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PARA FAZER HISTORIA


A IE 1\L

Danald Worster

ntigamente a disciplina da história Eles sabiam o que era importante, ou pen­


inha uma tarefa no cômputo geral savam saber.
mais fácil. Todo o mundo sabia que o Mas há algum tempo esse conceito da
único assunto importante era a política e história como a "política do passado" co­
que o único campo digno de interesse era meçou a perder terreno, na medida em que
o Estado nacional. Esperava-se que o his­ o mundo evoluía para um ponto de vista
toriador investigasse os conchavos de pre­ mais global e, diriam alguns, mais demo­
sidentes e primeiros-ministros, a tramita­ crático. Os historiadores começaram a per­
ção de leis, as lutas entre os tribunais e os der um pouco da sua certeza de que o
corpos legislativos e as negociações dos passado tivesse sido tão integralmente con­
diplomatas. Esta velha história, tão cheia trolado ou representado por alguns poucos
de certezas, na verdade não era tão antiga grandes homens ocupantes de cargos de
assim -tinha apenas cem anos de idade, no poder nacional. Os estudiosos começaram
máximo duzentos. Ela emergiu juntamen­ a desenterrar camadas longamentesubmer­
te com o poder e a influência do Estado sas, as vidas e os pensamentos das pessoas
nacional e alcançou um máximo de aceita­ comuns, e tentaram reconceituar a história
ção no século XIX e i1úcio do século XX. "de baixo para cima", Precisamos descer,
Freqüentemente seus praticantes eram ho­ ir mais fundo, diziam eles, até atinginnos
mens com fortes sentimentos nacionalis­ as camadas ocultas da classe, do gênero, da
tas, levados por motivações patrióticas a raça c da casla. Aí enconlranamos o que
reconstituir a ascensão dos seus respecti­ realmente deu fonna às camadas superfi­
vos países, a formação de lideranças polí­ ciais da política. Agora chega um novo
ticas dentro deles, e as rivalidades com grupo de rcfonnadores, os historiadores
outros estados, na busca de riqueza e poder. ambientais, que insistem em dizer que 1\'-

NOIQ: Elite texto foi traduzido por José Augusto Drummond do original "Doing mvi,onmental history", exl'lido de
Donald WOfSler, cd., Tltunds O/lhe. Earlh -paspectivc 0tI moJan em';ronme.nllu hwory (Cambridge, Cambridge
Uru\lersily Press, 1988), p. 289·307.

Estudos Históricos, Rio de Janeiro, \101. 4, n. 8. 1991, p. 198·215


PARA FAZER HISTÓRIA AMBIENTAL 199

mOS de ir ainda mais fundo} até encontrar­ A história ambiental é, em resumo} par­
moS a própria lerra} entendida como um te de um esforço revisionista pam tomar a

agente e uma presença na história. Ai des­ disciplipa da história muito mais inclusiva
cobriremos forças ainda mais fundamentais nas suas na rrntivas do que ela tem tmdicio­
atuando sobre o tempo. E pam apreciar nalmente sido. Acima de tudo, a história
essas forças, devemos de vez em qua ndo ambiental rejeita a premissa convencional
deixar os parlamentos, as salas de pa no e as de que a experiência humana se desenvol­
fábricas, abrir todas as ponas e vagar pelos veu sem restrições natumis, de que os hu­
. '

campos e florestas, ao ar livre. Chegou a manos são uma espécie distinta e "super­
hom de compmrmos um par de sapatos natural", de que as conseqüências ecológi­
resistentes pam caminhadas, e não podere­ cas dos seus feitos passados podem ser
mos evitar sujá-Iós com a lama dos cami­ ignomdas. A velha história não poderia
nhos. negar que vivemos neste planeta há muito
Por enquanto, essa ampliação da pers­ tempo, mas, pãr desconsiderar quase sem­
pectiva da história de modo a incluir um pre esse falo} portou-se como se nâo tivés­
conjunto mais profundo e diversir.cado de semos sido e nâo fôssemos realmente parte
assuntos não desar.ou a primazia do Esta· do planeta. Os historiadores ambientais,
·do nacional como território legítimo do por outro lado, percebemm que não pode­
historiador. A história social, a história mos mais nos dar ao luxo de sennos tâo
Iflocentes.

econômica e a história cultuml ainda são


geralmente feitas dentro de fronteims na­ A idéia de uma história ambiental co­
cionais. Num gmu realmente extmordiná­ meçou a surgir na década de 1970, à medi­
rio no ãmbito das disciplinas acadêmicas, da que se sucediam conferências sobre a
a história (ao menos nos tempos mais re­ crise global e cresciam os movimentos
centes) tem se 'inclinado a permanecer o ambienta listas entre os cidadãos de vários
estudo illsular dos EUA, do Brnsil, da países. Em outrns palavrns, ela nasceu nu­
Fmnça e assim por diante. Essa forma de ma época de reavaliação e reforma cultu­
organizar o passado tem a vil1ude inegável ml, em escala mundial. A história não foi
de preservarum simulacro de ordem diante a única disciplina afetada por essa maré
de um caos ameaçador-é uma maneim de 1ll0nL1nte de preocupação pública: o tmba­
sintetizar todas as camadas e forças. Mas lho acadêmico nas áreas de direito, moso­
ao mesmo tempo ela pode criar obstáculos fia, economia, sociologia e outms foi igual­
- .
pam novas pesquIsas que nao se encaIxam
,
mente sensível a esse movimento. Muito
dentro de fronteims nacionais, como é o tempo depois que o interesse popular pelos
caso da história ambiental. Muitas das temas ambientais chegou ao máximo e
questões desse novo campo desar.am uma começou a decair, conforme as questões se
nacionalidade estreita: os deslocamentos tomavam cada vez mais complicadas, sem
dos nômades tuareglJes no Sahel Africano, soluções fáceis, o interesse acadêmico
por exemplo, ou a perseguição das gm ndes continuou a crescer e a assumir uma sofis­
baleias atmvés dos oceanos de todo o mun­ ticação cada vez maior. A história ambien­
do. É verdade que outros temas ambien­ tai nasceu ponamo de um objetivo moml,
tais se desenvolvemm estritamente dentro tendo por trás fones compromissos políti­
do quadro da política de uma única nação, cos, mas, à medida que amadureceu, trans­
como se pode ver em alguns dos anigos fonnou-se também num empreendimento
desta coletânea. Mas nem todos o fizemm acadêmico que não tinha uma simples ou
e, na história que será escrita no futuro, única agenda moral ou política pam pro­
cada vez menos o farão. mover. Seu objetivo principal' se tornou
200 ES11JDOS IiISTORICOS -1991J1

aprofundar o nosso entendimento de como dos sobre a vida rural na França e Febvre
4
os seres humanos foram, através dos tem­ nos seus textos de geografia sociaJ. Fer­
pos. afetados pelo seu ambiente natural e. nand Braudel prolégé de Febvre. também
.

inversamente, como eles afetaram esse faria do ambiente uma parte preeminente
ambiente e com que resultados. dos seus estudos históricos. especialmente
Um dos mais produtivos centros da no­ na sua gmnde obra sobre o Mediterrâneo.
va história tem sido os EUA. fato que sem Pam Braudel, o ambiente eram as fonnas
dúvida se explica pela força da lidemnça da terra - montanhas, plarucies, mares -,
norte-americana em questões ambientais. um elemento quase fora do tempo agindo
A primeim tentativa de defi,úr esse novo na 1I10ldagem da vida humana nos proces­
campo foi o ensaio de Roderick Nash. sos de longa duração (longue durée). Ele
intitulado "The state of environmenta I his­ sustentou que havia mais na história do que
t
tory" [A situação da lústória ambiental). a sucessão de fatos das vidas individuais;
Nash recomendava que encarnssemos toda n� escala mais ampla, havia a história viSL1
a paisagem ao nosso redor como um tipo do ângulo superior da natureza. uma histó­
. de documento histórico sobre o qual os ria "na qual toda mudança é lenta. uma
norte-americanos vêm escrevendo a res­ história de repetição constante, de ciclos
S
peito de si mesmos e dos seus ideais. Ma is sempre recorrentes". .
recentemente, um esforço abrangente de Tal como os historiadores da fronteira
Richard White de tmçar o desenvolvimen­ JloJ1e�americanos. os integrantes do grupo
to da história ambiental reconhece o valor dos AI/notes na França tiveram o seu inte­
do trabalho pioneiro de Nash e de Samuel resse pelo ambiente revigorado pelos mo­
P. Hays. historiador do movimento conser­ vimentos populares da década de 1960 e
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vacionista, mas também sugere que eles dos primeiros anos da década seguinte.
tiveram antecessores na escola historiográ­ Em 1974 saiu uma edição especial dos
fica norte-americana dedicada ao estudo Anna/es dedicada a "Histoire et environne­
da fronteira e do oeste (dentre esses estu­ ment". No curto prefácio. Emmanuel Le
diosos atentos ao ambiente estariam Fre­ Roy Ladurie, ele próprio um dos ma is no­
derick Jackson Tumer. Walter PrescolI táveis pmticantes da história ambiental.
3
Webb e James Malin). Essas raízes mais assim descrevia o programa desse campo
antigas foram sendo cada vez mais relem­ de estudo:
bradas à medida que os historiadores am­
bientais ultrapassaram a politica conserva­ A história ambiental reúne os temas
ciOlústa de Hays e a história intelectual de

maiS antigos com os maiS recentes na


• •

Nash pam tratar das mudanças ambientais historiagrafia contemporânea: a evo­


propriamente ditas C, de novo, considerar lução das epidemias e do clima. ambos
o papel do ambiente· na fonnaç:io da socie­ os fatores sendo partes integrantes do
dade norte- americana. ecossistema humano; a série de cala­
Outro centro inovador tem sido a Fran­ midades naturais agrnvada por uma
ça. especialmente os historiadores ligados f:lHa de antevisão, ou mesmo por uma
à revista Anna/es, que há décadas vêm absurda "disposição" dos colonizado­
chamando a atenção pam o ambiente. A res simplórios; a destruição da Nature­
revista foi fundada em 1929 por dois pro­ za, caus ada pelo crcscinlento
fessores da Universidade de Strasbourg. populacional elou pelos predadores do
Marc Bloch e Lucien Febvre. Ambos es­ hipcrconsumo industrial; as mazelas
tavam interessados nos rundamentos am­ de origem urbana e industrial, que le­
bientais da sociedade. Bloch em seus estu - vam à poluição do ar e da água; o
PARA FAZER JUS'TÓRIA AMBIFNTAL 201

congestionamento humano ou os altos mos patogênicos são também parte do reino


níveis de ruído nas :ireas urbanas, num da vida, e eles continuam a ter um papel
6
penodo de urbanização galopante. decisivo no nosso destino, apesar da eficá­
cia da medicina.
Negando que essa nova hist6ria Cosse Em tennos bem simples, portanto, a
apenas uma moda passageira, Le Roy La­ história ambiental trnta do papel e do lugar
durie afmnava que as pesquisas na verdade da natureza na vida humana. Há um con­
vinham se desenvolvendo há muito tempo senso de que "natureza" designa o mundo
como parte de um movimento em direção não-humano, o mundo que nós não críamos
à "histoire écologique". originalmente. O "ambiente social", o ce­
De fato, boa parte do mate.rial da hist6ria nário no qual os humanos interagem u.ns
ambiental esLá disponível há gerações, tal­ com os outros na ausência da natureza, fica
vez há séculos, e agora esLá sendo apenas portanto excluído. Excluído também fica o
reorganizado à luz das experiências recen­ ambiente construído ou fabricado, aquele
tes. Esse materia I inclui dados sobre marés conjunto de coisas Ceitas pelos homens e
e ventos, correntes oceânicas, posição dos que podem ser tão ubíquas a ponto de Cor­
continentes em relação uns aos outros, for­ marem tomo deles uma espécie de "segun­
ças geol6gicas e hidrol6gicas que criaram da natureza". Esta última exclusão'poderá
as nossas bases terrestres e aquáticas. In­ parecer especialmente aroitrária, e até certo
clui também a hist6ria do clima e das con­ ponto isso é verdade. Cada vez mais, à
dições meteorol6gicas, e em que medida medida quea vontade hu mana deixa as suas
eles possibilitarnm colheitas boas ou ruins, ma"."s na floresta, nos patrimônios genéti­
cos, no gelo da calota polar, pode parecer

empurraram os preços para Cima ou parn


baixo, puseram fim ou iniciaram epide­ que não há diferença entre "natureza" e
mias, contribuíram para o crescimento ou a "artefato". Não obstante, vale a pena con­
dirrúnuição da população. Essas influên­ servar essa distinção, pois ela nos lembra
cias têm sido poderosas ao longo do curso que há forças diferentes opemndo no mun­
da hist6ria, e continuam a sê-lo, como do e que nem todas elas nascem dos huma­
quando os grnndes terremotos destróem ci­ nos; algurnas delas são espontãneas e auto­
dades inteiras, ou as grandes Comes se se­ geradas. O ambiente construído expressa a
guem às secas, ou OS rios detenninam o cultura. O seu estudo já progrediu bastante
fluxo de ocupação de um território. O Cato com a história da arquitelura, da tecnologia
de essas influências persistirem nos fins do e da cidade. Mas quando lidamos com
século XX prova como ainda estamos lon­ fenômenos tais como as florestas ou o ciclo
ge de controlar o ambiente ao nosso bel hidrológico, estamos diante de energias au­
prazer. Numa categoria um tanto distinta tônornas que não derivam de nós. Essas
estão aqueles recursos vivos da terra, que o forças interferem na vida humana, estimu­
ecologista George WoodweU considera os lando algumas reações, algumas defesas,
mais importantes de todos: as plantas e os algumas ambições. Assim, quando ultra­
animais (e poderíamos aClescentar o solo, passamos o mundo auto-refletido da huma­
como um organismo coletivo) que, nas pa­ nidade e chegamos à esfera não-humana, a
lavras de Woodwell, "conservam a biosfera história ambiental encontra o seu principal
'
como um habitat propício à vida". Esses tema de estudo.
recursos vivos se mostraram muito mais Há três níveis em que a nova história
suscetíveis à manipulação humana do que Cunciona, três conjuntos de questões que
os recursos abióticos, e hoje isso é mais ela enfrenta (embom não necessa riamente
verdadeiro do que nunca. Mas os organis- na mesma pesquisa), trés grupos de per-
202 ESl1JIJOS IIISTÓRICOS - 199118

guntas que ela procura responder, cada um paro efeito de clareza, distinguir esses três
deles exigindo contribuições de outras dis­ ,úveis de estudo ambiental, eles d e fato
ciplinas e aplicando métodos especiais de constituem uma investigação única e dinâ­
análise. O primeiro trata do entendimento mica, na qual natureza, organização social
da natureza propriamente dita, lal como se c econômica, pensamento e desejo são tra­
organizou e funcionou no passado; incluí­ wdos como um todo. E esse todo muda
mos aí tanto os aspectos orgânicos quanto conronne mudam a natureza e as pessoas,
inorgânicos da natureza, inclusive o orga­ numa dialética que atravessa todo o passa­
nismo humano, que tcm sido um elo nas do e chega até o presente.
cadeias alimentares da natureza, atuando Em tennos gerais, este é o programa da
ora como útero, ora como estômago, 01(1 nova história ambiental. Ele abrange uma
como devorado f, ora como devoTm.lo, ora grande variedade de assuntos, familiares e
como hospedeiro de microorganismos,ora estranhos, ao invés de engendrar alguma
como uma espécie de pamsita. O segundo nova e esotérica esp.ecia lidade, Esperamos
nível da história ambiental introduz o do­ que dessa síntese possam surgir novas per­
mínio sócio-econômico na medida em que gunL1s e respostas.
este interage com o ambiente. Aqui nos
preocupamos com femlmcntas e trabalho,
com as relações sociais que brotam desse
trnbalho, com os diversos modos que os
povos criaram de produzir bens a partir de Ambientes naturais do passado
recursos naturais. Uma comunidade orga­
nizada para pescar no mar pode ter institu i­ O historiador ambiental, além de fazer
çóes, papéis de gênero ou ritmos sazonais <llgumas pergunws novas,precisa aprender
muito distintos dos de um povo que se a falar algumas línguas novas. Sem dúvi­
dedica a criar ovelhas em pastagens n:IS da, a mais estranha dessas línguas é a dos
altas montanhas. O poder de tomar deci­ cielltistas naturais. Cheia de números,leis,
sões, inclusive as que afeL1m o ambiente, tenninologias e experiências, essa língua é
raramente se distribui de fonna igualitária tão estmnha pard o historiador quanto o

por uma sociedade, de modo que descobrir chinês foi para Marco Polo. No entanto,
as configurações do poder faz parte desse mesmo que se possua apenas fragmentos
nível de análise. Por fim, fonnando um do seu vocabulário, quantos tesouros estão
terceiro IÚvel de análise para o historiador, aí par..! serem entendidos e levados pam
vem aquele tipo de imemção mflis intilngí­ casa! Conceitos de geologia, que razem
vel e exclusivamente humano, pummelltc nossas noções de história recuar até o
mental ou intelectual, no qual percepções, Plcistoceno, ° Siluriano,o Pré-Cambriano.
valores éticos, leis, mitos e outras estrutu­ Grá ricos dê! climatologia, nos quais as tem­
ras de signifiC"dção se tomam parte do düí­ peraturas e as chuvas oscilam par.! cinla e
logo de um indivíduo ou de um grupo com para baixo atmvés dos séculos, indiferen­
a natureza. As pessoas estão coltstante­ tes à estabilidade de reis e impérios. A
mente ocupadas em construir mapas do química dos solos, com os seus ciclos de
mundo ao seu redor, em definir o que é um carbono e nitrogênio e os seus índices de
detenrunado recurso, em detenninar que pH mudando com a presença d e sais e
tipos de comportamento podem ser am­ ácidos, traçando os limites da agricultura.
bienta Imente destrutivos e devem ser proi­ Qualquer desses dados pode ser uma fer­
bidos - de modo lllélÍS gemI. em 'escolher rtllncnta nova e poderosa para o estudo do
os fins das suas vidas, Embom possamos, desenvolvimento das civilizações. No seu
l'AR/\. FAZER I nSTóR1A AMB1F.NTAI_ 203

conjunto, as ciências natumis silO illslru­ gleses e os colonos norte-americanos em


mentos indispensáveis pam o historiador tomo das terras do Kentucky, que tiveram
ambiental, que precisa sempre começar papel crucial na expansão para o oeste. Os
com a reconstrução de paisagens do passa­ taquarais - canebrakes - existentes nas
do, verificando como eram e como funcio­ margens dos rios do Kentuclcy repre­
navam antes que as sociedades humanas as sentavam uma barreira formidável a qual­
penetrassem e modificassem. quer colonização agrícola. No entanto, pa­
Mas é acima de tudo a ecologia, que ra sorte dos colonos norte-americanos,
. .
Iflvestlga as Interaçoes elltre os orgamsmos quando esses caniços eram queimados,
. - .

e entre estes e os seus ambientes rísicos, pastados ou roçados, em seu lugar nascia
quem mais pode ajudar o historiador am­ um;1 gnllna ch;lJnada IJluegrass. E essa
bientaI. Isto se explica em parte porque, gmma era tudo o que poderia desejar um
desde Charles Oarwin, a ecologia se preo­ fazendeiro em busca de terras e de pasto
cupa tanto com intemçõcs p<lsS<ldas quanto pam os seus 'lIlimais. Os fazendeiros nor­
presentes; ela tem sido parte rUllllamcntal te-americanos invadiram o Kentucky aos
do estudo da evolução. Igualmente impor­ milhares, e em breve a luta pela região
tante é o fato de que a ecologia se preocupa tenninou. "O que teria acomecido", per­
visceralmente com a origem, a dispers.io e guntava Leopold, "se a sucessão vegetal
a organza
i ção natural nessa terra escura e úmida, sob o
plantas fonnam, de longe, a maior parte da impacto dess.1s forças, tivesse nos dado
g
biomassa existente 110 pia nctil. Em lothl iI a I!:,rtlm olpim,lIrbuSIO ou erva sem valor?',
sua história a humanidade tem dependido Teria o Kentucky se tomado uma proprie­
crucialmente das pl3lllilS, parti ;i1imcntn, dade norte-americana, da maneira e na
remédio, material de cunstruçno, habitat de época em que se tomou'!
animais de caça e escudo contra o restante Pouco depois de Leopold propor essa
da natureza. As plantas têm sido, quase fusão de história e ecologia, o historiador
invariavelmente. aliadas dos humanos na lames Malin, do Kansas, publicou uma
luta para sobreviver e prosperar. Assim, série de ensaios que apontavam para o que
quando homens e plantas se ellconlr.lln, ele chamou de "uma revisão ecológica da
nascem mais temas de hislóri:! Hmbiental história dos EUA". Ele se interessava
do que em qualquer outrtl circunstância. especialmente em estudar os grandes cam­
Sem o conhecimento ecológico da vegeta­ pos (grasslands) de sua terra naL11 e o
ção, a história 3mbienttll perde os seus problema de adaptação que eles trouxeram
alicerces, a sua coerência. o seu primeiro para os americanos, tal como já haviam
passo. tnJzido a nlos pa ra os indígenas. A partir do
Alguns pesquisadores se imprcssiona­ I1nal do século XIX, os colonos brancos,
rum tanto com esse rato que dizem praticar egressos de uma região mais úmida e co­
não a história ambiental, mas a "história berta de norestas, tentaram criar uma agri­
ecológica" ou a "ecologia histórica". Com cultura estável nas planuras secas e sem
isso eles querem insistir numa aliança mais árvores, mas só obtiveram resultados mis­
estreita com a ciência. Há alguns anos o tos. Malin se impressionou com o fato de
cientista natural e conservacionista Aldo que eles afinal conseguirdln transfonnar a
Leopold projetou essa aliança quando fa­ terra em prósperas fazendas de trigo, mas
lou de "uma interpretaçno ecológica da nno sem antes serem forçados a desapren­
história". Seu próprio exem[110 do que der muiuls das suas antigas técnicas agri­
seria isso dizia respeito à competição entre colas. IIl",atisreito com a história tradicio­
os índios, os comerciantes rrnnccses c ill- nal, que não dava qualquer importãncia a
204 EStuDOS HlSTORlros - 1991J11

questões mmo essa, Malin se desmbriu tégia que promete mais para os historiado­
lendo os textos de ecologistas, em busca res que desejam um entendimento conjun­
das perguntas certas. Ele os leu mm certa to dos humanos e da natureza.
liberdade, mais mmo uma fonte de inspi­ Quando organismos de muitas espécies
ração do que como um conjunto de mode­ se reúnem, eles formam mmuJÚdades de
los rígidos. "O ponto de vista ecológim", composição geralmente bastante diversifi­
acreditava ele, é valioso para o estudo da
" cada, ou, como se diz boje mais comumen­
hist6ria, não sob a ilusão de que assim a te, ecossistemas. Um ecossistema é a mais
história poderá se converter numa ciência, ampla generalização feita na ciência, com­
mas apenas como uma maneira de ver o plccndendo tanto os elementos orgânicos
objeto e os processos da história".9 como inorgâJÚcos da natureza reunidos
Essas alianças foram propostas há cerca num único local, todos em relação ativa e

de 30 ou 40 anos. Desde então, à medida recíproca. Alguns ecossistemas são rela-
que a ecologia se transformou numa ciên­ tivamente pequenos e facilmente demarcá·
cia mais rigorosamente matemática, com veis, tal como um lago na Nova Inglaterra,
modelos dos processos naturais muito enquanto outros são enormes e mal defini­
mais elaborados, as alianças informais dos, do tamanho da floresta amazônica ou
propostas seja por Leopold, seja por MaIin da plaJÚcie do Serengeti, ou mesmo da terra
deixaram de parecer adequadas. Os histo­ toda. Todos esses ecossistemas são geral­
riadores ambientais têm tido que aprender mente descritos, numa linguagem extraída
a ler num JÚvel mais avançado, embora em grande parte da mecânica e da ciberné­
ainda se vejam diante do problema de Ma­ tica, como auto-{!quilibrados, como uma
Iin de decidir o quão científica sua história máquina que funciona automaticamente,
precisa ser e que conceitos da ciência po­ conferindo-se para verificar se a tempera­
dem ou devem ser adotados. tura nâo sobe demais, acelerando-se quan­
A ecologia contemporânea oferece vá­ do perde velocidade e começa a bater pino.
rios ângulos para entender os organismos Fatores externos podem perturbar esse
em seus ambientes, e todos esses ângulos equilíbrio, tirando a máquina temporaria­
têm seus limites e suas aplicaçoes na his­ mente do seu ritmo regular, mas sempre (ou
tória. Pode-se, por exemplo, examinar o quase sempre) ela volta a algum tipo de
organismo individual e a sua reação às funcionamento estável. O número de espé­
mndições externas. Em outras palavras, cies que forma um ecossistema flutua em­
pode-se estudar a adaptaçao em termos de tomo de um JÚvel determinável; o fluxo de
uma fISiologia individual. Pode-se tam­ energia através da máquina se mantém
bém acompanhar as flutuações <lo tama­ constante. Ao ecologista interessa ver ca­
nho de uma população vegetal ou animal ma tais sistemas continuam a funcionar em
numa área, as Sllas taxas de reprodução, o meio a perturbações contínuas, e como e
seu sucesso ou fracasso em termos evolu­ por que eles entram em mlapso.
tivos, suas ramificações econômicas. Em­ Mas nesse ponto exato há uma dificul­
bora esses dois tipos de pesquisa possa m dade sobre a qual a ciência da emlogia nâo
ter considerável significado prático para a conseguiu chegar a um consenso claro.
sociedade humana, há uma terceira estra- Qual o grau de estabilidade desses ecossis-

• O palavrmdoderiVlldodo elhadodoa ".i�emu" podue 101ll&J' mialificada echcio de ,iar"d


- . OA_kcM HerilOlcD�tiott..,
defineliJtc:ma "'Um pupo de demenlOl em interlçio. inter"'fc:l,çio ou intndcpendêucit., que forma, ou que parece formar,
.nTl()

e, então, falar deaistema. na nalureu, na tc:cnolQ&i.. na a:oocmi.. ou nopm


uma entidadecoletilt1l". Pode... ........ loe na NNn.
E tode» tI.CI listem.. podem, por lUa vez.. Itt encerab COono alando em intttaçio .iltêmica. chepndo-.e ... im I \m'
c:ompla:idadequeembualha a mente.
PARA FAZER HJSTORIA AMBlENTAL 205

temas narurais e qual o grau de sua susce­ Até recentemente a maior autoridade na
tibilidade a perturbações? Será correto ciência dos ecossistemas foi Eugene
descrevê-los como equilibrados e estáveis Odum, através das várias ediçõcs do seu
antes da chegada dos humanos? Se for cOlthecido livro FUlldomellial of ecology
correto, então qual é o ponto a partir do ! Fundamentos da ecologial.tO Odum é um
qual se pode considerar uma mudança no imbatível partidário dos sistemas, alguém
seu equilíbrio como excessiva, danosa ou que vê todo o reino da natureza hierarqui­
destruidora? É bem fácil definir o dano camente organizado em sistemas e subsis­
sofrido por u m organismo individual: um temas, todos eles compostos por partes que
problema de saúdeou, em última instância, funcionam harmoniosa e homeostatica­
a morte. Da mesma fonna. não é muito mente, cada um deles com um ritmo que
difícil identificar o dano sofrido por uma mais se parece com o daquela natureza-re­
população quando ela decai visivelmente. lógio do século XVIII, que não falhava
Mas os danos sofridos por um ecossistema num único tique ou taq uc. Essa versão
são um assunto mais controvertido. Nin­ anterior da natureza revelaria a mão do seu
guém negaria que a morte de todas as criador divillo; a versão de Odum, em con­
áIVOres, aves e insetos significaria a morte traste, é a do trabalho espontâneo da natu­
de um ecossistema de floresta tropical reza. Mas cada vez mais os ecologistas
úmida, ou que a drenagem de um lago estão se afastando desse quadro de ordem
poria fim ao seu ecossistema. Mas muitas de Odum. Liderados por paleoecologistas,
mudanças são menos catastróficas, e não especialmente paleobotânicos, que cole­
existe um método simples de medir o grau tam amostras das turfeirase tentam recons­
de prejuízo em cada caso. truir, através da análise dos pólens, os an­
A dificuldade de definir os danos sofri­ tigos ambientes naturais, eles vâo chegan­
dos por um ecossistema se aplica a mudan­ do à conclllsão de que a visão de Odum é
ças cansadas tanto pelos homens quanto um tanto estática. Levando as suas inves­
por forças não-huma""s. Uma tribo da tigaçõcs até a Era Glacial e épocas ainda
América do Sul, por exemplo, pode abrir mais antigas, eles têm descoberto muita
uma pequena clareint na mala com os seus desordem e disrupção na natureza. Abs­
facões, plantar algumas colheitas e depois traídos do tempo, dizem esses criticos, os
deixar que a floresta reconquiste a clareira. ecossistemas podem ter uma confortadora
Essa agricultura, chamada itinerante ou de aparência de estabilidade; mas no mundo
coivara, tem sido geralmente considernda real, histórico, eles são mais alterados do
não�prejudicial ao ecossistema como um que inalteráveis, mais mutames do que
lodo; com o tempo, o equilJbrio é reswbe­ estáveis.
lecido. Mas em algum momento, à medida Essa diferença de opiniâo científica se
que se intensifica esse tipo de Hgricultum, refere em parte a provas e em parte a pontos
a capacidade regenerativa da Iloresla é afe­ de vista, tal como uma discllssão sobre se
tada pennanenlemel1te, e o ecossistema é um copo está meio cheio ou meio vazio. Se
prejudicado. Que momento é esse? Os o observador recuar o bastante e se colocar
ecologistas nâo têm certC7..l1 e não podem no espaço exterior (como tentou fazer, com
dar respostas exatas. Por isso o historiador muita imaginação, o cientista inglês James
ecológico acaba preferindo dizer que os

Lovelock), o planeta ainda parecerá um
homens provocam "mudanças" no am- lugar notavelmente estável, com organis­
bienre -pois "mudanças" é um termo neu­ mos que há mais de um bilhão de anos
tro e incontroverso - e não "danos", um mantêm condições altamente adequadas à
conceito muito mais problemático. vida: todõs os gases atmosféricos estão

206 ESnJDOS HlSTÓIUCOS -1991/11

bem ajustad05, a água doa: e os solos ricos


existem em abundância, ainda que a evo­ Modos humanos de produção
lução avance inintenuptamente, glacia­
ções se sucedam, continentes se deslo­ Nada distingue os humanoS das demais
quem em todas as direções. A um olho criaturas mais agodamente do que o fato de
cósmico pode ser que as coisas pa�m serem eles criadores de cultura. No entan­
assim. No entanto, visto de perto, o mundo to, O que vem a ser cultura precisamente, é
orgânico pode ter um aspecto muito dife­ impossível dizer. lU literalmente dezenas
rente. Ao pelcorrer um hectare qualquer de definições. De forma p.reliminar, pode­
da América Norte e contemplar os seus se dizer que as definições tendem a se divi­
últimos mil anos, mais ou menos, ou mes­ dir entre as que incluem tanto as atividades
mo uma IÍnica década, a conclusão a que Ilentais como materiais e as que enfatiam
os ecologistas vêm chegando nos dias apenas as atividades mentais, e tambémque
atuais é mudança, mudança e mudança. essas distinções entre Ihtntal e material
Há ainda outro problema não resolvido collespondem ao segundo e ao terceiro ní­
nessa tradução da ecologia para a história. veis de análise da POSSa lustória ambiental.
Poucos cientistas encarn ram os homens ou Nesta seção quero discutir a cultura mate­
as sociedades como partes integrantes dos rial de uma sociedade, as suas implicações
seus ecossistemas. Eles preferem deixá­ para a organização social e a sua interação
los de fora, como digleAAões ou fatores com o ambiente natural.
imponderáveis. Mas os homens são o Em todo e qualquer .lugar, a natureza
principal objeto de estudo dos historiado­ ofen:.:e aos humanos que ali vivem um
res; conseqüentemente, a tarefa dos histo­ conjunto flexível, mas limitado, de possibi­
riadores é juntar o que os cientistas separa­ lidades de se ma1!lerem vivos. Vejamos um
ram. caso exilemo: os esquimós das regiões p0-
Os seres humanos participam dos ecos­ lares do norte não podem ter a esperança de
sistemas tanto como oIgllnismos biológi­ virar fazendeiros. Ao invés disso, eles en-
,

cos aparentados com outros oIgllnismos genhosamente elaboraram uma forma de


quanto como portadores de cultura, embo­ subsistir que não depende de sementes, ara­
ra raramente a distinção entre os dois pa­ dos e animais de tração, comuns em latitu­
péis seja precisa. Aqui basta lembrar que, des mais quentes. Vuaram caçadores. AS
como oIgllnismos, os seres humanos nunca suas opções alimentares se concentraram
conseguiram viver num isolamento es­ na caçada ao canbu nas tundras, na perse­
plêndido, inwlnerável. Eles se reprodu­ guição de baleias-broncas por entre blocos
zem, é claro, como outras espécies, e os flutuantes de gelo, na coleta de frutinhas na
seus Iilhti< sobrevivem ou morremdeacor­ primavera e na pesca com lIJláo. Por mais
do com a qualidade do alimento, do ar, da estreitas que sejam essas possibilidades,
água, e com a quantidade de microoIgllnis­ elas são um dom tanto da tecnologia quanto
mos que constantemente penetram os seus da natureza. A tecnologia é a aplicação de
COlpos. Dessas formas e de outras, os seres habilidades e conhecilIlentos l exploração
bumanos têm sido parte inseparável da do ambiente. Entre os esquimós a tecnolo­
ordem ecológica do planeta. Portanto, gia tem se limitado tradicionalmente a an­
qualquer reconstrução dos ambientes do zóis, arpões, trenós e coisas desse tipo.
passado tem que incluir não apenas flores­ Emhora a natureza lhes crie restrições, essa
tas e desertos, jibóias e cascavéis, mas tecnologia ainda assim lhes abriu possibili­
também o animal humano e o seu sucesso dades alimentares que de outra forma não
ou fn>Clsso no ato de se reproduzir. se materializariam, como quando a canoa
PARA FAZER HISTÓRIA AMBIENTAL 207

feita rom rouro de fOCAs lhe< pennitiu se mo se tivessem o seu próprio tipo de "sis­
aventurar mais longe 00 mar perseguindo temas culturais" que se interligam com os
�uas presas. Os esquimós de hoje, invadi­ ecossistemas apenas em casos muito raros
dos como estão pelos instnunentos de cul­ e isolados? Ou, para tornar a questão ainda
turas materialmente mais avançadas, têm mais complicada, será que os humanos
ainda mais oportunidades ao seu dispor, se criam com a sua tecoologia uma série de
quiserem, podem importar trigo e laranjas, erossiste1D3S novos, artificiais-um arrozal
que vilão da Califomia num avião de carga . na Indonésia ou uma floresta cuidadosa­
E podem esquecer romo eram as suas op­ mente administrada na Alemanha - que
ções anteriores, abrir mão do seu caráter requerem supervisão humana permanente?
úniro, da sua independência de espírito, da É claro que não existe um conjunto único
sua intimidade com o mundo do gelo. ou coll'õistente de respostas para tais per­
Glande parte da bistória ambiental se dedi­ guntas. Mas os antropólogos, que estão
ca justamente a examinar essas mudanças, entre os observadores mais abrangentes e
voluntárias ou forçadas, nos modos de sub­ teoricamente conscientes do comporta­
sistência e as suas implicações para as pes­ mento humaoo, podem nos oferecer visões
soas e para a terra. instigantes.
À medida que os bistoriadores enfren­ A reflexão antropológica sobre essas
tam essas questões elementares referentes questões começou ainda no século X1X,
a ferramentas e sobrevivência, logo peice­ mas foi especialmente nas últimas três ou
bem que aqui também outras disciplinas quatro décadas que surgiu uma esrola ec0-
andaram trabalhando, e há muito tempo. lógica (sem um currículo definido, e com
Entre elas está a disciplina dos antropólo­ rótulos coollitivos tais como ecologia cul­
gos, cujos trabalhos os bistoriadores am­ tural, crologia humana, antropologia ec0-
bientais têm lido com grande interesse. Eles lógica e materialismo cultural). O melhor
romeçararn a procurar nos antropólogos guia para esse tipo de literatura é provavel­
chaves para pontos cruciais do qucbra-ca­ mente The ecological transition, de 1000
beças crológico: qual a melhor maneira de Bennell, emhora haja outras revisões úteis
compreender a relação das culturas mate­ escritas por Ernflio Mora0, Roy EUeo, Ro­
11
riais humanas com a natureza? A tecnolo­ bert Netting e outros. Bennell define a
gia deve ser entendida como parte integran­ escola crológica como o estudo de "como
te do mundo natural, algo equivalente ao e por que os humanos usam a Natureza,
pêlo do UISO polar, aos dentes aliados do como eles incorporam a Natureza dentro da
tigre, à agilidade instantânea da gazela, ro­ Sociedade, e o que eles fazem consigo mes­
mo todos os mecanismos adaptativos exis­ mos, com a Natureza e a Sociedade nesse
tentes nos ecossistemas? Ou seli mais exa­ processo". A1gull'õ desses antropólogos
to encarar as culturas como algo que separa têm afirmado que a cultura é um fenOmeoo
os humanos da natureza e, mesmo, os colo­ integralmente autOnomo e supero<Jrgânico,
ca fora dela? Os cientistas naturais nos surgindo à margem da naturen e inteligível
dizem que num ecossistema tudo tem um

apenas nos seus próprios termos - ou pelo
papel e, portanto, tudo influencia o funcio- menos, como díria o próprio Bennetl, a
namento do todo; inversamente, todas as cultura moderna está tentando ser assim.
roisas são afetadas por estarem num ecos­ Outros, em contraste, sustentam que toda
sistema. Devem as culturas e as sociedades cultura, em algum grau importante, expres­
que as criam ser vistas também nessa pers­ sa a natureza, e não deve ser rigidamente
pectiva dupla, influenciando e sofrendo in­ isolada em sua esfera própria e autocontida.
fluências? Ou será melhor descrevê-Ias co- As duas posições são esclareced oras para o
208 ESruoos HlSTóRICOS- I99lJ8

historiador ambiental, embom a de BelUlc" estudou os bosquímanos Kung da Africa,


seja certamente a mais plausível para os Mar.;hall SahJins foi para a Polinésia, Ro­
tempos históricos, que são o tema dos arti­ bert Netting foi à Nigéria para observar os
gos deste livro. agricultores das encostas, Beny Meggers
Ninguém mais do que Julian Steward foi cstudar a bacia Amazônica, Clifford
contribuiu para criar o estudo ecológico da Gcc rtz foi pam a Indonésia, e outros mais
cultura, através do seu influente livro foram a outros lugares. Acima de todos, no
17le07z of cuúure c/range, publicado em entanto, foi Marvin Harris quem tomou as
1955, do qual provém a idéia de uma idéias de Steward e as transfonnou numa
"ecologia cultural". Steward começava teoria abrangente, e - criticariam alguns ­
examinando a relação entre o sistema de altamente reducionista, da relação entre na­
t3
produção econômica de um povo e O seu tureza e cultura. Tal como Steward, ele
ambiente físico. Ele perguntava que recur­ identificou o "(eeno-ambiente" (isto é, a
sos as pessoas decidiam explorar e que _ aplicação da tecnologia ao ambiente) como
tecnologia criavam pam esse fim. A esse o núcleo de qualquer cultum, a influência
corijunto de atividades de subsislência ele mais importante sobre a maneira como as
chamava de "núcleo cultuml". Em seguida pessoas convivem ulllas com as outras e
perguntava como esse sistema afetava o pensam o mundo. Harris Foi ainda mais
comportamento das pessoas umas em rela­ rigidamente detennirtista do que Steward
ção às outras, isto é, como elas se orgaluza­ no que diz respeito a esse núcleo. Ele tam­
varo para produzir a sua exislência. As bém se interessou mais pela sua dinâmica.
relaÇÕes sociais, por sua vez, moldavam O sistema tecno-ambiental não é absoluta­
outros aspectos da cultura. Pam Steward, mente estável, insiste ele. Certamente não
alguns dos estudos de caso mais interessan­ dura sempre. Existe sempre a tendência de
tes eram os grandes impérios do mundo intensificar a produção. Ela pode ser cau­
antigo baseados na irrigação, nos quais o sada pelo crescimento populacional, mu­
controle e m larga esc.11a da água em am­ danças climáticas ou disputa entre estados.
bientes áridos levou a semelhanças siste­ Seja qual For a causa, a conseqüência é
máticas na organização sócio-política. Es­ sempre a mesma: o esgotamento dos recur­
S,1S regularidades, ele espemva, sugeririam sos do ambiente, a queda da eficiência, a
uma lei geral da evolução humana: nâo o deteriomçâo dos padrões de vida, as pres­
velho esquema vitoriano, segundo o qual sôcs para migrar para outra região - ou, se
todas as culturas se moviam ao longo de nâo há um lugar novo pam ir, a pressão para
uma Iioha única e fixa de progresso, da caça encontrar novas ferramentas, técnicas e re­
e da coleta até a civilização industrial, mas cursos locais, criando-se assim um novo
antes uma lei que explic.1sse a evolução temo-ambiente. Em outrns palavras, a de­
multi linear das culturas, om divergindo, om gradação do ambiente pode ser trágica, in­
oonvergindo, ora se choca ndo umas com as Feliz, ou, se o povo vence o desafio, pode
outrns, sem um ponto de chegada no hori­ levar à vitoriosa emergência de uma nova
zonte. cultura. Harris chama a sua teoria de "ma­
A liderança de Steward na nova aborda­ terialismo cultural". Clammente, ela não
gem ecológica inspirou, direta ou indireta­ deriva apenas de Steward, mas também das
mente, uma geração mais jovem de pesqui­ recentes crises energéticas, do declínjo
sadores de campo que se espalhamm por atual de um teeno-ambiente baseado em
todos os cantos do planeta. John Benne" combustíveis fósseis e do recrudescimento
foi para as pradarias canadenses, Harold das ansiedades malthusianas quanto à es­
Conklin foi para as Filipinas, Richard Lee cassez planetária de recursos, embora Har-
PARA FAZER IUSTóRJA AMBIENTAL 209

ris certamente argumentasse que uma era remos de uma espécie de f"são das duas
de escassez pode ser também uma era de tconas.

oportunidade e revolução. Os modos de produção são um desfile


MaIVin Hanis explicitamente compa­ intenninável de estratégias, tão complexas
rou a sua teoria de materialismo cultural às nas suas taxonomias como a miriade de
idéias de Kar! Marx, que deu ao mundo o espécies de insetos que prosperam nas co­
"materialismo dialético", uma visão da his� pas das áIVores de uma floresta úmida, ou
tória sempre impulsionada pela luta de uma os peixes coloridos nadando em tomo de
classe econômica para dominar outra. O um recife de coral. Em tennos gerais, po­
contraste entre as duas teorias é enfático: demos falar dos modos de produção como
uma diz que a mudança nasce da luta de caça e coleta, agricultura e moderno capita­
sociedades inteiras para explomr a nature­ lismo industrial. Mas esse é apenas um
za, com rendimentos decrescentcs; a outra esboço cru de qualquer taxonomia comple­

aponta os connitos internos das sociedades ta. Precisamos incluir também como mo­

como O principal agente histórico, ficando dos, submodos, ou variações, a história dos
vaqueiros conduzindo gado através das
a natureza como um p<lllO de fundo passivo.
pastagens de Montana, dos pescadores de
T.1 Ivcz, 110 cnL1nto, a distância entre Hílrris
pele escura annando as suas redes na costa
e Marx não seja impossível de superar.
de Malabar, dos lapões puxados por suas
Pode-se coloc<lr um pouco mais de marxis­
renas, dos operários de Tóquio comprando
mo em Harris a rgumentando que, entre os
bolinhos de arroz com algas marinhas num
fatores que levam ao esgotamento de recur­
supennercado. Nesses e em muitos outros
sos e aos dcsequihbrios ambientais, está a
exemplos, o historiador ambiental deseja
competição, tanto entre classes quanto en­
saber que papel a natureza teve na molda­
tre estados. Os capita listas constr6cm uma
gem dos métodos produtivos e, inversa­
ordem social e tecoológica que os enrique­
mente, que impactos esses métodos tive­
ce e os leva ao poder. Montam fábricas para
ram na natureza.
a produção em mas",. Levam a terra à beira
Este é o diálogo imemorial entre eco­
do colapso com a sua tecnologia, a sua
logia e economia. Embora derivando das
administração da classe trabalhadora e o
mesmas raízes etimológicas, as duas pala­
seu apetite. A subsistência é redefinida
vras vieram a denotar duas esferas distintas,
como a necessidade sem fim, o consumo e por um bom motivo: nem todos os modos
sem limites, a internlinável competição por econômicos são ecologicamente sustentá­
srams. O sistema com o tempo se autodes­ veis. Alguns duram séculos, até milênios,
trói e é substituído por um novo. Da mesma enquanto outros aparecem rapidamente e
forma, poderíamos melhorar o marxismo somem, como fracassos adaptativos. E, em
acrescentando os fatores ecológicos apon­ última instância, ao longo do tempo, ne­
tados por Harris pam ajudar a explicar o nhum modo se adaptou perfeitamente ao
surgimento das classes e seus connitos. seu ambiente. Caso contrário, teria havido
Isoladamente, nenhuma das duas teorias dá pouca ma rgem pa ra a história.
conta adequadamente do passado. Juntas,
elas poderiam funcionar mais cfica1Jllenle,
uma suprindo as deficiências da outra. Na
medida em que o curso da história foi mol­ Percepção, ideologia, valor
dado por forças materiais, e dificilmente
alguém negaria que es",s (orças (oram re­ Os humanos são animais que carregam
almente importantes, sem dúvida precisa- idéias, assim como ferramentas, c uma das
210 ESl1JIX)S HISTÓRICOS - 1991/8

mais abrangentes e mais conseqüentes de­ juntamente com as mulheres. É extrema­


las tem o nome de "natureza", Mais preci­ mente di ficil traçar empiricamente os efei­
samente, a unalurezan não é uma idéia, mas tos reais de tais idéias, no passado ou no
muitas idéias, significados, pensamentos, presente, mas isso não impediu os pesqui­
sentimentos, empilhados uns sobre os ou­ sadores de fazer algumas afinnaÇÕes am­
tros, freqüentemente da fonna menos sis­ biciosas. Nem deveria impedir, afinal.
temática possível. Todo indivíduo e toda Talvez tenhamos exagerado demais a no­
a1ltura criam esses aglomerados. Pode­ ção da nossa capacidade mental e dos seus
mos pensar que sabemos o que estamos impactos no restante da natureza. Talvez
dizendo quando usamos a palavra, mas gastemos tempo demais debatendo as nos­
freqüentemente queremos indicar várias sas idéias, esquecendo de examinar o nos­
coisas ao mesmo tempo, e os OUVintes so comportamento. Mas por mais ambi­
• •

provavelmente terão que se esfoiçar para ciosas que sejam algumas dessas afinna­
perceber o que queremos dizer. Podemos ções, com toda a certeza é verdade que as
supor também que a natureza se refere a nossas idéias têm sido interessantes de
algo radicalmente distinto de nós, que ela contemplar, e nenhuma delas mais interes­
está em algum lugar "lá fora", parada, só­ ""nte do que as nossas reflexões sobre
lida, concreta, sem ambigüidades. Num outros animais. plantas, solos e toda a bios­
certo sentido, isso é verdade. A naNre;za é fera que nos deu origem. Assim, por boas
uma ordem e um processo que nós não razões, a história ambiental deve incluir no
criamos, e ela oontiouará a existir na nossa scu programa o esNdo de aspectos de es­
ausência. Só o solipsista mais crasso dis­ tética e ética, mito e folclore, literatura e
cordaria disso. Ainda assim, a natureza é paisagismo, ciência e religião - deve ir a
também uma criação _das nossas mentes, e toda parte onde a mente humana esteve M
por mais que nos esforcemos para ver o que voltas com o significado da natureza.
ela é objetivamente em si mesma, por si Para o historiador, o objetivo principal
mesma e para si mesma, em grande medida deve serdescobrircomo uma cultura inteira
caímos presos nas grades da nossa própria - e não apenas indivíduos excepcionais
consciência e nas nossas redes de signifi­ dentro dela - percebeu e avaliou a natureza.
cados. Mesmo a sociedade materialmente mais
Os historiadores ambienlais têm feilo primiliva pode ter tido visões bastante so­
alguns dos seus melhores trabalhos nesse fisticadas e complexas. A complexidade
nível de análise culNral, esNdando as per­ pode se originar, é claro, tanto de ambigüi­
cepções e os valores com que as pessoas dades e contradições não resolvidas quanto
refletem sobre o mundo não-huniano. Ou de reflexões profundas. Os povos de países
seja, eles têm investigado o pensamento industrializados parecem especialmente
sobre a natureza. Eles se impressionaram marcados por essas contradiÇÕes: são capa­
tanto com o poder duradouro e universal = de destruir a terra em ampla escala e
das idéias que por vezes atribuíram a culpa numa velocidade estonteante, através do
de abusos ambientais contemporiíneos a desenvolvimento imobiliário, da minera­
atitudes que datam de muito tempo atrás: ção e do desmatamento, para logo em se­
ao livro do Gênesis e ao antigo etl/Os he­ guida dar meia-volta e aprovar le� que
braico de afinnar o domínio sobre a terra; protegem um punhado de peiXes num ria­
i detenninação greco-romana de controlar cho ignoto. lsso em parte é apenas confu­
O ambiente através da razão; ou ao impulso são, mas em parte pode ser bem razoável.
ainda mais arcaico dos patriarcas de con­ Dadas as qua�dades multivariadas da naN­
trolar a natureza (o principio "feminino") reza, dado o fato de que o ambiente traz
PARA I·AZER IIISTÓRIA AMBlEN"1 AL 21 1

tantos perigos reais quamo benefícios paro Por vezes se diz que a ciência moderna
as pessoas, toda essa contradição é inevitá­ nos capacitou a supero r essas condições
vel. Ela tem carocterizado em toda parte as materiais e.a alcançar, pela primeirn vez na
reações humanas. Não obstante, alguns história, um entendimento im pessoa l,
pesquisadores caírom na annadilha de falar transcuUural, neutro, sobre o funciona­
da "visão budista da natu reZ:1", ou da "visão mento da natureza . Acredita-se que o mé­
cristã", ou da "visão dos índios amcrica­ todo cient ífico de coletar e verificar fatos
nos", como sc as pessoóls nCSSHS cullul1ls gere a verdade pum e imparcial. Essa
fossem todas simplórias, descomplicadas, confiança é ingênua. Poucos estudiosos da
unânimes e totalmente I iVrL--S de ambivalên­ história da ciência a aceitariam hoje sem
cia. Devemos presu mir que toda cultum críticas. Eles alcrtaria m que a ciência nUIl­
contém um leque de percepções c valores CH estcvc acima das ci rcunst.;ncias mate­

variados, e que jamais houve uma cullurn riais. Emboro ela possa de fato ser uma
que realmente quisesse viver em ha nnonia maneiro supcnorde chegar à verdade, cer­
.
total com o seu ambiente. tamente superior na capacidade de cria ..
Mas não se deve deixar que as idéias poder sobre a natureza, ainda assim a ciên­
nutuem num reino etéreo, acima da pocirn cia foi moldada pelo teeno-ambiente e pe­
e do suor do mundo material. Elas devem la� relações sociais da sua época. De acor­
ser estudadfls IlflS SUtiS relaçfK's com os do com o historiadorThomas Kuhn, a ciên­
modos de subsistência discutidos na seção cia não é apenas o acúmulo de fatos, ela
amerior. Evitando reduzir todos os pensa­ implica colocar esses fatos dentro de al­
mentos e valores a uma base m;lIeri,I I, como gum tipo de "paradigma" ou modelo de
se a imaginação humana nada mais fosse fUl1ciolUllncnto da ll.1tureza. Os parndig­
do que uma rocionalização das necessida­ mas velhos deixam de ser atmentes e são
des do estÔmago, o rustoriaiIor deve enten­ substituídos por parodigmas novos. Em­
der que a culturo mental não brota por si boro o próprio Kuhn não derive essas mu­
mesma. Uma maneira de entcndcr esse danças de parodigma das condições mate­
relacionamento é afinnarque as idéias são riais, outros historiadores têm insistido que
socialmente construídas e, portanto, refle­ há uma conexão. Eles dizem que os cien­
tem a organiz.'lção dils sodedadcs, os seus tistas mio trabalham completamente isola­
teello-ambientes c as suas hierarquias de dos das suas sociedades, e sim rcnctcm,
poder. As idéias vflriam de pessoa ;1 pessoa nos seus modelos de natureza, as suas so­
dentro de uma sociedade de amrtlo com o ciedades, os seus modos de produção, as
gênero, a classe, :I mça C a região. Homens suas rclnçÕcs humanas, as nccessidades e
e mulheres, qUlISC sempre srpamdos em O� valores de sua cultu m. Precisamente por
esferas mais ou menos distintas, chc:garnm isso, e pelo fato de a ciência modema ler
a modos distintos - por vezcs radicalmente tido impactos tão importantes no mundo
distintos - de encarar a natureza. O mesmo naturol, a história da ciência tem o seu lugar
ocorreu com escrovos e senhores, donos de lia lIo.va história ambiental.
fábricas e trabalhadores, povos aglÍcolas e Fi nalmellte, o historiador ambiental tem
industriais. Eles podem viver juntos ou que enfrentar o fonnidável dcsa fio de exa­
muito próxilnos uns dos out ros, Inas, ainda minar as idéias como agentes ecológicos.
assim, encar.un e flvr
l liam fi WltUIl''i':t de \\lltamas à questilo das escolhas que as
fonna d i ferente. O historiador deve es�" pessoas fazcm nos seus ambientes especí­
alerta para ess.1 S di ferenças e deve resisti r :l ficos. Que lógica, que paixões. que desejos
genernli7.A'lçÔCS fáceis sobre a "mentalida­ inconscicntes, que compreensão empírica
de" de um povo ou de um lugar. illfluellciam essas escolhas? E como slio
212 ESTUDOS HiSTóRICOS - 1991.18

essas escolhas expressas em rituais, técni­ ra satisfazer os espíritos, segue-se uma ma­
cas e legislação? As opções às vezes são tança ritualística. Centenas de animais são
feitas nos conedores de palácios governa­ mortos e consumidos em honra dos ante­
mentais. Por vezes são feitas no âmbito passados. Paga a dívida, os Thembaga es­
misterioso da zeilgeisr que perpassa eras e tão agora prontos para guenear de novo,
continentes inteiros. Mas algumas decisões confiantes que o poder divino está outra
também são tomadas, mesmo nos dias •
vez do seu lado. Assim segue a sua vida,
atuais, de tantas instituições poderosas e ano após ano, década após década, num
centralizadas, pelos habitantes de casas e ciclo ritualístico de criação e matança de
fazendas isoladas, por lenhadores e tripula­ porcos, danças, festas e guemiS. A expli­
ções de pescadores. Ainda não estudamos cação local desse ciclo é integralmente
bem ou com freqüência suociente a imple­ religiosa, mas o observador externo perce­
mentação das idéias nesses miclOcosmos. be que algo mais está acontecendo: há um .
De novo são os antropólogos que têm elaborado mecanismo ecológico em ope­
muito a oferecer aos historiadores em bus­ ração, mantendo o número de porcos sob
ca de perspectivas e métodos. Um dos controle e propiciando ao povo uma vida
mais intrigantes trabalhos de campo que em equilíbrio com o seu ambiente.
eles já produziram focaliza diretamente Presumindo que o estudo seja válido,
essa questão do funcionamento das idéias nesse vale coberto de noI:CStas Rappaport
em pequenas comurudades. Ele vem de encontrou um exemplo de como uma cul­
um vale entre as montanhas da Nova Gui­ tura pode assumir os seus contornos en­
né, onde os Thembaga subsistem na base frentando os problemas da sobrevivência
de taro, inhame e porcos. Publicado por num ecossistema peculiar. Aharmorua en­
Roy Rappaport sob o título Pigs for file tre os reinos da natureza e da cultura pare­
anceslOrs [Porcos para os ancestrais), é ce, nesse caso, ser quase perfeita. Mas o
um exemplo brilhante de como se pode historiador quer saber se as populações
estudaras humanos e as suas culturas men­ humanas têm sempre tanto sucesso nas
t4
tais operando num único ecossistema. suas adaptações quanto os Tsembaga.
Os Thembaga aparecem no texto de Mais que isso, serão os povos que o histo­
Rappaport como uma população engajada riador mais provavelmente estudará - p0-
em relações materiais com outros compo­ vos organizados em sociedades avançadas
nentes do seu ambiente. No entanto, dife­ e complexas, e que se relacionam com a
rentemente de seus congêneres animais e natureza através de rituais modernos, reli­
vegetais, os Thembaga criam, a partir do giões modernas e outras estruturas moder­
mundo que os cerca, símbolos, valores, nas de significado e valor - tão bem-suce­
finalidades e significados, especialmente didos? Rappaport se arrisca a sugerir que
significados religiosos. E essa cultura de­ a "sabedoria ecológica" inconscientemen­
sempenha uma t\j,nção importante, embora te encarnada no ritual cíclico da Nova Gui­
por vezes de forma obscura e indireta: ela né não é de forma alguma comum. Ela é
estimula os Thembaga a restringir o uso da mais provavelmente encontrada em povos
tem e a evitar a sua degradação. Por lon­ em que a urudade doméstica é a priocipal
gos períodos, de até 20 anos, esse povo se urudade produtiva, em que as pessoas pro­
ocupa em criar porcos, que são acumula­ duzem para consumo imediato e não para
dos como pagamento aos espíritos dos an­ vender e ter IUCI05, e onde "indícios de
cestrais pela ajuda dada nas batalhas com degradação ambiental serão provavelmen­
os irumigos vizinhos. Finalme.ite, quando te percebidos com rapidez por aqueles que
eles julgam que têm porcos suficientes pa- podem fazer alguma coisa a respeito de-
PARA FAZER J-flSTÓRIA AMBIENTAL 213

'6
las" . As modemas socied'ldes industriais, Darby e Lucien Febvre No último sécu­
por outro lado, são para ele culluralmente lo pesquisadores das duas disciplinas entra­
mal equipadas para a adaptação. Nelas ram muitas vezes nos tenit6rios uns dos
uma racionalidade econômica e tecnológi­ outros e descobriram muitas semelhanças
ca substitui a racionalidade ecológica dos de temperamento. Os geógrafos, tal como
Thembaga. O caso registrado por R.1ppa­ os historiadores, tenderam a ser mais des­
port é, portanto, pouco aplicável a Outms critivos do que analíticos. Elegendo os lu­
situações. Ele também não expliG' purque gares, ao invés das épocas, Olmo o seu
ocorreu uma mudança de racionalidade, ponto focal, eles mapearam a distribuição
por que as culturas se a raSla nJlll da hanno­ das coisas. lal como os historiadores narrn­
lúa cCOssislêmicR, por que ti religião 1110- rnm seqüências de eventos. Os geógra fos
dema nâo conscb'Uc limilHr os nossos im­ se deliciaram com uma boa paisagem, tanlo
pactos ambientais. Eln gemi, a antropolo­ quanto os historiadores com uma boa estó­
gia se despede com uma mesura quando ria .. Ambos exibiram um apego pelo parti­
surgem essas questões, retirando-se parn culare resist iram às generalizaçães fáceis ­
os seus remotos vales verdes e deixando o qual idade que talvez seja a SIL1 virtude e
historiador sozinho para enfrentar as dis­ força comuns. Mas eles também se pare­
sonâncias triturndoms e barulhentas da cem nas suas fraquezas, acima de tudo na
modernidade. sua tendência recorrente a perder de vista a
Como roi indicado acima, ti hislÓna relação fundamental homem-natureza: os
ambiental, na medida cm que telHa rcdcri­ historiadores. quando mediram o tempo
nir a investigação do pils
sado humano, flpcnas em lenllOS de elciçÕes c dinastias,
vem retirando subsídios de vririas QulmS os geógra fos quando tentarnm reduzir a
disciplinas, das ciências nalur.lis Cllé a illl­ temo e as suas complexidades à idéia abs­
tropologia e a teologia. Ela resistiu a todas traia de uespaço". Natureza, terra, clima,
as tentativas de colocar cerc'ls disciplilw­ ccossiSlclll:JS - 1 0 aS clltidades rele­
essas 5.:
res rigorosas em tomo do seu trabalho, o vantes. Quando e onde os geógrafos se
que a forçaria a fabric.1r todos os seus ocuparam dess,1s forças, eles ofereceram
próprios métodos de análise, ou a exigir muito pam a nova história, em tennos de
que essas disciplinas que tendem a se so­ inrOnmJÇ<1o. Mais importante, foram prin­
brepor se conservassem denlro das suas cipalmente os gcógrafos que nos ajudaram
discretas esferas. O,da disciplina pode, é a perceber que a nossa situação não é mais
claro, ter a sua Imd ição, SlJ;! ma neim part i­ a de sennos moldados pelo ambiellle. Ao
cular de abordar questões. Mas se esta é conlni no, hoje em dia nós é que cada vez
uma era de interdependência global, cert.1· mais estamos assumindo a moldagem, e
mente é também o momento parn alguma com com:;eqüências muitas vezes desaslro­
cooperação interdisciplinar. Os pesquisa­ sas. Hoje a responsabilidade comum das
dores precisam disso, a história ambiental duas disciplinas é descobrir por que os po­
precisa disso, e a terra também. vos modernos têm desejado tanto escapar
U\Ila disciplina que até agora não foi das restriÇÕes da natureza e quais têm sido
mencionada explicitamente é a geografia. os efeitos ecológicos desse desejo.
Os historiadores ambientais vêm se apoian­ Defirúda de maneira tão ampla, com
do em muitos geógra fos pa ra cbegar às suas tantas linbas possíveis de investigação, po­
conclusões. Michael Willia ms e Donald de parecer que falta uma coerência à bistó­
Meirúg, entre os pesguisadores em ativida­ ria ambiental, que ela inclui virtualmente
's
de, são dois deles. Do passado recente tudo o que aconteceu e vai acontecer. Ela
podemos mencionar earl Sauer, H. C. pode parecer tão ampla, tão complexa, tão
214 ESruoos HISTÓRlCXlS - 199118

exigente a ponto mesmo de ser impossível The Slate of American history (Olicago, Qua­
levá-la à prntica, a não ser quando se tra­ drangle Press, 1970), p. 249-260.

balhe com tempos e lugares muito limita­ 2. Richard Wbite, ..Amerian environmental
dos - talvez uma ilha pequena, esca�­ history: lbe developmcnt af a new historical
field", Paeifie HiSlorical Review, 54 (1985), p.
mente habitada, bem isolada do resto do
297-335. Samuel P. Hays, COflSUWllion and lhe
- .

mundo, e ainda assim por um prazo de


gos�1 of e/ficien.cy: lhe progrusive C07lSeT'II(J·
apenas seis semanas. Todos os historiado­
tion movemenJ, 1890-1920 (Cambridge, Masss­
res conbecem essa sensação de ser engoli­
cbusetts, Harvard University Press, 1959).
do pelo oceano dos seus assuntos. Não
3. Fredcrick. JackSOD Torner, FronJ;er anJ
importa o quão inclusiva ou especializada sedion: sekcted t:SSlJ)lS of FretUricJc Jadcson
seja a perspectiva que se tenha, hoje em dia Tumer, edited by Ray A1len Billington (Engle­
o passado aparece como uma grande con­ wood OilTs, New Jersey, Prentioe Hall, 1961);
fusão de vozes, forças, eventos, estruturas Walter Presoott Webb, The g",aIp/ains (Boston,
e relacionamentos, a desafiar qualquer en­ Ginn, 1931) e The grtal fronlier (Bostoo,
tendimento coerente. Os franceses são co­ Houghton Miffiin, 1952); James C. MaUn, The
grassland ofNorthAmerica: proli!gomena lo US
rajosos e falam em fazer a "história total".

hislory (Gloucester. Massachusets, Peter Smilh.


A história é tudo, dizem eles, e tudo tem
1967), e Hislory and ecology: sludies Df lhe
uma história. Essa constataçãQ pode ser
grass/and, edited by Robert. P. Swierenga (Un­
verdadeira e nobre, mas tranqüilizadora ela ooln, University oC Nebraslca Press, 1984).
não é. Mesmo se delimitarmos uma parte
4. Marc Bloch, Prench rura l history: Q.1I es­
da totalidade e a chamarmos de "ambien­ SIly on. ÍIs basic characttristics (Lendon, Rou­
te", ainda assim ficaremos como a traba­ Uedge & Kegan Paul, 1966); Lucien Febvre, A
lheira inadministrnvel de tentar escrever a geograprucal inIrodudion lO ru3l0ry (LandOD,
história de "quase tudo". Infeliauente, KegaD Paul, Trencb, Trubner, 1932).
não existe mais nenbuma outra alternativa S. Femand Braudel. The Medilurollean aM
diante de nós. Não fabricamos a natureza, lhe Mediterranean world in lhe age ofPhilip JJ
nem o passado; do contrário, talvez os (New York, Harper & Row, 1972).
tivéssemos feito mais simples. O desafio 6. Emmanuel Le Roy Ladurie em AnlUlles:
que temos de enfrentar agora é extrair al­ Economiu, Sociilú, Ci"i/isation, 29(1974).
gum sentido deles e, neste caso, extrair
-
Traduzi o trecho citado com base na tradução de
sentido do seu complexo funcionamento Worster para o inglês.

conjunto. 7. George Woodwell, 160n tbe limits af Datu­


re", em The global possible, edited by Roberl
Repetto (New Haven, Connecticut, Yale Univer­
sity Press, 1985), p. 47-65.
8. Aldo Leopold, "The land ethic", em A

Notas sond eounty a/manae (New Yorlc, OxCord Uni­


versity Press, 1966).

Nota do tradutor. O original não inclui rere-. 9. James C. Malin, obras citadas.
rências específicas, remetendo o leitor à biblio­ 10. Eugene P. Odum, Fundamen/al of eco­
grafia geral do volume no qual está inserido, às Iogy (3d ed., Philadelphia, Saunders, 1971).
páginas 309-323. Recuperei nessa bibliografia 11. 10hn W. Benoett, TM ecologcal
i transi·
as referêndas que aparecem no texto e as colo­ tion: cultural anlhropology and huma� adapta­
quei nas notas que se seguem. Al8uns autores lion (ElmsCord, New Yorlc, Pergamon, 1976);
mencionados no texto não oonstam da reCerida Emnio F. Mora0. Human adaptability: Dn in/ro­
bibliografia. duC1io. lo ecological an/hropology (Nortb Sei­
1. A reC�ncia exata é Rodericlc Nasb, "En­ tuate, Massachusetts, DUJl:bury Pres.s, 1979);
vironmental bistory-, em Herbert J. Bass. ed. Roy F. Ellen, Environment, subs;stenc.e and
PAltA PAZER JDSTóRlA'AMBIENl'AL 215

$)'*li: lhe � of <DJlall·$Clde fOiliiations Cambridge Univemity p "'l. 1989) Donald W.


(Cambridge, Cambridge University Press. Meinig, The great Co/umbu. ploin: • hUloric4/
1982); Robert McC. Neuing. Cu/Ju",1 ecology geograp/ty,1805-1910 (Seal�e, University oC
(MenJo Part, Califomia, Benjamin-a.mmings, WaslUngton Press, 1968).
1977). 16. Car! O. Sauer, SeventunJh.cenblry
U. Julian Stewud, The IMory of a</JurQI Amuica (Berltely, 1\JrtJ. lsland, 1980) • Six­
do4nge: lhe IffdJolo
odo gy of multilinear evolu­ lunJh.cenJuryAmerica: rhe Iond .nd people lU
tÚNI (Urbana, lIIioois, Univenity of llIinois. sem by IheEuropeons (Berlteley Ind Los Ange­

1955). les, Univemity oC CaliComia Press, 1971); H. C.


13. Marvio Hanis, C�ltlUa/ ,"aferia/um: lhe Darby. The new historical geography of En­
sm.ule for Q .rcience of ",,/Jure (New Yorle, glond. (Cambridge, Cambridge Universily
RaodND HQ""" 1979). Press, 1973); 1.uàen Febvre, obra àtada.

14. Roy A Rappaport,Pigsforthe .nastars:


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15. Miebad WiUilms. Amoicans a.nJ theu de Hislória da Univenidade de Kansas. em Law·
fores/I: • hislorie./ geogr.phy (New yorle, reoce (EUA).

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