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Coleção Vianninha Digital

[ Versão para impressão ]

Volume 9

Se correr o bicho pega,


se ficar o bicho come
Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Coleção Vianninha Digital
Volume 9:
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come
VIANNA FILHO, Oduvaldo, 1936-1974
GULLAR, Ferreira, 1930

Versão para eBook


Carolina Godinho / Diego Molina / Peter Boos

Fonte
Digitalização do acervo particular de Maria Lúcia Vianna.
Diagramação adaptada aos formatos de eBook disponíveis.

Versão para impressão.


© 2007 — Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Se correr o bicho pega,
se ficar o bicho come
Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar

PERSONAGENS

JOSÉ BRÁS DAS FLÔRES NEI REQUIÃO


ROQUE DESEMBARGADOR
CORONEL FÉLIX ZULMIRINHA REQUIÃO
HONORATO VESPERTINA
MOCINHA DELATORZINHO
BIZUZA RODRIGO
MENDES FURTADO MULHER DE RODRIGO
ROSINHA SENADOR
JOCA RAMIRO CARCEREIRO
VENDEDOR DE IMAGEM CARCEREIRA
PREFEITO NAPOLEÃO
JOSÉ PORFÍRIO SUJEITO 1
ALEIJADO SUJEITO 2
PADRE SUJEITO 3
MATADOR

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 3 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
PRIMEIRO ATO

Entram todos os atores, cumprimentam-se. Entre êles, o Bicho; todos também cumprimentam o
Bicho. A partir de um determinado momento, todos cantam.
Todos - (Cantam)
Se corres, bicho te pega, amô.
Se ficas, êle te come.
Ai, que bicho será êsse, amô?
Que tem braço e pé de homem?
Com a mão direita êle rouba, amô,
e com a esquerda êle entrega;
janeiro te dá trabalho, amô,
dezembro te desemprega;
de dia êle grita “avante”, amô,
de noite êle diz: “não vá”!
Será êsse bicho um homem, amô,
ou muitos homens será?
Terminada a canção, todos saem. Fica somente em cena Brás das Flôres, de cócoras no meio do palco.
Uma garrafa de cachaça e um caroço de algodão na mão. Olha a terra. Examina. Cospe na
terra. Resmunga. Bebe. Olha a terra de novo.
Brás das Flôres - Sai pra lá, terra safada!
Nunca mais falo contigo. (Tempo)
Injustiçosa, capada,
lesa, fingida, sovina. (Bate na terra)
Toma, toma nessa cara!
(Mostra o caroço de algodão)
Olhe aí seu algodão!
Isso é coisa que se faça?
Isso é tamanho de grão?
Menor que do ano passado
que já era pequenino,
menor que do retrasado
que já era um grão mofino.
Mas, de vingança, mijei
muito em você, entendeu?
(Um tempo)
Ah, você era mais doce
do que sombra ao meio-dia;
a enxada entrava gostosa
na sua carne macia,
você, úmida, se abria
como mulher amorosa

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 4 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
ao macho que acaricia.
Bicha bêsta, deslavada,
me explica já teus intento
ou leva uma cacetada!
Ao menos pede perdão...
Não fala nada, comadre?
Ficou muda ou já morreu?
Vai ver que ela já morreu.
(Silêncio. Canta. Põe flôres sôbre a terra)
Agora te cubro de flor e de licor
pelas bênçãos da Virgem dominus biscum
revertere ad locum tuum.
Padre Ciço, Inhá Jansen, São Jorge e seus cavalos
vão puxar teu caixão entre as nuvens do céu nas alturas.
Adeus, terra finada, mãe das mães,
destêrro e sepultura.
É o Nordeste que aqui canta chorando
no galope que o vento vai levando.
Repete, triste. Roque entra. Uma velha mala a tiracolo. Um pau de domar burro na mão. Roque,
constrangido, fica olhando um tempo.
Roque - Bom-dia, Zé das Flôres.
Brás das Flôres - Bom-dia. Tão cedo assim?
Que bicho mordeu você,
muriçoca ou maruim?
Roque - Nada, não. Eu estava vindo
antes de me ir me indo...
Brás das Flôres - Já começo a trabalhar...
Roque - Não vim lhe cobrar trabalho.
Brás das Flôres - Assim de manhã tão cedo,
veio só mesmo pra falar?
Roque - Pra falar e para ouvir...
Brás das Flôres - Então fale as novidades
que eu gosto de me instruir.
Roque - Novidades...? ...deixe ver...
“Faceira” pariu novilha.
Brás das Flôres - Não me diga! E a nossa aposta?
Foi malhada ou foi tordilha?
Roque - Ganhei que a cria é malhada.
Brás das Flôres - Ah, mas que vaca mofina,
êh vaquinha desalmada!
Roque - Me deve um par de botina.
Brás das Flôres - Danou-se. Fico devendo.
Pago no fim da colheita.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 5 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Pode esperar coisa fina.
(Longo silêncio)
Roque - Pois é.
Brás das Flôres - Pois é.
Roque - Pois não é? (Outro silêncio)
Melhorou da diarréia?
Brás das Flôres - Quem melhorou mais foi ela.
(Outro silêncio)
Essa aí não é minha mala?
(Roque não responde)
Me diga, que faz com ela?
Mas por que você não fala?
Roque - Já nem sei, sou esquecido...
Brás das Flôres - Esqueceu ou se engasgou?
Roque - Você está despedido.
Fui buscando suas coisas
pra poupar tempo perdido.
Brás das Flôres - Tempo perdido...? ...Obrigado...
Por isso é que veio tão cedo...
(Silêncio)
Mas que foi que fiz de errado?
Roque - Você vendeu algodão
contra os acêrto, escondido.
Brás das Flôres - Mas isso é pura calúnia!
Roque - O Coronel tá ofendido.
Brás das Flôres - Perfídia, juro! Calúnia!
Roque - Quem contou o acontecido...
Brás das Flôres - Valei-me, rei Salomão,
acuda êste mal parido,
desprotegido das gente!
Acuda, rei Salomão,
êste seu filho inocente!
Puro como os cordeirinho
devoto de São Clemente...
Roque - Quem contou foi Cabo Joca
e êsse peste não mente.
Brás das Flôres - Joca Ramiro?
Roque - Ele mesmo.
Foi à fazenda e contou.
Aquilo é cabra terém:
já até o filho acusou. (Um tempo)
Brás das Flôres - Pois êle é que me ajudou
a vender o algodão...

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 6 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Foi contar pra se livrar
de qualquer complicação.
Roque - Vender algodão tá certo,
mas com Ramiro é que não...
Brás das Flôres - Sempre agi bem a contento,
que culpa tenho se o Diabo
veio soprar no meu ouvido?
Roque - Culpa de ser mal atento.
Resvalar, pode; não pode
é não ser bem sucedido.
Brás das Flôres - É que a terra se secou-se
mirrando todo o algodão.
Tôda a colheita não chega
pras contas do barracão.
Minha mulher foi à vila
há vinte dias atrás,
levou os filhos e o bode
e não voltou nunca mais.
Fugiu com Miguel Mascate
que ganha o que não faz.
E o tal açude que a gente
espera há seis anos já?
Entra verão, sai verão
o açude, que é bom, não há...
Aí, vendi o algodão...
Veja se razão me dá:
como pode um cidadão
numa tal situação
não ter uma idéia má?
Roque - Idéia má, pode ter,
mas saber executar.
É melhor se indo, Brás,
antes do sol esquentar.
Brás das Flôres - Pra onde vou, de repente,
a mão na frente, outra atrás?
se trabalho não há mais...?
Roque - É. Para falar a verdade
não tenho a menor idéia.
Lhe digo pra ir agora
por causa da diarréia.
Brás das Flôres - Não vou, não.
Roque - Ah, seu das Flôres,
não cometa essa insolença.
Brás das Flôres - Insolenço, sim, não saio,
nem que me toque a ferrão.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 7 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Roque - Das Flôres, não diga asneira,
que sou bom na profissão,
sei usar de violência
e arrebento até irmão
mesmo assim com caganeira.
Brás das Flôres - Prefiro. É caso pensado:
se saio sem resistência
fico desmoralizado,
não vou mais nem ter coragem
de lembrar do meu passado.
Roque - É pensamento bonito
mas por demais complicado.
Você quer levar cacête
para ficar confortado,
então vou lhe dar porrada
conforme está combinado
Brás das Flôres - Fala feito Coronel,
devia estar do meu lado.
Me expulsa pro seu patrão
ficar bem impressionado,
pra ver se lhe apanha a filha
que é essa a tua esperança.
É, você é feito eu:
só que eu lhe roubo algodão
e você, a confiança.
Roque - Bom, vai apanhar dobrado:
porque sou profissional
e também, viu, seu das Flôres,
porque usou confissão
que eu lhe fiz dos meus amôres
num momento de aflição.
Brás das Flôres - Mas de pau? Não é preciso,
não vê que estou desarmado?
Roque - Sucede que eu sou quem expulsa
e você é o expulsado.
(Os dois cantam e brigam)
Os dois - E agora é briga
agora é briga
agora é briga, ê, ô.
Coro - Terra secando
dor de fome na barriga.
Doido sertão:
colheita sêca
viceja a intriga
atrás vem briga
vem cacête

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 8 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
vem facão.
Os dois - Baixa o porrete,
pega na mão,
roda pernada,
abre, moçada,
que eu sou leão.
Coro - Se cai, levanta;
se canta, janta.
O pau comendo
de cima embaixo
Os dois - Briga de macho
tem cacête
e tem facão.
(Roque dá uma porretada em Brás)
Roque - Viu? Essa hoje é tua sorte.
Brás das Flôres - Foi uma porrada firme
mas tenho o caráter forte.
Os dois - E agora é briga
agora é briga.
Coro - Roda pernada abre,
moçada que eu sou leão.
(Roque dá outra porretada em Brás)
Roque - Vamos desistir, seu Brás.
Já cansei de lhe bater
Brás das Flôres - Só uma voltinha mais.
Quero tentar rebater. (Brigam de nôvo)
Coro - Se cai, levanta,
se canta, janta.
O pau comendo,
de cima embaixo.
(Outra porretada, definitiva)
Brás das Flôres - Ê, chega. Não agüento mais.
Agradeça às minhas tripas
essa vitória fugaz.
(Sai. Roque atrás. Coronel entra em cena. Senta-se. Roque e Brás chegam na
frente dêle. Um tempo. Brás tira o chapéu, humilíssimo)
Bom-dia, meu Coronel,
vai passando muito bem? Como vai dona Bizuza,
sua espôsa e santa também?
E sua filha, a Mocinha,
Santa Luzia a conduza
com seus olhos de adivinha...
(Longo silêncio)
Seu Coronel, me perdoe
pelo triste sucedido,

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 9 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
bem reparo que o senhor
tá um pouquinho aborrecido
mas não fôsse tanta agrura,
juro, não tinha vendido...
Coronel - Já estou de saco cheio.
(Brás das Flôres fala para o público)
Brás das Flôres - Finjo que ouvi uma voz
mas sem saber de onde veio.
(Ao Coronel de nôvo)
Vendi o algodão, foi sim,
mas que ganhei? dez mil réis...
Me enganei, foi trinta mil,
vinte mil réis na entrada
e depois deu mais dez mil...
na saída foi mais trinta...
cinqüenta, a conta somada...
é verdade!... na outra entrada
me deu inda mais dez mil...
dez, não, trinta, quase nada...
quarenta... ah, seu Coronel,
a pena que recebi
por falta que não faz falta
foi pena muito pesada.
(Silêncio do Coronel)
Está bem. Vou-me embora, então,
com a vossa permissão.
(Uma reverência. Vai sair)
Coronel - (Dirige-se a Roque)
Diga ao Brás que lhe dispenso
as contas do barracão.
Não mandei chamar polícia só por consideração,
que era bom trabalhador.
(Um tempo)
Brás das Flôres - Eu lhe agradeço o favor. (Vai saindo)
Roque - Até.
Coronel - Diga-lhe também
que gozei muito as histórias
que êle tira na viola.
Um dia, de tanto rir
fiquei com tudo de fora.
(Brás das Flôres sai. O Coronel fica emburrado. Olha, cismando um ponto
longe. Tempo longo)
Vem, senta aqui do meu lado.
(Roque senta. Silêncio)
Êsse calor junta môsca.
Será um dia demorado.
(Outro silêncio)

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 10 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Expulsar homem como êsse
me deixa muito abalado.
(Outro silêncio)
Mas se não mando êle embora
não dou o exemplo aos demais
e é um caso igual cada hora.
(Arruma pedras num tabuleiro de damas)
Minhas encomendas custam a chegar;
assim não dá nem prazer de comprar.
Jogue, já saí. (Jogam)
Ai, sinto remorso.
Roque - Mas de quê?
Coronel - Dum troço. (Tempo)
Sabe? Eu corneei
o pobre das Flôres...
(Coronel rouba uma dama)
Roque - Belos dissabores...
Sumiu minha dama.
Coronel - Sumiu?
Roque - Estava aqui.
Coronel - Mas você reclama,
a dama eu comi.
Roque - Lesou, isto sim.
Coronel - Onde estava?
Roque - Aqui.
Coronel - Eu joguei assim, eu fiz isto, isto
e, poc, comi.
Roque - Chega para mim,
Acabou-se o jôgo!
Coronel - Mas por quê? Que houve?
Roque - Cansei do seu lôgro.
Coronel - Mas quem está logrando?
Roque - Vou espiar se as compras
já estão chegando
ou se demorando. (Sai)
Coronel - Venha cá, seu merda!
Eu estou roubando?
Preciso roubar
droga de uma pedra?
Hã, bandido, pensa
poder me ganhar?
Bela recompensa:
te achei criança
na porta da rua
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 11 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
fui teu pai, tua ama,
e, depois de tudo,
sou ladrão de dama?
Bastardo, enjeitado,
seu filho do povo!
Vem aqui dizer
que eu roubei de nôvo!
(Senta. Joga sozinho)
Quer ver eu ganhar?
como por aqui
e por acolá,
foi-se uma dama já,
não pode com o pote
não pegue a rodilha,
nesse tabuleiro
danço uma quadrilha
menos uma aqui,
menos outra cá,
parapi, parapapá,
ploc, ploc, ploc,
pronto, comi tudo,
conheceu papudo?
sou o campeão!
(Dá um tapa no tabuleiro e cai de nôvo em profunda prostração)
Bom de jogar era com o Souza Trança
que perdia submisso e de bigode.
Quem tem bigode dá mais confiança.
Comprei-lhe as terras, pois, para quem pode,
é sempre bom ter mais, que a terra cansa.
Luís Gomide, o Gomide era engraçado,
vendeu-me tudo, chorou no tabelião.
Pro Ramos precisei de advogado...
Zé Neiva, Pedro Castro, André Leão,
Felicio do Amaral, Lopes Cansado...
ah, fiquei só nesta aba do sertão...
Eu mais o Senador Mendes Furtado.
Não falo com ninguém. Mas sem amigo,
nestas lonjuras, vou falar com quem?
Estêve aqui um môço da cidade,
formado em agronomia, era doutor.
Me disse que aumentar a propriedade
era medida de pouco valor.
“Certo é aumentar a produtividade
com irrigação, adubos e trator.”
Comprei o tal trator... Adiantou?
Doutorzinho, esta terra é na macheza!
Menos de um mês e a máquina parou
pois não há peças nesta redondeza.
Hoje serve de escora pro paiol

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 12 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
e de ninho a pipira, uma tristeza.
Dinheiro tenho, mas onde aplicar?
Plantar êsse algodão? Perder dinheiro,
pois os seus preços só fazem baixar!
(Canta) Sua mulher é uma santa muito fiel e perfeita.
Não é uma com uma pinta bem na nádega direita? (Ri)
Esse Zé Brás era uma coisa louca
com os versos que tirava na viola.
Mas culpado de tudo é o Requião.
Dono de usina, charutão na boca!
Dez anos no Govêrno, a maldição:
as verbas tôdas êle põe na cana
e nas bandas de cá nenhum tostão.
O açude? Faz dez anos que me engana:
êste ano, no outro, e a plantação
mirrando, mirrando, a sêca insana...
Nei Requião, te pego na virada.
deixa chegar a próxima eleição!
Meus Deus, a noite chega novamente
e o gerador ainda não chegou.
Mais uma noite com essa luz doente
que faz pensar que a vida se acabou.
(Silêncio)
Roque, Roque, vem cá, vem jogar dama!
Prometo, desta vez me dou respeito.
Roque, Roque, vem cá, vem jogar dama!
Longo silêncio. Senta-se de nôvo, entram Mocinha e Bizuza. Ambas de véu na cabeça, terços e
livros de missa na mão. Mocinha vem falando.
Mocinha - Qual o pecado mais grave:
a luxúria ou a preguiça?
Só isso que o padre sabe
dizer, e dormir na missa.
O fuxico das beatas
zum, zum, zum nos meus ouvidos,
e santos, sermão, novena,
procissão, igreja, missa,
ladainha, cantilena
sem falar no Padre Sena:
a luxúria ou a preguiça?
Coronel - Bizuza, as pedras da dama
tão no chão, quer apanhar?
Mocinha - Meu pai, se o senhor me ama,
me leva para o Recife,
amanhã o mais tardar.
Coronel - Bizuza, traz o licor
pra distrair do calor.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 13 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Recife, três meses por ano
e inda por muito favor.
Demo não se atiça, não,
Recife é gente demais,
e pra môça é perdição.
Pronto, não se fala mais,
reze pela minha missa.
Imita o padre, vá, filha:
a luxúria ou a preguiça?
(Ri. Mocinha faz um muxôxo, senta. Bizuza traz o licor. Silêncio)
A vida aqui não é má. (A Bizuza)
Vai me buscar palha e fumo.
Quero fumar... em resumo,
antes aqui do que lá...
Bizuza saiu de nôvo. Mocinha boceja, desiste de uma revista que apanhou. Coronel boceja às
lágrimas. Bizuza volta com o cigarro. Coronel com êle na mão, parado. A luz diminui. Um
tempo longo. Roque entra com embrulhos.
Roque - Olhe as compras Coronel,
chegaram somente agora.
Coronel - Veio tudo? Até que enfim!
Roque - Conferi, acho que sim,
o resta ficou lá fora.
A bênção, dana Bizuza
muita boa-noite, Mocinha.
(Mocinha vai ver os embrulhos)
Mocinha - Mas, meu Deus, um telescópio!
Papai, não se enxerga, não?
Que é isso?
Coronel - Um estetoscópio.
Mocinha - E livros em alemão!
Jogando dinheiro fora.
Coronel - Um barbeador elétrico
inglês, importado agora.
Mocinha - E cadê a eletricidade
como a que tem na cidade?
Coronel - É problema pra depois.
Não veio o ventilador?
Roque - Veio, lá fora tem dois.
Mocinha - E êste embrulho, o que tem?
Coronel - É tudo artigo de fé:
medalhas, santos, fitinhas
da Itália, da Santa Sé.
Bizuza, tudo isto é seu.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 14 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Mocinha - Mas para que tanto santo?
Roque - (A Mocinha, saindo)
Pra ter o que pôr no canto. (Sai)
Coronel - (Pega um envelope)
Ih, a escritura sagrada
de meus dois apartamentos
que eu comprei lá no Rio.
Um na rua do... não sei...
outro, onde morou meu tio.
(A Mocinha)
Inda hei de ir lá com você...
(Roque entra com um bidê)
Deus do céu! O meu bidê!
Mocinha - Mas pra quê?
Coronel - Pra que o quê?
Mocinha - O bidê!
Roque - Êle comprou só pra ter.
Coronel - O bidê?
Mocinha - Sim, papai. Não tem banheiro.
Coronel - Serve para ornamentar, ouviu?
Mocinha - Mas não tem lugar!
Coronel - Quem disse? Põe-se na sala.
Mocinha - Na sala?
Roque - Ou no galinheiro.
Coronel - Querem parar de falar.
(Ficam em silêncio. A Roque)
Ponha o bidê lá na sala,
num ponto bem situado.
Roque - Sim, senhor. Ponho de frente
ou um pouquinho de lado?
Coronel - De lado, naturalmente,
que fica mais caprichado.
Bizuza vai lá pra ver.
Busque um lugar adequado.
(Roque sai com Bizuza. A Mocinha)
Não gostou dos meus presentes?
Comprei tudo pra você...
(Mocinha não responde. Voltam Bizuza e Roque que fica fazendo corpo
mole. Os dois se olham de vez em quando. Bizuza faz crochê)
A novilha nasceu guenza.
É o “nova seita” do boi.
Nunca vi tão tarado;
quase que me estraga a rês
no ato o desnaturado.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 15 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Mocinha - (Fala, olhando Roque)
Boi santo era o Tinhorão.
Cobrindo era nuvem branca
passando breve e ligeira
sua sombra pelo chão.
(Coronel olha estranhando. Roque e Mocinha conversam a meia voz)
Outro dia vi Marquês
cobrindo a porca Ilusão,
de tão suave que fêz
a lama virou colchão.
Roque - Louva Deus que ama bonito:
sabe que o amor é cilada,
mesmo assim se entrega
até morrer do amor da amada.
Mocinha - Vi môsca cobrindo a môsca,
ficam assim tão distraídas
que até se esquecem da sorte:
dá-se um tapa de repente
e juntas encontram a morte.
Roque - E o cão?
Mocinha - Crucificado.
Roque - E o gato?
Mocinha - Desesperado.
Roque - E o cavalo?
Mocinha - Um rei, um reinado.
Coronel levanta e joga sua botina no peito de Roque. Mocinha fica sem graça. Coronel olha Roque
com cara de “onde é que nós estamos”. Tempo.
Coronel - Olhe aí quem está chegando!
É o seu noivo, Mocinha.
Voltou hoje da cidade.
Ria, faça uma gracinha,
enfim, é um Mendes Furtado
filho do bom Senador,
inteligente, dotado. (Furtado entra)
Furtado - Home, home, sweet home!
Ah, que Deus seja louvado!
(Aspira forte o ar)
Êsse cheiro de madeira!
Chorei ao ver a capela.
Ah, na cidade ninguém
é feliz só de estar nela.
Um abraço, Coronel.
Ah, feliz Mendes Furtado,
estás de nôvo no céu!

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 16 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Roque - (Ao público)
Mas êle acorda as galinhas
se continua o escarcéu.
Furtado - (Dirigindo-se a Bizuza)
Vim pra lhe beijar a mão.
Mocinha, meu coração,
ah, que saudade estupenda.
Deixei tudo na cidade
pra vir te ver, minha prenda.
Encomendado em Paris
te trago um metro de renda.
Coronel - Que bonita!
Roque - Tão bonita
quanto a que tem lá na venda.
(Um silêncio rápido)
Coronel - Bizuza, traz meu licor.
Me apanha também um leque
para espantar o calor.
(Bizuza sai. Furtado e o Coronel conversam. Sentam-se. Mocinha fica ao
lado de Furtado. Roque, num canto. Os dois se olham comprido)
Furtado - Vim e vim com novidade.
Mas é preciso primeiro
o senhor ir pra cidade,
pois se ficar neste inferno
podemos ganhar sezão
mas não ganhar a eleição.
Mocinha - E a abelha com zangão?
Roque - Só amor, amor mais dor...
(Falam baixo)
Coronel - Apóio o nome de seu pai
para ser governador.
Ir pra cidade não quero,
lá me sinto um lavrador...
Mocinha - Me fala do beija-flor...
Roque - No jardim se faz luar...
Furtado - O papai, ainda ontem à noite
mais uma vez foi jantar
angu com o Presidente.
Foi um jantar federal,
com quiabo e coisa e tal.
Mocinha - E o leão, como é que faz?
Roque - Pela floresta êle ama.
Mocinha - Que lindo, no matagal!
Furtado - Vencendo à gula, a virtude,

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 17 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
papai obteve dêle
a verba para o açude!
Já está no cofre do Estado,
o Governador, porém,
que é homem de Requião,
não solta nem um vintém.
Mocinha - A corça escolhe uma sombra
e ali espera o seu bem...
Furtado - Nesta eleição decisiva
jogamos a nossa sorte.
Coronel - Não preciso me mexer,
seu pai está muito forte.
Furtado - Sei, papai é popular,
dá verba pra asilo, vai
a orfanato cantar, mas já está velho, cansado,
não pode cuidar da terra,
eu também não sei cuidar...
(Ao público)
Campo me dá mal-estar...
Ficou tudo hipotecado.
Não temos muito dinheiro
para se ganhar sossegado.
Coronel - O Presidente não é
o nosso grande aliado?
Furtado - Êle é imparcial:
ajuda todos os lados.
Mocinha - Louva-Deus?...
Roque - Morre...
Mocinha - Coitado...
Furtado - Quem pode pois nos salvar?
Estou falando com êle!
O senhor e mais ninguém!
Quem foi que abriu o sertão
ao homem antes do trem?
Venceu a mata no braço,
enfrentou cobra e sezão?
Coronel - Ora, ora, Mendes Furtado
não vamos exagerar...
Mocinha - A égua pro ar relincha
depois da satisfação.
Furtado - Precisamos do seu nome
e do dinheiro que tem.
Nosso momento é chegado.
Procure os donos da terra:
desenterrar pra essa guerra
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 18 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
todo o dinheiro enterrado.
Coronel - Entendo, entendo, Furtado,
mas não dou pra falação.
Mocinha - E tem um bicho que come
o seu próprio coração.
Furtado - O Requião, veja bem,
já começou a campanha.
Se não corremos também,
mais uma vez êle ganha.
Já ontem foi a Magé,
distribuiu quilos de banha.
Coronel - E o candidato quem é
desta vez? O Zé Pedrão?
Furtado - Desta vez o candidato
é o próprio Nei Requião!
Coronel - Eu vou, eu vou pra cidade.
Ai, é êle o candidato?
Dêsse velho covardão
vou fazer gato e sapato!
Ia ao Recife em novembro,
mas vendo agora a colheita
e estouro lá em setembro!
E vou levantar dinheiro
em todo o canto e lugar.
Bizuza, me dá licor. (Bizuza sai)
Furtado - Isto, sim, é que é falar!
Vamos ter governador!
Coronel - Agora, vão namorar.
Mas dentro do combinado:
se passarem do cercado,
não vou poder vigiar.
Furtado - Vou carregado de paz.
Agora vamos ganhar.
(Sai com Mocinha que olha Roque. Roque, acabrunhado, num canto. Bizuza
volta com o licor. Fica ao lado do Coronel. Espera enquanto êle fala)
Coronel - Requião, Nei Requião
lá vou eu para o Recife!
Vais me pagar mandrião:
quero açude em minhas terras
e o verde na plantação.
Sou difícil de cismar
mas quando cismo, sou cão!
(A Bizuza)
Que fazes aí parada?
Me dá o licor ou não?
Êta mulher desgraçada
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 19 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
que nunca presta atenção!
(A luz se apaga, acende. Roque só em cena. Noite. Olha. Aflito)
Roque - Será que ela vem?
Por que se demora?
A noite se acaba...
Vem sempre a esta hora.
Não deve tardar.
Deus... será que hoje
não vem urinar?
Ela me olhou de tal jeito
que de hoje não passa, não?
Mas quem sou eu, borra-botas,
pra querer seu coração?
Eu sou filho do Bonfim,
jagunço, largou-me aí,
não quis mais saber de mim.
O Coronel me apanhou,
foi quem evitou meu fim.
Mas, ah, que desgraça a minha:
em vez de amar a criada,
fui amar justo a rainha.
Mas será melhor viver
sem nunca olhar para o alto?
Nunca passar da bainha?
(Mocinha aparece)
Roque - É ela, meu Deus.
(Mocinha vem passando)
Psiu.
Mocinha - Meus Deus! O que foi?
Roque - Sou eu.
Mocinha - Que susto levei.
Roque - Eu... eu também me aturdi...
Mocinha - Por aqui?
Roque - Por aqui...
Mocinha - Sei...
Pois é...
Roque - Pois é... por aqui...
Veio pra fazer xixi?
(Semi-sorrisos. Mocinha um pouco apertada. Vai indo. Roque agarra
Mocinha)
Mocinha - Mas o que é isso?
Roque - A nossa conversa
me deu um rabicho.
Mocinha - Me larga, ora essa.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 20 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Roque - O cão, o cabrito...
Mocinha - Gosto de animais...
Me larga que eu grito...
Roque - O Louva-Deus morre...
Mocinha - Mas ai, ai, que aflito.
Roque - Todos os casais...
Mocinha - Falei por falar,
gosto de animais.
Roque - E o beija-flor...
Mocinha - Eu vou é gritar.
Roque - Não, não, meu amor.
Mocinha - Ai, papai, papai.
Roque - Agora a casa cai.
Mocinha - Ô papai, papai! (Coronel aparece)
Ai, meu Deus, papai!
Se esconde, vai, vai.
(Roque se esconde atrás dela)
Coronel - Eu sou Félix Honorato
o dono de todo o agreste
que só come no meu prato.
Eu, eu, Honorato, tenho
banheiro fora de casa.
É como fazer no mato.
Ah, Nei Requião, maroto,
eu te ganho essa eleição,
encho isso aqui de esgôto,
coloco banheiro em casa
e fico lá sentadão!
(Vem. Encontra Mocinha)
Você aqui fora?
Mocinha - Estou.
Coronel - A essa hora?
Mocinha - O que perguntou? Ai.
Coronel - O que tem aí?
Mocinha - Nada, não, papai.
Coronel - Mas você gritou.
Mocinha - Eu?
Coronel - É.
Mocinha - Eu não.
(Grita) Ai.
Coronel - Mas o que é isso?

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 21 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Mocinha - Nada. Ai. Não aperta.
Coronel - Mas que rebuliço.
Ahn, falas com quem?
Mocinha - Eu? Eu? Com ninguém.
(Roque resolve aparecer. Com cara de quem está passando)
Coronel - Como não, Mocinha?
Falas ais, uis, heins,
que... Ué, por aqui?
Roque - Ó, boa-noite, salve!
Coronel - Está aí também?
Roque - É...
Coronel - Vai ao banheiro?
Roque - Já fui, já saí.
Coronel - Sei. Vai, vai, Mocinha.
Mocinha - Não quer ir primeiro?
(Coronel não agüenta mais)
Coronel - É melhor, senão
eu me molho inteiro.
(Entra correndo. Fica à vista, atrás de um tabique. Cantarola alto. Roque,
escondido atrás de Mocinha, espera. Coronel sai outra vez)
É você, agora. E o Roque, cadê?
Mocinha - O Roque? Que Roque?
Ah, sim, foi embora.
(Vai recuando e entrando no banheiro com Roque)
Entro eu, agora.
(Entra com Roque, Coronel vai indo. Pára)
Coronel - O Roque... não sei...
vou ficar de ôlho.
O Roque, eu criei
desde pimpôlho,
mas é empregado
e nunca me disse
um muito obrigado
e me come a filha
se sou descuidado.
(Senta-se. Os dois no banheiro olham. Um tempo. Coronel procura espiar,
meio dormindo)
Deve estar desarranjada
está demorando demais.
(Os dois olham. Coronel quase dorme)
E ela não sai, que desatino.
Vou lhe dar chá de cidreira
pra prender o intestino.
(Sai, meio dormindo. Os dois vêm para o quintal. Se beijam. Deitam. Roque

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 22 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
fala para o eletricista do teatro)
Roque - Apaga a luz, Severino. (Ao público)
Se sem luz não é melhor,
é, pelo menos, mais fino.
(Apaga a luz. Um tempo. Música. Abre. Mocinha e Roque dormem lado
a lado. Mocinha acorda. Beija Roque. Sai. Um tempo. Roque acorda.
Levanta-se, encantado. Meio cantarola a música. Um tempo. A música pára
de estalo)
Ai, meu Deus, que foi que fiz?
(Se belisca) Não foi imaginação?
Onde meti o nariz?
Ela é filha do patrão
e eu sou filho dum jagunço.
Filho de Quinca Bonfim!
Ah, cachorro, cachorrão!
Só sabes é domar burros,
não domas uma paixão?
Não sabes ser pobre, não.
Mereces levar uns murros.
Vai preparando o caixão.
(Meio canta, meio fala)
Mocinha, ai, Mocinha.
desta vez vou rebentar.
(Joga-se no chão, rola, senta)
Mocinha, meu céu, meu dia,
meu pente de pentear,
meu temor, minha alegria,
porque existes no mundo
o mundo vou melhorar.
Te abraçando, te abraçando
meu Deus do céu, eu nasci.
Nasci, facada, morri!
(Morre. Senta. Recomeça)
Punhal, bainha, calor,
coisa linda de tocar,
nossa mãe do céu, desfaleci,
que só pra te amar nasci.
(Desmaia levanta. Pára a música)
Ai, Deus não posso contar
e ninguém pode saber,
se o Coronel escutar,
tou pertinho de morrer.
Mas eu preciso falar.
A quem conto meu segrêdo,
a minha felicidade?
A quem faço ter inveja?
Em quem desperto saudade?
(Entra um burro em cena)
Ah, conto pro Zé Amaro.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 23 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Não, se êle é de fala pouca,
a mulher tem muito faro.
Vou contar ao Brás das Flôres,
que êsse sim, não abre a bôca,
é mais firme do que escora!
Mas êle já foi embora....
Ah, conto ao burro Cirino
que além de Cirino é burro,
e além de burro é calado.
E mais: êle é meu amigo
pois foi por mim amestrado.
(Vai ao burro. Fala-lhe no ouvido)
Ouve, burro, amei Mocinha,
nos unimos feito um nó,
meu corpo emendou no dela,
nossas almas, numa só.
Pensei com seu pensamento
respirei com seu pulmão.
Ela bebeu meu alento,
viveu com meu coração.
E o chão virou firmamento
quando rolamos no chão.
O dia nasceu mais cedo,
a manhã veio comovida.
Guarda, amigo, êste segrêdo
que acabo de lhe contar
tôda a beleza da vida.
(Sai. Tempo. O ator que faz o burro tem os braços soltos, o que lhe permite
abraçar Roque, pôr a mão na cabeça quando ouve a narrativa e jurar em
cruz, beijando Os dedos, que guardará o segrêdo)
Burro 1 - João, João, vem cá, vem.
Vou lhe contar um segrêdo,
mas não conte pra ninguém.
Burro 2 - Ora, ora, seu Cirino,
confie no seu amigo.
Sou um burro muito fino.
Segrêdo que alguém me conta,
Já sabe, morre comigo.
(Burro 1 começa a contar)
Como é que foi? Diga, hein?
Êsse môço é um perigo...
Hã? Dizia “meu bem”...
(Os dois burros saem de cena, dando coices. Coronel entra com uma
camponesa. Brincam. Burro 1 coloca uma cadeira para o Coronel sentar com
a camponesa no colo)
Rosinha - Mas não assim, que doideira!
Coronel - Ah, Rosinha, me remoça
com tua doce brincadeira.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 24 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Me alegra, anima e consola
desta vida ingrata e frouxa...
Deixa apertar tua coxa.
Rosinha - Que é isso? O senhor abusa!
Siá Bizuza ai vem.
Coronel - Quem vem aí, a Bizuza?
Rosinha - Ploc, sumiu.
Coronel - Ploc, plac,
ploc, pliu.
(Dá um beliscão em Rosinha)
Rosinha - Ai.
Coronel - Marotinha.
Rosinha - Ah, é morder?
Coronel - Uma vezinha
para o papai,
Ai, ui, ai,
tararai...
Rosinha - Ouvi barulho. Vem gente.
Coronel - Rosinha, eu sou o patrão.
Qualquer um terá vergonha
de me pegar de repente.
Rosinha - É meu marido.
Coronel - Será?
Rosinha - Joca Ramiro em pessoa.
Coronel - Faça cara de visita
que eu faço de visitado.
Ao menos a gente evita
que êle se sinta humilhado.
(Sai para dentro. Vestindo-se. Um tempo. Joca Ramiro entra correndo)
Joca Ramiro - Coronel, vim lhe contar
O que corre por aí.
Ué, cadê o Coronel?
(Vê Rosinha)
E você, que faz aqui?
Rosinha - Eu? Nada. É que eu ia ali...
Joca Ramiro - Ia ali!... Belo papel...
Rosinha - Ia ali mas vim aqui.
(Joca Ramiro dá um tapa em Rosinha. Coronel entra.Uma perna da calça
do lado de fora)
Coronel - Estão brigando por quê?
Joca Ramiro - Hã? Não foi nada, patrão!
Coronel - Nas minhas terras não tem

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 25 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
briga nem quizila, não!
Joca Ramiro - Me desculpe, Coronel.
Coronel - Primeira vez, eu relaxo...
(Repara que está com as calças vestidas de trás pra frente)
Ué, que é isso? que bosta!
Será que eu estou de costas?
Calça moderna, que diacho...
Rosinha - Pois é...
Coronel - Pois é...
Joca Ramiro - Pois não é...
Eu soube de um caso agora
de outro que assim se vestiu,
vim correndo lhe contar,
mas o senhor está tão bem...
Não quero lhe perturbar.
Coronel - Vamos lá, pode falar.
Joca Ramiro - (Ao público)
Agora vou me vingar.
(Ao Coronel)
Coronel, o que se ouve
por tôda essa redondeza
é que o Roque vestido
dum jeito muito esquisito
caia e soltava grito,
se rolava pelo chão
falando só de Mocinha.
Coronel - De Mocinha?
Joca Ramiro - E de paixão.
Coronel - Desgraçado! Flibusteiro!
Joca Ramiro - Como se amaram à noitinha
escondidos no banheiro,
que dos seios de Mocinha
guardava o suave cheiro,
que tinha o vazio das coxas
na cova de sua mão...
Coronel - Chega! Pára a descrição.
Aquêle catingoseiro
fêz de Mocinha mulher?
Joca Ramiro - Não sei. Disse que dobrou
seu corpo em cima do dela
que se abriu feito fruta
quando já está amarela.
Coronel - Ai, que já vou ter um troço.
(Cai. Um tempo. Levanta)

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 26 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Agora não, que não posso.
Preciso antes vingar
essa afronta que sofri.
Joca Ramiro - Não vai poder se vingar
que êle acaba de fugir.
Coronel - Cabo Joca, por favor,
chame aqui um matador.
Rosinha - Não, não, não, não faça isso.
Coronel - Me diga, Cabo Ramiro,
se um dia você soubesse
que sua santa mulher
teria sido coberta
por um sujeito qualquer
agüentava o desacato?
Joca Ramiro - Como disse, seu Norato?
Coronel - A mulher, não... quer dizer...
a filha. A comparação
é com a filha neste caso.
Joca Ramiro - Eu acho assim, Coronel:
se o gajo é um superior,
punha a culpa na mulher;
mas se fôsse um inferior,
então êle ia ver:
inocentava a esposa
e ia nêle pra valer.
Coronel - Me arranje um jagunço dêsses
que fazem a terra tremer.
(Joca sai. A Rosinha)
Você vai chamar Mocinha
Vou dar-lhe uns tapas na cara
pra deixar de ser galinha.
(Rosinha sai correndo)
Ah, minha Nossa Senhora,
o que fêz o meu Roque!
Eu gosto dêle um bocado,
mas na filha não me toque!
Ai, Deus do céu, que pecado!
Lá se vai o casamento
que já estava acertado.
(Furtado entra esbaforido)
Furtado - Ah, Coronel, eu...
Coronel - Pode desmanchar...
Furtado - Eu vim lhe dizer...
Coronel - Não precisa falar...
Furtado - Mas é...

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 27 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Coronel - Sinto muito,
muito, pode crer.
Furtado - Coro...
Coronel - Tem razão...
faria a mesma coisa,
fechava questão.
Furtado - Eu posso falar?
Coronel - Pode. Eu não sei
se vou escutar.
Furtado - Aquêle empregado
que há por aqui
anda abusado
fazendo alarma
que ontem passou
Mocinha nas armas!
É uma aleivosia,
calúnia assacada
que não tem valia!
Coronel - É uma calúnia?
Furtado - Calúnia!
Coronel - Infame!
Furtado - Clame aos céus, clame!
Coronel - Calúnia! Vexame!
(Coronel repete mais baixo)
Furtado - (Ao público)
E, não ter dinheiro
não é nada bom!
tenho de engolir
êste sapo inteiro.
(Volta ao Coronel)
Calúnia infame!
Coronel - Calúnia infame!
Furtado - Aí vem Mocinha,
faça um exame.
(Mocinha entra com Bizuza. Entra cantando. Os dois se entreolham. Sorriem
amarelo)
Mocinha - Me chamou, papai?
Lalalá, lalai...
Coronel - Bizuza, vá buscar
o que encontrar. (Bizuza sai)
Filha, não se fira,
mas estão dizendo...
Mocinha - Ah, mas que mentira!
(Continua cantarolando)

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 28 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Coronel - Viu? Não lhe disse?
Furtado - Mocinha é inocente,
se vê logo, gente.
Escute um palpite:
faça agora uma viagem
para que se evite
muita pabulagem,
pois se falam mais
fico sem coragem...
Coronel - É... é... tem razão,
vamos pra cidade cuidar da eleição.
(Bizuza volta com licor, cigarro, leque. Furtado, saindo, fala com o público)
Furtado - Me vou, com licença.
Viram, meus senhores,
minha inocência...?
Coronel - (A Mocinha)
Não sei agora onde estou
que não te quebro essa cara!
Mocinha - Mas, papai, é uma calúnia!
Coronel - Calúnia! Pensa que eu sou
educadinho e arara?
Apanha pra nunca mais
dar vazão à tua tara.
(Mete a mão em Mocinha. Sai. Mocinha vai até Bizuza. Bizuza dá-lhe
um tapa. Mocinha sai. Bizuza fica só em cena, com a mão cheia de coisas.
Apaga a luz)
Abre. Uma feira. Uns retirantes amontoados. Dois cegos pedindo esmola. Passam dois retirantes.
Mulheres atrás com matolão. Vão se sentando.
Retirante 1 - Diz que a sêca já chegou
até lá em Livramento,
tem gente naquelas bandas
que anda comendo vento.
De lá só vim com a mulher
e o meu triste pensamento.
Retirante 2 - Plantando naquelas terras
só ficou foi Satanás
e o Coronel Honorato
que plantação não faz mais:
só dá emprêgo pro mato.
(Um casal passa. Dão esmola)
Cego 1 - (Canta)
Deus lhe pague essa esmola
dada de bom coração.
Conserve a luz dos seus olhos
que é bem sem comparação.

Se correr o bicho pega, se


Papa
ficar
Highirte
o bicho [come
29 ] [ Oduvaldo
29 ] Oduvaldo
Vianna Filho
Vianna Filho e Ferreira Gullar
Mulher 1 - Diz que aqui nesta cidade
tem farinha do govêrno
pra dar pra necessitado.
Confiar em Deus, vizinha.
Mulher 2 - Em Deus e nessa farinha,
me desculpe se é pecado.
(Passa um vendedor de imagens)
Vendedor - Olha a imagem de Nossa Senhora,
que às seis todo dia chora.
(Passam o Prefeito e a Mulher. Não dão esmola)
Cego 2 - (Canta)
Quem passa e não dá esmola
Deus aleije a sua mão.
Dê bobeira no miolo,
peste branca no pulmão,
nos olhos gôta-serena,
que cegou minha visão!
Cego 1 - (Canta)
Nos olhos gôta-serena
peste branca no pulmão,
nas orelhas dê gangrena
nó nas tripas, dor no grão,
Cego 2 - Caia o dedo apontador
caia os dentes e caia a mão,
caia o nariz e os cabelos,
caia o pé, caia o culhão.
(Entra José Porfírio. O Prefeito vai até êle. Cumprimenta-o. O vendedor
continua cantando longe)
Prefeito - Atenção, povo, atenção!
Chegou à nossa cidade
o senhor José Porfírio
que cuida da propriedade
dum homem que admiro:
o doutor Nei Requião.
José Porfírio - Vim por ordem do patrão
para oferecer trabalho
na Usina Requião
para ajudar desgraçado
que não tem teto nem chão.
Em trinta dias vai ter,
raspa de cana na Usina.
Quem quiser ter de comer
basta o braço levantar.
Vá até a Prefeitura
e pode lá esperar.
O Prefeito soca tudo
num caminhão pra levar

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 30 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
daqui até Parati.
De Parati à Usina
é só uma caminhada:
dez dias, boa passada.
(Tira um lenço para se enxugar, deixa cair a carteira de dinheiro. Vão
saindo)
Prefeito - Mas dez contos por viagem
é pouco, não é vantagem.
José Porfírio - Dez contos e lamba a mão.
(Saem. Os retirantes começam a se levantar. Falam esparso um para o
outro)
Vozes - Vamos lá.? Vamos tentar?
Não há muito que escolher...
Seja o que Deus quiser...
(Enquanto isso os dois Cegos se aproximaram da carteira. Os dois, ao mesmo
tempo, põem a mão em cima dela)
Cego 2 - (Roque)
Sai dai, sai seu.
Cego 1 - (Brás das Flôres)
Sai, pois isso é meu.
Roque - Mas eu vi primeiro.
Brás das Flôres - Primeiro fui eu.
(Os dois se levantam disputando)
Roque - Seu cego safado!
Eu que vi primeiro.
Sai daí, senão
te deixo malhado.
Brás das Flôres - Vi antes, não nego.
Sai daí, senão
é menos um cego.
(Discutem sem perceber que o povo está em volta, olhando feio)
Roque - Mas quem viu fui eu.
Brás das Flôres - Isso, não. Fui eu.
Me dá.
Roque - Não me toque.
Brás das Flôres - Eu vou. É o Roque!
Roque - Venha, cai pra trás.
Mas não é o Brás.
(Se abraçam. Um tempo. Percebem que o povo percebeu. Um tempo)
Os dois - (Cantam)
Deus lhe pague essa esmola
dada de bom coração.
Conserve a luz, dos seus olhos...
(Saem correndo. O povo atrás)

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 31 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Voz - Tasca o cego.
Coro - Tasca, tasca o cego.
Pega o desgraçado.
Fura o ôlho com prego!
Não é cego, não!
(Saem todos. Menos dois ou três e um aleijado. Os dois ou três olham feio
para o aleijado)
Aleijado - Que estão olhando?
Não tem nada errado.
Existe mendigo
que é mesmo aleijado.
Eu sou aleijado...
(Um tempo. Pula e sai correndo nas duas pernas, lépido. Os outros vão
atrás. Roque e Brás das Flôres entram correndo. Vozes do povo continuam)
Roque - Vamos fugir, Brás, olha o povo atrás.
Brás das Flôres - Mas que desatino.
O que é que se faz?
(O povo entra. Porfírio na frente)
José Porfírio - A minha carteira.
Perdi lá na feira.
(Caem em cima dêles. Porfírio pega a carteira e dá sôcos e pontapés em Roque.
O povo em cima)
Vozes - Bate nêles, bate!
Mata, mata, mata!
Fura o ôlho com prego!
Roque - Sou um pobre cego,
tenho catarata!
Brás das Flôres - Eu não vejo nada.
Nada, nada, nada.
José Porfírio - Vamos, minha gente,
sem dó na paulada.
(Brás sai correndo. A Roque)
Brás das Flôres - Hoje estou com pressa.
Em dia mais calmo
a gente conversa.
(Roque apanha só. Entra Matador. Um tempo)
Matador - Chega dessa covardia.
Quem fala sabe quem fala;
quem ouve, saber devia.
(Um tempo. O povo olha, vai recuando. Porfírio ainda. segura Roque)
O homem está frouxo, seu.
Se quer um homem de pé,
por que não escolhe eu?
José Porfírio - Meu nome é José Porfírio,
gerente de Requião.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 32 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Matador - Gerencie as coisas dêle,
nas outras não mexa, não.
E quem lhe quiser bater
tem que medir minha mão.
(Silêncio. Porfírio deixa Roque)
José Porfírio - Vou que tenho de ir cedo,
já lhe dei o corretivo,
mas não é que tenha mêdo
pois não temo adjetivo.
(Para Roque)
Mas você me paga essa,
pra morrer, basta estar vivo.
(Sai. Os outros saem. Matador vem até Roque. Dá-lhe água. Examina
Roque)
Matador - Hum... o queixo ficou frouxo...
Foi baque de vara brava,
de pau ferro ou de pau roxo.
Mas tenho que ir embora,
que assim não pego nem coxo.
Gostava de lhe tratar
mas tenho de dar um arrôcho.
(Sai. Volta)
Quem sabe, você me ajuda:
estou atrás de um sujeito
por nome chamado Roque.
O Coronel Honorato
mandou me chamar e quer
que à bala eu destamboque
a cabeça do gaiato.
Roque - Ai, ai, fala devagar...
Está procurando um Roque?
Matador - Isso.
Roque - Pra quê?
Matador - Pra matar.
Roque - Matar?... ah, sei...
Roque sou... Roque?...
nunca ouvi falar...
(Cai de novo)
Matador - Pena. Tenho que ir embora...
não posso mais lhe ajudar...
(Vai saindo. Entra Brás das Flôres e se atira aos pés do Matador)
Brás das Flôres - Ah, São Salvador,
salvou do castigo
David protetor,
livrou meu amigo
o Roque...

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 33 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Matador - Quem? Roque?
Brás das Flôres - Falando com êle.
Matador - Ele chama Roque?
Roque - Não é êsse o nome,
não troque, não troque.
Brás das Flôres - Mas está brincando
pois é êle o Roque.
Matador - Que fêz a filha
do seu Honorato?
Brás das Flôres - Isso mesmo. Exato.
Viu, viu, meu irmão?
Ficou conhecido
em todo o sertão.
Ah, fiquei tão orgulhoso
quando soube dêsse ato,
que você, Roque, comeu
a filha do Honorato.
Roque - Êle está atrás do Roque
pra metê-lo num caixão.
Brás das Flôres - Está procurando pra?...
Pois é... mas onde será
que êsse Roque foi parar?
(Silêncio longo)
Matador - Môço, então lhe dei a mão,
evitei de lhe matar
e você não foi capaz
nem sequer de me ajudar?
Roque - Não entendi... o senhor...
Matador - Nem pra pagar um favor...
De pés, vá fique nos pés!
Não mato homem deitado.
Eu vou contar até dez.
Um, dois...
Brás das Flôres - Olhe, Excelência...
Matador - Três...
Brás das Flôres - Só êle é quem papou...
Matador - Quatro...
Brás das Flôres - Não tive ingerência...
Até que fui contra...
Matador - Seis...
Brás das Flôres - Pobre tem que ter decência.
Vou ali, volto pro mês...
Matador - Sete...

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 34 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Brás das Flôres - Prazer. Com licença.
(Sai rápido. Roque levanta)
Roque - Mas... o senhor tem revólver
e eu estou desarmado...
Matador - É que eu sou o matador,
você, quem vai ser matado.
Roque - (Ao público)
A razão está com êle.
Já usei dêsse ditado.
(Dançam. Matador dá tiros. Roque rola por baixo dêle. Desvia-se dos
tiros)
Coro - Rolou tiro, rolou tiro
rolou tiro pra valer.
Rolou tiro, rolou tiro
rolou tiro pra valer.
(Os dois param frente a frente. Viram-se para o público e cantam)
Os dois - (Cantam)
Estrondo que fêz o mundo
parar de susto pra ver,
que fêz as onças do mato
se alvoroçar e correr
que fêz Antônio e Raimundo
do próprio nome esquecer
fêz chuva chover pra cima
cantador errar na rima,
rio parar de correr.
(Voltam os tiros e a dança)
Coro - Rolou tiro, rolou tiro
rolou tiro pra valer.
Matador - Coisa que mais admiro
é quem pula pra morrer.
(Vira-se. Dá um tiro. Roque é atingido)
Roque - (Canta)
Parece que estou ferido
na cabeça e vou morrer.
Ai, me matou o bandido!
Não, meu santo é pra valer,
eu tenho corpo fechado:
(Fala)
A bala entrou num ouvido
e saiu pelo outro lado.
(Voltam os tiros. Entra um Padre)
Padre - Pára a briga! Pára a briga!
Hoje é dia de Natal,
de confraternização
e de paz universal.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 35 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Hoje, ninguém vai matar
nem mesmo no Vietnã.
Pra matar o companheiro
em guerra ou em assalto
tem o resto do ano inteiro
a começar de amanhã.
No Natal, não quero vítimas.
(Sai. Os dois se olham)
Roque - Muito que bem... Merry Christmas...
muitas festas e amizade.
Matador - E pra você também, Roque,
desejo felicidade.
(Sentam-se, cansados. Tempo)
Sabe, Roque? Sua sorte
é que já não sou rapaz,
dez anos menos, e a morte
já tinha lhe dado paz.
Já estavas de mão no peito
e com a alma encomendada.
Mas já não vejo direito,
já tenho a vista cansada.
Hoje, tudo o que quero, pode crer,
é um canto meu para ficar em paz.
Foi vaqueiro? Algum dia vaquejou?
Roque - Só com burros lidei e era capaz...
Matador - Era Berto, Palmeira, Benvenuto,
Destêrro, Félix da Anunciação,
o Zé Prêto, Ismael do Riachão,
Calixto, Pé de Serra, Nicoluto
mais eu a varejar pelo sertão.
Tinha a flor dos cavalos, raciado,
que varava a caatinga sem respeito.
As moitas de mofumbo, juazeiro,
pau-d’arco, xiquexique, macambira,
jurema preta ou branca, mais ligeiro
que o vento ia varando, ali na mira,
na trança dos cipós, sabendo o rasto.
Não teve barbatão no capoeiro,
não teve boi que me escapou do pasto.
Roque - Mas, e por que deixou de ser vaqueiro?
Matador - Porque ser matador dá mais dinheiro.
(Toca um sino)
Chega-se ao fim do Natal.
Dia de paz, acabou.
(Luz difusa no palco)
Roque - Somos amigos, agora
que a gente já conversou.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 36 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Será que posso ir embora?
Matador - Meu trabalho não findou.
Conversa foi noutra hora.
Roque - Gosto muito de Mocinha
e ela gosta de mim.
Matador - A gente logo adivinha
se a môça se entrega assim.
Roque - Você sabe, a carne é fraca...
Matador - Você vai me disculpar,
como as balas acabaram
vou ter de matá-lo a faca.
(Tira uma faca)
Roque - Na faca vai empatar.
(Tira uma faca também)
Deixe que eu me vá embora.
Matador - Tenho óculos a comprar,
necessito de dinheiro
e é assim que eu sei ganhar.
Roque - A gente assalta um armazém,
É coisa pra uma hora.
Matador - Nunca roubei a ninguém,
não vou começar agora.
Roque - Vai ficar em desvantagem.
É de noite, está escuro,
você não enxerga bem.
Matador - Vamos, menino, coragem.
Dos dois vai sobrar alguém.
(Põe-se em guarda. Rodam. Falam lento)
Com um ôlho frio
a faca te vê.
Roque - Seu olhar de aço
penetra em você.
Matador - Seu olhar de aço
já é quase o corte.
Roque - Por onde em teu corpo
vai entrar a morte.
Matador - Vai entrar agora
por meu aço fino.
(Dá uma estocada)
Roque - Mas você errou!
(Matador procura Roque. Não vê que Roque está atrás dêle)
Cadê o menino?
(Vira. Roque acerta primeiro)
Menino, acertou!
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 37 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
(Cai. Um tempo. Roque em pé)
Matador - Foi só porque já estou velho
senão, você é que estava
aqui, de cara pra cima,
vendo o ar ficar vermelho
e tendo na bôca o gôsto
da vida que desanima...
Tem um níquel? Oh, por Deus,
põe êle na minha mão,
vou ver se compro no céu
a minha absolvição.
(Roque se ajoelha. Dá o níquel)
Morro, foi melhor assim.
Pode contar por aí
que ao se findar o Natal
morreu pela sua mão
o terror dêste sertão,
chamado Quinca Bonfim.
Roque - Que disse? Quinca Bonfim?
Mas então, é... é... meu pai!
(Beija o Matador. Levanta-se e chora. Um tempo. Pára de estalo. Olha bem
o Pai)
Pô, papai... até que enfim!

FIM DO PRIMEIRO ATO

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 38 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
SEGUNDO ATO

Abre. Estão em cena Nei Requião, Zulmirinha Requião e o Desembargador. Zulmirinha se


olha num espelho. Maleta de maquilagem no colo. Malas no chão. Desembargador tosse muito.
Nei dá-lhe tapinhas nas costas.
Nei Requião - Água! Ei! Um copo d’água!
Vespertina! Vespertina!
É a dona dêste hotel.
Ah, mas nem uma empregada!
Isto parece é cantina.
(Ao Desembargador)
É, meu Desembargador,
mais fácil é ir a Havana
do que conseguir chegar
a uma usina de cana.
Desembargador - Viagem muito agradável,
muito agradável, pois não...
(Tosse às lágrimas. Toma tapas)
Nei Requião - Vou lhe mostrar a culpada:
Zulmirinha Requião.
Ela nos meteu na estrada.
Zulmirinha - Ah, que coisa indelicada.
(Fala e se maquila)
Eu não obriguei ninguém.
Esperam sua chegada
hoje, na Usina, meu bem.
Pois é, muita gente ainda
nem batizou os filhos
esperando o Nei chegar.
Nei Requião - E a campanha eleitoral?
Tinha de estar na cidade
tratando do principal.
(Zulmirinha olha. Não responde)
Zulmirinha - E o meu delineador? (Levanta)
Eu vou à feira comprar
santos e velas pro altar
da capela lá da Usina. (Sai)
Nei Requião - É uma mulher bonita.
Desembargador - Permita-me concordar.
Bem bonita e muito fina.
Nei Requião - É, mas sempre assim, aflita.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 39 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Caridade sem parar.
É êste o seu grande mal.
A caridade é pecado,
pecado de primeiro grau.
Dizem: povo pouco tem.
Desembargador - E é verdade... ou não é?
Nei Requião - Não.
Desembargador - Também acho.
Nei Requião - Pois bem,
não tenho filhos, você
tem?
Desembargador - Eu não sei, não garanto...
Nei Requião - Êles têm dez, doze... Têm
direito de parir tanto?
Desembargador - Crescei e multiplicai...
Nei Requião - Ah, crescei e devorai!
Crescei, jantai, almoçai!
Temos que lhes dar trabalho
e então mantemos essas
plantações de algodão
que não dão nada, não dão!
Vivemos a dar empréstimos
ao Coronel Honorato
que pega nosso dinheiro
põe na mão do Senador
que é o seu candidato!
Desembargador - Isso é um fato! É um fato!
Nei Requião - Elegi o governador.
Foi o mesmo desespêro:
com mêdo de sindicato,
aumento pra funcionário,
foi só isso o tempo inteiro!
Ah, êles fazem os pobres
e depois têm mêdo dêles.
Desembargador - Assim que eu penso também.
Nei Requião - Quero então o seu apoio.
Desembargador - Eu apóio e digo amém.
(Vespertina aparece com cara de sono. Um copo d’água)
Vespertina - Ei, olha aí o copo d’água.
(Vem vindo. Repara que é Nei Requião. Vespertina deixa cair o copo no
colo do Desembargador)
Desembargador - Mas o que é isso?
Vespertina - Nei.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 40 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Nei Requião - Como vai, Vespertina, bem?
Vespertina - Bem...
Desembargador - Senhora, me molhei.
Nei Requião - São nove anos.
Vespertina - Engordou.
Desembargador - Atenção, eu me molhei.
Nei Requião - Essa é Vespertina.
Eu pernoitei muito aqui
no tempo da Medicina.
Desembargador - Muito prazer. Me molhei.
Vespertina - Não reparo, papa-fina.
Nei Requião - O pomar ainda está lá?
Vespertina - Lembra do pomar, Requião?
(Vão saindo)
Nei Requião - Mas eu nunca me esqueci...
Vespertina - Lembra as férias no verão?
(Saem. Um tempo grande)
Desembargador - É, parece, mas não vou
fazer monólogo, não.
(Entra o Coronel. Coberto de pó. Se bate. Furtado vem atrás com malas)
Coronel - Vespertina! Vespertina!
Cheguei com a minha trouxa.
Quero um bom quarto e comida.
e contemplar essa coxa.
Ei, venha cá, sua bandida!
(A Furtado)
Ué, onde está Bizuza?
Furtado - Foi à missa com Mocinha.
Coronel - Ah, aquela desgraçada
viciou-se em ladainha.
Vespertina! Vespertina!
(Furtado vê o Desembargador)
Furtado - Mas, ó, que grande prazer,
é o Desembargador.
(Cumprimenta. Apresenta)
Já conhece o professor?
(Ao Desembargador)
O Coronel Honorato.
Coronel - Professor, a honra é minha.
Coronel Félix... ué...
mas êste é o Melequinha!
Desembargador - Ora, ora, Félix...

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 41 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Furtado - Mas...
Coronel - Melequinha! Melequinha!
Mas há mais de vinte anos.
Foi meu juiz em Varginha.
Remanchava em minhas causas,
sempre um êrro, uma coisinha,
só dava ganho à questão
com quatro jantares, cartas,
sim, de recomendação,
uma rabada, galinha...
aí, ganhou o apelido,
não foi assim, Melequinha?
Desembargador - Sabe? Não estou lembrado...
Coronel - Vou pra cidade, Meleca,
articular a eleição
do Senador. O Requião
vai sofrer que só peteca,
vai gemer na minha mão.
A coisa vai indo bem,
apoio temos bastante
mas conto com o seu também.
Desembargador - Eu apóio e digo amém.
(Vespertina entra rindo. Coronel corre e se atraca nela)
Coronel - Minha doce Vespertina!
Vespertina - (Ao público)
Meu Deus, êsse quem será?
Recordar é minha sina.
Coronel - Gorduchota. Gorduchota.
Vespertina - Quem será êsse beato?
É o marido da Cota?
Hum. O Félix Honorato.
(Nei Requião entra)
Chi, vai virar a compota.
(Só o Coronel não percebeu Requião. Dá uns beijos e beliscões em Vespertina.
Percebe. Um tempo longo de silêncio)
Nei Requião - Ah, Vespertina, querida,
como seu hotel ficou
assim tão mal freqüentado? (Pausa)
Coronel - É, é mesmo, Vespertina:
tem até ladrão do Estado. (Pausa)
Nei Requião - Não, Vespertina, ladrão
ainda vá lá, mas não pode
é plantador de algodão.
Coronel - Foi-se. Entornou-se o caldo.
Dobre a língua, Requião!

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 42 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
ou eu lhe deixo na cara
os cinco dedos da mão!
Nei Requião - Que rico vocabulário,
cada frase, uma vinheta.
O senhor foi convidado
a ingressar na Academia?
A Brasileira de Letras?
Coronel - Onde é êsse lugar?
Vou lá, mijo nas gavetas.
Desembargador - Mas na Academia?
É uma heresia!
Furtado - Desembargador,
é uma imagem,
é uma imagem!
(Todos seguram o Coronel e Nei. Desembargador foge)
Coronel - Vem, vem, Requião
se tem coragem!
(Separam. Levam o Coronel para um canto. Zulmirinha entra)
Estou me sentindo mal,
traz o meu Urodonal.
(Todos abanam o Coronel)
Zulmirinha - O que foi que aconteceu?
Nei Requião - Não foi nada. É o Honorato.
Ele ainda não morreu.
Fêz suas compras, querida?
Zulmirinha - Fiz. E os pacotes são tantos,
nem podia carregar.
Mas um moço apareceu
e aí vem trazendo os santos,
o pai morreu emboscado,
ficou por aí vagando
com um outro, desempregado.
Olhe, êle está chegando
com as compras e seu criado.
(Entram Brás das Flôres e Roque com embrulhos)
Veja como êle é delgado.
(Nei Requião cumprimenta, os dois respondem. Nei fala para o público)
Nei Requião - Ai, ai, meu Deus, lá vem ela.
Vai já me pedir emprêgo
para êsse maruela.
(Roque, Brás, Coronel, nesse instante se olham. Um tempo rápido. Os dois se
escondem atrás dos embrulhos. Coronel e Furtado se encaminham lentamente
para os dois, que procuram fugir)
Zulmirinha - Quião Quião? Meu Quião?
Será que você podia
tratar uma ocupação
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 43 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
para aquêles dois rapazes?
(Nei fala ao público)
Nei Requião - Eu não disse pra vocês?
É o décimo do mês...
(Brás das Flôres, com a proximidade do Coronel, foge)
Brás das Flôres - (Cantando) Até logo, seu.
Sabe? Me esqueci
que tenho um encontro
com o Zebedeu.
(Sai. Cruza com Mocinha. Roque ao ver Mocinha deixa cair os embrulhos.
Mocinha, ao lado de Bizuza, ao ver Roque, grita)
Coronel - Que foi que houve, Mocinha?
Mocinha - Nada.
Coronel - Nada?
Mocinha - Nadinha.
(Coronel olha e vê Roque, que faz sinais para Mocinha não falar nada)
Coronel - Olha o desgraçado.
(Corre. Roque escapa. Todos correm atrás de todos e cantam. Desembargador
se esconde)
Coro - (Cantam) Pega. Pega. Pega.
Larga. Larga. Larga.
Pega êle pra mim!
Solta êle por mim!
(Nei Requião defende Roque, Coronel quer alcançá-lo. Roque, em determinado
instante, pula numa cadeira)
Roque - Ei! Olha o trem! Olha o trem!
Hora do trem, minha gente!
Só pega lugar bom quem
chegar primeiro na frente
e rente que nem pão quente.
(Todos param. Um tempo. Movimentam-se para sair. Vão saindo, pegando
malas, etc. Ficam por último, Desembargador e Bizuza que se olham, Bizuza
baixa os olhos. Roque ainda beija Mocinha e foge. Um tempo. Todos voltam.
Passam pelo palco e vão para dentro do Hotel)
Zulmirinha - Mas que trem? Não vou de trem?
Nei Requião - Por aqui não passa trem.
Coronel - Cheguei não faz uma hora,
como é que eu já vou embora?
Vespertina - E eu que moro aqui mesmo,
para que vou tomar trem?
(Vespertina agora canta e prepara as camas para a próxima cena. Canta e
muda o cenário. Canta)
Coisa mais gostosa é uma caminha
fresca e limpinha
cheirando a fIor.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 44 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Deitar na cama
fresca e limpinha
ainda é melhor.
Mas, bom mesmo é, depois
de arrumada a cama,
a gente se deitar a dois.
Coisa mais sem graça
é numa cama
fresca e limpinha
dormir sozinha.
(Reversão de luz. Roque e Brás das Flôres estão na porta do hotel. Pé ante pé)
Brás das Flôres - Mas aonde você vai?
Roque - Vou ver se vejo Mocinha.
Brás das Flôres - Roque, não faz isso, não.
Já dizia minha avó:
peixe morre pela bôca;
homem, de fornicação.
Assim, você pretender
dormir de nôvo com a môça
é pecado de ambição.
Roque - Mas é noite de verão...
Fica de ôlho pra mim
e qualquer coisa me avisa.
Brás das Flôres - Qualquer coisa, eu dou na pisa. (Roque vai saindo)
Ei... (Roque pára)
É o quarto da ponta.
Ei... depois você me conta...?
(Reversão de luz. Coronel, de camisola, pé ante pé, cantarola)
Coronel - Noite de verão,
de verão, verão.
Noite de paixão,
de paixão, paixão.
(Reversão de luz. Nei Requião, de robe de chambre, elegantíssimo, também
anda pé ante pé)
Nei Requião - Noite de verão,
de verão, verão.
(Reversão de luz. Furtado de pijama, também cantarola em bocca chiuzza.
Reversão de luz. Roque, pé ante pé, passa na porta do quarto de Zulmira, ela
também canta, penteando-se. Na cama, de camisola. Olham-se. A música
pára. Um tempo. Cumprimentam-se. Um tempo. Roque segue. A música
reinicia com Zulmirinha. Reversão de luz. De agora em diante a luz é geral,
para todos, que a cada momento batem num quarto e caminham com todo o
cuidado. Na porta do quarto de Vespertina, Coronel chega, bate na porta.
Cantam)
Vespertina - Quem é?
Coronel - Félizinho.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 45 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Vespertina - Espere um minuto.
Só um minutinho.
Coronel - Sim, espero, amada.
Vou até a cozinha
tomar uma gemada
e volto correndo
com paixão dobrada.
(Sai. Um tempo, chega Nei Requião. Bate na porta. Cantam)
Nei Requião - Doce Vespertina.
Ó, doce menina.
Vespertina - Espere, Requião,
ó, doce paixão,
vou pôr um roupão.
(Nei olha para os dois lados e com uma enorme elegância, cantarolando,
abaixa-se e olha pelo buraco da fechadura. Roque se aproxima. Requião,
sai, disfarçando dor nos rins)
Nei Requião - (Canta) Mas que dor, que dor,
ai que dor nos rins.
Boa-noite, rapaz,
sinto uma dor atrás.
(Sai. Roque continua, cantarolando. Chega a uma porta. Bate)
Mocinha. Mocinha.
Mocinha - Roque?
Roque - É.
Mocinha - Ah, Roque!
Roque - Meu amor!
Amor!
(Roque ouve passos. Sai rápido. Furtado chega, cantarolando. Bate na
porta)
Mocinha - (Canta) Entre, vem, vem cá.
Mas um beijo só.
Mamãe foi ali mas volta já.
(Furtado ouve isso, olha o público, dá um grito de vitória. Vai entrar. Coronel
chega. Furtado emenda o seu urro de espanto que rápido se transforma num
urro de agradável surprêsa por encontrar o Coronel)
Furtado - Ah, ó, Coronel...
Mas que coincidência.
Vim lhe procurar.
Coronel - Pra quê?
Furtado - Imagine...
Coronel - Que quer me falar?
(Furtado grita de dor)
Furtado - Ai, era essa dor...
Ai, dor de matar...

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 46 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Coronel - Onde dói, rapaz?
Furtado - Aqui, aqui, tanto faz.
Ai, dor desalmada.
Coronel - Vem, vem pra cozinha
tomar uma gemada.
(Sai com Furtado. Roque vai sair de seu lugar, volta. Bizuza entra no quarto
com um penico na mão. Roque sai. Furtado volta. Bate na porta. A porta se
abre. Bizuza lhe entrega o penico. Apaga a luz tôda. Um tempo rapidíssimo.
Acende de nôvo. Coronel pé ante pé, cruza com Roque)
Ó, boa-noite, Roque.
Mas que noite, hã.
Noite como essa
não tem em estoque.
(Roque respira aliviado. Sai. O Coronel cruza com Furtado com o penico na
mão)
Isso, vá evacuar
e logo vai melhorar.
(Prossegue. Na porta de Vespertina, acende um fósforo. Requião acende
outro no mesmo momento. Olham-se. Vão discutir. A porta de Vespertina se
abre. O Desembargador sai de costas, de cueca. Dá beijinhos em Vespertina.
Vira-se para ir embora)
Desembargador - Noite de verão,
de verão, verão...
ó, senhor Requião...
(Longo silêncio, constrangedor)
Parece cueca
mas é calção... (Sorrisos)
Dona Vespertina está
com uma dúvida insana
me chamou no meio da noite
pra saber se deve ou não
pagar a undécima urbana...
tem de pagar os impostos
até o fim da semana...
Nei Requião - Sim, a undécima, decerto...
(Silêncio. Oferece um charuto ao Desembargador)
E o que respondeu, doutor?
Desembargador - Obrigado... bem eu disse:
“preciso ver o decreto... acho que está em vigor...”
(Contrariados, sentam-se. Fumam charutos)
Coronel - Mas há um nôvo projeto...
Desembargador - É. Preciso examinar...
me parece que houve veto...
(Apaga a luz. Abre no quarto de Mocinha. Bizuza dorme. Mocinha e
Roque se beijam)
Mocinha - Louco, vá-se embora.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 47 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Mamãe logo acorda.
Você corre mundo
e sou eu quem chora.
Roque - Beijo devagar.
Hein? Bem de mansinho?
Mocinha - Então, está bem. Bem devagarinho.
(Começam a se beijar devagar. Mocinha começa a gemer. Os dois gemem.
Rolam. Caem em cima de Bizuza. Roque foge. Deixa as duas embrulhadas.
Roque encontra Furtado)
Roque - Mocinha lhe chama.
A dona Bizuza
dorme a sono sôlto.
Não sai mais da cama.
(Furtado nem vê direito quem falou. Entra correndo no quarto com o penico
na mão. De debaixo de Mocinha Bizuza aparece com um revólver. Furtado,
um tempo, mostra o penico)
Furtado - Vim devolver...
Já usei... foi ótimo...
Boa-noite... prazer...
(Sai correndo. Reversão de luz. Desembargador ainda fala. Coronel cabeceia
de sono. Requião finge que presta atenção mas de vez em quando olha o
público e faz cara de cheio)
Desembargador - Dizem uns historiadores
que a undécima urbana
é da era medieval;
outros, que a sua origem
é na Grécia Meridional,
mas é sem dúvida, sempre,
impôsto de uso feudal...
(Reversão de luz. Zulmirinha sentada na cama. O pente caído. Suspira. Roque
passa. Um tempo grande. De longe, vem a voz distante do Desembargador)
Zulmirinha - Pobre de seu pai, coitado.
Roque - Pobre de quem? Como disse?
Zulmirinha - Seu pai... morreu emboscado...
Roque - Morreu como? Ah, sim, papai...
(Zulmirinha meio chora. Roque lento, vem, senta-se ao lado dela. Ela,
chorando no seu ombro. Roque olha o público feliz)
Zulmirinha - Foi de tiro ou de facada?
Roque - Como?... foi... foi misturado.
(Zulmirinha o beija. Beijam-se. Deitam-se, Roque fala outra vez para o
eletricista do teatro)
Êta nós, meu povo.
Apaga de nôvo! (Apaga a luz. Um tempo. Acende na porta de Vespertina.
Coronel e Nei Requião, com sono, chegam juntos na porta. Coronel cantarola
lento. Olham-se longo tempo. Jogam par ou ímpar. Coronel ganha. Nei sai.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 48 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Coronel bate. Quem abre a porta é Brás das Flôres de cueca)
Brás das Flôres - Boa-noite. Que quer? Que sina!
Coronel - Boa-noite, Brás das Flôres.
Me chame aí a Vespertina,
quero falar... (Acorda)
Brás das Flôres! (Lembra que viu Roque) Roqueeeee!
(Sai correndo. Todos os personagens saem correndo, mudando a cena. Brás das
Flôres volta. Arruma o cenário da usina e fala com o público)
Brás das Flôres - Bom, e para os cavalheiros
que no correr do espetáculo
perguntam a tôda hora
“Hein? Que aconteceu agora”?
“Que foi mesmo que êle disse?” “Não ouvi direito, ora”
“Não compreendo essa peça,
saio e te espero lá fora”.
A êsses agitadores
vou dar uma explicação
sem nada aumentar no ingresso,
simples bonificação.
Pois bem, depois desta cena
de mui alta sacanagem
prosseguimos a viagem
viemos aqui pra Usina,
a Usina Requião,
famosa... e melhorou muito
a minha situação
pois sou amigo de quem
papa a mulher do patrão.
Mas José Porfírio vai
aparecer e de nôvo
teremos complicação.
Segue a peça com mais uma
cena de fornicação.
(Sai. Entra Zulmirinha, envolvida só com uma toalha. Calça, camisa e botas
na mão. Uma ladainha longe. Barulho de chuveiro mais perto. Zulmirinha
impaciente)
Zulmirinha - Seis horas. Vamos com isso.
Já começaram a rezar.
Tenho que ir pra capela
que vamos inaugurar.
(O barulho do chuveiro parou. Um tempo. Roque aparece, meio encabulado,
vestido num enorme pijama. Sorri para ela. Calça e camisa velha na mão.
Zulmirinha lhe entrega as roupas)
Tome. Veja se consegue
ficar bem, se apresentar
limpo para os batizados
que já, já vão começar.
Não, não, não, não me agradeça.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 49 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Você só virá aqui
se, por acaso, eu chamar.
Amanhã, vai trabalhar.
(Sai. Roque olha o público. Não entendeu. Brás entra, bêbado. Vê Roque
com pijama. Morre de rir. Roque não acha graça)
Brás das Flôres - Papou filha de doutor,
enfrentou o pai a faca
e terminou gigolô.
(Morre de rir. Roque não acha graça. Olha para fora)
Roque - Olha o administrador.
Brás das Flôres - Pronto, ai, ai, meu Deus do céu!
Acuda Nossa Senhora.
(José Porfírio entra)
José Porfírio - Vou contar quem é você
quando chegar o patrão.
Vai rir muito na cadeia
que é lugar de ladrão.
Roque - Brás das Flôres, vamos, tenha
um pouco de educação.
Êsse môço está falando
com você, preste atenção.
José Porfírio - Tou falando com você,
ouviu?
Roque - Mas como eu dizia,
sabe o que eu descobri
de manhã, quando cheguei,
conversando aqui e ali?
(Brás meio ouve, meio dorme)
O administradar daqui
desta Usina rouba Nei
mais que ladrão de galinha.
Perdoe a dura expressão
mas não passa de um sacana.
Êle fica com uma parte
de cada feixe de cana.
(Porfírio vem até Roque, examina-o com falso cuidado)
José Porfírio - Mas veja só que embrulhada.
Agora estou dando conta
que confundi o senhor
com um outro camarada,
um que se passou por cego
e não era cego nada.
Roque - Ó, mas fingiu-se de cego?
Pessoa desnaturada!
José Porfírio - Está chegando o Requião.
Você vai mesmo contar?
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 50 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
(Nei e Desembargador entram)
Roque - Olhe aí o doutor Nei.
Doutor Nei, estou dizendo
ao nosso amigo Porfírio,
êle insiste pra eu ficar
morando na casa dêle.
É coisa que não convém,
vim aqui pra trabalhar
não, pra incomodar ninguém.
Nei Requião - Aceite, rapaz, aceite.
Porfírio gosta de alguém,
logo se põe a ajudar.
Roque - Está certo, já que insiste
eu vou lá morar contigo. (A Nei)
Como se foi nas andanças?
Coma vai nossa eleição?
Nei Requião - Vai com muitas esperanças...
(Ao Desembargador)
É, por causa da Zulmira,
tenho de agüentar
êsse rapaz ziquezira.
Temos de nos aprontar,
vamos, Desembargador.
(Saem. Roque atrás)
Você está muito engraçado
usando êsse meu pijama.
(Desembargador olha o público)
Desembargador - Usa apenas o pijama
ou também lhe usa a cama?
(Entram. Brás dorme)
José Porfírio - Ai, ai, diabo, eu só não
digo um puta palavrão
devido ao distinto público
que assiste a essa sessão.
(Entra um camponês)
Delatorzinho - Oiça, seu Porfírio.
Oiça, seu Porfírio.
O Rodrigo juntou
um bando zangado,
vão no Pontão...
José Porfírio - Pra falar comigo,
eu já não lhe disse?
De chapéu na mão!
(Delatorzinho tira o chapéu)
Hã, Delatorzinho?
Delatorzinho - Rodrigo mais Zeca

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 51 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
soube que chegou
mais uns retirantes
que vêm trabalhar
na Usina, de graça,
por janta e cachaça.
Aí, Rodrigo disse:
“Chega de corumba!
Êles vêm ocupar
o nosso lugar!
Só entram na Usina
passando por cima
da minha tumba!”
Juntou-se um bando
foram pro Pontão,
tudo de porrete
dizendo que lá
não passa alfinête
quanto mais corumba.
Acho bom o senhor
chamar a polícia
descer o cacête.
José Porfírio - Claro, vá chamar
o “seu” delegado.
(Delatorzinho vai sair)
Espera, imbecil,
não seja apressado.
Eu tenho lá dentro
um nôvo empregado,
muito esperto, muito
desembaraçado.
Quero ver se dá
conta do recado.
Pode ir embora.
Delatorzinho - Não vou ser despedido
não é, não, seu Porfírio?
José Porfírio - Tá bem, tá bem, não vai
dedo-duro mal parido.
Delatorzinho - Ahn, ahn, muito agradecido. (Sai)
José Porfírio - Agora pego êsse covarde.
É um safado primário.
Não sabe que está lidando
com um safado honorário.
(Entram Desembargador, Nei, Zulmirinha e Roque vestidos para a festa.
Roque com as roupas que ganhou. Zulmira, caridosíssima, de véu. Vêm
falando)
Nei Requião - Está linda, Zulmirinha.
Desembargador - Sim, linda como uma fada,
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 52 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Só lhe faltando a varinha.
(Ao público)
Hum, que fala mais mesquinha...
(Porfírio vem a Roque)
José Porfírio - Olhe aqui, ó, meu rapaz,
com essa elegância tão
bem na frente como atrás,
você deve ir para a festa
e se divertir em paz.
(Roque não entende nada)
Veja, doutor Requião,
êle insiste em começar
a trabalhar hoje mesmo
para mostrar que é capaz.
Zulmirinha - Não lhe disse? Não é como
os outros, de arrumação.
(A Porfírio) Se êle quer ir, deixe ir.
Nei Requião - É. Pois deixe. (A Roque)
Eu lhe agradeço.
Roque - (Ao público)
Ai que me pegou o cão,
mas estamos no comêço. (A todos)
Festas, há muitas a gozar.
Reconhecimento, poucas
vêzes se pode mostrar.
(Zulmira, orgulhosa. Nei, cheio)
José Porfírio - É, muito bem, já que insiste.
É um servicinho leve:
é buscar uns empregados
no Pontão, recém-chegados.
Fica a três léguas e meia
no limite onde começa
a propriedade alheia.
Pode usar o meu cavalo.
(Põe a mão no ombro de Roque)
Rezo a Deus para ajudá-Io.
Zulmirinha - Adeus, faça bom serviço.
Roque - (Despede-se. Saindo fala para o público)
Nessa eu entrei de gaiato.
Vamos ver em que dá isso.
(Roque sai. Os outros vão saindo. José Porfírio olha o público feliz)
Brás das Flôres - (Ao público)
Ao que deduzi do enrêdo
que acompanhei em segrêdo,
Roque vai tanto apanhar

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 53 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
que nem vão lhe sobrar dedos
para as porradas contar.
(Ri. Pára. Pensa)
Eu vou avisar o Roque,
tenho-lhe muita amizade.
Não vou. Felizmente, mais
que amizade, tenho mêdo.
(Dorme de nôvo. Apaga a luz. Acende rápido. Entram cinco vultos)
Rodrigo - Nenhum corumba entra aqui.
Camponês 1 - Não vão tomar nosso emprêgo.
Camponês 2 - Se alguém botar o nariz
apanha até ficar cego.
Camponês 3 - Vão pra cidade esmolar.
Rodrigo - Ôlho firme, sem piscar.
(Escondem-se. Roque entra. Ruído de grilos. Muito escuro. Roque se esforça
para ver)
Roque - Êta escuridão danada.
Parece que estou vendado.
Já sei o que quer Porfírio:
que eu não ache os empregados,
volte de mãos abanando.
Fico desmoralizado
e aí sou logo cortado.
Puxa, mas que escuridão.
Onde fica o tal Pontão?
Ei, que aí vem vindo gente.
Vou chegar e perguntar.
(Chega perto. Todos de porrete)
Favor, podia informar.
(Os cinco caem de pau em cima dêle)
Os cinco - (Cantam)
Tome, tome, tome, tome paulada.
Tome, tome, tome, tome paulada.
Está na roda, agüente, não pule nem nada.
Não venha de banda jogar perna trançada.
Roque - Sou o herói da peça.
Não me fica bem
apanhar à beça.
(Entra Brás correndo)
Brás das Flôres - Não, não estou aqui de arrependido.
É que fico sem rumo e sem vintém
se na briga me matam êsse bandido.
Ei, olha o trem, olha o trem!
Está na hora do trem!
(Param de bater)
Rodrigo - Vi o comêço do ato,
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 54 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
conheço o truque também.
(Voltam a bater)
Brás das Flôres - Ei! Vocês nem sabem quem
é êsse que estão surrando!
Pois é o famoso Roque,
o Roque, estão duvidando?
Fêz a filha do Honorato,
é verdade, ipso facto,
e matou Quinca Bonfim!
(Todos param. Ajudam Roque a se levantar. Roque está moído)
Rodrigo - É o Roque? Do Honorato?
(Roque faz que sim)
Muito prazer.
Roque - Muito grato.
Rodrigo - Sou Rodrigo. Ésse é o Zeca.
O Manuel, Zé, Nicolato.
Roque - Batem com muita firmeza.
Rodrigo - Ora, ora é gentileza.
Roque - Bem, ficamos camaradas,
me desculpe perguntar:
queria saber por que
me deram tanta pancada?
Rodrigo - Porque, sem dúvida, foram
porradas equivocadas.
Tôda a vez que a sêca é forte,
do alto do sertão vem pra cá
gente que perdeu a sorte.
Vêm para a zona da cana
trabalhar só por comida
sem nem receber dinheiro
pra continuar com vida.
E ocupam nosso lugar.
Camponês 1 - Vieram duzentos primeiro.
Porfírio fêz como sempre:
abriu vaga pros corumbas
mandando embora da usina
todos que eram solteiros.
Camponês 2 - Nada valeu reclamar.
Lá no Pontão, mais de cem
corumbas chegaram agora
e Porfírio já afirmou
que recebe êles também,
que manda embora os casados
com mulher filho e terém.
Rodrigo - Nos juntamos pra barrar.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 55 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Cinco em cada encruzilhada
e decidimos que aqui
só entra mesmo corumba
quando o cachorro passar
por cima da nossa tumba.
Roque - Vem comigo, camarada.
Deixe a turma engatilhada.
Quero ser mico de feira
se não resolvo a parada.
(Sai com Rodrigo e Brás. Os quatro que ficam sorriem. Reversão de luz.
Estão Nei Requião e Zulmirinha. Zulmirinha com roupas na mão, acaricia
Nei Requião enquanto êle fala com Roque)
Nei Requião - Não, meu filho, não é José Porfírio, não.
Sou eu mesmo quem manda aceitar os corumbas.
Sabe donde êles vêm? Donde veio, do mato,
das terras de homens como Félix Honorato.
Chegam aqui com fome, iguais sacos vazios.
Já viu a fome frente a frente, hein? Não minta.
Eu comi fome na Revolução de Trinta.
Entende agora que eu não posso deixar ir
essa gente que vem sem teto e sem comida?
Zulmirinha - E as mulheres famintas que no colo trazem
os filhos a morrer ou mesmo já sem vida.
Nei Requião - Sou obrigado, assim, aos outros despedir.
Êsses tiveram até então uma guarida,
comeram até aqui, agüentam um pouco mais.
Se os corumbas enxoto, o que acontece, então?
A Usina Parati os pega e a Passo Fundo,
Votorantin, Cajá, Cardoso, Riachão,
tôdas! Vão produzir mais barato e eu me afundo!
Com êles se consegue açúcar mais barato
para enfrentar a concorrência de São Paulo.
Se São Paulo tomar de nós todo o mercado
de açúcar, só nos restará fechar o Estado.
Talvez seja melhor, ninguém mais vai brigar
e o trabalho final será nos sepultar.
(Pausa longa)
Zulmirinha - Olhe aí mais estas roupas
Não vá se rasgar de nôvo.
(Roque pega as roupas. Um tempo, Zulmirínha canta. Roque vai saindo. A
luz apaga. Zulmirinha continua cantando mais alto)
As coisas da vida, são coisas da vida,
são coisas da vida, não fique sentida
que são, são as coisas da vida, são,
muita coisa não pode ser resolvida
porque são as coisas da vida que são as coisas da vida.
(Acende. Rodrigo está arrumando um matolão. Sua mulher, espera, com um

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 56 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
filho no colo. Roque e Brás entram)
Roque - Oi, já falei...
Rodrigo - Ah, falou?
Roque - Eu demorei? Demorei?
Rodrigo - Hein? Não sei, pois não contei...
Roque - Olhe, não sei se entendi
mas os corumbas... não sei...
os corumbas têm que vir...
eles têm fome também...
pra enfrentar a concorrência de São Paulo...
fácil de perceber,
difícil de entender...
É...
Rodrigo - Pois é...
Roque - Pois não é?
Mas que está fazendo aí?
Rodrigo - Porfírio mandou-me embora.
Roque - E você vai? Sem reagir?
Rodrigo - Se não vou, chama a policia.
Eu ficava mesmo assim.
Mas não dá, tem êsse aí.
(Aponta o filho. Silêncio)
Roque - Leve as roupas, ganho outras.
(Dá as roupas. Rodrigo pega sem dizer nada)
Você está com dinheiro?
Rodrigo - Pra alguns dias, companheiro.
(Dá uns passos. Pára)
Esqueça aquelas pancadas.
Roque - Esqueço. Foram bem dadas.
(Rodrigo vai saindo)
Rodrigo, nem sei que digo...
Nós vamos lá pro Pontão
nos corumbas dar pancada
até êles aprenderem
que cada um enfrenta o diabo
na sua área marcada.
Rodrigo - Mas você não disse que êles
vêm com uma fome lascada?
Roque - Disse... mas você também
vai passar fome lá fora...
Não sei, não sei mais de nada...
Rodrigo - Tenho mêdo da polícia.
Êste filho desgraçado
me nasceu no mês passado.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 57 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Roque - Vamos antes da polícia.
A gente expulsa os corumbas
pra muito longe daqui.
(Um tempo. Rodrigo olha a mulher. Larga as coisas. Pega um porrete. Saem.
Brás pega as roupas que ficaram no chão. Fala com a mulher)
Brás das Flôres - O que está no chão
não tem dono, não.
(Reversão de luz. Cena vazia)
Vozes - (Off) Sai fora. Fora daqui!
Vê se volta pra tua terra.
É, comigo ninguém berra.
Daqui eu não saio, não!
(Um corumba entra em cena, atarantado)
Ei, olha um fugindo ali.
Escapou um lambari.
(Entram Rodrigo, Camponeses, Roque e Brás. Caem de pau no corumba)
Roque - Ei, pára de bater, pára
o festival de pancada!
(Param. Roque se abaixa)
É você, Joca Ramiro?
Brás das Flôres - É êle, sim, desgraçado.
Fui despedido porque
por êle fui delatado.
(Dá pancadas espaçadas na cabeça de Joca Ramiro. Joca fala baixo. Quase
sem fôrças)
Joca Ramiro - Mas eu não sou mais soldado.
Roque - Pára de bater, senão
não escuto o relatado. (Brás pára)
Joca Ramiro - Melhorou, muito obrigado.
(Brás dá uma última pancada)
Roque - Você também é corumba?
Joca Ramiro - Na minha corporação
faltou numerário pra
pagar tôda a guarnição.
O jeito foi demissão
e fui logo demitido...
Roque - Quem mais veio?
Joca Ramiro - Neno, Cosme,
Dirceu, Chico, Severino,
Pedro, Miguel, Rivelino,
muitos que nem sei o nome,
Quim, Ataliba... que fome!...
(Roque beija Joca)
Roque - Puxa vida, minha gente,
dentro disso tem um homem.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 58 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Joca Ramiro - Homem que beija outro homem
mesmo bem intencionado
fica logo mal falado.
Roque - Vem, vem comigo, vem, vem...
Rodrigo - Não, não, Roque, êle não passa.
Vai ser expulso também.
Roque - Pra êle morrer de fome?
Vem, vem comigo, vem. Tem
comida no barracão.
(Levanta Joca. Vai levando-o. Os camponeses não são capazes de reclamar.
Abrem caminho)
Brás das Flôres - Vamos, vamos, gente. Tem
comida no barracão.
(Olha o público maquiavélico. Passam corumbas)
Vozes - Vâmo, vâmo, vem mulher.
Traz o menino e avisa
também o seu Xavier.
É muito arriscado homem.
Arriscado mais é fome.
Arriscado mais é fome.
(Passam. Mortos de fome)
Brás das Flôres - Por favor, sim, meus senhores,
prendam a respiração.
Todos que têm bom olfato
não sentiram no ar o cheiro
de uma bruta confusão?
(Reversão de luz. Roque entra, com uma garrafa na mão, bêbado. O povo
passa, carregado de coisas roubadas)
Homem - Anda, anda, mulher.
Polícia vem aí.
Mulher - Estou atrapalhada
com as coisas roubadas.
Olha quanta lata!
Azeite e marmelada. (Somem)
U m - Escute, nunca vi
um barracão assim
com tanto sortimento.
Tinha até esta cordinha.
Esta cordinha que espicha.
Dois - Não é cordinha, é salsicha.
(Somem. Entra Brás das Flôres com três chapéus, três paletós, três calças.
Sapatos e garrafas amarrados no pescoço)
Brás das Flôres - Vamos embora, Porfírio
foi para a vila inda agora
e vai voltar com a polícia.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 59 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Roque - Saiba que não tenho assunto
nenhum com policiais.
Brás das Flôres - Quem não se mexe é defunto.
A polícia vai vir mesmo,
o que se fêz não se faz!
Devastaram o barracão!
Roubaram a carne e o torresmo,
mataram um boi e um capão.
É vandalismo! É pilhagem!
Veja, cheguei no armazém
só consegui roubar isto
que os ladrões levaram tudo
levaram o têrço e o amém.
Roque - Tou esperando o Rodrigo
que é meu amigo também.
Brás das Flôres - O Rodrigo já fugiu,
já deve estar em Belém.
Vamos...
Roque - Fugir? Ninguém some.
Se correr o bicho pega.
Brás das Flôres - Se ficar, o bicho come.
Roque - Se correr o bicho pega,
se ficar o bicho come... ?
É interessante o problema,
vou meditar sôbre o tema:
se correr, o bicho pega...
se ficar, o bicho come...
Já meditei...
Brás das Flôres - Bem, então
vamos, a noite já vem...
(Entram Nei Requião, José Porfírio e Policiais. Brás das Flôres vê, sai correndo
e cantando)
Até logo, seu.
Sabe, me esqueci
que tenho outro encontro
com o Zebedeu.
(Roque não reparou, continua resmungando, triste “se correr o bicho pega,
etc.” José porfírio aponta Roque. Os Policiais o prendem. Arrastam-no,
Roque sai resmungando. Nei Requião vai saindo. Pára. Volta e diz ao
público)
Nei Requião - Com a prisão dêsse ingrato
termina o segundo ato!

FIM DO SEGUNDO ATO

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 60 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
TERCEIRO ATO

Abre. Roque vestido de prêso, na cadeia, olha o público desconsolado. Muitas marmitas na cela.
De fora, vem um vozerio. Entra o carcereiro.
Carcereiro - Bom-dia, sou o carcereiro.
É evidente, um frustrado,
com a alma em formigueiro,
um cético, um desolado.
Eis que então me vingo nêles.
Como disse Marx, sou
vítima da sociedade.
Claro, dialéticamente,
sou seu carrasco também.
Logo: inocente e culpado.
Sou, enfim, um alienado.
(Fala com Roque)
Olha aí, ô, celerado,
taÍ fora uma visita.
Você não é importante
e só está prêso há um mês.
É uma proteção gritante.
(Faz sinal. Brás entra, todo de branco, anéis nos dedos. Roque olha sem
reconhecer)
Roque - O senhor é o advogado?
Olhe, eu não sou culpado.
Brás das Flôres - Equivocou-se. Olhe bem.
Olhe de frente e de lado.
Roque - É o Brás das Flôres, toque!
Brás das Flôres - Eu, Roque dos meus amôres!
(Abraçam-se)
Roque - Eu não te reconheci.
Como você está mudado!
Brás das Flôres - É, progredi, progredi.
nesta grande capital,
aqui, vim, vi e venci.
Trago muitas novidades:
só falam de você, Roque,
nesta e nas outras cidades.
Oiça. Está ouvindo, não?
É gente que veio pedir
por sua libertação. (Ao público)
Evidentemente esta
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 61 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
cena de massa se passa
antes da revolução.
(Pega um jornal. Lê)
“Roque: prisão preventiva?
Juiz dirá sim ou não”.
(Outro jornal)
Olhe aqui, seu, é você: (Lê)
“Tem uma cara de lambão
mas prega a subversão”.
Todos dizem: quem ficar
do lado de Roque ganha
mole, mole essa eleição.
Seu caso abalou o povo
família, clero, nação.
Tem ai um candidato,
um tal de Jesus Glicério,
só fala em ti nos comicios.
Mas é melhor eu lhe dar
o panorama geral
da campanha eleitoral.
O primeiro colocado
é o Senador Furtado.
E em segundo lugar,
concorrente muito sério,
avança o Jesus Glicério,
candidato popular.
Lá muito atrás, no rabão,
com pinta de derrotado
vem o doutor Requião.
E dizem que anda mal
assim e que vai perder
porque mandou te prender.
Roque - Quer dizer que eu sou o tal?
Brás das Flôres - O Glicério enquanto isso
sobe sua cotação
porque pede nos comícios
a tua libertação.
Acusam êle de ter
muita idéia ruim.
Quer tomar terra dos outros.
Segundo disseram a mim,
se fôr eleito, ninguém
vai poder ter nem jardim!
Nossa sorte é que Jesus
sendo candidato pobre
não tem prestígio nem cobre
pra te tirar da prisão.
Roque - Mas por que tanta emoção?

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 62 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Brás das Flôres - Tanta emoção? Ora essa...
Nós ficamos na conversa...
e esqueci de te dizer:
sou escritor, é a glória!
Ganhei dinheiro a granel
porque contei sua história
num livrinho de cordel.
(Mostra o livro)
“As aventuras de Roque
Penaforte de Murgel”
Bem escritinho, capinha
em côres e bom papel.
Logo virou best-sel.
Mas se você é inocente
a venda cai de repente,
lá se vai o pé-de-meia.
Mas se você conseguir
uns dois anos de cadeia
a venda assim vai subir.
Mais de dois é sacanagem.
Claro está que ainda teríamos
de ver sua percentagem...
(Roque louco da vida)
Roque - Não me chamo Penaforte...
(Avança para Brás)
Brás das Flôres - É minha a idéia do nome.
(Vai recuando)
Uma licença poética...
Não... não é falta de ética...
Afinal, eu faço tudo.
Escrevo, vendo, anuncio.
Você fica no macio. (Foge)
Eu lhe ofereço um negócio
e em troca sou agredido!
Ah, como todo escritor
sou um incompreendido!
(Sai. Roque fulo. Entra a carcereira, põe uma marmita junto com as outras.
Se atira em Roque, beija-o)
Roque - Esta é a quinta vez
que você me traz o almôço.
Seu marido desconfia
e me arma um alvorôço.
(Carcereira chora)
Carcereira - Acho que vão te soltar.
Acho que vão te soltar.
Roque - Ninguém quer me ver lá fora!
Não, não, que é isso? Não chora.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 63 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Carcereira - Ah, não vem me consolar...
Roque - Calma, escuta por favor:
Quem me prendeu foi Requião.
E êsse tal Senador
é ligado ao Honorato
que me toma pelo cão.
Carcereira - Mas êle vem hoje aqui.
(Vozerio, fora, aumenta)
Roque - Não pode ser, coração.
Coronel - (Voz) Mas vamos, abram caminho
para o Senador passar!
O Senador quer passar!
(Carcereira dá um tapa em Roque)
Carcereira - Viu? Chegou o Senador.
Nunca mais falo contigo.
Não passas de um traidor.
(Carcereira cruza com o marido e um bando de fotógrafos querendo entrar.
Carcereiro abre caminho para o Senador, Coronel e Furtado)
Vozes - Não dá, é muito apertado.
Preciso fotografar.
Chega um pouco pra êste lado.
Vê se pára de empurrar. (Coronel vai direto a Roque. Abraça-o. Senador
e Furtado apreciam a cena)
Senador - (Muito emocionado. Dirige-se aos jornalistas)
Meus amigos, um momento.
Respeitemos esta cena.
Silêncio e veneração.
Naquele abraço se exprime
o profundo sentimento
da longa separação.
(Esconde-se dos jornalistas. Tira um lenço para chorar)
Não tirem fotografia.
Não tirem fotografia.
Meu filho, vai e promete
ao carcereiro um lugar
numa prisão federal.
Aos jornalistas, emprêgo
no Diário Oficial
e sai um pouco da frente
ou não saio no jornal!
(Roque fala com o público, comentando o abraço que o Coronel ainda não
parou de dar)
Roque - Meu Deus, mais um pouco e êle
já me pede em casamento.
Coronel - Eu vou falar, um momento...
(Nei Requião entra. Rumor dos jornalistas)

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 64 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Nei Requião - Não quero fotografias
nem falar com jornalista
pois é absolutamente
particular a entrevista.
(Vai a Roque. Leva-o a um canto. Coronel bufa. Senador e Furtado um
pouco atônitos)
Roque, meu querido, estava
no mato, no interior,
fazendo minha campanha
quando li com estupor
aparvalhado, surprêso,
notícia de que você
faz quase um mês está prêso.
(Canta carinhoso para Roque e dança com êle)
Eu não vou largar você
como alguns que assim fizeram.
Não, não será enxotado.
(Coronel pega Roque, dança com êle)
Coronel - Por mim não pode ter sido
pois Roque é meu afilhado.
Estão vendo êsse marmanjo?
Pois fêz pipi no meu colo.
Nei Requião - Ah, Deus, Deus meu, me perdoe
mas vou discutir o assunto. (Canta)
Ajudei-o a ser feliz
e no meu próprio banheiro
urinou quanto quis.
Roque é como meu irmão.
Coronel - Roque foi como o filho que não tive.
Ensinei-lhe a fazer boi-de-melão,
brinquei com êle de bicho-papão.
Nei Requião - Dei-lhe alma e envergadura.
Ensinei-lhe economia,
mostrei-lhe que a vida é dura,
mostrei-lhe como se vive.
Coronel - Roque foi como o filho que não tive.
Nei Requião - Roque é como meu irmão.
Roque - (Ao público)
Papai e o mano discutem:
uma briga em família.
(A luz se apaga. Abre. Uma suíte de hotel com dois quartos. Roque deitado
na cama. Brás no telefone)
Brás das Flôres - É da copa do Hotel?
Aqui fala o “assessôres”
do vosso hóspede Roque
Penaforte de Murgel:
o escritor Brás das Flôres.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 65 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Roque - Não me chamo Penaforte.
(Brás das Flôres pega o cardápio e faz os seus pedidos, lendo tudo praticamente)
Olha aí, ô, serviçal:
quero dois chás com torradas
beiju de milho e de arroz,
pamonha, batata assada,
ovos quentes, quero dois
e omelete.
Ouviu bem, hã, ô lacaio?
Quero queijo-de-são-bento
cará com mel e laranja
caranguejo suculento
mangas de cheiro, uma canja
e espaguete.
Tá escutando, ô, plebeu?
Por que não chá sem torradas?
Acqua Velva, Sana Caspa,
minutas, massas, entradas
e dois croquetes.
Obrigado, sim, ô baitola?
Suite quatorze. Exato. (Desliga)
Roque - Mas quem é que paga isso?
Brás das Flôres - Um quarto é o Requião
e o outro, o Honorato.
Roque - Um me fêz pagar o pato,
agora me paga um quarto.
E o doutor Requião?
Mandou me prender apenas,
agora vem de mecenas,
de Ciccilo Matarazzo.
Aqui! Não me pegam noutra.
Não vôo mais vôo raso.
Brás das Flôres - Só porque Jesus Glicério
subiu, êles te soltaram.
E o livrinho ia tão bem...
Roque - Não chore, sou seu amigo.
Você fica aqui também...
Brás das Flôres - Não é pelo numerário
que perco: O que me entristece
é o sucesso literário
que já pressinto, esmaece.
(Campainha. Brás vai ver)
Roque - Será? Deve ser Mocinha.
Não, mas que besteira a minha.
Numa peça que se preze
a heroína não entra
em cena só porque faz
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 66 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
tempo que não aparece.
(Mocinha aparece)
Brás das Flôres - Bem, às vêzes acontece.
(Abraçam-se. Brás num canto)
Mocinha - Roque Penaforte.
Penaforte de Murgel.
(Brás olha Roque com desprêzo e sai)
Estou tão feliz, amor.
Se o Senador fôr eleito,
eu vou ser a espôsa do
filho do Governador.
É quase a primeira dama.
Poderei ter quem quiser
dormindo na minha cama.
Não vai ser ótimo, Roque?
(Toca a campainha. Mocinha desmaia. Brás vai atender)
Roque - Meu bem, não é nada, acorde,
é o café da manhã...
Mocinha - Quê...? Hein...? Que foi? Café? Hã...
Que susto levei, ai.
(Riem. Brás volta)
Brás das Flôres - Quem está aí é o seu pai.
(Mocinha desmaia de nôvo. Roque, aflito, começa a arrastá-la)
Roque - Ai, ai, vem, se esconde aqui...
Mocinha - Não, tenho de sair já.
Marquei hora com meu noivo.
Vai me comprar tafetá.
(Fica escondida. Roque aflito. Brás saiu, volta com o Coronel. Coronel abraça
Roque, beija sua testa, olha-o)
Coronel - Ah, meu filho, emagreceu.
(Puxa o ôlho de Roque. Espia)
Hum, que vermelhinho ralo...
Mas não se preocupe, não.
Vou tratar de alimentá-Io.
Está gostando do quarto?
Roque - Muito. O mais bonito é o céu
ao pôr-do-sol. Êle arde
todo! Veja, Coronel...
(Leva o Coronel à janela. Faz sinais para que Mocinha saia. Mocinha sai)
Coronel - Mas pôr-do-sol é de tarde...
Roque - Aqui, às dez da manhã êle já está lá no céu...
(Campainha. Brás entra. Fala no ouvido de Roque. Roque fala baixo com
Brás)
Eu recebo no outro quarto.
(Ao Coronel)

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 67 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Olha, vou limpar os dentes.
Licença, seu Honorato?
(Roque vai para o outro quarto. Brás sai. Coronel fica sozinho, meio fulo)
Mon Dieu de la France,
va commencer la contredanse.
(Brás aparece conduzindo Zulmirinha. Brás sai. Zulmirinha começa a se
despir. Coronel, no outro quarto, espera)
Zulmirinha - Ah, foi ótimo o seu nome
ter saído nos jornais.
Eu localizei você
e até que enfim não preciso
mais chamá-lo de rapaz.
Compreende, Penaforte?
Sempre detestei dormir
com gente desconhecida.
É situação falaz
e pouco amadurecida.
Tire a roupa, Penaforte,
já estou quase despida.
Vou ter de sair correndo
que estou oferecendo
o Chá da Mãe Esquecida.
(Campainha)
Não ligue, não. É o café
da manhã que foi pedido.
(Brás entra)
Brás das Flôres - Está aí o seu marido.
Zulmirinha - Ah, é um estraga-prazer.
Vou dizer-lhe umas verdades.
Não, é melhor me esconder
e preservar a unidade
salvando assim a família.
(Esconde-se. Está só de espartilho, Nei Requião entra. No outro quarto,
aparece Brás das Flôres, que começa a falar com o Coronel. Nei abraça Roque.
Olha-o)
Nei Requião - Ah, meu querido, engordou!
(Vê o ôlho de Roque)
Hum, mas que vermelho vivo.
Claro, logo melhorou
com o passadio do hotel.
Está gostando do quarto?
Roque - Muito. E o que mais gostei
foi da pesca do xaréu.
Venha aqui ver, Doutor Nei.
(Vão à janela. Faz sinais e Zulmirinha sai como está)
Nei Requião - Como pesca do xaréu?
Na cidade não tem mar...

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 68 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Roque - Ah, é? Nunca reparei...
(Consigo mesmo)
Ah, meu Deus, o Coronel!
Olhe, vou limpar os dentes,
licença, doutor Quião.
(Sai. Nei louco da vida. No outro quarto Brás das Flôres cochicha com o
Coronel)
Brás das Flôres - E o senhor pode mandar
prender o Roque outra vez.
Um ano, então só um mês...
(Roque dá um pontapé em Brás. Brás sai. Depois de um tempo, aparece no
quarto de Nei. Também cochicha com êle)
Roque - Prontinho, meu Coronel.
Estou bonito de fato?
Coronel - Bem, eu vim aqui porque,
você sabe, o Senador
é um grande candidato...
Vai construir mais açudes,
estradas, irrigação,
enfim, essas atitudes!
Roque - Ai, meu Deus, o Requião!
Coronel - É um homem experimentado,
tem grande coração.
(Coronel anda, fala empolgado. Roque, pé ante pé, sem o Coronel perceber,
vai para o outro quarto. Coronel continua fazendo mímica de quem fala. No
outro quarto, Brás das Flôres fala com Requião)
Brás das Flôres - E o senhor pode mandar
prender o Roque outra vez.
Um ano, então só um mês...
(Roque dá outro safanão em Brás, que sai. Roque corre de volta para o outro
quarto. Chega no momento em que o Coronel está se voltando)
Coronel - Ah, o Senador Furtado
tem uma cara idiota
mas é de caso pensado.
Roque - Apoiado, apoiado.
Coronel - Ora, muito obrigado.
(Roque sorri. Volta para o quarto onde está Requião. Coronel, do outro
lado, continua gesticulando)
Roque - Pronto, doutor Requião.
Já estou limpinho e lambão.
Nei Requião - Bem, eu vim aqui porque
sabe, é que eu sou candidato
e tenho uma plataforma
que é popular de verdade.
Roque - É claro, claro, de fato.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 69 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
(Corre para o outro quarto. Nei Requião fala e continua gesticulando)
Nei Requião - Dinamismo e probidade...
Mocinha - Não, não se promete o céu
mas se acaba com o inferno.
Roque - Não vai haver mais inferno?
Excelente, Coronel.
Coronel - O meu obrigado eterno;
o Senador vem da roça...
(Roque corre para Requião)
Nei Requião - Vou governar o Estado.
Não vou fazer um assalto.
Roque - O senhor foi assaltado?
Lamento muito, lamento.
(Nei Requião estranha um pouco. No outro quarto o Coronel fala)
Coronel - Trata igual o rico e o pobre,
o camponês e o jumento.
Nei Requião - Modéstia à parte, meu Roque,
Sou eu o seu candidato.
Roque, vou instituir
“desemprêgo controlado”.
Querem construir açudes,
dinheiro mal empregado.
(Roque, cada vez mais aflito. Corre para o quarto do Coronel. Naquele
minuto, o Coronel está fazendo uma pergunta que Roque consegue responder
em cima da hora)
Coronel - Entendeu, Roque?
Roque - Entendi.
(Volta voando para Nei Requião)
Nei Requião - Nossa mão-de-obra, Roque,
tem de ser a mais barata.
Roque - É evidente. É batata.
(Corre para o Coronel)
Coronel - O Senador é conhecido.
Já entrou para a história.
Roque - Não duvido. Não duvido.
(Volta a Requião)
Nei Requião - Eu, perdão, sou conhecido.
Já entrei para a história.
Roque - Não duvido. Não duvido.
(Volta para o Coronel. Para Requião. E observa que os dois, agora, falam
as mesmas coisas)
Os dois - (Juntos)
Só não fêz (fiz) parte da glória

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 70 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
daqueles bravos Dezoito
do Forte Copacabana
porque o trem desgraçado
atrasou uma semana.
Roque - Não diga, que trem sacana.
(Roque fica na porta que comunica os dois quartos, respondendo aos dois ao
mesmo tempo)
Os dois - (Juntos) Na Revolução de Trinta
tomou (tomei) parte dos dois lados.
Roque - Viu? Valeu por dois soldados.
(Os dois agora vêm para êle. Passam de um quarto para o outro com Roque
no meio da porta, servindo de biombo. Os dois não se vêem)
Os dois - (Juntos) Foi (fui) o único a assinar o
Manifesto dos Mineiros
e que não era mineiro.
Roque - (Ao Coronel) Sim, mas era brasileiro.
(A Requião) Sim, mas era brasileiro.
Os dois - (Juntos) Mas sabe o que eu quero, Roque?
Roque - Não.
(Roque põe uma cadeira na porta. Responde para os dois. Sorri para o
público da sua invenção. A partir daqui, os três cantam)
Os dois - Eu quero que você
entre na minha campanha.
Preciso de gente assim,
gente que nunca barganha.
Roque - Ah, quem te viu, quem te vê.
Os dois - Então, vamos pra campanha?
Roque - Vamos!
Os dois - Isso, o Nei Requião (A Honorato)
vai ver a sova que apanha.
Roque - Ah, vou lhe tirar a banha.
Os dois - Isso, sim, meu rapagão.
(Roque pára de cantar de estalo)
Roque - De início quero um milhão.
(Longa pausa)
Os dois - Deu em nada a cantação.
(Pausa. Tiram o livro de cheque)
Roque - (Apontando Brás que voltou e viu o final da cena)
Pra nós dois emprêgo público,
uma casa e um furgão.
Também quero entrar no Exército
no pôsto de capitão.
Também desejo um diploma

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 71 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
de médico e boticão.
(Os dois olham Roque fuzilando)
Os dois - Mas de todo o coração.
Bem, amanhã, duas horas,
esteja lá na Assembléia.
Vamos fazer um comício
no bairro da Galiléia.
(Entregam os cheques. Sorriso amarelo. Um não viu o outro. Saindo, cada
um por um quarto, ainda falam juntos)
Por um triz, mudo de idéia.
(Brás das Flôres se pendura em Roque)
Brás das Flôres - Ah, meu David protetor,
meu grande rei Salomão,
não vou ser mais escritor,
não quero mais glória, não.
Serei só seu servidor. (Campainha)
Roque - Ainda não terminou?
(Zulmirinha entra. Com a roupa de baixo. Pega suas coisas enquanto fala)
Zulmirinha - Veja, saí distraída!
Só fui reparar em mim
no chá da Mãe Esquecida.
Carlota me perguntou:
por que vieste despida?
(Veste-se. Campainha)
Roque - Meu Deus, quem será dessa
vez? O café da manhã
não pode ser porque a peça
é de baixa produção.
É tamanha a confusão
que não vou estranhar nada
se entrar por esta porta
o próprio Napoleão.
(Soa um hino francês. Napoleão entra)
Napoleão - Favor, podia informar
onde fica Waterloo?
Perguntei na portaria
me indicaram o water-close.
Eu pergunto Waterloo.
Ce n’est pas la même chose.
(Zulmirinha sai. Dá com Napoleão)
Zulmirinha - Céus, mas por que tanta pose?
(Luz. Abre. Sala da Assembléia. Num lado — Coronel, Senador e Furtado;
no outro — Nei Requião. Os quatro se olham, estranhando. Olham no
relógio ao mesmo tempo. Vêem que estão olhando no relógio. Estranham.
Nei e Coronel vão ao mesmo tempo até a janela. Olham-se, invocados. Um
tempo. Olham o relógio de nôvo. Cada um diz para si mesmo)

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 72 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Os dois - Roque disse que estaria
aqui, às duas em ponto. (Pausa enorme. Repetem, um olhando para o
outro, pausadamente)
Roque disse que estaria
aqui, às duas em ponto. (Tempo)
Nei Requião - Hã, são êstes os seus meios...
Tentam comprar o rapaz.
Mas vou derrotá-los feio.
Essa política suja
é de cem anos atrás!
Coronel - Eu não entendi... espera...
Quem quis comprar foi você!
Êle era meu filho! Era!
Êle vem aqui porque
acredita muito em mim!
Nei Requião - Ah, vem aqui é porque
acredita só em mim.
Coronel - Em mim.
Nei Requião - Em mim. (Coronel começa a cantar)
Coronel - Mim. Em mim.
Os dois - (Dueto) Em mim, ó, em mim, em mim.
(Ruído de passeata se aproxima)
Em mim, ó, em mim, em mim.
(Todos vão à janela)
Senador - Que é isso?
Furtado - É a passeata
do tal do Jesus Glicério.
É... e tem bastante gente...
Um, dois, três, cinco, seis, sete...
(Todos olham feio)
É... não dá pra contar, não...
Coronel - Tem gente...
Nei Requião - Como confete...
Tem mais que no seu comício?
Coronel - É por aí... é... empate...
É... o dêle está mais fraco...
Mais que no seu?
Nei Requião - Taco a taco. (Furtado lê uma faixa)
Furtado - Terra a quem trabalha nela.
(Requião lê outra)
Nei Requião - Terra a quem trabalha nela.
Coronel - Pra quem trabalha na terra?
Êsse sujeito é boboca.
Quer dar terra pra minhoca?

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 73 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
(Todos morrem de rir)
Ah, como eu fui engraçado!
(Berra para a passeata)
Vão dar terra pra minhoca?
(Todos morrem de rir)
Nei Requião - Não adianta, estão por baixo!
Coronel - Meu Deus, meu Deus, que esculacho!
Nei Requião - E aquêle que vem ali?
Coronel - Qual?
Nei Requião - Aquêle.
Furtado - É o Roque!
Coronel - Mas que está fazendo aí?
Não, não é nada, êle está
vindo pra cá, safardana.
Olha, êle está dando adeus.
(Dão adeus)
Nei Requião - Não é adeus. É banana.
Coronel - Não. É adeus.
Nei Requião - Tsu. Banana.
(Coronel verifica. Se convence)
Coronel - É banana, sim, maldito!
Filho de Zé com cigana,
de preá com Benedito!
Nei Requião - De burro com caninana,
de gato com periquito!
Coronel - É, a tua mãe quando te
viu, disse: não acredito!
(Fazem bananas de volta)
Tome, tome, tome, tome,
na minha mão tu não come.
(Coronel xinga Requião)
Seu irmão, não é? Você
foi quem o tirou da prisão.
Nei Requião - Eu? Você é o papai.
E fêz tamanho alarido
que quase o govêrno cai!
Coronel - Você acreditou nêle!
Nei Requião - Você acreditou nêle!
Dueto - (Cantam) Você. Você. Ó, você.
(Brás das Flôres entra correndo)
Brás das Flôres - Coronel, seu Quião, Roque
se passou para o Glicério.
Eu disse: não faça isso,

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 74 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
não seja tão deletério.
Ouviu Glicério falar
e logo se impressionou,
disse — “nunca vi homem
falar como êsse falou,
Brás. É com êsse que eu vou”.
É. Desistiu do dinheiro
que os senhores iam lhe dar
e não quer mais receber
a casa nem o furgão.
Eu falei — “Roque não seja
bôbo, vamos continuar
explorando o Requião”
mas êle nem respondeu.
Eu, no entanto aqui estou
com o senhor e o Senador
ou com o doutor Requião.
(Coronel quebra uma cadeira na cabeça de Brás das Flôres. Um tempo. Brás
sai meio desenxabido. Luz rápida reverte para a cadeia. Roque está prêso
outra vez. A carcereira entra com a sua marmita. Cai nos braços de Roque)
Carcereira - Ah, você voltou, voltou!
Prêso mais uma vez para
novas investigações.
Nosso Senhor me ajudou.
Ouviu minhas orações. (A Deus)
Eu só lhe peço mais urna
graça e depois fico quieta:
prisão perpétua, prisão
perpétua, prisão perpétua!
(Reverte a luz. Requião está sentado na casa do Coronel. Vê uma prévia
eleitoral. Ao seu lado, o Desembargador cochila. Um tempo. Desembargador
acorda)
Desembargador - Pensou que eu estava dormindo?
Engano, estou refletindo.
(Volta a cochilar)
Nei Requião - Pela prévia-eleitoral
já estou mesmo perdido.
Senador, Jesus Glicério,
pois é, entre os dois é que o
páreo vai ser decidido.
(Desembargador acorda de nôvo)
Desembargador - Pensou que eu estava dormindo?
Engano, estou refletindo...
Nei Requião - Vou mal, Desembargador...
A única solução
é fazer o Senador
deixar de ser candidato.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 75 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
É capaz dêle aceitar
pois Glicério está agora
ameaçando de fato.
De minha parte, abro mão
da minha candidatura
e faz-se a coligação,
que apresenta um candidato
sim... de conciliação...
Perco os anéis fica a mão...
E, de nôvo, em vez de um homem,
um imbecil governador.
Desembargador - Pensou em alguém?
Nei Requião - No senhor. (Desembargador ao público)
Desembargador - Vou lhe responder de modo
delicado mas altivo.
Sintético, coisa pouca.
(Olha Requião. Tempo)
Estou aí nessa bôca.
(Entram Senador, Coronel e Furtado. Graves. Esperam que Nei fale)
Nei Requião - Bem, senhores, quem me trouxe
aqui foi a minha Pátria?
Coronel - Como? Não foi o chofer?
(Requião engole em sêco e continua)
Nei Requião - A situação é ruim.
Nem tudo é sopa no mel,
pois com a nova prisão
do tal do Roque Murgel
subiu muito a cotação
do ignóbil Jesus Glicério
que defendeu o adultério
e é contra a religião.
Mas se Roque fica sôlto
vai pregar a subversão
e ajuda inda mais o homem.
É difícil, ninguém nega,
a nossa situação.
Lembra no enrêdo e no nome
a peça do Opinião
“Se correr, o bicho pega,
se ficar o bicho come”.
Jesus não pode ganhar.
É o principal. Isto pôsto
afirmo que estou disposto
a renunciar, abrir mão
da minha candidatura
vitoriosa desde agôsto
mas desde que o Senador

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 76 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
também abra mão da sua
mesmo sendo a contragosto.
Assim, mandamos Jesus
para as profundas do Inferno
com um candidato que una
Oposição e Govêrno.
Eu, para Governador,
proponho um homem distinto,
leal, dinâmico e lindo
que é o Desembargador.
(Desembargador, evidente, dorme)
Coronel - Não, eu acho que... (A Requião)
Psiu...
Que é, não pode escutar...
Vai, vira a cara pra lá...
Não se faça de enxerido...
Vai, tem de tapar o ouvido.
(Requião tapa os ouvidos)
Senador - Acho melhor aceitar.
Por enquanto a gente está
por cima da carne sêca.
Podemos contrapropor
um candidato mais nosso
para ser Governador.
O meu filho, o meu avô
ou até mesmo o senhor.
Um bem mais do nosso lado
que faça muitos açudes
e aquêles nossos babados...
O Jesus está subindo,
nosso dinheiro sumindo...
Coronel - Acôrdo com êsse aí
e com você quase eleito?
Eu vou arranjar dinheiro.
Se lhe dou a nossa vez,
está com o poder inteiro
em pouco menos de um mês.
Claro, depois da eleição,
acaba a fôrça do pobre,
só manda quem tem o cobre.
Vai falar com êsse sacana
e lhe dê uma banana.
(Senador tira o lenço. Chora. Vai a Requião)
Senador - Reconheço o patriotismo
que seu nobre peito encerra
mas eu não posso aceitar.
Sou candidato do povo,
não o posso abandonar.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 77 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
(Saem. Nei fica só)
Nei Requião - O bom cabrito não berra.
Só resta uma solução:
vai sair mais caro, mas
não tem outro jeito, não.
O Senador só retira
a sua candidatura
quando sentir que o Jesus
pode ganhar a eleição
mesmo, batata, de fato.
O único jeito então
é botar o meu dinheiro
na campanha do Jesus.
E mandar soltar o Roque
pra em seus comícios falar.
Roque pode recusar.
Já deve estar assustado
com o xadrez que tem levado.
Pode até querer sumir.
Mas tenho um jeito provado
de fazê-Io refletir.
Eu ajudando Jesus!
Aonde pode a política
um homem de bem levar.
Eu ajudando Jesus...
Até que vai ser bonita
a jogada que vou dar.
O próprio Amaral Peixoto
de inveja vai espumar.
(Reversão de luz. Roque, sôlto de nôvo, no hotel, fala no telefone)
Roque - Já estou sôlto de nôvo,
Mocinha, minha querida.
Mas êste mundo é maluco:
entro e saio da cadeia
que até pareço um cuco.
Não güento mais, vou-me embora.
Queria ajudar Jesus...
E é bom ficar popular,
conhecido onde aparece.
O diabo é que a polícia
também logo reconhece.
(Entram três sujeitos)
Por que não foge comigo?
Hoje, não? Hoje é domingo?
Um minutinho, querida,
vou atender uns rapazes,
volto a falar em seguida.
Sujeito 1 - Quem é Roque Penaforte?

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 78 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Roque - Eu.
Sujeito 1 - Ah, que felicidade
encontrá-Io assim de cara.
Estamos mesmo com sorte.
É que temos dois trabalhos
num só dia, coisa rara.
Vamos logo começar
antes que o prazo se vença.
Roque - Que deseja?
Sujeito 1 - Com licença.
(Começa a dar sôcos em Roque)
Sujeito 2 - Gosto de bater no estômago,
faz um barulho bonito.
Sujeito 1 - Ah, eu prefiro no rim.
Sujeito 2 - Não, não. Ouça e se convença;
não é mais bonito assim?
Sujeito 3 - Pra mim não faz diferença.
(Roque cai)
Sujeito 1 - Seja bastante acessível
na conversa que vai ter.
(Entra Nei Requião)
Esboce um sorriso, vamos.
Não fique assim impassível.
Nei Requião - Não pense em aproveitar
a saída da prisão
que arranj ei pra você
e fugir. Não fuja, não.
Continue o seu serviço
para o tal Jesus Glicério.
Procure logo um comício
e diga lá que o Nordeste
é um grande cemitério.
E se não me obedecer
onde fôr, mando buscar
não mais para lhe bater.
Dou ordem para matar.
(Sai. Os três falam juntos)
Os três - Entendeu, seu tabaréu,
seu filho de boi capado,
seu neto de cascavel,
seu filho disso e daquilo,
baboso, guenzo e tarado!
Sujeito 1 - Com licença, passar bem,
sinto ter incomodado.
(Saem. Roque arrebentado. Toca o telefone. Roque atende)

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 79 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Roque - Sou eu, o Roque, Mocinha.
Não posso fugir agora:
surgiu um nôvo problema.
Sei, desmarcou o cinema
mas já não posso ir embora...
(Os três sujeitos entram de nôvo, pela outra porta, pelo outro quarto)
Sujeito 1 - Quarto trezentos e três...
É aqui. O Diabo entenda!
Oh, gente, é êle outra vez...
e é a mesma encomenda,
também o mesmo freguês...
Nunca me aconteceu isso...
Vir repetir a lição.
Sabe o que é? Compromisso
com São Cosme e Damião
levou todos os capangas
da cidade à procissão.
Êste ano, nós não fomos,
alguém tem de dar plantão.
Desculpe, meu bom amigo,
vamos para outra sessão?
(Batem de nôvo. Roque apanha, cai)
Sujeito 1 - Seja bastante acessível
na conversa que vai ter.
(Entra o Coronel)
Esboce um sorriso, vamos,
não fique assim impassível.
Coronel - Está sôlto, filho do povo!
Mas não pense que de nôvo
vai ajudar o Jesus.
Suma e para nunca mais!
Tem aqui sua passagem
(Entrega uma passagem)
comece logo a viagem.
Voltou, morreu, meu rapaz! (Sai)
Os três - Entendeu, seu tabaréu?
Seu filho de boi capado,
seu neto de cascavel,
etecetera, etecetera,
conforme já foi falado.
Sujeito 1 - Com licença, passar bem.
Qualquer vingança,
Sujeito 2 - atentado,
Sujeito 3 - brincadeira de mau gôsto.
Sujeito 1 - Jôgo.
Sujeito 2 - Marido enganado.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 80 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Sujeito 3 - Dor de côrno,
Sujeito 1 - Divergências
em geral.
Sujeito 2 - Rixa política!
Sujeito 1 - Pode nos chamar, terá
a nossa pronta assistência.
(Dá um cartão)
Sete, zero, meia, um.
Canguinha-Forrobodó.
Bôca Insôssa e Paciência.
(Cumprimenta e sai. Roque levanta. Pega uma mala e começa a arrumar.
Brás das Flôres entra também com uma mala)
Brás das Flôres - Bom-dia, vai bem, Roquinho?
Saiu da prisão, que bom!
Eu passei aqui pertinho,
pensei: vou lá no hotel
visitar meu amiguinho.
Aproveito, levo a mala,
me encosto lá num cantinho.
Que é isso? Que é que há?
Roque - Eu apanhei uma surra
para ir embora e apanhei
outra surra pra ficar.
Uma para me esconder
e outra pra me mostrar.
Um diz que se me mandar
pra muito longe daqui
tenho chance de viver...
Vou-me embora de uma vez
pro Tirol ser tirolês.
Brás das Flôres - Por causa de uma surrinha?
Roque - Duas.
Brás das Flôres - Ora, fôssem seis!
Vai deixar Jesus Glicério,
bandeira do camponês?
Roque - Ah, você nem pensa nisso.
Não quer que eu me vá embora
porque aí saio da moda.
Você perde a sua escora.
Livros, livros à mão cheia
se fico lá na cadeia.
Se fico livre, você
come e dorme à minha custa.
Dos dois jeitos tem aveia.
Brás das Flôres - Quem é você que não sabe
o que diz, meu Deus do céu,

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 81 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
mas que palpite infeliz.
Tiradentes se deixou
matar pela liberdade.
Sócrates bebeu cicuta
bem avançado em idade.
Dom Pedro disse que fico
pra não entornar o caldo.
Joana D’Arc na fogueira
morreu com a cruz. O Osvaldo
Cruz soube enfrentar a peste
e o grande César disse:
a alea jacta est.
(Roque sai. Brás atrás. Reversão de luz. Estão na rua. Ruído de rua,
buzinas, etc)
Que vou escrever agora
se meu herói, Penaforte,
largou Jesus, foi-se embora?
Roque - Herói é quem não tem sorte
para escapar. Mas tenho
chance e aproveito a hora.
Brás das Flôres - Mas você tem de ficar.
Me acostumei a viver
assim de papo pro ar.
Roque - Qual é a estação mais perto?
Brás das Flôres - Você é meu personagem,
só faz o que eu escrever.
(Roque anda pelo palco)
Roque - Não, eu não quero mais nada
com os Honorato e Requião.
Chega de tentar viver.
Se é preciso tanta fôrça
pra seguir o coração
vou ficar morto e calado,
é a melhor solução.
Não, eu não quero mais nada
com os Honorato e Requião.
(Anda sempre. Brás tira uma faixa de dentro da mala: ESTAMOS COM
JESUS GLICÉRIO. Anda atrás de Roque durante essa fala. Um vozerio
vai se formando)
Êles vivem a vida dêles.
Vivem a nossa também.
Com tantas vidas assim
podem pensar que são bons
se a algumas vidas dão fim.
Ah, Honorato, ah, Requião
um dia isso tudo acaba
porque o homem veio ao mundo

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 82 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
foi pra ter satisfação.
(Pára. Palmas, gritos)
Brás das Flôres, que é isso?
Mas que tanta gente é essa?
Brás das Flôres - Ora, Roque, é o seu comício.
Comício pelo Jesus.
Roque - (Vai para Brás. Arranca-lhe a faixa)
Larga essa faixa depressa.
(Para longe. Como se falasse com a multidão)
Não tirem fotografia.
Vamos, desfaz essa marcha!
Deus do céu! Ave Maria!
(Roque foge. Reversão de luz. Furtado e Coronel e o Senador esperam.
Coronel arrasado vê as prévias)
Coronel - (Como se lesse a prévia pela milésima vez)
Veja só, Jesus Glicério
passou longe em nossa frente...
Não entendo êsse mistério...
Senador - Ó, Coronel, Requião
soltou dinheiro ao Glicério
que atingiu o Oeste, o Sul,
cavou nosso cemitério...
Assim êle nos obriga
a mudar de posição:
tirar a candidatura
ir pra conciliação.
Deu um golpe de valer
pra aceitarmos candidato
o tal Desembargador...
Furtado - Tirou Roque da cadeia.
Veja só êste jornal...
fêz comício contra nós,
ou melhor, fêz carnaval.
O senhor disse que Roque
ia embora, coisa e tal...
Coronel - Topar conciliação?
Isso nunca. É um perigo.
Só um louco faz acôrdo
com seu pior inimigo.
Senador - O senhor tem mais dinheiro
pra enfrentar o Jesus
e o Requião traiçoeiro?
Coronel - Não tenho mais um tostão...
vendi até o galinheiro.
Senador - Eu lhe avisei. Coronel:
faça o acôrdo. O senhor não

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 83 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
quis. Agora o Requião
impõe. Êle vai pagar
a nova campanha tôda.
É, Coronel, acontece
que é preciso muita grana
para se impingir ao povo
o nome desconhecido
de um candidato nôvo.
Só Requião tem dinheiro
pra essa parada enfrentar.
É a vez dêle falar.
Aceitar é o que nos resta.
(Pausa longa)
Coronel - O senhor que sempre chora
por que não o faz agora?
Será que estamos em festa?
Senador - Agora a dor é honesta...
Talvez o Jesus Glicério
seja melhor do que nós.
Diz muita coisa que presta.
Mas eu não posso apoiá-Io...
Coragem já não me resta.
(Entram Nei e Desembargador. Todos sentam-se)
Nei Requião - Vim com o Desembargador,
futuro governador.
Desembargador - Bem, eu queria dizer...
Nei Requião - O senhor fala depois...
Desembargador - Bem, eu queria dizer,
sim, que falarei depois...
Nei Requião - Nas vagas para o Senado
no pleito do ano que vem
apresento vosso nome
e o do meu concunhado.
Senador - Me desvanece a lembrança. (Chora)
Proponho o nome de meu
filho para deputado.
Brás das Flôres - Será bem considerado.
Atendendo à minoria,
minoria financeira
a que o senhor representa,
mantém-se na ordem do dia
várias das suas promessas
feitas durante a campanha.
Primeiro: pequeno aumento
para o funcionalismo.
Um só, pois outro não ganha.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 84 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Vejamos agora essa:
para o Secretariado
critério proporcional:
com a minoria fica
Saúde, Limpeza Urbana,
Teatro Municipal.
Nós ficaremos com o resto —
Departamento da Sêca
e a Polícia Estadual.
Salários, nenhum acréscimo
e a tempo indeterminado.
É sabida a solução:
desemprêgo controlado.
E não se darão empréstimos
de modo indiscriminado.
Coronel - Nosso açude, Senador?
Vai ser de nôvo adiado?
Nei Requião - Sim.
Coronel - Mas doutor Requião...
Nossas terras, Senador,
sem açude...
Furtado - A terra não
é mais do pai, Coronel.
Já vendeu ao Requião
que pagará a hipoteca.
Foi no fim dessa semana...
Em troca papai recebe
um bom pedaço de gleba
na zona rica de cana. (Silêncio)
Nei Requião - Alguma coisa pendente?
Passe bem. Arrivederci.
(Sai com o Desembargador. Senador olha o Coronel. Um tempo. Sai.
Furtado se aproxima com a aliança de noivado)
Furtado - Com licença, Coronel.
Lhe informo neste momento
que rompi com o casamento.
Descobri que sua filha
com outro homem dormiu.
Vergonhoso, Coronel.
E o senhor tudo encobriu.
Prestou-se a êsse papel!
(Sai. Um tempo)
Coronel - Êles adiam aflições...
O que é que vão fazer
nas próximas eleições?...
E eu que mandei matar
o Roque, inutilidade...
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 85 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Podia economizar...
Mas esta hora os capangas
não estão mais na cidade...
(Reversão de luz. Roque, Brás e Mocinha entram correndo. Juntos, com mêdo.
Longe se ouvem gritos que se aproximam “Roque. Roque penaforte!”)
Brás das Flôres - Estão chegando mais perto.
Mocinha - Fugir com você foi êrro.
Ficar inda era o mais certo.
Fugi para ser feliz,
dei com os costados no mato,
onde vim pôr o nariz.
Brás das Flôres - Mas a culpa é tôda dêle.
Fêz desandar nossa sorte,
nos arrastou à penúria
e agora nos leva à morte.
(As vozes se aproximam)
Roque - Vamos, vamos dar no pé.
Há uma cidade aqui perto.
ÊIes lá não vão saber
nosso paradeiro certo.
Brás das Flôres - Pode ir se indo sozinho.
Procuram só por você,
por mim, não procuram, não.
Mocinha - Eu também, não vou, viu, Roque?
É teu o meu coração
mas não pra morrer em vão.
(Os dois fogem. Roque quer fugir. Atarantado. Vai fugir. Um tiro)
Roque - Ai, me pegou no peito,
varou meu coração.
Foi um tiro perfeito. (Outro tiro)
Este foi bem no rim
mas só no rim direito. (Outro tiro)
Um tiro bem na bôca.
Vou ficar com a voz
fanhosa e rouca. (Outro tiro)
Pra findar a festa
êste pegou no pé —
nunca mais dançarei
o meu ié-ié-ié.
(Cai. Silêncio. Brás e Mocinha entram. No fundo um cantor canta o tema
“Rolou tiro rolou tiro”)
Brás das Flôres - Roque, meu querido Roque,
mas o que te aconteceu?
Foi morto à queima-roupa
e ninguém te socorreu?
Ah, mas por que não chamou

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 86 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
êsse velho amigo seu?
Perdão, meu querido amigo,
morro sem estar contigo.
Mas inda irei descrever
essa morte ao desabrigo
que acaba de te abater...
O livro vai vender muito...
A desgraça faz vender...
Sou capaz de ficar rico...
Meu Deus do céu, se tiver
sorte, mas claro que fico!
Roque, estou feito na vida!
Ah, Roque, meu bom irmão!
Nem mesmo morto deixaste
de ter grande coração!
(Sai correndo)
Edito uma coleção!
Fico rico e maganão!
Edito uma coleção!
(Mocinha fica. A luz apaga. Reversão. Coronel, na sua fazenda, está
morrendo na sua cama. Bizuza está ao seu lado)
Coronel - Estou morrendo, Bizuza.
Vou morrer, minha mulher...
Sabe? Morreu a novilha
e a vaca Rosicler...
Êsse Desembargador,
o nôvo Governador,
é pau-mandado do Nei...
Abre a janela, Bizuza,
quero escutar, o rumor
das coisas que acontecem...
Mas onde que está Mocinha?
Hein? E o Roque, meu amor?
Eu quero lhe dar as terras,
êle é môço e tem valor.
É verdade que o mataram?
(Entram Roque e Mocinha)
Roque - Estou aqui, Coronel.
Não, não me mataram, não.
É certo, todos os tiros
foram em lugar mortal. (Ao público)
Mas o mocinho morrer
no fim pega muito mal.
Coronel - Roque, eu estou morrendo,
me dói muito o occipital.
Vou deixar para você
as terras e o algodoal.
Mas com uma condição!

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 87 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
não se case com Mocinha.
Já que morro, vou dizer:
não tenho certeza, não,
mas é capaz de você
ser meu filho, coisa e tal...
Não pode casar com ela
sabendo ser seu irmão.
(Longo silêncio. Mocinha chora)
Bizuza - Escuta aqui, Honorato,
acho que por isso, não.
Lembra quando você foi
passar um mês no Fundão?
Fiquei sozinha, sofria,
sofria de solidão.
Você foi na primavera,
comecinho do verão.
Veio o Desembargador
e nós jogamos gamão.
Naquele tempo êle era
juiz desta região.
Uma noite êle chegou,
não sei, não jogamos, não...
Conversa daqui, dali,
tomamos um Parati,
êle contou anedotas,
— como contava anedotas! —
e riu muito, eu também ri...
Foi isso, meu Honorato...
Mocinha não é tua filha.
Ela é filha do Renato
que foi Desembargador
e hoje, Governador.
Coronel - (Estrebucha) Ah, traidora, ah, traidor!
Você me diz isso agora!
Ai, sinto muito calor...
Não posso nem me vingar
dêsse Desembargador.
Você me paga, me paga...
Mas do Desembargador?
Então Mocinha é... é...
filha do Governador?
Estamos salvos, ei, salvos!
filha do Governador?
É filha do Melequinha.
Vai construir nosso açude,
o açude, filha minha.
É filha do Melequinha!
Pensei que era transtôrno

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 88 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
mas, não! Ah, bendito côrno!
Bendito côrno! Bendito...
(Morre. Silêncio. Mocinha chora. Bizuza, muito emocionada, ajoelha-se e
canta)
Bizuza - Êle foi o único homem
da minha vida. Encontrei-o
no dia de São Benedito.
(As duas choram. Roque, fala ao público)
Roque - Bem, meus senhores, nós vamos
terminando por aqui
que às nossas alegrias
duramente conquistadas
se juntam dores recentes,
sem falar das que nos seguem
desde épocas passadas...
Para a peça ter um fim,
vamos mostrar três finais.
Escolha o que achar certo,
o que lhe falar mais perto
ou da alma ou do nariz.
Mande às favas os demais.
Primeiro: final feliz!
(Roque pega um chapéu e um charuto. Mocinha entra com um carrinho de
bebê. Uma criança no carrinho também com um imenso chapéu de Coronel)
Mocinha - (Canta) Querido, nasceu o nosso
décimo terceiro filho,
grande que parece um gato.
que nome botamos nêle,
o de Roque ou de Honorato?
(Entra Brás das Flôres)
Brás das Flôres - Patrão, tudo resolvido.
Expulsei Zé Prêto e Mano
que êles venderam escondido
parte da safra do ano.
Roque - Segundo: final jurídico.
(Diz para Mocinha)
Querida, ouça: essas terras
divido com os lavradores.
Não quero ficar com a safra
e a êles deixar as dores.
(Entra Brás das Flôres de Juiz)
Brás das Flôres - Quem é o Roque, o possesso?
Não vai fazer o que pensa.
Me acompanhe, por favor,
reabrimos seu processo.
Roque - E, bem, por fim, o terceiro final. Final brasileiro.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 89 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
Mocinha - Ó, Roque, Jesus Glicério
é o nôvo Governador!
Na recontagem de votos
foi-se o Desembargador.
O rádio também informa
que você será chamado
para ajudar na Reforma
Agrária, que vai dar terra
a tudo que é lavrador.
(Brás entra vestido de guerreiro medieval)
Brás das Flôres - Venho da parte de sua
Majestade, Sua Alteza
Dom Requião, o Gentil,
dizer que foi restaurada
a monarquia no Brasil.

FIM DA PEÇA
18 de janeiro de 1966.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 90 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
APÊNDICE

SE CORRER O BICHO PEGA,


SE FICAR O BICHO COME
Argumento: Armando Costa, Denoy De Oliveira, Ferreira Gullar, João Das
Neves, Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Pichin Plá E Teresa Aragão

FICHA TÉCNICA
A peça foi estreada pelo Grupo Opinião, no Teatro Grupo Opinião, na
Guanabara, no dia 9 de abril de 1966, com o seguinte elenco:

ELENCO
José Brás das Flôres AGILDO RIBEIRO
Roque ODUVALDO VIANNA FILHO
Coronel Félix Honorato A. FREGOLENTE
Substituído posteriormente por RAFAEL DE CARVALHO
Mocinha HELENA IGNEZ
Bizuza VIRGÍNIA VALLI
Mendes Furtado SÉRGIO MAMBERTI
Rosinha THELMA RESTON
Joca Ramiro ANGELO ANTÔNIO
Vendedor de Imagem OTHONIEL SERRA
Prefeito EMMANUEL CAVALCÂNTI
José Porfírio HUGO CARVANA
Aleijado ANTÔNIO PITANGA
Padre DENOY DE OLIVEIRA
Matador FRANCISCO MILANI
Nei Requião OSVALDO LOUREIRO
Desembargador MANUEL PÊRA
Zulmirinha Requião ODETE LARA
Vespertina THELMA RESTON
Delatorzinho J. DINIZ
Rodrigo ECHIO REIS
Mulher de Rodrigo ILVA NIÑO
Senador JOFRE SOARES
Carcereiro HUGO CARVANA
Carcereira THELMA RESTON
Napoleão HUGO CARVANA
Sujeito 1 ANTÔNIO PITANGA
Sujeito 2 FRANCISCO MILANI
Sujeito 3 ECHIO REIS
Os papéis de retirantes, corumbas, jornalistas, empregados na usina, soldados,

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 91 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar
burros, foram feitos por Echio Reis, Othoniel Serra, Ilva Niño, Zena, Janira,
Marlene Fernandes, Luiz Mendonça, J. Diniz, Emmanuel Cavalcânti, Antônio
Pitanga, que também fizeram parte do côro.

Músicas GENI MARCONDES e DENOY DE OLIVEIRA


Direção Musical GENI MARCONDES e GAYA
Figurinos e Acessórios WALTER BACCI
Confecção dos Figurinos CONCEIÇÃO
Elementos de Cena GIANNI RATTO
Produção JOÃO DAS NEVES
Direção de Cena LEÔNIDAS LARA
Eletricista e Assistente de Iluminação LEANDRO FILHO
Assistente de Direção LUIZ MENDONÇA
Direção Geral GIANNI RATTO

As rubricas de marcações constantes no texto, na sua maioria transcrevem


já a direção de Gianni Ratto para o espetáculo montado pelo Grupo
Opinião.

Prêmios: Molière (RJ), Saci (SP) e Governador do Estado (SP). Em 1966.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come [ 92 ] Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar

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