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EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL, LUIZ FUX.

PARTIDO DOS TRABALHADORES – PT, por seu Diretório Nacional, inscrito no

CNPJ n. 00.676.262/0001-70, com sede em Setor Comercial Sul, Quadra 02, Bloco C, n.

256, Ed. Toufic, 1º andar, Brasília/DF, neste ato representado por sua Presidenta 1

Nacional, GLEISI HELENA HOFFMANN, brasileira, casada, Deputada Federal

(PT/PR), RG nº 3996866-5 SSP/PR, CPF sob nº 676.770.619-15, endereço funcional na

Esplanada dos Ministérios, Praça dos Três Poderes, Câmara dos Deputados, Gabinete

232 - Anexo 4, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, por seus advogados

com procurações em anexo, propor a presente:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

com pedido de medida cautelar

em detrimento do Decreto n. 1.329 de 15 de junho de 2021, editado e publicado pelo

Governador de Santa Catarina, que proibiu o uso de linguagem neutra de gênero nas

escolas e nos órgãos públicos do Estado, por violação a preceitos fundamentais da

Constituição da República, nos termos e argumentos que se seguem.


I – DO CABIMENTO DA PRESENTE AÇÃO DIRETA DE

INCONSTITUCIONALIDADE

1. De acordo com o artigo 102, I, alínea “a”, da Constituição Federal, podem ser

objeto de controle concentrado de constitucionalidade, mediante ação direta de

inconstitucionalidade, as leis ou atos normativos estaduais.

2. A presente ação questiona Decreto editado e publicado pelo Governador do

Estado de Santa Catarina, o Sr. Carlos Moisés, que proibiu o uso de linguagem neutra

de gênero nas escolas e órgãos públicos do Estado.


2

3. Vale destacar que a norma apontada como inconstitucional não é de caráter

regulamentar, não encontrando fundamento em qualquer lei. O Governador do

Estado de Santa Catarina editou o decreto com base no art. 71, incisos I e III, da

Constituição Estadual, que lhe conferem poderes para editar e publicar leis e atos

normativos, além de mencionar o processo “SED 50173/2021”. Assim, não se está a

discutir ato normativo de caráter secundário.

4. Ademais, as inconstitucionalidades que serão aqui demonstradas são todas

diretas, tendo em vista que o decreto viola os direitos à igualdade, à não-

discriminação, o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à educação,

não havendo se falar, desta maneira, em inconstitucionalidade reflexa.

5. Portanto, por preenchidos todos os requisitos, tem-se por cabível a utilização

do instrumento da Ação Direta de Inconstitucionalidade no caso em tela, motivo


pelo qual se requer o seu processamento.

II – DA LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM

6. Os partidos políticos que possuem representação no Congresso Nacional

podem propor ação direta de inconstitucionalidade, autorizados pelo artigo 103, VIII,

da Constituição Federal e pelo artigo 2º, VIII, da Lei Federal n. 9.868/99.

7. Ademais, os partidos políticos possuem a denominada legitimidade ativa

universal para provocação do controle abstrato de constitucionalidade. A

legitimidade ativa de agremiação partidária com representação no Congresso

Nacional “não sofre as restrições decorrentes da exigência jurisprudencial relativa ao 3

vínculo de pertinência temática nas ações diretas”, segundo assentada jurisprudência

desta corte (ADI n. 1.407-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 24.11.2020).

8. Assim, o Partido dos Trabalhadores, com 53 Deputados Federais na Câmara

dos Deputados e 6 Senadores da República no Senado Federal, possui inequívoca

legitimidade para proposição do presente feito, conforme do art. 103, inciso VIII da

Constituição Federal.

III – DO ATO IMPUGNADO – O Decreto n. 1.329 publicado em 15 de junho de

2021 pelo Governador do Estado de Santa Catarina

9. O Governador do Estado de Santa Catarina, o Sr. Carlos Moisés da Silva,

editou e publicou, no dia 15.06.2021, o Decreto n. 1.329, que proíbe o uso de

linguagem neutra nas escolas e nos órgãos públicos do Estado.


10. In verbis:

Veda expressamente a instituições de ensino e bancas examinadoras


de seleção e concursos públicos a utilização, em documentos escolares
oficiais e editais, de novas formas de flexão de gênero e de número
das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras
gramaticais consolidadas.
O GOVERNARDOS DO ESTADO DE SANTA CATARINA, no uso
das atribuições privativas que lhe conferem os incisos I e III do art. 71
da Constituição do Estado e de acordo com o que consta nos autos do
processo nº SED 50173/2021,

DECRETA:

Art. 1º Fica vedada a todas as instituições de ensino no Estado de


Santa Catarina, independentemente do nível de atuação e da natureza 4
pública ou privada, bem como aos órgãos ligados à Administração
Publica Estadual, a utilização, em documentos oficiais, de novas
formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua
portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas e
nacionalmente ensinadas.

Parágrafo único. Nos ambientes formais de ensino, fica vedado o


emprego em documentos oficiais de linguagem que, contrariando as
regras gramaticais da língua portuguesa, pretendam se referir a
gênero neutro.

Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.


[...]

11. Esta medida, como se vê, proíbe a linguagem neutra no Estado de Santa

Catarina, abrangendo documentos escolares oficiais, provas, grade curricular,

material didático, comunicados e editais de concursos.


12. O objeto central desta ação, portanto, é o Decreto n. 1.329/2021 do Estado de

Santa Catarina, em sua integralidade, por violar frontalmente princípios e

dispositivos constitucionais, conforme se demonstrará a seguir.

IV – DA AFRONTA À ORDEM CONSTITUCIONAL PELO DESCRETO

IMPUGNADO

13. O Decreto n. 1.329/21 do Estado de Santa Catarina afronta a Constituição

Federal por violar dispositivos e princípios constitucionais, por ofensa ao princípio

da igualdade, da não discriminação, da dignidade humana e do direito à educação,

devendo o Decreto ser declarado inconstitucional, em sua integralidade.


5

IV.A – DO DIREITO À IGUALDADE, À NÃO-DISCRIMINAÇÃO E DA

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – ART. 5º, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO

FEDERAL

14. A Constituição da República, já no seu preâmbulo, identificou como

destinação do Estado Democrático de Direito a garantia do “exercício dos direitos sociais

e individuais”, dentre eles a igualdade. Ainda mais especificamente, foi previsto como

um dos objetivos fundamentais da República, a promoção do “bem de todos, sem

preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”,

art. 3º, IV.

15. No art. 5º, caput, do texto constitucional, estabeleceu-se que “todos são iguais

perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, elevando, pois, o direito à


igualdade ao patamar de garantia fundamental, cláusula pétrea, portanto, conforme

art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

16. As referidas garantias são, inclusive, reflexo dos parâmetros estabelecidos pela

Declaração Universal dos Direitos Humanos que, já em seu art. 1º, dispôs que “todos

os seres humanos nascem livre e iguais em dignidade e em direitos”. No que diz respeito à

não-discriminação, a DUDH assim estabeleceu:

Artigo 7º
Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual
proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer
incitamento a tal discriminação.
6

17. Os Princípios de Yogyakarta1 – documento de âmbito da ONU de 2005 que

finalmente trouxe alguma sistematização sobre direitos humanos e sua aplicação a

questões de orientação sexual e identidade de gênero e que já fora fundamento

empregado por esta c. Corte – trazem conceito de identidade de gênero, que aqui

colacionamos por entendermos ser essencial para a evolução da presente ação:

Compreendemos identidade de gênero a profundamente sentida


experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode
ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o
senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha,
modificação da aparência ou função corporal por meios médicos,
cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive
vestimenta, modo de falar e maneirismos.

1 http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf
18. Os referidos Princípios ainda fixam que “os seres humanos de todas as orientações

sexuais e identidades de gênero têm o direito de desfrutar plenamente todos os direitos

humanos”. Isto é, orientação sexual e/ou identidade de gênero não podem ser aspectos

que impeçam o pleno usufruto dos direitos humanos.

19. Neste caminho de avanços e conquistas de direitos para a Comunidade

LGBTQIA+, o Conselho de Direitos Humanos, em 2011, adotou a Resolução n. 17/19,

a primeira das Nações Unidas que tratou do tema.

20. Na sequência, em 2012, a ONU editou o documento “Nascidos Livres e Iguais:

Orientação Sexual e Identidade de Gênero no Regime Internacional de Direitos

Humanos”, que aponta os cinco principais tópicos para efetivação da proteção legal 7

aos direitos e liberdades fundamentais em virtude de orientação sexual e identidade

de gênero: (i) proteger as pessoas da violência homofóbica e transfóbica; (ii) prevenir

a tortura e o tratamento cruel, desumano e degradante às pessoas LGBT; (iii)

descriminalizar a homossexualidade; (iv) proibir a discriminação com base na

orientação sexual e identidade de gênero; e (v) proteger as liberdades de expressão,

de associação e de reunião pacífica para as pessoas intersexo e LBGT.

21. Nesta toada, em 2016, a Comissão de Direitos Humanos de Nova York

reconheceu 31 tipos diferentes de gênero, para serem respeitados e usados em

âmbitos profissionais e oficiais.

22. Dentro deste universo, há quem se identifique como mulher, como homem ou

ainda como nenhum deles, os não-binários, ou “não conformistas” com o papel de

gênero que lhe foi afirmado no momento do nascimento. Como consequência lógica,
os não-binários não se sentem representados pela língua portuguesa, tendo em vista

que, historicamente, a língua portuguesa possui dois gêneros gramaticais, o

masculino e o feminino.

23. Ademais, o “neutro”, em nossa língua, no geral, é o masculino, um dos

símbolos do machismo socialmente enraizado, utilizado: “a) no emprego de nomes

masculinos para denotar seres humanos cujo gênero não é conhecido ou não é

relevante; b) na concordância de gênero de predicados com sujeitos coordenados; e

c) na concordância de predicados com pronomes que não distinguem entre os gêneros

masculino e feminino2”.

24. Neste sentido, a língua portuguesa não previu a mudança de paradigma que
8
está ocorrendo no mundo e no país há alguns anos, que surgiu, principalmente, a

partir dos estudos feministas e da teoria queer, frutos da evolução social e da

necessidade de transformação daí sobrevinda. E é exatamente por este motivo que

existe o anseio pela adoção da linguagem neutra, para que pessoas que não se sentem

representadas possam enfim assim se sentir. Transcreve-se, abaixo, trecho do

“Manifesto Ile Para uma Comunicação Radicalmente Inclusiva3”:

A discussão de gênero e de sexualidade causa muito desconforto em


vários círculos.
Há quem não se sinta representade (a) (o) pelas formas normalizantes
de expressão: ele ou ela (como se houvesse 2 possibilidades).
Há quem fique desconfortável por perceber que tem gente querendo
ser algo que não estava previsto na ‘norma’.
Essa divisão em dois, esse binarismo, deixa de fora uma enorme
variedade de possibilidades, que não são nem uma coisa, nem outra.

2
MADER, Guilherme Ribeiro Golaço. Masculino Genérico e Sexismo Gramatical. Dissertação submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, 2015, p. 18
3
https://diversitybbox.com/pt/manifesto-ile-para-uma-comunicacao-radicalmente-inclusiva/
E quem está nesse grupo, do nem uma coisa nem outra, continua
sendo gente, continua tendo direito de ser como é
[...]4

25. Há algumas sugestões de sistemas para a utilização da linguagem neutra, de

modo a substituir os pronomes binários por outros que abarquem e representem

homens, mulheres e não-binários. O sistema ILU, por exemplo, propõe a substituição

de ‘Ele/ela’ por ‘Ilu’, ‘Dele/Dela’ por ‘Dilu’, ‘Meu/Minha’ por ‘Mi/Minhe’, ‘Seu/Sua’

por ‘Su/Sue’, ‘Aquele/Aquela’ por ‘Aquelu’ e ‘o/a’ por ‘le’.

26. E essa luta é, de fato, essencial, tendo em vista que a linguagem funciona como

formadora e informadora do contexto de cada cidadão, devendo ser capaz de


9
representar todos em suas realidades mais diversas. Neste sentido, estratégias

gramaticais de neutralização de gênero funcionam como ferramenta para a efetivação

do princípio da igualdade na democracia brasileira.

27. Isso porque o objetivo é claro: tornar a língua portuguesa inclusiva para

pessoas transexuais, travestis, não-binárias, intersexo ou que não se sintam

abrangidas pelo uso do masculino genérico. O decreto combatido, além de estar

fortemente marcado pelo traço da censura prévia ao proibir o uso da linguagem

neutra de gênero, viola preceitos fundamentais por impedir que alunos da rede

pública possam se moldar e formar suas identidades em um ambiente livre e

democrático, assim como os servidores públicos de se identificarem assim como bem

entendem.

4
https://diversitybbox.com/pt/manifesto-ile-para-uma-comunicacao-radicalmente-inclusiva/
28. A linguagem não serve apenas para comunicar, sendo também ferramenta de

representação e identificação. Por isso que não há como pretender que a língua

portuguesa permaneça rígida e estática diante das transformações sociais e culturais.

É neste sentido os ensinamentos do professor e linguista Marcos Bagno, que em seu

livro “Preconceito linguístico”, afirma que:

[...] enquanto a língua é um rio caudaloso, longo e largo, que


nunca se detém em seu curso, a gramática normativa é apenas
um igapó, uma grande poça de água parada, um charco, um
brejo, um terreno alagadiço, à margem da língua. Enquanto a
água do rio/língua, por estar em movimento, se renova
incessantemente, a água do igapó/gramática normativa
envelhece e só se renovará quando vier a próxima cheia. 5[...]

10

29. Desta maneira, incabível a justificativa apresentada pelo Governo de Santa

Catarina de proteção às “regras gramaticais consolidadas no país” para a edição e

publicação do decreto proibitivo em questão, na ilusão de que os elementos

constitutivos da sociedade são fixos. Ao contrário: a sociedade está sempre em

transformação e a língua nacional deve acompanhá-la, garantindo que seus cidadãos

se sintam representados, pois é também através da fala que todos nos identificamos.

30. Não se está a defender que não se deve preservar a língua portuguesa,

principalmente como algo de identidade cultural e social do país. Mas é exatamente

por representar a sociedade que há o dever de se observar a evolução social e as

transformações daí exigidas. Neste sentido, o respeito e a visibilidade a segmentos

historicamente discriminados são imperiosos e devem prevalecer sobre a preservação

da norma culta da língua portuguesa na forma posta no Decreto.

5
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. São Paulo, Edições Loyola, p. 67.
31. Como exposto no livro de Marcos Bagno aqui já citado, não é a linguagem que

deve acompanhar as normas da língua, mas a construção da gramática é que deve

caminhar com a evolução e necessidade sociais, de modo a ser democrática:

[...] Ora, não é a gramática normativa que “estabelece” a norma


culta. A norma culta simplesmente existe como tal. A tarefa de
uma gramática seria, isso sim, definir, identificar e localizar os
falantes cultos, coletar a língua usada por eles e descrever essa
língua de forma clara, objetiva e com critérios teóricos e
metodológicos coerentes6”.

32. Assim, o Decreto combatido ignora as transformações da sociedade, 11


engessando ferramenta muito poderosa para a construção dos indivíduos e na sua

identificação e sentimento de pertencimento em relação a essa sociedade, indo de

encontro aos preceitos de igualdade e não-discriminação.

33. Em um país democrático de direito como o Brasil, a preocupação e efetivação

de políticas públicas que concretizem a inclusão de seus cidadãos são imperativos. É

condição natural da democracia a busca pela igualdade de todos os brasileiros, em

todos os seus elementos, incluindo-se a linguagem.

34. O Decreto em questão, assim, ao proibir a linguagem neutra de gênero nos

textos de escolas e órgãos públicos, de modo a impedir medidas que visam à

promoção da igualdade, é manifestamente inconstitucional, por violar os princípios

da igualdade, da não-discriminação e da dignidade humana.

6
BAGNO, Marco. Op. Cit., p. 64-65.
35. O princípio da dignidade humana é base dos direitos fundamentais, e deve ser

absolutamente preservado, conforme entendimento do i. Ministro Luis Roberto

Barroso:

O princípio da dignidade humana identifica um espaço de


integridade a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência
no mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se
professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a
liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de
subsistência. O desrespeito a esse princípio terá sido um dos estigmas
do século que se encerrou e a luta por sua afirmação, um símbolo do
novo tempo. Ele representa a superação da intolerância, da
discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de
aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser,
pensar e criar7. (Grifos nossos)

12

36. Este eg. Supremo Tribunal Federal tem respondido positivamente à

necessidade de transformações jurídicas advindas das mudanças de paradigmas

sociais que temos vivido, de modo a reconhecer e garantir os direitos outrora

adormecidos, trabalhando assim na defesa dos direitos fundamentais das minorias.

Como ressaltado pelo i. Ministro Gilmar Mendes em sua recente decisão proferida na

ADPF n. 787, que determinou a adoção de medidas para garantir respeito à

identidade de gênero no SUS, “(...) é por meio do combate à desigualdade que se

concretiza a igualdade”.

37. Neste sentido, pode-se citar como decisões históricas e símbolos de avanço

para a comunidade LGBTQIA+ aquelas proferidas na ADPF n. 4.275, pela qual esta

Eg. Corte Superior definiu que transexuais e transgêneros podem mudar de registro

7BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a


construção do novo modelo, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 252
civil sem necessidade de cirurgia; no julgamento da ADI 4277 e ADPF 132, no qual se

reconheceu a união homoafetiva e a garantia dos direitos fundamentais aos

homossexuais; no RE n. 646.721, que equiparou a união estável homoafetiva e

heteroafetiva e regime sucessório; a ADPF já citada que determinou a adoção de

medidas para garantir respeito à identidade de gênero no SUS.

38. A exemplo, colaciona-se, abaixo, trecho do acórdão da ADI n. 4275, que

apresenta extrema lucidez quanto ao tema:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO


CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNEROS.
ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL.
POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO
DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À
13
HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE
TRANSGENITALIZACAO OU DA REALIZAÇÃO DE
TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O
direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou
expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da
própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado
apenas o papel de reconhecê-la, nunca constituí-la. (...)”(ADI 4275,
Relator Min. Marco Aurélio, Relator para Acórdão Min. Edson
Fachin, Tribunal Pleno, DJe 07.03.2019). (Grifos nossos)

39. O Direito deve promover efetividade da norma constitucional que consagra a

igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e não o

contrário. É por isso que a proibição do decreto combatido não só viola preceitos

fundamentais como também representa uma violência de gênero, por reforçar os

preconceitos e a discriminação incrustrados na sociedade.

40. Tendo em vista o quanto demonstrado, a linguagem não pode ser alheia à

realidade social, tampouco o direito. Desta maneira, resta clara a


inconstitucionalidade do Decreto n. 1.329, de 15 de junho de 2021, do Governo do

Estado de Santa Catarina, por violar os direitos à igualdade, não-discriminação e

dignidade da pessoa humana (art. 5º, caput, da Constituição Federal).

IV.B – DA VIOLAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO – ARTS. 6º, 205 A 214 DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

41. O decreto aqui combatido, além de violar os direitos à igualdade, à não-

discriminação e o princípio da dignidade humana ao proibir o uso da linguagem de

gênero neutro nos órgãos e escolas públicas, também fere o direito à educação nos

moldes estabelecidos pela nossa Carta Magna.

14
42. Os arts. 6º e 205 da Constituição consagram o direito à educação como direitos

de todos os brasileiros e como dever do Estado. Em complemento, nos arts. 205 a 214

constam os princípios que devem reger e nortear o Estado para que esse direito seja

efetivamente conferido aos cidadãos.

43. Segundo o art. 205, da Constituição Federal, a educação deve ser promovida

“visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

qualificação para o trabalho”. Em complemento, o art. 206 preceitua que o ensino deve

ter como princípios, dentre outros, a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar

o pensamento, a arte e o saber” e “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”.

44. As escolas, portanto, devem constituir espaço democrático no qual as crianças

e adolescentes possam livre e autonomamente se formar e se moldar, tendo em vista

que é ali que vivem processos de experiências, autodescobertas e de identificação.

Neste sentido, a linguagem neutra de gênero serve, como já demonstrado na presente


ação, como ferramenta para que possam se identificar e se sentir representadas já a

partir da palavra. Afinal, verbalizando nós existimos exatamente por nos

identificarmos com as palavras.

45. A proibição da linguagem não-binária, então, representa um verdadeiro

retrocesso neste caminho de evolução dos direitos sociais, pois a proibição presente

no texto do decreto confere ar de que a utilização da linguagem neutra de gênero nas

escolas seria algo errado, de modo a intensificar a discriminação a quem não se

encaixa no formato binário nas escolas.

46. No julgamento da ADPF n. 600, que trata da educação sobre gênero nas escolas

brasileiras, o i. Ministro Luís Roberto Barroso asseverou que: 15

A escola é uma dimensão essencial da formação de qualquer pessoa.


O locus por excelência em que se constrói a sua visão de mundo. Trata-
se, portanto, de um ambiente essencial para a promoção da
transformação cultural, para a construção de uma sociedade aberta à
diferença, para a promoção da igualdade. (STF, ADPF n. 600, Rel.
Min. Luis Roberto Barroso, 17.09.2020)

47. É sabido que o Brasil é um dos países mais homofóbicos e transfóbicos do

mundo, sendo líder de violência contra a comunidade LGBTQIA+. Neste contexto, é

nas escolas que as crianças e adolescentes que fogem do padrão começam a ser

fortemente discriminadas por seus colegas. Portanto, a proibição presente no decreto

combatido, por também instigar e reforçar o preconceito nas escolas públicas, viola

frontalmente os princípios da igualdade e da não-discriminação.


48. A educação deve servir como forma de garantia de direitos na medida em que

deve promover ferramentas para a formação livre e informadora das crianças e

adolescentes do país, moldando os adultos de maneira democrática.

49. Assim, ao agir de forma contrária, promovendo censura às diversas

possibilidades de ser e existir das crianças e adolescentes em formação, o Decreto n.

1.329/21 também viola o direito à educação.

V – DA MEDIDA CAUTELAR

50. Conforme estabelecido no art. 10, § 3º, da Lei n. 9.868/99, o Pleno desta Eg.
16
Corte pode conceder liminar inaudita altera parte em caso de excepcional urgência.

51. O provimento cautelar, entretanto, tem pressupostos específicos para sua

concessão. São eles: o risco de ineficácia do provimento principal e a plausibilidade

do direito alegado (periculum in mora e fumus boni iuris), que, presentes, determinam

a necessidade da tutela cautelar e a inexorabilidade de sua concessão, para que se

protejam aqueles bens ou direitos de modo a se garantir a produção de efeitos

concretos do provimento jurisdicional.

52. O fumus boni iuris significa a plausibilidade do direito alegado pela parte, isto

é, a existência de uma pretensão que é provável, sendo possível o julgador aferir esse

determinado grau de probabilidade pela prova sumária carreada aos autos pelo autor

do pedido cautelar.
53. O periculum in mora estará presente sempre que se verificar risco a que a

demora do provimento jurisdicional definitivo, que aplicará o direito ao caso concreto

submetido ao conhecimento do Poder Judiciário, seja danosa a esse mesmo resultado,

na medida em que possa causar dano à efetividade do processo principal. Esse dano

à efetividade do processo está ligado a outro dano, de natureza concreta, que pode

ser, por exemplo, o perecimento do objeto da controvérsia.

54. Presentes esses dois requisitos, isto é, sendo provável o direito alegado e

estando o mesmo sob ameaça, porque não é possível sua preservação até que o Poder

Judiciário se pronuncie definitivamente naquele processo, está aberta a possibilidade

do manejo da tutela cautelar.

17
55. O fumus boni iuris está suficientemente evidenciado nas razoes acima expostas,

que demonstram a flagrante inconstitucionalidade das normas impugnadas.

56. O perigo da demora se evidencia pois o decreto, em vigor desde sua

publicação, ou seja, 15.06.2021, já proíbe a utilização da linguagem neutra de gênero

nas escolas e órgãos públicos do Estado de Santa Catarina, promovendo verdadeira

afronta aos direitos à igualdade, a não-discriminação e a dignidade da pessoa

humana.

57. Não fosse só isso, imprescindível destacar que já há projetos de lei em outros

Estados utilizando o referido decreto como fundamento, a exemplo da “Indicação n.

3176/2021” de autoria do Deputado Douglas Garcia à Assembleia Legislativa de São

Paulo, que requer providências no Estado de São Paulo nos mesmos moldes do

decreto aqui combatido8.

8 https://www.al.sp.gov.br/spl/2021/06/Propositura/1000375335_1000444824_Propositura.pdf
58. Presentes esses dois requisitos, isto é, sendo provável o direito alegado e

estando o mesmo sob ameaça, porque não é possível sua preservação até que o Poder

Judiciário se pronuncie definitivamente naquele processo, está aberta a possibilidade

do manejo da tutela cautelar.

VI – DOS PEDIDOS

59. Assim, por todo o exposto, o Partido dos Trabalhadores, firme nas razões

constitucionais acima apresentadas, requer:

a) A concessão da medida cautelar inaudita altera parte, com base 18

no art. 10, § 3º, da Lei n. 9.868/99, para suspender imediatamente

a eficácia do Decreto n. 1.329/21 do Estado de Santa Catarina;

b) A intimação do Governador do Estado de Santa Catarina para

que preste esclarecimento que entender cabíveis e pertinentes;

c) A intimação da Advocacia-Geral da União para que se

manifestem sobre o mérito da demanda, nos termos da Lei;

d) E, no mérito, pela procedência desta Ação Direta de

Inconstitucionalidade para se declarar a inconstitucionalidade

do Decreto n. 1.329/2021 do Estado de Santa Catarina em sua

integralidade.
60. Por fim, requer que todas as intimações ocorram no nome de EUGÊNIO

ARAGÃO, OAB/DF 4.935 e, por oportuno, a concessão do prazo para a juntada de

instrumento de procuração específica.

Nestes termos, pede deferimento.

Brasília, 05 de julho de 2021.

E UGÊNIO A RAGÃO A NGELO F ERRARO


OAB/DF 4.935 OAB/DF 37.922

M IGUEL N OVAES M ARCELO S CHMIDT 19


OAB/DF 57.469 OAB/DF 53.599

E DUARDA S ILVA

OAB/DF 48.704

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