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Sociedade & Natureza

ISSN: 0103-1570
sociedadenatureza@ufu.br
Universidade Federal de Uberlândia
Brasil

Gomes Moreira, Suely Aparecida; da Penha Vieira Marçal, Maria; Moreira Ulhôa, Leonardo
A DIDÁTICA DA GEOGRAFIA ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE O SABER A SER ENSINADO,
O SABER ENSINADO E O SABER CIENTÍFICO
Sociedade & Natureza, vol. 18, núm. 34, junio, 2006, pp. 23-30
Universidade Federal de Uberlândia
Uberlândia, Minas Gerais, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=321327188002

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A Didática da Geografia Escolar: Uma Reflexão Sobre o Saber a Ser Ensinado, o Saber Ensinado e o Saber Científico
Suely Aparecida Gomes Moreira, Maria da Penha Vieira Marçal, Leonardo Moreira Ulhôa

A DIDÁTICA DA GEOGRAFIA ESCOLAR: UMA REFLEXÃO SOBRE O SABER A


SER ENSINADO, O SABER ENSINADO E O SABER CIENTÍFICO

Didactis of School Geography: a reflection on knowledge to be taught, taught knowledge


and scientific knowledge.

Suely Aparecida Gomes Moreira


Faculdade Católica de Uberlândia
gomesgeog@aol.com
Maria da Penha Vieira Marçal
UNIPAM
Leonardo Moreira Ulhôa
ESEBA – UFU

Artigo recebido em 03/03/2006 e aceito para publicação em 04/04/2006

RESUMO: O objetivo deste artigo é refletir sobre a Didática da Geografia escolar, analisando a necessidade
da transposição didática no sentido de facilitar uma conexão entre o saber a ser ensinado, o saber
ensinado e o saber científico. A Geografia escolar tem por função contribuir para a construção de
conhecimentos significativos para a vida das pessoas. As habilidades a serem desenvolvidas nos
educandos, por meio dos conhecimentos geográficos, devem facilitar uma reflexão crítica acerca
da sociedade na qual eles vivem e, principalmente, sobre o espaço que ocupam, visando à
compreensão de como este é (re)organizado cotidianamente. A esse propósito, realizou-se um
estudo bibliográfico acerca das questões relativas à Didática da Geografia escolar, com base nas
teorias sobre os modelos transpositivo e disciplinar, procurando fazer um paralelo entre o
“conhecimento geográfico científico” e o “conhecimento geográfico escolar”, propostos e
formulados por Yves Chevallard e André Chervel, respectivamente. Dentre os resultados dessa
discussão, verifica-se que o saber a ser ensinado traz em seu bojo a concepção de que a docência
se constrói em uma articulação da competência acadêmica com a competência pedagógica, na
medida em que o saber ensinar exige a compreensão de se saber o que e como ensinar.

Palavras-chave: Geografia escolar – Didática – Saber ensinado – Saber científico

ABSTRACT: This article brings a reflection on the Didacticism of school Geography and an analysis of the need
of didactic transposition, in order to facilitate a connection among knowledge to be taught,
taught knowledge and scientific knowledge. School Geography has for function to contribute to
the construction of significant knowledge in people’s lives. The abilities to be developed by
geographical knowledge should facilitate a critical reflection concerning the society in which
students live and, mainly, the space they occupy in order to understand the way this space is
(re)organized. To that purpose a bibliographical study concerning the relative subjects to the
Didacticism of school Geography was held, based on the theories related to the transpositive and
disciplinary models, trying to construct a parallel between “scientific geographical knowledge”

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and “school geographical knowledge”, proposed and formulated by Yves Chevallard and André
Chervel, respectively. It was verified that knowledge to be taught brings the conception that
teaching is built from an articulation of academic competence together with pedagogic competence,
as knowing to teach demands the understanding of what and how to teach.

Keywords: School Geography – Didactics – Taught knowledge – Scientific knowledge

1 – O SABER CIENTÍFICO E O SABER


ENSINADO NA DIDÁTICA DA Didática da Geografia tem sua gênese no ensino da
GEOGRAFIA ESCOLAR Geografia escolar.

A Geografia tem uma função privilegiada Dessa forma, a tarefa de pensar o objeto
na grade curricular da escola, uma vez que da didática da Geografia escolar se configura,
proporciona uma maior integração entre o ambiente conforme Chevallard (1991), em um sistema ou em
do aluno e o mundo do qual ele faz parte, na medida uma relação contendo três elementos: o professor,
em que favorece uma visão da complexidade sócio- os alunos e o saber ensinado. Por isso, uma das
econômica que, por sua vez, implica na questões fundamentais da didática da Geografia
(re)construção do espaço geográfico, por meio do escolar se coloca, então, relacionada ao saber
trabalho humano, ao longo do processo histórico. ensinado, que é o conjunto de conhecimentos
estabelecidos na prática cotidiana do professor.
Concordamos com Kaercher (2002, p. 15), Assim, deparamos com uma questão: como
quando afirma que “a Geografia é feita no dia-a- relacionar o saber ensinado, o saber a ser ensinado
dia, seja através da construção de uma casa, da e o saber científico?
plantação de uma lavoura ou através das decisões
governamentais ou dos grandes grupos econômicos O saber a ser ensinado se caracteriza por
[...]. Ou ainda em nossas andanças/ações individuais ser um conjunto de conhecimentos estabelecidos pela
pela cidade (pegar um ônibus, fazer compras, etc.)”. “noosfera”, ou seja, por aqueles que têm o poder de
Isso permite ao aluno trazer consigo um repertório decisão sobre o sistema educativo. A partir da noção
de experiências, conhecimentos assistematizados e de noosfera, Chevallard (1991) considera que não é
realidades vivenciadas cotidianamente que não a escola, nem os professores e tampouco os alunos,
podem ser desconsiderados no ambiente escolar. que podem legitimar o saber a ser ensinado, uma
Assim sendo, é responsabilidade da didática da vez que o ensino é tarefa das instituições acadêmicas
Geografia escolar considerar toda essa bagagem, de produção do conhecimento científico.
além de procurar transpor para os educandos as
relações entre o conhecimento escolar e o O modelo transpositivo constitui-se em um
conhecimento científico. dos elementos fundamentais para responder a esta
questão, pois referencia a passagem dos
O ensino e a aprendizagem se apresentam conhecimentos científicos para os conhecimentos
como diferentes entre si. No entanto, estão escolares. No caso do ensino da Geografia escolar,
entrelaçados, posto que um não existe sem o outro. faz-se necessário que haja transformações, tornando
Considerando esse entrelaçamento, torna-se viável ensiná-los no contexto escolar, a fim de dar
necessária uma transposição dos conhecimentos significado à construção dos conhecimentos
geográficos científicos produzidos por pesquisadores, geográficos, pois sabemos que há uma diferença
em universidades, para os conhecimentos escolares marcante entre esses diferentes tipos de saber.
(úteis para a vida), pois sabemos que a demanda da

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Nesta análise, Lestegás (2000) ressalta a ministradas nos cursos de graduação e os conteúdos
importância da didática na formação do professor ensinados nas escolas, constatamos diferenças entre
de Geografia, com vistas a proporcionar a os dois programas. A nosso ver, isto reflete a
construção efetiva por parte dos alunos, não somente insegurança vivenciada pelos professores do Ensino
dos conhecimentos escolares, como também Fundamental e Médio, principalmente no início de
daqueles necessários ao desenvolvimento pessoal e suas carreiras, com relação ao ensino de
coletivo, de tal sorte que se considerem os diversos determinados conteúdos geográficos, a exemplo da
fenômenos e problemas sociais em uma perspectiva Cartografia.
geográfica. Neste sentido, destacamos a importância
de se analisar as relações entre o conhecimento Desta forma, o modelo transpositivo inclui
geográfico científico e o conhecimento geográfico questões relativas ao que ensinar, como ensinar, por
escolar. que ensinar este e não outro conteúdo, como superar
fragmentações do programa e como ajudar o aluno
Lestegás (2002, p. 178) afirma que muitas a aprender a aprender. Por isso, a interação e o
das dificuldades enfrentadas pelos professores de diálogo com os alunos são imprescindíveis na didática
Geografia, em relação ao saber ensinado, dizem da Geografia escolar, o que se constitui em uma fonte
respeito ao fato de de novos significados para a aprendizagem.

que la geografia escolar constituya um texto A partir disso, compreende-se que o saber
perfectamente establecido que el profesor ensinado deve estar suficientemente próximo do
expone y, por tanto, espera transmitir a sus saber a ser ensinado, como também do saber
alumnos, seguiendo unas estratégias hastante científico, de modo a não ser desautorizado por
parecidas em tods los casos, y contando com la aqueles envolvidos na produção deste último. Por
ayuda de médios y recuros didácticos conseguinte, um dos aspectos que não se pode
ampliamente difundidos e compartidos. Su perder de vista no ensino de qualquer ciência é o da
relación com el saber también es muy semejante, coerência entre o saber ensinado e o conhecimento
todo lo cual hace que, al margen de pequenas científico constituído em uma determinada época.
diferencias entre os profesores, los saberes Assim, Lestegás (2002, p. 184) afirma que,
enseñados se muestren práticamente
equivalentes de uma clase a outra, o que […] la transposición didáctica no permite
confirma la existência de uma vulgata bien modelizar las operaciones em virtud de las cuales
consolidada. se genera el conocimiento geográfico escolar.
Em realidad, se requiere uma inversión del
Isso demonstra, em parte, que muitas dos planteamiento: em vez de partir del análisis de
problemas metodológicos que circundam o ensino los saberes científicos, como preconiza
de Geografia no Brasil são provenientes da Chevallard, es preciso remontarse desde los
formação de professores. Os resultados de algumas saberes escolares hasta el processo de su
pesquisas desenvolvidas no Brasil, a exemplo do construcción e institucionalización.
trabalho de Maria Socorro Diniz (UFRJ), e em outros
países, anunciam que a Geografia ensinada na Considerando as afirmações acima, Oliveira
educação básica não corresponde àquela aprendida (2003) afirma que a maioria dos professores ainda
nas universidades. Até mesmo os cursos de não consegue, de forma consciente, fazer uma
licenciatura que habilitam professores transposição didática, ou seja, não consegue
desconsideram a realidade da prática pedagógica. transformar o conteúdo acadêmico em conteúdo
didaticamente ensinável, revelando, em parte, um
De fato, se comparamos as disciplinas ensino centrado apenas na transmissão de

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conhecimentos. Para esse autor, alguns saber escolar seja distinto do saber científico, sua
professores(as) têm conseguido avançar em sua legitimação requer conformidade com aquele.
didática da Geografia escolar, quando procuram
conduzir seus alunos a uma reflexão sobre a realidade No entanto, Mello (2004) argumenta que,
vivida por estes, relacionando-a aos conhecimentos para fazer a transposição didática, é necessário
científicos, quando da relação dos conteúdos considerar os objetivos e os valores educativos da
ensinados com o espaço próximo dos alunos. escola, a idade e a situação sócio-cultural dos alunos,
os recursos disponíveis para ensinar, aprender e
Para Perrenoud (1993, p. 25) a transposição avaliar, as expectativas da família e da comunidade,
didática se manifesta na essência do saber a ser as demandas da sociedade-incluídos, o exercício da
ensinado, já que é a “a ação de fabricar cidadania e o mundo do trabalho, o universo cognitivo
artesanalmente os saberes, tornando-os ensináveis, e afetivo dos alunos, e os desafios que eles enfrentam
exercitáveis e passíveis de avaliação no quadro de para se desenvolverem.
uma turma, de um ano, de um horário, de um sistema
de comunicação e trabalho”. Demonstramos, nestes Frente ao modelo de transposição didática,
termos, que cada situação da realidade escolar pode Chervel (1988) descarta que este tenha
ser traduzida em uma resposta aos conhecimentos descendência no saber científico, reconhecendo-o
científicos produzidos nas academias. como criação original da escola que, ao manter
certas relações com o saber erudito, converte-o em
Chevallard (1991) reformula o conceito de “um saber específico, objeto de ensino, aprendizagem
“transposição didática”, como sendo o processo de e evolução, para responder assim as próprias
reelaboração do conhecimento científico disciplinar necessidades das instituições escolares”
para convertê-lo em conhecimento escolar, tornando (LESTEGÁS, 2000, p. 110).
o último uma redução homotética do primeiro, na
medida em que é definido por quem tem poder de Chevallard (1988) ainda reconhece que, em
decisão sobre o sistema educativo, e sendo expresso alguns casos, os saberes instituídos pelos programas
principalmente por meio de disposições oficiais escolares contemplam verdadeiras “criações
(currículos, orientações, programas, diretrizes gerais, didáticas”, decorrentes das “necessidades de ensino”
livros didáticos...). Estas diretrizes oficiais, em e totalmente desvinculadas do conhecimento
conformidade com Chevallard (1991), constituem- científico. Por modelo disciplinar, o autor acima
se em instrumentos que se encarregam de ensinar considera como sendo algo que vai além de um mero
apenas o que deseja que se aprenda. resumo dos saberes científicos: uma organização de
disciplinas escolares constituídas em compartimentos
O saber ensinado se apresenta, então, como de saberes que organizam a distribuição do tempo
aquele no qual o professor intermedia em sala de escolar e a relação dos alunos com o conhecimento,
aula, construindo textos diversos sobre o que foi assumindo funções de aculturação dos educandos
discutido, exemplificado, provocado por situações de acordo com o que a sociedade encarrega e exige
específicas vivenciadas em diferentes momentos, da escola.
por motivos diversos, enfim.
A Geografia que se ensina nas escolas segue
Chevallard (1991) insiste em argumentar que linhas de investigação mais recentes, e não se pode
a transposição didática ocorre quando há um afirmar que provenha apenas das diversas
processo de transformação do saber legítimo sem Geografias Científicas. Por outro lado, a Geografia
que o professor se dê conta dele, e que os saberes como disciplina escolar desempenha, ao longo de
escolares devem se aproximar ao máximo dos sua história, funções educativo-políticas, marcadas
saberes científicos de referência. Por mais que o por cada momento histórico.

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Assim, a Geografia não difere das demais (2003), em relação ao ensino de Geografia e
disciplinas de ensino que contribuem para configurar Cartografia, aponta que, na atualidade, mesmo
a cultura escolar. No entanto, possui um caráter pensada e discutida de modo a se contrapor à
realista quando se apresenta como uma reprodução perspectiva tradicional, algumas práticas
simples e objetiva da realidade espacial; para isso, pedagógicas permanecem arraigadas aos
dispõe de uma certa metodologia de trabalho, um procedimentos didáticos daquela corrente histórica.
vocabulário específico mínimo, linguagens e pontos
de vista próprios do discurso geográfico. Observa-se, portanto, poucas mudanças em
relação ao modo de se utilizar o mapa como recurso
2 – A DIDÁTICA DA GEOGRAFIA didático, limitando-se seu uso a ilustrar aulas
ESCOLAR E AS QUESTÕES expositivas e a localizar lugares, priorizando, em
METODOLÓGICAS DO SABER primeiro plano, a memorização, por exemplo, de listas
ENSINADO de rios que fazem parte das bacias hidrográficas
brasileiras, sendo que um dos mais importantes
É importante ressaltar, ainda, uma outra aspectos neste conteúdo é negligenciado: aprender
problemática referente à didática da Geografia como esses rios condicionam a vida da população
escolar, aquela atribuída à dicotomia entre os cursos que habita suas proximidades, ou de outras pessoas
de bacharelado e licenciatura que, não raramente, que, indiretamente, se beneficiam destas bacias. Do
resulta em aspectos negativos. Ao bacharel, a mesmo modo, seria essencial aprendermos a
possibilidade de uma universidade voltada para a interpretar os mapas destas bacias hidrográficas. Do
pesquisa e para o conhecimento, um “saber rico”. contrário, os rios continuam fluindo, e seus nomes
Ao licenciado, “o saber pobre”, isto é, conteúdos esquecidos (ULHÔA, 2005).
desvinculados da realidade do ensino e pouco
alinhavados (RUA, 1992). Esse fato resulta, mais De fato, se os procedimentos de ensino
uma vez, na transmissão do conhecimento estiverem desvinculados de uma fundamentação
proporcionado pelas universidades, que afeta a teórica, transformam-se em “receita”, conhecimento
formação do professor e, conseqüentemente, o saber vulgar (vulgata). Quando apenas se completa nomes
ensinado. e colore-se o mapa, reforça-se a idéia de vulgata.
Ademais, é fundamental destacar que Almeida
Para a formação do aluno em nível de Ensino (2001), sobre o ensino de cartografia na escola, alerta
Fundamental e Médio, na perspectiva crítica, é para o fato de que a metodologia não pode ser o
imprescindível (re)pensar a prática docente. Nessa discurso e o uso de materiais prontos. O aluno deve
perspectiva, Melo (2001, p. 109) destaca que o construir o conceito de mapa, o que exige diferentes
“professor deve adotar ‘nova prática político- situações, nas quais um problema instigue o aluno,
pedagógica’ e não mais a posição de ‘mero desafiando suas estruturas do pensamento.
transmissor de conhecimentos’”. Considerando as
potencialidades dos educandos no processo ensino- Freire (2003, p. 56-57) confirma essa idéia
aprendizagem, a prática rotineira de “transmitir quando diz o seguinte: “O educador que, ensinando
conhecimentos” deve ser questionada e reavaliada. geografia, “castra” a curiosidade do educando em
Sabe-se que a questão teórico-metodológica, na nome da eficácia da memorização mecânica do
didática da Geografia escolar, pouco se alterou até ensino dos conteúdos, tolhe a liberdade do educando,
os dias presentes, embora alguns profissionais se a sua capacidade de aventurar-se. Não forma,
esforcem na realização de trabalhos pedagógicos domestica”.
diferenciados.
Benejam (1997, p. 41) complementa essas
Uma investigação desenvolvida por Oliveira preocupações quando afirma que, para

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A didáctica da Geografia no considera suficiente significativas por meio das quais o aluno deve ser
llegar a saber como son las cosas, como se considerado como sujeito ativo em seu processo de
distribuyen en el espacio, como ocurrieron en el formação, sendo a meta desse processo a
tiempo o porque son así; también se propone construção de um conhecimento efetivo sobre a
descubrir la intecionalidad de los hechos e organização do espaço geográfico. Benejam (1997,
plantear posibles alternativas, lo que implica p. 43) reforça que a Didática da Geografia escolar
aceptar el conflicto y propiciar la argumentación deve assumir a “la importância del contexto y estudiar
entre diversas opciones. El interes por encontrar como influye la dimensión social, temporal y espacial
políticas alternativas permite dar al alumno um em la formación del conocimiento, aceptando
papel activo, uma visión de futuro y desarrolar plenamente la interdisciplinaridad que ello supone”.
uma actitud de compromiso social y político. Este
compromiso exige particpación, de manera que Sem dúvida, há um distanciamento entre os
desde una visión crítica, la escuela debe formar conteúdos acadêmicos e os conteúdos necessários
para tomar parte de manera activa en la vida ao saber ensinado. A dificuldade metodológica para
acadêmica, en el mundo del trabajo, en las trabalhar os conceitos geográficos exige, por parte
decisiones de la comunidad y, en definitiva, en do professor, uma reflexão diária sobre como ensinar
la vida política. tais conceitos aos alunos do Ensino Fundamental e
Médio, ou seja, como fazer a transposição didática.
Dessa forma, o professor deve ser o
mediador da relação entre o aluno e o conhecimento. Consideramos, pois, ser importante a busca
Para que isso ocorra, é necessário que em sua incessante pela formação continuada – ou
formação inicial (acadêmica) lhe seja propiciada a qualificação profissional –, pois este caminho
oportunidade de construir uma visão crítica sobre a constitutivo torna possível a aquisição e o domínio
(re)organização do espaço geográfico, mínimo de conteúdos e técnicas de pesquisa,
proporcionando o domínio dos conteúdos a serem desenvolvendo a capacidade de pensar por si próprio
ensinados e a capacidade de refletir sobre sua e atuar significativamente sobre o espaço
própria prática docente, tendo em vista a vivenciado.
transposição didática.
Entendemos, no presente texto, que a
Lestegás (2000, p. 115) afirma que qualificação profissional é a aptidão dos docentes
em buscar, constantemente, novos conhecimentos
[...] a reflexão sobre o distanciamento entre os – conceituais ou procedimentais – considerados
saberes escolares e os saberes científicos requer relevantes, particularmente para o professor de
uma inversão de discussão: ao invés de partir Geografia. As grandes mudanças no mundo, em todas
das análises dos saberes científicos, [...] é as suas dimensões, de alguma maneira, repercutem
preciso remontar desde os saberes escolares até no campo de trabalho desses professores. As novas
o processo de sua reconstrução e tecnologias de comunicação da informação
institucionalização. Em conseqüência, o impactaram, de forma direta ou indireta, nos modos
conceito de cultura escolar e a consideração de educar e ensinar e, conseqüentemente, na
disciplinar da Geografia aparecem como os formação dos profissionais de todas as áreas do
pilares de um modelo mais global e potente. conhecimento. Nesse sentido, urge pensar uma
formação mais completa do profissional de
Conseqüentemente, verifica-se que os Geografia, desde a graduação (formação inicial),
saberes docentes e o saber ensinado são refletidos estendendo-a por toda a vida docente (formação
nas práticas dos professores em sala de aula. As continuada).
teorias de ensino e aprendizagem sugerem práticas

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É necessário, portanto, que o professor de sua importância para a didática da Geografia


invista em sua própria formação, que mantenha escolar.
contato com as produções científicas, libertando-se
das imposições das obras didáticas, além de escolher A transposição didática pode ser efetivada
a metodologia adequada à cada situação de ensino- com base nas experiências, nas intenções, nas
aprendizagem, preocupando-se com um saber interpretações, nas crenças e valores do professor,
ensinado em conexão constante com o saber a ser em um dado momento e em uma dada turma. Pode
ensinado e o saber científico. assumir, assim, traços inovadores na seleção de
novos conteúdos ou na abordagem de um “velho”
Qualificar-se, além de ser uma exigência das conteúdo, a partir de mudanças pessoais com relação
novas propostas educacionais, é também buscar às concepções epistemológicas, novos paradigmas
crescimento pessoal e profissional, no sentido de e/ou adaptações metodológicas, considerando a
superar as próprias limitações. interdisciplinaridade.

3 - ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Mello (2004, p. 18) defende que “uma


SOBRE A FORMAÇÃO DO PROFESSOR transposição didática bem feita permite que
DE GEOGRAFIA conhecimentos construídos em outros tempos e
espaços possam ser reconstruídos, compreendidos
Reconhece-se o quanto é importante, no e aplicados no contexto (espaço) em que aluno e
processo de construção dos conhecimentos escola estão inseridos agora (tempo)”.
geográficos, o professor saber relacionar o
conhecimento escolar e o conhecimento científico, Verificamos, enfim, que no modelo
considerando a Didática da Geografia escolar. “transpositivo” os saberes ensinados constituem-se
em uma transposição e em uma (re)elaboração dos
Vivenciamos, atualmente, uma crise saberes científicos, enquanto que o modelo
estrutural e funcional na educação que acaba por “disciplinar”
denegrir o processo educacional brasileiro. No
entanto, percebe-se que muitas das reflexões e [...] considera os saberes ensinados como
produções sobre a construção do conhecimento se criações originais da escola, cujas relações com
restringem a alguns profissionais, os quais estão os saberes científicos homônimos, se existem,
ligados diretamente à academia. Isso demonstra que são muito remotas, por ter sido profundamente
essas teorias necessitam serem implementadas no transformados para responder as finalidades que
âmbito da educação básica, especificamente na a sociedade atribui às instituições escolares
Geografia escolar, que tem a responsabilidade de (LESTEGÁS, 2000. p. 110).
formar cidadãos capazes de compreender as
complexidades sócio-econômicas que implicam na O saber geográfico a ser ensinado necessita,
construção do espaço geográfico. portanto, de profundas discussões tanto de natureza
epistemológica como de debates político-ideológicos,
O modelo transpositivo, direta ou uma vez que não há um saber científico único, mas
indiretamente, acontece na prática docente. A uma multiplicidade de saberes, correspondente às
ocorrência desse modelo se apresenta como uma diversidades de problemas e enfoques.
(re)elaboração pessoal do professor ao confrontar-
se com a ação de transformar em ensino o conteúdo Ressaltamos, com esse estudo, a
aprendido durante o seu processo de formação. Vale importância da formação continuada. Com a
ressaltar que, muitas vezes, ao realizar esse modelo atualização de seus conhecimentos, o professor se
transpositivo, o professor o faz sem a consciência depara com as diversidades de concepções, de

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paradigmas e/ou ideologias relativas ao ensino de LESTEGÁS, F. R. Concebir la geografia escolar


sua disciplina. Esse profissional da educação, por desde uma nueva perspectiva: uma discipina al
conseguinte, consegue fazer uma reflexão crítica servicio de la cultura escolar. Boletim de la A.G.E.
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é a geografia que a gente ensina. Geo UFRJ – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.
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Geografia em sala de aula: práticas e reflexões. Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade
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geográfico escolar: de la ciencia geográfica e la
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Didática de lãs Ciências Sociales, Geografia e
Historia. n. 24, ano VII, abr. 2000.

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