pletar a r epr esen t ação qu e dela fazem os. Parece qu e
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 201

esse con ceito foi criado pelo qu ím ico Liebig q u an d o, n o in ício d o


sécu lo XIX, ele se deu con ta de qu e era im portan te for m ar doutores
em ciên cias puras (Sten gers, 1981), ou seja, cien tistas qu e n ão se
pr eocu par iam com t od as as qu est ões de “filosofia n atu r al”, com o
os sáb io s d o sécu lo XVIII; esses n ovos “cien tistas” con centrar-se-
iam em q u est ões “d e ciên cias”, d eixan d o de lad o todas as qu est ões
m ais essen ciais, tais com o a da n atureza da m atéria. Esses d ou tor es
em ciên cias pu r as preten diam -se sim plesm en t e técn icos d o s con h e­
cim en tos cien tíficos d a época. Ab an d on avam a p esqu isa d a filoso­
fia n atu ral, qu e procu r ava com pr een der de m od o m ais p r ofu n d o
possível a pr óp r ia n atu reza d o u n iverso. O con ceito de “ciên cia
p u r a” era portan to, n o in ício, u m con ceito restritivo: referia-se a
p essoas qu e se cen travam em u m a só qu est ão. O con ceito de
“ciên cia p u r a” liga-se ao desen volvim en to d as p esq u isas d e acor d o
com p ar ad igm as b em d elim itados.
Poder-se-ia com p ar ar o cien tista “p u r o” a u m m ecân ico qu e se
con cen t r asse sobr e a ciên cia pu r a d o m ot or a exp losão; seria u m
m ecân ico qu e n ão se ocu par ia d o s ou t r os p r ob lem as d o carro. O u
a u m m édico qu e se especializasse em “p u r os” p r ob lem as de
est ôm ago. Em ou t r os term os, a n oção de “ciên cia p u r a” refere-se a
p esq u isas especializadas, n o âm bito de u m a divisão d o con h eci­
m en to (ele m esm o ligado a con ceitos paradigm áticos). São p esqu i­
sas n as q u ais se esqu ecem “m et od ologicam en t e” as relações com
os p r ob lem as con cretos qu e se en con tr am n a origem d o pr ob lem a
est u d ad o.

A árvore da ciência e as ramificações científicas

A n oção d e ciên cia pu r a e aplicada deve-se, em parte, a u m a


im agem su r gid a n o O cid en te n o sécu lo III d. C .: a d a árvore d a
ciên cia de P orfírio., Se gu n d o esta con cepção, os con h ecim en t os
assem elh ar-se-iam a u m a árvore, n o sen t id o de qu e certos con h e­
cim en tos m ais fu n d am en t ais for m ariam o tron co, o qu al se sep a­
202 GÉRARD FOUREZ

raria em gr ossos galh os qu e, p or su a vez, se ram ificariam ab u n d an ­


tem en te. H averia, p or exem plo, o t ron co d a filosofia n atural,
sep ar ad o em r am os com o a fisica, a biologia, a m atem ática, a
m ed icin a etc., até ch egar aos r am os d as ciên cias aplicad as.
D e acor d o com essa im agem , par a p od er praticar as ciên cias
d o s r am os, seria pr eciso n or m alm en t e con h ecer as ciên cias fu n d a­
m en tais. Esse tipo de p r et en são n ão é correto. Sabe-se, com efeito,
q u e é possível utilizar u m m artelo sem sab er ab solu tam en t e com o
fu n cion a a vibr ação d as texturas cristalin as m etálicas d a cabeça d o
m artelo. N ad a é m ais falso d o qu e esse m ito segu n d o o qu al é
pr eciso com p r een d er t od o o m ecan ism o de algu m a coisa an tes de
p od er utilizá-la vPelo con trário, a prática cien tífica assem elh a-se bem
m ais a com p r een sões locais: pode-se m u it o bem realizar p esqu isas
exper im en t ais sobr e a asp ir in a sem com p r een d er em ab solu t o o
q u e su r gir á m ais tarde com o u m a teoria d o fu n cion am en t o da
aspirin a.
A im agem d a árvore da ciên cia parece cor r esp on d er a u m a
espécie de d ivisão d o t rabalh o n as socied ad es ocid en t ais (e em
m u it as ou t r as, aliás). Su põe-se qu e certos con h ecim en t os, m ais
fu n d am en t ais, sejam m ais n ob res d o q u e ou t r os. E aqu eles qu e
praticam estes ú ltim os devem subm eter-se aos qu e praticam o
pr im eir o tipo. U m m od elo com o esse aparece d e m an eir a bem
clara n a prática da m edicin a: vê-se as p essoas qu e tratam d os
d oen tes sem p re su b m et id as àqu eles qu e se su põe sab er d o qu e se
trata. Sen te-se aí a distin ção en tre o t rabalh o in telectual, o trabalh o
de “d o m ín io ” e o t rabalh o m an u al, su b or d in ad o.
Ser ia útil, provavelm en te, ter em m en te ou t r as im agen s d o
con h ecim en t o além d aqu ela d a árvore d a ciên cia. H im sw or t h
(1970) p r o p ô s u m a, ch am ad a de esfera d o s con h ecim en t os. D e
acor d o com essa im agem , certos con h ecim en t os, r epr esen t ad os
sob r e a su perfície d a esfera, ser iam os con h ecim en t os diretam en te
ligad os à vida cotidian a, com o, p or exem plo, à m an eir a de se
alim en tar. O u t r os con h ecim en t os, m ais gerais, ser ão aqu eles qu e
perm itirão relacion ar esses con h ecim en tos específicos d o cotidian o
a ou t r os con h ecim en t os t am b ém cot idian os.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 203

D esse m od o, as teorias d as vitam in as perm itirão ligar a alim en ­


tação à b u sca de certos elem en tos. Pode-se, assim , p o ssu ir con h e­
cim en tos cad a vez m ais elab or ad os e cad a vez m ais gerais, qu e
per m item relacion ar os con h ecim en t os específicos de diversas
m an eir as. Con t u d o, esses laços per m an ecem em parte con ven cio­
n ais e ligad os a certos pr ojetos qu e for am privilegiados (cf. as
reflexões sobr e a in terd isciplin aridade). U m in teresse su plem en t ar
d a im agem é in d icar qu e esses “con h ecim en t os m ais fu n d am en ­
t ais” são ferram en tas ou tecn ologias in telectuais práticas par a
exam in ar p r ob lem as ligad os à existên cia cotidian a. O qu e lh es é
p r óp r io é qu e talvez os m od elos in telectuais sejam aplicáveis a u m a
m u ltiplicidade diver sa de situ ações con cretas.

Todo conhecimento científico é poder,


mas em lugares diversos

O s diver sos con h ecim en t os classificad os com o ciên cias p u r as,


ciên cias aplicadas e tecn ologias relacion am -se t od os a det er m in ados
pr ojetos. D e certo m od o, são t od os perten cen tes ao cam p o da
ciên cia aplicada. Aliás, n a prática m od er n a d a ciên cia, só se
con sid er a u m con h ecim en t o com o in teressan te n a m ed id a em qu e
alcan ça r esu ltados con cretos, geralm en te experim en tais, n o qu e diz
respeito à organ ização de n o sso m u n d o e à su a represen tação.
N est e sen tido, t od o o con h ecim en to cien tífico liga-se a aplicações:
exper iên cias, em ú ltim a in stân cia. Para par afrasear W ittgen stein ,
com p r een d er u m a teoria é poder utilizá-la. N o em p r een d im en t o
cien tífico con tem p or ân eo, o projeto, por vezes denom inado de newto­
niano, de adquirir um conjunto de conhecimentos n ão pode ser separado
do projeto, por vezes qu alificado de baconiano, de adquirir um domínio
sobre o m undo (H ottois, 1987; H olton , 1986).
A d istin ção en tre ciên cia e tecn ologia deve-se com t od a a
p r ob ab ilid ad e à diferen ça d os lu gares sociais n os qu ais os saber es
cien tíficos e o s saber es tecn ológicos são ap licad os. O s sab er es
204 GÉRARD FOUREZ

cien tíficos se aplicam em u m lugar restrito, os laboratór ios, e se


ligam a u m a in stituição particular: a com u n id ad e cien tífica. Pelo
con tr ár io, os saberes tecn ológicos ou as ciên cias aplicadas são
u tilizados n a realidade social t om ad a globalm en te, n o m u n d o
exterior. O s d ois tipos de saber destin am -se sem pre a ser aplicados,
portan to, m as em lu gares diferen tes. C ad a u m d o s saber es produz
certos poderes: os poder es experim en tais e os poder es tecn ológicos..,
E esses pod er es p od em t am b ém traduzir-se cm ou t r os, os poder es
h ier árqu icos n a sociedade: qu alqu er u m qu e seja capaz de realizar
u m certo n ú m er o de coisas pode, ap ós u m certo tem po, exercer
u m p od er sobre os ou t r os. Existe en tão u m a espécie de vín cu lo,
de en cad eam en t o en tre os con h ecim en t os, qu e são en fim u m tipo
de “p od er fazer”1 e os poder es sociais.

Resumo

As noções e os seus m últiplos usos

A s n o ções “ciên cia p u r a", “ciên cia ap licad a”, “t ecn ologia” são u tilizad as
p ar a d e sign ar d iver sos ob jet ivos sociais n as práticas cien tíficas.

O circulo das legitim ações recíprocas

A s ciên cias fu n d am en t ais p o ssu e m u m a t en d ên cia a se ju st ificar em p o r


m eio d as ciên cias ap licad as e r ecipr ocam en te.

Um fun dam en to epistem ológico p ara a distin ção

A s ciên cias p u r as (fu n d am en t ais) est u d am p r ob lem as d e fin id o s p elo


p ar ad igm a. A s ciên cias ap licad as est u d am p r ob lem as em q u e a valid ad e
d o s r esu lt ad os será ap licad a p o r u m gr u p o exter ior ao s p e sq u isad o r e s.

O laboratório com o lugar das pesquisas fu n dam en tais

Um a perspectiva h istórica p ara as ciên cias puras

1 “ P od er fazer”: n o origin al, “pou voir f a ir e " . Eqü ivale ao in glês “ k n o w hoiv” (N. T.).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 205

O con ceit o foi cr iad o n o in icio d o sécu lo XIX par a falar d e p e sq u isas em
u m d o m ín io gr an d em en t e especializad o.

A árvore d a ciên cia e as ram ificações cien tíficas

Im agem d o sécu lo III con t r ib u in d o par a legitim ar u m a h ier ar q u ia d o s


p e sq u isad o r e s e d as pr át icas sociais.

T odo conhecim ento cientifico é poder

En fim , t o d as as ciên cias são ap licad as: exper iên cias con cr etas. O s lu gar es
d e ap licação difer em : o lab or at ór io, p ar a as ciên cias fu n d am en t ais, o
m u n d o exterior, p ar a as t ecn ologias ou p ar a as ciên cias ap licad as. D aí a
d ist in ção e o s vín cu los en tr e o s p od er es exp er im en t ais, o s p od er es
tecn ológicos e o s p od er es h ier ár qu icos.

P alavr as- ch ave

C iê n cias p u r a s/ ciên cias fu n d am e n t ais/ ciên cias a p lic a d a s/ ciên cias


o r ie n t a d a s/ t e cn o lo gias/ p esq u isa- d esen volvim en t o / lab or at ór io.
C A P Í T U LO 9

CIÊNCIA, PODER POLÍTICO E ÉTICO

Ciência e poder

N a m ed id a em qu e a ciên cia é sem pre u m “p od er fazer” , u m


certo d o m ín io d a Natu reza, ela se liga, p or tabela, ao pod er qu e o
ser h u m an o p ossu i u m sobr e o ou tro. A ciên cia e a tecn ologia
tiveram u m a parte b em sign ificativa n a organ ização d a sociedade
con tem p or ân ea, a p on t o d e esta n ão p od er pr escin d ir d as prim ei­
ras: en ergia, m eios d e tran sporte, com u n icações, eletr odom ésticos
etc. O con h ecim en t o é sem p re u m a r epr esen t ação d aq u ilo qu e é
possível fazer e, p or con segu in te, r epresen tação d aqu ilo qu e p od e­
ria ser ob jet o de u m a d ecisão n a sociedade.
A q u est ão d o vín cu lo en tre os con h ecim en t os e as d ecisões se
im põe, portan to. Q u e existe u m vín culo, isto é in d icad o pelo b om
sen so : se se sab e qu e é possível con st r u ir u m a pon te de u m a
m ar gem à ou tr a d e u m rio, pode-se qu est ion ar se ela é ou n ão
desejável. Porém , p od e o con h ecim en to in dicar se se deve ou n ão
con st r u ir essa pon te?
208 GÉRARD FOUREZ

D esd e sem p re su pôs-se u m a relação en tre o con h ecim en to e o


p od er político: sem pre se afirm ou qu e u m rei ou qu e u m ch efe
devia ser “sáb io ” (ver Dru et, 1977). O qu e isto sign ifica? Até qu e
p on t o o sab er é d eter m in an te q u an d o se deve t om ar u m a decisão,
seja ela d e or d em política ou ética?
Em ou t r os term os, trata-se de saber se u m a política ou u m a
ética pod e ser determ in ada cien tificam en te. Q u e espécie de relações
p od em se vislu m b r ar en tre a ciên cia e as decisões sociais?
C o m efeito, o term o política científica d esign a, n a lin guagem
com u m , d ois tipos bem diferen tes de política. Por u m lado, fala-se
p or vezes de “política cien tífica” para d esign ar as atitu des e d ecisões
políticas qu e se ad ot am visan d o a favorecer o desen volvim en to da
ciên cia. O exem plo m ais tipico é a política de ou t or gar su b síd io s
à p esqu isa cien tífica. N est e sen tido, fala-se d a ad oção de u m a
política a fav or d a ciência. O s cien tistas ten dem a con sid er ar d esse
m od o a política cien tífica: com o u m a política qu e favorece o
d esen volvim en to da ciên cia. Além d isso, fala-se t am bém de u m a
“política cien tífica” q u an d o se q u er tom ar d ecisões políticas ap oia­
d as, d et er m in ad as ou legitim adas pela p esqu isa cien tífica. D esse
m od o, u m partido político fala de u m a política cien tífica q u an d o
preten de qu e a su a política utilize a ciên cia. Trata-se n esse caso de
u m a política pela ciência (cf. Salom on , 1970 e 1982).

Modelos tecnocrático,
decisionista e pragmático-político

O filósofo da ciên cia H ab er m as con sid er a qu e se pod e classi­


ficar a m an eir a de ver as in terações en tre a ciên cia e a sociedade
em três gr u p os distin t os: as in terações tecnocráticas, decision istas e
pragm ático-políticas (H ab er m as, 1973). Essas três m an eir as d e v e r
jam ais existem em est ad o pu ro: trata-se de m od elos con ceituais qu e
perm item u m a represen tação d o qu e ocorre.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 209

A fim d e com pr een d er esses m od elos, con sid er em os d ois


exem p los: p or u m lado, a in teração en tre u m m édico e o seu
pacien te e, de ou tro, a in teração en tre u m m ecân ico e o d o n o de
u m carro. De acor d o com o m od elo tecnocrático, supõe-se qu e o
m édico ou o m ecân ico sab em o qu e é m elh or para os seu s clien tes.
G r aças a seu s con h ecim en t os, são capazes de decidir o qu e se deve
fazer. N est e sen tido, o m ecân ico, segu ro de su a ciên cia, dir á a seu
clien te: “N ão se pr eocu pe, vou resolver t od os os seu s p r ob lem as”.
O m éd ico agirá d o m esm o m od o. Para o modelo tecnocrático, as
decisões cabem aos especialistas.
D e acor d o com o m od elo decisionista, a situ ação é u m p ou co
m ais com plexa. N est e caso, o m ecân ico pergu n tará a seu clien te o
qu e ele tem em vista, q u ais são os seu s objetivos. U m a vez
con h ecid as as fin alid ad es e valores d o clien te, o especialista, graças
a seu s con h ecim en t os, en con trará os m eios m ais ad e q u ad os par a
atin gir esses objetivos. Se, p o r exem plo, o clien te deseja u m m eio
de t ran spor te tão econ ôm ico qu an t o possível, o m ecân ico t rabalh a­
rá segu n d o essa diretiva. Se, pelo con trário, o clien te qu er u m m eio
de tran spor te eficaz e segu ro, é n essa direção qu e trabalh ar á o
m ecân ico. O m édico agirá d o m esm o m od o com seu pacien te. Ele
q u est ion ar á este ú ltim o a r espeito de su as expectativas em r elação
a su a saú de. D ep ois, decidirá utilizar os m eios ad eq u ad os a esse
fim. Este m od elo, portan to, faz um a distinção entre tom adores de
decisão e técnicos. U n s deter m in am os fin s, ou t r os, os meios. Esse
m od elo d im in u i a d ep en d ên cia em relação ao técn ico, u m a vez qu e
são as p r óp r ias p e ssoas qu e decidem sobr e os seu s objetivos. U m
pacien te pod e dizer a seu m édico, por exem plo, qu e deseja term in ar
a su a vida, de preferên cia, en tre os seu s a vê-la p r olon gad a n o
am b ien te h ospitalar. O m édico deverá en con t r ar os m elh or es
m eios ten d o em vista essa fin alidade.
U m a socied ade d esicion ist a con siderar á qu e cabe às in stitui­
ções políticas det er m in ar os objetivos visad os p or esta sociedade.
C ab e aos técn icos, ap ós, en con trar os m eios ad equ ad os. O soció­
logo e filósofo M ax W eb er r elacion ou essa m an eir a de ver com
u m a teoria d a r acion alid ade (W eber, 1971): de acor do com o qu e
210 GÉRARD FOUREZ

se d en o m in o u de racion alid ade n o sen t ido w eberian o, u m p lan o


de ação é racion al q u an d o o s m eios cor r esp on d em aos fin s
escolh id os. Se gu n d o essa teoria, os objetivos n ão p od em ser
d et er m in ad os r acion alm en te; a su a escolh a cabe ao s t om ad or es de
decisão, gu iad os p or seu s valores. O lu gar d a racion alid ade seria
en tão a d eterm in ação d os m eios, a determ in ação d o s fin s, d a esfera
d a pu r a liberdade.
N o terceiro m od elo de in teração, o qu e é privilegiada é a
per pétu a d iscu ssão e n egociação existen te en tre o técn ico e os
clien tes. N a prática, é freqü en te qu e o m ecân ico peça o n ú m er o de
t elefon e de seu clien te a fim de p od er colocar-lh e qu est ões e
in form á-lo sobr e a situ ação técn ica d o carro, d as im plicações
d ecorr en t es d o objetivo p r op ost o; ele o qu est ion a t am b ém de
m an eir a a p od er decidir em con ju n t o sobr e os m eios e m esm o
sobr e os objetivos. Con t r ar iam en t e à ab or d agem decision ist a, n ão
se con sid era m ais aqu i qu e a distin ção en tre os m eios e os objetivos
seja sem p r e ad eq u ad a (é claro, p or exem plo, qu e o preço de u m
m eio p od e levar a rever os objetivos). Esse en foqu e su p õe u m a
d iscu ssão, u m debate per m an en te, u m a n egociação in term in ável
en tre o técn ico e o n ão-técn ico.
Esse m od elo pragmático-político assem elh a-se ao m od elo deci­
sion ista, exceto pelo fato de qu e a relação en tre os especialistas e
os n ão-especialistas é perm an en te. Con t u d o, resta sem pre u m a
d ecisão delicada: a partir de qu e m om en t o con sidera-se (e quem
con sidera?) qu e o s técn icos com p r een d em de m an eir a su ficien te a
von t ad e de seu s clien tes par a p od er trabalh ar sem con sultá-los? O
m od elo pragm ático-político in siste sobr e o fato de qu e os m eios
escolh id os p od em levar à m odificação d o s objetivos, m as n ão
forn ece n en h u m a receita sim p les a fim de pod er h aver a decisão:
ele rem ete às n egociações (m otivo pelo qu al n ão o d en o m in am o s
som en te pragm ático, m as t am b ém político!).
U m a d as p r ofissões qu e m ais pratica essa in teração en tre o
clien te e o técn ico é a arqu itetu ra. U m “b om ar qu iteto” estabelece
u m con tato per m an en t e com o seu clien te, b u scan d o n ão t om ar
as d ecisões em seu lugar. A o pô-lo a p ar d as im plicações técn icas
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 211

ligad as a su a escolh a, o arqu iteto pod e levar o seu clien te a


m od ificar algu n s de seu s objetivos.
Cer t os exem p los (o m édico, o m ecân ico, o arquiteto) par ecem
in d icar qu e os m od elos tecn ocrático, d ecision ist a e pragm ático-po-
lítico con cern em a d ecisões a ser em t om ad as pelos in divídu os.
C o m efeito, n esses caso s é m ais fácil d e ver com o eles pr oced em ,
e é p o r isto qu e esses exem p los t ir ad os d as in terações in ter p essoais
for am escolh id os. P orém , o s m esm os m od elos se aplicam às
d ecisões coletivas. D ian t e de u m a epidem ia de AIDS, o qu e fazer?
Recorrer aos esp ecialistas em epid em iologia (ou a u m a equ ipe
in terd isciplin ar de especialistas)? Ad ot ar d ecisões políticas, p ed in ­
d o en tão ao s especialistas qu e as coloqu em em prática? O u
instituir-se-á u m d iálogo e u m a n egociação p er m an en t es en tre os
t om ad or es de d ecisão e o s especialistas?
Em n o ssa sociedade, o m od elo tecn ocrático é bast an t e d ifu n ­
d id o: h á u m a t en d ên cia a se recorrer aos “esp ecialistas” . P r essu ­
põe-se qu e o “com u m d os m or t ais” n ão com pr een de n ad a, e
recorre-se en tão aos qu e “sab em ”. O cor re até qu e se pr eten da qu e
as su as d ecisões sejam n eu tras, pu r am en te d it ad as pela r acion ali­
d ad e cien tífica.

Em resu m o, port an to, de acor d o com o m od elo tecnocrático,


ser iam o s con h ecim en t os cien tíficos (e port an to os “esp ecialistas”)
qu e d et er m in ar iam as políticas a serem segu idas (objetivos e
m eios). O m od elo decision ist a, pelo con trário, distin gu e en tre os
fin s e os m eios; segu n d o esse m od elo, o s fin s ou objetivos devem
ser d et er m in ad os por d ecisões livres, d e m an eir a in depen d en t e da
ciên cia, en qu an t o q u e o s m eios ser iam d et er m in ad os pelos esp e­
cialistas. O m od elo pragm ático-político, en fim , p r essu p õe u m a
n egociação e u m a d iscu ssão n a qu al os con h ecim en t os e n egocia­
ções sociopolít icas en tr am em con sideração.

A ssin ale m os p or fim qu e se d en om in am tecnocracias o s siste­


m as políticos em qu e se recorrem , par a as d ecisões sociopolíticas,
a esp ecialistas (experts) cien tistas. Em geral, con sidera-se q u e é
possível ch egar a d ecisões sociopolíticas graças aos con h ecim en t os
212 GÉRARD FOUREZ

cien tíficos, qu e se su p õem n eu tros, p o d en d o assim evitar as


d iscu ssões e n egociações sociopolíticas.
N as seções qu e segu em , con sid er ar em os as van t agen s e os
lim ites d esses m od elos dian te d a diversidade de situ ações n as qu ais
pode-se qu erer aplicá-las.

O abuso de saber da tecnocracia

O en foqu e tecn ocrático, ao preten der pod er det er m in ar a


política (ou a ética) a ser segu ida, graças ao con h ecim en to cien tífico,
com ete u m “ab u so de sab er ”, pois, afin al, o con h ecim en t o cien tí­
fico n ão é n eu tro. Foi con st r u íd o de acor d o com u m pr ojeto
or gan izad or e este ú lt im o pod e det er m in ar a su a n atureza.
A ssim , q u an d o os en gen h eiros pr eten dem ditar qu al a política
en ergética a ser ad ot ad a em d et er m in ad o p aís, utilizam u m con h e­
cim en to técn ico qu e leva em con ta fatores extern os ao par adigm a
com o qu al trabalh am . Q u an d o se afirm a qu e é “b oa” det er m in ada
m an eir a de con st ru ir a cen tral elétrica, n ão se explicita o con ju n t o
de critérios qu e deter m in am essa “b o a” escolh a. Ser ia m ais exato
dizer q u e é u m a m an eir a qu e, segu n d o os critérios d o par adigm a
d o s en gen h eiros, é ad equ ad a par a con st ru ir essa cen tral.
D o m esm o m od o, se en gen h eiros dizem em qu e lugar se deve
con st r u ir u m a pon te sobr e u m rio, deve-se recon h ecer qu e eles n ão
têm u m a form ação qu e lh es capacite dizer qu e tipo de com u n icação
as p op u lações devem ter en tre elas. Pode-se ju lgar útil d eterm in ar
a localização de u m a pon t e p or fatores d iver sos d aqu eles visad os
pelos en gen h eiros, p o r exem plo, a ocorrên cia d a n eblin a, ou ain da
a com pat ib ilid ad e de d u as aldeias in im igas h ab it an d o lad os dife­
ren tes d o rio.
Em n o sso s d ias, n o en tan to, a for m a de tecn ocracia qu e se
b aseasse em u m só técn ico ou em u m a só categoria p r ofission al de
técn icos para deter m in ar u m a política praticam en te desapar eceu
(ain da q u e ela se m an ifeste em particu lar n o cam po d a econ om ia).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 213

Porém adota-se com freqü ên cia u m a tecn ocracia in terd isciplin ar .


Esta su p õe qu e, u m a vez r eu n id o u m n ú m er o suficien te de
esp ecialistas de diferen tes d isciplin as, pode-se determ in ar, de m a­
n eira pu r am en te racion al, e sem n egociação h u m an a, a m elh or
política. N est a perspectiva, par a con st ru ir u m a pon te, recorrer-se-á
a ou t r os esp ecialistas além d o s en gen h eiros, com o sociólogos,
m etereólogos, econ om ist as etc., t r abalh an d o em u m a equ ip e in ter­
disciplin ar.
U m a tal ab or d agem , con tu d o, n egligen cia o qu e d isse m os a
r espeito da in terdisciplin ar idade: essa equ ipe in terd isciplin ar irá
privilegiar u m a certa visão e ten derá a fu n d ar u m qu ase-parad igm a
qu e a fará assem elh ar-se a u m só técn ico (com o o m ecân ico, ou o
m édico, ou o arqu iteto, qu e preten dem sab er t u d o o qu e se deve
fazer, graças a seu s con h ecim en tos). Se a in terdisciplin aridade pod e
corrigir certos defeitos d a tecn ocracia, ela n ão m od ifica a su a
estru tu ra: recorrer a especialistas acr editan do en con t r ar u m a res­
p ost a “n eu tr a” a p r ob lem as d a sociedade é esqu ecer qu e esses
especialistas apresen tam u m pon t o de vista qu e é sem pre particular.
Con vém , aliás, pergun tar-se qu em escolh eu os especialistas e
p or qu e razão. Além d o m ais, a m an eira pela qu al os especialistas
pôr-se-ão em acor do tem m ais a ver com a lógica de u m a n egociação
sociopolítica d o qu e com u m âm bito bem d efin id o de r acion alid a­
de. A in d a n esse caso, as decisões n ão são t om ad as em fu n ção de
u m sab er qu e d eterm in e tu do de m an eir a n eu tra, m as em fu n ção
de ou t r os critérios b em m ais pragm áticos.
A aparen te n eu tralidade d os tecn ocratas provém d o fato de qu e
as d ecisões im por tan t es foram t om ad as q u an d o se adot ou determ i­
n ad o p ar ad igm a d iscip lin ar ou det er m in ad o m ét od o in terdiscipli­
n ar. A o adotá-los, aceita-se de m an eira cega o s seu s p r essu p ost os.
D esse m od o, o m édico só pod e ser tecn ocrata se escolh er utilizar
os valores e t od os o s p r essu p o st os d a m ed icin a cien tífica. Essa
m an eir a de t rabalh ar pod e ser com par ad a à prática d os p r ofessor es
qu e p en sam corrigir as r edações de m an eir a ab solu tam en t e n eu tra
e objetiva p or terem d et er m in ad o de an tem ão qu e cada erro de
ortografia seria pen alizado com u m pon t o. U m m ét od o com o esse
214 GÉRARD FOUREZ

só aparen tem en te é n eutro, já qu e t od o o seu aspect o con ven cion al


foi rejeitado n a d ecisão in icial. Pode-se dizer o m esm o a respeito
d a tecn ocracia qu e, afin al, baseia-se n o con ven cion al ligado às
escolh as paradigm áticas.

^ O estatu to de especialista apr esen t a u m a am b igü id ad e fu n d a­


m en tal, m esm o qu e, com o tal, ele seja n ecessár io. D e fato, é prática
I geral ped ir ao especialista qu e decid a em fu n ção de seu sab er
cien tífico. O r a, esse sab er d ep en d e de u m par ad igm a, e som en t e é
aplicável, n o sen t ido estrito, de acor d o com as con d ições defin id as
p or esse par adigm a e pelo laboratório ao qu al está ligado. Con t u d o,
, o parecer especializado qu e se pede dele destin a-se à vid a cotidian a:
1 n ão se coloca ao esp ecialista u m a q u est ão de or d em cien tífica, m as
de or d em social ou econ ôm ica. Em con seqü ên cia, a especialid ade
n ão se liga ap en as às d iscip lin as cien tíficas, m as à m an eir a pela
qu al o especialista traduz o p r ob lem a d a vida com u m em seu
p ar ad igm a d isciplin ar . E essa t radu ção n ão d ep en d e de su a d isci­
plin a, m as d o “razoável”, ou d o sen so com u m . D e u m m od o
par ad oxal, poder-se-ia dizer qu e u m esp ecialista é algu ém a“qü em
se ped e qu e tom e u m a decisão, em n om e de su a disciplin a, sobr e
algo q u e n ão diz r espeito exatam en te a su a disciplin a!

Em su m a, pode-se afirm ar qu e n ão é in exato acreditar qu e é


u n icam en t e em n om e de su a disciplin a qu e o especialista fala. O
seu parecer d ep en d er á d a m an eir a pela qu al ele h ou ver tradu zido
par a a su a d isciplin a as qu est ões qu e lh e foram colocadas. Se lh e
per gu n tam , p or exem plo, se d et er m in ado sistem a de segu ran ça de
u m a cen tral n uclear é “ segu r o”, ele n ão p od er á r espon d er , n o
sen t id o estrito, em n om e d a física. N ão m ais d o qu e u m m édico,
q u e n ão pod e, u n icam en te em n om e d o sab er m édico, dizer a seu
clien te com o ele deve viver. C o m o vim os an teriorm en te, ele
utilizará u m m od elo teórico qu e con sid erar á equ ivalen te à situ ação
prática qu e se apresen ta. E sab em os qu e é n esse m om en t o qu e se
ap r esen t am em geral o s im pr evist os: o prático n ão era equivalen te
ao teórico! E p o r isso, aliás, qu e se pode dizer qu e a gest ão levada
ja cab o pelos especialistas geralm en te leva a aciden t es...
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 215

Distinguir entre os meios e os fins,


os valores e as técnicas?

O in teresse d o m od elo d ecision ist a é o de d eixar o p od er aos


n ão-especialistas, ao m esm o t em po em qu e recon h ece qu e efetiva­
m en te h á, a partir d o m om en t o em qu e as ciên cias se t or n ar am
m ais com plexas, d u as classes de cid ad ãos. H á aqu eles qu e sab em
m ais d o qu e ou t r os sobr e certos assu n t os precisos. Con t rariam en t e
às socied ad es n as q u ais a diferen ciação d o s p ap éis era p ou co
avan çad a (n as socied ad es p ou co técn icas com o as coletivistas ou
m esm o as aldeias d a Alta Idade M édia), a d istin ção en tre os qu e
sab em m ais e os qu e sab em m en os a respeito de u m assu n t o reflete,
em n o ssa sociedade, algo “real”. O qu e sign ifica qu e a im por tân cia
q u e assu m ir am a ciên cia e a técn ica em n ossa sociedade levou a
relações sociais específicas. E se se trata de deter m in ar o tipo de
sistem a en ergético em u m país, os pareceres n ão serão equ ivalen tes
en tre si. Por ú ltim o, a m an eira pela qu al o sab er será par t ilh ado
perm itirá, ou n ão, certos debates dem ocráticos.
En q u an t o o m od elo tecn ocrático en tregava t od o o p od er aos
esp ecialistas, o m od elo decision ist a aceita q u e as p essoas t om em
decisões ten d o em vist a a su a vida, d an d o pareceres com b ase em
valor es q u e são im por tan t es par a elas. D e sse p on t o de vista, é u m
m od elo m ais dem ocrático.
Baseia-se n a d istin ção en tre “os valor es” e os m eios a fim de
pô-los em prática. Por exem plo, esse m od elo r espeitará os valor es
d aq u eles qu e qu er em con viver, m as deixará aos técn icos escolh as
em m atéria de h abitação, de en ergia, de alim en t ação etc. Segu n d o
esse m od elo, porém , as escolh as ser ão d et er m in ad as em fu n ção
d o s valor es exp r essos pelos prim eiros.
O m od elo d ecision ist a apr esen ta u m certo in teresse, p ois as
p esso as qu erem ter a su a palavra a dizer em relação aos valor es p or
elas p r ofessad os. N o en tan to, tal m od elo n egligen cia o fato de qu e
o s m eios in flu em n a persegu ição d o s fin s. Se, por exem plo,
escolh em os u m a cen tral n uclear com o m eio par a con segu ir en er­
216 GÉRARD FOUREZ

gia, ser em os ob r igad os a ad ot ar tam bém u m sistem a de segu ran ça


de tal m od o qu e n in gu ém p o ssa provocar u m a catástrofe ecológica
sabotan do-a. O m eio utilizado n ão é en tão ap en as u m m eio, m as
já im plica toda u m a organ ização da sociedade. A o escolh er u m
sistem a de p r od u ção de en ergia cen tralizada, ser em os for çad os a
criar u m a polícia forte par a defen dê-lo. A d eb ilid ad e d o m od elo
d ecision ist a é p r essu p or qu e, u m a vez det er m in ad as as fin alidades,
a escolh a d o s m eios é in diferen te.
D e fato, a escolh a d o s m eios técn icos deter m in a toda u m a
organ ização social, e n ão é in diferen te em relação aos valor es e aos
fin s. E essa im p ossib ilid ad e fin al de d istin gu ir de m an eir a ad equ a­
d a os m eios e os fin s qu e leva a u m a r epresen tação d a in teração
en tre o sab er e as d ecisões éticas ou políticas com o n egociações
pragm áticas. Trata-se de n egociações sociopolíticas se se trata de
d et er m in ar d ecisões relativas à sociedade; trata-se de debat es éticos
se se trata de discu tir para determ in ar o qu e se con sid er a com o
com p or t am en t os sociais ad eq u ad os.

Um exemplo:
estabelecer programas de ensino

O s m od elos tecn ocráticos e decision ist as p od em aplicar-se


tam bém à con stru ção de pr ogr am as escolares. Q u em , p or exem plo,
pod er á d eterm in ar qu e m atem ática se deve en sin ar aos alu n os d o
secu n dário? E u m pr oblem a político n o sen tido estrito, pois trata-se
de d et er m in ar algo qu e terá “força de lei” .
A lgu m as p essoas pr op õem u m a abor dagem tecn ocrática: os
m atem áticos teriam qu e decidir. Sem elh an t e m od elo p r essu p or ia
qu e o s m atem áticos são capazes de det er m in ar o qu e é im portan te
en sin ar aos alu n os d o secu n d ár io. Con t u d o, tem-se dificu ldade de
en xergar o qu e, em su a form ação, h abilite-os a t om ar u m a decisão
qu e n ão tem n ad a de m atem ático ou cien tífico: “o qu e, n esta
socied ad e, deve ser en sin ad o a estes joven s em m atéria de m ate­
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 217

m ática?”. Essa qu est ão n ão tem n ad a de m atem ático, p ois refere-se


a in teresses e u tilid ades sociais. A r espost a tecn ocrática segu n d o a
qu al som en t e o s m atem áticos seriam capazes de det er m in ar os
p r ogr am as d a m atem ática para o secu n d ár io parece en tão pou co
razoável.
O u t r os p r op õem u m a p r op ost a tecn ocrática in terdisciplin ar,
con fian d o a u m a equ ipe de d iver sos esp ecialistas a tarefa de
det er m in ar racionalm ente o qu e se deve fazer. Porém , t u do o qu e
foi dito acim a acerca d a in terd isciplin ar idade m ostr a qu e, se essa
equ ip e t om a u m a d ecisão n ão será jam ais por razões “cien tíficas”.
A d ecisão d ep en d er á en fim d a negociação prática en tre o s especia­
listas. H á b oas ch an ces de qu e a prática in terd isciplin ar d im in u a
a par cialid ad e qu e n ecessar iam en te teria u m a d ecisão t om ad a p or
especialistas de u m a só disciplin a, m as assim m esm o a decisão
caberia a especialistas.
Segu n d o u m m od elo decision ista, con sidera-se qu e os pr ogr a­
m as de m atem ática devem ser pr epar ad os por m eio de n egociações
sociopolít icas qu e det er m in ar iam o tipo de m atem ática con sid er a­
d o útil. Seriam n ão-especialistas qu e decid iriam os objetivos d os
cu r sos de m atem ática. D ep ois, pedir-se-ia a m atem áticos, e even ­
t u alm en te a p ed agogos, qu e d et er m in assem de qu e m od o esses
objetivos pod er iam ser realizados. A s in st ân cias políticas decidi­
riam sob r e os objetivos d a edu cação em m atem ática, ao p asso qu e
os m atem áticos e ped agogos procu r ar iam deter m in ar o con teú d o
con creto d o pr ogr am a. Su põe-se port an to qu e os t om ad or es de
decisão p o ssam utilizar o con h ecim en t o cien tífico e técn ico com o
ferram en ta para alcan çar fin s, os qu ais são absolu tam en t e in depen ­
d en t es d esse con h ecim en to.
O m od elo pragm ático con sist e em estabelecer estru tu ras de
n egociações en tre diferen tes espécies de in terlocu tores, algu n s
técn icos, ou t r os n ão, de m an eir a a determ in ar, de m an eir a pr ag­
m ática, m as p or m eio de n egociações sociopolíticas, as decisões
qu e se deseja t om ar. E claro qu e, em sem elh an t es n egociações,
deve-se con ferir u m lugar im portan te aos cien tistas e especialistas
de t od os os tipos, m as os sim ples “con su m id or es” e ou t r as p essoas
218 GÉRARD FOUREZ

im p licad as teriam sem dú vida u m a op in ião im por tan te a d ar


tam bém .

A tecnologia como política de sociedade

O s par ágrafos preceden tes pod em ter d ad o a im p r essão a


algu n s leitores de qu e o m od elo tecn ocrático era ruim , en qu an t o
q u e o pragm ático-político seria o bom . U m a tal con clu são colocaria
graves p r ob lem as. C o m efeito, h á situ ações em qu e o m od elo
tecn ocrático é bastan te razoável. Se su b o em u m avião, prefiro qu e
as d ecisões sejam deixadas ao tecn ocrata qu e é o piloto. E o m esm o
ocorre em relação ao cirurgião, se estou em u m a m esa de operação.
A p e sar d isso, existem ou tras situ ações em qu e u m apelo à tecn o­
cracia pareceria est r an h o; n ão se vê, p o r exem plo, por qu e caberia
a esp ecialistas determ in ar o itin erário de u m gr u p o q u e p asseia.
O exem plo d o avião e de seu piloto in dica qu e, qu an t o m ais
se d ep ar a com tecn ologias com plexas (sejam elas in telectuais ou
m ateriais), m ais as lin h as “razoáveis” de ação são det er m in adas
pelas pr óp rias tecn ologias e, p or con segu in te, deverão ser defin idas
p o r especialistas. D esse m od o, parece qu e as tecn ologias n ão são
n eu tr as. N ão são m er os in st ru m en t os m ateriais, m as t am bém
or gan izações sociais. P ara retom ar o exem plo d os m eios de t r an s­
porte, é eviden te qu e, con form e se viaja a pé, de carro, de trem ,
avião etc., deve-se aceitar ou t r as m an eir as de viver em con ju n t o.
U m a tecn ologia, portan to, n ão é som en t e u m con ju n t o de
elem en t os m ateriais, m as tam bém u m sistem a social. Cer t os
ap ar elh os, aliás, p od em se tor n ar absolu tam en t e in úteis n os p aíses
em d esen volvim en t o qu e n ão p ossu em as in fra-estruturas sociais
e cu ltu rais qu e eles im plicam .
A s escolh as tecn ológicas deter m in am o tipo de vida social de
u m gr u po: u m a sociedade p od e se tor n ar m ais ou m en os tecnocrá-
tica d e acor d o com o tipo de tecn ologia qu e ela con st rói par a si.
A ssim , com o vim os, u m sistem a de pr od u ção de en ergia cen trali­
zado leva a u m certo tipo de sociedade; diga-se de passagem qu e
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 219

u m tipo p ou co cen tralizado perm itiria ou t r os t ipos de organ ização


social.
A escolh a d as tecn ologias n ão é port an to som en t e u m a escolh a
de m eios n eu tros, m as u m a escolh a de sociedade. N ão é est r an h o
en tão qu e, q u an d o se con sid er am as tecn ologias, raram en te se
exam in e a organ ização social à qu al con du zem ?
A n ão-n eu tralidade d as tecn ologias m ateriais, com o os m eios
de t ran spor te ou a in form ática, é qu ase eviden te. Porém , as
tecn ologias in telectuais qu e são as ciên cias t am bém det er m in am
or gan izações sociais. U m a sociedade qu e ad ot ou a física com o
tecn ologia in telectual será obrigada a estruturar-se de m an eira a qu e
as p esso as ap r en d am essa ab or d agem d o m u n d o e ab an d on em
ou t r as. E, de acor d o com a m an eira pela qu al as p essoas com pr een ­
d er em as ciên cias, elas deverão em m aior ou m en or m edida
recorrer aos especialistas. E aí qu e se revela o papel social d aqu ilo
q u e se ch am a de “vulgarização cien tífica”.
Existe u m debate em n o ssa sociedade a r espeito d a p ossib ili­
d ad e de u m con dicion am en t o d a existên cia in dividual e social pelas
tecn ologias. Algu n s, basean do-se em u m a r epr esen tação q u e per­
m ite sep ar ar a t ecn ologia com o tal de su as aplicações con cretas,
m in im izam esse con d icion am en t o, r essalt an d o qu e as tecn ologias
est ar iam à d isp osição de h om en s e m u lh eres, ten do estes qu e
decidir, de acor d o com su a ética, sobr e a m an eira pela qu al as
utilizar. O u t r os, pelo con trário, in sistirão sobr e a m an eira pela qu al
as tecn ologias acarretariam m ais d o qu e u m con dicion am en t o: elas
determ in ariam a pr ópria vida. D e acordo com os prim eiros, h averia
m il m an eir as de utilizar as cen trais n u cleares ou a in form ática,
en q u an t o os segu n d os preten dem qu e essas tecn ologias telecom an ­
d em as estru tu ras d as sociedades qu e as adotam . Para os pr im eir os,
a tecn ologia p od e ser sep ar ad a d as estru tu ras sociais n as q u ais se
in sere, en qu an t o, par a os segu n d os, ela já veicula estru tu ras de
sociedade.
E geralm en te ad m it id o qu e u m a in teração en tre as técn icas e
a ética d as socied ades qu e as utilizam pod e fazer com q u e as tec­
n ologias m u d em con cretam en te de u m lu gar par a ou tro. Falar de
220 GÉRARD FOUREZ

u m d et er m in ism o total seria sem dú vida abu sivo. D e m an eir a con ­


creta, porém , as p essoas percebem qu e têm de se adaptar, de b om
ou m au grado, às tecn ologias, e qu e estas acabam p or ditar a m an ei­
ra pela qu al elas devem t rabalh ar e viver. A ssim , q u an d o se in for­
m atiza u m a em presa, a oper ação n ão é apr esen t ada com o u m a sim ­
ples p ossib ilid ad e para os t rabalh ad or es: m ostra-se-lh es qu e eles
têm de se adaptar às exigên cias d as técn icas m od er n as. D o m esm o
m od o, se u m país ad ot a a eletricidade n uclear, faz-se observar qu e
é pr eciso ad aptar em con seqü ên cia a su a polícia e o seu sistem a de
segu ran ça e de proteção, a fim de evitar as sabotagen s. Dian te disto,
o d iscu r so qu e preten de sep ar ar as tecn ologias de su as aplicações
parece vazio, p ois o d iscu r so con creto m ostr a qu e é pr eciso adaptar
o seu m od o de vida con d icion ad o à tecn ologia.
O m esm o ocorre em relação ao con h ecim en to. A ad aptação de
n o sso s m od os de con h ecim en t o à estru tu ra d a ciên cia m od er n a
n ão é percebida com o u m a possib ilid ad e d eixad a à livre escolh a;
ela é p elo con trário ap r esen t ad a com o u m a n ecessidade con creta,
caso se qu eir a m an ter o seu lu gar n a sociedade. Felicitar-se pelos
b en efícios vin d os d esse espír it o cien tífico seria en gan ar-se, e n ão
perceber qu e o qu e é ped id o é u m a adaptação a u m m od o particular
de con h ecer imposto pelo sistem a d o sab er cien tífico e o ab an d on o
de ou t r as m an eir as de saber. D a m esm a for m a q u e par a as tec­
n ologias m ateriais, isto n ão sign ifica qu e a ciên cia determ in e total­
m en te a liberd ade de con h ecer, a pon t o de elim in á-la, m as ela está
sem dú vida ligada a u m a coerção. Isto é verd ade n os p aíses ocid en ­
tais em qu e esses saber es cien tíficos n ascer am e on d e são co-natu-
rais à cultura local; é ain d a m ais exato n os países em desen volvi­
m en to, on d e a coerção vin d a d o exterior é m ais m an ifesta.

A vulgarização científica,
efeito de vitrine ou poder?

C aso se con sid ere a articu lação en tre a política e a ciên cia
segu n d o o m od elo pragm ático, o debate (os d iálogos e n egociações
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 221

en tre o s técn icos e os n ão-técn icos) é fu n dam en t al. Ê n essa per s­


pectiva qu e a vu lgarização cien tífica assu m e gr an de im portân cia.
H á d u as m an eir as d e com pr een der a vulgarização cien tífica. D e
acor d o com u m a, a vulgarização con siste em u m a oper ação de
relações pú b licas d a com u n id ad e cien tífica, qu e faz qu est ão de
m ostr ar ao “b om p o vo” as m aravilh as qu e o s cien tistas são capazes
de produzir. U m b om n ú m er o de t r an sm issões televisivas ou
artigos de vu lgarização p ossu em esse objetivo. A fin alidade d essa
vu lgarização n ão é t ran sm it ir u m verd adeiro con h ecim en to, já qu e
ao fin al d a t r an sm issão a ú n ica coisa qu e se sabe com certeza é qu e
n ão se com pr een d e gr an d e coisa. Esse tipo de vu lgarização con fere
u m certo “vern iz d e sab er ”, m as, n a m ed id a m esm o em qu e n ão
con fere u m con h ecim en t o qu e perm ita agir, dá u m con h ecim en t o
factício; é u m sab er qu e n ão é, pr opriam en te falan do, n en h u m , já
qu e n ão é poder .
N a segu n d a perspectiva, pelo con trário, a vu lgarização visa a
con ferir às p essoas u m certo poder. Esse tipo de vu lgarização
forn ece às p essoas u m certo con h ecim en to, de m an eir a qu e elas
p o ssam dele se servir. A ssim , h á com o d ifu n d ir u m a in form ação
relativa às cen trais n u cleares a fim de perm itir à p opu lação local
escolh er com m elh or es fu n d am en t os se ela q u er ou n ão u m a
cen tral n ucelar. O u , p or ou tra, h á m eios de d ar aos pacien tes
con h ecim en t os m éd icos suficien tes par a qu e eles p o ssam determ i­
n ar se aceitam ou n ão d et er m in ad o tratam en to. Pode-se t am bém
pr od u zir u m cu r so sobr e a eletricidade qu e perm ita com pr een d er
o fu n cion am en t o de u m fusível. Esse tipo de vu lgarização cien tífica
con fere u m verdadeiro con h ecim en to, n o sen t id o de qu e a repre­
sen tação d o m u n d o p o r ele forn ecid a perm ite agir. A ju d a t am bém
os n ão-especialistas a n ão se sen tirem in teiram en te à m ercê d os
especialistas.
Em u m a socied ade fortem en te b asead a n a ciên cia e n a tecn o­
logia, a vu lgarização cien tífica tem im plicações sociopolíticas bem
im portan tes. Se o con ju n t o da pop u lação n ão com pr een de n ad a
de ciên cia, ou se per m an ece m u da de adm iração dian t e d as
m aravilh as qu e pod em realizar os cien tistas, ela será p ou co capaz
222 GÉRARD FOUREZ

d e participar d os debat es relativos às decisões qu e lh es dizem


r espeito. Se, pelo con trário, a vulgarização cien tífica d er às p essoas
con h ecim en t os su ficien tem en te práticos par a qu e elas p o ssam
p on d er ar sobre as decisões com m elh or con h ecim en t o de cau sa,
ou pelo m en os saber em qu e “especialista” eles p od em con fiar,
essa vu lgarização é u m a t r an sm issão de poder.
A vu lgarização cien tífica é con stitu ída pr in cipalm en t e por
t rad u ções de represen tações. C o m freqü ên cia, aqu ilo de qu e as
p essoas n ecessitam para participar de m an eir a sign ificativa n os
d eb at es ou n as decisões qu e lh es dizem respeito n ão é tan to de
con h ecim en t os técn icos especializados. E in útil com pr een d er a
qu ím ica par a com pr een d er as van tagen s e in con ven ien tes d as
asp ir in as. E in útil con h ecer a resistên cia d o s m ateriais par a saber
utilizar u m m artelo. N ão obstan te, con h ecer certas p r op r ied ad es
d o s alim en t os pod e perm itir qu e eles sejam ad q u ir id os de m an eir a
m ais satisfatória. O u ain da, sab er as vu ln er ab ilid ad es à sabotagem
d as cen trais n ucleares p od e perm itir a u m a pop u lação qu e decida
com m elh or con h ecim en t o de cau sa. Para ser u m in divíduo*
au t ôn om o e u m cid ad ão participativo em u m a sociedade altam en te
tecn icizada deve-se ser cien tífica e tecn ologicam en te “alfabetizado”
(cf. W ak s, em Fourez, 1986). Sem certas r epr esen tações qu e
perm item apr een d er o q u e está em jogo n o d iscu r so d os especia­
listas, as p essoas arriscam -se a se verem tão in d efesas q u an t o os
an alfabetos em u m a sociedade on d e rein a a escrita.
A p ossib ilid ad e de vulgarizar os con h ecim en t os cien tíficos
d ep en d e t am bém da estru tu ra destes. Para algu n s, é fácil obter
in form ações sim p les q u e con st it u am u m sab er oper acion al útil.
O u t r os, pelo con trário, são est r u tu r ados de m an eir a tão com plexa
qu e é q u ase im possível com preen dê-los se n ão se tem n en h u m
con h ecim en t o prévio.
Se con sid er ar m os o s p ar ad igm as d as gr an d es d iscip lin as tradi­
cion ais, con st at am os qu e algu n s se en con t r am em con tato m ais
dir et o d o qu e ou t r os com a vida cotidian a. D esse m od o, a fisica
com a eletricidade, a óptica, a fisica estática, a d in âm ica est u da
fen ôm en os qu e se pod e en con t r ar e ter de lidar n a vid a com u m .
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 223

O m esm o ocorre com a biologia. Essas d u as d iscip lin as utilizam


u m certo n ú m er o d e con ceitos b ásicos qu e são freqü en tes n a
existên cia cotidian a. Em con trapartid a, a qu ím ica p o ssu i pou cos
con ceitos b ásicos qu e sejam op er acion ais n a vida cotidian a. Q u al­
q u er u m utiliza p or vezes em su a vida u m a alavan ca, con ser ta u m
fusível, d ifu n d e calor, cu r a u m a gripe, oxigen a-se etc.; bem p ou cos
por ém efetu am oxido-redu ções. M esm o qu e o n o sso m u n d o seja
m old ad o pela qu ím ica in du strial, a qu ím ica é bem m en os utilizada
n a vid a cotidian a d o q u e a fisica, a biologia ou a m atem ática.
P oderia ser qu e essa característica d a qu ím ica explicasse p or qu e os
q u ím icos parecem , às vezes, m ais d o qu e ou t r os, desin teressar-se
d as in terações en tre os seu s con h ecim en tos e os p r ob lem as d a
sociedade?
Se m em b ar go, q u alq u er qu e seja o p ar adigm a, escolh er en tre
u m a vu lgarização “efeito de vitrin e” ou “t r an sm issão d e pod er
social”, n ão se trata de u m a escolh a cien tífica, m as d e u m a op ção
sociopolítica, even tu alm en te gu iada p or u m a ética. U m a escolh a
en gen d r ar á u m a sociedade tecn ocrática com pou ca liber dade, a
outra perm itirá ao s cid ad ãos tom ar decisões em relação à su a
vida in dividu al e a su a existên cia coletiva. O m ovim en to Science,
Technology & Society,1 (STS) particu larm en te ativo n o n orte da
Eu r op a e n os países an glo-saxões, ten ta pr ecisam en te pr om over
u m a articu lação fecu n da d esses três com pon en t es.

Resumo

O con h ecim en t o en gen d r a o p od er ; o p od er , a p o ssib ilid ad e d e d ecisão


(r ecu r so à política e / o u à ética).
D u p lo sen t id o d e “política cien tífica”: a) p olítica p ara as ciên cias (p o n t o
d e vista d o s cien t istas e su b síd io); b) política pelas ciên cias (p o n t o d e vista
d o s p olíticos e tecn ocracia).

1 Em in glês n o or igin al. (N. T.).


224 GÉRARD FOUREZ

M odelos tecnocrático, decision ista e pragm ático-político


de H aberm as:

1 tecnocrático: as ciên cias e técn icas (os especialist as) d et er m in am as


políticas;
2 decisionista: o s con su m id or es d eter m in am o s fin s, o s técn icos, o s
m eios;
3 pragm ático-político: in terações e n egociações en tre “esp ecialist as” e
“n ão-especialistas”.

O abuso de saber dos especialistas

A q u e le s q u e pr et en d em determ in ar as p olíticas (ou as éticas) gr aças às


ciên cias e t ecn ologias com etem “ ab u so d e sab e r ”, ao ocu lt ar as d ecisões
par ad igm áticas.
M e sm o in t er d iscip lin ar , a tecn ocracia t en d er á a fu n cio n ar co m o u m só
p ar ad igm a. A lém d isso , as n egociações sociop olít icas n ão ser ão e st r an h as
ao acor d o con clu íd o en tre o s especialist as.

Distin guir entre os fin s e os meios, os valores e as técn icas?

In t er esse d o m od elo d ecision ist a (p o ssib ilid ad e d e se recor r er a com p e­


t ên cias sem lh es con fer ir t od o o poder); su a d eb ilid ad e: n egligen ciar a
in flu ên cia d o s m eios sob r e o s fin s e sob r e a or gan ização social.

Exem plo: program as de ensino

Q u e m atem ática e n sin ar n o secu n dário.7 A d ecisão cab e ao s m atem áticos


(en foqu e tecn ocrático)? A u m a eq u ip e in t er d iscip lin ar d e esp ecialist as
(idem )? A s n egociações sociop olít icas segu id as d e u m r ecu r so a m at em á­
ticos e p ed agogos p ar a a ap licação (en foq u e d ecision ista)? N ego ciação
en tr e o s difer en tes t ip os d e in ter locu tor es (m od elo pr agm ático)?

A tecnologia com o política de sociedade

C e r t as sit u ações p ost u lam o m od elo tecn ocrático, ou t r as n ão...


Q u an t o m ais com p lexas são as tecn ologias, m ais elas ficam n as m ãos de
esp ecialist as. A s escolh as d e tecn ologias são p or t an t o escolh as d e socie­
d ad e. D aí o p ap el social d a vu lgar ização cien tífica.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 225

A v u lgariz ação cien tifica, efeito de vitrine ou poder?

Im p o r t ân cia d a vu lgar ização n as n egociações en tr e técn icos e n ão-tecn i-


cos. A vu lgarização-vitrin e d á ap en as u m a ilu são d e con h ecim en t o, sem
p od er . A vu lgarização “cien tífica” forn ece o m eio d e u tilizar e d e con t r olar
cer tos efeitos d a técn ica. Ela é con stitu íd a pr in cip alm en t e p o r “t r ad u ções”
e p or r epr esen tações q u e se ab r em para a exist ên cia e p er m item p ar ticip ar
n o s d eb at es sociop olít icos.

Palavras-chave

M od elo t ecn ocr át ico/ m od elo d e cisio n ist a/ m od elo p r agm át ico- p olít ico/
política cien tífica (2 se n t id o s)/ vu lgar ização cie n t ífica/ efeito d e v it r in e /
S T S / t ecn ocr acia in t e r d iscip lin ar / tecn ologias co m o or gan ização so c ia l/
t om ad or d e d e c isõ e s/ e sp e c ialist a/ t é c n ico / esp ecialid ad e.
C A P Í T U LO 10

IDEALISMO E HISTÓRIA HUMANA

Os enfoques idealista e histórico

A o falar m os d e ciên cia ou de ética, d istin gu ir em os d u as


atitu des. U m a, ch am ad a idealista,1 caracteriza-se pela aceitação de
n or m as u n iversais e etern as qu e determ in am de qu e m od o é c deve
ser o real. A outra, d en om in ad a histórica, vê n as con figu rações
assu m id as pela ciên cia e pela ética o r esu ltado de u m a evolução,
qu e n ão obed ece n ecessar iam en te a leis etern as.
Para os idealistas, a am izade, a justiça, o rigor, a saúde, a fam ília,
a ciên cia, a razão, o desen volvim en to, o am or, a sexu alidade etc.
são idéias etern as d as qu ais se apr oxim ar ão, n a m edida do possível,
as r ealidades con cretas qu e lh es cor r espon d em em n ossa h istór ia.
A ssim , o s idealistas ten d er ão a falar d a “verd ad eira” am izade, ou
d a “ver d ad eir a” fam ília, su b en t en d en d o com isto u m a n or m a à

1 N est e con text o, o ter m o ser á u tilizado d e m an eir a técn ica; n ão cor r esp on d e à acepção
u su al d o co t id ian o, em q u e se fala d e u m id ealist a q u an d o se co n sid er a algu ém q u e
é par t icu lar m en te gen er oso.
228 GÉRARD FOUREZ

qu al é pr eciso sem p r e referir-se caso se fale de am izade ou de


fam ília. Para os “h ist ór icos”, pelo con trário, essas n oções são
represen tações qu e o s h u m an os se d eram h istoricam en te, são
r esu lt ad o d a h istór ia h u m an a e d est in ad os a descrevê-la e perm itir
a su a con tin u ação.
D ist in gu ir em os d esse m od o três term os, qu e utilizarem os com
u m a pr ecisão técn ica: os de “n oção” , de “ idéia” e de “con ceit o”.
Essa d istin ção n ão é u n iversal en tre os filósofos, m as parece-m e
útil par a a exposição qu e se segue.

Noção, idéia, conceito

Para defin ir a d istin ção (eviden tem en te con ven cion al) en tre os
term os de “n oção”, “id éia” e “con ceit o”, darei pr im eir am en te três
exem p los d o fu n cion am en t o d esses term os. A ssim , dir-se-á qu e se
tem u m a certa noção d o qu e são o t rabalh o de can alização, a fam ília
e a física. A lgu n s d ir ão t am b ém qu e, para ver se r ealm en te se am a,
é pr eciso com p ar ar o seu com p or tam en t o com a idéia d o am or. E,
en fim , em todas as ciên cias, tan to n a psicologia com o n a física,
utilizam -se conceitos em sen t id os precisos e d efin id os (com o os de
inconsciente e de elétron).
Utilizarei port an to o t erm o de noção em u m a acepção bast an t e
pr óxim a d o sen tido com u m , com o qu alqu er u m diz: “T e n h o n oção
de m atem ática”. En ten de-se por isto qu e o su jeito p ossu i u m certo
con h ecim en to, qu e ele sab e d o qu e “se” fala, m esm o qu e o seu
sab er n ão u lt r apasse a com pr een são com u m .
I Se algu ém diz qu e com pr een de a n oção d e “fam ília”, ou de
“sap at ar ia” , en ten de-se por isto, em geral, qu e ele p o ssu i u m a
r epr esen t ação m ais ou m en os vaga d a coisa, sem qu er er ir m ais
lon ge. N est a obr a, falarei de n oção q u an d o n ão qu iser precisar se
aq u ilo de qu e falo é in terpretado p or m eio de “id éias” ou de
“con ceit os”. A ssim , pode-se dizer qu e t od os p ossu em u m a n oção
d o qu e é u m a m u lh er ou um h om em . Isto n ão im plica ain d a
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 229

n en h u m a teoria ou ideologia sobr e o qu e seria a “fem in ilid ad e” ou


a “m ascu lin id ad e”.

Utilizarei o term o idéia qu an d o se tratar de apr esen t ar u m a


n oção con sid er ad a com o exist in do para t odo o sem pre. Se, por
exem plo, falo de “id éia” de sexu alidade h u m an a, en ten derei qu e
aqu eles qu e se servem d o term o con sid er am qu e a sexu alidade
h u m an a é d efin ida de m an eira u n iversal ou etern a. D o m esm o
m od o, algu ém pod er ia falar, n esse sen tido, d a idéia d o am or. M as,
d e m an eir a geral, n in gu ém procu rará fazer d a n oção de “sap at ar ia”
u . 1 ,. >1
u m a ideia .
O qu e caracteriza a utilização de “id éias” (n o sen t ido técn ico
aqu i ap r esen t ad o, p ois n a lin gu agem com u m pode-se dizer: “T e ­
n h o u m a certa idéia” n o m esm o sen tido em qu e se fala aqu i
“T e n h o u m a certa n oção”) é o seu fu n cion am en t o com o n or m a.
Assim , q u an d o se diz qu e “isto n ão é u m a verdadeira am izade” , a
m aioria d as p essoas referem-se a u m a idéia de am izade, p ois
con sid er am qu e a am izade se en con tr a defin ida de u m a vez por
todas.
Em n ossa cultura ociden tal, a n oção de idéia ligou-se a u m m ito
bem con h ecid o apr esen t ad o por Platão: o m ito da cavern a. Platão
com p ar a o n o sso m u n d o à visão qu e teriam dele p r ision eir os
acor r en tad os em u m a cavern a. Eles só p od em ver a pared e em
fren te a eles. Sob r e essa parede aparecem , com o n u m a p r ojeção de
u m teatro de so m b r as ch in ês, as so m b r as d as p essoas e ob jet os
qu e p assam en tre as su as costas e o fogo. O s p r ision eir os, ven d o
essas so m b r as e ap en as elas, tom am -n as p or ob jet os reais. D o
m esm o m od o, n ós só veríam os as som b r as d as idéias etern as.
Para Platão, o qu e existiria etern am en te ser iam as “id éias” (as
d o q u ad r ad o, da ju st iça, da h u m an id ad e etc.), e elas estariam
en carn ad as n os qu ad r ad os, ju stiças e n os h u m an os qu e n ós vem os.
Por m eio deles p od em os adivin h ar o qu e são as idéias etern as, m as
con stitu em ap en as u m reflexo d as m esm as. A s idéias etern as
in dicam o qu e deveriam ser u m qu ad r ad o “ideal”, u m a ju stiça
“ ideal” , u m h u m an o “ideal” .
230 GÉRARD FOUREZ

En fim , falarei de conceito q u an d o se tratar de pr ecisar u m a


n oção em u m det er m in ad o par adigm a (sem pre con ven cion al).
A ssim , q u an d o, em u m d ad o âm bito teórico ou axiom ático, d efin o
o qu e é u m qu ad r ad o, con st r u o u m con ceito. A ssim t am bém , os
sociólogos for m ar ão o “con ceito” de fam ília; par a tan to, aceitarão
a ab or d agem sociológica e, n esse con texto, pod er ão obter u m a
defin ição relativam en te precisa. O u , ain da, em u m a sociedade on d e
se calçam sap atos, pode-se con st ru ir o con ceito de “ sap at ar ia"; isto
seria feito m edian te u m a convenção, n a qu al se decidirá se este
con ceito recobre ou n ão a fabricação de galoch as. D e igual m od o,
pode-se con st ru ir u m con ceito de “am or ”. Para isto, será n ecessár io
defin ir, em u m âm b it o preciso, o qu e se en ten de p or essa n oção.
| Q u e diferen ça h á en tre falar de con ceitos ou de idéias? Q u an d o
se fala de idéias, su põe qu e, de u m a vez p or t odas, está defin id o
etern am en te o qu e se com pr een de p or essas n oções. Se con sid er o
a n oção de vida, preten der qu e é u m a idéia é o m esm o qu e afirm ar
q u e essa n oção existe em u m a espécie de “céu d as id éias”; pelo
con trário, pret en d er qu e é u m con ceito con sist e em rem eter ao
p r ocesso h istórico pelo qu al, em u m a d ad a cultura, se criou u m
ter m o par a d istin gu ir o qu e, desd e en tão, se ch am ar á de “vivo” e
de “n ão-vivo”. E por isso qu e, par afrasean do Tou r ain e, pode-se
dizer qu e falar de idéias é referir-se a u m a sociologia dos deuses, ou
seja, a in st ân cias legitim adoras etern as, qu e dir ão o qu e são as
coisas (Tou r ain e, 1975). Pelo con trário, falar de con ceitos é torn ar-
se con scien te de qu e eles podem ser m od ificad os, u m a vez qu e
for am con st ru íd os.
Se, p o r exem plo, m e refiro à idéia de “m u lh er ” , p r essu p on h o
u m a r epresen tação qu e m e diz o qu e é u m a m u lh er ; essa r epr esen ­
tação ten de a se tor n ar n orm ativa e p assa a in d icar às m u lh er es de
q u e m od o elas devem agir. Se digo qu e a n oção de “ m u lh er ” é u m
con ceito, faço com qu e se reflita sobr e o fato de qu e a represen tação
qu e t em os d a m u lh er liga-se à m an eira precisa pela qu al u m a
cu ltu ra se forjou esse con ceito. D esse m od o, pode-se falar d o
con ceito b u rgu ês d a m u lh er, d aqu ele existen te n a cultura d o s
Ban t os, e assim p or dian te. N ão existe m ais u m a “idéia” etern a
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 231

qu e deveria ser o d en o m in ad or com u m ; pelo con trário, a n oção


de m u lh er su rge com o u m a m an eir a particular de falar d e u m a
d istin ção presen te em u m a det er m in ada cultura.
D o pon t o de vista cien tífico, se utilizo a n oção de “célu la” ou
de “elétr on ”, com o u m a idéia, isto sign ifica qu e con sid er o qu e esse
term o se refere a u m a realidade defin id a de m an eir a absolu ta,
in d epen d en t em en te d o s h u m an os qu e falam . Já se m e refiro a eles
com o u m con ceito, isto sign ifica qu e aceito qu e essa represen tação
só p ossu i sen t id o n o con texto em qu e ela se revela útil. D o m esm o
m od o, o term o “Ter r a” é u m a n oção qu e estará ligada ao par adigm a
da geologia; porém , essa d isciplin a redefin irá par a si u m con ceito
de “T er r a” (o m esm o vale para t od os os “ob jet os” qu e são
con sid er ad os p or algu n s com o “d efin in d o” u m a disciplin a).
T o m e m o s u m ou t r o exem plo com b ase n a n oção de “com a” .
Ela é relativam en te clara: de acor d o com o Lar ou sse, refere-se a
u m a espécie de “so n o pr ofu n do, d ep r essão física pr óxim a da m orte
cm con seqü ên cia de u m a d oen ça ou ferim en to grave” . N ão o b s­
tan te, essa n oção con tin u a sen do vaga; é p or esse m otivo, par a criar
u m a lin gu agem m ais oper acion al, qu e os m édicos a r edefin irão em
u m con ceito qu e fará referên cia a várias teorias. M u itos, n o
en tan to, ao in terrogarem u m m édico pergu tan do-lh e “N a verdade,
o qu e é o com a?”, su p õem qu e o “com a” existe com o tal, q u an d o,
n a m edicin a, trato-se de u m con ceito teórico destin ad o a exprim ir-se
de m an eir a clara n os d iagn óst icos e em b u scas de t erapias. Algu ém
qu e visse n a n oção de “com a” u m con ceito colocaria ao m édico a
segu in te qu est ão: “Em m edicin a, o qu e se en ten de exatam en te pelo
con ceito de ‘com a’?”
Su ced e o m esm o com a palavra “saú d e”. A n oção é clara em
n o ssa cultura. D efin ir o seu con ceito exige t oda u m a elabor ação
teórica. M u itos acreditam qu e o con ceito de “b oa saú d e” p ossu i
u m a defin ição (u m a idéia) etern a e ú n ica, q u an d o, n a verd ade, de
acor d o com o con texto teórico ou par adigm át ico n o qu al ele é
utilizado, p od e rem eter a sign ificações bem diversas.
E n o cam p o d a estatística, todavia, qu e o sign ificado da
d istin ção en tre u m a n oção e u m con ceito assu m e o m aior relevo.
232 GÉRARD FOUREZ

Se, p o r exem plo, quer-se produ zir estatísticas sob r e o n ú m er o de


d esem p r egad os em u m a cidade, parte-se de u m a n oção. Porém ,
d esd e qu e se qu er com eçar a ser m ais preciso, é-se ob r igad o a
defin ir, graças a lim a elabor ação teórica, ela m esm a deter m in ada
pelo projeto qu e se p ossu i, u m con ceito de “d esem p r egad o”. N est e
caso, vê-se bem com o o “p r ojet o” in flu en ciará o esqu em a teórico
q u e perm itirá defin ir o con ceito. Era assim qu e, n o sécu lo XIX, os
con ceitos defin idores d as estatísticas de export ação de u m país
eram d et er m in ad os pela n ecessid ad e de avaliar o r ecebim en to d os
direitos alfan degários. H oje as coisas são diferen tes. Daí provém ,
aliás, a dificu ldad e de se utilizar a estatística fora d o s pr ojetos para
a q u al foi elabor ada: os “ob jet os” de qu e falam n ão são fixos, já
qu e d ep en d em d a defin ição d os con ceitos.
Q u an d o n ão se está aten to para a m an eir a pela qu al as n oções
são vagas, arrisca-se a se dep ar ar com p r ob lem as pr oven ien tes da
m á defin ição de con ceitos. D esse m od o, q u an d o se diz qu e a
situ ação de relações técn ico-econ ôm icas de “estreita especialização”
en tre o h om em e a m u lh er “n ão tem paralelo algu m n o m u n d o
an im al” (cf. Leroi-Gou rh an , 1970), é claro qu e ao qu e se visa com
essa p r op osição só se su sten ta se os con ceitos de “estreita especia­
lização”, de “p ar alelo” são bem defin id os. For a d esse con texto, é
ób vio qu e se pode con ceber par alelos en tre as especializações
h u m an as e an im ais.
N a perspectiva “idealista”, procura-se sem pre alcan çar a idéia,
tal com o existen te em si m esm a; a ciên cia n ão escap a d isto. N a
verd ade, d e u m p on t o de vista h istórico, con sidera-se qu e a ciên cia
con st r ói par a si con ceitos úteis t en d o em vista d et er m in ad os
pr ojetos, sem pr ocu r ar se apr oxim ar d a n oção qu e, de m an eir a
ab solu ta, se apr oxim ar ia d a “realidade em si, tal com o expr essa n as
id éias”.
N ão acreditar n as idéias etern as n ão sign ifica qu e n ão se
n ecessite precisar aqu ilo de qu e se fala, ou seja, con stru ir con ceitos.
Se falo d e p ássar os, precisarei de u m a d efin ição válida em u m
âm b it o d et er m in ad o (fala-se en tão de defin ição “p on t u al”); porém ,
ser á p o r m eio de u m a d efin ição prática qu e escolh er em os, de
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 233

acor d o com n osso s pr ojetos, efetuar ou n ão u m a distin ção en tre


os “p ássar o s” e os “m or cegos”. A distin ção será or ien tada p or
aq u ilo qu e n os parece im portan te em n o sso u n iverso. Para o
idealista, é “em si” qu e a distin ção deve ou n ão se efetuar.

Crítica do idealismo

N ão m e parece possível d em on st r ar qu e n ão existem idéias


etern as. Afin al, pod er ia h aver idéias d o qu e seriam desde sem pre
e par a sem p re a fam ília, a ju stiça, o am or, o h om em , a m u lh er etc.
(sem elh an t es idéias pod er iam basear-se em D eu s, n a Natu reza etc.
“d e u se s” n o sen t id o de Tou r ain e).
N ão obstan te, é difícil crer n a existên cia de tais idéias, n a
m ed id a em qu e se vê o m u n d o e as in stituições evoluir h istorica­
m en te e, p or ou tro lado, on d e tu do parece in dicar qu e as n oções
de fam ília, ju stiça, am or, h om em e m u lh er são m ais con d icion ad as
pela represen tação q u e u m a cultura e época d et er m in ad as se fazem
d elas d o q u e p o r u m a idéia etern a. A r epresen tação qu e fazem os
d o ser h u m an o m ascu lin o é u m exem plo, p or estar fortem en te
con d icion ad a p or n o ssa cultura atual. Q u an d o se p en sa n os
h om en s, m u lh eres, fam ílias, é difícil acreditar qu e as r epr esen ta­
ções qu e lh es são con cern en tes, tão diferen tes de acor do com a
cultura de qu e se fala, são t odas exp r essões de u m a idéia etern a.
Além d isso, o m od o pelo qu al ten d em os, n o O ciden te, a hierar-
qu izar essas r epr esen tações, pr et en den do qu e elas evolu am n a
dir eção d as n ossas, qu e ser iam a pon t a de lan ça d o pr ogr esso,
parece, h oje em dia, cada vez m ais in gên u o. A fam ília n u clear
ocid en t al (p ap ai, m am ãe, crian ças) seria, p or acaso, a m ais
p r óxim a d a idéia de fam ília? H á aí u m et n ocen t r ism o q u e é difícil
de aceitar.
A ssu m ir ei aqu i a h ipót ese de qu e t od as as n ossas repr esen t a­
ções são con ceitos h istor icam en te con st r u íd os em u m d ad o con ­
texto, e p or tan to relativos a esse con texto e n ão ab solu t os.
234 GÉRARD FOUREZ

Tudo se diluiria então no relativo?

Sem elh an t e afirm ação d o con d icion am en t o h istór ico de n o s­


sos con ceitos (observem os qu e falei de u m con dicion am en t o e n ão,
de u m a d eter m in ação à m an eir a determ in ista!) acarreta em algu n s
u m receio de fu n d o afetivo. Se as n ossas represen tações são
relativas, n ão h averia n ad a absolu to? O am or, a ju stiça, a am izade,
e assim p or dian te, seriam sem pre n oções relativas? N ão p assa tu do
a se dilu ir n o relativo? Para r esp on d er a essas qu estões, é pr eciso
ver qu e afirm ar o caráter relativo de algo n ão sign ifica de m od o
algu m qu e se a con sidere com o sem im portân cia. D ois exem plos
p od em m ostrá-lo.
A experiên cia am or osa m ostra qu e o “ relativo” p od e ser m u ito
im portan te. C o m efeito, o fato de qu e algu ém p o ssa en con t r ar
cen ten as, ou m esm o m ilh ares, de par ceir os com patíveis com ele
n ão su p r im e a im por tân cia d o am or. A m ar algu ém é viver u m a
experiên cia essen cialm en te relativa (poder-se-ia am ar m u itas ou tr as
p essoas), m as é ju st am en te o fato de qu e se am a essa p essoa
específica é qu e é im portan te. O d iscu r so qu e pr et en desse con solar
algu ém por u m r om p im en t o am or oso afir m an d o qu e essa p essoa
pod er ia en con trar cen ten as de ou tr as m u lh eres (ou h om en s) soaria
falso. E u m caso típico em qu e u m a experiên cia relativa reveste-se
de u m a im por tân cia crucial. Isto m ostr a qu e a con sciên cia da
relatividade “n ão dilu i t odo o relativo”. E o qu e expr im ia Sain t-
Exu péry q u an d o fazia dizer o P equ en o Prín cipe qu e o im por tan te
em su a rosa n ão é qu e ela fosse absolu tam en t e ú n ica, m as o t em po
qu e ele h avia p assad o em fu n ção dela.
U m ou tr o exem plo da im portân cia d o relativo é o d o cristia­
n ism o. Ele se baseia sobre a fé de qu e é n a relatividade e n o con texto
h istór ico de u m a época e de u m a pessoa, Je su s, qu e o A b solu t o se
m an ifesta. Con t r ar iam en t e a ou t r as cren ças r eligiosas, o crist ian is­
m o n ão se b aseia sobr e u m D eu s abstrato, m as sob r e u m D eu s
qu e se m an ifesta n a relatividade d a h istória. O cr ist ian ism o parece
d esd e en tão com patível com u m en con tr o com o A b solu t o, qu e só
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 235

se efetuaria em exper iên cias sem pre relativas a u m con texto h ist ó­
rico (ain da qu e algu n s cristãos professem u m cristian ism o idealista,
con sid er an d o qu e a “essên cia d o cr ist ian ism o” pod e ser p en sad a
fora de toda relatividade h istórica).
A escolh a en tre u m a abor dagem h istórica e u m a idealista n ão
é u m a sim ples escolh a asbtrata, sem con seqü ên cias con cretas. Se
se acredita, p or exem plo, qu e existe u m a idéia etern a de fam ília,
procura-se d efen der essa idéia con tra tu do e con tra t od os. E
freqüen te, aliás, qu e “id ealistas” defen d am r epresen tações h istor i­
cam en te con tin gen tes acr editan do defen der idéias etern as.
Pode-se pergun tar, além d isso, se o idealism o n ão vai de
en con t r o a u m a ten d ên cia n ossa a “en gar r afar o real”, assegu r an ­
do-n os de qu e ele n ão sairá d o lugar! M u itas p essoas têm dificul­
d ad e em in vestir em algo relativo. E d esse m od o q u e algu n s
parecem ter n ecessid ad e de acreditar qu e a p essoa qu e eles am am
era, d esd e sem pre, a ú n ica qu e eles p od iam am ar , e qu e ela lh es
era d estin ad a. A su p r essão d o caráter relativo de n ossas exper iên ­
cias garan tir-n os-ia, ao qu e parece, u m a espécie de segu ran ça.
A lgu m as p essoas n ecessitam saber se o qu e elas fazem está de
acor d o com u m a m or al etern a, e su por t am com dificu ldade o
p r óp r io p r ocesso h istórico, em qu e n em tu do está segu ro de
an tem ão. Pode-se per gu n t ar se, para algu n s, a n ecessid ad e de dizer
q u e a ciên cia p ossu i u m m ét od o u n iversalm en te válido e ab solu ta­
m en te correto n ão cor r esp on d e a essa m esm a ten dên cia a en con ­
trar o ab solu t o em qu alq u er lugar. A lgu n s d ir ão: “ se se com eça a
dizer q u e a ciên cia é relativa, on d e ir em os parar, n o r elativism o”?
E a eles qu e Prigogin e & Sten gers (1979) cen su r avam n ão p od er
distin gu ir en tre a relatividade d a ciên cia e u m relativism o d esen ­
can tado.
De u m p on t o de vista psican alítico, p od em os n os per gu n t ar se
o d esejo de u m u n iversal ab solu to em n ossas n oções n ão se u n e
ao d esejo de su p r essão de toda ten são e, fin alm en te, a u m d esejo
de m orte. Aliás, d e u m p on t o de vista r eligioso, p od em os n os
per gu n tar se o d esejo de p od er tocar em u m ab solu t o n ão in cor­
p or ad o em u m con texto n ão se ap r oxim a d aqu ilo qu e foi h ist or i­
236 GÉRARD FOUREZ

cam en te ch am ad o de “ idolatria”: o d esejo de ver o ab solu t o em


u m a im agem relativa, r ecu san d o a existên cia de u m a distân cia
radical en tre as im agen s e o absolu to.
Pode-se en fim relacion ar o debate en tre o id ealism o e a
ab or d agem h istórica com as “m etam orfoses d o Espír it o”, de Nietzs-
ch e, p o r u m lado, e a ju stificação pela fé ou as ob r as de São Paulo,
p or ou tro. O idealism o forn ece com efeito as in st ân cias legitima-
d or as etern as d as q u ais tem n ecessidade o espírito-reban h o (“esprit-
ch am eau”) de Nietzsch e (1883- 1953) par a en con t r ar aqu ilo qu e ele
precisa fazer. A ab or d agem h istórica, pelo con tr ár io, ten de a
recon h ecer qu e, n a h istória, escolh e-se sem ter por trás u m a
legitim ação últim a, com o faz a crian ça, segu n d o Nietzsch e. Já
aqu eles qu e crêem em u m a ju stificação por m eio d as ob r as ten dem
a b u scar u m a m oral ab solu ta e idealista, en qu an t o aqu eles qu e
acreditam em u m a ju stificação pela con fian ça ou pela fé aceitam
m ais facilm en te en con trar-se em m eio à in certeza de u m a h istór ia
q u e está sen d o feita (cf. Fourez, 1986).

Uma teoria da construção dos conceitos


do ponto de vista histórico

A fim de com pr een d er de qu e m od o as n oções e os con ceitos


são con st r u íd os e d e qu e m od o fu n cion am , ir em os ad ot ar d ois
en foqu es. Pelo prim eiro, in dicarei com o fu n cion a cada con ceito,
em u m d ad o m om en t o, com o sign o qu e rem ete a toda u m a série
de relatos qu e lh e con fer em a su a sign ificação. Pelo segu n d o, de
q u e m od o os con ceitos são con st r u íd os e evoluem com o con se­
q ü ên cia de m u d an ças da sociedade. N o in ício desta seção, o qu e
será d it o p o d e se aplicar t an to aos con ceitos com o às n oções; n o
fin al, con tu d o, o fu n cion am en t o e a u tilidade da d istin ção en tre
n oção e con ceito ser ão p o st o s em relevo.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 237

Os conceitos e os relatos

P artam os da existên cia, em det er m in ada cultura, d e u m certo


n ú m er o de relatos. A ssim , cor r esp on d en d o à n oção d e am or,
existem h ist ór ias com u m en te n arr ad as. D esd e aqu ela d a prostitu ta
qu e pr ocu r a en con t r ar u m sen t ido par a a vida até a biografia d o s
m ísticos. Esses relatos, eviden tem en te, são con d icion ad os pela
sociedade em qu e se situ am . Perm item qu e os h om en s con tem
t am b ém as su as h ist ór ias (vê-se isto ocorr er com os r om an ces: são
in teressan tes porqu e, p o r m eio d as h ist ór ias qu e con tam , per m i­
tem a cada u m r een con tr ar a su a pr ópria) (Fourez, 1979b ; tam bém
Kem p, 1987).
Para ver com o fu n cion a o vín cu lo en tre os relatos e u m
con ceito, con sid er em os u m adolescen te qu e com eça a viver u m
p r im eir o am or. A n t es d essa experiên cia, os relatos de am or n ão
p ossu em sign ificação para ele. São vazios de con teú d os con cr etos,
assim com o o con ceito de am or (é a época em os adolescen t es
geralm en te zom bam d o s ir m ãos m ais velh os e de seu s en con t r os
am or osos). O cor r e en tão qu e ele com eça a viver u m a experiên cia
sem lh e aplicar a n oção de am or. Diz ter von t ad e de en con tr ar
det er m in ad a garota, julga-a in teligen te, b on ita, en con tra-se “por
acaso” perto dela, n o ôn ib u s, n a sala de au la etc. Vivem u m a certa
relação, m as n ão a percebem por m eio d as categorias típicas d as
h ist ór ias de am or.
D ep ois, u m belo dia, algo pod e vir à ton a, e o jovem dizer:
“Estou ap aixo n ad o .” Esse m om en t o n ão assin ala u m a m u d an ça
m aterial d aqu ilo qu e ele vive, m as a m an eira de lê-lo - e port an to de
vivê-lo - se m odifica: ele lê agora a su a h istór ia com o u m a h istória
de am or. Por u m lado, ele lê o qu e ele vive por m eio d as h istórias de
am or qu e ele ou viu an tes; e, p or ou t r o lado, essas h ist ór ias
com eçam a assu m ir , par a ele, n ovas sign ificações, pois ligam -se
agora à su a pr óp r ia experiên cia. G r aças às ou t r as h ist ór ias, o
adolescen te se t or n a capaz de expr im ir a si m esm o e aos ou t r os
aqu ilo qu e ele vive. G r aças a su a experiên cia, as h ist ór ias gan h am
238 GÉRARD FOUREZ

u m cor po e u m a con sistên cia qu e n ão apresen tavam an tes. A n oção


d e am or com eça ad qu ir ir sen t ido par a ele.
Se, agora, efetua-se u m a certa seleção (sem pre con ven cion al)
en tre o s relatos, d et er m in an d o q u ais ser ão aceitos com o h istór ias
de am o r e q u ais n ão o serão, pode-se com eçar a falar de u m
con ceito: em u m âm b it o preciso, sabe-se a qu e se está referin do
q u an d o se fala de am or. Pode-se dizer m esm o q u e o con ceito de
am o r tira t od o o seu sign ificado d o con ju n t o de relatos qu e lh e
í cor r esp on d e. D efin ir u m con ceito é in dicar qu ais são os relatos
1 qu e lh e cor r espon d er ão (é isto o qu e fazem os b o n s d icion ár ios
q u an d o explicam a sign ificação de u m a palavra: in dicam em qu e
tipo de frase ela p od e ser em pregada!). O s relatos ligados ao
con ceito forn ecem às p essoas as “palavras par a exp r essar ”, as
palavras para falar sobr e a su a pr ópria experiên cia.
^ V ist os d essa m an eira, os con ceitos são bast an t e úteis, ain d a
iq u e se recon h eça o seu caráter fu n d am en t alm en te con ven cion al.
D e u m a cultura a outra, a existên cia será cortada segu n d o ou t r as
regras, for n ecen d o ou t r os con ceitos e ou tr as m an eir as de ler a su a
vida. E, n a m edida em qu e se carecem de relatos para falar d aqu ilo
q u e se vive, faltam “palavras par a dizer”, o qu e faz com qu e n ão se
p o ssa com u n icar a su a experiên cia seja aos ou t r os, seja, p r in cip al­
m en te, a si pr óprio. A au sên cia, em certas culturas, de n oções
p r esen t es em ou tras explica ao m esm o t em po a u tilidade d as
n oções e o seu caráter con ven cion al. A ssim , sabe-se qu e certas
tribos de ín d ios carecem d a n oção de “com eço”; n essas culturas, é
possível falar de sim u lt an eid ade, m as n ão de in ício. Pode-se
con ceber as d ificu ldad es qu e p od em ter d et er m in ad os ín d ios para
en trar n os sistem as de plan ificação h abitu ais aos h om en s b r an cos
(cf. H all, 1959).
Pode-se apreciar t am b ém a eficácia proven ien te d a con st ru ção
de certos con ceitos con sid er an d o o tipo de vida ético qu e se cria
n a m ed id a em qu e n ão se d isp õe de h istórias-tipo par a situ ações
q u e se ju lga n orm al viver. H á u n s 40 an os, por exem plo, n ão h avia,
em n o ssa civilização, relatos par a falar sobr e a am izade en tre u m
h om em e u m a m u lh er; ou a relação era assim ilad a a u m casal -
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 239

casad o ou n ão ou ela era con sid er ad a com o essen cialm en te


fu n cion al. Por falta de relatos, era difícil às p essoas viver aqu ilo qu e
h oje ch am ar íam os u m a am izade h om em -m u lh er; ela era im ediata­
m en te associad a aos relatos existen tes. M esm o h oje, pode-se
perceber a au sên cia de palavra par a falar de u m a p essoa com a qu al
n ão se vive u m a r elação de casal, m as qu e p od e ser m u ito
im portan te. O jor n al Le M onde pu blicou , h á algu m tem po, u m
lon go artigo con sagr ad o à dificu ldade de falar d esses casais qu e n ão
con stitu em u m n o sen t ido pr óp r io da palavra. D e fato, ele m ostr ou
sim p lesm en t e o pr ob lem a qu e se coloca q u an d o n ão existe ain d a
um conceito: o d ia em q u e se sou b er com m aior ou m en or pr ecisão
qu e tipo de relatos se qu er - d ad os os n osso s pr ojetos - selecion ar,
para falar a respeito, n ascer ão u m n ovo con ceito e u m n ovo n om e.
E, ao m esm o tem po, u m n ovo d iscu r so ético formar-se-á. Para
dizê-lo de ou tro m od o, u m a n ova m an eir a de ver as coisas
in trodu zirá u m n ovo con ceito.
O qu e é dito aqu i a r espeito d o s con ceitos d a vida com u m ou
das ciên cias h u m an as é aplicável tam bém aos con ceitos d as ciên cias
n atu rais. Falar de át om o, ou de elétron , ou d e célula, ou de
h ereditariedade etc. é selecion ar ao m esm o t em po u m a série de
relatos qu e d et er m in am a su a n oção; pr ecisar m ais qu e relatos
p od em ser r eu n id os em det er m in ado con texto e em relação a
projetos d et er m in ad os sign ifica defin ir u m con ceito.
E d esse m od o t am b ém qu e se det er m in am con ceitos tais com o
“fazer fisica”, “fazer m atem ática” etc. Trata-se de h ist ór ias qu e
n arr am m an eir as de agir. São essas com u n id ad es cien tíficas, parti­
cu larm en te, qu e decid ir ão sobr e os lim ites aceitáveis par a essas
h ist ór ias e in trodu zirão u m a n orm atividade qu e cor r espon d er á aos
con ceitos.
N a exposição d est a teoria sobr e os con ceitos d efin id os por
relatos, in trodu zi a ch ave d a distin ção feita an teriorm en te en tre
n oções e con ceitos. O qu e os distin gu e n o con texto aqu i defin ido
é q u e falei de “n oção” q u an d o a con ven ção qu e a defin e perm an ece
vaga e im plicitam en te ligada à vida cot idian a; pelo con trário,
q u an d o essa con ven ção é pr ecisada em u m a situ ação e em u m
240 GÉRARD FOUREZ

con texto d et er m in ad os, falei de “con ceito”. Poder-se-ia dizer en tão


q u e o qu e prod u z o con ceito é a n or m ativid ade d a con ven ção
particu lar da lin gu agem . Percebe-se isto n os con ceit os cien tíficos
em q u e a n orm atividade é bem clara... a pon t o de ch egar a justificar
até o fr acasso n os exam es...
Essa teoria d a p r od u ção d as n oções e con ceit os por m eio de
relatos perm ite com pr een der o qu e se p assa em u m d ad o m om en to
(de m an eira sin crôn ica). Perm an ece aberta por ém a qu est ão de
sab er p or qu e certos relatos su rgem em u m a d et er m in ada época, e
pr in cip alm en t e p or qu e se reú n em em u m con ju n t o qu e acabará
p o r det er m in ar u m a n oção e / o u u m con ceito: é o qu e se ch am a
de pon t o de vista diacrôn ico.

A produção social dos conceitos na história

Q u an d o se trata de explicar o n ascim en t o h istórico de n ovos


r elatos, de n ovas n oções, de n ovos con ceitos, de n ovas éticas, d u as
teorias se con fron tam . U m a - tam bém ch am ad a idealista, m as com
u m a ligeira n u an ça em relação à defin ição an terior d o term o -
con sid er a qu e as idéias con du zem o m u n d o. Desta perspectiva,
n ovas n oções podem surgir, seja pelo fato de qu e a lógica d o m u n d o
im plica qu e ch egam n esse m om en to, seja por qu e p en sad or es as
t en h am im agin ad o. En tretan to, dir-se-á qu e essas idéias são o
r esu lt ad o de u m p r ocesso in depen den te d as con dições m ateriais,
econ ôm icas, políticas, culturais etc.; em su m a, com o declarava M ao
T sé Tu n g, qu e elas “caem do céu ”.
A segu n d a perspectiva con sidera qu e as n oções aparecem
geralm en te n o m om en t o em qu e um pr oblem a de sociedade as
tor n a úteis. A ssim , a n oção de polu ição n ão existirá em u m a tribo
qu e vive em u m am bien te pu ro, m as su rgirá d esd e qu e su r jam
p r ob lem as de “p olu ição”.
D o m esm o m od o, a ética d o trabalh o (ou seja, u m a valorização,
d o t rabalh o p or si m esm o, in d epen d en t em en te d o qu e ele produz)
n ão em ergirá em u m a sociedade n a qu al qu em n ão t rabalh a ficaria
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 241

im ed iatam en te sem alim en t o. Ela surgiu pr in cipalm en t e n a socie­


d ad e bu rgu esa, q u an d o se estabeleceu u m a d istân cia en tre o traba­
lh o e as satisfações dele decorren tes. Para colocar de m an eir a m ais
clara, a ética d o t rabalh o n ão deixa de estar ligada ao fato de qu e
era n ecessár io en cor ajar par a o t rabalh o aqu eles qu e tin h am m ais
a im p r essão de trabalh ar par a o seu patr ão d o qu e par a si m esm os.
T am p o u co se falará de casal e se valorizará tais relações a n ão
ser n as socied ad es on d e isto con stitu a u m pr oblem a. Pode-se
r elacion ar m u it os d iscu r sos con tem por ân eos a respeito d o s casais,
d as relações con ju gais, sob r e a satisfação afetiva e sobr e a espiritu a­
lidade d o casam en t o com a crise vivida pelos casais, em u m a
socied ad e on d e a gr an de fam ília tem m en os im por tân cia d o qu e
n o p assad o.
Para dizê-lo ain d a de ou tro m od o, e de m an eira h u m orística,
só se fala d os au sen t es, ou d aqu eles q u e con stitu em u m pr oblem a.
Q u an d o su rge u m a n oção, ela em geral se liga a u m a “falta” qu e
se q u er preen ch er.
O debate en tre as perspectivas h istórica e idealista tem sid o
im portan te d esd e o sécu lo XIX, pelo fato de qu e M ar x su rgiu com o
o cam p eão d a perspectiva h istórica.
U m certo m ar xism o (do qu al se pod e du vidar qu e seja exata­
m en te o de M arx) preten deu qu e as n oções e con ceitos eram apen as
o resu ltado de um d et er m in ism o h istórico cuja ch ave seriam as leis
d a econ om ia. D en t r o desta perspectiva extrem a, t od os os p en sa­
m en tos e ideologias seriam ap en as u m a espécie de su per estr u tu r a
d as estru tu ras econ ôm icas. D ad a u m a situ ação econ ôm ica, seria
possível “dedu zir” de m an eira deter m in ista as n oções pr óp r ias a
essa sociedade.
Essa visão extrem a é sem dú vida o r esu ltado da im por tan te
d escober ta feita por M arx (e ou t r os de su a época): as m an eir as de
p en sar são con d icion ad as pelas situ ações m ateriais e econ ôm icas.
An t es, m u itos acreditavam qu e a evolu ção d as con cepções se fazia
de m an eira paralela m as in depen den t e da evolução m aterial. A
in tu ição de M arx as via u n id as. Daí n asceu a teoria d as ideologias,
qu e ten ta, en tre ou t r as coisas, en xergar os vín cu los en tre a p r od u ­
242 GÉRARD FOUREZ

ção d e certas n oções, de certas n or m as, e m esm o d a ciên cia, e o


d esen volvim en t o econ ôm ico.
Essa in tu ição - esse par adigm a, seria o caso de dizer - perm itiu
com p r een d er m u itas coisas; n ão é de se espan t ar , portan to, qu e
m u it os ten h am sid o t en tad os - com o ocorre cad a vez q u e u m
p ar ad igm a cien tífico se revela eficaz - a t u do reduzir a essa visão.
A in d a m ais por qu e, em últim a in stân cia, o econ ôm ico det er m in a
tu do: a ideologia qu e n ão perm itiria a u m a socied ad e pr od u zir o
q u e é n ecessár io a su a sobrevivên cia logo desapar ecer ia, já qu e
t od o s m orreriam !
H oje, praticam en te t od os o s sociólogos con sid er am qu e as
id eologias são con dicionadas pelas situ ações econ ôm icas e políticas,
m as sem n ecessar iam en te pr eten der qu e elas sejam determ inadas
p o r est as ú ltim as. Adm ite-se, de m an eir a geral, qu e as id eologias
p od em , p or su a vez, con d icion ar o econ ôm ico e o político. H averia
assim relações “dialéticas” (de cau salidade recíproca) en tre o ideo­
lógico, o político e o econ ôm ico. A m an eir a pela qu al esses n íveis
in teragem é com plexa (Alth usser, 1966 e 1974). Ch am ar-se-ão de
in stân cia econômica, in stân cia política e in stân cia ideológica a m an eira
pela qu al esses pólos d a ativ idade h um an a se organ izam em n ossa
sociedade.
O exem plo d a escravatu ra e d o m ovim en to ético qu e levou à
su a ab olição p od e explicar essas relações. A escravatura, n o sul d os
EUA, ach ava-se m an ifestam en te ligada ao m od o de p r od u ção d as
fazen das agrícolas (plan tation s). N o n orte, qu e se in du strializava,
esse tipo de relação social era m en os in teressan te. Por ou tr o lado,
a in du strialização fez in clin ar a b alan ça d o pod er político d o sul
par a o n orte. D e m od o paralelo, certos m ovim en tos - p en sem os
n os quak ers - rejeitavam a escravidão p or razões r eligiosas (m as
talvez o fizessem m ais facilm en te ain d a, já qu e a região qu e
h abitavam - o n orte d o s Est ad os U n id o s - já fosse m ais dirigida
par a a p r od u ção in du strial d o qu e par a a agricultura!). Em tu do
isto, o econ ôm ico, o político e o ideológico in teragiram par a a
pr od u ção de u m a n ova ética r ecu san d o a escravidão. C ad a in stân ­
cia d esem p en h ou n ela u m papel.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 243

Adm ite-se con tu d o, de m an eir a geral, qu e certas socied ad es


p od em ser est r u tu r adas em t or n o de u m a “in stân cia d o m in an t e”,
ou seja, de u m a d im e n são m ais im portan te d o qu e as ou t r as.
A ssim , m u it os con sid er am qu e, em n ossas sociedades, o econ ôm i­
co é a in st ân cia d om in an t e: é n esse n ível qu e se desen volvem o s
p ap éis sociais essen ciais. N o t em po de Lu ís XIV e n os t em p os
feu d ais, a in stân cia d om in an t e era sem dú vida de n atureza política.
N a P alestin a d o t em po de Jesu s, ou n o Tibet e d o s D alai Lam as,
era an tes a in st ân cia ideológica, veiculada pelo religioso.
U m a vez aceito u m vín cu lo en tre essas diferen tes in st ân cias,
torn a-se cada vez m ais difícil acreditar n o idealism o. Adm ite-se em
geral u m certo con d icion am en t o d as ideologias p or ou t r as in st ân ­
cias. P orém , os m ecan ism os precisos pelo q u al se d á esse con d i­
cion am en to n ão são tão claros.
Para falar a respeito utilizam-se “gr ad es de leitu ra”, ou seja,
m an eir as d e con ceber o s vín cu los en tre as ideologias (ou as éticas)
e a h istória. D e m od o geral, n a b ase de cada u m a d essas gr ad es de
leitura en con tra-se u m a con sciên cia agu d a de u m a con tr ad ição
social. A ssim , a grade “econ ôm ica” parte d a t om ad a de con sciên cia
da explor ação; a gr ade “fem in ista” estrutura-se em t or n o d o sexis-
m o, isto é, em t or n o d as relações h om em -m u lh er in egalitárias; já
a gr ad e “ecológica” liga-se à dificu ldade, par a a n ossa geração, em
con tr olar o s sistem as tecn ológicos por n ós pr od u zid os.

A grade econômica

O en foqu e econ ôm ico d a con st ru ção de n oções e d a ética é


sem d ú vid a o m ais d ifu n d id o. Provavelm en te, isto se deve ao fato
de qu e a in stân cia econ ôm ica é d om in an t e em n ossa sociedade
in d u st rial capitalista (seja ela capitalista liberal, com o n o O ciden te,
ou capitalista de Est ad o, com o n os p aíses com u n ist as). Baseia-se
n os três con ceitos m en cion ad os acim a: o econ ôm ico, o político e
244 GÉRARD FOUREZ

o ideológico (para ver de qu e m od o a grade econ ôm ica p od e se


aplicar à ciên cia, ver em especial Cor iat , 1976).
Ch am a-se de “econ ôm icas” as atividades sociais ligadas à
produção d o qu e é con sid er ad o n ecessár io à sociedade. Ch am a-se
de “p olít icas” aqu elas ligad as à distr ib u ição d o poder . En fim ,
ch am a-se de ideológicos o s d iscu r sos qu e legitim am as esfer as d o
econ ôm ico ou d o político.
Esses três con ceitos p od em ser explicad os pelo exem plo da
m icr ossocied ad e con stitu íd a p or algu n s am igos qu e partem ju n t os
em viagem . O econ ôm ico será r epr esen t ad o p o r t u d o q u e é
n ecessár io para realizar a viagem : carro, pr ovisões, alojam en t o etc.
O político su rgirá q u an d o se tiver qu e t om ar decisões: par ar par a
com er , abastecer de com bu stível, escolh er o trajeto e assim por
dian te. O ideológico situar-se-á em t od os os d iscu r sos qu e se
p r on u n ciar para legitim ar o m od o com o ocorrem as coisas, dizen do
p or exem plo qu e det er m in ad o su jeito m erece m ais aten ção porqu e
con h ece m ecân ica, qu e ou tro pode decidir sobre o cam in h o porqu e
o car ro lh e perten ce etc.
D e acor d o com o esqu em a m arxista (qu e é sem dú vida m u ito
esclarecedor, desde qu e n ão seja levado ao extrem o, tu do redu zin do
a ele), a organ ização econ ôm ica leva a “relações de p r od u ção”. N o
exem p lo citado, poder-se-ia falar d as relações com os m ot or istas d o
carro, com aqu eles qu e sab em ler os m ap as etc. Em n o ssa socied a­
de, as relações de pr od u ção estão particularm en te ligadas à pr oprie­
d ad e e, u ltim am en te, à com petên cia. Essas relações d e p r od u ção
in du zem as relações ao poder, relações políticas. N o exem plo, os
qu e sab em dirigir ou o proprietário d o carro pod em ter u m p eso
m aior n as decisões. En fim , su rgem d iscu r sos ideológicos qu e
legitim am tu do isso. Dir-se-á p or exem plo qu e é “n or m al” qu e os
m ot or istas (ou o pr oprietário d o carro) t en h am m ais p od er e assim
p o r dian te. C o m esses d iscu r sos ideológicos aparece u m a ética qu e
r epresen ta as ações d esejad as ou desejáveis n essa sociedade.
U m esqu em a m arxista r edu cion ista preten deria qu e, em n ossa
sociedade, tod as as repartições de poder e t od os os d iscu r sos ideo­
lógicos são ab solu tam en t e d et er m in ad os pelo econ ôm ico. C o n t u ­
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 245

d o, sem aceitar esse tipo de r edu cion ism o, pode-se en con t r ar n esse
esq u em a “econ ôm ico - político - ideológico” u m a ch ave in teres­
san te par a com p r een d er o n ascim en to h istórico d a ideologia e da
ética. Sob r et u d o se se acrescen ta ao “econ ôm ico” a d im en são
tecn ológica. A s t ecn ologias d a con tracepção, p or exem plo, m od ifi­
car am as relações d e p od er en tre as m u lh er es e os h om en s;
segu iram -se a elas m odificações n os d iscu r sos éticos. Pode-se
an alisar d o m esm o m od o o su r gim en t o d a ética d o t r abalh o n a
socied ad e b u rgu esa, a d o s direitos d o h om em etc.
A grad e econ ôm ica é particularm en te apta - e sabe-se qu e era
u m d o s pr ojetos de M ar x ao aprim orá-la - a an alisar a evolu ção d a
socied ad e, n a m ed id a em qu e esta se tor n a in teligível q u an d o se
leva em con ta o s con flitos sociais, em particu lar aqu eles ligad os à
explor ação econ ôm ica. E d esse m od o qu e u m a d as m an eir as de
an alisar a evolução d a tecn ologia in telectual con stituída pela ciên cia
con sist e em relacion á-la a esses con flitos e em particu lar à “lu ta de
classes” em su a exp r essão m ais com pleta. Essa perspectiva lan ça
u m a luz sob r e o d esen volvim en t o d as ciên cias e d as técn icas: é sob
a p r essão d as n ecessid ad es econ ôm icas qu e elas evoluíram .
E difícil n ão sen tir a força d essa grade an alítica. Daí a con sid e­
r ar q u e tu d o é “d et er m in ad o” pelas m od ificações “m at er iais” h á
u m gr an d e p asso, qu e só os m ar xistas de tipo “d ogm át ico”
u lt r apassam . Porém , os idealistas qu e pr et en d essem qu e a ética n ão
é in flu en ciada por sem elh an tes evoluções h istóricas ser iam u m
p ou co in gên u os.
O s lim ites d o m ar xism o estreito provêm , sem dú vida, de u m
con ceito de d et er m in ism o h er d ad o d as ciên cias d o sécu lo XIX. D o
m esm o m od o q u e Laplace qu er ia qu e t u do fosse d et er m in ad o pela
sit u ação d as partícu las, assim algu n s m ar xist as gost ar iam qu e t u do
fosse d et er m in ad o pelo est ad o da econ om ia. H oje talvez, m en os
ligad os a repr esen t ações det er m in ist as (p en sem os n as estr u tu r as
d issip at ivas n o cam p o d as ciên cias n atu rais), est ejam os m ais apt os
a p en sar p r essões de con d icion am en t o n ão-determ in istas, deixan ­
d o lu gar a in terações sistêm icas m ais com plexas e a u m a m u ltipli­
cid ad e de trajetórias h ist ór icas p ossíveis.
246 GÉRARD FOUREZ

A grade feminista

D e algu m as décad as par a cá, surgiu u m a n ova grade d e an álise,


com a pr ogr essiva t om ad a de con sciên cia d o fato d e qu e vivem os
em u m a socied ad e patriarcal on d e o s h om en s e as m u lh er es têm
p ap éis e p od er es distin t os. O “ sexism o” d esem p en h a n essa an álise
u m papel an álogo ao de explor ação econ ôm ica n a grade econ ôm i­
ca. Caracteriza-se, em n o ssa sociedade pelo m en os, pela situ ação
n a q u al o s h om en s assu m em as tarefas exteriores, ao p asso qu e as
m u lh er es per m an ecem con fin ad as aos p ap éis in tern os su balt er n os
de logística (m an u ten ção d a casa).

Segue-se u m a d istr ib u ição d o p od er em qu e p r ed om in a o


m ascu lin o. Estruturam -se em con seqü ên cia m od os de p en sa­
m en to, ligados à evolu ção con creta d o s h om en s e d as m u lh er es.
Em n o ssa sociedade patriarcal, os h om en s ten d em m ais a racioci­
n ar de m an eir a dedu tiva, p ar t in d o de p r in cípios gerais, q u aisq u er
qu e sejam as con seqü ên cias - com o fazem em geral p essoas em
sit u ação de d om ín io. A s m u lh eres, com o fazem os gr u p os d om i­
n ad os, são m ais aten tas ao vivido, ao sofr im en to, às con tr ad ições
da existên cia. D u as éticas decorrerão daí, u m a m on t ad a sobr e
p r in cíp ios, ou tra m ais aten ta ao particular e m ais d isp ost a a
ab an d o n ar as d ed u ções lógicas se os resu ltados parecem aberran tes
(Gilligan , 1986).

Essa p r ed om in ân cia d o m od elo m ascu lin o perm ite com pr een ­


der algu m as situ ações de n ossa cultura. A s qu est ões d a violên cia e
d a cor r id a ar m am en tista recebem , p or exem plo, gr aças à gr ade de
an álise fem in ista, u m a luz qu e n ão recebiam pela grade econ ôm ica.
O en foqu e fem in ista perm ite apr een d er m elh or a n ão-racion alida-
de de n ossa sociedade racion al! Talvez seja o caso de se refletir m ais
sobr e o vín cu lo en tre o patr iar cado e a pr od u ção de u m a sociedade
gerida pela lógica d a ciên cia e d a tecn ologia! P od em os n os per gu n ­
tar t am b ém até qu e p on t o a lógica d a m atem ática e d a ciên cia
p od er ia ser a pr od u ção de u m a cultura patriarcal.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 247

A grade ecológica

Eu ten deria a in terpretar as lin h as de força d a ecologia dizen do


qu e esse m ovim en to r esp on d e à r u ptu r a d o s m eios de con tr ole d a
tecn ologia e a seu gigan tism o (qu er se trate de tecn ologia in telectual
ou m aterial) (cf. Fourez, 1983).
Para com pr een d er essa grade, con sid er em os o fen ôm en o d a
in ver são d a relação d o s h u m an os com os seu s m eios de pr od u ção.
Por alto, pode-se dizer qu e, h á d ois sécu los, as ferram en tas eram
perfeitam en te d o m in ad as pelos ar t esãos; d o m esm o m od o, os
“sáb io s” d a época d om in avam o s seu s sab er es.
N o sécu lo XIX, n as m an u fatu ras, os oper ários ach avam -se su b ­
m et idos ao sistem a d as m áqu in as; porém , n o m esm o m om en t o,
os pat r ões d as fábr icas t in h am ain d a, em r elação a su as em p r esas,
u m a relação sim ilar à d o artesão com su a ferram en ta; dir igiam as
su as fábricas e t in h am con sciên cia de fazê-lo (essa situ ação já era
fato h á m ais t em po n a m ar in h a: a tripu lação era con tr olad a pela
tecn ologia - n o caso, o n avio - , m as o capitão utilizava o n avio com o
u m artesão o seu in strum en to!). De m od o paralelo, qu an d o se trata
de tecn ologias in telectuais, os ch efes d os laboratórios os dirigiam ,
m as os cien tistas perdiam cada vez m ais o con trole de su as pesqu isas.
H oje, os ad m in ist r ad or es d as gr an d es em p r esas têm cada vez
m en os a im p r essão de d om in ar aqu ilo qu e ad m in ist r am : declaram
aliás q u e estão su b m et id os aos sistem as tecn ológico e econ ôm ico,
d an d o estes a im p r essão de qu e pr ogr idem por si m esm os, gu iad os
u n icam en te p or u m a lógica sistêm ica in tern a. O sistem a de tecn o­
logia in telectual con st it u íd o pela ciên cia segue u m p r ocesso sim ilar:
a ciên cia pr ogr ide p or su a pr óp r ia lógica, cada vez m en os ligada
aos pr ojetos d aq u eles qu e a praticam .
E d esse m od o q u e se op er ou u m a in ver são n a relação en tre os
seres h u m an os e os m eios p or eles criados. Esses m eios, t or n ad os
gigan tescos, n ão são m ais con tr olad os d o qu e os p asses de m ágica
d o apren diz de feiticeiro. Essa situ ação de n ão-con trole é tan to m ais
p ar ad oxal qu e a cultura b u r gu esa qu e a pr odu ziu se b aseia em u m a
id eologia d o con tr ole e d a previsão.
248 GÉRARD FOUREZ

Pode-se con sid er ar qu e o m ovim en to ecológico se fu n d a sobr e


u m a an álise qu e vê n essa in ver são a pr in cipal con tr ad ição da
socied ad e. Liga-se sem d ú vid a ao im p asse d a socied ad e bu rgu esa
q u an d o ela qu er con tr olar t oda a existên cia p or m eio de seu sab er
e d e su as técn icas (M ar cu se, 1968). O im p asse ficou bem paten te
n o p lan o in dividu al e foi Freu d qu em tirou as con seqü ên cias d esse
fato, r en u n cian d o à von t ad e de con tr olar in teiram en te as p u lsões
(Fourez, 1984). En tretan to, n o plan o d a tecn ologia, a qu est ão ain d a
se coloca: pode-se criar tecn ologias qu e con trolariam as tecn ologias?
O m ovim en to de “cechnology assessm en t”2 parece p o r vezes su p or
isto possível, m as n ão é u m a ilu são acreditar qu e u m a ou tra
tecn ologia poder ia resolver o pr oblem a en gen d r ad o pelas tecn olo­
gias? (P asadeos, em Roqu ep lo, 1974, p.335-68; Fourez, 1974). N ão
se ser ia fin alm en te levado a m odificar a relação en tre os seres
h u m an o s e as t ecn ologias p or eles con st ru ídas? O m ovim en to
ecológico parece cam in h ar n essa direção.

As grades complementares

A s gr ad es econ ôm ica, fem in ista e ecológica p od em ser con si­


d er ad as com o olh ar es qu e se com pletam e parcialm en te se reco­
brem . Pode-se an alisar p or m eio da grade econ ôm ica a relação
h om em -m u lh er, assim com o o su r gim en to de tecn ologias gigan tes­
cas. A grade fem in ista, porém , perm ite in terpretar as relações de
exp lor ação econ ôm ica com o u m a violên cia ligada ao pod er m ascu ­
lin o d o patriarcado; e a relação com as tecn ologias p od e ser
in terpretad a d a m esm a m an eir a. En fim , a grade ecológica m ostr a
a lógica pr óp ria d a econ om ia, p en sad a com o sistem a au t ôn om o,
d e m an eir a in d epen den t e da explor ação a ela associad a; pode
t am b ém p en sar a relação h om em -m u lh er com o o en con tr o de d u as
m an eir as de se situ ar dian t e d o m eio am b ien te e d a Natureza.

2 Em in glês n o or igin al: ap r oxim ad am en t e, “taxação d a tecn ologia” (N. T.).


A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 249

N ão se trata, port an to, de preten der qu e u m a grade seja “a


b o a” . C ad a u m a traz u m certo esclarecim en to sob u m p on t o de
vista particular. O u t r as perspectivas p od er iam t am bém ter u m
papel a d esem p en h ar . C on t u d o, com as três gr ad es m en cion ad as
p od em o s “cob r ir ” am plam en t e a n ossa sociedade.

Resumo

En foques idealista ou histórico: C r e n ça em n o r m as u n iver sais e eter n as


con cer n en t es ao real, o u visão d e u m a con st r u ção evolu tiva d a ciên cia e
d a ética.

Defin ições de: noção, idéia, conceito:

noção: acep ção b em p r óxim a d o sen so com u m ;


idéia: ap r esen t ação d e u m a n oção com o exist in d o eter n am en te;
conceito: m an eir a d e d efin ir ou con st r u ir u m a n oção d en t r o d e u m
p ar ad igm a ou con t ext o pr eciso.
Cr ít ica do idealism o: crítica prática, n ão “d em on st r ável” .
T udo se dissolv eria no relativo? T e m o r d e fu n d o afetivo d ian te d a afir m a­
ção d o co n d icio n am e n t o h ist ór ico d e n o sso s con ceitos. En t r etan to,
“ relativo” n ão sign ifica “sem im p or t ân cia” (cf. am or , religião). A escolh a
d o en foqu e idealista acar r eta u m certo sect ar ism o, com par ável à id olat r ia.
A e scolh a d o en fo q u e h ist ór ico in voca u m a con fian ça n o relativo d e u m a
h ist ór ia q u e se faz h u m an am en t e.

U m a teoria do en foque histórico d a con strução de conceitos:

a) Con ceitos e relatos: são relatos com u n s em u m a d ad a socied ad e q u e


fazem d escob r ir o s con t eú d os con cr etos de n o sso s con ceitos. Estes var iam
d e acor d o com as cu lt u r as e são m al d efin id os e n q u an t o o con ceit o n ão
seja “ n o m e ad o ”. O con ceit o pr od u z a n or m at ivid ad e d a con v en ção d a
lin gu agem .

b) Produção social dos conceitos n a história:


• teoria idealista: a em er gên cia d e n ovos con ceitos é im p licad a pela lógica
d o m u n d o e p ela in ter ven ção “ in d ep ed en t e” d o s p e n sad o r e s;
250 GÉRARD FOUREZ

• teor ia h istórico-social: o s n ovos con ceitos n ascem d e u m n o v o p r ob le­


m a d e socied ad e (cf. M ar x e o assim - ch am ad o determ in ism o h ist ór ico
ligad o à econ om ia). D ist in ção en tre “d e t e r m in ism o ” e “co n d icio n a­
m e n t o ” . In ter ações r ecíp r ocas en tr e o id eológico, o p olítico e o
econ ôm ico. A s d ifer en tes in st ân cias d o m in an t e s d e aco r d o com as
socied ad es.

A u tiliz ação de grades de leitura:

Grade econôm ica. Sem d ú vida, a m ais d ifu n d id a p or q u e o econ ô m ico é


o d o m in an t e em n o ssa socied ad e. D e acor d o com o e sq u e m a m ar xista,
a or gan ização econ ôm ica in du z a relações d e p r od u ção (ligad as à p r op r ie­
d ad e e à com pet ên cia), as q u ais con d u zem a relações d e p o d e r (o político)
e a d iscu r so s legitim an tes (o id eológico). N o t a so b r e o s lim ites d e u m
r e d u cion ism o estreito.
Grade fem in ista. O sexism o d esem p en h a u m papel an álo go à exp lor ação
econ ôm ica n a gr ad e econ ôm ica. A n alogia en tr e as m u lh er es e o s gr u p o s
d o m in ad o s. Esclar ecim en t os n o s d o m ín io s d a violên cia, d a gu er r a, d a
r acion alidade.
Grade ecologista. P r odu z u m a an álise q u e vê n a in ver são d a relação d o s
ser es h u m an o s com o s seu s m eios d e p r od u ção a p r in cip al con t r ad ição
d e n o ssa socied ad e. C f. a evolu ção d a r elação ar t e são /fer r am en t a, p a­
t r ão / m áq u in a, ad m in ist r ad o r e s/e xigê n cias técn icas.
Com plem en taridade das an álises. A s três gr ad es especificadas se com p le­
t am , recobr em -se p ar cialm en t e e d ão con t a d e gr an d e parte d e n o ssa
sociedade.

Palavras-chave

I d e a lism o / en foqu e h ist ó r ic o / n o ç ã o / id é ia / co n c e it o / r e lat o / gr ad e


e c o n ô m ic a / gr ad e fe m in ist a/ gr ad e e co ló gica/ se x ism o / m et am or foses
d o esp ír it o de N ie t zsch e / ju stificação pelas o b r a s/ ju st ificação p ela
c o n fia n ç a / r ed u cion ism o m ar xist a / in st ân cia e c o n ô m ic a / in st ân cia p o­
lít ic a / in st ân cia id e o ló gica/ relações de p r o d u ç ã o / relações p o lít ic a s/
legitim ação id e o ló gica/ socied ad e p at r iar cal/ in ver são d a r elação ao s
m eios d e p r o d u ç ã o / exp lor ação.
C A P Í T U LO 11

CIÊNCIA, VERDADE, IDEALISMO

A s perspectivas idealista e h istórica d a pr od u ção de n oções e


con ceit os repercu tirão n as represen tações a respeito d a ciên cia.
Nest e capítulo, sin tetizarem os u m a série de con clu sões d as an álises
preceden tes.

Visão idealista da ciência

Para algu n s, a ciên cia descobriria as leis etern as qu e or gan izam


o m u n d o: as “leis im u táveis da N at u reza”. O s con ceitos cien tíficos
são, p ar a essas p essoas, con ceitos efetivam en te “d escob er t os” , n a
m ed id a em qu e eles ap en as atin gem aqu ilo qu e d esd e sem pre
estava presen te n a Natureza. D en t r o d esta perspectiva, os con ceitos
cien tíficos n ão são con struções visan do a organ izar a n ossa visão d o
m u n d o, m as reen con t r am u m a espécie d e “r ealidade em si” . Essa
visão se con for m a àq u ilo qu e Prigogin e & Sten ger s ch am ar am de
an tigo p ar ad igm a d a física, aqu ele par a o qu al a ciên cia d escob riria
u m a verd ad e global d a Natu reza (Prigogin e & St en ger s, 1980).
252 GÉRARD FOUREZ

Visão histórica da ciência

A essa visão idealista da ciên cia, podem -se o p or as an álises


críticas d o id ealism o apr esen t ad as n o capítu lo an terior e a p r óp r ia
prática cien tífica, Elas fazem com qu e se torn e difícil acreditar n o
m od elo d a ciên cia com o verd ade glob al e etern a. Pode-se en tão
ap r esen t ar u m m od elo h istórico qu e veja a ciên cia com o feita pelos
e par a o s seres h u m an os. A ciên cia e cada d iscip lin a cien tífica
p assam a ser con sid er ad as com o u m a con st r u ção h istórica, con d i­
cion ad a p or u m a época e p or pr ojetos específicos. Elas su r gem
pr ecisam en te com o as tecn ologias in telectuais d as q u ais se ar m ou
a b u rgu esia q u an d o com eçou a olh ar o m u n d o de ou t r o m od o,
aqu ele d o estran geiro qu e calcula, com o vim os acim a.
Segu n d o esse m odelo, a atual divisão em disciplin as cien tíficas
é vista com o razoável, m as n ão n ecessária, cada u m a d as disciplin as
cor r espon d en d o a seu próprio desen volvim en to h istórico, o qu al é
aliás con dicion ado pelo con texto e pelas pressões sociais qu e o
acom pan h am . Q u an t o aos con ceitos científicos, que provêm m uitas
vezes de n oções vagas ligadas à cultura (pen sem os n a n oção de áto­
m o, qu e se t om ou o con ceito d o átom o), trata-se de con struções qu e
ten dem a colocar u m a ordem n a visão organ izacion al qu e con s­
tru ím os d o m u n d o (Sten gers, 1987). E ain da aí, essa visão n ão é n e­
cessária, ain da que, eviden tem en te, os con ceitos e teorias n ão sejam
equivalen tes: qu an d o são relacion ados com projetos determ in ados,
algu n s são m ais eficazes d o que outros (sem ch egar a con siderar con ­
ceitos elaborados com o o de elétron, pode-se ver qu e a n oção de “co­
m eço” é de en orm e eficácia para u m a cultura qu e qu er plan ificar a
su a existên cia; observem os todavia qu e ela é pouco operacion al para
u m a cultura qu e qu er apen as repetir o qu e o p assad o lh e legou!).

A ciência como estrutura dissipativa

D en t r o d essa perspectiva, a ciên cia pod e ser explicada pela


n oção de “estru tu ra d issip at iva” tal com o for m u lad a p o r Prigogin e
A CO NSTRUÇÃO DA CIÊNCIA 253

n o cam p o d a fisica (c extrapolada para ou t r as disciplin as; Prigogin e


St en ger s, 1980). Con sid er em os fen ôm en os com o u m a t em pes­
tade, ou u m fu racão, ou u m a cidade: em cada caso, su rge u m a
estru tu ra em u m a sit u ação in stável, lon ge d o equ ilíbr io estático, e
su rge u m a organ ização qu e se “alim en t a” d a en ergia de seu
con texto, tu do p r ovocad o p or u m a per tu rbação m icr oscópica qu e
d esen cad eia o p r ocesso.
D o m esm o m od o, pode-se represen tar a ciên cia com o estrutura
de con h ecim en t o qu e se desen volveu em d et er m in ado con texto, o
qu al perm itiu o su r gim en t o de m od os pr ecisos de con h ecim en to,
im portan tes em relação a projetos precisos, con d icion ad os m as n ão
d et er m in ad os pelo con texto h istórico. A m an eir a pela qu al essas
estru tu ras se desen volver am (a m an eir a pela qu al a fisica e a qu í­
m ica se distin gu em , p or exem plo) d ep en d e sem dú vida de pertu r­
b ações h istóricas qu e se pod e con sid er ar com o in fin itesim ais, m as
qu e resu ltam n os efeitos m acr oscóp icos q u e con h ecem os.

Ciências e teorias da verdade

N a ciên cia e n a vida com u m , utiliza-se a n oção d o verdadeiro.


Porém , o qu e se q u er dizer com isto? O term o pod e sign ificar:
“P o ssu o u m a in form ação prática qu e m e perm ite saber com o agir”
(com o q u an d o se diz “O fogo é verd e” , e é verdade). Por sin al,
Ku h n observou (1972) qu e era possível con sid er ar a ciên cia e seu
d esen volvim en t o sem jam ais utilizar o term o verdade; bast a su b s­
tituir a cada vez a frase “tal pr op osição é verd ad eira” p or “ela é
prática para o s n o sso s p r ojet os”, ou algo equivalen te. En tretan to,
a utilização d o t erm o “ver d ad eir o” em ciên cia pod e p or vezes ir
b em m ais lon ge, p r et en d en d o atin gir u m a verd ade ab solu ta, coin ­
cid in d o, p or exem plo, com as “id éias” qu e deter m in am o m u n d o.
Para a m aioria, a n oção esp on t ân ea d o “verd ad eiro” ju n ta-se a
u m a velh a defin ição d a Idade M édia: “adequação entre a inteligência
e o real”. N ão obst an t e, u m a tal ad equ ação pod e ser con cebid a seja
254 GÉRARD FOUREZ

com o prática e ligada a n o sso s pr ojetos, seja pelo con tr ár io com o


ab solu ta! Para m u it os, existe u m a “coisa-em -si” , p or u m lado, e
u m a “r epr esen tação n a in teligên cia”, p or ou tro; e diz-se q u e a
r epr esen t ação é verd adeira q u an d o reflete a coisa-em-si. Trata-se de
u m a visão d a verd ade em qu e o sujeito, p or assim dizer, gira em
t or n o d a coisa, a qu al se en con tr a n o cen tro d o pr ocesso.
N o s capítu los preceden tes, vim os com o era possível efetuar,
em u m a tradição qu e se vin cu la a Kan t, u m a revolução copern ican a
e con sid er ar qu e o cen tro d o con h ecim en to é o su jeito. Este ú ltim o
con st rói par a si u m a represen tação de su a ação possível d aqu ilo
q u e ele p od e fazer. D esse pon t o de vista, pode-se dizer qu e o objet o
só p ossu i sen t ido n o con texto colocado pelo sujeito: trata-se de u m a
con st r u ção ligada ao pr ojeto d o s su jeitos,
O objeto, com o vim os, n ão é con t u d o u m a con st r u ção p u r a­
m en te “su bjetiva” in dividu al, m as an tes u m a con st ru ção social,
con ven cion al (u m a con st ru ção pu r am en te su bjetiva levaria sim ­
plesm en te o seu au t or ao h ospício!). O s objet os n ão pod em ser
con st r u íd os de qu alqu er m od o: é preciso qu e eles sejam con st r u í­
d o s de tal m od o qu e o s n osso s pr ojetos p ossam se realizar. Se, em
m in h a represen tação, afirm o qu e o fogo é verde, q u an d o ele é
verm elh o, ou se dou a m im m esm o u m a represen tação com tan tas
n u an ças de cor qu e n ão p o sso m e in serir de m an eir a ad equ ad a
n esse projeto social qu e é o trân sito, n ão terei u m con h ecim en t o
ad equ ad o.
Pode-se p r op or en tão u m con ceito de verd ade m ais cen tr ado
n o su jeito d o qu e n o objeto: u m con h ecim en t o é d it o verd ad eiro
q u an d o perm ite realizar o s pr ojetos qu e se tem , e ad aptar os seu s
pr ojet os ao qu e se p od e. O critcrio de verd ade n ão ser ia u m a
ad equ ação às coisas tais com o são, m as u m a adequ ação com o “real
de n ossa existên cia”. C o m o pr op õe Tou lm in , o critério ú ltim o d o
^ver d ad eir o seria a m an eir a pela qu al ele perm ite viver e se ad aptar
j(Jou lm in , 1973).
D en t r o d essa perspectiva, a con st n ição d o verd adeiro n ão seria
u m a espécie d e cópia de idéias qu e seria pr eciso atin gir, m as u m a
con st r u ção h u m an a (lem brem o-n os da n oção de estr u tu r as dissi-
A CO NSTRUÇÃO DA CIÊNCIA 255

parivas) est r u tu r an d o o m u n d o a fim d e qu e p o ssam o s n ele viver


(Latou r <St W oolgar , 1979). A con st ru ção d o verd ad eiro parece
en tão com o u m pr ojeto h istórico aberto; é u m a con st ru ção h u m a­
n a, t en d o aliás u m caráter estético, n a m edid a em qu e o esp ír it o
h u m an o n ele se en con t r a (refiro-me aqu i a u m a n oção qu e con si­
d er a o estético com o a m an eir a pela qu al o espírito h u m an o se
en con t r a em su a ob r a; deste pon t o de vista, o prazer estético é o
prazer de se en con t r ar h u m an o n as exp r essões h u m an as).
A ssim , pode-se falar da con st ru ção de verdades para a ação, ou
seja, r epr esen tações d o qu e se pod er á fazer (Blon del, 1893. Cf.
t am b ém Merleau-Pon ty, 1948; n ot em os, de passagem , qu e a
ciên cia, ao produ zir verd ad es par a a ação, p r op or á r epr esen tações
d as m an eir as pelas q u ais algu ém pod e se en gajar n a ação. C on t r i­
bu irá p or m eio d isso o qu e, n os capítu los segu in tes, ch am ar em os
de escolh as éticas). D e sse m od o, o saber verd adeiro seria a in tro­
d u ção de u m a certa organ ização, de u m a certa or d em em n ossa
visão d o m u n d o, d e m an eir a a perm itir qu e t en h am os u m a ação
“or d en ad a”.
Esse caráter h istórico n ão im plica q u e se p o ssa con stru ir , de
m an eir a equ ivalen te, qu alq u er verd ade: sab em os qu e as r epr esen ­
tações teóricas n ão são t od as bem su ced id as. N a con st r u ção
h istórica d o verdadeiro, por exem plo, en con t r am os u m a d im en são
qu e n ão d o m in am os e n ão con segu im os sequ er descrevê-la in tei­
ram en te. Em filosofia, design a-se p or m eio de diversos t er m os esse
lim ite em qu e o ser h u m an o sen te qu e ele n ão é tu do. O term o
alteridade (do latim alter, sign ifican d o “o ou t r o”) in dica o en con tr o
de algo diferen te de n ós, algo irredutível a n ós. Fala-se t am bém
d essa experiên cia com o a de u m a “con tin gên cia” d o ser h u m an o,
qu e descob re n ão p od er d om in ar tudo. So b risco de círculo vicioso,
n ão é possível falar d esse h orizon te d a verd ade em t er m os de
verd ad e (Ladrière, 1972, p.36-7): par a falar a respeito, é pr eciso
utilizar u m a lin gu agem sim bólica e / o u m ítica. Con sid er a-se, de
m od o geral, qu e a experiên cia da alteridade está tam bém em relação
com a experiên cia religiosa, seja qu e a Alteridade ú ltim a seja
fu n d am en t alm en te religiosa (Deu s), seja qu e se con sidere qu e o
256 GÉRARD FOUREZ

d iscu r so religioso é u m d iscu r so qu e projeta n o tran scen den te a


experiên cia h u m an a d a alteridade.
H á en fim u m a ou t r a con otação im por tan te relativa ao “verd a­
d eir o”. Ela se cen tra sobr e a coerência de n o ssas r epr esen tações. E
em t or n o dela qu e se situa tam bém o u so m ais com u m d a n oção
d e explicação. “Explicou -se” algo q u an d o se con segu e ligar, em u m
d iscu r so coeren te, a r epresen tação qu e se deu de u m fen ôm en o às
r epr esen tações qu e se p ossu i, e às qu ais se está apegado. N a
m atem ática, é a esse asp ect o de coerên cia n o in terior de u m só
sistem a - ligado à “n ão-con tradição” - qu e se refere em geral a
n oção de verdadeiro. Para as ou tras disciplin as, essa “verd ad e” n ão
se liga n or m alm en t e a u m a sim ples coerên cia in tern a, m as a n oção
d e explicação pod e m u itas vezes se reduzir a ela: con sidera-se ter
explicad o algo q u an d o se reestabeleceu u m a coerên cia n as diversas
r epr esen tações qu e se tem d o m u n d o.
“Explica-se”, em geral, estabelecen do u m a tradu ção en tre d ois
n íveis de in terpretação. A ssim , se vejo fu m aça (pr im eiro n ível de
in teligibilidade ou de in terpretação do m u n d o), direi tê-la explicado
se p o sso relacion á-la a u m ou t r o nível de in terpretação, com o, por
exem p lo, “u m fogo arde n o jar d im ” , ou “partícu las de cin zas se
elevam n a at m osfer a”. D o m esm o m od o, se se pôd e “traduzir” u m a
d oen ça em term os de bacteriologia, fazen do-lh e cor r esp on d er um
bacilo, dir-se-á qu e se “explicou ” a doen ça; efetuou-se u m a tradu ção
en tre u m n ível de com p r een são ou d e coerên cia (a sín d r om e
patológica) e u m ou tr o (a presen ça de det er m in ad o m icróbio).
En q u an t o n ão se tiver estabelecido essa coerên cia con sidera-se
certos fen ôm en os com o “in explicad os”. A explicação se liga p or ­
tan to à p ossib ilid ad e de traduzir o d iscu r so de u m p ar ad igm a em
u m ou tro: p or exem plo, terei explicado p or qu e u m a lâm p ad a
acen d e (par ad igm a d a vida cotidian a) se con segu ir ler o m esm o
fen ôm en o n o p ar ad igm a da física da eletricidade. O qu e im plica,
aliás, a relatividade d o con ceito de explicação: em u m prim eiro
con texto, pode-se con sid er ar algo com o “explicad o”, ao p asso qu e
em u m segu n d o será sem p re con sid er ad o com o “ in explicad o”:
u m a lâm p ad a elétrica p od e “explicar” a pr esen ça d a lu m in osid ad e
A CO NSTRUÇÃO DA CIÊNCIA 257

sem q u e o caráter eletrom agn ético d esta seja “explicad o” e, pelo


con trário, pode-se ter “explicado” u m a luz em u m a teoria d a difu são
eletrom agn ética sem tê-la “explicad o”, n a m ed id a em q u e a su a
or igem con tin u a d escon h ecid a. O qu e se ch am ou d e pr ojeto
n ew t on ian o ou ein st en ian o d a ciên cia (H olt on , 1986) con sist e n a
b u sca de u m a r epresen tação global d o m u n d o in teiro qu e explicaria
tu d o de u m a vez só, ou seja, forn eceria, segu n d o a exp r essão d o
físico M ax Plan ck, “o d om ín io in telectual com plet o d o m u n d o d as
sen sações”.
Em cada con cepção d a “ver d ad e”, aparece u m a certa n oção de
alterid ade. N a con cep ção “reflexo”, trata-se de u m a referên cia ao
q u e é per ceb id o com o o “ou t r o”, o objeto. N a con cepção “ação” ,
o pr ojeto é per cebido com o ou tro em relação a su a r epresen tação.
En fim , a visão ligada à explicação t am bém con fere u m lu gar à
alteridade, pelo fato d e qu e jam ais se p o ssu i u m a visão totalm en te
coeren te d o m u n d o (par a u m a d iscu ssão d a n oção de verd ade em
ciên cia, cf. Sh aper ee, 1984).

Reflexões sobre a “coisa-em-si”

D ian t e d a q u est ão “O n osso d iscu r so realm en te alcan ça as


coisas tais com o são?” , p od em o s ficar in satisfeitos com u m a teoria
d o verd ad eiro com o “verd ade par a a ação”. A s an álises an teriores,
p orém , talvez n os ten h am levado a du vidar qu e h aja u m sen t ido
em falar d os “ob jet os tais com o são, in d epen den t em en te d e n o sso
con h ecim en t o”... Para en fren tar esse p ar ad oxo, p od e ser útil u m a
vu lgarização de algu m as p r op osições d e Kan t a respeito d a “coisa-
em -si”.
Kan t distin gu e a “coisa-em -si” (qu e ele ch am a de noumenon) d o
“fen ô m en o”, ou “coisa fen om ên ica” (do grego: o qu e aparece), isto
é, o qu e per ceb em os e com p r een d em os. N o cam p o d o con h eci­
m en to, n ão p od em os perceber m ais d o que o m u n d o já estru tu rado
p or n ossa sen sib ilid ad e, n o sso s con ceitos, n o ssa cultura etc. C o lo ­
258 GÉRARD FOUREZ

cad o de ou tro m od o, só vem os o m u n d o p or n o sso in term édio, e


en t r am os em con tato u n icam en te com os “fe n ôm en os” já estr u tu ­
r ad os em n o sso con h ecim en t o. N e sse sen t ido, o con h ecim en t o d a
coisa-em-si escapa, segu n d o Kan t, à razão (ain d a qu e ele vá adian te,
afir m an d o qu e, em n o sso en gajam en to, depar am o-n os com o real).
E u m a d im en são d aq u ilo qu e se ch am a agn ost icism o kan t ian o.
Existe, em n o ssa cultura ociden tal, u m m it o qu e fala de
m an eir a reveladora sob r e a “coisa-em -si” : é o m ito d a “b u sca” .
Con h ece-se a h istór ia d o s cavaleiros d a T ávola Red on d a, qu e vão
em b u sca d o San t o G r aal, p r ocu r an d o d escob r ir , p or m eio de
n u m er o sos ob st ácu los, o “gr aal”, ou seja, u m cálice on d e se teria
gu ar d ad o o san gu e de Cr ist o. A n oção de verdade e d a “coisa-em -si”
é com freqü ên cia r epr esen t ada p or m eio deste m ito: o s cien tistas
ser iam com o esses cavaleiros qu e su per am t od os os ob st ácu los
ligad os às apar ên cias par a ten tar alcan çar fin alm en te o real em si,
a verd ade ú ltim a d as coisas.
Talvez fosse m ais in teressan te d e v e r n a n oção de “coisa-em -si”
ap en as u m a idéia regulativa, qu e fu n cion a n o âm b it o de u m a visão
teórica: p en sar n a existên cia de u m át om o “em si” pod e ser útil n a
represen tação d a fisica, m as só con h ecem os o s con ceit os teóricos
de át om os qu e n ós con st r u ím os. O filósofo M au r ice Blon d el
(1893) su gere qu e o pr ob lem a qu e con sist e em atribu ir d em asiad a
im por tân cia às “coisas tais com o são ” ou à “coisa-em -si” provém
d o fato de qu e essa atitude ten de a privilegiar sem p r e u m a espécie
de “real” qu e se ocu ltaria p o r trás d o fen ôm en o; assim , estar-se-ia
ap en as pr ivilegian do u m a n ova in terpretação d o m u n d o. Para
Blon d el, pelo con tr ár io, “o real” , se é qu e o t erm o p o ssu i u m
sen t id o, sign ifica o con ju n t o d aqu ilo qu e vivem os, o con ju n t o de
n o ssas r epr esen tações e n ão u m a r ealidade qu e estaria com o qu e
escon d id a por trás d as apar ên cias (os fen ôm en os). N ão seria o caso
de se procu rar, p or trás d o s objet os fen om ên icos, coisas-em -si
“m ais r eais” d o qu e as apar ên cias. Para ele, o real é o con ju n t o d a
h ist ór ia d a for m a com o ela se apr esen t a par a n ós, d e acor d o com
a m an eir a pela qu al a est r u tu r am os em ob jet os. A ssim , so b u m a
tal perspectiva, a visão q u e teria u m físico de u m fen ôm en o (com o
A CO NSTRUÇÃO DA CIÊNCIA 259

o pôr-do-sol) n ão atin giria u m aspecto m ais “p r ofu n d o” d o “real”:


seria ap en as u m a visão diferen te d aqu elas - qu e tam pou co atin gem
o “real” - qu e o con tem plam sem acrescen tar a tecn icidade d e u m a
d iscip lin a cien tífica. N ão h averia u m a “ver d ad e” qu e ser ia m ais
fu n d am en t al d o qu e ou t r as, já q u e n os en con t r ar íam os sem p r e
d ian t e de u m a m u lt iplicidade de in terpretações, t od as válid as de
acor d o com u m d et er m in ad o p on t o de vista. A qu est ão d o fu n d a­
m en to ú ltim o d a ciên cia p or m eio de u m a ver d ad e ú ltim a sim p les­
m en te n ão se colocar ia m ais (Ladrière, 1973). Em ou t r os t er m os,
com o m ostr ou Cer t eau n a trilh a de W ittgen stein (de Cer t eau ,
1980, p.45-53), a n o ssa verd ade situar-se-ia sem p r e “d en t r o”:
“est am os su b m et id os, em b or a n ão iden tificados, à lin gu agem
com u m , sem p ossib ilid ad e de sobr evôo ou totalização”.

Acreditar na ciência?

A s an álises críticas qu e revelam a relatividade d o d iscu r so


cien tífico p od em ab alar, em algu n s, a con fian ça e a cren ça qu e
d ep osit am n a ciên cia. Existem várias m an eir as d e acreditar n elas
m as, em cad a u m a d elas, a expr essão “crer ” aproxim a-se d a n oção
de u m a certa fé, de u m a certa con fian ça.
A lgu n s acreditam n a ciên cia com o em u m a tecnologia intelec­
tual. Para eles, acreditar n a ciên cia é acreditar qu e ela p od e resolver
u m certo n ú m er o d e qu est ões qu e lh e são colocadas. “Acredit ar n a
ciên cia” cor r esp on d e en tão à atitude de con fian ça qu e se p od e ter
em u m a tecn ologia. D esse m od o, o piloto de u m avião, ou o gen eral
qu e con cebeu u m p lan o de batalh a, ou ain d a o especialista em
in form ática q u e desen volveu u m pr ogr am a p od em acreditar r es­
pectivam en te n esse avião, n esse p lan o ou n esse pr ogr am a. Esse
tipo d e con fian ça sign ifica q u e eles est ão p er su ad id os de q u e essas
tecn ologias lh es per m it ir ão realizar o qu e eles d esejam . A ssim ,
pode-se acreditar n a ciên cia d o m esm o m od o qu e o sapateiro
260 GÉRARD FOUREZ

acredita em su a arte: recon h ece-se t u do o qu e ela p od e fazer, m as


sem t r an sfor m ar isto em algo ab solu to.
Q u an d o se con fia n a ciên cia d essa m an eira, é-se levado à
segu in te qu est ão: O qu e qu er em os ao elabor ar m os r epr esen tações
d o m u n d o? Isto rem ete à q u est ão d o sen t ido d o en gajam en t o
h istór ico, sem con t u d o resolvê-la.
Algu m as p essoas, m esm o aqu elas qu e n ão crêem qu e a ciên cia
seja m ais (o qu e já é bastan te) d o qu e u m a tecn ologia in telectual
b ast an t e eficaz, in vestem qu ase tu do n ela. D a m esm a for m a qu e
u m piloto de u m avião ou u m técn ico em in form ática p od em viver
ap en as para o seu avião ou seu com pu t ad or , h á aqu eles qu e
in vestem u m ab solu t o afetivo n a p esqu isa cien tífica, com o se só
isso con tasse. A ciên cia, n esse caso, p od e t om ar o lu gar de t u d o o
m ais. D e m an eira m ais sim ples, pode-se qu er er recu sar a su b m e­
tê-la a q u alqu er exam e crítico, por m ed o de ver o seu “íd o lo”
d esm or on ar , ou pelo m en os perder o seu valor ab solu to. Era essa
m an eir a de acreditar n a ciên cia qu e O p p en h eim er den u n ciava,
q u an d o falava d o “deleite cien tífico” p or m eio d o qu al certas
p e sso as t en d em a se fiar in teiram en te ao d in am ism o d a ciên cia,
sem n en h u m espír ito crítico (Salom on , 1970).
U m a ou tra m an eira de acreditar n a ciên cia, em geral ligada a
u m a perspectiva idealista, con sist e em atribu ir u m valor ab solu t o
às verd ad es cien tíficas. Esse tipo d e cren ça pod e r espon d er t am bém
à in qu ietu d e q u e sen t em algu n s dian te d a relatividade de n o ssa
h istór ia: ten d o dificu ldade em viven ciar u m a h istór ia relativa, ou
acreditar qu e o ab solu t o pod e se revelar n o relativo h istórico,
b u scam algo de sólid o a qu e se segurar. M u itos, h oje em dia, situ am
esse sólid o n o cam p o d a ciên cia, pr in cip alm en t e se u m agn osticis-
m o r eligioso os tiver d eixad o ór fãos d o A b solu t o.
Já tivem os ocasião de n os per gu n t arm os se essa fé ab solu ta n a
ciên cia n ão se u n e àqu ilo qu e a religião ch am ou de idolatria: em
seu d esejo de p o ssu ir o ab solu to, algu m as p e ssoas n ão d escan sam
en q u an t o n ão o tiverem p ost o em u m a experiên cia, im portan te
talvez, m as sem pre relativa. M u itos dizem , com efeito, qu e “se n ão
se acredita q u e a ciên cia n os dê u m a verdade etern a, en tão em qu e
A CO NSTRUÇÃO DA CIÊNCIA 261

se pod e acreditar?”. A r espost a de qu e é possível con fiar n o relativo


e d e qu e n ão é n ecessár io preten der qu e algu m a coisa seja ab solu ta
par a con siderá-la im por tan t e n em sem pre satisfaz aqu eles q u e n ão
d escan sam en q u an t o n ão tiverem en con t r ad o u m “íd olo” , evitan ­
do-lh es o p asso, de certo m od o “m ístico”, d a con fian ça n o h istórico
relativo. Esse p asso se assem elh a u m p ou co à con fian ça d o am or,
e é p or isto q u e é tão difícil para aqu eles qu e qu er em sem p r e
“ rotu lar as coisas” em seu s con ceitos.

A ciência como trabalho sobre os limites

Resta, p or fim , ob ser var qu e, n o p lan o de fu n d o d a prática


cien tífica, h á sem pre u m a t en d ên cia a u lt r ap assar o lu gar on d e se
está sit u ad o. A ciên cia n ão é pu r am en te pragm ática, m as parece
obed ecer a u m a p u lsão de su per ação dian te d a alteridade d o
m u n d o.
D en t r o desta perspectiva, pode-se defin i-la com o u m t rabalh o
sob r e o s lim ites, u m a espécie de exu berân cia ou de d em ên cia d o
esp ír it o h u m an o (M or in , 1973), qu er en d o superar-se o t em po
t od o, u m a “festa” cien tífica (Th ill, 1972) pela qu al se u lt r ap assa o
lu gar em qu e se está, ou ain d a o jogo d o s possíveis (Fourez, 1974),
em q u e se brin ca d e se represen tar as ações possíveis, q u aisq u er
q u e sejam elas...
Fica, en tão, a qu est ão de con h ecer o seu sen tido. É aí qu e reside
a q u est ão ética qu e ir em os agora ten tar colocar.

Resumo

V isão idealista d a ciên cia


D escob e r t a d as “leis im u táveis d a N at u r eza”, d a “r ealid ad e em si” .

V isão h istórica d a ciên cia


C f. su pra: con st r u ção h istór ica con d icion ad a p o r u m a ép oca e p r ojet os
específicos.
262 GÉRARD FOUREZ

Cf. a ciência com o “estrutura dissipativa”.

Ciências e teorias da verdade


verdadeiro: detenção de um a verdade absoluta refletindo as coisas “em
si”, ou possibilidade de agir prático ligado ao projeto dos sujeitos;
verdade: construção h um an a que estrutura o m un do (aspecto de finali­
dade e de estética) que permite a ação, mas limitada pela alteridade
(a reacionar a linguagem simbólica, mítica, e a expressão religiosa) e
centrada sobre a coerência (noção de explicação).

Reflexões sobre a “coisa-em-si”


Cf. Kan t e a distinção entre o fenômeno e o noumenon: o mito da busca.
Posição de Blon del: con jun to daquilo sobre o que se age (e n ão a
“realidade por trás das aparên cias”).

A creditar na ciência? Confiar nela?


com o em uma tecnologia intelectual;
com o em um con jun to de verdades absolutas;
com o em um con jun to historicamente relativo e con struído (como tal ou
assim ilado a um absoluto);
A “fé” na ciência remete à questão do engajamento e do projeto, mas
n ão a resolve.

A ciência como trabalho sobre os limites


Cf. alteridade, superação, festa, jogo
remetimento à questão do sentido e da ética.

Palavras-chave

Explicação/ verdade prática/ verdade absolu ta/ coisa-em-si/ fen ôm en o/


“sujeito”da ciên cia/ confrontação com a alteridade/ coerên cia/ agnosti-
cism o kan tian o/ verdade-reflexo/ verdade para a ação/ idéia regulativa/
acreditar na ciên cia/ festa cien tífica/ trabalho sobre os lim ites/ jogo dos
possíveis/ demência h um an a.
C A P Í T U LO 12

ÉTICA IDEALISTA E ÉTICA H ISTÓRICA

Ética, moral, culpabilização1

Para m u itos, falar de “ética” evoca códigos m or ais, coisas a fazer


ou n ão fazer, e in du z com freqü ên cia a sen t im en t os de cu lpa. Para
algu n s as qu est ões “éticas” ligam -se de m an eir a qu ase in evitável à
m oral afetiva e sexu al. N est e capítulo, n ão gost ar íam os de exam in ar
a relação en tre a ciên cia e a ética em u m sen t id o tão estreito.
D ir em os q u e est am os lid an d o com u m a q u est ão ética q u an d o,
d ian t e de u m a situ ação, pode-se ser levado a colocar a qu est ão
d aq u ilo qu e é desejável. Para algu n s, a qu est ão colocar-se-á n os
segu in t es t er m os: “O qu e devo fazer?” ou , m ais sim plesm en t e, “O
q u e é qu e eu (n ós) q u er o (qu er em os) fazer?”. E isto sab en d o qu e
o m u n d o será tal com o con st r u íd o p o r n ós. (Verem os q u e a
reflexão política segu ir á e se qu est ion ar á sob r e os com p r o m isso s

1 Est e cap it u lo ten ta, em algu m as p ágin as, ap r esen t ar u m a v isão d a ética. Para u m a
ap r esen t ação m ais d et alh ad a, ver o m eu Ch oix éth iques et conditionnem ent social
1Escolh as éticas e condicionam en to social, Fou rez, 1979b ].
264 GÉRARD FOUREZ

qu e ju lgar aceitáveis, e n egociará par a ch egar ao estabelecim en to


de leis civis qu e ser ão im p ost as de m an eir a coercitiva aos cid ad ãos;
sen d o essas leis con ven ções qu e, em u m a socied ad e plu ralista, n ão
p o d em ab r an ger o con ju n t o d as posições éticas d e t od os os
cid ad ãos; cf. Ricoeur, 1985.)
D esse m od o, u m pr ofessor de m atem ática a q u em se pedirá
q u e en sin e em u m a escola técn ica e n ão em u m a com u m , a fim de
ben eficiar com su as capacidad es ped agógicas alu n os m en os privi­
legiad os, pod er á se pergun tar: “O qu e devo fazer?”, “O qu e qu er o
fazer?”. Igu alm en te, algu ém qu e se pergun ta se irá fr au dar o
im p ost o de ren da situa-se em u m debate ético. O u ain da, aqu ele
qu e qu er se p osicion ar dian te de m en talidades racistas; u m p esqu i­
sad o r pergu n tan do-se se aplicará a su a experiên cia a em b r iões
h u m an os e assim p or dian te.
C ad a sociedade d esen volve cód igos m or ais, m as o debate ético
é b em m ais am plo d o qu e esses cód igos (Ku h n , 1987). Falar em os
aqu i de ética ou de m or al sem p r e qu e se tratar de d iscu ssões (por
vezes pu r am en te in teriores) qu e se p od e ter a respeito da m an eir a
ad eq u ad a de agir. V er em os com o essas d iscu ssões se fazem den t ro
d aq u ilo qu e eu ch am ar ia de par ad igm as éticos qu e colocam em
jogo razões, valores, ideologias, represen tações d aq u ilo qu e se qu er
par a os seres h u m an os. A pr óp ria m an eir a pela qu al apresen tarei
o d ebate ético n ão é n eu tra: reflete as m in h as escolh as éticas e
ideológicas.

Ética idealista

Falar em os de u m a ética idealista q u an d o se su p õe q u e a m or al


decorr e d e u m a série de idéias etern as, qu e se t or n am u m a n or m a
par a a ação. A m an eir a pela qu al se con st r ói o raciocín io idealista
n a m or al pod e ser ilu str ado pelo exem plo q u e se segu e: “A idéia
d e ‘fam ília’ im plica u m a relação m on ogâm ica; p o r con segu in te,
p ar a ter u m com por t am en t o ético é pr eciso guiar-se p or essa
n o r m a.” U m a m u lt iplicidade de n or m as éticas pod er iam ser assim
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 265

p r op ost as, t od as deduzidas d as idéias. A idéia de sexu alidade


h u m an a det er m in ar á as n or m as n esse cam po. O m esm o ocorreria
com a idéia de ju stiça. A idéia d e am izade forn ece as n or m as par a
as n o ssas relações e assim p or dian te.
C o m b ase n essa perspectiva, falar de m oral é pr ocu r ar as idéias
qu e for m am a b ase d e n o sso m u n d o, p ar a delas dedu zir os valor es
e n or m as a serem p r op ost os aos seres h u m an os.
Su põe-se qu e essas idéias sejam d ad as. Em geral, com pleta-se
esse tipo de filosofia m oral d esign an d o a in stân cia qu e “d á” essas
idéias. N a prática, essas in st ân cias com u m en te são Deus, ou a
N atu rez a, ou a R az ão, ou a Ciên cia, ou qu alqu er con ceito equivalen te.
Parafrasean do a expressão de Tou r ain e (1975), pode-se dizer qu e se
tem n esse caso u m a espécie de “m oral d o s d eu se s”, o qu e sign ifi­
caria qu e existem in st ân cias ú ltim as legitim an do a ética.
M u itas vezes, aqu eles q u e p r op õem u m a m oral idealista reser­
vam à ciên cia u m papel im por tan te n a b u sca d essas idéias. Ela será
in cu m b id a (de m an eir a n eutra?) de en con t r ar a n atureza d as coisas
ou as idéias eter n as. D esse m od o, pedir-se-á aos cien tistas qu e
d efin am o q u e é a m orte, a sexu alidade, a fam ília, a fem in ilidade,
a m ascu lin id ad e, a m ast u r bação etc., a fim de dedu zir as n or m as
d as idéias “d escob er t as”. A s an álises an teriores m ostr ar am a debi­
lid ad e d e sem elh an te ab or dagem . Além d o m ais, d esd e o sécu lo
XVIII, ap ó s H u m e e o seu T ratado sobre a N atu rez a H u m an a, rar os
são os filósofos qu e aceitam ain d a qu e se p ossa, d o qu e é, in ferir
o qu e deve ser. C o m o ob serva Kem p (1987, p .49), “a ciên cia n os
cu m u la de in form ações sobre o qu e p od em os fazer ... m as n ão se
segu e daí qu e con vém fazer, e m en os ain d a qu e devem os fazer tu do
o q u e en tra n o cam p o de n ossas p o ssib ilid ad e s” (cf. t am bém
M oor e, 1903).

Um ponto de vista histórico sobre a ética

O p o n t o de vista qu e ir em os p r op or agor a pod e ser ch am ad o


de “h ist ór ico” p o r d o is m otivos. Por u m lad o, con sid er ar em os qu e
266 GÉRARD FOUREZ

o debate ético n ão fu n cion a em t or n o d e idéias etern as, m as em


t or n o d e con ceitos h istor icam en te con st r u íd os e, p or ou t r o lado,
q u e o p r óp r io debate evolui ao lon go d a h istória.
O qu e é con sid er ad o com o m or al em u m a det er m in ad a época
p od e, m ais ced o ou m ais tarde, ser con sid er ad o com o in adm issível
d o p on t o de vista m or al. H ou ve ép ocas e cu ltu r as em qu e a
p oligam ia foi con sid er ad a n or m al d o p on t o de vist a m or al e ou t r as
em q u e n ão o foi. D o m esm o m od o, n o s Est ad os U n id o s, h á d ois
sécu los, a m aioria con sid er ava a escr avidão com o eticam en te
aceitável; h á u m sécu lo, p ou cos su sten tavam ain d a esse d iscu r so.
Em ou t r o exem plo, h á n ão m u ito tem po, con siderava-se qu e, par a
u m a m u lh er , u sar calças era con trário à decên cia; a op in ião m or al
se m od ificou h oje sobr e esse pon t o. P oder íam os con tin u ar esses
exem p los ao in fin ito. E p or esse m otivo q u e é útil ad ot ar u m
“m od elo” d a m an eir a pela qu al se p r ocessa em geral o desen volvi­
m en to de u m debate ético.
U m a reflexão ética particular com eça n o m om en t o em qu e
algu n s est ão im p r ession ad o s com o sofrimento e gritos de dor (cf.
Feu erbach , 1845) ou , em ou t r os term os, q u an d o n os en con t r am os
dian t e d o “r ost o” d e u m ou t r o (Levin as, 1961). T o m an d o u m
exem p lo coletivo, foi n ecessár io qu e se ou vissem os gritos de
sofr im en to d os escravos n egr os d a Am ér ica p ar a q u e u m a reflexão
ética se in st au r asse a r espeito. D ian t e d esse sofr im en to, algu m as
p e sso as t om ar am con sciên cia de su a liber d ade e d isser am : “Quere­
mos realm ente faz er um m undo como esse.7”. D aí su r giu u m debate
qu e colocou em q u est ão as represen tações com u n s, m as p or vezes
op ost as, às q u ais se d en o m in am valor es.2
C o m o exem plo d e d esp er t ar d e u m a ética in dividu al ou
in terp essoal, con sid er em os a situ ação d e u m casal em qu e u m d o s
côn ju ges está de tal m o d o en volvido com su a p r ofissão qu e
ab an d o n a o ou tro; u m debate ético poder ia ter in ício se o pr im eir o

2 D izer q u e a reflexão ética se in icia d ian t e d o sofr im en t o n ão im plica q u e est e seja


co n sid er ad o co m o u m v alor (com o q u an d o se diz q u e é p r eciso evit ar fazer ou t r a
p e sso a sofrer) m as co m o u m a “alt er id ad e" q u e d esen cad eia a r eflexão.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 267

se d er con ta de qu e o ou t r o sofre. A n t es d isso, n os d ois exem plos


citados, h á b oas ch an ces de qu e se con tin u e a agir, sem se colocar
qu est ões e ju lgan d o t u d o “n or m al”.
O sofr im en to é, portan to, u m en con t r o com u m a alteridade;
p ar a a perspectiva h istórica, é p or esse en raizam en to n a h istór ia
em q u e h om en s e m u lh er es sofr em qu e o debate ético n ão pod e
se reduzir a p on t os de vista su bjetivos (é p o r esse viés, d ir ão algu n s,
q u e se fu n d a a objetividade da m oral; n o debate ético, n ão se discu te
in icialm ente a p r op ósit o de pr in cípios ou valor es, m as a respeito
de p e sso as q u e sofr em - m esm o qu e, par a u m a d iscu ssão racion al,
con stru am -se valores). A s n ossas ações têm e terão algo a ver com
esses sofr im en tos e esses gritos; o debate ético colocar á ao su jeito
a segu in te qu estão: Q u e u n iverso qu er em os con st ru ir dian te d essas
situ ações? D e sse m od o, a ética parte sem pre de u m a con sciên cia
d o q u e sim b olicam en te d en om in am os de m al, per cebido de in ício
com o u m a situ ação q u e pr ovoca sofr im en to, e a r espeito d a q u al
algu m a coisa n o s diz, em n ós e a n o ssa volta, “E n ecessár io?”.
N e sse sen tido, a m or al é objetiva, n ão por qu e ela teria pr in cí­
p io s et er n os ou valor es isen t os de ideologia, m as p or qu e as n o ssas
ações têm r esu lt ad os e efeitos objetivos, n o sen t ido m ais h abitu al
d a palavra. E a r ealidade d o s r esu lt ados de n ossas ações sobr e os
h o m en s e as m u lh er es qu e in dica qu e as m or ais d a in ten ção (ou
som en te a “sin cer id ad e” d aqu ele qu e age seria im portan te) são
d em asiad o estreitas (Fourez, 1979b , p.94-7). O debate ético n ão se
ocu p a ap en as com a sin cer idade d as in ten ções, m as t am bém com
o s efeitos con cretos qu e pod em ser con st at ad os e an alisad os
segu n d o o s m ét od os h abitu ais d a objetividade. A ssim , q u aisq u er
q u e sejam as in ten ções (ou a sin ceridade) d o b êb ad o n o volan te,
a su a ação tem r esu lt ad os objetivos. O m esm o ocorre em t od o s o s
d om ín ios: objetividade d a edu cação, d o s con flitos sociais, d as
gu erras, d as libertações etc. W eber , aliás, distin gu iu essas d u as
atitu des, sem dú vid a com plem en tar es: a m or al d a con vicção e a
m or al d a r esp on sab ilid ad e. A prim eira atribui m ais im por tân cia
ao s valor es e p r in cíp ios, salvagu ard as de n o ssa ação; a segu n d a,
aos r esu lt ad os q u e se esp er a e q u e se assu m e (W eber, 1971).
268 GÉRARD FOUREZ

N ão obstan te, h istoricam en te, os gritos de sofr im en to são m al


articu lados. D e fato, se algu ém m e esm aga o pé, é p ou co provável
q u e eu p o ssa explicar calm a e claram en te qu e tipo de op r e ssão
estou sofr en d o. E p or isto qu e são im por tan t es as vozes proféticas,
q u e irão articular o s gritos e even tu alm en te tran sform á-los em
palavr as au díveis.3 Essas vozes proféticas, ao falar da in ju stiça e
den u n ciá-la, in trodu zem u m novo debate ético. P en sem os, por
exem plo, n o papel de Sim on e de Beau voir, ao articu lar u m a sé­
rie d e sen t im en t os d as m u lh eres relativos a su a situ ação de “ se­
gu n d o sexo”.
A ssim foi a ação tradicion al d o s profetas em Israel e assim
con tin u a sen d o a d o s profetas m od er n os, sejam estes os quak ers
d en u n cian d o a escr avidão d esd e o in ício d o sécu lo XVIII, os
pr im eir os objetores d e con sciên cia, os pr im eir os ecologistas etc.
Em cada u m d esses casos, essas vozes irão articu lar o debate, criar
n ovos con ceitos e in trodu zir u m diálogo cu jo ob jet o resum e-se em
pergu n tar: “Q ue m undo é este que nós iremos - de m odo irreversível
- con struir por meio de n ossas ações.7”.
A s vozes proféticas parecem sem pre dizer ao povo, com o os
an tigos profetas de Israel, “Vocês se pr eocu pam com u m a série de
n or m as éticas, q u an d o n o m eio de vocês h á u m m al qu e vocês
d escon h ecem , qu e n ão qu er em ou n ão pod em recon h ecer. O m al
ético qu e vocês d en u n ciam com o u m a falta n ão é o qu e im por ta;
pr estem m ais aten ção a esse m al qu e u m a n ova con sciên cia
d en u n cia h oje com o m al. E isto qu e se tor n ou , em n o sso s d ias,

3 N as t r ad ições ju daico-crist ãs, u m relato bíblico n ar r a isto m u it o bem : M o isé s é


algu ém qu e, graças a su a ed u cação n a corte d o Far aó, ser á capaz d e dizer tan t o ao
p ovo h ebreu com o egípcio o sofr im en to pr ovocado pela escr avidão d o povo. A Bíblia,
aliás, descreve a sit u ação com bast an t e sutileza: ed u cad o n a corte d o Far aó, ele se
t o m a con scien t e de q u e fãz par te d o p ovo ao o lh ar o sofr im en t o d e u m h eb r eu
cast igad o p or u m egíp cio. A o in tervir, m ata esse egipcio e d ep ois t om a con sciên cia
d e su a sit u ação; exila-se e, ao exper im en tar em su a p r óp r ia pele o q u e é a o p r e ssão ,
tom a- se capaz d e refletir sob r e a situ ação d o povo. En tr etan t o, afast ad o d est e p or su a
ed u cação, pr ecisará d a aju d a d e su a ir m ã e d e se ir m ão p ar a falar a lin gu agem d o
p ovo. D e p o is d ist o co n segu ir á su scit ar n egociações co m o Far aó.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 269

cen tral para o debate ético” (aos b r an cos d o s Est ad os U n id o s n o


sécu lo p assad o , p or exem plo, vozes proféticas d isser am : “V ó s vos
pr eocu pais com u m a série de observações m or ais e r eligiosas, m as
existe u m p ecad o en tre vós qu e n ão ch am astes ain d a p o r seu
verd ad eiro n om e: a escr avidão!”). A o articu lar os gritos de sofri­
m en to, as vozes proféticas con st r oem n ovos valores, em geral
ligad os a ou t r os m ais an tigos e m ais gerais.
Q u an d o , ap ó s ter, p or u m certo tem po, clam ad o n o deserto,
as vozes proféticas são en fim ou vidas, pode-se con st ru ir u m discu r ­
so ético q u ase sistem ático, colocan d o às clar as t u do o qu e está em
jogo n a ação. Ch egar-se-á d esse m od o a dizer qu e a escr avidão é
in adm issível, qu e n ão é m oral ter r elações p ou co equ alitár ias em
u m casal, segu ir u m a lou ca corrida ar m am en tista etc. Esses pr in cí­
p ios, n or m as ou m áxim as n ão são d iscu r so s qu e caem d o céu:
r esu m em o con sen so de u m a época e de u m a cu ltu r a.4 O s “valores
ét icos” d esse m od o afir m ad os fu n cion an d o com o espécies de
“d ep ósit os de avaliações ser vin do de ap oio a n ovas avaliações”(Ri-
coeu r, 1975; Kem p, 1987), facilitam o debate, p er m it in d o a
in tr odu ção de u m a certa r acion alidade n as d iscu ssões éticas.
U m a vez con st ru ídos, esses prin cípios e valores - qu e resu m em
con se n so s sociais - ser ão u tilizados n o debate ético, n ão com o
p on t os de par tida ab solu t os, m as com o or ien t ações ( jalon s) em
u m a com u n icação visan d o sem p r e det er m in ar q u e m u n d o qu er e­
m os con stru ir.
O n ascim en t o e desen volvim en t o de u m debate ético n ão se
ligam todavia a valor es e con siderações “pu r am en te” éticos. O u t r os
fatores in tervém e são por vezes dom in an t es. Se o n orte d o s Est ados
U n id o s se m ostr ou fortem en te an ti-escravagista em m ead os d o

4 N est e sen rid o, o s p r in cíp ios éricos par ecem relativos. A lgu n s utilizam co n m d o
m áxim as absoiucas tais co m o : “N ão tor t u r ar ás" ou co isas d o ripo. E ssas m áxim as,
m esm o q u e se ap r esen t em co m o ab solu t as d o p o n t o d e vista lin gü íst ico, p ossu e m
u m sen t id o n a p er spect iva h istór ica aq u i ap r esen t ad a. C o m efeito, r ep r esen tam u m
lim ite im p ost o pela pr ática, u m a lin h a d em ar cat ór ia em u m a situ ação pr ecisa. U m a
tal m áxim a n ão se d est in a a r esolver as sit u ações con cr etas pr át icas, m as a estr u t u r ar
d ifer en ças (cf. Ben asayag, 1986; Fou rez, 1979b ).
270 GÉRARD FOUREZ

sécu lo XIX, com t od a p r ob ab ilid ad e n ão se deveu u n icam en t e a


pr eocu pações altru ístas, m as t am bém ao fato de qu e a escr avidão
se revelou in ad apt ad a às in cipien tes estru tu ras in du st riais (en qu an ­
to con tin u ava a cor r esp on d er às n ecessid ad es econ ôm icas d o su l
agrícola). O debate ético está sem p re ligad o às lu tas ideológicas em
q u e se cru zam in teresses diversos. P osições m or ais freqü en tem en te
recobrem d om in ações ideológicas: d ão aos gr u p os sociais u m a
im agem de si p r óp r ios qu e legitim a as d om in ações (Fourez, 1979b).
A lgu m as p essoas têm a im p r essão de qu e se ad ot ar em o p on t o
d e vista h istór ico torn a-se im possível falar de qu alq u er valor
per m an en t e n a h istór ia. T ocad o s pela m an eir a com o a ab or d agem
h istórica en fatiza a relatividade de toda reflexão, dedu zem qu e essa
perspectiva im plica u m total relativism o, ou m esm o u m irracion a-
lism o desen fr ead o. N ão é eviden tem en te n ad a d isso. C o m efeito,
m esm o recon h ecen do qu e o s n o sso s valor es, com o tod a a n o ssa
r acion alid ad e, carregam a m arca d a h istór ia, pod e existir u m
d iálogo - de u m a racion alid ade a ser defin id a - en tre os p on t os de
vista e as culturas.
D esse m od o, algu m as p essoas recon h ecem qu e, n a reflexão
m or al d o s h om en s e d as m u lh eres, em an a u m a certa sab ed or ia
qu e m ostr a algu m as con st ân cias. Por m eio d as flu tu ações d a
h ist ór ia m u itas coisas per m an ecem . Pode-se, p o r exem plo, ao
m esm o tem po en fatizar o caráter h istoricam en te m ar cad o d as
ideologias d os direitos d o H om em e recon h ecer os laços com ou tr as
con clu sões éticas, em ou t r as culturas ou ou t r as r acion alid ad es.
A lgu m as corren tes filosóficas in sist ir ão sobr e o fato de qu e refle­
xões éticas, em últim a in stân cia n ão redutíveis en tre si, são an álogas
e expr im em u m a certa participação em u m d in am ism o h u m an o
com u m . In d iqu ei an terior m en te n esta ob r a de qu e m od o o con ­
ceito de “t radu ção” perm ite ab or d ar situ ações com o essas. Sist em as
éticos cultural ou filosoficam en te irredutíveis p od em ser “traduzi­
d o s” u m n o ou tro. Sem elh an t es tradu ções sem pre traem u m pou co
o s p en sam en t os exp r essos, m as colocam em evidên cia q u e u m
d iálogo, im possível em u m certo nível de abst r ação teórica, pode
realizar con cretam en te acor d os p r ofu n d os.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 271

N ão ob st an t e, se n os ar r iscam os, com b ase em u m lu gar


h ist ór ico particular, a falar de estru tu ras fu n d am en t ais d o agir
h u m an o, será sem p r e pr eciso efetuar u m t rabalh o crítico: d esm as­
carar aqu ilo qu e, n as r epr esen tações, ten de de m an eir a con creta a
op r im ir m u lh er es e h o m en s. Eviden tem en te esse m esm o t rabalh o
crítico per m an ecer á m ar cad o p or su a par ticu lar idad e...

O que é uma decisão ética?

Se fôssem os idealistas, d ir íam os qu e u m a d ecisão põe em jogo


d im e n sõ es éticas se ela coloca o m u n d o p or n ós con st r u íd o em
acor d o com as “ id éias” n orm ativas. Em pr in cípio, q u an d o se é
idealista, t od a d ecisão é ética, já qu e t u d o ser á ou n ão con for m e a
essas idéias (essas “id éias” p od en d o estar ligad as à n atureza d as
coisas, ou aos valor es eter n os, a D eu s etc.). N a prática, con tu d o,
t om am o s con sciên cia d e q u e h á u m a diferen ça en tre a d ecisão de
com p r ar u m car ro e n ão u m a m oto, e a d ecisão de m atar ou n ão
algu ém : as su as relações com os valor es n ão são as m esm as.
Se ad ot ar m os u m p o n t o de vista h ist ór ico, dir-se-á qu e u m a
d ecisão é ética q u an d o, dian te d o debate ético (e, sem dú vida, n o
fin al d as con tas, d ian te d o sofrim en to), assum e-se o risco de agir
em u m a direção ou ou tr a e d esse m od o com prom eter-se par a o
futuro.
D en t r o d a perspectiva idelista, a ação, segu n d o a su a con for ­
m id ad e ou n ão com o m u n d o d as idéias, será b oa ou m á. A n or m a
d a ação é exterior a si m esm a: reside n as idéias. Já n a perspectiva
h istórica, dir-se-á q u e existe u m a d im e n são ética d esign an d o o fato
de escolh erm os, de m an eir a irreversível, o m od o pelo qu al evoluirá
o m u n d o. O caráter ético de u m a ação con sist e en tão n o fato de
qu e ela d eter m in a o fu tu ro d e m an eir a irreversível: o m u n d o será
aqu ilo qu e o s n o sso s at os fizerem . D esse p on t o de vista, n ão se
pod e, n ão m ais d o qu e n a perspectiva idealista, escapar à d im en são
ética: com efeito, p r ecisam os agir (n ão d ecidir já é u m a decisão), e
272 GÉRARD FOUREZ

as n o ssas ações m old ar ão o futuro. D ian t e d o m u n d o p or n ós


m old ad o, assu m im o s n ecessar iam en te as n o ssas r esp on sab ilid a­
d es; aí se situ a a d im en são ética in con torn ável d e n o ssa ação.
Em u m caso con creto, as d u as perspectivas fu n cion am com
n u an ças diferen tes. Ret om em os o caso de u m p r ofessor d o en sin o
secun dário a qu em se propõe que aban don e o en sin o público para se
con sagrar ao en sin o profission alizante pois, com o lh e dizem, “preci­
sam-se de b on s professores com o você n o en sin o profission alizan te”.
Se ele p en sa de m an eir a idealista, esse p r ofessor pergun tar-se-á
q u al é a boa d ecisão a ser t om ad a. E su p or á qu e existe - gr aças às
in st ân cias qu e fu n d am a m oral - u m a b oa d ecisão; trata-se de
en con trá-la. O debate ético con sist ir á em procurá-la. A n or m a da
ação é en tão exterior à liberd ade. O b ser vem os qu e essa exteriori-
d ad e favorece u m a ten d ên cia à cu lpabilização.
D e um pon t o d e vista h istórico, n ão existe n o céu d as idéias
u m a r espost a qu e é pr eciso en con trar. O agen te h u m an o - esse
p r ofesso r - en con tra-se em su a situ ação (com t od os o s sofr im en tos
q u e p od em estar a ela associad os). E precisará decidir. O fu tu ro
ser á d et er m in ad o p o r su a decisão. N a m edida em qu e se percebe
qu e a d ecisão p od e m od ificar de m an eir a sign ificativa a pr óp ria
existên cia, a d o s ou t r os e d o m u n d o, fala-se de u m a d im en são ética:
o qu e se qu er criar com o futuro? O fato de qu e será n ecessár io
escolh er, e qu e essa escolh a terá con seqü ên cias, apresen ta-se com o
u m im perativo ético. Este, porém , n ão p ossu i u m con teú d o preciso;
a ética su rge en tão com o u m a categoria qu e d esign a as ações
vin cu lad as com a m an eir a irreversível pela qu al elas m old ar ão o
fu tu ro. N ão existe, par a o p r ofessor d e qu e falam os, u m a r espost a
escrita d e an tem ão sob r e o qu e ele precisa fazer; con tu d o, se ele
d ecid ir per m an ecer n o en sin o geral, o m u n d o con tin u ar á assim ;
se ele for par a o “pr ofission alizan t e”, a su a ação t am bém in flu en ­
ciará o fu tu ro. E a questão ética pode ser assim en un ciada: “Dian te
da h istória e do m al que existe n ela,5 o que eu quero (ou nós querem os)

5 Pela exp r essão “m al n a h ist ór ia”, d esign o essa situ ação h u m an a, ligad a à ação d o s
ser es h u m an o s, e d a q u al é difícil e talvez im p ossível d et er m in ar a or igem pr ecisa,
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 273

faz er (e onde arriscarem os o futuro)?”. N o en gajam en t o ético, ar r is­


cam os a n o ssa existên cia e o sen tido qu e lh e at r ib u ím os. O debate
ético con sist ir á em u m a d iscu ssão de valor es, p r ocu r an d o com ­
p r een d er as su as im plicações, os qu e as defen dem e os r esu lt ad os
d a ação, para ch egar à qu est ão à qu al r esp on d er á o ju lgam en t o
prático ético: E isto o qu e qu er em os? A m an eira pela qu al a ação
determ in ará o m undo a vir define a objetividade d a ética.
Por esse cam in h o a ética se ach a su b m et id a àq u ilo qu e p sicó­
logos e especialistas em ética ch am ar am de Lei, a Lei d a Ação. Q u er
se qu eir a ou n ão, as n ossas ações m arcam -se de m an eira irreversível
em n o ssa existên cia: con st r u ím os o n o sso fu tu ro e é im possível
fugir d isso. E p or isso m esm o q u e so m o s su jeit os h istór icos. A Lei
da Ação fu n d a o su jeito, obrigan do-o a se situ ar e a se estru tu rar
n a particu laridade de seu en gajam en t o e dian te d o s ou t r os, n a
h ist ór ia em qu e ele se in sere e a qu al ele estru tu ra. A irreversibili-
d ad e d o agir faz-nos sem p r e lem br ar de qu e a h istór ia n ão term in a
n u n ca, e q u e ela é aberta; ela rem ete d esse m od o ao qu e d en o m i­
n am os de Lei d a Car ên cia, ou da Alteridade. Em ou t r os t er m os,
jam ais d o m in am o s a n o ssa ação; aceitan do-n os n a h istória, com
t od as as n o ssas par ticu lar idad es, n ós n os com p r om et em os com o
n o sso futuro.
O pon t o de vista aqu i apr esen tado, e in sist in d o sobre a escolh a
irreversível n a h istória, pod e n os apr oxim ar de u m a leitura de Kan t
(Fou rez, 1979b , p .100) qu an d o, ap r esen t an d o a reflexão m oral, ele
escrevia: “Pergun ta a ti m esm o se pod er ás con sid er ar a ação qu e
ten d es em vista com o u m ob jet o possível d e teu qu er er caso esse
objeto p o ssa fazer parte, segu n do as leis da Natureza, de u m m u n d o
d o qu al tu m esm o ser ias par te.” O u ain da, “Age de m od o tal qu e
a m áxim a de tua ação p o ssa se torn ar, p o r teu qu erer, u m a lei
u n iversal d a N at u r eza.” Em ou tr os ter m os, o qu e ele ch am a de
im perativo categórico exprim iria qu e est am os colocad os dian t e de

m as q u e a m aior ia t en d er á a ch am ar de “ m al” e t en tar á “ retificá-la” . A s figu r as d esse


m al h ist ór ico são m ú lt ip las: tor tu ras, exp lor ações, d esigu ald ad es sociais, alien ações
d iver sas etc. N a s t r ad ições cr istãs ele foi sim b olizad o n a d ou tr in a d o p ecad o or igin al.
274 GÉRARD FOUREZ

n o sso qu erer, qu e se in screve n o m u n d o com a im placável irrever-


sib ilid ad e qu e o sécu lo XVIII traduzia pelo term o: “leis u n iver sais
d a N atu reza”(cf. Kan t, 1982).6

Um a moral do apelo e o debate ético

O debate ético é u m a reflexão racion al e com u n itár ia qu e se


situ a em m eio a con sid er ações, relatos, e apelos m ú lt iplos (Fourez,
1979b ; Kem p, 1987). N ist o o caso d o pr ofessor t en d o d e escolh er
en tre o en sin o geral e o pr ofission alizan te é típico; h á u m a
p o ssib ilid ad e de se en gajar n o en sin o pr ofission alizan t e e o con vi­
d am par a tal a fim de m elh or ar a situ ação d o s joven s qu e aí
est u d am . N o debate ético, pode-se con sid er ar diver sos t ipos de
ap elo (explícitos ou im plícitos), m u itas m an eir as pelas q u ais se
p od er ia valorizar o fu tu ro. Existem apelos pr ecisos (com o n o caso
d o p r ofessor de m atem ática a qu em se solicita algo, m as qu e su a
fam ília t am b ém ped e q u e esteja d ispon ível); existem t am bém
ap elos m ais gerais qu e percorrem o n o sso p assad o. A h istór ia p od e
ser vista segu n d o os ap elos de G an d h i, de H itler, de Pin och et, de
M ar t in Lu d ier Kin g, d e Je su s, de Bu da, de São Fr an cisco de A ssis,
d o s ecologist as, d as fem in istas, d o s pacifistas, d os econ om ist as
k eyn esian os, d o s m ar xist as etc. Existem apelos em m itos, poem as,
id eologias, con tos, r om an ces, valores, relatos p r ofan o s e religiosos.
E sem p re d ian te d a h ist ór ia (e ao m al n ela presen te) e d o s apelos
q u e fazem parte d o debate ético qu e n os en gajam os, p or n ossas
escolh as, n a h istória.
D ep ois d esse exem plo d o pr ofessor t en d o de escolh er en tre o
e n sin o geral e o pr ofission alizan te, p od er íam os con siderar o de u m
n orte-am erican o se per gu n t an d o, em 1860, se ele con tin u ar á a
m an ter escravos. D e u m pon t o de vista idealista, ele se pergun taria

6 Essa leitu ra d e Kan t n ão foi p ar t ilh ad a p o r t o d o s o s seu s co m en t ad or es: em seu


p en sam en t o, algu n s ver iam u m a m or al da in ten ção.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 275

se “ter escr avos é u m m al”, e o debate ético se cen traria sob r e a


idéia d os direitos d o H om em . E ele con sid er ar ia qu e h á u m a
r espost a ú n ica a ser en con tr ada. Procurará even tualm en te deduzi-la
de u m a idéia d o qu e é o ser h u m an o. Em u m a perspectiva h istórica,
ele se pergu n tará: “Se r á qu e eu d esejo pr od u zir u m m u n d o on d e
eu teria, e on d e h averia escr avos?”. O debate ético n o qu al ele se
en gajar á pod er á utilizar t am bém a n oção d os direitos d o H om em ,
ou ou t r os valores, m as com o con ceitos, e n ão com o idéias. N a
perspectiva h istórica, o s con ceitos servem par a esclarecer pon t u al­
m en te o qu e está en volvido n a ação; n ão se pod e dedu zir, de
m an eir a absolu ta, n or m a algu m a.
Pode-se estabelecer facilm en te u m a correlação en tre a per spec­
tiva h istórica e a “ju st ificação pela fé ou pela con fian ça” , segu n d o
São P au lo, assim com o com a “crian ça” , segu n d o as m et am or foses
d o esp ír it o de Nietzsch e. C o m efeito, arriscar a su a ação e dizer:
“Eis o qu e d esejo” é con fiar. Aqu eles qu e vivem em u m a per sp ec­
tiva de “ju stificação pelas o b r as” desejam sab er o qu e eles “d evem ”
fazer; e a exterioridade d as n or m as idealistas n ão deixa de ter u m a
relação com as in st ân cias legitim an tes q u e regu lam a existên cia d o
“r eb an h o” de Nietzsch e.

R esp on d er à q u est ão “O qu e eu qu er o?” im plica sem p r e u m


p asso em dir eção ao d escon h ecido, u m p asso q u ase m ístico, n a
m ed id a em qu e é sem pre a decisão de ir em fren te para a con stru ção
parcialm en te irreversível de n ossa h istória. E im possível escap ar à
escolh a, e a m aioria d o s “é pr eciso” ou “deve-se” colocad os de
m an eir a ab solu ta são ap en as véu s ideológicos par a m ascar ar pr o­
posições d o tipo “eu q u er o”, ou “ n ós q u er em os”.

P orém , os “é preciso” e os “deve-se” p o ssu em sen t ido q u an d o


acom p an h ad os d a explicitação d os critérios, e port an to são relati­
vos. A ssim , a p r op osição “é preciso respeitar a vida d o feto h u m an o”
pod e m u itas vezes ser u m a con ver são de “Queremos r espeitar a vida
d o feto h u m an o”, ou d a p r op osição “Se consideram os o em b r ião
h u m an o com o u m a p essoa, e queremos respeitar a vida de t od o ser
h u m an o, en tão é preciso respeitar a vida de todo feto h u m an o”.
276 GÉRARD FOUREZ

A ssim ocu ltados p or trás d o s “é pr eciso” e “deve-se” h á, de m an eir a


geral, direta ou in diretam en te, os “q u er em os” ou “eu q u e r o”.
Em pr in cípio, t oda p r op osição d o tipo “é pr eciso fazer ist o”
p od e ser tradu zida seja em u m a p r op osição descritiva con dicion al
(“se fizerm os isto, en tão tal con seqü ên cia se segu ir á”, ou “se se
q u er defen d er tais valor es ou obter tais objet os, tal tipo de com p or ­
tam en to é n ecessár io”), seja em u m a p r op osição n orm ativa parti­
cu lar (“eu qu er o (n ós qu er em os) qu e se faça ist o”). A p r op osição
con d icion al “se isto, en tão tal con seqü ên cia” d ep en d e de u m a
an álise p or m eio da qu al se decide lim itar a descr ição d as con se­
qü ên cias àqu elas qu e se m en cion a (ou qu e se percebe p or m eio de
su a grad e an alítica). A pr op osição n orm ativa rem ete a qu em coloca
as n or m as. P orém , d e q u alqu er m od o, cada u m d ep en d e de u m a
d ecisão (por vezes explícita, por vezes im plícita).
Para Nietzsch e, evitar esses “eu q u er o” p or m edo de se en volver
e refugiar-se n os “deve-se” ou “a ética diz q u e” é u m a m oral de
escr avos q u e n ão ou sam ser livres. Para H eidegger, é viver n o
m u n d o da in au ten ticidade, o m u n d o d o “se ” im p e ssoal.7 H á
crist ãos qu e p en sam d o m esm o m od o, em u m a lógica religiosa.
Para eles, Je su s teve tan ta con fian ça n essa Presen ça, qu e ele
ch am ava de Pai, qu e ele n ão teve m ed o de falar com au t or idad e e
de dizer “eu q u er o”; e, d o m esm o m od o, d ep ois dele, o s crist ãos
p od em viver com u m a tal con fian ça qu e eles n ão t en h am m ais
m ed o de fazer livrem en te a su a h istória, dizen d o eles t am b ém “eis
o q u e eu q u er o” .
Por m aior qu e seja o n ú m er o de critérios qu e t en h am sid o
elab or ad os n o debate ético, o en gajam en t o d o s seres h u m an o s em
su a h istória acom pan h a-se sem pre de u m d iscu r so sim b ólico qu e
explicita o sen t ido de su as ações. O discurso sim bólico com põe-se
d e relatos qu e se p od e su bst it u ir ao ser em n ar r ad os. Referem -se
em últim a in stân cia àqu ilo em que se crê da vida. O caso m ais típico
de d iscu r so sim bólico é o discu r so religioso. Q u an d o, p or exem plo,

7 Em fran ccs, “le m o n d e d u ‘o n ’”, equ ivalen te ao p r on om e “se ” co m o ín dice d e


in d et er m in ação d o su jeit o. (N. T.).
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 277

u m cristão diz qu e recebe a su a vida de u m Deu s-am or, tal com o


revelado em Je su s Cr ist o, ele fala par a com u n icar u m a experiên cia
de sen t id o. Existem t am bém lin gu agen s sim b ólicas qu e n ão se
referem à religião. E o caso q u an d o algu ém diz qu e a existên cia
h u m an a se reduz ao m aterial, ou q u an d o ou t r o afirm a qu e o seu
sen t id o é o am or. O d iscu r so sim bólico fala, en fim , sobr e a fé qu e
cada u m tem n a existên cia. N ão se pod e reduzi-lo à ciên cia qu e n os
perm ite d o m in ar as n o ssas vid as, n em ao s critérios u tilizados n o
debate ético. Refere-se sem p re aos gr an d es relatos m íticos e h ist ó­
ricos p or m eio d o s q u ais p en sam o s (“m ítico” n ão sign ifica “v ão ” ,
ou “len d ár io”; esse term o se refere à m an eira pela qu al n os com u ­
n icam os q u an d o t en t am os dizer aqu ilo qu e, em n o ssa experiên cia,
n ão p od e ser m ais apr een d id o por ter m os clar os e b em defin idos).

Construção de uma ética ou de um paradigma ético

N a perspectiva de u m a m oral n ão idealista, o debate ético sobr e


u m a q u est ão eviden tem en te n ão é etern o. Ele n asce em u m a
d et er m in ad a época e se desen volve de u m a m an eir a qu e n ão era
n ecessar iam en t e a ú n ica. D esse m od o, a ética d o t r an sp lan te de
ór gãos só se desen volveu n o m om en to em qu e o m esm o se t or n ou
tecn icam en te possível. A s qu est ões éticas relativas à escr avidão só
su r gir am len tam en te p or m eio da h ist ór ia d o con tin en te am er ica­
n o. A q u elas relativas aos direitos da m u lh er n a sociedade patriarcal
têm u m a h ist ór ia b ast an t e recen te.
A p r óp r ia m an eir a pela qu al as qu est ões são colocad as é
r esu lt ad o de u m a evolução, razoável sem dú vida m as n ão n ecessá­
ria. A ssim , n o qu e se refere ao t ran splan te de ór gãos, as equ ip es
d o s qu e t r abalh am n a área d a saú d e (m éd icos, assist en tes sociais,
en ferm eiros, técn icos etc.) ch egam geralm en te a u m a certa m an eir a
de ab or d ar a qu est ão. O debate assu m e u m a d et er m in ada for m a,
aqu ela qu e, de acor d o com o costu m e, pareceu a u m a d ad a
com u n id ad e m ais ad equ ad a par a debater de m an eir a eficaz o qu e
se d eseja fazer a r espeito.
278 GÉRARD FOUREZ

Pode-se com par ar , en tão, o debate ético com os p ar ad igm as


cien tíficos: o debate ético e a r acion alidade cien tífica elaboram -se
em t o m o d e u m a série d e pr essu p ost os, m an eir as d e ver, ar gu m en ­
tos, atores sociais e t en sões aceitos p o r t od os os qu e par ticipam d o
debate. A ssim com o a r acion alid ade cien tífica se desen volve em
t or n o de p ar ad igm as, a m oral se con strói em t or n o de par ad igm as
éticos, qu e con fer em u m a estru tu ra a su a r acion alidade. Eles
veicu lam e organ izam as m an eir as d e colocar e avaliar as qu est ões
qu e pareceram m ais ad equ ad as às p essoas: o s valores. O s par ad ig­
m as éticos, assim com o os par adigm as cien tíficos, ach am -se con d i­
cion ad o s pelo m eio econ ôm ico, político e cultural. A ssim , a ética
d o com ércio será elabor ad a de m an eir a diferen te p or aristocratas,
b u r gu eses ou t rabalh ad or es m an u ais. E a ética ser á p en sad a de
m an eir a in teiram en te diferen te em u m a socied ad e com u n itár ia ou
em u m a in dividu alista.
D o m esm o m od o qu e, n a ciên cia, n o in terior de u m a r acion a­
lidade defin id a p o r u m par ad igm a, falam -se de leis cien tíficas qu e
r esu m em , p or vezes de u m a m an eira bem in ad eq u ad a, t oda u m a
série de r epr esen tações cien tíficas, d o m esm o m od o, em m oral,
en u n ciam -se “n or m as” ou “p r in cíp ios” qu e r esu m em t od a u m a
sab ed or ia de vida, percebida por m eio da h istória d as com u n id ad es
h u m an as qu e as ad ot ar am . Aliás, ocorre p o r vezes qu e certos
valor es ou pr in cípios éticos pareçam tão im por tan tes (com o o “n ão
r ou b ar ás”) qu e as p e ssoas os con sid er am etern os, esqu ecen do-se
de q u e r esu m em u m a percepção d aqu ilo qu e o gr u p o con sid er a
desejável. A ssim , diz-se qu e tal ou tal ação é con tr ár ia à ética, com o
se esta existisse d esd e sem p re so b esta m esm a for m a; seria m ais
pr eciso dizer qu e essa ação é con trária à determ in ada m oral ou ética
particular.
A con stru ção de m or ais, sistem as de valor, ideologias e n or m as
é m u ito im portan te p or qu e, sem elas, ser ia im possível ter debat es
coeren tes e seria n ecessár io recom eçar a cada m om en t o deliber a­
ções q u e se t or n ariam d em asiad o lon gas. A ssim , t od os con cor d am
com o fato de qu e as n or m as d a ética m édica qu e pr oíb em op er ar
u m a p essoa sem o seu con sen tim en t o são úteis. Ist o n ão sign ifica
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 279

qu e elas sejam ab solu t as. N ão são m ais ab solu t as d o qu e as “leis


cien tíficas”. En tretan to, assim com o as teorias cien tíficas n os
for n ecem r epr esen tações d aq u ilo qu e n os con sid er am os capazes
de realizar n o m u n d o, d o m esm o m od o a m oral n os forn ece
r epr esen tações d o q u e u m a com u n id ad e con sid er a desejável de
fazer em su a h istór ia. O s par ad igm as éticos perm item com p ar ar
diferen tes ab or d agen s e expr im ir os valor es aos q u ais se referem
diferen tes p osições. E, assim com o as teorias cien tíficas qu e deri­
vam de d iver sos p ar ad igm as, t am bém as posições éticas n ão são
facilm en te com en su r áveis ou discu tíveis q u an d o n ão se referem
ao s m esm o s p ar ad igm as éticos.

Confrontações com os valores e as pessoas

M esm o en tre aqu eles qu e con sid er am qu e os valor es são


pr od u zid os h istoricam en te, podem -se d istin gu ir d u as atitu des éti­
cas, a prim eira bast an t e pr óxim a d o idealism o. Est a posição
parece-m e ter sid o b em exposta p or Koh lb er g (1981), q u an d o
afirm a qu e a p essoa m adu r a d o pon t o de vista ético tom ará decisões
com total liber d ade e r esp on sab ilid ad e, em b or a t om an d o com o
referên cia o s valor es m ais u n iversais pr od u zid os p or n o ssa cultura.
So b este en foqu e, é sem p re dian te d o s valor es, com o n oções gerais
(qu ase com o “id éias”), qu e os h u m an os se decidem . A segu n d a
p osição in siste sobr e o fato de qu e, afin al de con tas, n ão é p or
referên cia a valor es qu e se decide - m esm o qu e os valor es sejam
n ecessár ios ao debate e à reflexão ética. Em ú ltim a in st ân cia, sob
esta perspectiva, é dian t e d as p essoas, de seu sofr im en to e cara a
car a com elas qu e d ecid im os.
C ar o l Gilligan m ostr ou com o a lógica de Koh lber g refere-se a
u m en foqu e particular: par a ela, trata-se de u m a r acion alid ad e
alien ad a, t ipicam en te m ascu lin a. Já a segu n d a perspectiva, m ais
freqü en te n as m u lh er es, teria m ais presen te qu e, p or trás d os
valores, existem p e ssoas (cf. Fourez, 1979b ).
280 GÉRARD FOUREZ

Moral cristã idealista e histórica

P oder íam os dizer qu e existem d u as im agen s d e D eu s: u m a,


aqu ela qu e Nietzsch e con den ava, evoca u m D eu s qu e q u er servi­
d or es ou escravos; ou tra evoca u m D eu s qu e con sidera os h u m an os
com o seu s am igos e par ceir os, e os d eseja livres, ao m esm o t em po
em q u e esper a bast an t e deles. Ist o con du z a d o is t ipos d e m oral
cristã, u m a h istórica e a outra idealista.
Para o cristão “id ealista” , a b ase d a m oral é a idéia do que ê um
cristão. Essa idéia se su p õe de an tem ão d et er m in ada, e o b om
cristão ten tará se con for m ar a ela. O cr ist ian ism o será visto en tão
com o u m a religião m oralizan te e D eu s com o o gu ar d ião d essa
m oral.
O cristão qu e p ossu i u m a visão h istórica é alguém qu e escolh eu
levar em con ta a esper an ça de D eu s tal com o ela se revela em Je su s
C r ist o e con siderar , n a su a vida, o apelo ligado à prática de Jesus.
N ão se trata tan to de im itar Jesu s qu an t o, assim com o ele,
en gajar-se n a h istória, dian te d o m al h istórico. D est a perspectiva,
o q u e é “ser crist ão” n ão é d et er m in ado de an tem ão; cada cristão
terá, com o Cr ist o, de arriscar a su a existên cia. E, com o Jesu s, dian te
de su a escolh a, terá a dizer: “Eis a m in h a vida, tal com o eu a levo
h o je.” Je su s a dedicava aos ou tr os, em u m a escolh a precisa; o
m esm o valerá par a o cristão, m as ele terá de decidir-se a isso. A
existên cia de Jesu s, portan to, par a esse cristão, será u m a referên cia
im portan te, u m apelo. Porém , para esta perspectiva ética, D eu s n ão
está fora d a h istória, im p on d o su as n or m as; ele com p ar t ilh a de
n o ssa h istória, arrisca-se Ele pr óp r io, e con vida-n os a agir com o
Ele. D en t r o desta visão ain da, a relação com D eu s n ão é vivida
tan to com o en tre o ser vidor e o Sen h or , m as com o de am igo a
Am igo: D eu s, em Je su s, in terpela o s h u m an os e n os d á u m
Im p u lso8 graças ao q u al cr iam os n ossa p r óp r ia h istória.

8 Soufflé, n o or igin al: liter alm en te, So p r o (N. T.).


A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 281

O b ser vem os t am b ém qu e, en tre os cristãos, algu n s - n a


perspectiva de Koh lb er g - falarão de u m a m or al con fr on t ad a ao
b em e ao m al. O u t r os in sist ir ão em u m a perspectiva segu n d o a
qu al a decisão, em últim a in stân cia, é t om ad a dian te de u m a p essoa
h istórica: b em en car n ad a em Jesu s.

A indispensável análise no debate ético

Exam in an d o-se o qu e se quer fazer, u m debate ético deve


apoiar-se sobr e u m a r epresen tação d aq u ilo qu e é possível fazer,
assim com o sobr e o s m eios e fin s d a ação possível. Em ou tr os
term os, caso se qu eir a refletir sob r e o qu e se irá fazer, im por ta
an alisar seriam en te a situ ação, as su as cau sas e efeitos possíveis.
Em n o ssa cultura ociden tal, ap r en d em os a distin gu ir en tre a
d escr ição de u m a situ ação e os ju ízos de valor qu e se pod e fazer a
r espeito. N ão ob st an t e, h á m u itos qu e só con segu em falar sobr e
u m a situ ação em t er m os de valores. C a so lh es seja colocad a, p o r
exem plo, u m a q u est ão a respeito d o abor to, estas p essoas r esp o n ­
d er ão qu e são “a favor” ou “con tr a” a descrim in alização d o m esm o,
sem an alisar em qu e con sist e o fen ôm en o de qu e falam . N o p lan o
p essoal, m u itas p essoas têm dificu ldade em distin guir, n as relações
afetivas, o s sen t im en t os e as ações: n ão pod em , p or exem plo,
an alisar com o se vive u m a relação extracon ju gal, sem im ediatam en ­
te proferir u m ju ízo de valor. O r a, é possível efetuar u m a an álise
m ais apr ofu n d ad a, e pergu n tarm o-n os som en t e d ep ois d isso sobr e
o fato de sab er se é algo qu e gost ar íam os ou n ão d e aprovar.
Com p r een d er n ão é n em ap r ovar n em d esapr ovar é an alisar.
V er em os n o p r óxim o capítu lo de qu e m od o a ciên cia p od e
trazer u m a en or m e con tr ib u ição par a a an álise d as situ ações qu e
se qu er d iscu t ir d o p on t o de vista ético. Con t u d o, atu alm en te,
pode-se p r op or u m a r ápid a grade an alítica (Ch eza, 1980) qu e pode
con tr ib u ir par a qu e se veja com m ais clareza as qu est ões éticas.
282 GÉRARD FOUREZ

C o m o prim eira etapa, de acor d o com essa gr ade an alítica,


examin ar-se-á a situação que se quer discutir da m an eira com o ela se
apresen ta, espon tan eam en te. Depois, serão identificados os indivíduos
e os grupos implicados. Em seguida, estudar-se-ão as su as causas: todos
os fatores que conduziram a história ao ponto em que se coloca o debate
ético. En tre esses fatores distinguem-se em geral os fatores econômicos
(todos aqueles ligados às questões de din h eiro ou à organização social
qu e se con stitui ten do em vista a produção), os fatores tecnológicos (as
exigên cias d as t ecn ologias ad ot ad as sobr e a sociedade e os in diví­
d u os), o s fatores políticos n o sen tido m ais am plo da palavra (todas as
relações de poder), os fatores culturais e ideológicos (todas as idéias e
tradições que m otivam e m obilizam as pessoas e legitim am as su as
m an eiras de agir), os fatores emocionais (ligados às relações in terpessoais
ou à h istória p sicológica d o s in divídu os). P aralelam en te a cada u m
d esses fatores, n ós n os pergun tarem os que interesses (econ ôm icos,
técn icos, de poder, ideológicos, em ocion ais) esse “am on toado” in duz
para os in divíduos e gr u p os im plicados. O exam e de t od os esses
elem en t os an teriores a u m a situ ação an alisad a perm ite u m a com ­
p r een são qu e evita qu e o debate ético se situe em u m terren o
d em asiad o abstrato. A ssim , qu an d o se an alisaram todos os interesses
e fatores m en cion ados a respeito de u m a eventual decisão de fech a­
m en to de um a em presa, ou de u m a in terru pção volu n tár ia d a
gravidez, ou de u m r ou b o em u m a gr an de loja, ou de u m
en gajam en t o em u m a p r ofissão, tem-se, em cada u m d o s casos,
u m a represen tação da situ ação bem diferen te d a anterior.
N a seqü ên cia, a an álise con tin u a pelo exam e d o s p ossíveis
cen ários d o futuro: q u ais poder iam ser as con seq ü ên cias, com o
aval d e u m a even tual decisão? Q u ais seriam os efeitos d as diferen tes
estratégias de ação dian t e d a situação? C o m qu em se pod er ia ser
solid ário e com qu em se en traria em oposição? A in d a aqu i, o exam e
d o s p ossíveis cen ários projeta sobr e aqu ilo q u e se p od e fazer u m a
luz in teiram en te diferen te d a qu e poder ia pr ojetar a ab or d agem
esp on tân ea.
E som en t e após u m a an álise desse tipo qu e o debate ético
pr op riam en t e dito p od e ocorrer. Q u e valor es en con t r ar em os im ­
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 283

p licad os n essas situ ações e cen ários? Q u ais são aqu eles qu e qu er e­
m os privilegiar e p o r qu ê? Q u ais são as situ ações qu e n ão d eseja­
m os de m od o algu m e p o r qu ê? Q u ais são as m an eir as de agir qu e
con sid er am os sim pát icas e p or quê? O debate em t or n o d essas
qu est ões p od e esclarecer a situ ação, a u m p on t o em qu e aqu eles
qu e refletem d esse m od o p od em com eçar a decidir e dizer: “ Eis o
qu e eu qu er o fazer, d e m an eir a irreversível, com a m in h a vid a.”

Debate ético e justiça

Em toda sociedade, existem im agen s ideológicas d o q u e é


con sid er ad o com o “ju st o ” e com o in ju sto. A ssim , se t om o u m a
cerveja em u m bar e d ep ois n ão p o sso pagá-la, alegan do qu e o d o n o
d o b ar é m eu am igo, d ir em os qu e isto n ão é “ju st o ”. Exprim e-se
com isto qu e, em n ossa cultura, h á u m gr an de con sen so em relação
ao fato de qu e, em tais cir cu n stân cias, ten h o de pagar o q u e devo.
Dizer qu e algo é ju st o rem ete a u m con sen so existen te a respeito
d o assu n t o (em certo sen tido, h á u m a sem elh an ça en tre o con sen so
qu e afirm a “o qu e é ju st o ” e aqu ele qu e afirm a o s “fatos”). Pode-se
con sid er ar port an to qu e toda vida em sociedade im plica certas
n oções de “ju st iça”.
Falar de ju st iça é situar-se dian te de u m a “alteridade”, já qu e
n ão poderei d et er m in ar sozin h o o qu e é con sid er ad o com o ju st o;
o ou t r o e o s ou t r os est ar ão sem p re p r esen t es par a m e qu est ion ar .
E p o r isso qu e se p od e con sid er ar qu e a ordem d a ju stiça é a ordem
que respeita as diferen ças entre os seres h um an os. Em ou t r os ter m os,
a or d em d a ju st iça é aqu ela n a qu al se m ede, se con ta, em op osição
à or d em d a d oação e d o per dão, em qu e se deixa p or u m m om en t o
de fazer con tas (Fourez, 1986, cap .19). Se devo pagar o m eu cop o
de cerveja ao d o n o d o bar, é por qu e ele é diferen te d e m im , e
p o r q u e n ão p o sso decid ir por ele sobr e o qu e ele deseja. E claro
qu e, se ele m e diz qu e é p or su a con ta, n ão t en h o m ais q u e pagar;
ele tem o direito d e m e dar; porém , eu n ão p o sso decidir qu e é a
284 GÉRARD FOUREZ

su a vez de pagar. D ir íam os.q u e “n ão seria ju st o ” (é possível qu e,


em u m a ou tra cultura, ou em ou tr as cir cu n stân cias e segu n d o
ou t r os critérios, a respeito d os q u ais h ou vesse con sen so, o qu e se
d ir ia “ju st o ” seria qu e m e d essem a cerveja; p or exem plo, se eu
tivesse vin d o ajudar-lh e e d ep ois ele m e trou xesse u m cop o de
cerveja seria geralm en te con sid er ad o in ju sto qu e ele m e fizesse
pagar p or ela).
D en t r o d essa perspectiva, d ir íam os qu e u m com por t am en t o é
in du zid o pela ju stiça se ele visa a d ar a u m ou tro (aos ou t r os) o qu e
lh e (lh es) é devido, in depen den t em en te de m in h a b oa von tade. A
ju stiça reconhece direitos aos outros, independentem ente de m im .
A qu est ão de sab er o qu e é devido a algu ém em det er m in ada
circu n stân cia - o qu e são seu s “d ir eitos” - é eviden tem en te delica­
da. Para “dizer” os direitos, será preciso qu e isto seja “dit o” , m as
p o r u m a in stân cia qu e p o ssa fazê-lo, sem su p r im ir a alteridade, ou
seja, o respeito pelo ou tro. A lgu m as p essoas, qu e p ossu em u m a
con cepção b astan te idealista da “ju st iça”, p en sam q u e os direitos
de cad a p essoa são d et er m in ad os de m an eir a u n iversal, in d ep en ­
d en tem en te d a h istór ia e d as sociedades. O u t r os con sid er am qu e
o qu e é “ju st o ” d ep en d e de con tin gên cias h istóricas.
A socied ad e volta e m eia debate o qu e é “ju st o ”. E u m debate
ético, p ois se discu te o qu e se qu er criar com o existên cia in dividu al
e coletiva: q u ais os direitos qu e se qu er recon h ecer a t od o ser
h u m an o, por exem plo. N as socied ad es estáticas, o “ju st o ” e o
“in ju st o ” são per ceb id os com o d et er m in ad os d esd e sem pre, ou
q u ase. N as sociedades de m aior m obilidad e, pelo con trário, o qu e
é a ju st iça é b em m en os claro. A ssim , n os Est ad os U n id o s, n o
sécu lo XIX, n ão era fácil sab er se era “ju st o ” ou n ão p ossu ir
escravos.
A r epresen tação d o “ju st o ” é de or d em ideológica, n o sen t id o
d e qu e é u m a r epr esen t ação qu e m otiva e legitim a. Ela variará de
acor d o com as situ ações e liga-se a m an eir as de repr esen t ar os
p r óp r io s in teresses e o s de ou t r os. C on t u d o, n ão existe socied ad e
sem u m certo n ú m er o de represen tações relativas ao qu e é “ju st o ”.
A o d eterm in ar o qu e se espera de cada u m para qu e n in gu ém ten h a
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 285

m u it o a im p r essão de algu ém pisar sobr e o s seu s pés, as represen­


tações d a ju stiça são um dos fun dam en tos da ordem social

E d esse m od o qu e a n oção de ju stiça está sem pre ligada a u m a


certa n oção de “b em com u m ”, m as este pod e ser p en sad o pelo
m en os de d u as m an eir as. D e acor d o com a prim eira, bast an t e
idealista, o bem com u m existe, e é pr eciso ir ao seu en calço. D e
acor d o com a segu n da, o con ceito d esign a o m ovim en to pelo q u al
in d ivíd u os ou gr u p os p od em su perar, em d et er m in ad os m om en ­
tos, os seu s objetivos e in teresses particu lares par a se ocu p ar com
o s ou t r os; con form e essa con cepção, n em sequ er se cogita fazer
u m a r epr esen t ação u n iversal d o bem com u m ! A in d a de acor d o
com essa segu n d a perspectiva, o “bem com u m ” n ão pod e determ i­
n ar a lei, p ois t od as as represen tações qu e se adotam , sob r e as
m an eir as de su p er ar o bem privado per m an ecem sem p re particu ­
lares aos in d ivídu os ou gr u pos sociais.

A lgu m as socied ad es, com o a n ossa, elabor ar am u m código


ju r íd ico, ou seja, u m a codificação relativam en te precisa d o qu e se
esper a de cada u m par a respeitar os direitos de t od os, assim com o
os p r oced im en t os a segu ir em caso de litígio. Elas estabeleceram
t am b ém u m a força con sid er ad a com o legítim a, qu e p o ssa fazer
r espeitar esse direito. A existên cia de sem elh an te direito tem , em
prin cípio, a fin alid ad e de proteger o s in d ivídu os da ar bitrar iedade
d o s p o d er osos (Fou rez, 1979b , cap.2). Porém , com o se articu lam
o debate ético (ou a “m or al”) e o direito vigen te?

Para algu n s, existe (ou deve existir) u m a relação direta en tre a


lei civil e a m oral. Segu n d o essas con cepções, em geral ap ar en t ad as
a u m a for m a ou ou tr a de idealism o, a ju stiça pode ser praticam en te
“d ed u zid a” da m oral. E o qu e ocorre pr in cipalm en t e com as
tradições d o direito n atu ral (o jusn aturalism o), qu e relacion am a
m or al com o direito. O fu n d am en t o m oral d o direito estaria seja
n a n atureza d as coisas, seja em u m a im agem qu e as p e sso as se
fazem d o “bem com u m ” para o con ju n t o d a sociedade. Espera-se
qu e a lei p u n a o r ou b o, o assassin at o ou a in terru pção d a gravidez,
p or qu e é “ r u im ” . D en t r o d esta perspectiva, as con d en ações, em
286 GÉRARD FOUREZ

n om e d o direito, se fazem essen cialm en te por qu e algu ém teria


com et id o u m ato “m au ”.
Para ou t r os, n ão é tão im portan te con sid er ar o vín cu lo en tre
o direito e a m oral. Esses ju r ist as positivistas con sid er am o direito
tal com o existe, sem pergun tar-se sobr e a su a origem . A ú n ica coisa
qu e o s in teressa é a su a lógica e a m an eira pela qu al ele se aplica.
C o m b ase n essa perspectiva, u m a con d en ação n ão está ligada ao
“m al”; con den a-se sim plesm en t e p or qu e algu ém violou a lei. Essa
m an eir a de ver o direito liga-se à t om ad a de con sciên cia de qu e
aqu eles qu e violam a lei n em sem p re são, de acor d o com o b om
sen so, p essoas m ás; ou , em t od o caso, qu e elas n ão são n ecessa­
riam en te m en os b oas d o qu e ou tr as qu e n ão foram p u n id as
(algu ém qu e tiver r ou b ad o m ilh ares de fran cos, p or exem plo, será
com certeza con d en ad o; é ele “p ior ” d o qu e o h om em de n egócios
qu e, em plen a legalidade, ar r u in ou dezen as d e fam ílias?).
A con cep ção posit ivista d o direito recusa-se a “m or alizar ” em
t or n o d as violações d a lei. E o m otivo pelo q u al m u it os o vêem
com o liberalizan te, p ois con sid er avam in ju st o cu lpabilizar as
p e sso as con d en ad as q u an d o, em geral, elas n ão são “ m en os
b o a s” d o qu e ou t r as p e sso as. N o fu n d o, a con cep ção p osit ivista
recusa-se a efetuar ju lgam en t os m or ais sobr e o qu e é ju st o segu n d o
a lei; ela rem ete os in d ivíd u os a su a p r óp r ia con sciên cia ou aos
gr u p o s com os q u ais eles d ebat em q u est ões éticas. Esta con cepção
se con ten t a em dizer qu e, d e acor d o com u m co m p r o m isso social,
a força pú b lica atr ibu ir á a cad a u m o qu e lh e é d et er m in ad o pelo
direito.

Um a concepção política e positiva do direito

O u t r os, en fim , p ossu em u m a con cepção “política e posit iva”


d o direito; eles qu er em refletir ain d a m ais sobr e a su a origem e a
m an eir a pela qu al ele expr im e a bu sca de com p r o m isso com os
con flitos d a sociedade. Para estes, a plu r alidade d as posições em
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 287

u m debate ético t or n a vã a pr et en são de fu n d ar o direito sob r e a


m or al - a n ão ser par a u m certo n ú m er o d e casos sem p r ob lem as,
em q u e o con sen so é praticam en te u n iversal. N ão qu e, par a eles,
o direito n ão se refira o t em po t od o à ética (as leis expr im em o qu e
se “q u er fazer” em u m a sociedade), m as as leis - com exceção de
algu n s casos n os q u ais existe u m con sen so social relativo à ética e
ao s in teresses - repr esen tam co m p r o m isso s dian te de diver sos
p r ojetos m ais ou m en os em op osição. O caso da legislação relativa
à in terru pção d a gravidez é típico d isso: em n ossa sociedade
p lu r alista, n ão existe con sen so ético a respeito.
A s leis qu e se votam são portan to, em essên cia, compromissos
políticos, ligados a n egociações en tre visões e, even tualm en te,
in teresses op ost o s. D e m od o geral, expr im em as relações de força
n a socied ad e; p or alto, são as n or m as im p ost as pelos m ais fortes,
m as sem p re m od er ad as qu e eles tiveram qu e aceitar, d ad a a força
relativa d os m ais fracos (essa situ ação é particularm en te visível n o
estabelecim en to d o direito d o t rabalh o ou d o direito de caça). P ode
h aver en tão u m a gr an d e d istân cia en tre o direito e o qu e certos
gr u p os sociais con sid er ar iam ético.
O direito (pr odu zido em geral p or m eio d o s con flitos sociais)
teria en tão u m caráter con ven cion al e seria d et er m in ad o pelas
relações de força políticas. Raram en te ap en as rem eteria a u m con ­
sen so ético. N ão ob stan te, n ão faria sen t id o p r op or um direito sem
referir-se ao tipo de m u n d o qu e se q u er criar, ou seja, a u m debate
ético. N o caso em q u e existe u m relativo con sen so social sobr e o
qu e é ju st o, tem-se a im p r essão de qu e o direito se fu n da sob r e a
m or al (assim , com o existe u m con sen so ético sobr e o fato de n ão
m atar o s p r óp r ios p ais, e com o n in gu ém qu est ion ar ia u m a lei
san cion an d o sem elh an t e ato, ten de-se a dizer qu e tal lei se b aseia
sob r e a m oral. D o m esm o m od o qu e se diz, q u an d o n ão h á
con testação algu m a, qu e a observação descreve o s fatos, q u an d o
existe con sen so diz-se qu e certas leis decorr em d a m oral). Em
ou t r os casos, a lei expr im e u m acor d o bem m ais frágil, seja q u e ele
ten h a sid o im p ost o pelos m ais fortes, seja qu e ele resulte d e u m
com p r om isso.
288 GÉRARD FOUREZ

O direito n ão p od e port an to ser iden tificado à ética. N ão


obstan te, o fato d e qu e existe u m direito p ossu i u m a sign ificação
sim b ólica im portan te. Ele in dica qu e n ão se qu er viver as relações
h u m an as b asead o n o pu r o m od o d as relações de força (ou da
d oação gratuita), m as qu e se aceita a m ediação de u m a “lei” qu e
atribui u m lu gar a cada u m , ou qu ase. Pela “lei” sign ificam os qu e
jam ais est am os pu r a e sim plesm en t e u m dian te d o ou tro, de
m an eir a du al, m as qu e h á sem pre u m a alteridade, u m terceiro
m em b r o, a lei, qu e n os lem bra qu e qu er em os atribu ir u m valor a
cada in divídu o. Sem dú vida, o h or r or q u e provoca, em n ossa
cu ltura, a escr avidão ou a tortura provém d o fato de qu e, n esses
casos, o ou tro é apen as u m objeto dian te d o d on o ou d o torturador,
q u e n ão existe m ais lei n a gestão d esse tipo de r elação en tre os
h om en s (cf. Ben asayag, 1986).
Ch am a-se de d o m ín io d a política aqu ele lugar em qu e os
co m p r o m isso s d o direito se n egociam . A política é sem p r e in sp i­
rada p or p osições éticas (cada parte represen ta par a si o m u n d o
qu e deseja), m as n ão se p od e con fu n d ir o s d ois d om ín ios. Sem e­
lh an te con fu são correria o r isco de en gen d r ar u m totalitarism o,
isto é, u m a situ ação em qu e u m a parte con sid er ar ia legítim o im p or
a su a ética a t odos. A m oral é port an to a r epresen tação d o fato de
q u e se assu m e o risco pessoal de qu erer (de certo m od o, de m an eira
in d epen d en t e de ou t r os qu e podem qu er er ou tra coisa!), ao p asso
qu e a política é o lu gar d o s com p r om issos sem p r e n ecessár ios (e,
n o en tan to, q u an d o se aceita u m com pr om isso, assum e-se u m certo
en gajam en t o ético, p ois se decide assu m ir esse com p r om isso, com
as con seqü ên cias qu e ele irá provocar).
A von tad e de aceitar com p r om issos políticos t est em u n h a u m a
in sp ir ação m oral característica de u m a ética e ideologia plu r alistas,
q u e con sid er am o respeito aos ou t r os e a su a liber d ade de con s­
ciên cia pelo m en os tão im por tan tes q u an t o o triun fo de n ossa
con cepção ética. Pode ocorr er qu e, em n om e de u m a m oral em
b u sca de acor d os par a salvar u m a est abilidade social, se aceitem
co m p r o m issos e leis con trárias à represen tação q u e se tem da
m oral. E p or isso qu e m u itos in sistem sobr e o fato de qu e a m oral
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 289

c o direito são d istin t os. N ão obst an t e, o est abelecim en t o de leis


só p od e ocorrer n o in terior de u m debate ético em qu e cad a p essoa
recorre às id eologias par a legitim ar a su a m an eir a de ver, a su a
m an eir a de qu er er con st r u ir o m u n d o.9

Justiça e amor

Afirm ei an terior m en t e qu e a n oção d e ju st iça era u m con ceito


ideológico ligado àqu ilo qu e se con sid er a com o d evido a cada
p essoa - ao s direitos e deveres in depen den t em en te d o s p on t os
de vista su bjetivos (m as p r op on d o acor d os con ven cion ais). A
ju stiça, n esse sen t id o, fun da-se sobr e as difer en ças en tre as p essoas
e as partes. N a perspectiva da ju stiça, as difer en ças (e com fr eqü ên ­
cia as divergên cias) de in teresses são recon h ecidas.
Q u an d o se fala de am or, pelo con tr ár io, in siste-se m u it o n o
fato de qu er er o bem da p essoa qu e se am a. O am or n ão se b asear ia
sob r e a diferen ça, m as sobr e a com u n h ão. C on t u d o, a perspectiva
d a com u n h ão p od e ser am bígu a. Se, com efeito, qu er o a felicidade
d o ou tro, este d eseja a su a felicidade com o eu desejo? O respeito
pelo ou tro ped e qu e, an tes de pr ocu r ar a felicidade d o ou t r o, eu
r econ h eça qu e ele p od e ter u m a op in ião diferen te d e m im a esse
respeito. O am or qu e n ão com eça recon h ecen d o a diferen ça d o
ou t r o, ou seja, a d im e n são d a ju stiça, é u m am or qu e in vade, e é
p or vezes oprim en t e. Den om in a-se patern alism o a essa atitu de qu e
preten de tor n ar os ou t r os felizes sem lh es deixar d ar a su a op in ião
e d efen d er o q u e realm en te qu erem .
U m a tal relação en tre a ju stiça e o am or é particu larm en te
im portan te n os gr u p os e relações em qu e se in siste sobr e a
com u n h ão, e em especial n a fam ília, n a am izade e n o am or . N o
am or, recon h ecer qu e o ou tro é diferen te, qu e ele n ão tem

9 Para u m a d iscu ssão d a in teração en t re ética e política, ver Ricoeu r (1 9 8 5 ) e M ou ffe


(1987).
290 GÉRARD FOUREZ

n ecessar iam en t e os m esm os pr ojetos e objetivos qu e eu, e q u e ele


pod e ter in teresses ou desejos op ost os, é d ar o seu lu gar à d im en são
d a ju stiça n a relação. Preten der, pelo con trário, qu e am b os for m am
ap en as u m é su p er d im en sion ar essa relação, visan d o a u m a
h ar m on ia total, sem con flito. In felizm en te, essa atitu de con du z
com freqü ên cia a con flitos tan to m ais p en osos qu e eles são
p er ceb id os com o fr acassos e acabam p or acarretar u m a culpabili-
zação. O q u e n ão é de su rpreen der, p ois ao preten der se referir à
com u n h ão total, corre-se o r isco de n ão ver qu e esta r epou sa sobr e
u m a im agem particu lar d o “b em ” par a am b os. Referir-se, pelo
con tr ár io, à im agem de u m a n egociação con tín u a en tre parceiros
realm en te diferen tes é perm itir-se, talvez, u m a relação n a qu al u m
e ou t r o p od em recon h ecer-se e am ar-se n as diferen ças.

Ideologias da justiça

Q u an d o as p essoas falam de ju stiça, referem-se n or m alm en t e


a u m a represen tação ideológica d o qu e é ju st o. Em n ossa sociedade,
as n oções de ju st iça p od em ser classificadas em algu n s t ipos gerais.
Exam in ar em os de in ício os d ois valor es qu e se apr esen t am com
m ais freqü ên cia para “fu n d ar ” a n oção de ju stiça: a igualdade e a
liberdade. Co r r esp o n d em respectivam en te às ideologias igualitárias
e neoliberais. V er em os t am b ém qu e, n as perspectivas igualitaristas
pode-se con sid er ar três t ipos de igu aldade ou de ju stiça: as ju stiças
procedural, distributiva e substan cial. A m en ção d esses diferen tes
p o n t o s de vista perm itirá perceber qu e, por trás d as n oções de
ju st iça, diferen tes con cepções en tram em u m debate ideológico:
u m a n oção de ju stiça pod e ocu ltar u m a outra!
A s ideologias liberais in sist em sobr e o respeito à liberdade. A
su p r em a in justiça, d esse p on t o de vista, e n ão respeitar a liberdade
d e algu ém . Dir-se-á, p or exem plo, qu e n ão é ju st o in st au rar
r egu lam en t os qu e n ão perm item aos in divídu os pr ogr edir den t ro
d a em p r esa.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 291

A s ideologias de tipo social-dem ocrata, pelo con trário, con sid e­


ram qu e a su p r em a in ju stiça é tolerar en or m es desigualdades. C o m
b ase n essa perspectiva, declara-se in ju sto, por exem plo, qu e h aja
p essoas m or r en d o de fom e en qu an t o ou t r as acu m u lam privilégios.
N a lin gu agem corren te, q u an d o se fala de ju stiça, faz-se refe­
rên cia em geral a u m a ou ou tra d essas perspectivas. Co n t u d o , u m a
n ão con du z à ou tra, pelo con trário! C o m efeito, d ar sem restrições
o p r im ad o à liber d ade é d ar a liberd ade ao forte dian te d o fraco.
Aliás, qu er er a igu aldad e é em geral lim itar a liber d ade d o forte.
Essas d u as con cepções d a ju stiça são port an to an tin ôm icas. E o
qu e M on t esqu ieu bem expr im ia ao dizer qu e, en tre o forte e o
fraco, a liberdade op rim e, ao p asso qu e a lei libera. De m od o m ais
trivial: se coloco u m lob o e u m cor deiro ju n t os e priorizo a
liberdade, p o sso esp er ar ver o cordeiro com id o. Se qu iser im pedir
isso, o lobo se qu eixar á de qu e se in frin ge a su a liberdade.
A s lu tas sociais ligadas à in du strialização m ostr ar am a t en são
existen te en tre esses d o is p on t os de vista: a in sistên cia sobr e a
liber d ad e d o s pat r ões lh es perm itirá op r im ir o s trabalh ad or es, e os
r egu lam en tos qu e d efen d em estes d im in u em a liber d ad e d o s
patrões. U m a gr an d e in sistên cia sobr e a liberdade p od e levar a
u m a socied ad e on d e rein a a lei d a selva, en q u an t o u m a in sistên cia
sobre a igu aldade pod e produzir, levada ao extrem o, u m a sociedade
bastan te bu rocrática.
Q u an d o se fala de ju stiça em u m a perspectiva igualitária,
existem ain d a diver sas m an eir as de com preen dê-la. Fala-se de
ju stiça procedural q u an d o t od os en fren tam o s m esm os pr oced im en ­
tos. Isto ocorre, p or exem plo, q u an d o t od os têm as m esm as
qu est ões a r esp on d er n os exam es, ou o s m esm os pr oced im en t os
par a obter u m em pr ego (n ada de “p ist olões”!). A “ju stiça procedu-
ral” favorece o forte, n a m edida em qu e, sem u m a correção, o forte
prevalecerá.
A ju st iça distributiva qu er estabelecer u m corretivo par a esse
tipo de desigu ald ad e, visan d o a u m a igu aldad e de r esu lt ados, e n ão
som en t e a p r oced im en t os. Pode-se qu er er corrigir, por exem plo,
por m eio de p r ocessos d e redistribu ição fiscal, as gr an d es d esigu al­
292 GÉRARD FOUREZ

d ad es de ren da. Em ou t r o exem plo, n o sistem a escolar o sistem a


p r oced u ral cu idaria par a qu e a escola fosse a m esm a para t od os,
en q u an t o u m a perspectiva de ju stiça distributiva ten taria d ar u m a
aju d a diferen ciada aos alu n os social, fam iliar ou in telectualm en te
m en os d ot ad os, a fim de d im in u ir as d esigu ald ad es n o en sin o.
A in d a n este caso, o qu e pode parecer “ju st o ” de u m p on t o de vista
p o d e n ão sê-lo d e u m ou tro.
En fim , ch am a-se de ju stiça substan cial u m a perspectiva qu e
su p õ e u m a “or d em d o m u n d o ”, u m a sociedade on d e seria b om
viver e qu e con sidera qu e, n a m edida em qu e n os ap r oxim am os
d essa ord em , t em os u m a sociedade ju st a.

Moral individual e moral estrutural

Con fo r m e n os sit u am os com o u m in divídu o sozin h o dian te


de su a ação ou com o u m a coletividade dian te de seu futuro, existem
d u as m an eir as de en carar o debate ético (Fourez, 1979b ). Q u an d o
n os con sid er am os só s, a qu est ão qu e pr im eir am en te se coloca é:
“Aceit an d o com o p r essu p ost o o estad o atual de n o ssa sociedade,
com o irei agir?” . E, p or exem plo, a q u est ão qu e se coloca u m
in d ivíd u o qu e se pergu n ta se irá ou n ão utilizar dr ogas. Porém ,
existe u m a ou tra qu est ão dian te da dr oga: “D ad o qu e a dr oga é u m
p r ob lem a de n ossa sociedade, qu e estratégia p od em os ter em vista
par a con st ru ir o m u n d o qu e qu er em os, e n o qu al u m n ú m er o
m en or de p essoas se destru a pela d r oga?”.
A diferen ça en tre as ab or d agen s in dividu al e estru tu ral pod e
aparecer em u m a cidade on d e existe u m pr ob lem a de est acion a­
m en to. O in divídu o b u scará u m a solu ção aceitável para o seu
pr ob lem a, sem b u scar n ecessar iam en te m od ificar as cau sas deste.
O pr oblem a estrutural residirá sem dú vida n o fato de qu e o in te­
resse de cada u m cria u m a situ ação coletiva em qu e n in gu ém m ais
pod e est acion ar o seu carro. Para resolvê-lo será preciso an alisar as
cau sas estru tu rais d o m esm o e d ep ois ten tar solucion á-lo.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 293

Pode-se levar em con ta as d u as ab or d agen s par a en fr en tar os


r ou b os com et id os n as gr an d es lojas de d ep ar tam en t o (ou a “pir a­
taria” d o s livros p o r fot ocopiad oras!). U m debate ético in dividu al
exam in ar á o qu e os in d ivíd u os qu erem assu m ir em r elação a essa
qu est ão. U m en foqu e estrutural pr ocu r ar á ver de qu e m od o agir
sob r e as con d ições coletivas para qu e m en os p essoas sejam levadas
a r ou b ar n as gr an d es lojas, ou qu e se ten h a m en os in teresse em
“pir atear ” o s livros. A s d u as ab or d agen s são com plem en tar es.
Im port a sab er o q u e se faz n as situ ações existen tes, m as t am bém
im por ta exam in ar com o elim in ar as cau sas d o pr oblem a.
O debate ético, n o p lan o estrutural, bu sca sab er com o os
in divídu os p od em se associar , organ izar-se e u n ir as su as estratégias
a fim de m odificar o s sistem as qu e en gen d r am os pr ob lem as.
Cer t os p r ob lem as n ão se deixam ab or d ar sen ão p or u m
en foqu e estru tu ral: o en foqu e in dividu al m u itas vezes só con segu e
p ior ar a situ ação e provocar culpabilizações in úteis e apatia. Se h á,
p or exem plo, u m a cen ten a de p essoas em u m labor atór io e
cin qü en t a m icr oscóp ios apen as, de n ad a adian t a qu e cad a u m se
esforce para con segu ir u m m icr oscópio par a si. Sem p r e algu ém vai
ficar sem . U m en foqu e estrutural con sist ir ia em esforçar-se par a
qu e cin qü en t a est u dan t es façam outra coisa en qu an t o os ou t r os
utilizam os apar elh os. P en sem os tam bém n os en gar r afam en tos qu e
qu e os m ot oristas têm de en fren tar ao se dirigirem par a os b air r os
ao fin al d o t r abalh o, ou n o p r ob lem a d o d esem pr ego em u m a
socied ad e em crise. U m en foqu e in dividu al pod e ser útil, m as sem
solu ção estru tu ral o pr ob lem a geral perm an ecerá.
A lgu n s p r ob lem as estru tu rais são eviden tem en te m ais com p li­
cad os: p en sem os n o desem pr ego, n o su bdesen volvim en t o, n a
corrida arm am en tista, n a len tidão bu rocrática, n as fr au des fiscais
etc. A ab or d agem d essas qu est ões pede sem p r e u m a an álise qu e
ten te d escob r ir as cau sas d o s fen ôm en os e ver com o se pod e
con ceber estratégias correlatas. Para tal an álise, u m en foqu e cien ­
tífico (de ciên cias n atu r ais ou ciên cias h u m an as) pode ser bem útil.
Ser á im portan te, todavia, caso se qu eir a ser eficaz, qu e as ações d o s
in d ivíd u os dian te d e ssas qu est ões in spirem -se em u m a visão “es­
294 GÉRARD FOUREZ

tratégica” d o p r ob lem a, ou seja, em u m a m an eir a de con segu ir,


u tilizan do as forças coletivas, resolvê-los a lon go prazo.

Resumo

Ética idealista: deriva dc idéias eternas tornando-se n ormas para a ação


(mas originando-se de instâncias diversas).
Ética h istórica: constata que o debate ético funciona e evolui em torno
de conceitos construídos.
Et ap as do debate ético:
• tomada de consciência do sofrimento;
• vozes proféticas solitárias;
• estabelecimento de um con sen so sobre “n ovos” princípios éticos.
N.B.: “Objetividade”: elementos exteriores à ética (situação econômica,
por exemplo).
Decisão ética: decisão que comporta um elemento “moral”, seja de um
pon to de vista idealista, seja de um ponto de vista histórico.
Na perspectiva idealista, o critério ético é buscado no m un do das idéias.
Na perspectiva histórica, o critério ético será a escolha (arriscada) que
marcará de maneira irremediável o futuro.

A m oral dos apelos pode ser concebida como idealista ou histórica. A


perspectiva histórica está em correlação com a “justificação pela fé” em
São Paulo, e a “criança”, em Nietzsche. A perspectiva idealista está em
correlação com a justificação pelas obras (São Paulo) e o espírito-
“reban h o” (Nietzsche).
O discurso sim bólico tentando dizer o sentido.
Con struções e paradigm as éticos:
M oral cristã. Idéia do que é um cristão: idealismo anti-histórico. Apelo
ligado à prática de Jesus: Deus na História.
A n álise e debate ético:
Debate ético, ju stiça e política. O conceito de justiça se situa diante de uma
alteridade e é ideológico em uma dada sociedade. Em caso de debate,
regula-se o conflito por meio de leis. As leis e o direito n ão se baseiam
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 295

sempre sobre um con sen so ético, mas exprimem em geral com prom issos
provenientes de relações de força. E no dom ín io da política que se
negociam os com prom issos.
Ju stiça e am or e sua dialética. O amor que n ão começa pela justiça é
oprimente. Noção de paternalismo.
Ideologias da ju stiça:
• Primado da liberdade ou da igualdade? Liberalismo ou social-demo-
cracia?;
• justiça procedural: favorece o forte;
• justiça distributiva: quer eliminar as desigualdades e opõe-se por vezes
à justiça procedural;
• justiça substancial: supõe uma “ordem do m un do” on de seria bom
viver;
• moral individual e moral estmtural.

Palavras-chave

Debate ético/ debate político/ ética idealista/ vozes proféticas/ prin cípios
éticos/ mal h istórico/ com prom isso/ decisão ética/ apelos ét icos/ ética
da con vicção/ ética da respon sabilidade/ moral da in ten ção/ paradigma
ético/ moral cristã idealista/ moral cristã h istórica/ ju stiça/ comporta­
mento ju st o/ alteridade ética/objetividade da ação/ máximas absolu tas/
moral in dividual/ moral estrutural/ direito n atural/ jusn aturalism o/
juristas positivistas/ leis civis/ concepção política do direito/ bem
com u m /ideologia n eoliberal/ ideologia social-democrata/ justiça proce­
d u r al/ justiça distributiva/justiça substan cial/ paternalismo.
I
C A P Í T U LO 13

COMO ARTICULAR CIÊNCIA E ÉTICA?

Articulação da reflexão ética


e dos resultados científicos

Para tratar d esse assu n t o, con ser var em os em m en te o exem plo


de algu m as q u est ões pad rão: “Pode a ciên cia n os dizer q u an d o, n o
p r ocesso de crescim en to de u m feto, est am os dian te de u m a p essoa
h u m an a?” e “Pode a ciên cia n os dizer qu e política seguir em m atéria
de corrida ar m am en tista?” e ain da “Deve-se ou n ão con st r u ir
cen trais n u cleares?”.

Diante da ética e da política,


os limites dos paradigmas

Q u an d o a ciên cia exam in a u m a qu estão, ela se b aseia n os


p r essu p ost os de seu par adigm a. D esse m od o, a biologia, ao est u dar
o s em b r iões, utilizará os p r essu p ost os qu e a fu n dam : ela con sid e­
rará o s n íveis m icr oscóp icos da bioqu ím ica e d a célula e d ep ois
298 GÉRARD FOUREZ

colocar-se-á qu est ões d o pon t o de vista d o s ór gãos, am p lian d o o


est u d o ao in trodu zir u m a n oção b iop sicológica d o in divídu o.
D ian te da corrida arm am en tista, as ciên cias físicas e políticas
t am b ém utilizarão os seu s p r essu p ost os; assim , a pr ecisão de u m
m íssil será con sid er ad a de acor do com critérios válid os em lab or a­
tório, m as q u e n ão p od em ser ext r ap olad os par a u m a situ ação de
p ân ico geral; e a ciên cia política partirá de u m con ceito de “ racio­
n alid ad e” d o s com p or tam en t os qu e está lon ge de fu n cion ar em
t od as as circu n stân cias.
O con ceito de “risco aceitável” utilizado par a exam in ar a
cor r ida arm am en tista ou a in stalação de cen trais n u cleares n ão é
levado em con sid er ação p or u m físico; e, se o s econ om istas e
esp ecialistas em política p od em utilizá-lo, é som en t e ap ó s tê-lo
redefinido em seu m od elo de racion alidade. O con ceito d e “p er so­
n alid ade h u m an a”, tal com o pen sad o n os debates éticos, tam pou co
faz parte d o p ar adigm a d a biologia. D e m od o geral, pode-se dizer
qu e o s con ceitos cien tíficos ven tilados n os debates éticos ou p o­
líticos ligam -se sem pre a u m a racion alidade particular, deter m in ada
p o r u m p ar ad igm a e, port an to, p or p r essu p o st os particu lares.
C on sid e r an d o en tão o pr ob lem a d o feto h u m an o, con clu ím os
qu e o con ceito d e “p essoa h u m an a” n ão é u m con ceito biológico.
A in d a qu e os b iólogos utilizem esta n oção, ela será d et er m in ada
pelo par ad igm a d essa disciplin a. Se, p or exem plo, u m biólogo
defin e u m ser h u m an o com o u m ser qu e teria o pat r im ôn io
gen ético h u m an o, a defin ição tem u m valor circular som en t e: ela
in dica qu e, n o âm b it o de seu trabalh o, os b iólogos defin ir ão o ser
h u m an o d essa m an eira. Esta defin ição, aliás, só faz sen t id o em u m
pr ojeto qu e privilegie a estru tu ra gen ética.
D o m esm o m od o, se u m en gen h eiro de u m a cen tral n uclear
utiliza o con ceito de “segu r an ça”, trata-se de u m con ceito traduzido
em seu par ad igm a, ou seja, em term os de pr ob ab ilid ad e de
exp losões, ou de escape, ou de fu são de reator etc. C on t u d o, o
p ar ad igm a n o qu al o en gen h eiro se b aseia n ão leva em con ta o
sistem a de polícia q u e seria n ecessár io para defen der a cen tral
con tr a sab otad or es, n em o estilo de vida social qu e se segu iria.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 299

O s esp ecialistas em ar m am en tos qu e calcu lam os riscos d a


d issu asão n u clear devem , para tan to, n egligen ciar algu n s elem en ­
tos. Poderão, p or exem plo, d escon sid er ar o p eso d a cor r ida arma-
m en tista sob r e o d esen volvim en to d o Ter ceiro M u n d o, ou os
efeitos a lon go prazo, sobr e gerações in teiras, d o fato de viver n o
“equ ilíb r io d o ter ror ”.
Talvez, su gerirão algu n s, u m a abor dagem in terd isciplin ar per­
m itisse elim in ar esses lim ites d as an álises p or d em ais en cerr ad as
em u m a d iscip lin a. A s práticas in terd isciplin ar es são úteis para
d im in u ir o s in con ven ien tes d os lim ites de u m par ad igm a determi-
n ad o .V im o s por ém qu e u m a r eu n ião d e u m certo n ú m er o de
especialistas p od e n a m elh or d as h ipót eses criar u m a n ova esp ecia­
lid ad e e n ão u m p on t o de vista u n iversal. A in terd isciplin ar idade,
p or útil qu e pareça ser n o exam e de qu est ões éticas ou políticas,
n ão op er a u m a m u d an ça qualitativa: os r esu lt ados de u m trabalh o
in terd isciplin ar per m an ecem m ar cad os pela d osagem par adigm át i­
ca r esu ltan te d a n egociação - sociopolítica - d o s especialistas.
Em ou t r os t er m os, r een con t r am os aqu i, sob ou tra for m a, a
d istin ção en tre o qu e se diz “ser ” e o qu e se diz qu e “deve ser ” . A
ciên cia n ão pode d ar u m a r espost a às qu est ões éticas. N o caso
preciso d o feto, p o r exem plo, “b iologicam en te falan do, é im p o ssí­
vel d ar u m a in dicação precisa q u an t o ao com eço d a existên cia;
d ep en d e d o q u e ch am am o s de vid a h u m an a p r op r iam en t e
d it a”(Kem p, 1987, p .55).

As contribuições das análises


especializadas na escolha da liberdade

N o s d ebates éticos, a ciên cia pod e apr esen t ar elem en t os de


in terpretação “especializada” qu e pod em testar a coerên cia d e u m a
certa visão. Se, p or exem plo, algu ém defin e a p er son alid ad e
h u m an a com o u m óvu lo fecu n dado, as in form ações cien tíficas
in d ican d o qu e é sem p re possível qu e, em u m per íodo de vários
d ias, d et er m in ad o óvu lo se divida par a “d ar ” gêm eos e, portan to,
300 GÉRARD FOUREZ

segu n d o o sen so com u m , d u as p er son alid ad es h u m an as, m ost r am


a dificu ldade em con ciliar sem elh an te defin ição com o sen so
com u m .1 D o m esm o m od o, os en gen h eiros, os físicos e os m édicos
p od em forn ecer in dicações sobre os d an os qu e se deve esp er ar de
u m a guerra n uclear. En fim , os econ om istas podem forn ecer in for­
m ações pr eciosas sobr e o s efeitos (escomptés) de u m a p r od u ção
m aior ou m en or de en ergia elétrica. T o d as essas in form ações
pod em ser esclareced oras q u an d o se precisa t om ar decisões políti­
cas ou éticas. N ão som en t e podem ser esclarecedoras, com o é difícil
con ceber h oje em d ia u m debate ético que não se baseie em
r esu lt ad os cien tíficos e isto sob pen a de pr odu zir u m debate ético
qu e n ão leve em con ta as con seqü ên cias efetivas d as escolh as feitas.

A ciên cia perm ite portan to an alisar m elh or os efeitos e a


coerên cia de u m a det er m in ada abor dagem . Tratam -se de redu ções
m et od ológicas extrem am en te úteis. D ian t e d as qu est ões éticas
relativas à con tracepção, p or exem plo, a psicologia, a b iologia e a
sociologia trarão elem en t os de an álise con cern en tes aos resu lt ados
d as d iver sas práticas. N o caso da corrida arm am en tista, a física, a
econ om ia e a ciên cia política pod em m ostr ar com o ela se p r ocessa
e q u ais os seu s efeitos.

En tretan to, o qu e a ciên cia n ão p od e forn ecer jam ais é a


r esp ost a à q u est ão ética: “Q u er em os assu m ir tal d ecisão?”. A ssim ,
em relação à “defin ição” de u m a pessoa h u m an a, a qu est ão con siste
em pergu n tar: “Q u er em os aceitar tal ou tal tipo de critérios par a
decid ir recon h ecer u m a p essoa h u m an a, com o con ju n t o de

1 Para u m a an álise m in u ciosa d a q u est ão: “O feto é u m a p esso a h u m an a”, ilu st r an d o


bem as d ificu ld ad es d e ar ticu lação en tre a visão filosófica e a cien tífica, ver M alh cr b e
(1 9 8 5 ) ou Kem p (1987). C a so se qu est ion e o lim ite en t re o "an im al” e o “h u m an o ” ,
o livr o d e V er cor s (19 5 2 ), Les cinim aio: dén aturés [O s an im ais àesn atu rados] focaliza
clar am en t e a in teração en t re a ciên cia e as d ecisões éticas q u an d o da escolh a de
cr itér ios para d ecid ir sob r e o q u e se co n sid er ar á co m o espécie h u m an a. Exem plifica
co n sid er an d o co m o a ju st iça in glesa faria par a d et er m in ar se u m an t r op óid e é u m
se r h u m an o . In d ica as con t r ib u ições d as d iferen tes d iscip lin as. M ost r a por ém qu e,
afin al, é n ecessár io escolh er u m critério, e q u e essa escolh a n ão é determ in ada p o r
u m a an álise cien tifica.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 301

direitos qu e recon h ecem os com o n osso s sem elh an tes?”. O u , ain da,
n o caso d a cor r ida ar m am en tista, “Q u er em os este m u n d o on d e é
criada u m a sociedade de tal tipo, com esse tipo de cor r ida ar m a­
m en tista e t od as as su as con seqü ên cias?”. T am b é m em relação à
con st ru ção de cen trais n ucleares, “Q u er em os in vestir n esse tipo de
tecn ologia com t od as as su as im plicações?”. A an álise cien tífica
pod e con tr ib u ir par a esclarecer as im plicações d as escolh as, m as
n ão pod e jam ais r esp on d er à qu est ão: “ E isto o qu e eu (n ós) qu er o
(qu er em os)?”.
Essas an álises (científicas ou de situação) são essen ciais para
“esclarecer” as escolh as. Sem elas, lan çam o-n os n o pu ro descon h e­
cido. Para exam in ar de m odo lúcido a ética da con tracepção é
n ecessário possu ir an álises psicológicas, sociológicas e biológicas (e
outras m ais, sem dúvida, segu in do ou tros paradigm as ou grades
an alíticas) qu e perm itam con h ecer a escolh a qu e se irá fazer. Con t u ­
do, n en h u m a d essas an álises fornece u m a resposta à qu estão ética.
Além d as an álises, diversos apelos éticos in tervém t am bém n a
ab or d agem d as d ecisões éticas. E o caso d o debate ético con cern en ­
te à parceria h om em -m ulh er, em qu e existem “ap elos” qu e sugerem
qu e seria “b o m ” (chouette) ter tal ou tal tipo de relação (em n ossa
cultura, p or exem plo, existem ap elos con vid an d o a su p er ar as
relações h om em -m u lh er tais com o defin idas pela sociedade patriar­
cal, a fim de pr om over u m a parceria m ais igualitária). A in d a aqu i,
esses “ap e lo s” ap r esen t am p ossib ilid ad es às escolh as livres d os
seres h u m an os. Aq u eles qu e vêem a ética de m an eira h istórica
recon h ecerão a diversidade d esses apelos, ao p asso qu e aqu eles qu e
d efen d em u m a ética idealista ten der ão a dizer qu e as “b o as”
escolh as foram d et er m in ad as de an tem ão pelos “d eu se s”, in st ân ­
cias exteriores à liber d ade h u m an a (cf. Tou r ain e, 1975). A s deci­
sões éticas e políticas são ad ot ad as com o con seqü ên cia de u m
debate (im plícito ou explícito), em qu e in tervirão an álises e apelos
éticos. Tais d ecisões são relativas à h istória, às an álises pelo viés
d o s par ad igm as e d as gr ades de leitura e aos apelos éticos pelo
viés d os in d ivíd u os ou gr u pos qu e os expr essaram . A p elam ao
debate ético e aos valores, m as, en fim , são t om ad as de m an eir a
302 GÉRARD FOUREZ

a-racion al, p or m eio de u m salto q u ase m ístico n o d escon h ecid o


(cf. Fourez, 1979b , cap .5 e 11).
N en h u m a d essas escolh as é, con tu d o, indiferente pois, afin al,
n ós n o s t or n am os aq u ilo qu e fazem os de n ossa h istória. V olt am os
a en con t r ar aí o qu e assin alei an teriorm en te com o a objetividade
d a ação m oral qu e con st rói o qu e som os.
Se, em teoria, p od em o s distin gu ir d ecisão ética e an álise
cien tífica, n a prática elas se en con tram em geral m ist u r adas. A ssim ,
a b iologia veicula em seu p ar ad igm a toda u m a série de idéias sobr e
o qu e é a saú de, o ser h u m an o, a sexu alidade etc., m as é m u ito
difícil apr esen t ar u m cu r so sobr e a sexu alidade h u m an a sem
m ist u r ar elem en t os de an álises e escolh as relativas a n o sso m od o
de vida. N ão obst an t e, pod e ser im por tan te d o p on t o de vista
m et od ológico colocar em evidên cia a r u ptu ra en tre os elem en tos
d e an álise cien tífica e as decisões éticas de viver de tal ou tal m od o.
A an álise procu ra ver de qu e se trata e q u ais as su as im plicações,
ao p asso qu e a decisão r esp on d e ao pr oblem a: “O qu e qu er em os
fazer de n ossa h istór ia?”. M esm o qu e a an álise con ten h a sem p re
elem en tos éticos (relativos ao qu e n ós aceitam os con siderar !), a
d istin ção pod e ser ú til.2

Um exemplo: a psicologia e a ética


nas relações afetivas

A m an eira pela qu al se cruzam os d iscu r sos da psicologia e da


ética a r espeito de n o ssas decisões pod e aju d ar a esclarecer as
in terações en tre ciên cia e ética.

2 M u it o s tem d ificu ld ad e em urilizar essa d istin ção en t r e ju ízo d escrit ivo e n or m at ivo,
ain d a m ais p o r q u e certos con ceit os são u tilizados lin gü ist icam en t e co m o d escrit ivos,
q u a n d o são n a ver d ad e ju ízos d e valor . A ssim , a p r o p o sição “ isto é u m a ch an t agem ”
p ar ece d escritiva, m as se com p or ta co m o u m a d ecisão relativa a valor es. A lgu m as
p e sso as ab o r d am as sit u ações com categorias m or ais d e b em e m al, d e pr eferên cia a
cat egor ias d escrit ivas.
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 303

A p sico lo gia pr ocu r a t or n ar com p r een síveis o s n o sso s com ­


p o r t am en t o s in d iv id u ais. Se algu ém exp er im en t a u m p r o fu n d o
sen t im en t o de ó d io p o r seu s p ais, o p sicó lo go n ão se p er gu n t ar á
se ist o é b om ou m au , m as “p o r q u ê ?” . A p sicologia - e em
p ar t icu lar a p sican álise - t en t ar á exp licar com o algu ém p od e
exp er im en t ar u m tal sen t im en t o. N o en t an t o, o p sicó lo go n ão
d ar á u m a apr ovação (ou desapr ovação) m oral a algu ém qu e od eia
o s seu s pais ou - o qu e é diferen te - a algu ém qu e qu er fazer com
q u e eles so fr am . Ele dir á, em geral, q u e n ão é m ais o seu p ap el
com o p sicó lo go ; com o tal, ele an alisa o q u e acon tece e n ão ju lga.

Tod avia, o p sicólogo dará m u itas vezes u m p asso a m ais. D ir á


- u n in do-se, aliás, a an t iqü íssim as tradições m or ais - qu e existe
u m a diferen ça en tre sen tir algo e d eixar agir cegam en te a p u lsão
ligada a esse sen tim en to. O psicólogo, p or exem plo, an alisar á de
m od o ser en o o qu e p od e sen tir u m h om em qu e tem von t ad e de
est u pr ar u m a m u lh er; e o m oralista o acom p an h ar á n esse terren o.
P orém , se esse h om em qu er p assar ao ato, o psicólogo, de m an eira
geral, dirá qu e a su a tarefa con tin u a a ser com pr een der o “p or q u ê” ,
d eixan d o qu e o m oralista reflita sobre a qu est ão “ E isto m oralm en te
adm issível?”, E, par a o m oralista, existe u m a en or m e diferen ça
en tre “sen tir ód io p or seu s p ais” e “agir visan d o a destr u ir os seu s
p ais”. A prim eira atitu de é d a or d em d os sen t im en t os, en qu an t o
qu e a segu n d a é d a or d em d as d ecisões d as qu ais se p od e ser
r espon sável.

O qu e a p sicologia m od er n a - e as diver sas ciên cias - n os


en sin ou foi a refletir sob r e a qu est ão: “O qu e acon tece?”, an tes de
colocar a ou tr a qu est ão, “E isto b om ?”. U m a edu cação m or al
falsead a leva com efeito certas p essoas a evitar a prim eira qu est ão.
Por exem plo, ao serem per gu n t ad as sobr e “o qu e pen sa você sobr e
o ab or t o n a Bélgica?”, algu m as p essoas r esp on d er ão rapid am en t e:
“So u con t r a”, ou “So u a favor” (em geral, con fu n d em a qu est ão
d o ab or to e a su a crim in alização). C on t u d o, as ciên cias h u m an as
n os en sin ar am a p assar p o r u m a prim eira etapa de an álise an tes
de ab or d ar o ân gu lo ético. Elas per gu n tariam , por exem plo, “O
304 GÉRARD FOUREZ

qu e acon tece com u m a m u lh er qu e decide in terrom per a gravi­


dez?”, “Q u e r eper cu ssões isto terá sobr e a su a m an eir a de ver a
sim b ologia d a vid a?”, “C o m o essa con sid er ação de u m a in terru p­
ção d a gravidez se situ a em seu futuro p essoal?”, “ Em qu e classes
sociais e dian te de qu e t ipos de dificu ldad es a qu est ão d o ab or t o
se coloca?”, “ Em qu e con texto a qu est ão da descr im in alização d o
ab or t o se coloca?”.

A reflexão m or al n ão coloca as m esm as qu est ões qu e a


psicologia. Ela se pergu n ta n ão sobr e o q u e acon tece, m as sobr e o
q u e se con sid era desejável. “O qu e devo fazer?”, ou “O qu e é qu e
‘eu ’ (ou ‘n ó s’) qu er o (qu er em os) fazer?”, e isto com con sciên cia de
q u e o m u n d o será tal qu al n ós o con st r u ir m os.

E im portan te, portan to, qu e n ão se con fu n d a m oral e p sicolo­


gia. Se, p or exem plo, u m psicólogo diz qu e, em certos casos, u m a
experiên cia de adu ltério pode ter com o resu ltado tor n ar a relação
con ju gal m ais sólid a, ele n ão en u n ciou u m juízo ético sobr e a
qu est ão. Se u m a tradição ética afirm a qu e n ão se pod e ter relações
sexu ais an tes d o casam en to, ela n ão d isse n ada sobre as con seqü ên ­
cias psicológicas qu e pode ter, em u m a d ad a sociedade, sem elh an te
ju ízo m oral.

N ão têm os r esu lt ados da psicologia in flu ên cia algu m a sobr e


a reflexão m oral? D e m od o algu m . Façam os u m a com par ação. Se
a biologia m e en sin a qu e, d esp ejan d o det er m in ad o tipo de dejetos
em u m rio, m atarei u m a boa parte d os peixes, sem elh an te resu ltado
cien tífico su scitará u m a reflexão ética (a qu al, lem br em os, coloca-se
a qu est ão: “O qu e con sid er am os com o u m a ação ‘b o a’?”). D o m es­
m o m od o, se a psicologia m ostr a qu e dizer aos joven s qu e eles n ão
deveriam jam ais ter devan eios sexu ais é per igoso por p od er p o ­
ten cialm en te criar “com p lexad os”, faz parte da reflexão ética.

A psicologia aju d a a reflexão m oral, n a m edida em qu e perm ite


apr een d er m elh or os efeitos de algu n s de n o sso s com por tam en t os.
Ela con tribu i par a a com p r een são d o qu e é “am ar ” os ou t r os, e
m elh or discern ir o qu e é “‘m al’ am ar ”. O p r ogr esso d a p sicologia
A CO NSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS 305

n os en sin o u , p o r exem plo, com o se pode, t en t an d o sin cer am en t e


am ar o seu parceiro, en volver-se em u m a relação qu e se q u er total­
m en te fu sion al e q u e n ão p od e, a lon go prazo, pr ovocar sen ão
sofr im en t o e fr acassos. A psicologia m ost r ou , assim , as am b igü i­
d ad es de certos d iscu r so s de m or alist as qu e con vid avam os
côn ju ges a for m arem u m t od o in diviso, d eixan d o d e lad o o fato
de qu e, p ar a am ar , é pr eciso per m an ecer d ois. P od er íam os
m u lt iplicar os exem p los em q u e o s con h ecim en t os p sicológicos
per m item d escob r ir o qu e con stitu i u m ob st ácu lo à realização de
u m ideal m oral sad io.

Pode-se d escon fiar u m pou co d a m an eir a pela q u al algu m as


p essoas apr esen t am u m a psicologia vu lgarizada com o u m a espécie
de n or m a m oral. T o m am u m a r epr esen tação d o qu e é u m “ser
h u m an o d esen volvid o” ou “u m casal bem eq u ilib r ad o” e con sid e­
ram q u e é u m a n or m a a ser segu ida. D esse m od o, vêem -se m u itas
p e sso as ten tarem ser “d esen volvid as”... e destruirem -se n essa b u s­
ca. Igu alm en te, qu an t os casais n ão fr acassam ju st am en te p or terem
ad ot ad o com o n or m a u m a im agem de u m “b om casal perfeitam en ­
te bem -su cedid o”?

A visão d a ética aqu i apr esen t ad a con du z a u m debate n o qu al


se d iscu tem m od os de vida qu e se con sidera “válid os”, os r esu lta­
d o s cien tíficos au xilian d o a ver m ais claram en te as con seqü ên cias
d e n o ssas escolh as. Tod avia, tende-se m u itas vezes a evitar qu e se
p on h a em evidên cia algu m as escolh as éticas (com t oda a solid ão
q u e com por tam ), pr et en d en d o qu e é a ciên cia qu e deter m in a o
com p or tam en t o a escolh er (atitude tecn ocrática), ou q u e exist am
n or m as éticas d ad as de u m a vez por todas e qu e resolvam t od as as
q u est ões (atitude idealista). A ética - e, m utatis m utandis, pode-se
dizer o m esm o d a política - qu e apr esen t o aqu i su põe qu e, n o fin al
d e tu do, é o ser h u m an o qu em decide. C a so se acredite em D eu s,
pode-se dizer qu e essa liber d ade é o Seu d om . D e qu alqu er m od o,
ela parece ser u m a parte d o m istério h u m an o n o qu al so m os
con fr on t ad os à n o ssa h istória, ao m al, ao sofr im en to, m as t am bém
ao r ost o d o O u t r o, à con fian ça e à esper an ça.
306 GÉRARD FOUREZ

Resumo

Exemplos iniciais: qu an do o feto pode ser con siderado uma pessoa? Q ue


política seguir na corrida armamentista? São necessárias mais centrais
nucelares? ;
As ciências utilizam necessaViamente os pressupostos de seus para­
digmas.
O conceito de pessoa h uman a n ão é um conceito biológico; e o conceito
de “segurança” n ão é um conceito concernente a uma disciplina precisa;
e o de “necessidade em energia” não se deve nem à arte do engenheiro
nem à da ciência econômica.
Con tudo, a ciência pode apresentar elementos parciais (pontuais) poden ­
do testar a coerência de uma certa visão e afinar certas análises.
Entretanto, a ciência não pode jam ais responder à questão ética: “Q ue­
remos n ós assum ir tal decisão?”
As escolh as serão antes favorecidas por apelos éticos ou pela crença de
que as “boas” escolhas são pré-determinadas pelos “deuses”.
Na prática, decisão ética e análise científica geralmente se confundem. E
portan to praticamente impossível dar um curso de ciência sem iniciar
um debate ético.
Freqüentemente se manifestam resistências - seja na afirmação de que
as ciências determin am as escolh as - seja n a de que n orm as éticas
“eternas” resolvem todas as questões.
Exemplo da psicologia e da ética.
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