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Pragmatismo

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Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

2
Thamy Pogrebinschi

Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

3
Pragmatismo
© 2005, Thamy Pogrebinschi
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA
Direitos cedidos para esta edição à
RELUME DUMARÁ EDITORA LTDA.
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Revisão
Argemiro de Figueiredo

Editoração
Dilmo Milheiros

Capa
Simone Villas-Boas

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

P81p Pogrebinschi, Thamy, 1977-


Pragmatismo : teoria social e política / Thamy Pogrebinschi. – Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2005

Inclui bibliografia
ISBN 85-7316-391-7

1. Pragmatismo. 2. Ciências sociais – Filosofia. 3. Ciência política


– Filosofia. I. Título.

05-0442 CDD 144.3


CDU 165.741

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por


qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei nº 5.988.

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Sumário

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Introdução
VIDA E SOBREVIDAS DO CLUBE METAFÍSICO . . . . . . . . . . . . . 11

Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO . . . . . . . . . . . . . . 23
1.1. As origens do pragmatismo: Peirce, James e Dewey . . . 23
1.1.1. Antifundacionalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
1.1.2. Conseqüencialismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
1.1.3. Contextualismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
2.1. Ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
2.2. Comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
3.1. Comunidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
3.2. Democracia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

5
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187

6
Prefácio

José Eisenberg

Há um crescente interesse nas Ciências Sociais pela tradição


filosófica do pragmatismo. Entretanto, pouco se sabe ainda
sobre como esta importante tradição vem sendo apropriada
pela Teoria Social e pela Teoria Política. Parte deste problema
reside na pouca atenção que tem sido dada nas Ciências So-
ciais às incursões dos próprios fundadores do pragmatismo na
atividade de interpretar o mundo social e político em que vi-
viam. Este livro de Thamy Pogrebinschi tem como maior
mérito recuperar a tradição filosófica do pragmatismo da pers-
pectiva das Ciências Sociais, introduzindo, talvez pela primei-
ra vez, esta importante agenda de pesquisa teórica até hoje
ausente em nosso país.
No campo da Teoria Social, as contribuições dos funda-
dores do pragmatismo são centrais para compreender como,
ao longo do século vinte, as interações socio-lingüisticas nas
sociedades humanas se tornaram o centro da investigação
sociológica. Os intérpretes da chamada virada lingüística
(linguistic turn) têm geralmente dado ênfase à centralidade do
conceito de linguagem para uma compreensão de seu impacto
sobre as Ciências Sociais. Entretanto, como nos mostra Thamy
Pogrebinschi neste livro, os conceitos de ação e comunicação,

7
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

originários na formulação dos fundadores do pragmatismo,


foram igualmente fundamentais para o desenvolvimento da
Teoria Social. Em particular, ela nos mostra como, antes mes-
mo das incursões da Escola de Frankfurt, em especial de Jürgen
Habermas e de Hans Joas, pragmatistas como Peirce e princi-
palmente Mead já haviam formulado este problema.
No campo da Teoria Política, as incursões de Dewey nos
temas da comunidade e da democracia, ainda que pouco estu-
dadas no Brasil, são extremamente importantes para se enten-
der o desenvolvimento de uma vertente comunitarista do li-
beralismo, bem como as teorias democráticas que buscam tra-
tar o tema da deliberação pública dos cidadãos. Por um lado,
a Teoria Política de Dewey, com seu conceito de Grande Co-
munidade, apresenta um desafio importante aos dilemas re-
sultantes da tentativa de combinar liberdade e comunidade
moral no comunitarismo de autores como Michael Sandel e
Daniel Bell. Por outro, seu conceito de democracia como idéia
leva o tema da participação popular para além dos procedi-
mentos eleitorais de representação que definem a democracia
liberal, tendo servido de inspiração para inúmeras versões con-
temporâneas daquilo que vem sendo chamado de democracia
forte (strong democracy) por Benjamin Barber ou democracia
deliberativa, por autores como James Bohman e William Rehg.
Portanto, a importância que o pragmatismo adquiriu na
história das idéias que alimentaram a formação e consolida-
ção de importantes tradições das Ciências Sociais de nossos
dias torna este livro uma leitura necessária àqueles em busca
de uma compreensão mais aprofundada das raízes filosófi-
cas dos movimentos teóricos que trouxeram o pragmatismo
para dentro dos campos disciplinares da Sociologia e da
Ciência Política. Em um esforço de clareza, precisão concei-
tual e teórica, e abrangência intelectual bem sucedido, Thamy

8
Prefácio

Pogrebinschi nos oferece um panorama das origens do prag-


matismo no Clube Metafísico fundado por Charles Peirce em
Harvard no final do século dezenove e dos principais concei-
tos desenvolvido por seus seguidores que vieram a alimentar a
Teoria Social e Política do século vinte.
Trata-se de mais uma bela contribuição intelectual de um
dos talentos mais promissores da nova geração das Ciências
Sociais no Brasil. Uma contribuição que introduz o leitor aos
principais conceitos filosóficos, sociais e políticos do pragma-
tismo, apresentando de maneira lúcida como estes conceitos
são centrais à reflexão teórica contemporânea das Ciências
Sociais.

9
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

10
Introdução
VIDA E SOBREVIDAS DO
CLUBE METAFÍSICO

Pragmatism was a variant of many strands in nineteenth-


century thought but by no means their destined point of
convergence. It fit in with the stock of existing ideas in
ways that made it seem recognizable and plausible: James
subtitled Pragmatism “A New Name for Old Ways of
Thinking”. But pragmatism was the product of a group
of individuals, and it took its shape from the way they
bounced off one another, their circumstances, and the
mysteries of their unreproducible personalities.
Louis Menand1

No ano de 1871, um grupo de jovens estudantes de diferen-


tes cursos de pós-graduação da cidade de Cambridge, nos Es-
tados Unidos, se reuniu em um clube, o qual nomearam de
“Clube Metafísico” (Metaphysical Club). Este nome foi esco-
lhido com propósitos irônicos e provocativos, conforme tor-
naram evidentes, alguns anos depois, os resultados de seus
muitos encontros. Com efeito, para quem conhece hoje os
nomes de Charles S. Peirce, William James, Nicholas St. John
Green, Oliver Wendell Holmes, Joseph Bangs Warner, John
Fiske, Francis Ellingwood Abbot e Chauncey Wright, não causa

11
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

nenhuma surpresa a ironia contida no nome deste grupo que


se reunia justamente com o propósito de se opor à metafísica
tradicional.2
Foi em uma das reuniões do Clube Metafísico, por volta
de 1872, que um de seus integrantes mais ativos, Charles Peirce,
expôs aos demais um rascunho com algumas anotações resul-
tantes de suas discussões coletivas, as quais pretendia possivel-
mente agregar a um livro sobre lógica, que planejava um dia
escrever. Às idéias e opiniões contidas neste rascunho que apre-
sentou a seus colegas, Peirce chamou de pragmatismo. Trata-
va-se inicialmente de um “método de determinar os significa-
dos de palavras difíceis e conceitos abstratos”, dizia seu cria-
dor. Seus colegas lhe sugeriram denominar esta sua teoria de
praticismo (practicism) ou praticalismo (practicalism), mas
Peirce, que conhecia bem a distinção entre os termos kantianos
praktisch e pragmatisch, sabia o que estava fazendo e não mu-
dou de idéia.3
O rascunho de Peirce foi ampliado e, entre o final de 1877
e o início de 1878, publicado na forma de dois artigos no
Popular Science Monthly, então um dos principais periódicos
científicos internacionais.4 Isso não foi suficiente para que o
pragmatismo passasse a desfrutar de notoriedade, nem mes-
mo no meio acadêmico e intelectual norte-americano. Foi
apenas cerca de vinte anos depois, em 1898, com as palavras
de William James, que o pragmatismo começou a ser conheci-
do pelo público, sendo a partir de então rapidamente difundi-
do para além das fronteiras do país que lhe deu origem.5
Na verdade, conforme veremos no primeiro capítulo deste
livro, James ampliou em muito o escopo originalmente confe-
rido ao pragmatismo por Peirce, o que levou este a resolver,
em 1904, mudar o nome de sua teoria para pragmaticismo
(pragmaticism), segundo ele “uma palavra feia o bastante para

12
Introdução
VIDA E SOBREVIDAS DO CLUBE METAFÍSICO

ser salva de seqüestradores”.6 Mas era tarde demais para Peirce


mudar o nome de sua teoria, bem como para impedir que ela
fosse apossada por outros pensadores: o pragmatismo já havia
se transformado em um movimento intelectual.7
Com efeito, tão logo James revelou publicamente que suas
idéias consubstanciavam aquilo que seu colega Peirce inicial-
mente denominara de pragmatismo, ele foi informado que na
Universidade de Chicago havia um grupo de professores que,
influenciados pela leitura de seu famoso The Principles of
Psychology (1890), parecia estar desenvolvendo idéias seme-
lhantes às suas. Foi assim que James conheceu John Dewey, e
após extensa troca de correspondência com ele e uma visita ao
seu local de trabalho, onde também foi apresentado a George
Herbert Mead, concluiu que “Chicago possui uma Escola de
Pensamento!”.8
A partir deste momento, como se sabe, o pragmatismo
desfrutou de seus anos gloriosos, tornando-se a principal ten-
dência da filosofia norte-americana e conquistando adeptos
em todo o mundo.9 No entanto, em torno da metade do sécu-
lo XX, o pragmatismo havia sido praticamente banido do meio
intelectual e acadêmico norte-americano pela filosofia analíti-
ca, que então reinava absoluta. Algumas ramificações do prag-
matismo, como o interacionismo simbólico, ainda desfruta-
ram de uma certa sobrevida, mas não caberia identificá-lo como
um verdadeiro pragmatismo.
Contudo, a partir da última quinzena do século XX, passa-
mos a assistir a uma ressurgência do pragmatismo, e desta vez
não apenas no campo da filosofia, mas também nos domí-
nios, principalmente, das ciências sociais (sociologia e ciência
política), do direito e da literatura. Alguns estudiosos do tema
justificam este interesse renovado pelo pragmatismo a partir
do descrédito generalizado em torno da filosofia analítica, ex-

13
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

perimentado por muitos pensadores norte-americanos, bem


como da busca empreendida por alguns intelectuais europeus
por uma teoria alternativa ao marxismo.10
Mas seria este novo pragmatismo, ou neopragmatismo
como muitos preferem denominá-lo, apenas uma reatualização
dos temas em jogo no início do século? Tratar-se-ía apenas de
um interesse renovado no estudo dos autores que deram noto-
riedade a tal escola de pensamento nos primeiros anos do sé-
culo XX? Tudo parece indicar que não. Esta nova leva de estu-
dos pragmatistas não se contenta simplesmente em atualizar o
estudo dos pragmatistas clássicos, mas vem afirmando novos
autores e novas temáticas, na maioria das vezes baseados em
conceitos e idéias desenvolvidas preliminarmente pelos pri-
meiros pragmatistas, mas nem sempre rigorosa e sistematica-
mente neles escorados.
Apesar de todos os seus méritos, o pragmatismo, conforme
bem observou William James, é um novo nome para antigas
formas de pensamento. Não por acaso, o subtítulo de seu prin-
cipal livro sobre o assunto, Pragmatism, é exatamente este: “Um
novo nome para algumas antigas formas de pensamento”.11
Com efeito, conforme restará claro a partir do primeiro capí-
tulo deste livro, entre os antigos modos de pensar que ganham
nova substância com o pragmatismo estão, principalmente, o
utilitarismo de John Stuart Mill e o ceticismo característico
do iluminismo escocês. Além disso, o pragmatismo indubita-
velmente também apresenta similaridades com outros siste-
mas de pensamento desenvolvidos ao longo do século XIX,
como é o caso do marxismo, do positivismo e do darwinismo.
Há ainda quem tente traçar as origens do pragmatismo no
romantismo alemão, em Nietzsche, no pensamento anglo-saxão
e, ainda mais remotamente, no ceticismo e no empirismo da
Antiguidade clássica.12

14
Introdução
VIDA E SOBREVIDAS DO CLUBE METAFÍSICO

Esta grande variedade de influências e semelhanças que o


pragmatismo supostamente compartilha com outras formas
de pensamento talvez explique por que não seja possível se
falar em um único e homogêneo pragmatismo, mas sim em
múltiplos pragmatismos – ou, ainda, em um pragmatismo
multifário.13 Com efeito, desde a sua criação, no âmbito do
Clube Metafísico, o pragmatismo é o resultado da contribui-
ção de autores com formação e atuação em diferentes áreas do
pensamento. O resultado disso, conforme acreditamos, foi a
elaboração de uma teoria que, tanto em sua gênese histórica
como em sua essência teórica, expressa um inegável pluralismo
e uma infinita capacidade de se harmonizar com outras e dis-
tintas formas de pensamento. O pragmatismo, afinal, é emi-
nentemente antifundacionalista e por isso “não tem dogmas,
não tem doutrinas, só tem um método”.14 Se o pragmatismo é
apenas um método, ele é um método, como diz James, “com
atitude”: “uma atitude de orientação, é nisto que o método
pragmatista implica”.15 Enfim, talvez o pragmatismo seja exa-
tamente isso: uma teoria que nos permite compreender anti-
gas teorias e, ao mesmo tempo, criar outras novas; um método
para conferir significado a conceitos e concepções; um meio
de dar sentido à realidade e à ação através da teoria; um pro-
pósito de experimentar incessantemente novas formas de pen-
sar e também de reexperimentar aquelas que já são conheci-
das. Por isso, talvez a melhor explicação sobre o pragmatismo
esteja em uma metáfora criada por Giovanni Papini. De acor-
do com este pragmatista italiano, o pragmatismo opera como
o corredor de um hotel no qual cada quarto se encontra ocu-
pado por uma teoria diferente, por uma tradição filosófica
distinta. Este corredor dá acesso a todos os quartos, sem que
se precise, contudo, escolher um deles para entrar. Ao passo
que todos os hóspedes deste grande hotel que é o pensamento

15
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

precisam, necessariamente, passar pelo corredor para entrar e


sair de seus aposentos.16
O objetivo deste livro não é o de oferecer uma genealogia
do pragmatismo, tampouco o de indagar a respeito das possí-
veis influências ou semelhanças por ele compartilhadas com
outras formas de pensamento. Ao contrário, nosso objetivo é
o de tentar compreender em que consiste o núcleo teórico do
pensamento pragmatista, provendo um panorama geral do
mesmo apenas naquilo que é essencial para entender suas
aplicações no campo da teoria social e da teoria política. Por
conseguinte, no intuito de fazer deste livro uma fonte de recu-
peração do pragmatismo em sua formulação original, analisa-
remos no primeiro capítulo aquilo que acreditamos ser a ver-
dadeira fonte ou matriz (filosófica) do pragmatismo. Para tan-
to, percorreremos as obras de Charles Peirce, William James e
John Dewey, para explicar como operam em seus pensamen-
tos os três elementos que acreditamos serem constitutivos dis-
so que chamamos de matriz pragmatista: o antifundacionalis-
mo, o conseqüencialismo e o contextualismo. Já no segundo
capítulo, nosso objeto de investigação será a aplicação do pen-
samento pragmatista no âmbito da teoria social. Deste modo,
analisaremos dois dos principais conceitos sociológicos de-
senvolvidos na tradição pragmatista e em sua recepção con-
temporânea: os conceitos de ação e de comunicação. Por fim,
no terceiro capítulo, examinaremos algumas relações entre o
pragmatismo e a teoria política, por meio da contribuição
de seus autores clássicos ao desenvolvimento dos conceitos
de comunidade e de democracia. Cabe ressaltar que tanto no
exame das interfaces do pragmatismo com a teoria social
como no de suas interações com a teoria política, a matriz
filosófica – ou seja, os três elementos constitutivos do prag-
matismo – identificada no primeiro capítulo será constante-

16
Introdução
VIDA E SOBREVIDAS DO CLUBE METAFÍSICO

mente retomada, uma vez que ela é inseparável de suas aplica-


ções multidisciplinares, pois que constitui, inevitavelmente, a
essência do pragmatismo.

Este livro foi pensado, gestado e escrito no âmbito de meus


estudos no IUPERJ, tendo sua primeira versão constituído o
ponto de culminância do mestrado que lá realizei. Assim, gos-
taria de registrar aqui meu agradecimento ao Instituto como
um todo e também à FAPERJ pela bolsa de estudos que recebi
durante parte deste tempo. Muitas pessoas ainda foram essen-
ciais nesse processo, e é sempre um risco lembrar de algumas
sem esquecer de todas. Mas não posso deixar de mencionar,
todavia, meu agradecimento especial ao José Eisenberg, por
ter me apresentado ao pragmatismo e por todas as nossas tão
profícuas e divertidas parcerias acadêmicas, das quais este li-
vro é sem dúvida mais um fruto; ao José Maurício Domingues,
por ter me introduzido ao mundo da sociologia e da teoria
social e pelo diálogo e amizade que se tornaram uma constan-
te desde então; ao Renato Lessa, pelo valioso incentivo e as
imprescindíveis críticas, sugestões e correções à primeira ver-
são deste material; por fim, ao Luiz Eduardo Soares, também
pela inestimável leitura da primeira versão com todas as in-
contáveis contribuições e correções para que ela fosse aperfei-
çoada. Finalmente, dedico este livro à minha família, meus
pais, irmãos e queridos agregados, pelo carinho e apoio cons-
tantes.

Notas
1 The Metaphysical Club, p. 370-371.

17
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

2 “It was in the earliest seventies that a knot of us Young men in Old
Cambridge, calling ourselves, half-ironically, half-defiantly “The
Metaphysical Club” – for agnosticism was then riding its high horse, and
was frowning superbly upon all metaphysics, – used to meet, sometimes
in my study, sometimes in that of William James”. Este é o testemunho de
Charles Peirce, escrito em 1907. Cf. “Pragmatism”. In: The Essential Peirce,
volume II, p. 399.
3 O próprio Peirce nos explica o motivo de sua opção: “For one who had

learned philosophy out of Kant, as the writer, along with nineteen out of
every twenty experimentalists who have turned to philosophy, had done,
and who still thought in Kantian terms most readily, praktisch and
pragmatisch were as far as the two poles, the former belonging in a region
of thought where no mind of the experimentalist type can ever make sure
of solid ground under his feet, the latter expressing relation to some definite
human purpose. Now quite the most striking feature of the new theory
was its recognition of an inseparable connection between rational cognition
and rational purpose; and that consideration it was which determined the
preference for the name pragmatism.” Cf. “What Pragmatism Is”. In: The
Essential Peirce, volume II, p. 332-333.
4Estes artigos são: “The Fixation of Belief ” e “How to Make Our Ideas
Clear”, ambos republicados posteriormente em várias coletâneas de textos
de Peirce.
5 James tornou o pragmatismo uma teoria mundialmente conhecida a partir

de uma conferência que realizou em 1899 na Universidade da Califórnia,


em Berkeley. Esta conferência resultou em uma publicação (“Philosophical
Conceptions and Practical Results”), posteriormente reeditada em várias
coletâneas de sua obra. A importância desta conferência, assim como da
publicação que dela resultou, é que, além de divulgar definitivamente o
pragmatismo, é nela que James primeiramente atribuiu a fonte de suas
idéias à Peirce, identificando-o como o pai do pragmatismo. Peirce, na-
quele momento, era um pensador praticamente desconhecido e encontra-
va dificuldades tanto para publicar seus trabalhos como para lecionar. James,
ao contrário, era um professor internacionalmente renomado e naquele
momento recolhia os louros pela publicação de seu famoso The Principles
of Psychology (1890). Sem dúvida, foi James o responsável por tornar tanto
o pragmatismo como seu amigo Peirce conhecidos. Ver, a respeito, Louis
Menand, The Metaphysical Club, capítulos 9 e 13.

18
Introdução
VIDA E SOBREVIDAS DO CLUBE METAFÍSICO

6 Cf. “What Pragmatism Is”. In: The Essential Peirce, volume II, p. 334-
335. De acordo com Peirce, os ‘seqüestradores’ de sua teoria seriam William
James, F.C.S. Schiller. Sobre a versão do pragmatismo deste último, ver
os seus Humanism: Philosophical Essays (1903) e “The Definition of
‘Pragmatism’ and ‘Humanism’”. In: Mind 14 (abril 1905): 235-40.
7 É muito comum o pragmatismo ser chamado de ‘movimento’, principal-

mente pelos seus propositores. O próprio James fala em um “autodenomi-


nado movimento pragmatista”. Ver, a respeito, o prefácio ao seu Pragmatism
(1907).
8 “The Chicago School” (1904). In: Essays in Philosophy, The Works of

William James, p. 102. Apud Louis Menand, The Metaphysical Club, p.


360.
9 Além do inglês F.C.S. Schiller, sem dúvida o mais famoso pragmatista
fora dos Estados Unidos, havia um pequeno, porém notório, círculo de
pragmatistas na Itália composto por Giovanni Vailati, Mario Calderoni e
Giovanni Papini. Este último, autor de um importante livro sobre o as-
sunto, intitulado Sul Pragmatismo (Saggi e Ricerche) (1913).
10 Ver Morris Dickstein, “Introduction: Pragmatism Then and Now”. In:
The Revival of Pragmatism: New Essays on Social Thought, Law and Culture,
p. 1. Alguns destes mesmos argumentos também estão em Richard Bernstein,
“Pragmatism, Pluralism and the Healing of Wounds”. In: Pragmatism. A
Reader, p. 390 e segs.
11 Pragmatism: A New Name for Some Old Ways of Thinking (1907).
12 Sobre as origens do pragmatismo no romantismo alemão, ver Thomas
Grey, “What Good is Legal Pragmatism”. In: Pragmatism in Law and Society,
editado por Michael Brint e William Weaver, p. 9 e segs. E também Émile
Durkheim, Pragmatismo y Sociologia, p. 27 e segs; em Nietzche, ver Émile
Durkheim, Pragmatismo y Sociologia, p. 24 e segs; no pensamento anglo-
saxão, ver Émile Durkheim, Pragmatismo y Sociologia, p. 27 e segs. Os
próprios Peirce e Dewey admitem diretamente esta influência. Cf. Charles
Peirce, “Pragmatism”. In: The Essential Peirce, volume II, p. 200; John
Dewey, “The Development of American Pragmatism”. In: The Essential
Dewey, p. 3 e segs; por fim, sobre as origens do pragmatismo no ceticismo
e no empirismo da Antiguidade clássica, ver Nicholas Rescher, Realistic
Pragmatism, capítulo. 1.
13 O primeiro autor a sustentar a idéia de que não existe um único prag-

19
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

matismo, mas, pelo menos, mais de um, foi Arthur O. Lovejoy, já em


1908. Cf. “The Thirteen Pragmatism”. Journal of Philosophy and Scientific
Methods 5 (1908): 5-39. Além dele, Nicholas Rescher, por exemplo, acre-
dita que a partir de Peirce o pragmatismo vem assumindo três formas
principais: uma de ordem semântica, outra de cunho epistemológico e a
terceira de caráter ontológico. O pragmatismo semântico, afeito ao tema da
linguagem, insiste na idéia de que o significado das palavras consiste na-
quilo que é atribuído pelo seu próprio uso. Já o pragmatismo epistemológi-
co defende que a implementação bem-sucedida de crenças fornece o crité-
rio apropriado para a verdade das mesmas. Por sua vez, o pragmatismo
ontológico ou metafísico é aquele que afirma a primazia da prática sobre a
teoria. Estas três vertentes de apresentação da filosofia pragmatista são
ainda subsumidas por Rescher em uma classificação dualista, qual seja,
entre um pragmatismo “da direita” que se oporia diametralmente a outro,
“da esquerda”. Abstraindo-se a conotação ideológica que tal classificação
imediatamente parece assumir, o que Rescher efetivamente quer denomi-
nar por “pragmatismo da esquerda” é aquela versão da teoria que parece
ser mais flexível e variável, afeita que é ao relativismo cognoscitivo e ao
pluralismo. Seria esta a vertente adotada por James e, contemporanea-
mente, Rorty. Já o “pragmatismo da direita”, representado por Peirce,
Putnam e pelo próprio Rescher, consiste numa versão mais objetivista e
universalista da teoria. Cf. Realistic Pragmatism, p. 12 e segs e 64 e segs.
Também outro estudioso do pragmatismo, H. O. Mounce, acredita que
existem dois tipos de pragmatismo distintos e antagônicos entre si. De
acordo com ele, há um ‘primeiro pragmatismo’, que é o pragmatismo de
Peirce, marcado por um cientificismo que se opunha ao positivismo, ao
materialismo e ao racionalismo científico do século XIX. Além deste, há
um ‘segundo pragmatismo’, que é o pragmatismo resultante da má com-
preensão do pensamento de Peirce por parte de James, subseqüentemente
cultivado por Dewey e desabrochado em Rorty. Este segundo pragmatis-
mo, de acordo com Mounce, consiste justamente em uma versão daquelas
espécies de cientificismo às quais Peirce se opunha. Cf. The Two Pragmatisms,
passim. Quanto ao fato de o pragmatismo ser um único pensamento, po-
rém multifário, ver Matthew Festenstein, Pragmatism and Political Theory,
p. 3 e segs.
14 William James, “What Pragmatism Means”. In: Pragmatism and Other
Writings, p. 28.
15 Idem, p. 29.

20
Introdução
VIDA E SOBREVIDAS DO CLUBE METAFÍSICO

16 Vale reproduzir, a respeito, um trecho de William James sobre esta me-


táfora de Papini, de quem ele era correspondente: “It [pragmatism] lies in
the midst of our theories, like a corridor in a hotel. Innumerable chambers
open out of it. In one you may find a man writing an atheistic volume; in
the next some one on his knees praying for faith and strength; in a third a
chemist investigating a body’s properties. In a fourth a system of idealistic
metaphysics is being excogitated; in a fifth the impossibility of metaphysics
is being shown. But they all own the corridor, and all must pass through it
if they want a practicable way of getting into or out of their respective
rooms”. Cf. “What Pragmatism Means”. In: Pragmatism and Other Writings,
p. 28-29.

21
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

22
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA
DO PRAGMATISMO

The elements of every concept enter into logical thought


at the gate of perception and make their exit at the gate
of purposive action; and whatever cannot show its
passports at both those two gates is to be arrested as
unauthorized by reason.
Charles Sanders Peirce1

1.1. As origens do pragmatismo: Peirce, James e Dewey


Seria pouco afirmar apenas que a matriz filosófica do prag-
matismo se encontra em Charles S. Peirce, William James e
John Dewey, pois nestes autores se encontra a totalidade do
núcleo teórico deste pensamento, que irá posteriormente pos-
sibilitar o seu desenvolvimento em outros campos do conhe-
cimento. Inicialmente, com Peirce, o pragmatismo parece se
resumir apenas a uma teoria da significação (theory of meaning)
subsumida em um método e uma máxima (a máxima prag-
mática) que o coloca em operação. O fato é que Peirce, com
efeito, é o pai do pragmatismo: foi ele quem lhe deu nome e
trouxe à tona suas características principais – mas o desenvol-
vimento de sua formulação inicial do que seja propriamente o

23
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

pragmatismo deixa muito a desejar.2 O problema é que Peirce,


como bom lógico e matemático que era, preocupou-se mais
em apresentar uma prova consistente de sua nova teoria, o
pragmatismo, do que em dar continuidade ao desenvolvimento
do seu conceito inicial ou ainda aplicá-lo mais concretamen-
te. Assim, foi William James quem, a partir dos escritos de
Peirce, desenvolveu enfaticamente a teoria pragmática e a apre-
sentou para o mundo. Em sua esteira, e quase concomitante-
mente, John Dewey foi também responsável pelo desenvolvi-
mento dos inúmeros desdobramentos do pragmatismo, bem
como por ilustrar largamente as suas múltiplas formas de apli-
cação. Neste sentido, com James e Dewey, o pragmatismo foi
ampliado também em seu escopo. Se em Peirce ele parecia ser
filosoficamente apenas uma teoria da significação, a partir de
James e Dewey o pragmatismo começa a assumir também a
forma de uma teoria da verdade.
Com efeito, apesar das peculiaridades e desenvolvimentos
particulares de cada um daqueles três autores – os primeiros
pragmatistas, ou pragmatistas originais, clássicos, conforme
invariavelmente os chamaremos –, o fato é que o pragmatis-
mo indubitavelmente apresenta um núcleo comum, que trans-
parece na obra de cada um deles, e que constitui a razão da
relação real que existe entre os seus pensamentos. Este núcleo
comum, que aqui denominamos de matriz pragmatista, pode
ser subsumido em três idéias principais: o antifundacionalis-
mo, o conseqüencialismo e o contextualismo.
É no âmbito dos eixos principais do pragmatismo – a teo-
ria da significação e a teoria da verdade – que estes três ele-
mentos destacados acima se desenvolvem. Mas antes de aden-
trarmos na análise de sua elaboração em cada um dos primei-
ros três autores pragmatistas, é preciso ressaltar ainda que to-
dos eles também convergem filosoficamente em outros aspec-

24
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

tos que se tornam patentes a partir de um primeiro olhar so-


bre suas obras. Constituem estas orientações filosóficas co-
muns ao pragmatismo, as seguintes: o afastamento da metafísi-
ca (Peirce afirmou certa vez que a razão de ser do pragmatismo
é mostrar como quase todas as proposições da metafísica on-
tológica são sem sentido ou manifestamente absurdas.3 Esta
mesma assertiva se desenvolve também plenamente em James
e Dewey), a rejeição do nominalismo (de acordo com o prag-
matismo, o nominalismo era uma filosofia em auxílio do egoís-
mo. Isto se deve ao fato de que o nominalismo nega o social,
uma vez que reconhece apenas a realidade dos indivíduos)4 e,
por fim, a proximidade com o realismo (embora os três pragma-
tistas concordassem que a realidade e a percepção dos objetos
prescindem de mediações, a única ressalva possível aqui é so-
bre qual realismo está em jogo. Peirce, por exemplo, dizia-se
um adepto do realismo escolástico, enquanto Putnam insiste
que James advogava o realismo direto).5
Com efeito, se hoje podemos definir o pragmatismo a
partir daquelas suas três características nucleares – o antifun-
dacionalismo, o conseqüencialismo e o contextualismo –, isto
decorre da própria aplicação do método pragmatista de aná-
lise. Em outras palavras, pragmaticamente, o significado do
pragmatismo, como o de qualquer outra teoria, só poderia
ser conhecido através do teste de suas conseqüências, isto é,
por meio da prospectiva de um futuro ainda em formação.
Por conseguinte, as três características que aqui apresenta-
mos como constituintes da definição – e, portanto, do signi-
ficado – do pragmatismo consistem na resposta à famosa
pergunta que consubstancia o método pragmatista: quais as
diferenças práticas que o pragmatismo acarretou para a filo-
sofia?
É isso que vamos tentar responder a partir de agora.6

25
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

1.1.1. ANTIFUNDACIONALISMO

O antifundacionalismo talvez seja, das três características


definidoras do pragmatismo, aquela que mais corrobora a
nossa afirmação de que o próprio pragmatismo só pode ser
compreendido pragmaticamente, ou seja, através do teste de
suas conseqüências. Com efeito, se por um lado os primeiros
pragmatistas já reconheciam claramente o caráter instrumen-
tal do seu pensamento, o antifundacionalismo apenas veio a
ser enfatizado enquanto característica do pragmatismo nas
vozes dos seus defensores mais recentes.7 O método que ad-
vogava que as teorias só poderiam ser testadas pelas suas con-
seqüências teve, enfim, o seu próprio teste. O antifundacio-
nalismo é, sem dúvida, uma das principais conseqüências do
pragmatismo – e isso não se restringe apenas ao campo da
filosofia.
E em que consiste, afinal, o antifundacionalismo? Trata-se
de uma permanente rejeição de quaisquer espécies de entida-
des metafísicas, conceitos abstratos, categorias apriorísticas,
princípios perpétuos, instâncias últimas, entes transcendentais,
dogmas, entre outros tipos de fundações possíveis ao pensa-
mento. Trata-se, afinal, de negar que o pensamento seja passí-
vel de uma fundação estática, perpétua, imutável. O antifun-
dacionalismo pragmatista se exerce também na recusa à idéia
de certeza e aos tradicionais conceitos filosóficos de verdade e
realidade; não se trata de negar a existência da verdade e da
realidade, mas sim de submeter seus conceitos tradicionais a
um novo método. Por fim, o antifundacionalismo pragmatista
se apresenta ainda sob a forma de uma crítica incessante; não
se trata de uma crítica determinada e direcionada a um objeto
concreto, mas de um desejo permanente de crítica, da crítica
enquanto método de pensamento. Vejamos como o antifun-

26
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

dacionalismo se apresenta em cada um dos três formuladores


iniciais do pragmatismo.
Em um dos seus primeiros ensaios, publicado em 1868,
Peirce pergunta a seus leitores o que aconteceria se a autorida-
de interna encontrasse o mesmo destino que a autoridade ex-
terna encontrou na história das idéias.8 Na verdade, Peirce
não quer com esta pergunta sugerir, ou efetivamente operar,
uma substituição entre um tipo de autoridade e outra, ou ain-
da, em outras palavras, ele não quer conferir nenhum tipo de
autoridade especial para coisa alguma – nem para crenças
inconscientes, nem mesmo para hábitos formados pela expe-
riência.
A radical oposição que Peirce estabelece em relação ao
cartesianismo o leva a insistir em diversas negações: i) não
existe um poder de introspecção; ii) não existe um poder de
pensar sem signos; iii) não existe um poder de intuição; e iv)
não existe uma concepção do absolutamente incognoscível.
Primeiramente, Peirce deseja negar a existência de um supos-
to poder de introspecção e em seu lugar afirmar que todo
conhecimento do mundo interno é derivado, por raciocínio
hipotético, do conhecimento que temos dos fatos externos.
Isto é, o que chamamos de inconsciente nada mais é senão o
resultado de inferências. Por conseguinte, a única maneira
de investigar uma questão psicológica é através da inferência
de fatos externos. De acordo com Peirce, não é possível pen-
sar sem signos (signs), pois o pensamento só pode ser conhe-
cido por fatos externos, e o único pensamento que pode ser
conhecido é aquele que se estabelece por sinais, por signos.
E uma vez que não existe pensamento que não pode ser co-
nhecido, todo pensamento deve, necessariamente, ser feito
de signos.9
Além disso, ao negar a existência de um suposto poder de

27
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

intuição, Peirce afirma que toda cognição é logicamente de-


terminada por cognições prévias. Em outras palavras, todo
pensamento deve ser interpretado a partir de outro que lhe
seja anterior. Problematizando a questão acerca de como um
signo pode ter um significado se, por definição, ele é o signo
de algo absolutamente incognoscível, Peirce diz que todas con-
cepções são obtidas por abstrações e combinações de cognições
que primeiramente ocorrem em julgamentos da experiência.
Portanto, não é possível existir uma concepção do absoluta-
mente incognoscível, pois que nada deste tipo ocorre na expe-
riência. E como o significado de um termo consiste na con-
cepção que ele transmite, conseqüentemente, nenhum termo
pode ter a priori tal significado. Assim, supor que uma cognição
é determinada apenas por algo absolutamente externo é supor
suas determinações como incapazes de explicação. E uma hi-
pótese incapaz de explicar aquilo a que se propõe é uma hipó-
tese que se contradiz a si mesma, logo toda e qualquer cognição
é determinada por outras cognições que lhe são anteriores.
Afinal, nenhuma cognição que não seja determinada por ou-
tras prévias pode ser conhecida. E isso não existe, pois: a) é
absolutamente incognoscível, e b) uma cognição apenas existe
na medida em que ela é conhecida.10
Perceba-se que o rigoroso cientificismo de Peirce o leva a
refutar não apenas teorias que fundamentam o conhecimento
no mundo externo, como é o caso do cartesianismo, mas tam-
bém aquelas que o fundamentam no inconsciente – o que
explica o seu confronto intelectual com a nova psicologia bri-
tânica e também com William James, conforme veremos
adiante ainda nesse capítulo. Segundo Peirce, o pragmatismo
é essencialmente um método de comparar concepções entre
si a fim de saber qual delas tem capacidade de modificar a
conduta prática dos sujeitos e, neste sentido, faz parte da lógi-

28
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

ca, e não da psicologia: “Qual é a verdadeira definição do prag-


matismo, eu acho muito difícil de dizer; mas na minha com-
pleição (nature) ele é uma espécie de atração instintiva por
fatos vivos”.11
O pragmatismo de Peirce, no entanto, vai muito além de
constituir uma mera teoria do significado dos conceitos, ou
um simples método de analisar concepções. O pensamento
peirceano, não obstante suas derivações lógicas e matemáti-
cas, dá origem a um verdadeiro sistema filosófico – sua filo-
sofia é uma filosofia da prática: “por filosofia eu entendo aquele
departamento da ciência positiva, ou ciência do fato, que
não se ocupa de acumular fatos, mas somente de aprender o
que pode ser aprendido da experiência que se compele sobre
cada um de nós diariamente e a cada hora”.12 O pragmatis-
mo faz os conceitos irem muito além do plano prático, ele
permite que a imaginação entre em cena em toda a sua ple-
nitude, desde que mantenha em vista os efeitos práticos pos-
síveis dos mesmos e desde que reflita em suas categorias fun-
damentais. 13
O antifundacionalismo de Peirce se traduz também em sua
recusa de lidar com os conceitos de verdade e realidade nos
moldes da metafísica tradicional. De acordo com ele, o que
define a realidade é a sua independência em relação às opi-
niões de pessoas individualmente consideradas. Desta forma,
o real é aquilo que não está sujeito à vontade e aos caprichos
de qualquer pessoa, é aquilo no qual o raciocínio humano irá,
necessariamente, em algum momento, resultar. A realidade,
portanto, se constitui paulatinamente através de um processo
investigatório, consolidando o que Habermas chama de con-
ceito lógico-semântico de realidade de Peirce.14 O pragmatis-
mo antifundacionalista de Peirce implica também um falibi-
lismo – como ele próprio denomina, ressalte-se15 – na medida

29
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

em que ele afirma que as conclusões da ciência são sempre


tentativas, experimentais. Assim, a racionalidade do método
pragmatista não depende da certeza de suas conclusões, mas
de seu caráter autocorretivo. Ou seja, é através da aplicação
contínua da investigação que a ciência, por exemplo, pode
detectar e corrigir seus próprios erros e, possivelmente, con-
duzir à verdade.
É possível afirmar que a questão da verdade – ou a teoria
da verdade – representa justamente o maior ponto de tensão
entre Peirce e William James.16 Se para Peirce o pragmatismo
consistia essencialmente em uma teoria da significação, para
James ele é, além disso, uma teoria da verdade. O ímpeto de
James em tirar o pragmatismo peirceano do quadro-negro,
em fazê-lo sair dos limites da sala de aula ou do laboratório
para alcançar situações concretas do cotidiano, fez com que a
matriz pragmatista não só se tornasse menos científica e dedu-
tiva, como também substantivamente mais ampla. Um dos
pontos em que esta ampliação do escopo inicial da teoria pode
ser melhor percebida é exatamente em como o pragmatismo
lida com a questão da verdade. Enquanto teoria da verdade, o
pragmatismo de James sustenta que as idéias não são apenas
abstrações e generalizações da experiência, mas seus compo-
nentes. Isto é, as idéias não apenas interpretam a experiência,
mas constituem elementos importantes da mesma. Por conse-
guinte, se as idéias são efetivamente aspectos da experiência e
não meramente interpretações dela, elas se tornam verdadei-
ras na medida em que ajudam as pessoas a estabelecer outras
e variadas relações com a experiência.17 Assim, a verdade em
James assume a forma de um processo, o qual ressalta seu
caráter relacional e dinâmico. O primeiro problema de James
está em compatibilizar esse conceito de verdade com a con-
cepção peirceana da verdade como o resultado futuro e pre-

30
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

visível de um acordo (agreement) – a qual James, todavia,


não abandona. Já o segundo problema de James em relação a
Peirce é o de reformular a concepção de verdade como cor-
respondência à realidade sem recair em um subjetivismo exa-
gerado. Mas antes de aprofundar em demasia o tema da ver-
dade, ao qual retornaremos logo adiante, é necessário que
expliquemos como o antifundacionalismo se apresenta em
William James.
De acordo com James, o pragmatismo pode ser compreen-
dido como um método. Não se trata, todavia, de um método
qualquer, mas sim de um “método com atitude”. O método
pragmatista, portanto, é essencialmente um meio de resolver
disputas metafísicas, de colocar um fim em questões tidas como
intermináveis e inconclusivas. Resolver uma contenda metafí-
sica através do método pragmatista implica interpretar cada
um dos conceitos metafísicos traçando suas respectivas conse-
qüências práticas. Em outras palavras, temos aqui o mesmo
pragmatismo enquanto teoria da significação, tal como de-
senvolvido por Peirce: o significado de um conceito apenas
pode ser conhecido através de suas conseqüências práticas. Um
conceito é, em ato, o que ele é no seu futuro – conforme ficará
mais claro adiante, quando abordarmos o conseqüencialismo
pragmatista. A questão que deve ser, portanto, colocada pelo
método pragmatista é melhor desenvolvida por James do que
por seu antecessor: “que diferença faria, no nível prático, para
qualquer pessoa, se esta noção ao invés daquela outra fosse
verdadeira?”. Para o pragmatista, se nenhuma diferença práti-
ca pode ser observada é porque as alternativas significam pra-
ticamente a mesma coisa e, por conseguinte, qualquer disputa
em torno delas é vã.
São vãs e insignificantes, portanto, as controvérsias metafí-
sicas e todos os debates em torno do significado das entidades

31
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

metafísicas – tais como o absoluto, a unidade, a natureza, o


livre-arbítrio, entre tantas outras –, as quais se tornam inócuas
e, por conseguinte, irrelevantes enquanto fundação de qual-
quer pensamento. Como explica James, o pragmatismo:

se mantém distante da abstração e da insuficiência, das solu-


ções literais, das más razões a priori, dos princípios fixos, dos
sistemas fechados, e dos supostos absolutos e origens. Ele se
volta para a concretude e para a adequação, para os fatos,
para a ação e para o poder.18

Para James, por conseguinte, os princípios, as origens, os


absolutos, as razões apriorísticas, enfim, todo e qualquer tipo
de fundação deve ser rejeitado. Se o pragmatismo é, como
James define, uma ‘atitude de orientação’, segundo a qual ne-
nhuma palavra é passível de colocar um ponto final à indaga-
ção e nenhum conceito é passível de concluir uma investiga-
ção, a idéia de fundação precisa ser rejeitada in totem – não
apenas quando ocupa a posição de ponto de partida de uma
teoria, mas também quando é considerada, por alguma teoria,
durante o curso de uma contenda acerca do significado de
alguma concepção. Cada palavra deve ser relacionada com a
experiência, gerando um novo significado e assim sucessiva-
mente, de modo que o pragmatismo não forneça uma solução
– tampouco uma solução final – para o debate, mas sim uma
indicação, uma orientação sobre os modos por meio dos quais
as realidades existentes podem ser modificadas: “as teorias,
portanto, se tornam instrumentos, e não respostas para enig-
mas, em que podemos parar”.19 Ou seja, para o pragmatismo,
não existem respostas capazes de fazer cessar a investigação –
não há uma verdade final a ser atingida –, a qual deve prosse-
guir incessantemente, alimentada a cada momento pelas no-

32
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

vas informações, respostas parciais, semiverdades, que são ge-


radas neste processo de relacionar a realidade com a experiên-
cia. O pragmatismo desestabiliza todas as teorias existentes, as
flexibiliza, as torna maleáveis e as coloca em operação ao se-
rem confrontadas com a experiência de cada participante do
processo investigatório, bem como com a realidade de cada
momento no qual a investigação esteja sendo processada.
De acordo com a formulação pragmatista de James, por
conseguinte, nenhum conceito é passível de oferecer seu sig-
nificado final, pois ele pode ser modificado incessantemente e
é nisso que consiste a sua realidade e a sua verdade. Portanto,
nenhum conceito pode funcionar como ponto de partida de
uma teoria, e tampouco como ponto de chegada. Em sua re-
jeição das abstrações, o método pragmatista consiste na “ati-
tude de fugir das coisas primeiras (first things), princípios, ca-
tegorias, supostas necessidades; e buscar as coisas últimas, fru-
tos, conseqüências, fatos”.20
Com efeito, cabe lembrar que a cruzada antifundacionalista
de James encontra-se no epicentro de seu confronto com o
conjunto de teorias que ele denomina como racionalistas em
oposição àquelas chamadas de empiricistas, no seio das quais
o pragmatismo se enquadra. Os filósofos racionalistas, segun-
do James, são todos aqueles que priorizam os princípios em
detrimento dos fatos, estes últimos abençoados pelos empiri-
cistas. Ademais, os racionalistas são filosoficamente idealistas,
monistas e dogmáticos, enquanto os empiricistas são, ao con-
trário, materialistas, pluralistas e céticos.21
Se o antifundacionalismo de James pode ser devidamente
ilustrado por meio do conflito com o que ele denomina am-
plamente de racionalismo, também o antifundacionalismo de
John Dewey pode ser elucidado através de sua forte oposição
ao idealismo, especialmente o idealismo transcendental ale-

33
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

mão.22 Na verdade, o confronto de Dewey com a filosofia


predominante em seu tempo se estabelece de uma forma mais
generalizada, coincidindo com a recusa de qualquer tipo de
pensamento que insista na idéia de certeza, ou, mais especifi-
camente, na idéia de que a segurança filosófica apenas pode
ser medida pela certeza do conhecimento, enquanto este, por
sua vez, só pode ser medido pela sua aderência a objetos fixos
e imutáveis.
De acordo com Dewey, os homens historicamente se acos-
tumaram a cultivar tudo aquilo que supostamente poderia lhes
trazer a sensação de certeza. Mas apenas a sensação, pois a
certeza absoluta é inalcançável. Mesmo enquanto mera sensa-
ção isso deu aos homens coragem e confiança bastantes para
enfrentar a vida – mas esse fato, afirma ironicamente Dewey,
não pode ser seriamente reivindicado como fundação de ne-
nhuma filosofia que se pretenda razoável. Mas o ponto é que
os fundamentos surgem justamente como resposta para o bra-
do humano pela segurança, ao se encontrarem os homens de-
sesperadamente vivendo uma vida de incerteza em um mun-
do em permanente mutação. Os fundamentos, as fundações,
vêm a substituir os incidentes, os acidentes. Trata-se de uma
tentativa de tornar o mundo um lugar mais seguro, menos
sujeitos às intempéries da vida, mais previsível, sólido... en-
fim, imutável.
De acordo com Dewey, este não é o único rumo que a
filosofia pode tomar, aliás, este é meramente um rumo ilusó-
rio. A filosofa precisa, portanto, passar por uma mudança pro-
funda e modificar sua atitude depreciativa no que concerne à
idéia de prática. É preciso que a filosofia olhe para a prática
como o único meio pelo qual tudo o que for julgado como
admirável e louvável possa ser mantido na existência experi-
mentável e concreta. E não é apenas a prática e a experiência

34
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

que devem substituir a ávida busca pela certeza que Dewey


tanto critica. A filosofia deve também deixar de ignorar as
conseqüências objetivas e as diferenças que elas acarretam nas
relações naturais e sociais; deve deixar de desprezar o valor da
ação, deixar de colocá-la em uma posição inferior às outras
formas de processos mentais, ao pensamento e ao sentimento.
Mas a ação nunca foi considerada pela filosofia como um meio
de buscar a segurança, pois é sabido que:

nenhum modo de ação pode oferecer nada que se aproxime


da certeza absoluta; ela apenas provê uma proteção, mas
não uma garantia. O fazer está sempre sujeito ao perigo, ao
risco da frustração. Quando os homens começaram a refle-
tir filosoficamente, lhes pareceu muito arriscado deixar o
lugar dos valores à mercê de atos cujos resultados não são
nunca certos.23

A verdade, porém, é que mesmo os valores filosóficos, as


concepções ideais do bem, não estão imunes à instabilidade e
à incerteza que os cerca na experiência real, e por isso as pessoas
tendem a se consolar projetando “uma forma perfeita de bem
em um suposto reino da essência, quando não em um paraíso
além dos céus terrenos, aonde a sua autoridade, se não a sua
existência, é completamente inabalável”.24 Segundo Dewey, a
essência de todos os idealismos filosóficos tradicionais reside,
assim, em mostrar que as realidades que constituem os objetos
do mais elevado conhecimento são também dotadas daqueles
valores que correspondem às melhores aspirações e louvores.
Em sua sagaz rejeição de toda espécie de dualismos, Dewey
condena a separação empreendida pela filosofia entre valores,
ou seja, ele recusa que os valores possam ser superiores ou in-
feriores uns em relação aos outros. A suposta segurança ofere-

35
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

cida pelas fundações transcendentais é apenas um consolo – e


um consolo ilusório e provisório, pois não modifica minima-
mente a situação existencial. São inócuas, assim, as tentativas
filosóficas de separar o pensamento da ação e a teoria da prá-
tica, bem como de ressaltar a busca cognitiva pela certeza ab-
soluta em detrimento do esforço prático de fazer a existência
do bem mais segura na experiência. De acordo com Dewey,
portanto, a filosofia também se encontra no caminho errado
quando considera que o pensamento pode ocupar a posição
de bem supremo. A única consideração que pode auxiliá-la a
tentar lograr uma segurança concreta no que diz respeito aos
valores seria a perfectibilidade dos métodos da ação. Mas como,
de qualquer modo, será impossível obter segurança a partir
dos resultados da ação, os homens em sua busca incessante
pela certeza necessitam ainda garantir a validade de suas cren-
ças intelectuais.25
Ademais, a filosofia precisa se modificar também no cam-
po da teoria da verdade, devendo, assim, rever o seu método
de averiguar e testar a verdade:

Até que eles [os filósofos tradicionalistas e literalistas] tenham


renascido na vida da inteligência, não estarão conscientes de
que há um numero crescente de pessoas que encontram se-
gurança em métodos de investigação, de observação, de ex-
perimentação, de formar e seguir hipóteses de trabalho. Tais
pessoas não ficam inseguras pela frustração de alguma cren-
ça, pois elas retêm a segurança do procedimento.26

O que deve estar em pauta, portanto, não é se certos valo-


res, associados a tradições e instituições, possuem uma essên-
cia superior, mas sim quais julgamentos concretos devemos
formar sobre os meios e fins na regulação do comportamento

36
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

prático. De acordo com Dewey, a ênfase colocada na primeira


destas questões – isto é, a criação de dogmas sobre o modo
pelo qual os valores são reais independentemente do que se
faz – é responsável pelo estado de confusão e irresolução no
qual se encontram os homens em face do caráter necessaria-
mente mutável da ciência Em outras palavras, se os homens
tivessem associado suas idéias sobre valores com a atividade
prática, ao invés de fazê-lo com a cognição de um ser supre-
mo e anterior, eles jamais encontrariam problemas com as
inovações científicas.27
O que a filosofia deve buscar não é o ser e o conhecimento
em si, mas o estado da existência em momentos e lugares es-
pecíficos, bem como o estado dos sentimentos, planos e pro-
pósitos sob circunstâncias concretas. A filosofia não deve se
preocupar em elaborar uma teoria geral da realidade, do co-
nhecimento e do valor, mas sim tentar compreender como
crenças autênticas acerca da existência podem operar provei-
tosa e eficazmente em relação aos problemas práticos que são
urgentes na vida real.28
O antifundacionalismo de Dewey se manifesta, portanto,
em sua recusa incessante em torno da certeza e da segurança,
não apenas em um nível filosófico, mas enquanto prática de
vida. Dewey rejeita todos os tipos de dogmas, valores supre-
mos, autoridades últimas, dualismos, e deseja substituí-los pela
incerteza e imprevisibilidade da experiência humana, cons-
tantemente mutável e dinâmica. É a prática, a ação prática
dos homens, que deve servir de fundamento para a filosofia,
fundamento este que nem pode ser denominado como tal,
assentado que está nas idéias de variação, de mutação e de
incerteza.
Observe-se, por conseguinte, que, se por um lado, o ponto
de partida do antifundacionalismo pragmatista é o mesmo,

37
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

por outro lado, o seu ponto de chegada parece indicar deter-


minadas nuances em cada um dos três pragmatistas clássicos.
Neste sentido, o antifundacionalismo de Peirce muitas vezes
se converte em um falibilismo, na medida em que a inesgota-
bilidade do processo investigatório faz com que cada tentativa
de conclusão seja antes uma nova fonte de informação passí-
vel de colocar a investigação novamente em marcha, revisan-
do e corrigindo a si mesma permanentemente. No caso de
James, seu antifundacionalismo, ao ampliar o escopo da teo-
ria da significação pragmatista, parece já sinalizar fortemente
com o conseqüencialismo. Do mesmo modo, Dewey apresen-
ta um antifundacionalismo fortemente associado ao contex-
tualismo pragmatista – que ainda analisaremos, contudo – ao
ressaltar a conexão da experiência e da prática com uma filo-
sofia que prescinde de fundamentos.

1.1.2. CONSEQÜENCIALISMO
O conseqüencialismo, ou instrumentalismo, representa a
característica talvez mais conhecida do pragmatismo. Trata-se
da insistência de olhar para o futuro, e não para o passado. A
referência ao passado não é um dever para o pragmatista, ela
deve ser feita apenas quando for metodologicamente interes-
sante ao próprio estabelecimento do futuro. É para o futuro
que o pragmatista olha e é para lá que ele se direciona. Disto
decorre que tanto a teoria da significação, como a teoria da
verdade, levadas a cabo pelo pragmatismo, caracterizam-se pela
submissão permanente ao ‘teste’ conseqüencialista: o signifi-
cado de uma proposição, bem como a sua verdade, apenas
podem ser conhecidos se forem verificados a partir do teste de
suas conseqüências. É aqui que entra em jogo a famosa ques-
tão pragmatista, aquela que não cessa sua indagação: quais as

38
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

diferenças que as conseqüências disto ou daquilo podem acar-


retar? É, portanto, antecipando conseqüências futuras que se
produz conhecimento no âmbito do pragmatismo. E estas
conseqüências futuras devem ser permanentemente antecipa-
das para que se possa conhecer qual delas é melhor, a mais
satisfatória, a mais útil e a mais benéfica. Enfim, é neste ponto
que encontramos algumas das variações mais interessantes entre
os três autores pragmatistas sob análise.
Peirce insistia em afirmar que a função do pragmatismo
consiste em facilitar o esclarecimento de idéias obscuras e aju-
dar a compreender idéias que são claras, porém difíceis de se-
rem entendidas. A chave para a realização desta tarefa reside
em um método, qual seja o de resolver confusões conceituais
relacionando o significado dos conceitos às suas conseqüên-
cias. Se o significado das proposições reside no seu futuro, por
conseguinte, também os raciocínios devem dirigir-se ao futu-
ro, pois seu significado se refere à conduta prática – e a única
conduta passível de controle é a conduta futura.
De acordo com Habermas, no entanto, o pragmatismo de
Peirce oferece muito mais do que um mero critério para escla-
recer e definir o sentido de concepções e teorias, posto que
formula uma lógica de investigação orientada pela reflexão que
o leva a fornecer uma resposta à questão sobre como o pro-
gresso científico é possível: “o pragmatismo responde a esta
pergunta legitimando a validade das formas sintéticas da infe-
rência a partir do contexto transcendental da atividade instru-
mentalista”, explica Habermas.29
Na origem deste instrumentalismo que se centrava na idéia
de que o significado apenas se conhece através do propósito
(purpose), está, certamente, a influência do darwinismo no
pragmatismo. Para Peirce, a mente consiste em um mecanis-
mo prático, tendo em vista que é instrumental para a sobrevi-

39
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

vência do homem. Assim como o significado se adapta ao seu


propósito, o sujeito se adapta ao seu fim, e a mente, por sua
vez, constitui-se em um mecanismo adaptativo para enfrentar
o ambiente externo.30
Entre o final de 1877 e o início de 1878, o pragmatismo de
Peirce vem à tona publicamente pela primeira vez, recebendo
nome próprio e formas distintivas em uma pequena série de
artigos publicados em importantes periódicos de sua época. É
em um destes textos que se encontra a formulação original de
sua conhecida ‘máxima pragmática’:

Considere quais efeitos, que podem concebivelmente ter


suportes práticos, nós concebemos que o objeto da nossa
concepção tenha. Então, nossa concepção daqueles efeitos é
o total das nossas concepções do objeto.31

Alguns anos mais tarde, Peirce tentou fazer da máxima prag-


mática – a qual assume ter formulado originalmente na forma
de uma máxima lógica – um teorema filosófico, reformulan-
do-a da seguinte forma:

Pragmatismo é o princípio de que todo julgamento teórico


exprimível em uma sentença no modo indicativo é uma
forma confusa de pensamento cujo único significado, se é
que há algum, reside na sua tendência de cumprir (enforce)
uma máxima prática correspondente exprimível como uma
sentença condicional que tenha sua apódose no modo im-
perativo.32

Em outra ocasião, ainda mais tarde, Peirce elaborou mais


uma formulação da máxima pragmática, desta vez em termos
semióticos:

40
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

O inteiro significado intelectual de qualquer símbolo con-


siste no total de todos os modos gerais de conduta racio-
nal, os quais condicionalmente sob todas as circunstâncias
e desejos diferentes possíveis resultariam na aceitação do
símbolo. 33

Em que consiste a máxima pragmática, afinal? Trata-se de


uma máxima lógica, de um princípio regulativo, ou trata-se
de uma verdade positiva que pode ser tomada como uma hi-
pótese científica que requer confirmação indutiva? De acordo
com Nathan Houser, estudioso de Peirce e responsável por
uma das mais recentes coletâneas de sua obra, a máxima prag-
mática é, ao mesmo tempo, tudo isso. A máxima pragmática
é, por conseguinte, uma espécie de teste para verificar se con-
cepções e teorias se relacionam de fato com a experiência.34
O que Peirce se refere na formulação da máxima pragmáti-
ca como ‘conseqüências práticas’ são claramente proposições
condicionais do tipo se p então q, nas quais o antecedente ‘p’
descreve uma ação ou condição experimental, e o conseqüen-
te ‘q’ descreve um fenômeno observável ou um ‘efeito sensí-
vel’.35 O objeto em jogo, portanto, é definido por meio da
soma de seus possíveis comportamentos práticos, por conse-
guinte, o significado das concepções se refere necessariamente
a experiências futuras. A conduta futura, ainda não realizada,
é a única que pode ser objeto de autocontrole – sempre que
um homem age intencionalmente ele o faz a partir de uma
crença baseada em algum fenômeno experimental prévio, pois
o que leva as pessoas à ação é um objetivo, um propósito
(aim).36 Daí a insistência de Peirce em afirmar que, para se
compreender o pragmatismo, é preciso investigar o que pode
vir a ser um fim último, capaz de ser buscado através de um
curso de ação indefinidamente prolongado.37

41
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Se a máxima pragmática, tal como formulada por Peirce


em termos lógicos, filosóficos ou semióticos, ainda assim pa-
rece difícil de ser apreendida na extensão total do seu signifi-
cado, ela recebe de William James, no entanto, uma versão
aparentemente mais compreensível. De acordo com James, em
sua tarefa de tornar o pragmatismo uma filosofia popular, in-
teligível não apenas para os iniciados, mas também para os
leigos:

para se obter uma clareza perfeita em nossos pensamentos


sobre um objeto, precisamos apenas considerar quais efei-
tos práticos concebíveis o objeto pode acarretar – quais sen-
sações podemos esperar dele, e quais reações devemos pre-
parar. Nossa concepção destes efeitos, seja imediata ou re-
mota, é então a totalidade da nossa concepção do objeto,
na medida em que aquela concepção tenha um significado
positivo.38

A máxima pragmática, contudo, ganha com James aplica-


ções que excedem os limites da teoria da significação. Com
efeito, James incorpora o espírito pragmatista e demonstra
como a máxima (que algumas vezes, no entanto, ele chama de
princípio) pragmática se aplica em situações concretas da prá-
tica cotidiana. Seja para solucionar uma contenda metafísica,
seja para resolver um problema corriqueiro, a pergunta que o
pragmatista deve se colocar será sempre a mesma: “Quais di-
ferenças práticas são concebíveis entre um e outro caso?” E a
resposta que ele busca obter tem por finalidade identificar qual
dos dois objetos em questão, sejam eles quais forem, é melhor
para aquele que se faz a pergunta. “De acordo com os princí-
pios pragmáticos, nós não podemos rejeitar nenhuma hipóte-
se se dela decorrem conseqüências úteis para a vida”.39 Ou
seja, o que está em jogo é analisar – ou comparar – concep-

42
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

ções, a fim de determinar quais efeitos práticos positivos elas


podem trazer no futuro. Deste modo, o pragmatismo, em prin-
cípio, não rejeita terminantemente nenhuma concepção, bem
como não adota nenhuma outra em caráter terminativo. As
concepções só são adotadas na medida em que são boas – ou
úteis – para o pragmatista, naquele momento – pois, em um
momento futuro, elas podem deixar de ser. Assim se entende
que, pragmaticamente, por mais que o pragmatismo tenda,
por exemplo, a se alinhar com concepções particularistas e
rejeitar aquelas de caráter universalista, esta relação pode se
inverter em um determinado momento, se assim for útil ao
pragmatista.

Concepções universais, enquanto coisas a se considerar, po-


dem ser tão reais para o pragmatismo quanto são as sensa-
ções particulares. Entretanto, elas não têm nenhum signifi-
cado e nenhuma realidade se elas não tiverem nenhum uso.
Mas se elas tiverem algum uso, terão então um significado
equivalente. E o significado será verdadeiro se o uso se com-
patibilizar com outros usos da vida.40

Mais do que um pretenso relativismo, o que este exemplo


do posicionamento pragmatista de James indica é um vigoro-
so conseqüencialismo. Todas as hipóteses devem ser testadas,
e o devem ser instrumentalmente – isto é, a partir da dedução
de suas conseqüências. Se estas não se mostrarem úteis ao
pragmatista, devem ser descartadas, pois é a sua utilidade que
faz com que se tornem significativas e reais. Quanto àquelas
hipóteses cujas conseqüências se mostrem úteis aos olhos do
pragmatista, serão tão significativas quanto a utilidade que
delas se revelar. E o significado destas hipóteses será ainda um
significado verdadeiro, isto é, o objeto em questão será consi-
derado uma verdade, na medida em que ele se adicione positi-

43
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

vamente a outros objetos presentes na experiência, dando iní-


cio assim ao processo pragmatista de criação da verdade.41
O pragmatismo de James, por conseguinte, coloca em pauta
uma concepção instrumental de verdade, a qual é também
compartilhada por Dewey, conforme veremos adiante. Tal
concepção pode ser sintetizada pela noção de que uma idéia é
verdadeira à medida que acreditar nela seja proveitoso para a
vida de uma pessoa. Disto decorre que a verdade é, segundo
James, uma espécie de bem (good ) e não meramente uma ca-
tegoria correlata, ou mesmo distinta dele. “A verdade é o nome
de tudo o que prove ser bom em matéria de crença”.42 De
acordo com James, não é possível separar o que é melhor para
as pessoas do que é verdadeiro para elas. De onde ele deduz
que a verdade pode ser definida como “o que é melhor para
nós acreditarmos”.43 O teste da verdade, portanto, é encon-
trar aquilo que melhor direciona a vida no sentido de adaptar
continuamente a experiência.

Desta simples sugestão o pragmatismo obtém sua noção ge-


ral de verdade como algo essencialmente ligado com o modo
pelo qual um momento de nossa experiência pode nos levar
a outros momentos aos quais valerá a pena ter sido levado.
Primeiramente, e no nível do senso comum, a verdade de
um estado de mente significa esta função de uma direção
que vale a pena. Quando um momento em nossa experiên-
cia, de qualquer tipo que seja, nos inspira com um pensa-
mento que é verdadeiro, isso significa que mais cedo ou mais
tarde nós mergulharemos de novo através da orientação da-
quele pensamento nas particularidades da experiência e fa-
remos conexões vantajosas com elas.44

A questão que o pragmatismo se coloca, portanto, é: os


acréscimos de novas experiências que temos àquelas já exis-

44
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

tentes fazem com que a nossa experiência geral aumente ou


diminua de valor? Estes acréscimos são valiosos ou não?
Eles valem a pena ou não? Este tipo de conseqüencialismo
é visto por James como uma espécie de criatividade inerente
ao pragmatismo.45 Caracterizando-se como uma filosofia
eminentemente prospectiva, voltada para o futuro, o prag-
matismo encara não apenas a verdade, mas a realidade, o
mundo, como algo inteiramente maleável, à espera de rece-
ber a sua forma final de nossas próprias mãos. Afinal, quan-
do somos nós mesmos a dar forma à nossa verdade e realida-
de, esta forma será sempre uma que vale a pena, e que nos é
benéfica.
Se a teoria da verdade de James o afasta de Peirce ao trans-
gredir os limites da lógica e da ciência, no entanto, ela o apro-
xima de Dewey. Assim como James, também Dewey esforça-
se por encontrar um terceiro caminho entre a definição de
verdade enquanto consistência (ou acordo), defendida pelo
idealismo, e a definição de verdade como correspondência,
prezada pelo realismo. De acordo com Dewey, a primeira su-
posição em comum feita tanto pelos idealistas quanto pelos
realistas é que uma proposição (statement), por natureza, im-
plica uma assertiva (assertion) de sua própria verdade. Para o
pragmatista, ao contrário, uma afirmação ou proposição, na
exata medida em que possui genuinamente uma qualidade
intelectual, implica uma dúvida relativa à sua própria verda-
de, bem como uma busca e uma investigação pela verdade.
Segundo Dewey, a proposição que assevera ou assume sua pró-
pria verdade, nos moldes realistas e/ou idealistas, consiste em
nada mais do que um dogmatismo absoluto. Se há uma pro-
posição, isso não significa que há também uma verdade nela
contida; significa apenas que há razões plausíveis para que se
infira a verdade dela, e que tal inferência decorra de determi-

45
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

nadas investigações levadas a cabo pela dúvida – e não pela


verdade – inerente à existência da proposição.46
Assim, Dewey acredita que o primeiro passo da crítica prag-
matista à noção de verdade tanto do idealismo quanto do rea-
lismo deve ser questionar a idéia de que por natureza toda
proposição implica uma assertiva de sua própria verdade. Esta
convicção deve ser, por conseguinte, substituída pela suposi-
ção de que toda proposição é uma hipótese relativa a algum
estado de coisas, e que é de sua natureza ser duvidosa, incerta,
quanto à verdade. E mais do que isto, a assertiva que a propo-
sição faz de sua própria verdade é apenas condicional, pois é
meramente um meio de iniciar atividades de investigação que
vão então testar o valor (worth) de sua reivindicação. Portan-
to, a verdade apenas pode existir no teste da reivindicação e
nos atos subseqüentes que ele prescrever.47
A teoria pragmática da verdade pretende deste modo repre-
sentar fielmente o método da ciência, o qual, de acordo com
Dewey: a) considera todas as proposições como provisórias ou
hipotéticas até que sejam submetidas a testes experimentais; b)
empenha-se para organizar estas proposições em termos que
indiquem os procedimentos necessários para testar a elas mes-
mas; e c) nunca esquece que mesmo proposições asseguradas
consistem em nada mais do que sumários de investigações e
testes anteriores e, por conseguinte, estão sujeitas a revisões que
venham a ser requeridas por novas investigações.48
Já o segundo passo que deve ser dado pela crítica pragma-
tista ao conceito de verdade idealista e/ou realista, segundo
Dewey, consiste em reconhecer que com a mudança proposta
pelo pragmatismo as proposições ganham uma perspectiva de
futuro, uma referência futura, ao passo que a noção tradicio-
nal de verdade, ao contrário, faz com que as proposições se
refiram sempre a condições antecedentes. Tanto para o idea-

46
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

lista como para o realista a verdade é uma propriedade que já


existe previamente nas proposições, tornando-se por isso irre-
levante para eles conhecer o que se faz com a proposição, o
que deriva do seu uso, as diferenças que ela acarreta na expe-
riência futura, entre outras coisas cruciais ao pragmatismo.

O pragmatista diz que como toda proposição é uma hipóte-


se que se refere a uma investigação a ser ainda realizada, sua
verdade depende de sua carreira, de sua história: isto é, a
proposição se tornará ou será feita verdadeira (ou falsa) no
processo de satisfazer ou frustrar sua própria proposta.49

Para Dewey, portanto, é da natureza das proposições se-


rem hipotéticas e tentativas. Elas apenas serão verdadeiras se
este for o resultado do processo de investigação que busca
aferir a sua verdade. Em outras palavras, as proposições só
podem ser tidas como verdadeiras se as conseqüências futuras
do processo de investigação de sua verdade assim indicarem.
Para o pragmatismo, afinal, uma vez que todas as proposições
contêm intrinsecamente e necessariamente uma referência ao
futuro, sua verdade ou falsidade depende do sucesso ou da
derrota de sua finalidade. Por conseguinte, o maior rompi-
mento do pragmatismo com o idealismo e o realismo – cada
qual, todavia, com as suas peculiaridades – consiste em mos-
trar que o conceito de verdade não pode ser dado em si mes-
mo, tampouco o pode ser aprioristicamente, isto é, ele não
pode estar voltado para trás, referir-se a um significado pré-
vio, antecedente.50
Assim, o terceiro passo da teoria pragmatista deve ser, se-
gundo Dewey, considerar o modo peculiar através do qual uma
proposição cumpre a sua missão, exerce a sua finalidade. E o
que está em jogo aqui é exatamente a idéia de finalidade, ou

47
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

seja, de se alcançar um fim determinado. Neste sentido, Dewey


afirma que o conceito pragmatista de verdade é responsivo,
pois ele responde a alguma coisa, a alguma necessidade, a um
fim desejável. E, ao mesmo tempo, este conceito pode ser cons-
tantemente corrigido, uma vez que sua constituição decorre
de um processo permanente de investigação, de verificação do
seu significado. Por conseguinte, ser um conceito verdadeiro
significa ter sido verificado proveitosamente sob as condições
de teste. E se estas condições se modificarem, se complexifica-
rem, por exemplo, aquilo que já era verdade deverá passar por
uma revisão, podendo, talvez, sob as novas condições, deixar
de sê-lo.51
A definição de verdade por meio de referência às conse-
qüências futuras leva Dewey a caracterizar as proposições como
aquilo que deve ser utilizado de um certo modo a fim de al-
cançar fins que são desejáveis, ou ainda evitar aqueles indese-
jáveis. É o teste das possíveis conseqüências de uma proposi-
ção, isto é, sua capacidade de produzir ou não tais conseqüên-
cias sob as condições do teste que constituirão, no futuro, a
verdade. Ou, em outras palavras, a verdade significa a satisfa-
ção das conseqüências às quais uma proposição se refere. Estas
definições vêm ao encontro das idéias de Dewey acerca da
noção de tempo, mais especificamente do tempo futuro. De
acordo com Dewey, de um modo geral, a futuridade está sem-
pre incluída diretamente em todo e qualquer evento presente.
Uma vez que todas as coisas – sejam elas proposições cognitivas
ou eventos da experiência prática – são passíveis de terem as
suas conseqüências inferidas a qualquer momento, o futuro
destas coisas está sempre compreendido no seu presente. Des-
te modo, conforme explica Dewey, o passado, o presente e o
futuro estão em um mesmo nível, pois todos constituem ape-
nas fases de uma mesma coisa.52

48
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

1.1.3. CONTEXTUALISMO

O contextualismo consiste talvez em uma das característi-


cas do pragmatismo que mais encontra reflexos no âmbito da
história da filosofia. Trata-se de insistir na importância de que
as investigações filosóficas estejam atentas ao papel do contex-
to em seu desenvolvimento. Em outras palavras, trata-se de
reivindicar consideração às crenças políticas, religiosas, cientí-
ficas, enfim, à cultura da sociedade e às relações que mantém
com as instituições e práticas sociais. A este corpo de crenças,
o pragmatismo chama de experiência. E a experiência é o con-
ceito-chave para que se possa compreender a idéia de contex-
to; aliás, em termos gerais, pode-se dizer que a experiência é o
mais abrangente dos contextos. Associado ao conceito de ex-
periência está outro de extrema relevância para o pragmatis-
mo, qual seja o conceito de prática. A prática é o principal
elemento constitutivo da experiência; além de ser um concei-
to presente no seio do antifundacionalismo e do conseqüen-
cialismo pragmatista, como vimos, o é também – e principal-
mente – de seu contextualismo.53 A prática, que o pragmatis-
mo quer sobrepor à teoria, remete diretamente à formulação
do conceito pragmatista de ação, o qual, ao lado das crenças, é
vital para que se compreenda a idéia pragmatista de contex-
tualismo. Ainda, no centro desta idéia, vale dizer, no centro
do contextualismo pragmatista, está o conceito de investigação
e, mais especificamente, o conceito de ‘comunidade de investi-
gação’. A este conceito, o pragmatismo alia algumas de suas
principais idéias contextualistas: a ênfase nos fatos (o método
pragmatista, experimental em sua essência, se baseia, sobretu-
do, nos fatos inquestionáveis da experiência cotidiana e no que
pode ser deduzido deles), a relevância da concretude, a impor-
tância do social (para o pragmatismo, o pensamento está sem-

49
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

pre incrustado em um contexto de prática social), o papel da


comunidade, a idéia de adaptação, enfim, vários conceitos sobre
os quais nos debruçaremos a partir de agora ao conhecer a sua
elaboração em cada um dos três pragmatistas originais.
O pragmatismo, a partir de Peirce, se vale da definição de
crença cunhada em primeira mão por Alexander Bain, um
dos fundadores da Nova Psicologia na Inglaterra: crença é aqui-
lo que prepara um homem para agir.54 A crença não é, portan-
to, um modo transitório da consciência, ela é um hábito da
mente essencialmente duradouro por algum tempo e em boa
parte inconsciente e, como outros hábitos da mente, se auto-
satisfaz perfeitamente. Mas o que é uma crença? Ela se define
por três propriedades: a) ela é algo de que se está ciente; b) ela
sacia a irritação causada pela dúvida; e c) ela se inclui no esta-
belecimento, na natureza humana, de uma regra de ação, ou
um hábito. O conhecimento de uma crença é essencial para a
sua existência. As crenças guiam os desejos e dão forma às
ações. A crença é um estágio da ação da mente, um efeito do
pensamento sobre a natureza, o qual vai influenciar o pensa-
mento futuro.
As coisas reais têm o efeito de causar crenças, pois todas as
sensações que elas despertam emergem na consciência na for-
ma de crenças. Para se saber o que é uma coisa, entretanto, é
preciso antes saber que hábitos esta coisa envolve. No entan-
to, para se identificar um hábito, por sua vez, é preciso se
entender como ele leva à ação, sob quaisquer circunstâncias,
mesmo aquelas improváveis. Ou seja, o que o hábito é depen-
de de quando e como ele causa uma ação. A formação de um
hábito é uma indução e, por isso, as ações voluntárias resul-
tam de sensações produzidas por hábitos e as ações instintivas
decorrem da natureza original do homem, explica Peirce.55 O
hábito provoca a ação tanto no mundo da experiência como

50
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

no mundo da imaginação.Todas as pessoas possuem hábitos


e, ao mesmo tempo, uma capacidade de controlar suas ações
futuras: a função do pensamento é produzir hábitos de ação.
Afinal, a essência da crença é o estabelecimento de um hábito.
A dúvida, ao contrário, é uma privação do hábito. O teste da
dúvida e da crença é a conduta.56
Tanto as dúvidas (doubts) quanto as crenças possuem um
efeito positivo sobre as pessoas, apesar de este efeito ser bas-
tante diferente em cada um dos dois casos. As crenças, apesar
de não fazerem com que as pessoas ajam imediatamente, as
colocam em uma posição tal que, quando surgir uma ocasião,
se comportem de um determinado modo. Já as dúvidas, por
seu turno, estimulam continuamente as pessoas à ação, até
que sejam destruídas. Isto porque a dúvida consiste em um
estado angustiante e desagradável do qual as pessoas lutam
para se livrar e passar ao estado de crença, este satisfatório e
calmo, e que ninguém deseja evitar. A irritação causada pela
dúvida leva as pessoas, portanto, a uma luta para alcançar um
estado de crença. A esta luta, Peirce chama de investigação
(inquiry). A investigação tem como único objetivo o estabele-
cimento da opinião, ou seja, fazer cessar o estado de dúvida e
instalar a crença. E observe-se que, uma vez atingida a crença,
ela é sempre satisfatória não obstante ser verdadeira ou falsa.
Como afirma Peirce, “nós buscamos uma crença que devería-
mos pensar ser verdadeira”.57
Para satisfazer as dúvidas, portanto, torna-se necessário que
se encontre um método através do qual as crenças não possam
ser causadas por algo humano, mas por alguma coisa externa,
alguma coisa sobre a qual o pensamento não surta efeitos. Este
método deve ser tal que a conclusão de todos os homens que o
utilizem seja a mesma. Segundo Peirce, este é o método da
ciência.58

51
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

(...) o progresso da investigação os leva [os pesquisadores] à


força para fora deles mesmos até uma única e mesma con-
clusão. Esta atividade do pensamento pela qual somos leva-
dos, não aonde desejamos, mas para um objetivo predeter-
minado, é como a operação do destino. Nenhuma modifica-
ção do ponto de vista tomado, nenhuma seleção diferente
de fatos para estudo, nenhuma disposição natural da mente,
pode habilitar um homem a escapar da opinião predestina-
da. Esta grande lei está incorporada na concepção de verda-
de e de realidade. A opinião que está fadada a ser, no final
das contas, concordada (agreed ) por todos aqueles que in-
vestigam, é o que denominamos por verdade, e o objeto re-
presentado nesta opinião é o real.59

Aqui está, por conseguinte, a essência do conceito dessa


comunidade lingüística ou semiótica elaborado inicialmente
por Peirce e posteriormente desenvolvido pelos outros autores
pragmatistas: a ‘comunidade de investigadores’ ou ‘comuni-
dade de investigação’. Para Peirce, a identificação com a co-
munidade é fundamental para o progresso do conhecimento e
das relações humanas. Apenas quando a investigação – esta
espécie de pesquisa em um sentido bem mais amplo – é toma-
da como uma prática de vida, e mais do que isto, da vida da
comunidade, é que o pragmatismo tangencia os conceitos de
verdade e de realidade.
De acordo com o contextualismo de Peirce, a própria ori-
gem da concepção de realidade demonstra como ela envolve a
noção de uma comunidade sem limites definidos e capaz de
um aumento também indefinido de conhecimento. Em últi-
ma instância, portanto, a realidade depende de uma decisão
da comunidade, o que deve se dar quando esta atingir um
estado de completa informação.60 De onde se infere o erro
básico e inicial dos nominalistas, ao definirem a crença como

52
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

algo individual. A investigação é sempre comunitária – as cren-


ças individuais de cada um serão iguais à crença da comunida-
de como um todo no final do processo investigatório, pois as
opiniões individuais necessariamente vão convergir para uma
mesma opinião, da comunidade.
Como afirma Habermas, o que diferencia Peirce do positi-
vismo é a sua compreensão de que a tarefa da metodologia
não é a de esclarecer a construção lógica das teorias científicas
mas clarear a própria lógica do método (o pragmatista) com a
ajuda do qual as teorias científicas serão abordadas. Daí que as
informações ganham caráter científico apenas quando é pos-
sível se obter um consenso duradouro e isento de coação acer-
ca de sua validade. Consenso este que, prossegue explicando
Habermas, não é definitivo, mas que tem em vista uma con-
cordância definitiva.61
O processo contextualista que William James descreve so-
bre a formação da verdade e da realidade é, ao mesmo tempo,
muito semelhante e muito diferente daquele desenvolvido por
Peirce, principalmente quando fala sobre a consolidação de
uma crença e o conseqüente estabelecimento de uma opinião.
De acordo com James, os indivíduos possuem um estoque de
opiniões antigas que é colocado em movimento quando elas
se defrontam com uma nova experiência. À turbulência inter-
na que decorre disso, tenta-se escapar modificando a massa de
opiniões prévia. Interessante neste ponto é a observação de
James, que afirma que os indivíduos tentam salvar o máximo
possível de opiniões antigas, pois “em matéria de crenças, nós
somos todos extremamente conservadores”.62 Dando seqüên-
cia ao processo de formação da verdade, a nova idéia é então
adotada como uma idéia verdadeira. Ou melhor, esta nova
idéia é o que passa a representar a verdade, e não mais a idéia
anterior – que já nem mais existe nesta etapa do processo. A

53
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

verdade é então a soma da idéia nova trazida pela experiência


com as idéias anteriores já presentes na mente. Não se trata de
uma soma exata, como sabemos. Há restos que são descarta-
dos, partes que são arredondadas, enfim, trata-se de um pro-
cesso de integração do velho com o novo, cujo resultado será
necessariamente verdadeiro. A nova idéia produzida, portan-
to, preserva o estoque anterior de verdades modificando-o
minimamente, esticando as verdades antigas o suficiente para
que admitam a nova idéia: “as revoluções mais violentas nas
crenças de um indivíduo deixam em pé a maior parte de sua
antiga ordem”.63 De acordo com James, o que se passa com a
verdade é uma espécie de ‘casamento’ entre a antiga opinião e
o novo fato, o qual se processa com o máximo de continuida-
de e o mínimo de conflito.
Portanto, ‘ser verdadeiro’, explica James, significa apenas
realizar este casamento entre as partes anteriores e novas da
experiência. Os novos conteúdos agregados não são em si
verdadeiros, verdadeiro é o que dizemos sobre eles. A verda-
de se auto-satisfaz apenas pela adição do novo conteúdo. E
mais do que isto, ensina James, uma nova opinião conta como
verdadeira na mesma proporção que satisfaz o desejo do in-
divíduo de assimilar a novidade de sua experiência às cren-
ças do seu estoque. O sucesso da realização do casamento
entre a antiga verdade e o novo fato depende da apreciação
individual: “quando a antiga verdade cresce pela adição da
nova verdade, é por razões subjetivas”.64 Ressalte-se que este
tipo de afirmação custou a James não apenas a insatisfação
de Peirce, mas também persistentes críticas que até contem-
poraneamente insistem em caracterizá-lo pelo seu suposto e
excessivo subjetivismo.65
Novamente as questões pragmatistas se colocam, desta vez
sob novas vestes: “Admita uma idéia ou crença como sendo

54
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

verdadeira, quais diferenças concretas o fato de ela ser verda-


deira acarreta na vida efetiva de qualquer pessoa?”; “Como a
verdade vai ser realizada?”; “Que experiências serão diferentes
daquelas que se obteriam se a crença fosse falsa?”. A resposta
que James oferece para estas perguntas é única: “Idéias verda-
deiras são aquelas que nós podemos assimilar, validar, corro-
borar e verificar. Idéias falsas são aquelas com as quais não
podemos fazer isso. Esta é a diferença prática que faz para nós
termos idéias verdadeiras”.66 Disto decorre que a verdade de
uma idéia não é uma propriedade inerente a ela, uma parte
sua. “A verdade acontece a uma idéia. Ela se torna verdadeira,
é feita verdadeira pelos eventos. Sua verdade é de fato um
evento, um processo; o processo de sua própria verificação,
sua veri-ficação (veri-fication). Sua validade é o processo de
sua vali-dação (valid-ation)”.67 Quando James se refere à ve-
rificação e à validação da verdade, o que está em jogo são as
conseqüências práticas da idéia verificada ou validada. E,
segundo ele, não há nada melhor para caracterizar estas con-
seqüências do que a ‘fórmula do acordo’ (agreement-formu-
la), tal como elaborada por Peirce. Tais conseqüências práti-
cas são, portanto, aquilo que temos em mente sempre que
dizemos que nossas idéias ‘concordam’ com a realidade, ex-
plica James. O valor prático das idéias verdadeiras deriva
primariamente da importância prática que o objeto da idéia
tem para alguém.
Com efeito, James quer dar uma dimensão mais ampla
àquilo que Peirce delineou como o acordo resultante do pro-
cesso de investigação que leva à definição da realidade e da
verdade. Consoante James, a própria palavra ‘acordo’ deve
ser interpretada pragmaticamente, de modo que ela não seja
tão essencial na formação do conceito de verdade. O que é
essencial para James é o processo de ser conduzido à realida-

55
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

de e ao que é útil nesta realidade.68 Em outras palavras, tal-


vez possamos pensar que, enquanto para Peirce a verdade e a
realidade só poderiam ser atingidas ao final de um longo
processo de investigação, quando as opiniões de todos os
participantes deste processo necessariamente convergissem,
como conseqüência natural dele, para James, diferentemen-
te, a realidade e a verdade se constituem e se reconstituem a
todo momento, sempre que um novo fato é adicionado à
experiência. Desta forma, a verdade e a realidade não são
para James um resultado final, como em Peirce, mas uma
espécie de ‘resultado provisório’, que se encontra sempre em
constante mutação.

No campo dos processos da verdade, os fatos chegam inde-


pendentemente e determinam nossas crenças provisoriamen-
te. Mas estas crenças nos fazem agir, e tão logo elas o fazem
trazem à vista ou à existência novos fatos que re-determi-
nam as crenças correspondentes. Então todo o entrançamento
(coil and ball) da verdade é o produto de uma dupla influên-
cia. Verdades emergem de fatos, mas mergulham na direção
deles de novo e se adicionam a eles; estes fatos novamente
criam ou revelam uma nova verdade e assim por diante, in-
definidamente. Os ‘fatos’ em si entrementes não são verda-
deiros. Eles simplesmente são. Verdade é a função das crenças
que começam e terminam entre eles.69

Assim como os fatos da vida estão em mutação, a experiên-


cia também o está. Quando os fatos mudam, a experiência de
quem os vivencia segue o mesmo curso, modificando-se tam-
bém. A soma dos novos fatos com a experiência preexistente
também resulta em uma mutação daquilo que se entende como
verdade. Uma vez que a verdade simplesmente é, ela constitui
a realidade que, por conseguinte, também se caracteriza pela

56
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

mutabilidade incessante. O que esta noção de mutabilidade


tão presente no pragmatismo de James nos indica, todavia, é a
idéia de adaptação, adequação. Afinal, ao entrar em contato
com a experiência, o novo fato se adequa a ela, formando uma
nova versão da verdade, agora adaptada à mudança que se su-
cedeu. A esta nova verdade se adapta a realidade e vice-versa.
A mutabilidade latente no pragmatismo sugere uma adequa-
ção constante. Daí James afirmar que todas as teorias, todas as
concepções, são nada mais do que modos mentais de adapta-
ção à realidade.70 E é por isto que o contextualismo pragma-
tista requer que estejamos o tempo todo atentos aos fatos e à
experiência que eles constituem.71
Dos três pragmatistas originais, aquele que melhor descre-
veu o contexto foi, contudo, Dewey. Em outras palavras, foi
ele quem realizou a tarefa de explicar exatamente o que o prag-
matismo entende por contextualismo, elucidando e ilustran-
do as características e elementos definidores da idéia de con-
texto. De acordo com Dewey, o contexto é algo tão evidente,
tão inescapavelmente presente, que isso até dificulta que nos
tornemos conscientes do seu papel. Vale dizer, o contexto está
tão arraigado às nossas vidas, especialmente às nossas práti-
cas comunicativas, que o tomamos como dado, ignorando-o
de certa forma. O contexto está especialmente impregnado
nos hábitos de fala, na sintaxe e no vocabulário, em tudo o
que falamos e ouvimos. Mas, consoante Dewey, assim como
o significado dos atos lingüísticos, das proposições e das sen-
tenças, todo e qualquer significado está inerentemente embe-
bido pela idéia de contexto. Disto deriva o fato de que o con-
texto é essencial para o pensamento como um todo, e não
apenas para a lógica ou a filosofia. Para o pensamento ganhar
significado, ele precisa não apenas ser representado e interpre-
tado a partir de signos e sinais, ele precisa necessariamente do

57
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

contexto, pois é este também que irá dar significado aos pró-
prios símbolos.72
Dewey acredita que um dos maiores problemas do pensa-
mento filosófico consiste em negligenciar o conceito de con-
texto. Se em parte isso se justifica precisamente pelo fato de
que o contexto é algo sempre tão patente que chega a não ser
notado, não significa, contudo, que ele possa ser negado. Se-
gundo Dewey, ignorar sistematicamente o contexto implica
virtualmente negá-lo. E quando isso acontece no domínio da
filosofia, ou seja, quando as análises filosóficas tendem a igno-
rar o contexto, o que se tem como resultado é a falsificação
destas análises.73
No que tange ao conteúdo e ao escopo do contexto, dois
temas devem ser considerados: o ‘pano de fundo’ (background )
e os interesses seletivos. Dewey compreende por ‘pano de fun-
do’ o conjunto do ambiente que a filosofia deve levar em con-
sideração em toda as suas iniciativas. O ‘pano de fundo’ está
sempre implícito de alguma forma e em alguma medida em
todo e qualquer pensamento; ele nunca aparece de forma ex-
plícita e é isso que faz com que o seu papel seja exatamente o
de ‘pano de fundo’. Este ‘pano de fundo’ se exerce tanto no
plano espacial como no plano temporal. O ‘pano de fundo’
temporal do pensamento é tanto intelectual como existencial.
No primeiro caso, o que há é um ‘pano de fundo’ da cultura;
e no segundo, um ‘pano de fundo’ da teoria. Sobretudo, não
há pensamento que não se apresente sobre o ‘pano de fundo’ da
tradição – as tradições são modos de interpretação, observação
e avaliação de tudo aquilo que se pensa explicitamente a respei-
to. Já o ‘pano de fundo’ espacial cobre todo o cenário contem-
porâneo dentro do qual emerge um curso de pensamento.
O segundo tema que deve ser considerado em se tratando
de contexto diz respeito ao que Dewey denomina interesses

58
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

seletivos; trata-se, na verdade, de uma outra palavra para de-


nominar aquilo que é usualmente chamado pela filosofia de
‘subjetivo’: o eu, o organismo, o sujeito, enfim, os interesses
seletivos consistem nas características peculiares de cada si-
tuação individual, particular – é, em outras palavras, a indivi-
dualidade. Vale dizer: segundo Dewey, a subjetividade é con-
textual em toda a matéria do pensamento; ela é, contudo, um
modo de seleção da substância (subject-matter) e não a própria
substância.74
A negação do contexto acarreta um grave problema
metodológico para a filosofia e para a história do pensamento,
afirma Dewey. O contexto das filosofias históricas, prossegue
ele, é comumente tratado como se fosse simplesmente uma
outra filosofia, diferente daquela. A ênfase contextualista do
pragmatismo clama, portanto, que os textos filosóficos sejam
estudados a partir dos seus contextos específicos, ressaltan-
do-se a relação entre as idéias filosóficas e a vida social, bem
como com a cultura da sociedade na qual tais idéias desen-
volveram-se.75

Em qualquer período existe um corpo de crenças, bem como


instituições e práticas associadas a elas. Nestas crenças estão
implícitas vastas interpretações da vida e do mundo. Estas
interpretações possuem conseqüências, freqüentemente de
profunda importância. Em seu uso corrente, todavia, as im-
plicações de origem, natureza e conseqüências não são exa-
minadas e formuladas. Estas crenças e as práticas a elas asso-
ciadas expressam atitudes e respostas que operaram sob con-
dições de pressão direta e, muitas vezes, acidental. Elas cons-
tituem, conforme me parece, o material primário imediato
de reflexão filosófica. O objetivo desta última é criticar este
material, clarificá-lo, organizá-lo, testar sua coerência inter-
na e tornar explícitas as suas conseqüências.76

59
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

É sobretudo o conjunto de crenças religiosas, políticas e


científicas que compõe a cultura de uma determinada época e
de um determinado lugar. E é justamente este o conjunto de
crenças que abastece primariamente a substância da filosofia.
E se a empreitada mais importante da filosofia deve ser desco-
brir, revelar, o contexto das crenças, “não podemos escapar da
conclusão de que experiência é o nome do mais abrangente
dos contextos”.77 Por conseguinte, o significado da experiên-
cia para o método filosófico consiste em reconhecer a
indispensabilidade do contexto para o pensamento.
Ainda que Dewey, ao definir e caracterizar a própria noção
de contextualismo, apresente uma inovação ao corpus da teo-
ria pragmatista, naquilo que concerne à aplicação da idéia de
contexto, contudo, ele demonstra uma total continuidade com
os desenvolvimentos anteriores de Peirce e James. Assim é,
por exemplo, com o tema da investigação. Dewey prossegue
na elaboração da idéia de comunidade de investigação, for-
mulada originalmente por Peirce, e chega mesmo a oferecer
uma definição para este conceito: “Investigação é a transfor-
mação dirigida e controlada de uma situação indeterminada
em uma outra situação que é tão determinada em suas distin-
ções e relações constituintes de modo a converter os elemen-
tos da situação original em um todo unificado”.78 De acordo
com Dewey, durante o processo de investigação, soluções pos-
síveis são sugeridas pela determinação das condições fáticas
que são asseguradas pela observação. Uma solução possível para
a investigação se apresenta, todavia, na forma de uma idéia,
assim como os fatos que constituem o problema inicial da
investigação são instituídos pela observação. E o que são idéias?
São conseqüências antecipadas, previsões daquilo que vai acon-
tecer quando certas operações forem executadas sob certas con-
dições. As idéias, bem como os significados propostos e a ob-

60
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

servação dos fatos constituem processos simultâneos, ou me-


lhor, etapas simultâneas de um mesmo processo. Vale dizer:
cada observação gera uma nova ordem de fatos, que por sua
vez sugere uma nova idéia a ser verificada, e assim consecuti-
vamente até que a ordem anteriormente existente se torna uma
nova ordem unificada e completa. 79
Como é possível verificar, o contextualismo pragmatista se
apresenta de forma muito semelhante nos três autores que lhe
deram origem. Em outras palavras, a ênfase nas idéias de ex-
periência e de prática, a exaltação dos fatos e da necessidade
de se proceder a uma investigação compartilhada para se gerar
significados e idéias comunitariamente convergentes, estão
todos presentes no pensamento dos três autores clássicos, cada
qual, todavia, com as suas peculiaridades e incrementos pró-
prios. Como bem observa Nicholas Rescher, por exemplo,
Dewey parece ocupar uma posição intermediária entre Peirce
e James, situando-se entre eles na mesma medida em que o
interpessoal se situa entre o impessoal e o subjetivamente per-
sonalizado – de forma que o seu pragmatismo não seria nem
objetivista como o de Peirce, nem subjetivista como o de James,
mas seria sim um pragmatismo social.80
Vimos até aqui, portanto, como se desenvolve e se consoli-
da a matriz filosófica do pragmatismo. Neste sentido, foi pos-
sível perceber que, entre outras coisas, as idéias de Peirce fo-
ram elaboradas por James e Dewey para muito além de seu
escopo inicial. Se o pragmatismo foi preliminarmente conce-
bido por Peirce como um método lógico, com James ele trans-
cende esta fronteira, fazendo-se repercutir também nos pla-
nos da moral e da ética, e não mais como um simples método
analítico. A partir de Dewey, as fronteiras filosóficas do prag-
matismo são ainda mais alargadas, preparando já o terreno
que trará o social como ponto de partida para que o pragma-

61
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

tismo desbrave outros campos do conhecimento, conforme


veremos a partir do próximo capítulo. Além disso, se em Peirce
o pragmatismo parecia ser filosoficamente apenas uma teoria
da significação, a partir de James e Dewey ele começa a assu-
mir também a forma de uma teoria da verdade. Teoria esta
que, além de constituir-se como centro filosófico do pragma-
tismo, é suficientemente complexa a ponto de abarcar em si os
três elementos nucleares da matriz pragmatista: o antifunda-
cionalismo, o conseqüencialismo e o contextualismo. Com
efeito, como foi possível verificar a partir da análise empreen-
dida nas últimas páginas, a linha que separa estes três ele-
mentos é muito tênue, pois que eles estão largamente imbri-
cados, relacionando-se mutuamente entre si, e apoiando-se
uns nos outros até mesmo quando da definição de suas ca-
racterísticas próprias. Em outras palavras, é quase impossí-
vel definir o antifundacionalismo sem sinalizar com caracte-
rísticas conseqüencialistas e contextualistas do pragmatismo,
e vice-versa. Os três elementos constitutivos da matriz filo-
sófica do pragmatismo, cada qual com suas características
peculiares, por conseguinte, apresentam-se como inter-de-
pendentes e inter-relacionados – não obstante as nuances e
variações particulares encontráveis em cada um dos três prag-
matistas originais.

Notas
1 “Pragmatism as the Logic of Abduction”. In: The Essential Peirce. Selected

Philosophical Writings, volume II, p. 241.


2 Como já foi mencionado na introdução deste livro, o pragmatismo, como

bem observou o próprio William James, é um novo nome para antigas


formas de pensamento. Entre os antigos modos de pensar revitalizados
pelo pragmatismo estão, principalmente, o utilitarismo de John Stuart
Mill e o ceticismo característico do iluminismo escocês – conforme resta-

62
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

rá claro em muitas passagens ao longo deste capítulo. Além disso, e apesar


de não constituírem influência direta (e admitida) como nos casos do
utilitarismo e do ceticismo, é inegável que o pragmatismo também apre-
senta similaridades com outros sistemas de pensamentos desenvolvidos ao
longo do século XIX, como o marxismo, o positivismo e o darwinismo.
Estas semelhanças, bem como as diferenças também existentes, serão de-
vidamente indicadas ao longo deste capítulo. Ressaltamos desde já, con-
tudo, que as relações entre o pragmatismo e estas outras teorias serão men-
cionadas apenas na medida em que a referência se faça necessária para a
devida contextualização do pragmatismo na história do pensamento. Evi-
taremos, portanto, um contraste mais consistente, pois isto fugiria clara-
mente ao escopo deste livro.
3 “Pragmatism is a maxim of logic; and logic can gain not the slightest support

from metaphysics”. C. S. Peirce, “The Seven Systems of Metaphysics”. In:


The Essential Peirce. Selected Philosophical Writings, volume II, p. 179.
4 Contudo, como poderá ser inferido a partir das próximas páginas, James,

por exemplo, acusava Peirce de aceitar parcialmente o nominalismo, e


Dewey, por sua vez, dirigia a James a mesma crítica.
5 “I should call myself an Aristotelian of the scholastic wing, approaching

Scotism, but going much further in the direction of scholastic realism”.


C. S. Peirce, “The Seven Systems of Metaphysics”. In: The Essential Peirce.
Selected Philosophical Writings, volume II, p. 180. Cf. Hilary Putnam,
“Pragmatism and Realism”. In: Cardozo Law Review, 18, p. 153 e segs.
Este é um ponto importante. O que acontece é que, muito embora Peirce
e seus contemporâneos afirmassem sua proximidade com o realismo e,
ainda, muito embora este fato seja evidente em suas obras – conforme
constataremos adiante nos próximos sub-itens deste capítulo –, autores
contemporâneos que se auto-intitulam neopragmatistas, tal como Richard
Rorty, afirmam insistentemente que o pragmatismo é anti-realista. Este
ponto merece discussão mais extensa, a qual fugiria, todavia, ao escopo
desse livro, que trata do pragmatismo clássico e não do chamado neoprag-
matismo. Mas por ora cabe salientar a nossa opinião de que: 1) o pragma-
tismo original, de Peirce, James e Dewey, era de fato vinculado ao realis-
mo; 2) apenas o que se chama contemporaneamente de neopragmatismo
na filosofia, representado por autores como o próprio Rorty, pode ser tido
como caracteristicamente anti-realista; e 3) os motivos que levam neo-
pragmatistas como Rorty a afirmarem que o pragmatismo é anti-realista
são as críticas (realistas, como ele acredita) de autores posteriores a Peirce,

63
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

James e Dewey, logo, 4) o realismo que se associa à formulação original do


pragmatismo (como no caso de Peirce, o realismo escolástico) não é o mes-
mo em que Rorty se baseia para dizer que o pragmatismo é anti-realista.
6 É importante frisar que não se pretende fornecer aqui um panorama
geral sobre o pensamento de Peirce, James e Dewey como um todo – o
que, inclusive, fugiria ao escopo deste livro – mas apenas abordar a filo-
sofia pragmatista de cada um deles naquilo que é essencial para a com-
preensão de sua importância para a teoria social e política, de modo que se
possa conhecer a origem e o núcleo substantivo da filosofia pragmatista
tal como desenvolvido em primeira mão pelos seus criadores.
7 Ver
Michael Brint e William Weaver, “Introduction”. In: Pragmatism in
Law and Society, p. 1 e segs.
8 “Questions Concerning Certain Faculties Claimed for Man”. In: The
Essential Peirce. Selected Philosophical Writings, volume I, p. 13. Observe-
se que o termo ‘autoridade’ é utilizado por Peirce enquanto categoria epis-
temológica, referindo-se àquilo que seria a fonte ou critério último das
crenças – conforme restará evidente no curso da análise que se segue.
9“Questions Concerning Certain Faculties Claimed for Man”. In: The
Essential Peirce. Selected Philosophical Writings, volume I, p. 21-23.
10“Questions Concerning Certain Faculties Claimed for Man”. In: The
Essential Peirce. Selected Philosophical Writings, volume I, p. 24-26.
11 “On Phenomenology”. In: The Essential Peirce. Selected Philosophical

Writings, volume II, p. 158.


12“The Three Normative Sciences”. In: The Essential Peirce. Selected
Philosophical Writings, volume II, p. 196. A filosofia pragmatista é, sem
dúvida, tão prática quanto a filosofia marxista. Sobre a centralidade do
conceito de prática, entre outros em comum a estas duas teorias, dedicare-
mos uma nota específica no item 1.1.3 deste capítulo, quando tratarmos
do contextualismo.
13 De acordo com Peirce, todas as categorias, em seu nível mais profundo,
podem ser reduzidas a três categorias fundamentais: “Category the First is
the Idea of that which is such as it is regardless of anything else. That is to
say, it is a Quality of Feeling. Category the Second is the Idea of that
which is such as it is as being Second to some First, regardless of anything
else and in particular regardless of any law, although it may conform to a
law. That is to say, it is a Reaction as an element of the Phenomenon.

64
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

Category the Third is the Idea of that which is such as it is as being a


Third, or Medium, between a Second and its First. That is to say, it is
Representation as an element of the Phenomenon”. Cf. “The Categories
Defended”. In: The Essential Peirce. Selected Philosophical Writings, volu-
me II, p. 160. Em outro lugar, Peirce afirma que a formulação de suas três
categorias não foi influenciada pela de Hegel e que qualquer semelhança
entre elas tratou-se de mera coincidência.
14 Conhecimento e Interesse, p. 116.
15 Ver, a respeito, o texto “The First Rule of Logic”. In: The Essential Peirce.

Selected Philosophical Writings, volume II, p. 42-56.


16 Ver Nicholas Rescher, Realistic Pragmatism, p. 52 e 53, entre outros.
17 Neste sentido, Giles Gunn, “Introduction”. In: Pragmatism and Other
Writings, p. xxi-xxii.
18 “What Pragmatism Means”. In: Pragmatism and Other Writings, p. 27.
19 Idem, p. 28.
20 “What Pragmatism Means”. In: Pragmatism and Other Writings, p. 29.
21“The Present Dilemma in Philosophy”. In: Pragmatism and Other
Writings, passim. Perceba-se, mais uma vez, as estreitas conexões do prag-
matismo com o ceticismo característico do iluminismo escocês, bem como
com o materialismo característico do marxismo.
22 Além do idealismo, Dewey se opõe ao que denomina mais generica-

mente de filosofias absolutistas e fundamentalistas. Como neste último


caso Dewey apresenta suas reflexões eminentemente no âmbito do tema
da religião, não nos deteremos em sua análise a fim de não fugir em dema-
sia do escopo deste livro.
23 “Philosophy’s Search for the Immutable”. In: The Essential Dewey, volu-

me I, p. 105.
24 Idem.

25 “Philosophy’s
Search for the Immutable”. In The Essential Dewey, volu-
me I, p. 106-108.
26 “Fundamentals”. In: The Essential Dewey, volume I, p. 349.
27 Maisuma citação merece ser destacada: “The point (...) is thus to elicit
the radical difference made when the problem of values is seen to be
connected with the problem of intelligent action. If the validity of beliefs
and judgments about values is dependent upon the consequences of action

65
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

undertaken in their behalf, if the assumed association of values with


knowledge capable of being demonstrated apart from activity, is abandoned,
then the problem of the intrinsic relation of science to value is wholly
artificial”. Cf. “Philosophy’s Search for the Immutable”. In: The Essential
Dewey, volume I, p. 109.
28 “Philosophy’s Search for the Immutable”. In: The Essential Dewey, volu-

me I, p. 110. Observe-se aqui uma precipitação do contextualismo prag-


matista, conforme ficará mais claro quando o estudarmos com mais deta-
lhe no item 1.1.3.
29 Conhecimento e Interesse, p. 137.

30 Esta noção de mente como um mecanismo adaptativo está presente não

apenas em Peirce, mas também em James e Dewey. Com efeito, todos os


três admitiam a influência do darwinismo em seus pensamentos. Dewey
inclusive escreveu um livro a respeito, intitulado The Influence of Darwin
on Philosophy. Podemos dizer que não apenas a idéia de adaptação como
visto acima, mas também a idéia de seleção característica do darwinismo
se encontra presente no pragmatismo – o que será possível perceber no
próximo item, 1.1.3, quando tratarmos do contextualismo pragmatista, o
qual implica, entre outras coisas, um processo mental de seleção de cren-
ças e idéias e, conseqüentemente, de hábitos e ações, como veremos. So-
bre o assunto, vale ler um artigo de Dewey chamado “The Influence of
Darwinism on Philosophy”. In: The Essential Dewey, volume I, p. 39 e
segs. Este artigo foi integrado ao livro sobre o mesmo tema citado acima.
31 “How to Make Our Ideas Clear”. In: The Essential Peirce. Selected

Philosophical Writings, volume I, p. 132.


32 “The Maxim of Pragmatism”. In: The Essential Peirce. Selected Philosophical

Writings, volume II, p. 134-135.


33 “Issues of Pragmaticism”. In: The Essential Peirce. Selected Philosophical

Writings, volume II, p. 346.


34 Ver Nathan Houser, “Introduction”. In: The Essential Peirce. Selected

Philosophical Writings, volume I, p. xxxiv, e volume II, p. xxxvii. Ressal-


te-se, portanto, que a máxima pragmática é bem distinta do imperativo
categórico kantiano, disto não se tem dúvida. Em primeiro lugar, a má-
xima pragmática não possui conteúdo substantivo apriorístico, é uma
máxima lógica e não ética, e tampouco moral, como o imperativo kantiano.
Além disso, a máxima pragmática não tem nenhuma pretensão de univer-
salidade como o tem o imperativo categórico. Esta problematização é rele-

66
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

vante, visto que apesar de terem sido inicialmente leitores de Kant, todos
os três primeiros pragmatistas buscam refutar o kantismo, especialmente
o seu transcendentalismo, sua metafísica e seu universalismo – e esta refu-
tação é uma característica crucial que distingue o pragmatismo enquanto
teoria.
35 Ver Risto Hilpinen, “Charles Sanders Peirce”. In: The Cambridge Dictionary

of Philosophy, p. 652.
36 O conceito pragmatista de crença será explicado adiante no item 1.1.3

deste capítulo, quando tratarmos do contextualismo.


37 “The Three Normative Sciences”. In: The Essential Peirce. Selected

Philosophical Writings, volume II, p. 202.


38 “What Pragmatism Means”. In: Pragmatism and Other Writings, p. 25.

39 “Pragmatism and Religion”. In: Pragmatism and Other Writings, p. 119.

Ressalte-se que foram posicionamentos como estes que levaram James a


ser intensamente criticado pelo seu subjetivismo ético.
40 Idem.

41 O fato de William James ter dedicado o seu livro Pragmatism a John

Stuart Mill é apenas um dos indicadores da influência exercida pelo utili-


tarismo sobre o pragmatismo. Com efeito, o teste utilitarista acerca da
propriedade das ações a partir de suas conseqüências sobre a felicidade das
pessoas em geral, bem como a validação utilitarista dos princípios éticos
por meio de sua utilidade social, entre outros, são elementos comuns a
ambas as teorias em questão. Ressalte-se, contudo, que a idéia de ‘felicida-
de geral’ ou ‘o maior bem para o maior número’ não são em si apropriadas
pelo pragmatismo. Apesar do amplo apelo social do pragmatismo, a utili-
dade não é por ele definida em termos de felicidade, e tampouco de felici-
dade do maior número. O que é útil para o pragmatismo é simplesmente
aquilo que é melhor para cada pessoa. A utilidade é definida, portanto,
em termos instrumentais. Ou seja, as coisas são úteis na medida em que
conduzem eficazmente à realização dos fins dos indivíduos. Em James,
especialmente, como estamos vendo, esta idéia vai até mesmo assumir
um certo tom subjetivista. Vale lembrar aqui as considerações de Émile
Durkheim a respeito das relações entre o pragmatismo e o utilitarismo.
De acordo com Durkheim, o pragmatismo parece ser uma espécie de uti-
litarismo lógico e subjetivista, na medida em que classifica a verdade como
aquilo que se prova útil ao indivíduo. Cf. Pragmatismo y Sociología, capí-
tulo 15, p. 119 e segs.

67
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

42 “What Pragmatism Means”. In: Pragmatism and Other Writings, p. 38.


43 “What would be better for us to believe! This sounds very like a definition

of truth”. Cf. “What Pragmatism Means”. In: Pragmatism and Other


Writings, p. 38.
44 “Pragmatism’s Conception of Truth”. In: Pragmatism and Other Writings,

p. 90.
45 “Pragmatism and Humanism”. In: Pragmatism and Other Writings, p.

112.
46 “The Problem of Truth”. In: The Essential Dewey, volume II, p. 113-

114.
47 Idem, p. 114.

48 Idem.

49 “The Problem of Truth”. In: The Essential Dewey, volume II, p. 114.

50 “He [o pragmatista] will not only accept but he will explain the belief

that ‘truths present things as they really are’; for he can define what the
phrase means: Namely, that way of presenting things which is actually,
not merely potentially, effective in securing the consequences with reference
to which the things are causes. For purposes of knowledge, things ‘as they
really are’ are things as they-are-in-the-securing-of-projected-ends. Thus
pragmatism gives to the favored phrase of realism a meaning which is
neither a fatuous truism nor a dogmatic prejudice”. Cf. “The Problem of
Truth”. In: The Essential Dewey, volume II, p. 118.
51 Idem, p. 116 e segs.

52 “Events and the Future”. In: The Essential Dewey, volume I, p. 183.

53 A centralidade do conceito de prática no pragmatismo o remete direta-

mente ao marxismo. Com efeito, este não é o único elemento em comum


nas duas teorias em questão. Como já ficou claro até este ponto de nossa
discussão, o pragmatismo é talvez tão materialista quanto o marxismo. O
antifundacionalismo pragmatista, com sua rejeição ao dogmatismo, aos
princípios imutáveis e apriorísticos, à idéia de certeza e de verdade, se
aproxima intensamente do marxismo. O mesmo vale para o contextualis-
mo pragmatista, ora em análise, em sua ênfase nas idéias de experiência e
de prática. O conseqüencialismo é o elemento da matriz pragmatista que
apresenta menos similaridade com o marxismo, muito embora o teste das
conseqüências práticas possa ser visto de bom grado sob a ótica marxista.
Existem dois autores, aliás, simultaneamente marxistas e pragmatistas, que

68
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

defenderam a completa identidade entre estes dois pensamentos: Corliss


Lamont e Sidney Hook. Uma outra referência bibliográfica imprescindí-
vel para se aprofundar este tema das relações entre pragmatismo e marxis-
mo é o livro de George Novack, Pragmatism versus Marxism, que analisa o
pragmatismo de Dewey pela via do marxismo. Vale, por ora, citar um
pequeno trecho desta obra: “The high place Deweyism accorded to
technique; its emphasis upon the value of conquering nature for the sake
of increasing humanity’s social powers and common wealth; its stress upon
the primacy of practice in human life and thought; its insistence that
ideas verify their truth and worth by submitting to the test of practical
consequences; its utilitarianism which, in its boldest representatives, verged
upon materialism; its evolutionary optimism; its disdain for absolutes of
any kind; its democratism; its demand that philosophy participate in so-
cial improvement – all these contributions of instrumentalism are
permanent acquisitions of American thought. To be sure, none of these
points is alien or unknown to Marxism”. Cf. Pragmatism versus Marxism,
p. 300. Uma última curiosidade: Russell certa vez afirmou que Marx de-
veria ser considerado o primeiro expoente do pragmatismo, devido às es-
treitas relações entre este pensamento e o seu materialismo dialético. Cf.
“Dewey’s New Logic”. In: The Philosophy of John Dewey.
54 Peirce afirmou certa vez que foi Nicholas St. John Green, seu colega no

Clube Metafísico, quem pela primeira vez chamou a sua atenção para este
conceito de crença cunhado por Bain, e por isso ele (Green) seria, segun-
do Peirce, o ‘avô’ do pragmatismo. Cf. “Pragmatism”. In: The Essential
Peirce, volume II, p. 399.
55 “Some Consequences of Four Incapacities”. In: The Essential Peirce.

Selected Philosophical Writings, volume I, p. 47.


56 Observe-se aqui a estreita semelhança com David Hume. Peirce, assim

como James e Dewey posteriormente, era um leitor declarado da obra


de Hume. Peirce, inclusive, chegou a ser chamado de “Hume moderno”
por Paul Carus, em 1892 (Cf. “Mr. Charles Peirce’s Onslaught on the
Doctrine of Necessity”. The Monist 2, julho de 1892. A primeira seção
deste artigo se intitula: “David Hume Redivivus”). O próprio Peirce reve-
la este fato, como forma de admitir seu ceticismo filosófico, no artigo “On
Phenomenology”. In: The Essential Peirce. Selected Philosophical Writings,
volume II, p. 152. Em um longo manuscrito no qual faz uma espécie de
retrospectiva de sua vida e dos caminhos que o levaram a desenvolver o
conceito de pragmatismo, Peirce confessa a sua admiração por Hume (bem

69
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

como pelos ingleses Locke e Berkeley). Cf. “Pragmatism”. In: The Essential
Peirce. Selected Philosophical Writings, volume II, p. 423. Para um contras-
te mais nítido entre o pragmatismo e o pensamento humeano, vale ler o
artigo de Peirce intitulado “On the Logic of Drawing History from Ancient
Documents, Especially from Testimonies”, no qual ele intenta “melhorar
a teoria de Hume” a partir de uma prova lógico-matemática (que denomi-
na como “Hume’s Theory Improved”) acerca da inconsistência da doutrina
probabilística sobre o testemunho tal como desenvolvida por Hume ao
dissertar sobre os milagres na seção X do seu Enquiry Concerning Human
Understanding. Ressalte-se que, além de Peirce, James também admitiu
que o ceticismo humeano influenciou a elaboração do seu pragmatismo
(assim como os ingleses Locke, Berkeley, Mill e Bain). Cf. “Philosophical
Conceptions and Practical Results”. Por seu turno, Dewey também cita
Hume extensivamente ao longo de toda a sua produção intelectual, con-
firmando a indubitável influência daquele autor em sua versão do prag-
matismo.
57 “The Fixation of Belief ”. In: The Essential Peirce. Selected Philosophical

Writings, volume I, p. 115.


58 Idem, p. 120.
59“How to Make Our Ideas Clear”. In: The Essential Peirce. Selected
Philosophical Writings, volume I, p. 138-139.
60 “Some Consequences of Four Incapacities”. In: The Essential Peirce.

Selected Philosophical Writings, volume I, p. 52-55.


61 Conhecimento e Interesse, p. 110. O ‘método científico’ do pragmatismo,

tal como denominado por Peirce e compartilhado em seguida por James e


Dewey, responde pelas várias críticas que pretendem associar o pragmatis-
mo ao positivismo. Com efeito, é inegável que existem pontos em comum
entre o pragmatismo e o positivismo, como já deve ter ficado claro no
item 1.1.1 deste capítulo quando tratamos do antifundacionalismo. Ade-
mais, o positivismo lógico incluiu-se certamente entre as leituras de Peirce,
enquanto James declarou-se um leitor de Mach e Poincaré, assim como
Dewey um leitor de Comte e Spencer. Contudo, não se pode nem mesmo
afirmar que o positivismo seja antifundacionalista, pois que a ciência in-
dubitavelmente opera como uma fundação no positivismo, o que não acon-
tece todavia no pragmatismo. Ademais, ao tentarmos compreender o prag-
matismo a partir de sua matriz filosófica, como estamos fazendo aqui, o
positivismo se afastaria do pragmatismo também pela ausência de ele-

70
Capítulo 1
A MATRIZ FILOSÓFICA DO PRAGMATISMO

mentos contextualistas e conseqüencialistas (estes principalmente, pois o


pragmatismo olha para o futuro, enquanto o positivismo olha para o pas-
sado). Portanto, se o ponto de partida do positivismo e do pragmatismo
coincide ao buscar rejeitar o transcendentalismo pelo apego à ciência, os
rumos que as duas teorias tomam a partir deste ponto, bem como a fina-
lidade que destinam ao conceito de ciência, são bastante distintos.
62 “What Pragmatism Means”. In: Pragmatism and Other Writings, p. 31.
63 Idem.

64 “What Pragmatism Means”. In: Pragmatism and Other Writings, p. 32.


65Uma das críticas contemporâneas neste sentido é feita por Nicholas
Rescher. Cf. Realistic Pragmatism, p. 15 e segs.
66 “Pragmatism’s Conception of Truth”. In: Pragmatism and Other Writings,

p. 88.
67 Idem.

68 “Any idea that helps us to deal, whether practically or intellectually,


with either the reality or its belongings, that doesn’t entangle our progress
in frustrations, that fits, in fact, and adapts our life to the reality’s whole
setting, will agree sufficiently to meet the requirement. It will hold true of
that reality.” E, mais adiante, prossegue: “Agreement thus turns out to be
essentially an affair of leading – leading that is useful because it is into
quarters that contain objects that are important. True ideas lead us into
useful verbal and conceptual quarters as well as directly up to useful sensible
termini. They lead to consistency stability and flowing human intercourse.
They lead away from excentricity and isolation, from foiled and barren
thinking. The untrammeled flowing of the leading-process, its general
freedom from clash and contradiction, passes for its indirect verification;
but all roads lead to Rome, and in the end and eventually, all true processes
must lead to the face of directly verifying sensible experiences somewhere,
which somebody’s ideas have copied”. Cf. “Pragmatism’s Conception of
Truth”. In: Pragmatism and Other Writings, p. 94-95.
69 “Pragmatism’s Conception of Truth”. In: Pragmatism and Other Writings,

p. 99.
70 “Pragmatism and Common Sense”. In: Pragmatism and Other Writings,

p. 86.
71 “As good pragmatists we have to turn our face towards experience,

71
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

towards facts”. Cf. “Pragmatism and Common Sense”. In: Pragmatism


and Other Writings, p. 74.
72 “Context and Thought”. In: The Essential Dewey, volume I, p. 206 e

207.
73 Idem, p. 210.
74“Context and Thought”. In: The Essential Dewey, volume I, p. 210 e
211.
75 Valeobservar aqui a estreita semelhança entre o pensamento de Dewey
e aquele que será posteriormente desenvolvido por Quentin Skinner no
campo da história do pensamento e da metodologia da história.
76 “Context and Thought”. In: The Essential Dewey, volume I, p. 214.

77 Idem, p. 215.
78 “The Pattern of Inquiry”. In: The Essential Dewey, volume II, p. 171.
79 Idem, p. 173-176.
80 Realistic Pragmatism, p. 27 e segs.

72
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA
SOCIAL

Há no pragmatismo um sentido da vida e da ação com-


partilhado com a sociologia: ambas tendências são filhas
de uma mesma época.
Émile Durkheim1

O pragmatismo e a sociologia são filhos da mesma época,


como bem observou Durkheim ainda no momento em que
ambos ganhavam forma e se consolidavam no cenário intelec-
tual. Mas enquanto a sociologia efetivamente constituiu-se
como disciplina acadêmica, o pragmatismo experimentou pau-
latinamente um esquecimento, até ser completamente banido
dos próprios departamentos de sociologia que nasceram con-
temporaneamente a ele.
Contudo, durante os vários anos em que foi relegado ao
esquecimento acadêmico, o pragmatismo desfrutou de uma
espécie de sobrevida. Uma de suas ramificações mais frutífe-
ras, o interacionismo simbólico, manteve de certa forma acesa
a chama do pragmatismo no meio acadêmico norte-america-
no, no qual ele foi gerado.
O interacionismo simbólico sobreviveu graças aos esforços
dos discípulos de G. H. Mead. Com efeito, Mead, ao lado de

73
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Peirce, James e Dewey, pode ser considerado um dos autores


clássicos do pragmatismo. O motivo pelo qual escolhemos
abordá-lo neste capítulo e não no primeiro é que Mead é res-
ponsável por fundar uma vertente do pragmatismo distinta da
dos seus colegas: o pragmatismo social.
Afirmar, porém, que Mead é o fundador de um pragma-
tismo social não significa afirmar que a obra de Peirce, James
e Dewey não tenha reflexos nas ciências sociais, ou, mais
especificamente, na sociologia. Ao contrário, como podere-
mos ver ao longo deste capítulo e também no próximo, as
contribuições dos três pragmatistas clássicos, principalmen-
te Peirce e Dewey, são fundamentais para o desenvolvimento
do que estamos chamando de pragmatismo social. O termo
‘pragmatismo social’, aliás, foi cunhado por alguns comen-
tadores do pragmatismo que tinham justamente como refe-
rência a obra de Mead.2 Com efeito, a contribuição de Mead
une sociologia e pragmatismo de tal forma que ele parece
situar-se hoje, ao mesmo tempo, entre os representantes clás-
sicos (ou mesmo entre os fundadores) tanto de uma, quanto
de outro.3
O fato é que, sob as lentes do pragmatismo, a sociologia
deixa de ser considerada meramente uma disciplina empírica
ao obter para si um embasamento filosófico. Esta, ao menos,
parece ser a reivindicação dos discípulos contemporâneos de
Mead, responsáveis por dar forma a um neopragmatismo so-
cial e, ao mesmo tempo, aliá-lo à sociologia, construindo as-
sim seus alicerces no campo da teoria social contemporânea.4
Neste capítulo que se segue, elegemos para análise dois te-
mas que acreditamos retratar os principais desenvolvimentos
do pragmatismo social, seja em sua forma original, seja em
sua versão contemporânea: os conceitos de ação e de comuni-
cação. Com uma metodologia distinta daquela adotada ante-

74
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

riormente, analisaremos aqui de forma conjunta as contribui-


ções dos dois momentos do pragmatismo, para demonstrar o
desenvolvimento dos temas escolhidos a partir de uma certa
linearidade histórica que acreditamos existir. Apesar de o nos-
so foco agora se dirigir a temas substantivos e não mais aos
elementos caracterizadores daquilo que viemos a designar no
primeiro capítulo de ‘matriz filosófica’ do pragmatismo, será
certamente possível, nas próximas páginas, e mesmo que de
uma forma implícita, identificar como operam os três elemen-
tos constitutivos do pensamento pragmatista na contribuição
deste ao campo da teoria social.

2.1. Ação
O conceito de ação vem sendo amplamente associado ao
pragmatismo desde que o mesmo atingiu notoriedade, entre o
final do século XIX e o início do século XX. Com efeito, mui-
tas críticas formuladas em face do pragmatismo desde então
insistem em afirmar que ele consiste meramente na idéia de
que toda investigação, conhecimento e pensamento se dão em
nome da ação – acresça-se ainda a isto o fato de que a ação é
aqui entendida de um modo mundano, vulgar.5
Os primeiros pragmatistas já se encontravam conscientes
destas críticas e não pouparam esforços para contestá-las. Em
1905, Peirce escreveu um artigo sob a forma de um diálogo
entre um suposto entrevistador e um pragmatista, no qual tenta
revidar diretamente esse tipo de acusação:

Entrevistador: bem, se você então escolhe fazer do agir (doing)


o ser supremo (Be-all ) e o fim supremo (End-all ) da vida
humana, por que não faz a significação consistir simples-
mente em agir? (...) Pragmaticista: É preciso admitir, em pri-

75
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

meiro lugar, que se o pragmaticismo realmente fizesse o agir


consistir no ser e no fim supremos da vida, isso seria a sua
morte. Porque dizer que vivemos meramente por causa da
ação, como ação, não obstante o pensamento que ela carre-
ga, equivaleria a dizer que não existe sentido racional.6

Muito posteriormente, cerca de vinte anos depois, Dewey


ainda se defrontava com este mesmo tipo de crítica, conforme
atestam exemplarmente as suas palavras abaixo:

Freqüentemente se diz que o pragmatismo faz da ação o


fim da vida. Também se diz que o pragmatismo subordina
o pensamento e a atividade racional a fins particulares de
interesse e benefício. É verdade que a teoria de acordo com
a concepção de Peirce implica essencialmente uma certa
relação com a ação, com a conduta humana. Mas o papel
da ação é de intermediária. Para que se possa atribuir signi-
ficado aos conceitos, é preciso poder aplicá-los à existên-
cia. E é por meio da ação que esta aplicação se torna possí-
vel. E a modificação da existência resultante desta aplica-
ção constitui o verdadeiro significado dos conceitos. O prag-
matismo está, portanto, longe de ser a glorificação da ação
por si mesma.7

Se o pragmatismo não pode ser simplesmente definido


como uma teoria da ação, se a ação não pode ser tida como
um móbil central do pragmatismo, ou, ainda, se a ação não
consiste na finalidade última do pensamento pragmatista, cabe
iniciarmos nossa discussão com a pergunta: qual é, afinal, o
papel da ação no pragmatismo? Em primeiro lugar, é preciso
ter em mente que afirmar, por um lado, que o pragmatismo
não pode ser definido meramente como uma teoria da ação,
não significa, por outro lado, que o pragmatismo não conte-

76
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

nha em si uma teoria da ação. Com efeito, o pensamento prag-


matista não apenas logrou desenvolver um conceito de ação
essencial à compreensão e articulação sistemática do conjunto
de suas idéias, como também deu origem a uma teoria da ação
que se pretende sustentável em seus próprios alicerces, ou seja,
sem depender do conjunto do pensamento pragmatista para
adquirir consistência teórica.
Estes dois papéis desempenhados pela ação no pragmatis-
mo, o de conceito e o de teoria, se desenvolvem em momentos
diferentes. Em um primeiro momento, no seio do pragmatis-
mo clássico de Peirce, James e Dewey, a ação ganha status de
conceito central à compreensão de determinadas categorias e
teorias essenciais ao pragmatismo. Não há ainda de se falar,
neste momento, propriamente de uma teoria da ação, senão
apenas de desenvolvimentos esparsos de alguns conceitos rela-
tivos à ação, tal como o conceito de ação inteligente, por exem-
plo. Em um segundo momento, com o ressurgimento do
pragmatismo a partir do final do século XX, quando se torna
possível evidenciar o que vem a ser o neopragmatismo tam-
bém na sociologia, ocorre a tentativa de se construir sistemati-
camente uma teoria da ação a partir do arsenal teórico deixa-
do pelos primeiros pragmatistas. O responsável por tal empre-
endimento é um dos principais nomes associados ao neoprag-
matismo sociológico: Hans Joas.
Conforme já foi possível verificar no primeiro capítulo
deste livro, quando abordamos a matriz filosófica do prag-
matismo, a idéia de ação surge nos três elementos constituti-
vos do núcleo teórico do pensamento dos três pragmatistas
clássicos. Vimos, portanto, que o antifundacionalismo prag-
matista, principalmente aquele representado por Dewey, se
opõe com veemência ao fato de que a filosofia jamais utili-
zou a ação como um meio de buscar a segurança, tendo em

77
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

vista a mutabilidade e a dinamicidade que são a ela inerentes.


De acordo com Dewey, são despidas de sentido as tentativas
filosóficas de separar o pensamento da ação e a teoria da prá-
tica; afinal, a filosofia deve prescindir de fundamentos, mas se
fosse necessário lhe conferir um alicerce, este seria a ação prá-
tica dos homens. É possível perceber aqui, ressalte-se, que ao
defender que a filosofia deixe de desprezar o valor da ação,
Dewey já enveredara na direção de um pragmatismo social,
ou sociológico.
Também no que tange ao conseqüencialismo do pragma-
tismo clássico, especialmente o de Peirce, o conceito de ação
parece ganhar forma. Conforme vimos, por conseguinte,
Peirce acredita que a ação futura, aquela ainda não realizada,
é a única que pode ser objeto de autocontrole. Afinal, sem-
pre que um homem age intencionalmente, ele o faz a partir
de uma crença baseada em algum fenômeno experimental
prévio, pois o que leva as pessoas à ação é sempre um objeti-
vo, um propósito a ser realizado. Além disso, a teoria da sig-
nificação elaborada pelo pragmatismo clássico, e em primei-
ra mão por Peirce, também vincula a si um conceito de ação:
é apenas através de um curso de ação indefinidamente pro-
longado, que possibilita uma investigação incessante e auto-
corretiva, que os significados dos conceitos e dos fins podem
ser apreendidos.
Por fim, o contextualismo do pragmatismo também lança
mão do conceito de ação. Este, aliás, ao lado dos conceitos de
crença e de hábito, é vital para que se compreenda a idéia
pragmatista de contextualismo. Conforme já analisamos, se-
gundo Peirce, a função do pensamento é a de produzir hábitos
de ação. Para que se possa identificar um hábito, é preciso
antes entender como ele leva à ação, ou seja, o que o hábito é
depende de quando e como ele causa uma ação. A ação

78
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

provocada pelo hábito se dá tanto no mundo da experiência


como no mundo da imaginação.Todas as pessoas possuem
hábitos e, ao mesmo tempo, uma capacidade de controlar suas
ações futuras (e aqui o contextualismo pragmatista é indisso-
ciável de seu conseqüencialismo); afinal, a função do pensa-
mento é produzir hábitos de ação. Vale ainda lembrar que não
apenas o hábito leva à ação, mas também as dúvidas, ou seja,
o oposto das crenças. Ao passo que a crença se inclui no esta-
belecimento de uma regra de ação ou de um hábito, as dúvi-
das, por seu turno, estimulam continuamente as pessoas à ação,
até que sejam destruídas e substituídas pelas crenças.
Esta breve retomada do delineamento do conceito de ação
na matriz filosófica do pragmatismo nos parece ser suficien-
te para corroborar a reivindicação de Dewey no sentido de
afirmar que a ação, dirigida pelo conhecimento, não é um
fim (tampouco um fim em si mesmo), mas um método e um
meio.8
Além de ser essencial à compreensão do conjunto dos ele-
mentos constitutivos da matriz filosófica do pragmatismo, o
conceito de ação recebe ainda uma formulação bastante origi-
nal por parte do pragmatismo clássico. Estamos falando do
conceito de ação inteligente, desenvolvido por Dewey. Sem
mencionar quaisquer dos teóricos clássicos da ação, nem mes-
mo Weber – até mesmo devido à contemporaneidade de seus
pensamentos, ressalte-se –, Dewey tenta se opor ao tradicio-
nal conceito racionalista de ação criando um novo conceito, o
de ação inteligente.
De acordo com Dewey, o conceito de ação se encontra in-
timamente relacionado à teoria pragmatista da inteligência, a
qual insiste na idéia de que a função da mente é a de projetar
sempre fins novos e cada vez mais complexos, de modo a libe-
rar a experiência da rotina e do capricho. Neste sentido, é o

79
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

uso da inteligência que vai liberar e libertar a ação, e não o uso


do pensamento, para realizar objetivos previamente dados pe-
los mecanismos corporais ou sociais. Segundo Dewey, a ação
racional, que se restringe a fins previamente estabelecidos, a
fins fixos, pode até ser bastante eficiente – mas ela será ape-
nas eficiente, e nada mais, na medida em que esta ação será
sempre uma ação mecânica, não obstante o fim que ela vise
a perseguir. Por outro lado, em oposição a este conceito racio-
nal-mecanicista de ação, está a idéia de que a inteligência se
desenvolve no seio da esfera da ação, para a perseguição de
possibilidades que não são previamente estabelecidas. Este
outro conceito, o de uma ação dirigida para fins que são
desconhecidos previamente pelo agente, alarga o espectro
conhecido pela então já tradicional teoria da ação racional:
“uma inteligência pragmática é uma inteligência criativa, e
não uma rotina mecânica”.9
Temos já aqui, portanto, a presença de um elemento cons-
tante e indissociável dos principais temas abordados pelo
pragmatismo – e pelo neopragmatismo – na sociologia e na
teoria política: a criatividade. O que Dewey e o pragmatismo
clássico entendem por inteligência não é nada mais do que a
defesa do uso da criatividade – que, como veremos adiante, é
retomada com intenso vigor na formulação de uma teoria da
ação pelo neopragmatismo sociológico de Hans Joas. Mas antes
de chegar lá, é preciso ainda concluir a elucidação do conceito
deweyano de ação inteligente.
A ação inteligente (ou criativa) é, portanto, aquela ação
que a inteligência liberou de um caráter mecanicamente ins-
trumental. Perceba-se assim que a inteligência é instrumental
através da ação, pois ela vai determinar as qualidades da expe-
riência futura. Em outras palavras, a preocupação primária da
inteligência é com o futuro, com aquilo que ainda não foi

80
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

realizado: a inteligência dirige o seu olhar para o futuro (ela é


inerentemente foward-looking). Neste sentido, a ação inteli-
gente é libertadora, acredita Dewey.

Em um mundo complicado e perverso, a ação que não é


instruída com visão, imaginação e reflexão, está mais pro-
pensa a aumentar a confusão e o conflito do que a resolver
esses problemas. (..) A necessidade central de qualquer pro-
grama é ter uma concepção adequada da natureza da inteli-
gência e de seu lugar na ação. (...) A inteligência é a mais
promissora de todas as novidades, a revelação do significado
daquela transformação do passado em futuro que é a reali-
dade do presente. Revelar a inteligência como o órgão que
irá guiar esta transformação é fazer uma declaração do signi-
ficado incalculável do presente para a ação.10

É, portanto, a inteligência que vai conduzir a ação a imagi-


nar um futuro que corresponda à projeção daquilo que é dese-
jável no presente, assim como a inventar as instrumentalidades
para a sua realização. É na substituição da determinabilidade
apriorística dos fins, pela invenção inusitada e espontânea do
futuro, que reside a inteligência e a criatividade do conceito
pragmatista de ação, tal como elaborado por Dewey.
A idéia pragmatista de criatividade, e a sua forte conexão
com o conceito de ação, também aparece no primeiro mo-
mento do pragmatismo pelas mãos daquele que pode tranqüi-
lamente ser tido propriamente como o primeiro pragmatista
social: George Herbert Mead. Com efeito, Mead ganhou no-
toriedade por ter elaborado uma teoria antropológica da co-
municação, conforme veremos ainda no item 2.2 a seguir, e
uma teoria do desenvolvimento do ‘self ’. Contudo, interpre-
tações recentes da obra de Mead tornam possível perceber ain-
da que ele desenvolveu também uma teoria da ação, e mais do

81
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

que isto, uma teoria da ação que coloca em primeiro plano a


criatividade.11
A característica central do pensamento de Mead consiste,
por conseguinte, na tensão existente entre a criatividade da
ação e o caráter comunicativo da sociabilidade humana. No
âmago desta tensão se encontra a preocupação de Mead em
relacionar os conceitos de ação e de consciência. De acordo
com Mead, a consciência é uma fase da ação, de modo que a
determinação de fins não é um ato da consciência que ocorre
fora do contexto da ação. Mead analisa o ato (ele prefere de-
signar a unidade da conduta como ato (act), como ressalta
Gary A. Cook, um dos maiores estudiosos de sua obra) como
um todo dinâmico constituído de estágios sucessivos e
interpenetrantes: o ato é enraizado no impulso e tipicamente
passa através dos estágios da percepção e da manipulação em
direção à consumação. Todo ato se origina de impulsos que
buscam expressão na conduta ou no processo de vida de um
organismo. Na fase da percepção, o ato é ajustado ao ambien-
te, enquanto na fase da manipulação o organismo lida com
aquilo que é necessário para a consumação do ato. O que Mead
quer de fato mostrar com esta análise temporal ou seqüencial
do ato é que ele deve ser considerado mais pelas suas respostas
do que pelos seus estímulos. Em outras palavras, o que a aná-
lise temporal evidencia é que as respostas do ato transformam,
mediam e interpretam o estímulo – e não meramente se se-
guem a ele.12 Portanto, o estabelecimento de um fim apenas
pode ser o resultado de uma reflexão. Deste modo, o curso
seguido por uma ação não pode ser definido uma única vez e
assim mantido, pois a reflexão que define os fins da ação é
permanente, o que possibilita que o curso da ação seja revisto
e reconstruído inúmeras vezes.13
Esta contínua revisão e regeneração da ação possibilitada

82
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

pela compreensão da consciência como uma fase da ação, por


conseguinte, indica uma capacidade de invenção permanente
do curso da ação, em outras palavras, indica a sua criatividade.
Não é ao acaso que Mead, para explicar sua teoria da ação,
utilizou como exemplo as brincadeiras (play) de crianças, as
quais lhe serviram como modelo teórico de uma ação prati-
camente desprovida de pressão para estabelecer inequivoca-
mente os fins da ação. Decerto, conforme acreditava Mead, as
brincadeiras de crianças representam o caso mais evidente de
como os problemas da ação podem ser superados através da
invenção de novas possibilidades de ação. Mead, portanto, foi
buscar nas brincadeiras infantis a explicação para o papel cen-
tral que a criatividade exerce na formação da ação e, principal-
mente, no conceito pragmatista de ação.14
Caracterizada como capacidade de invenção por Mead, ou
como inteligência por Dewey, a criatividade é, indubitavel-
mente, o centro das tentativas de elaboração de um conceito
de ação pragmatista. Trata-se, portanto, de substituir a racio-
nalidade pela imaginação, os fins pelos diferentes meios passí-
veis de realizá-los, e o prévio estabelecimento dos fins pela
reflexividade e responsividade constantes. Além disso, é possí-
vel também afirmar que o conceito de ação pragmatista, em
especial o de Mead, prioriza a coletividade em detrimento da
individualidade. Explorar em detalhes este ponto poderia nos
levar a ultrapassar o escopo de nossa exposição. No entanto,
cabe ressaltar aqui apenas algumas observações a fim de corro-
borar nosso argumento de que Mead avança no sentido do
estabelecimento de um conceito de ação que não se centra no
indivíduo, mas na coletividade. Ele define o ato social como:

um [ato] no qual a causa ou estímulo que libera um impulso


se encontra no caráter ou conduta de uma forma viva que

83
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

pertence ao próprio ambiente da forma viva cujo impulso


derive. Eu gostaria, entretanto, de restringir o ato social à
classe de atos que envolvem cooperação de mais de um indi-
víduo, e cujo objeto como definido pelo ato no sentido de
Bergson é um objeto social. Por objeto social, eu quero dizer
um objeto que responde a todas as partes do ato complexo,
ainda que estas partes se encontrem na conduta de diferen-
tes indivíduos. O objetivo dos atos é então encontrado no pro-
cesso de vida do grupo, não naqueles dos indivíduos sozinhos e
separados.15

Com efeito, a psicologia social de Mead esforça-se em ex-


plicar a conduta do indivíduo em termos da conduta organi-
zada do grupo social, ao invés de explicar a conduta organiza-
da do grupo social por meio da conduta dos indivíduos se-
parados que pertencem a tal grupo. Conforme explica Mead,
para a psicologia social o todo (a sociedade) é anterior às
partes (os indivíduos), e não o contrário. Assim, o ato social
não se explica pela soma do estímulo com a resposta; ele
deve ser tomado como um todo dinâmico, um processo or-
gânico complexo implicado pelo estímulo de cada indiví-
duo e a resposta nele envolvida.16 Além disso, outro desen-
volvimento de Mead que vem a corroborar a relevância do
aspecto coletivo, social, da ação em detrimento da noção de
individualidade, se dá justamente em sua discussão sobre a
criatividade. Mead fala sobre uma criatividade social, ou so-
ciabilidade criativa, que se desenvolve a partir do ‘self ’ de
um sujeito, sempre e necessariamente envolvido em um con-
texto social. Conforme explica:

Mesmo nas mais modernas e altamente desenvolvidas for-


mas de civilização humana, o indivíduo, por mais original e
criativo que ele possa ser em seu pensamento e comporta-

84
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

mento, sempre e necessariamente assume uma relação defi-


nida e reflete na estrutura do seu ‘self ’ e personalidade o
modelo geral organizado de experiência e atividade exibido
ou caracterizado no processo de vida social no qual ele está
envolvido e do qual o seu eu ou personalidade é essencial-
mente uma expressão ou personificação (embodiment) cria-
tiva. Nenhum indivíduo tem uma mente que opera simples-
mente em si mesma, isolada dos processos sociais de vida
dos quais ela se originou ou dos quais ela emergiu, e nos
quais conseqüentemente foi basicamente impresso o mode-
lo de comportamento social organizado.17

Este novo conceito de ação que surge com o pragmatismo


de Dewey e Mead, portanto, se opõe diametralmente à teoria
da ação racional derivada da economia, e que influenciou pro-
fundamente a sociologia e, por conseqüência, os tipos clássi-
cos da teoria sociológica da ação, tais como desenvolvidos prin-
cipalmente por Max Weber e Talcott Parsons.18 Contudo, é
inevitável constatar que, apesar de seus esforços, Dewey e Mead
tão somente desenvolveram um novo conceito de ação, mas
não lograram constituir, a partir dele, uma teoria da ação. A
principal contribuição da primeira geração de pragmatistas
no que tange à sociologia da ação, além de possibilitar o rom-
pimento com as teorias racionalistas e normativistas da ação,
parece ser a introdução do conceito de criatividade e de sua
necessária relação com a ação humana. Neste sentido, com a
reabilitação do pragmatismo nas últimas duas décadas, coube
a Hans Joas recuperar o conceito pragmatista de criatividade e
situá-lo no centro de uma teoria da ação, sistemática e coeren-
temente organizada a partir do instrumental neopragmatista
que lhe é familiar.
O argumento central de Joas consiste na sua reivindicação
de que um terceiro modelo de ação seja adicionado aos dois

85
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

modelos predominantes, quais sejam o da ação racional e o da


ação orientada normativamente. O que este terceiro modelo
apresentaria de peculiar em relação aos outros dois já exis-
tentes é justamente a sua ênfase no caráter criativo da ação
humana. Entretanto, a tarefa que Joas ambiciona para si em
seu importante livro The Creativity of Action (1996) vai mui-
to além de chamar atenção para um terceiro tipo de ação.
Joas quer, com efeito, provar que a teoria da criatividade da
ação é superior aos dois modelos anteriores e, mais do que
isto, quer provar que absolutamente toda ação humana pos-
sui uma dimensão criativa – e, neste sentido, quer mostrar
que até mesmo as teorias da ação racional e da ação norma-
tivamente orientada possuem uma dimensão criativa, embo-
ra esta tenha sido sempre inadequadamente articulada pelos
seus propositores.
Com o intuito de demonstrar a marginalização da dimen-
são criativa da ação na história da sociologia, Joas analisa cau-
telosamente a formação da teoria da ação desde Parsons e a
sua proposição de um modelo alternativo ao da ação racional
(ou seja, a ação orientada normativamente) até Simmel, pas-
sando por Weber e Durkheim. Com efeito, o que faz Joas é
analisar cada um dos autores trabalhados por Parsons em seu
The Structure of Social Action a fim de mostrar que sua análise
foi insuficiente ao ressaltar apenas a tensão entre utilitarismo
e normatividade e ignorar que tais autores estavam tentando
fazer da sociologia um projeto filosófico e não meramente fun-
dando-a sobre as bases da filosofia tradicional. Com este in-
tuito, Joas tenta mostrar a influência do pragmatismo e da
filosofia da vida naqueles autores, a partir da presença de ele-
mentos sinalizadores da criatividade em suas obras. No pró-
prio Parsons, por um lado, Joas enxerga um benefício de sua
teoria ao possibilitar o afastamento da teoria da ação racional,

86
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

mas, por outro lado, ele o critica por não ter enriquecido seu
trabalho com fundamentos filosóficos oriundos do pragma-
tismo e da filosofia da vida, os quais lhe teriam possibilitado
desenvolver uma dimensão criativa de sua teoria da ação. Já
em Weber, Joas encontra um elemento sinalizador da criativi-
dade, o carisma. No entanto, de acordo com Joas, a teoria da
ação de Weber não logra se constituir como uma ação criativa,
pois além de não conferir espaço adequado para a criatividade
presente em sua crítica à burocratização, a teoria de Weber
apresenta contradições que impedem tal desenvolvimento.
Uma destas contradições é o caráter não-democrático de sua
teoria do carisma. Também em Durkheim, leitor entusiasta
do pragmatismo apesar de condená-lo pelas suas semelhanças
com o utilitarismo lógico, Joas localiza a criatividade em al-
gum lugar entre os conceitos de sagrado, ritual e efeverscência
coletiva. Além disso, Joas observa que Durkheim se aproxima
do pragmatismo ao desenvolver a idéia de um processo de
reflexão informado pelo conhecimento empírico na conside-
ração de questões morais. Contudo, se esta idéia aproxima
Durkheim do pragmatismo, ela irá também afastá-lo por ou-
tro ângulo, qual seja o das críticas que faz ao pragmatismo
por relacionar ação e consciência, que ele (Durkheim) acredi-
ta serem coisas distintas e que devem permanecer separadas.
Por fim, em Simmel a criatividade pode ser apreendida, se-
gundo Joas, a partir da influência que ele sofreu da filosofia da
vida de Bergson, que por sua vez o teria levado a avaliar as
tendências em direção à racionalização e à diferenciação na
modernidade sob uma perspectiva que ressalta a criatividade.
A conclusão de Joas é que, apesar de cada um destes autores
apresentarem em sua obra uma dimensão criativa da ação hu-
mana, eles não logram elucidá-la o suficiente e, mais do que
isto, não a integram com o conjunto de seu pensamento.19

87
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Mas o principal feito de Joas que nos interessa sublinhar aqui,


mais do que identificar a criatividade e o seu uso inadequado
ao longo da formação histórica da teoria sociológica da ação,
é, sem dúvida, a sua própria sistematização de uma teoria da
ação pragmatista.
A intenção de Joas não é meramente a de prover uma ex-
tensão das tradicionais teorias da ação, acrescentando-lhes ou
realçando-lhes um novo elemento, a criatividade. Mais do que
isto, o que ele intenta é fazer uma completa reestruturação dos
pressupostos fundamentais que servem de base à teoria socio-
lógica da ação, tal como ela se consolidou historicamente. Com
efeito, Joas acredita que a revisão destes pressupostos implica
a alteração da compreensão tradicional da racionalidade (ins-
trumental) e da normatividade. E, ainda mais importante, é a
partir da reestruturação de tais pressupostos das teorias clássi-
cas da ação que emerge a criatividade da ação humana, e com
ela a teoria pragmatista da ação de Joas.20
Para desenvolver sua teoria da criatividade da ação, ou da
ação criativa, Joas propõe uma concepção não-teleológica e
auto-reflexiva da intencionalidade da ação. Fortemente in-
fluenciado por Mead, Joas busca superar o tradicional esque-
ma meios-fins, substituindo-o pelo conceito de situação – for-
ma sinônima de designar o conceito de contexto dos pragma-
tistas clássicos.21 Chame-se situação ou contexto, o que im-
porta é que este elemento passa a ser tido como parte consti-
tutiva da ação. Assim, segundo Joas, a ação é sempre fundada
em contextos situacionais pré-reflexivos, os quais já englobam
em si o seu elemento criativo. Uma vez que a criatividade está
sempre embebida em uma situação, a ação passa a prescindir
de motivos e planos para a sua realização. E mesmo se contar
com estes, eles serão sempre abertos e passíveis de revisão e,
conseqüentemente, de modificação. É neste preciso sentido

88
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

que a ação humana passa a ser caracterizada pela concretização


criativa de valores, bem como pela satisfação construtiva de
impulsos – e não mais pela busca intencional-teleológica de
realizar fins previamente estabelecidos.
Joas vai buscar em Mead, mais especificamente na sua de-
fesa da articulação entre a ação e a consciência, uma alternati-
va às teorias teleológicas da ação. Neste sentido, imbuído do
espírito pragmatista de Mead, ele propõe que a percepção e a
cognição, ao invés de precederem a ação, constituam fases
constitutivas da mesma. É através da percepção e da cognição
que a ação vem a ser conduzida e reconduzida através de seus
contextos situacionais. Disto decorre que o estabelecimento
de fins não decorre de um ato do intelecto anterior à ação,
mas, ao contrário, a determinação dos fins é o resultado de
uma reflexão acerca de aspirações e tendências desde sempre
operantes. Estas aspirações tematizadas na reflexão durante o
curso da ação, portanto, se localizam no corpo do agente da
ação. Em outras palavras, são as capacidades, os hábitos e os
modos pelos quais o corpo se relaciona com o ambiente que
formam o pano de fundo de todo estabelecimento de fins cons-
ciente – ou ainda em outras palavras, formam o pano de fun-
do da intencionalidade. A intencionalidade passa a ser vista
como um controle auto-reflexivo exercitável sobre o compor-
tamento.22
De acordo com Joas, a concepção de criatividade do prag-
matismo se encontra justamente no seio da compreensão
pragmatista da ação. Segundo ele, o pragmatismo sustenta que
toda ação humana se situa na tensão entre a ação habitual
não-reflexiva e os atos de criatividade. O que o leva a esta
afirmação é uma constatação do processo relatado pelos pri-
meiros pragmatistas, especialmente Peirce e Dewey, para ex-
plicar a formação das crenças, dos hábitos e, conseqüentemente,

89
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

da ação. Este processo, que já descrevemos no primeiro capí-


tulo deste livro, indica como as dúvidas impulsionam cons-
tantemente à ação, de modo que o agente busque sempre no-
vos modos de conduta a fim de sanar suas dúvidas e atingir o
estado satisfatório que só as crenças oferecem. Com base nesta
constatação, portanto, Joas afirma que a criatividade do prag-
matismo é gerada no âmbito de situações problemáticas que
requerem soluções.23
Trata-se, portanto, de uma teoria da criatividade situada.
Ressalte-se que Joas quer evitar que o modelo pragmatista de
ação seja acusado de constituir-se em uma mera tática de reso-
lução de problemas ou um simples modelo de comportamen-
to adaptativo. Para tanto, ele esforça-se em mostrar como a
criatividade presente no conceito pragmatista de ação implica
a liberação da capacidade de novas ações. Em outras palavras,
a criatividade da teoria da ação pragmatista reside em possibi-
litar a criação e a recriação da ação em seu curso. Uma mesma
ação pode ser alterada e remanejada infinitas vezes quando se
deparar com resistências ao longo de seu curso, é nisto que
reside a sua criatividade.
Perceba-se ainda que esta compreensão da criatividade é
extremamente semelhante ao conceito de inteligência de
Dewey, conforme vimos no começo desta nossa discussão so-
bre a ação. Com efeito, não seria exagerado afirmar que o con-
ceito de ação inteligente desenvolvido inicialmente por Dewey
foi reapropriado e reelaborado pelo neopragmatismo socioló-
gico de Hans Joas. Para concluir esta nossa breve exposição
sobre a ação no pensamento pragmatista, fazemos nossas as
seguintes palavras de Hans Joas: “O pragmatismo merece um
lugar na história da idéia de criatividade tanto quanto na his-
tória da teoria da ação, pois ele é uma teoria da criatividade da
ação humana.”24

90
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

2.2. Comunicação

Ao lado da teoria da ação, outro campo no qual o pragma-


tismo apresenta grandes reflexos no âmbito da sociologia, ou,
mais especificamente, da teoria social, é o da comunicação.
Com efeito, é possível afirmar que boa parte da produção teó-
rica gerada no plano da filosofia da linguagem a partir da vira-
da lingüística apresenta algum tipo de relação com o pragma-
tismo. Não é ao acaso, portanto, que boa parte dos autores
que se enquadraram na virada lingüística vão também realizar
uma ‘virada pragmática’. Mas antes de explicarmos exatamen-
te o que isso significa, e antes de analisarmos as conseqüências
contemporâneas do pragmatismo na sociologia da comuni-
cação, é preciso retornar aos primeiros pragmatistas e acom-
panhar o esboço e o desenvolvimento daquilo que seria uma
teoria da comunicação pragmatista.
O embrião de qualquer desdobramento alcançado pelo
pragmatismo em relação ao tema da comunicação se encon-
tra, sem dúvida, na obra de Peirce. Com efeito, a contribuição
deste autor para o desenvolvimento de uma teoria dos signos,
ou semiótica, está na base dos avanços contemporâneos da
lingüística, bem como responde em parte pela retomada de
uma teoria pós-moderna da retórica.25 Além disso, e à parte a
influência que Peirce possa ter exercido sobre a formação de
alguns nomes proeminentes da filosofia da linguagem con-
temporânea, conforme destacaremos mais adiante, é certo tam-
bém que a teoria da significação avançada por Peirce por meio
do conceito de comunidade de investigação responde por boa
parte do caráter pragmatista adquirido hodiernamente pelo
conceito de comunicação.
Conforme vimos no primeiro capítulo deste livro, a idéia
de investigação levada a cabo através do conceito mais amplo

91
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

de comunidade de investigação foi introduzida por Peirce e


posteriormente desenvolvida pelos demais pragmatistas clás-
sicos. A investigação, para Peirce e seu séquito, consiste em
um processo que se dirige ao conhecimento, seja do significa-
do, seja da verdade. Passível de inúmeros pontos de partida, a
investigação também pode contar com inúmeros pontos de
chegada. Na verdade, para Peirce, como vimos, cada novo ele-
mento de informação que se agrega à investigação contribui
para que ela se estenda ainda mais, tomando novos e variados
rumos – ao invés de necessariamente contribuir para a sua solu-
ção final. Esta, a solução final, aliás, não é uma preocupação
para o pragmatismo clássico. A investigação não busca, necessa-
riamente, chegar a algum lugar, embora, para Peirce, este seja
em algum momento o seu destino. De acordo com ele, como
vimos também, faz parte do processo da investigação uma con-
vergência natural dos investigadores no sentido de uma direção
específica. E o que vai tornar possível esta convergência, o que
vai tornar possível o estabelecimento de um significado ou a
pacificação das crenças e opiniões é a comunicação.
Em Peirce, portanto, a comunicação é o processo pelo qual
as coisas adquirem significados – e, na convergência deste,
aproximam-se da verdade e da realidade. Mais importante do
que isto, porém, é o fato – que caracterizará permanentemen-
te a idéia de comunicação no pragmatismo como um todo –
de que é a comunicação que possibilita que o conceito de co-
munidade de investigação implique um falibilismo que lhe é
característico. Em outras palavras, é a comunicação que possi-
bilita a perenidade da investigação, sua manutenção incessan-
te, a produção inesgotável de respostas provisórias que a
realimentam gerando novas respostas também provisórias. O
que permite que estas respostas não sejam avaliadas nem pelo
seu erro nem pelo seu acerto, o que as torna provisórias, é a

92
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

comunicação.26 Do mesmo modo, o que permite que as res-


postas encontradas no percurso da investigação sejam nova-
mente e incessantemente testadas e possivelmente substituí-
das por outras respostas é também a comunicação.
Além de implicar o falibilismo característico do processo
investigatório, e por conseqüência disso, a comunicação ad-
quire já com Peirce as duas características principais que vão
marcar para sempre o conceito pragmatista de comunicação:
a responsividade e a reflexividade. Quanto à responsividade,
sabemos que aquilo que possibilita, afinal, que a comunidade
de investigação esteja permanentemente revendo, revisando e
corrigindo suas respostas provisórias, suas tentativas de con-
clusão, é a comunicação. Mais do que meramente responsiva,
a comunicação pragmatista é autocorretiva: ela não apenas
possibilita a revisão e a correção daquilo que está em jogo,
mas é ela mesma quem sinaliza e executa esta correção. “Con-
seqüentemente, qualquer tipo de investigação, inteiramente
levada a cabo, possui o poder vital de autocorreção e cresci-
mento”, diz Peirce.27 Portanto, assim como é da natureza da
investigação estar revisando e corrigindo a si mesma perma-
nentemente, é da natureza da comunicação possibilitar esta
revisão e correção. Conforme explica Peirce, “um signo intei-
ramente novo não pode nunca ser criado por um ato de co-
municação, mas o que é inteiramente possível é que um signo
já existente possa ser preenchido e corrigido”.28 O papel da
comunicação na investigação é, portanto, justamente o de
corrigir, possibilitando assim a sua falibilidade e inesgotabili-
dade. A comunicação não se encontra nos pontos de partida,
nem nos pontos de chegada, seu objetivo não é o de levar à
convergência dos investigadores já que esta é natural, segundo
Peirce. A comunicação é o meio condutor disto tudo, e por
isso ela é intrinsecamente autocorretiva.

93
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Além da responsividade, da capacidade permanente de


autocorreção, a comunicação pragmatista é, desde Peirce,
marcada também pela reflexividade. De acordo com Peirce, os
signos são ordinariamente considerados meios de comunica-
ção (medium of communication) que implementam a interco-
municação entre duas mentes. Mas isso não é tudo. Segundo
Peirce, duas mentes separadas não constituem requisito para a
operação de um signo, ou seja, da comunicação. A forma pela
qual ele vai demonstrar isso é através da lógica, como não po-
deria deixar de ser.

Este novo conceito científico de signo não reconhece a co-


nexão de cada signo com duas mentes? A resposta própria
para esta pergunta primeiramente apontaria que duas men-
tes separadas não são requisito para a operação de um signo.
Assim, as premissas de um argumento são o signo da verda-
de da conclusão; ainda que seja essencial para o argumento
que a mesma mente que pensa a conclusão como tal deve
também pensar as premissas. De fato, duas mentes em co-
municação são, nesta medida,“em uma” (at one), isto é, são
propriamente uma mente da parte delas. Uma vez entendi-
do isto, a resposta para a questão será reconhecer que todo
signo – ou, de qualquer forma, quase todos – é uma deter-
minação de algo da natureza geral de uma mente, o que po-
demos chamar de “quase-mente” (quasi-mind ).29

O que Peirce chama de ‘quase-mente’, portanto, consiste


na capacidade da comunicação constituir-se reflexivamente.
Se não é preciso duas mentes, duas pessoas, para que um sig-
no, ou melhor, uma comunicação se estabeleça, é porque esta
comunicação se processa também inevitavelmente na própria
mente do ator na forma de uma auto-reflexão. Este pequeno
achado de Peirce, digamos assim, contido nesta passagem

94
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

reproduzida acima, bem como em frases do tipo “o signo é


compreendido como a implementação da intercomunica-
ção”30, constituem o embrião da construção de um conceito
pragmatista de comunicação marcado pela reflexividade – o
qual será posteriormente desenvolvido exemplarmente por
Mead no âmbito de um pragmatismo verdadeiramente social,
ou sociologizante, além de ser apropriado por expoentes da
teoria da comunicação contemporânea, como é o caso de
Habermas, conforme veremos mais adiante.
Antes de avançarmos com Mead na demonstração do cará-
ter auto-reflexivo do conceito pragmatista de comunicação,
nos deteremos brevemente, porém, na contribuição de Dewey
no sentido de reforçar o caráter responsivo, ou autocorretivo,
da comunicação. Com efeito, em Dewey é possível vislum-
brar, além da idéia de correção facultada pelo falibilismo
peirceano, a presença de outros elementos pragmatistas na
comunicação, tais como o conseqüencialismo (que Dewey
preferia chamar de instrumentalismo, como inclusive muitas
vezes denominou a sua própria versão do pragmatismo) e o
contextualismo. Na esteira de Peirce, também Dewey acredita
ser através da comunicação que as coisas adquirem significa-
dos. Neste sentido, a comunicação é uma espécie de ponte
natural que liga a existência e a essência, gerando além de sig-
nificados, informação, ensino e aprendizado, ou seja, conhe-
cimento. Ressalte-se que todos os conteúdos que atravessam a
ponte da comunicação estão permanentemente sujeitos à
reconsideração e revisão: a comunicação é algo intrinsecamente
autocorretivo também em Dewey.

Quando a comunicação ocorre, todos os eventos naturais


estão sujeitos à reconsideração e à revisão; eles são readapta-
dos a fim de preencher os requisitos da conversação, seja esta

95
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

um discurso público ou aquele discurso preliminar chama-


do pensamento. Eventos se transformam em objetos, coisas
com um significado.31

Além de encontrar-se fortemente associado, no plano da


filosofia, à teoria da significação pragmatista, o conceito de
comunicação com Dewey adquire uma conotação eminente-
mente social. Deste modo, ao passo que confere significado
para as coisas, transforma eventos em objetos e os sujeita cons-
tantemente à modificação por meio de sua capacidade ineren-
te de autocorreção, a comunicação também possibilita a coo-
peração social e a consolida em participação.“De todos os afa-
zeres, a comunicação é o mais maravilhoso. (...) E que o fruto
da comunicação deva ser a participação, o compartilhamento,
é uma maravilha”, diz Dewey.32 A comunicação, portanto,
possibilita que através da atribuição de significados e de sua
compreensão, as pessoas interajam. E esta interação não se dá
restritivamente no plano das significações, da essência, através
da interação relacional entre sujeitos e objetos; ao contrário,
ela se efetua no plano da existência humana. Trata-se de uma
interação social, mediada pela linguagem que, afinal, é co-
mum apenas aos homens.

O coração da linguagem não é a “expressão” de alguma coisa


antecedente, muito menos a expressão de pensamento ante-
cedente. É a comunicação; o estabelecimento da coopera-
ção em uma atividade na qual existem parceiros, e na qual
a atividade de cada um deles é modificada e regulada pela
parceria.33

A comunicação ou ‘interação comunal’, como muitas ve-


zes denomina Dewey, é, por conseguinte, inerentemente uma
atividade social. Contida nesta atividade está o papel da ação

96
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

em promover a cooperação entre os homens, em torná-los


parceiros de uma empreitada comum, da experiência comunal
que inevitavelmente compartilham. Neste sentido, a lingua-
gem opera como “uma forma de ação” cujo “uso instrumental
é sempre uma forma de ação concertada para um fim”. A lin-
guagem, portanto, é a “ferramenta das ferramentas”, pois é o
meio da comunicação. E esta, a comunicação, por sua vez, é
o meio para outras coisas. Mais do que se constituir como
meio para estabelecer a cooperação, a comunicação também é
o meio do estabelecimento dos significados, da conversão dos
eventos em objetos e da apreensão destes pelos sujeitos capa-
zes de linguagem. Além disso e por causa disso, a comunica-
ção opera também como meio de enriquecer a vida dos ho-
mens com significados, e de possibilitar que estes sejam revis-
tos, corrigidos, modificados – transformados incessantemen-
te pela imaginação e pela linguagem. Ao lado deste seu caráter
instrumental, que a constitui como meio de múltiplas ativida-
des, a comunicação também é conclusiva, final. Ela opera, pois,
como fim, ao retirar os homens do isolamento e conduzi-los
ao compartilhamento, ao fazê-los compartilhar uma comu-
nhão de significados.34

A comunicação é singularmente instrumental e conclusiva


(final ). Ela é instrumental porque nos libera das pressões
opressoras dos eventos, e nos permite viver em um mundo
de coisas que possuem um significado. Ela é conclusiva como
um compartilhamento dos objetos e artes preciosas para uma
comunidade, um compartilhamento por meio do qual os
significados são acentuados, aprofundados e solidificados no
sentido da comunhão.35

Ao mesmo tempo instrumental e conclusiva, meio e fim, a


comunicação conduz também à inteligência. De acordo com

97
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Dewey, as funções instrumentais e finais da comunicação não


devem ser jamais separadas, pois quando estão unidas na ex-
periência o que se obtém é a inteligência: “Inteligência e signi-
ficação são conseqüências naturais da forma peculiar que a
interação às vezes assume no caso dos seres humanos”, conclui
Dewey.36 Em outras palavras, a inteligência é o resultado da
interação social, deste tipo de comunicação inerente aos ho-
mens e que os leva a se consolidar na forma de uma comuni-
dade que compartilha significações, conforme verificaremos
no próximo capítulo deste livro quando tratarmos do concei-
to pragmatista de comunidade.
Se Peirce e Dewey não chegam a desenvolver uma teoria da
comunicação – apesar de o primeiro ser responsável por atri-
buir ao conceito de comunicação a reflexividade e a responsi-
vidade que o marcarão definitivamente, e o segundo respon-
sável por lhe atribuir seu indissociável caráter social – G. H.
Mead pode ser tido como o principal responsável pelo desen-
volvimento, no âmbito do pragmatismo, de uma verdadeira
teoria da comunicação, ou, ainda, da interação social.37
A partir dos estudos daquilo que denominou de psicologia
social, Mead desenvolveu de fato uma teoria antropológica da
comunicação humana. Fazendo às vezes de psicólogo ou an-
tropólogo, o fato é que Mead demonstra o desenvolvimento
da linguagem desde os gestos, e até os mesmos atingirem a
forma vocal. O resultado disso, contudo, é uma verdadeira
teoria sociológica da comunicação, inteiramente apropriada
nos dias atuais pelas recentes tendências no campo da teoria
da comunicação, conforme mencionaremos adiante.
De acordo com Mead, a conduta e o gesto de um indiví-
duo que, naturalmente, busca provocar uma resposta em ou-
tro indivíduo, também tende a provocar a mesma resposta em
si mesmo. Do mesmo modo, com os gestos vocais, isto é, a

98
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

linguagem, os indivíduos também continuam a despertar em


si mesmos as respostas que buscam provocar em outras pes-
soas. Assim, ao ter em si a resposta que procurava no outro, o
indivíduo passa a desempenhar em sua própria conduta as
atitudes de outras pessoas. A importância da linguagem no
desenvolvimento da experiência humana, segundo Mead, re-
side justamente no fato que o estímulo reage tanto no sujeito
que fala quanto no outro com quem ele fala. A relação entre o
gesto vocal e as respostas obtidas tanto naquele que o emitiu
como naquele a quem ele era dirigido, Mead chama de ‘sím-
bolo significante’ (significant symbol). Além de tender a provo-
car em um indivíduo o mesmo conjunto de reações que pro-
voca no outro, o símbolo significante vai mais além disso; a
resposta nele contida, além de atribuir significado a alguma
coisa, consiste também em um estímulo que conduz a um
estágio posterior da ação, qual seja o de se situar a partir do
ponto de vista daquela resposta particular. Em outras pala-
vras, quando a resposta da outra pessoa (com quem o sujeito
falante se comunica) é provocada e se torna um estímulo para
controlar sua ação, o sujeito falante passa a ter o significado
do ato desta outra pessoa em sua própria experiência. Quando
a resposta que se tenta provocar em outro indivíduo surge em
si mesmo, o que se tem é uma ‘tomada do papel de outro’
(taking the role of the other), isto é, uma tendência a agir con-
forme a outra pessoa age.38 Esta capacidade humana que Mead
chama de reflexividade é, segundo ele, o que faz os homens
diferirem dos outros animais. E o que é distintivo da lingua-
gem humana, por sua vez, é a possibilidade de que um mesmo
ato de fala afete tanto aquele que o emite, quanto aquele a
quem se dirige.39
Do mesmo modo que a pessoa que fala afeta a si mesma
com a resposta que provoca no outro, este outro também é

99
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

afetado em si mesmo por aquela mesma resposta que o sujeito


falante busca provocar. Em outras palavras, se o sujeito que
ouve responde de alguma forma àquilo que ouve, repetindo
isto seguidamente para si mesmo, se colocando no papel da
pessoa que fala com ele, ele passa a ter o significado daquilo
que ouve, ou melhor, este significado passa a ser dele. Mead
ressalva que este processo pelo qual um indivíduo afeta ou-
tros indivíduos é transportado para a experiência de todos
estes indivíduos afetados e, neste sentido, é um processo social.
Os indivíduos afetados pelo que ouvem tomam a atitude da-
quele que fala como sua não por uma questão de repetição,
mas como parte de uma reação social elaborada que se encon-
tra em curso.40
Ao processo humano que possibilita que um indivíduo
aponte significados para outros e para ele mesmo, ou seja,
aquilo que possibilita que os indivíduos exerçam um controle
sobre os significados, Mead chama de mente (mind ). A mente,
portanto, emerge da linguagem. Mas não apenas dela, pois a
própria linguagem, como vimos acima, se estabelece em um
contexto social. Deste modo, a mente emerge e se desenvolve
no seio de um processo social, no contexto de uma matriz
empírica de interações sociais. Isto se deve ao fato de que o
processo de experiências tornadas possíveis pelo cérebro hu-
mano apenas é possível para um grupo de indivíduos que
interagem. Vale dizer, apenas os membros de uma sociedade
são passíveis de tais experiências; ao passo que aqueles que
vivem em isolamento, sem interação social, não desfrutam das
mesmas experiências e por isso não desenvolvem a linguagem.41
Além de fazer a mente emergir, a interação social também
é responsável pela emergência do ‘self ’. O ‘self ’, como aquilo
que pode ser um objeto para si mesmo, é essencialmente uma
estrutura social, por sua vez surgida da experiência social. De

100
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

acordo com Mead, é impossível conceber um ‘self ’ que surja


fora da experiência social. E, assim como a mente, tampouco
o ‘self ’ surgiria fora de um contexto lingüístico. Quando o ‘self’
se torna um objeto para si mesmo, através da sociedade e da
linguagem, ele passa a ser um ‘self’ reflexivo. É neste fato que
reside, segundo Mead, a importância da comunicação: ela con-
siste no único tipo de comportamento no qual o indivíduo res-
ponde a si mesmo. Neste sentido, o pensamento é uma forma
de conversação interna do sujeito consigo mesmo que o con-
duz, por conseguinte, à ação. O pensamento se torna uma etapa
componente da ação social, conforme já discutimos antes, no
início deste capítulo, quando tratamos do conceito de ação.42

A importância do que denominamos “comunicação” reside


no fato que ela provê uma forma de comportamento em que
o indivíduo pode se tornar um objeto para ele mesmo. É
deste tipo de comunicação que estamos falando (...) comu-
nicação no sentido de símbolos significantes, comunicação
dirigida não apenas para os outros, mas também para o pró-
prio indivíduo. Na medida em que esta comunicação é uma
parte do comportamento, ela introduz um ‘self ’.43

À emergência do ‘self ’, da personalidade, está associada um


tipo específico de inteligência que Mead chama de inteligên-
cia reflexiva. O desenvolvimento desta inteligência das pes-
soas humanas, que culmina naquilo que pode então ser cha-
mado de comunicação, depende do desenvolvimento daquela
reação social na qual os indivíduos influenciam a si mesmo da
mesma forma que influenciam os outros. É a inteligência re-
flexiva, portanto, que torna possível que um indivíduo assu-
ma e elabore as atitudes de outros indivíduos. A este processo,
por sua vez, Mead chama de produção de ‘outros generaliza-
dos’ (generalized others).44

101
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Por conseguinte, a ação se torna uma ação inteligente quan-


do o indivíduo age reflexivamente em sua comunicação com
outros indivíduos. Deste comportamento reflexivo resulta que
os indivíduos passam a ser conscientes de si mesmos ou auto-
conscientes, bem como críticos de si mesmos ou autocríticos.
E quando todos os indivíduos desempenham as atitudes de
outros, a atitude de um grupo é diferente daquela de um indi-
víduo separado, o que temos é um ‘outro generalizado’ que
contribui para a formação de uma comunidade também cons-
ciente de si mesma. É a linguagem, portanto, o princípio de
organização social que fez a sociedade humana ser possível.
Mas também o pensamento, entendido comunicativamente
de forma mais ampla, consiste na resposta de um indivíduo às
atitudes de outro no contexto do amplo processo social de que
os dois participam. Por meio do pensamento é possível proje-
tar uma sociedade no futuro ou no passado, desde que se pres-
suponha sempre uma relação social dentro da qual o processo
de comunicação ocorra. “O processo de comunicação não pode
ser estabelecido como algo que existe por si mesmo, ou como
um pressuposto do processo social. Ao contrário, o processo
social é pressuposto de modo a tornar o pensamento e a co-
municação possíveis”, afirma Mead, e prossegue, indo ainda
mais longe:45

O princípio que eu sugeri como básico para a organização


social é aquele da comunicação envolvendo participação no
outro. Isto requer o surgimento do outro no ‘self ’, a identi-
ficação do outro com o ‘self ’, a obtenção da autoconsciência
através do outro. Esta participação se torna possível através
do tipo de comunicação que o animal humano é apto a levar
a cabo – um tipo de comunicação distinto daquele que se
estabelece entre outras formas que não possuem este princí-
pio em suas sociedades.46

102
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

Como se sabe, após a Primeira Guerra Mundial, em torno


dos idos de 1930, o pragmatismo foi eclipsado pela filosofia
analítica. Uma das suas ramificações que logrou sobreviver,
no entanto, foi justamente o interacionismo simbólico, de-
senvolvido a partir de Mead por seus discípulos na Escola de
Chicago.47 Contudo, o renascimento do pragmatismo (ou
nascimento do neopragmatismo) nas duas últimas décadas do
século XX se encontra de certa forma associado a autores que,
no campo da filosofia, se enquadram no âmbito da chamada
virada lingüística e fazem de sua exaltação da idéia de lingua-
gem (em detrimento do conceito de experiência) justamente
uma de suas principais distinções em relação ao pragmatismo
clássico. Este fato vem justamente corroborar o argumento
que queremos defender aqui: ao lado da teoria da ação, um
dos campos no qual o neopragmatismo sociológico (ou social)
se mostra mais forte é o da comunicação. Com efeito, o cará-
ter reflexivo que Mead atribuiu à comunicação tem sido o
ponto de partida, sobretudo nas últimas duas décadas, para
um extenso e intenso desenvolvimento da teoria da comuni-
cação. E mais do que isto: a reflexividade da comunicação
elaborada inicialmente por Mead tem se constituído também
no ponto de partida para as recentes e freqüentes associações
da teoria da comunicação com a teoria social.48
Ao passo que a interdependência entre teoria social e teoria
da comunicação vem se consolidando cada vez mais como um
processo inevitável após a virada lingüística, o conceito de re-
flexividade da comunicação de Mead responde também por
uma outra mudança paradigmática que envolve tanto a filoso-
fia da comunicação como a teoria social. Trata-se da virada
pragmática, conforme foi designada inicialmente por Karl-Otto
Apel, Jürgen Habermas e Thomas McCarthy. A virada prag-
mática pode ser definida negativamente como um afastamen-

103
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

to (ou uma virada em direção contrária a) tanto das pré-mo-


dernas preocupações metafísicas com as estruturas do ser, quan-
to das modernas preocupações epistemológicas com a possibi-
lidade de acesso do sujeito a um mundo objetivo. Positiva-
mente, a virada pragmática pode ser definida como uma apro-
ximação (ou uma virada na direção de) das condições e pres-
supostos do uso da linguagem como o contexto e o meio
inevitáveis para a investigação filosófica.49 Ressalte-se que a
chave para esta virada pragmática, de acordo com Thomas
McCarthy, um os principais estudiosos contemporâneos do
tema, é a adoção das idéias de Mead acerca da ‘perspectiva do
participante reflexivo-crítico’ na comunicação.50
Os principais autores que vem encontrando destaque no
âmbito da virada pragmática, seja pelo desenvolvimento de
uma sólida teoria da comunicação, seja pela aplicação do prag-
matismo a esta teoria da comunicação, são os alemães Karl-
Otto Apel e Jürgen Habermas. Ambos teóricos, unidos por
laços de amizade e laços de afinidade intelectual, começaram a
desenvolver juntos, a partir da década de 1960, uma fundação
para a filosofia prática e para as ciências sociais por meio de
uma concepção de racionalidade comunicativa (ou discursiva).
Até muito recentemente, ambos os autores denominavam esta
sua abordagem em comum da filosofia prática como ‘ética do
discurso’. No entanto, apesar de compartilharem os mesmos
pontos de partida e de consolidarem esforços recíprocos na
construção desta abordagem comum, Apel e Habermas apre-
sentam, desde o começo desta trajetória compartilhada, dife-
renças substanciais em suas concepções do tema. A primeira
destas diferenças veio à tona já em 1976, quando ambos pu-
blicaram pela primeira vez as concepções básicas de sua abor-
dagem em um mesmo volume editado originalmente naquele
ano em alemão pelo próprio Apel, sob o título Sprachpragmatik

104
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

und Philosophie. Nesta obra, Habermas deu à sua abordagem


o título de pragmática universal (universalpragmatik), man-
tendo-se próximo às ciências sociais e à lingüística. Já Apel
intitulou a sua abordagem de pragmática transcendental
(transzendentalpragmatik), como uma tentativa de continuar
um projeto de transformação da filosofia transcendental que
ele havia enunciado pela primeira vez em 1973. A relevância
desta diferença entre as duas concepções reside no fato de que,
apesar de ambos teóricos compartilharem desde sempre o pro-
jeto comum de transformar a filosofia kantiana do ‘sujeito
transcendental’ (ou da consciência) na direção de uma filo-
sofia da linguagem e da intersubjetividade, Habermas não
apenas se distancia da metafísica em geral (como também faz
Apel), como também da filosofia transcendental (a qual ele,
Habermas, não distingue da metafísica). A conseqüência dis-
to, segundo o próprio Apel, consiste em que, seguindo a tradi-
ção da Escola de Frankfurt, Habermas não aceita que existe
uma diferença fundacional entre a filosofia e as ciências sociais
(que Apel chama de ‘ciências sociais críticas-reconstrutivas’).
Admitir isto, por conseguinte, implica considerar que todos
os pressupostos filosóficos, bem como os pressupostos da lin-
güística em geral, podem ser empiricamente testados e, por-
tanto, falíveis. Apel não concorda com isto em hipótese algu-
ma, pois se admitisse a ‘des-trancendentalização’ teria que ad-
mitir também que os pressupostos pragmáticos da argumen-
tação (os quais explicaremos em breve nas próximas páginas)
podem ser sujeitos a testes empíricos e, portanto, mostrar-se
falíveis e, por conseqüência, seria levado a ter que admitir
também a perda de sentido da distinção entre as ciências
sociais e a filosofia. Como Apel não se encontrava disposto a
admitir nenhum destes fatos, é neste ponto que ele se separa
de Habermas e continua a insistir, agora desacompanhado,

105
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

em uma ‘função pós-metafísica da filosofia transcendental


como uma pragmática transcendental do discurso argumen-
tativo’.
A principal diferença entre as abordagens de Apel e
Habermas, portanto, reside no estatuto do ‘transcendental’ e,
mais especificamente, aos olhos do próprio Apel, na convic-
ção de Habermas em aliar ciências sociais e filosofia sob um
mesmo fundamento – o que ele, Apel, não compartilha em
absoluto.51 É justamente este fato – isto é, a inexorabilidade
dos vínculos entre a obra de Habermas e as ciências sociais –
que orientou a nossa decisão de analisar nas próximas páginas
o papel do pragmatismo na teoria da comunicação de
Habermas apenas, deixando de lado as contribuições de Apel
sobre o tema, uma vez que a sua relevância se circunscreve
mais ao domínio da filosofia, não importando no mesmo grau
para a sociologia.
Há uma grande discussão na literatura recente em torno
das possíveis relações entre Habermas e o pragmatismo. Com
efeito, muitos autores contemporâneos afirmam que Habermas
deve de fato ser considerado um pragmatista (ou neopragma-
tista), enquanto outros tantos, pelas mais variadas razões, não
admitem esta possibilidade.52 Adentrar nesta questão aqui fu-
giria ao escopo deste livro, afinal, o nosso propósito não é o de
saber se Habermas é ou não de fato um pragmatista, mas, sim,
demonstrar a presença do pragmatismo em sua teoria da co-
municação.53
É possível afirmar, a fim de sistematizar esta breve apresen-
tação sobre o pragmatismo na teoria da comunicação haber-
masiana, que são três os usos do pragmatismo feitos por
Habermas em sua teoria da comunicação. Embasado e situa-
do pela virada pragmática que ele mesmo ajudou a consolidar,
Habermas situa o pragmatismo, simultaneamente, na base de

106
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

sua: a) teoria da argumentação; b) teoria da significação; e c)


teoria da justificação.
O principal foco da teoria da comunicação habermasiana
(que aqui estamos considerando como englobando simulta-
neamente suas teorias da argumentação, da significação e da
justificação) é, sem dúvida, o seu conceito de ação comuni-
cativa. A tarefa inicial, portanto, de sua obra The Theory of
Communicative Action, publicada originalmente em 1981, era
a de apresentar um modelo de ação que suprisse as insuficiên-
cias e unilateralidades dos três modelos, segundo Habermas,
então tradicionais: o modelo teleológico de ação, o modelo
normativo de ação e o modelo dramatúrgico de ação (este
último, de acordo com ele, difuso no âmbito da antropolo-
gia cultural e da lingüística, parte de um conceito culturalis-
ta de linguagem). O modelo de ação comunicativa que pro-
põe, por conseguinte, para superar estes três conceitos, leva-
ria em consideração igualmente todas as funções da lingua-
gem, isto porque:

Apenas o modelo comunicativo de ação pressupõe a lingua-


gem como um meio de comunicação irrestrita no qual os
falantes (speakers) e os ouvintes (hearers), fora do contexto
do seu mundo da vida pré-interpretado, referem simultane-
amente a coisas nos mundos objetivo, social e subjetivo, de
modo a negociar definições comuns da situação. Este con-
ceito interpretativo de linguagem reside nos vários esforços
de desenvolver uma pragmática formal.54

De acordo com Habermas, o único modo de expor a uni-


versalidade do conceito de ação (e racionalidade) comunicati-
va sem se apoiar em um transcendentalismo-pragmático ao
modo de Apel, consiste em desenvolver o conceito de ação

107
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

comunicativa a partir dos termos do que ele chama de ‘prag-


mática formal’ (formal pragmatics). A pragmática formal – re-
lacionada com a semântica formal, com a teoria dos atos de
fala e com outras abordagens da pragmática da linguagem,
esclarece Habermas – consiste em uma tentativa de recons-
truir racionalmente as regras universais e os pressupostos ne-
cessários dos atos de fala orientados para a obtenção de enten-
dimento. Deste modo, a pragmática formal objetiva recons-
truções hipotéticas do conhecimento pré-teórico que os falan-
tes competentes trazem à tona quando empregam sentenças
em ações orientadas para alcançar entendimento.55
A pragmática formal, por conseguinte, é desenvolvida
por Habermas a partir de suas relações com a pragmática da
linguagem. O que Habermas denomina de pragmática da lin-
guagem – e este ponto, ressalte-se, é crucial para entender-
mos a que tipo de pragmatismo alude Habermas – são os de-
senvolvimentos ocorridos a partir da teoria dos signos intro-
duzida por Peirce, desenvolvida por Morris e retomada por
Carnap – este último responsável por fazer o complexo sim-
bólico acessível a uma análise interna a partir dos pontos de
vista sintático e semântico. A relevância disto, nos explica
Habermas, é que com Carnap a sintaxe lógica e as suposições
básicas da semântica da referência (reference semantics) foram
abertas para uma análise formal da função representativa da
linguagem e, além disso, Carnap considerou as funções apela-
tivas e expressivas da linguagem como aspectos pragmáticos
que deveriam ser relegados à analise empírica. Assim, prosse-
gue Habermas, esta pragmática da linguagem não é determi-
nada por um sistema geral de regras de um modo que ela
pudesse ser aberta a uma análise conceitual, como acontece
com a sintaxe e a semântica. O primeiro momento, portan-
to, da evolução da pragmática da linguagem consiste na con-

108
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

tribuição de Carnap no sentido de converter a teoria da signi-


ficação em uma ‘ciência formal’.
O segundo momento desta evolução consiste na passa-
gem da ‘semântica da referência’ para a ‘semântica da verda-
de’. Este passo é dado a partir da semântica fundada por
Frege e desenvolvida por meio do primeiro Wittgenstein até
Davidson e Dummett, responsáveis por colocar em foco a
relação entre sentença e estado das coisas (state of affairs) e
entre linguagem e mundo. A contribuição destes autores, que
Habermas considera representar uma ‘virada ontológica’ na
teoria da semântica, consiste primordialmente em desvincular
a semântica da visão de que a função representacional da
linguagem pode ser clarificada pelo modelo de nomes que
designam objetos (ou seja, pelo nominalismo). Ao realizar
tal desvinculação, tais autores realçaram que os significados
das sentenças, assim como a compreensão dos significados
destas sentenças, dependem da validade destas mesmas sen-
tenças – ou, em outras palavras, das condições pelas quais
tais sentenças são verdadeiras. No entanto, se por um lado a
‘semântica da verdade’ avança ao desenvolver a idéia de que
o significado de uma sentença é determinado pelas suas con-
dições de verdade, por outro lado, ela é limitada por restrin-
gir sua análise às sentenças assertivas.
Dada esta limitação, o terceiro momento da evolução da
pragmática da linguagem consiste em estender a semântica
formal das sentenças a fim de abranger também os atos de
fala. Os autores responsáveis por tal ampliação do objeto da
semântica são, principalmente, o segundo Wittgenstein, Austin
e Searle. Com estes autores, explica Habermas, a semântica
deixa de se limitar à função representacional da linguagem e
passa a ser aberta a uma análise imparcial da multiplicidade
das forças ilocucionárias. Finalmente, o quarto e último mo-

109
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

mento da evolução da pragmática da linguagem é representa-


do pelo próprio Habermas e sua pragmática formal-universal.
Com efeito, Habermas busca suprir as deficiências da teoria
da comunicação avançada por Bühler e fazer com que a teo-
ria da significação forneça um fundamento sistemático tam-
bém para as funções apelativas e expressivas da linguagem.56

A teoria das funções da linguagem de Bühler poderia ser


conectada com os métodos e os critérios da teoria da signifi-
cação analítica e se tornar a peça central de uma teoria da
comunicação orientada para alcançar entendimento se nós
pudermos generalizar o conceito de validade para além da
verdade de proposições e identificar condições de validade
não apenas no nível semântico das sentenças, mas no nível
pragmático das elocuções (utterances). Para este objetivo, a
mudança de paradigma na filosofia da linguagem que foi
introduzida por Austin [leia-se, a virada lingüística] (...) deve
ser radicalizada de uma forma tal que o rompimento com a
‘caracterização da linguagem pelo logos’, isto é, com o privi-
légio de sua função representacional, também tenha conse-
qüências para a escolha dos pressupostos ontológicos na teo-
ria da linguagem.57

Esta radicalização da virada lingüística por que clama


Habermas, já sabemos, é a virada pragmática. Os novos pres-
supostos que devem ser escolhidos para a teoria da linguagem
a fim de que ela se liberte da função representacional são, de
acordo com Habermas, os pressupostos pragmáticos. E quais são
estes pressupostos pragmáticos, que operam na teoria da co-
municação habermasiana em seus três níveis, quais sejam na
teoria da argumentação, da significação e da justificação?
No plano da teoria da argumentação, o primeiro a ser de-
senvolvido na teoria da comunicação habermasiana, os pres-

110
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

supostos da pragmática formal-universal de Habermas ainda


eram convergentes com a pragmática transcendental de Apel.
Com efeito, estes pressupostos eram, segundo Habermas (e
também Apel, neste caso), as quatro seguintes reivindicações
(claims) de validade: a) significação (meaning); b) veracidade
(truthfulness); c) correção moral (moral rightness); e d) consen-
so, isto é, a reivindicação de que seja possível um consenso
discursivo em relação às demais reivindicações de validade.
Apesar de concordarem que estes são os pressupostos pragmá-
ticos da teoria da argumentação, Habermas inevitavelmente
separa-se de Apel ao agregar a possibilidade de tais pressupos-
tos serem submetidos a testes empíricos e, conseqüentemente,
serem contingentes – uma vez que fazem parte de formas de
vida sociais.58
No plano da teoria da significação habermasiana – curio-
samente desenvolvida em um estágio posterior de sua obra,
mais especificamente em seu livro Pensamento Pós-Metafísico
(1988)59 – o que se tem com o abandono da semântica e a sua
conseqüente substituição pela pragmática é uma alteração subs-
tancial das pretensões de validez das proposições. Assim, “a
pretensão de validez, com a qual o falante se refere às condi-
ções de validade de seu proferimento, não pode ser definida
exclusivamente na perspectiva do falante”. Isto porque as
“pretensões de validez dependem do reconhecimento inter-
subjetivo através do falante e do ouvinte”. Afinal, estas preten-
sões de validez “têm de ser resgatadas através de razões, por-
tanto, discursivamente, e o ouvinte reage a elas tomando posi-
ções motivadas pela razão”.60 Com a virada pragmática na te-
oria da significação, por conseguinte, as pretensões de validez
das proposições passam a representar uma racionalidade que
abrange, de acordo com Habermas, condições de validade,
pretensões de validez referidas às condições de validade e ra-

111
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

zões para o resgate de pretensões de validez. Em outras pala-


vras, o que se tem é uma ‘migração da racionalidade’, deslo-
cando-se do ‘proposicional’ e dirigindo-se ao ‘ilocucionário’
(ou ainda em outras palavras, da análise das sentenças assertivas
à análise dos atos ilocucionários, passando pela análise dos
atos de fala de Austin e Searle). A relevância disso é, como
sabemos, a introdução de pretensões de validez não dirigidas a
condições de verdade. Deste modo, a pragmática formal de
Habermas, ao sinalizar com as funções expressiva e interativa
da linguagem, esvaziando-a de sua função meramente repre-
sentacional, acrescenta mais duas pretensões de validez das
proposições: a sinceridade subjetiva e a correção normativa.
Em outras palavras, ao substituir a semântica (da referência,
da verdade) por uma teoria da significação pragmática, ao
despir a linguagem do caráter representacional e vesti-la com
as funções expressiva e interativa, Habermas agrega às condi-
ções de verdade (necessárias para se saber se uma proposição
preenche ou não a função de representação) as condições de
sinceridade subjetiva e correção normativa. De acordo com
Habermas, a orientação através destas três pretensões de validez
faz parte não apenas das condições pragmáticas do entendi-
mento possível, mas também da própria compreensão da lin-
guagem.61
No plano da teoria da justificação habermasiana encon-
tramos o mesmo embate entre a semântica e a pragmática.
Habermas deseja propor um conceito de justificação pragmá-
tico que se oponha ao conceito semântico de justificação. Este
último, o conceito semântico de justificação, encontra-se tam-
bém arraigado à pretensão de verdade, de modo que as sen-
tenças são válidas apenas no sentido de serem verdadeiras ou
falsas, compreendendo-se aqui a verdade como a correspon-
dência entre sentenças e fatos. Sob esta perspectiva, esclarece

112
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

Habermas, o conceito de mundo como totalidade de fatos


está conectado com a noção de verdade como correspondên-
cia e com uma concepção semântica de justificação. No âmbi-
to da concepção semântica de justificação, uma sentença ou
proposição é justificada se puder ser derivada de sentenças
básicas de acordo com regras válidas de inferência, onde uma
classe de sentenças básicas se distingue a partir de critérios
específicos (lógico, epistemológico ou psicológico). Disto de-
corre que toda justificação deve proceder de um contexto pré-
entendido (pre-understood context) ou de um entendimento de
fundo (background understanding). Este fato, de acordo com
Habermas, denota o fracasso da suposição fundacionalista ine-
rente ao conceito semântico de justificação e, conseqüente-
mente, recomenda a adoção de uma concepção pragmática de
justificação em seu lugar. O conceito pragmático de justifica-
ção, por conseguinte, encara a justificação como uma prática
pública na qual reivindicações de validade passíveis de crítica
podem ser defendidas com boas razões.62 Assim, o conceito
pragmático de justificação abre caminho para um conceito
epistemológico de verdade que visa a superar as deficiências
da teoria da correspondência.O predicado verdadeiro se refere
ao jogo da justificação, isto é, à redenção pública das reivindi-
cações de validade. Desta forma, prossegue Habermas, o uso
‘preventivo’ do predicado verdadeiro implica que não obstante
o quão bem justificada uma proposição for, ela pode conti-
nuar não sendo verdadeira. Este fato realça a diferença de sig-
nificado entre ‘verdadeiro’ como uma propriedade irredutível
de proposições e ‘aceitabilidade racional’ como uma proprie-
dade ‘dependente de contextos’ (context-dependent) das elocu-
ções. Esta diferença, explica ainda Habermas, pode ser enten-
dida no horizonte de justificações possíveis em termos da dis-
tinção entre ‘justificável em nosso contexto’ e ‘justificável em

113
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

todo contexto’.63 Vale mencionar ainda que, em um livro no


qual o tema da justificação aparece com primazia no esclareci-
mento de sua ética do discurso (Justification and Application,
de 1993), Habermas aduz a uma espécie de justificação prag-
mática baseada, por sua vez, em discursos pragmáticos que se
caracterizam por relacionar meios e fins e definir prioridades
entre objetivos coletivos. Tal justificação pragmática se basea-
ria, por conseguinte, em interesses particulares que geram re-
comendações estratégicas e/ou técnicas e apenas podem ser
mediadas perante acordos justos e recíprocos.64
Quando os pressupostos pragmáticos da teoria da argu-
mentação, da teoria da significação e da teoria da justificação
habermasiana convergem e se consolidam no corpo teórico
único de sua teoria da comunicação como um todo, o que
temos, antes de mais nada, é uma reinterpretação das idéias
iniciais de Mead. Deste modo, a ética do discurso habermasiana
repousa na associação do princípio da universalização (ou da
pragmática universal) com o conceito de ‘tomada de papel’ de
Mead, que Habermas converte em um conceito de ‘tomada
ideal de papéis’ (ideal role taking). Assim,

Sob os pressupostos pragmáticos de um discurso racional


inclusivo e não-coercivo entre participantes livres e iguais, a
todos é requerido tomar a perspectiva de todos os demais e,
deste modo, projetar a si mesmo nas compreensões do ‘self ’
e do mundo de todos os outros; deste entrelaçamento de
perspectivas emerge uma ‘nós-perspectiva’ (we-perspective)
idealmente estendida da qual todos podem testar em co-
mum se desejam fazer de uma norma controversa a base
de sua experiência prática; e isto deve incluir criticismo
mútuo sobre a propriedade (appropriateness) das linguagens
em termos de quais situações e necessidades são interpre-
tadas.65

114
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

Conforme foi possível constatar nas últimas páginas, os


desenvolvimentos contemporâneos em torno de uma sociolo-
gia da comunicação pragmática, em especial a de Habermas
que elegemos como foco de nossa análise, não se relacionam
de forma explícita ou direta com os três elementos caracteriza-
dores da matriz filosófica do pragmatismo que estudamos no
primeiro capítulo deste livro. Apesar de Peirce e Mead, por
exemplo, serem fundamentais na formação do pensamento de
Habermas, o resultado final da teoria da comunicação ha-
bermasiana é bem distinto daquilo que sustentariam os prag-
matistas clássicos sobre o tema, além de colidir frontalmente
com o antifundacionalismo pragmatista, apenas para men-
cionar um exemplo. Isto nos leva a supor que o tipo de refle-
xão pragmatista no qual Habermas parece se apoiar, não
obstante a influência recebida diretamente de Peirce e Mead,
parece decorrer daquela vertente do pragmatismo (ou do neo-
pragmatismo) mais atrelada ao campo da lógica. Este prag-
matismo lógico-linguístico, se é que podemos o denominar
assim, parece ter se desenvolvido no campo específico da fi-
losofia da linguagem e, mais recentemente, incorporou-se à
teoria da comunicação. Destarte, os pragmatistas (ou neo-
pragmatistas) que parecem exercer uma influência mais de-
terminante em Habermas, a ponto de fazê-lo usar várias ve-
zes o termo pragmatismo na base de sua teoria da comunica-
ção (vide os conceitos de pragmática universal, pragmática
formal, pressupostos pragmáticos da argumentação, etc.), são
Carnap e seus discípulos, vale dizer, Quine e Davidson, en-
tre outros que nos furtamos de analisar neste livro ao optar-
mos por traçar apenas a matriz original do pragmatismo e
suas aplicações na teoria social e política, desconsiderando
as recentes contribuições do chamado neopragmatismo no
campo específico da filosofia.

115
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Notas
1 Pragmatismo y Sociología, p. 20.
2 Ao que nos consta, a obra de Mead é intitulada pela primeira vez como
‘pragmatismo social’ por H. S. Thayer, em 1968, em seu Meaning and
Action: A Critical History of Pragmatism. Posteriormente, a mesma expres-
são é repetida, também para designar a obra de Mead, por Gary A. Cook
em seu George Herbert Mead: The Making of a Social Pragmatist, de 1993.
3 Estaé a opinião de Jürgen Habermas. Segundo ele, Mead deve ser consi-
derado, ao lado de Durkheim e Weber, um dos pais fundadores da socio-
logia moderna. Cf. Theory of Communicative Action, volume II, p. 1.
4Ver Richard Bernstein, “Pragmatism, Pluralism, and the Healing of
Wounds”. In: Pragmatism. A Reader, passim, e Hans Joas, Pragmatism and
Social Theory, p. 3.
5 Ver Richard Bernstein, Praxis and Action, p. 173.
6 “What Pragmatism Is”. In: The Essential Peirce, volume II, p. 341.
7 “TheDevelopment of American Pragmatism”. In: The Essential Dewey,
volume I, p. 4. Grifo nosso.
8 “Philosophy’s Search for the Immutable”. In: The Essential Dewey, Volu-
me I, p. 106.
9 “The Need for a Recovery of Philosophy”. In: The Essential Dewey, volu-

me I, p. 67.
10 “The Need for a Recovery of Philosophy”. In: The Essential Dewey, vo-
lume I, p. 67 e 68.
11 Aprincipal interpretação a que estamos nos referindo é a de Hans Joas,
exposta na conclusão de seu Pragmatism and Social Theory, intitulada
“The Creativity of Action and the Intersubjectivity of Reason – Mead’s
Pragmatism and Social Theory”, e também em seu livro George Herbert
Mead: A Contemporary Re-Examination of His Thought.
12 Ver Gary A. Cook, George Herbert Mead: The Making of a Social Pragmatist,

p. 169 a 171.
13 Ver Hans Joas, Pragmatism and Social Theory, p. 248 e 249.
14 Idem, p. 249.
15 Cf. Mind, Self, and Society, p. 7, nota 7. O grifo é nosso.

116
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

16 Idem, p. 7.
17 Cf.Mind, Self, and Society, p. 222. Hans Joas também interpreta Mead
no sentido de enfatizar a sua defesa de um conceito não-individualista de
ação social. Ver o seu The Creativity of Action, p. 187 e segs.
18 É preciso observar que o pragmatismo de Mead, assim como sua contri-

buição ao desenvolvimento da teoria da ação, foi por muito tempo igno-


rado pelos teóricos clássicos da sociologia como, por exemplo, o próprio
Parsons e Jeffrey Alexander. É possível afirmar que foi apenas a partir dos
idos de 1980, com a publicação de Theory of Communicative Action, de
Habermas, que cedeu um grande espaço à discussão de Mead, que os prin-
cipais autores da sociologia voltaram seus olhos para este pragmatista. Ver
Hans Joas, Pragmatism and Social Theory, p. 244.
19 Cf. The Creativity of Action, capítulo 1, passim, p. 7 a 69.
20 De acordo com Joas, todas as teorias da ação têm como ponto de parti-
da a ação racional, não obstante que esta racionalidade seja mais ou menos
utilitarista em um autor, ou mais ou menos normativista em outro. Disto
decorre que todas elas compartilham três pressupostos fundamentais que
ele (Joas) deseja reconstruir: a) todo ator é capaz de realizar uma ação
intencional (purposive); b) todo ator tem controle sobre o seu próprio cor-
po; e c) todo ator é autônomo em relação aos outros seres humanos e ao
ambiente que o cerca.
21 Um dos problemas fundamentais das teorias da ação que tem a ação
racional como seu ponto de partida é que elas ignoram o papel do contex-
to na ação. De acordo com Joas, o contexto não só precisa ser levado em
conta pelas teorias da ação, como também deve ser considerado a partir de
um duplo significado. Assim, é preciso entender que: a) toda ação tem
lugar em uma certa situação, um contexto; e b) toda ação pressupõe um
ator que realiza não apenas esta única ação, mas que pode, a partir dela,
realizar várias outras e diferentes ações. Cf. The Creativity of Action, p.
146.
22 The Creativity of Action, p. 158.
23 Idem, p. 126-129.
24 The Creativity of Action, p. 133.
25 Ver Lenore Langsdorf e Andrew R. Smith, “The Voice of Pragmatism in

Contemporary Philosophy of Communication”. In: Recovering Pragmatism’s


Voice, editado pelos próprios, p. 3 e segs.

117
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

26 Observe-se como esta idéia de falibilismo é sensivelmente diferente da-


quela envolvida em Popper, com o conceito de falsificação. Aliás, como
acreditamos ter ficado evidente no primeiro capítulo, a idéia de falibilida-
de do pragmatismo é algo que o faz contrastar com o ceticismo de uma
maneira geral. Isto porque, de acordo com Hilary Putnam, por exemplo,
o falibilismo pragmatista não requer que se duvide de todas as coisas, mas
requer apenas que estejamos preparados para duvidar de qualquer coisa –
se surgir uma boa razão para fazer isso. Além disso, de acordo com o prag-
matismo, não há nenhuma garantia metafísica que faça com que mesmo
aquelas crenças mais firmes nunca precisem de revisão. Cf. Hilary Putnam,
Pragmatism: An Open Question, p. 20-21 e 68-74.
27 “The First Rule of Logic”. In: The Essential Peirce, volume II, p. 47.
28 “Ideas, Stray or Stolen, about Scientific Writing”. In: The Essential Peirce,

volume II, p. 328.


29 “The Basis of Pragmaticism in the Normative Sciences”. In: The Essential

Peirce, volume II, p. 389.


30 Idem.

31 Experience and Nature, p. 166.


32 Idem.

33 Experience and Nature, p. 179.


34 Idem, p. 168, 184, 189 e 190.
35 Experience and Nature, p. 204.
36 Idem, p. 180.
37 Ver Hans Joas, The Creativity of Action, p. 132.
38 Este conceito de tomada de papel alheio (role taking) é um dos que são
posteriormente apropriados e reelaborados pela teoria da comunicação e,
especialmente, por Habermas. Para uma melhor explanação do conceito
de ‘role taking’ de Mead, ver seu Mind, Self, and Society, p. 254 e segs.
39 Mind, Self, and Society, p. 68-75.
40 Idem, p. 108-109.
41 Mind, Self, and Society, p. 132-133.
42 Idem, p. 138-142.
43 Mind, Self, and Society, p. 138-139.

118
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

44 Idem, p. 161 e 242-244. O conceito de ‘outro generalizado’ também é


extensamente apropriado por Habermas e outros teóricos contemporâ-
neos da comunicação.
45 Mind, Self, and Society, p. 260.
46 Idem, p. 253.
47 Sobre o assunto, ver em Hans Joas o primeiro capítulo de seu Pragmatism

and Social Theory, intitulado “Pragmatism in American Sociology”, p.


14-51.
48 Sobre a relação de dependência mútua que vem adquirindo a teoria
social e a filosofia da comunicação, ver Barbara Fultner, “Do Social
Philosophers Need a Theory of Meaning? Social Theory and Semantics
after the Pragmatic Turn”. In: Pluralism and the Pragmatic Turn, editado
por William Rehg e James Bohman, p. 145-162.
49 VerWilliam Rehg, “Adjusting the Pragmatic Turn: Ethnomethodology
and Critical Argumentation Theory”. In: Pluralism and the Pragmatic Turn,
editado pelo próprio e James Bohman, p. 116.
50 Ver James Bohman, “Participants, Observers, and Critics: Practical
Knowledge, Social Perspectives, and Critical Pluralism”. In: Pluralism and
the Pragmatic Turn, editado pelo próprio e William Rehg, p. 87.
51 Adiscussão entre Habermas e Apel a respeito do estatuto do ‘transcen-
dental’ é longa e vem permeando, nos últimos anos, as obras dos dois
autores como um todo. Um bom resumo sobre o tema, feito pelo próprio
Apel, encontra-se em seu recente artigo “Regarding the Relationship of
Morality, Law and Democracy: On Habermas’s Philosophy of Law (1992)
from a Transcendental-Pragmatic Point of View”. In: Habermas and
Pragmatism, editado por Mitchell Aboulafia et alli, p. 17-30.
52 Sobre
o assunto, ver o livro, já citado, Habermas and Pragmatism, edita-
do por Mitchell Aboulafia et alli.
53Na nossa opinião, todavia, Habermas não pode ser considerado um
pragmatista. Com efeito, sua apropriação do pragmatismo de Peirce e Mead,
bem como a derivação pragmatista de seu conceito de comunicação, não
são suficientes para torná-lo um pragmatista. Ademais, o pensamento
habermasiano apresenta contrastes insuperáveis com o pragmatismo, os
quais impossibilitam, acreditamos, qualquer tentativa genérica de aproxi-
mação dos dois pensamentos. Entre estes contrastes insuperáveis, cite-se,

119
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

de passagem, a) o universalismo habermasiano em contraste com o con-


textualismo pragmatista (e, por que não, também com o relativismo-co-
munitarista do pragmatismo); b) o transcendentalismo habermasiano em
contraste com todo o esforço do pragmatismo em se opor ao transcenden-
talismo, especialmente o kantiano e aquele derivado do idealismo alemão
como um todo; c) a co-originalidade das autonomias pública e privada
opera como uma fundação no pensamento habermasiano, bem como o
mesmo pode ser dito sobre o papel da comunicação, ou da linguagem.
Já o pragmatismo, como sabemos, não admite nenhum tipo de funda-
ção; e d) a concepção do direito habermasiana, que só convive harmoni-
camente com o pragmatismo no plano da justificação, opondo-se fron-
talmente a ele no plano da aplicação, conforme já tivemos oportunidade
de demonstrar em outro lugar. Cf. José Eisenberg e Thamy Pogrebinschi,
“Pragmatismo, Direito e Política”, Revista Novos Estudos Cebrap, nº 62,
p. 115-118.
54 The Theory of Communicative Action, volume I, p. 95. O grifo é nosso.
55 Idem, p. 137-138.
56 The Theory of Communicative Action, volume I, p. 276-277. A mesma
explicação é reelaborada posteriormente por Habermas, com muito mais
detalhes, em seu Pensamento Pós-Metafísico, capítulo 5.
57 Idem, p. 277-278. A observação entre colchetes é nossa.
58Karl-Otto Apel, “Regarding the Relationship of Morality, Law and
Democracy: On Habermas’s Philosophy of Law (1992) from a Transcen-
dental-Pragmatic Point of View”. In: Habermas and Pragmatism, editado
por Mitchell Aboulafia et alli, p. 19.
59 Observe-se a volta que faz o pensamento de Habermas. As intuições
presentes no Theory of Communicative Action (1981) sobre o desenvolvi-
mento da teoria da significação que implicaram a evolução da pragmática
lingüística e, conseqüentemente, em seu conceito de pragmática formal,
apenas foram elaboradas de forma sistemática alguns anos depois, culmi-
nando com a publicação do Pensamento Pós-Metafísico, no qual Habermas
já demonstra ter um grande domínio sobre a filosofia da linguagem, sobre
a qual provavelmente se debruçou intensamente no intervalo de anos en-
tre a publicação das duas obras mencionadas.
60 Pensamento Pós-Metafísico, p. 123-124.
61 Idem, p. 125-128.

120
Capítulo 2
PRAGMATISMO E TEORIA SOCIAL

62 Estas boas razões podem ser tidas como tais através das características
procedimentais do processo de argumentação, de modo que os resultados
obtidos de uma maneira procedimentalmente correta desfrutem de pre-
tensão de validade.
63 The Inclusion of the Other, p. 36-37.

64 Ver José Eisenberg e Thamy Pogrebinschi, “Pragmatismo, Direito e Po-

lítica”, Revista Novos Estudos Cebrap, nº 62, p. 116. Para uma abordagem
mais especifica sobre o conceito de justificação habermasiano e suas con-
seqüências no plano da teoria política, ver José Eisenberg, “Justificação e
Justiça: da Filosofia da Linguagem à Teoria Política”. In: Teoria Social e
Modernidade no Brasil, organizado por Leonardo Avritzer e José Maurício
Domingues, p. 185 e segs.
65 The Inclusion of the Other, p. 58.

121
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

122
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA
POLÍTICA

Regarded as an idea, democracy is not an alternative to


other principles of associated life. It is the idea of
community life itself.
John Dewey1

Ao passo que a principal contribuição do pragmatismo para


a sociologia consiste no provimento de alicerces filosóficos para
que ela se desenvolva mais solidamente não apenas em suas
aplicações empíricas, mas também na consolidação de uma
teoria social, no campo da política – ou, mais especificamen-
te, da teoria política – o pragmatismo apresenta uma contri-
buição que, apesar de pouco conhecida, em muito se coaduna
com as principais tendências que vem assumindo a teoria po-
lítica contemporânea.
É de se ressaltar desde já, no entanto, que aquilo que que-
remos apresentar aqui como um pragmatismo político – ou,
mais modestamente, como uma aplicação do pragmatismo clás-
sico na teoria política – apresenta algumas peculiaridades em
relação aos pragmatismos filosófico e social. A primeira e prin-
cipal destas peculiaridades reside no fato de que as aplicações
políticas do pragmatismo clássico, apesar de serem indissociá-
veis de sua matriz filosófica, se concentram amplamente na

123
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

figura de um único pragmatista, John Dewey. Já a segunda


peculiaridade do pragmatismo político em relação ao pragma-
tismo social, por exemplo, é que as contribuições de Dewey
sobre o assunto permaneceram ignoradas durante muito tem-
po, tendo sido escassamente apropriadas, portanto, por ou-
tros pensadores contemporâneos, pragmatistas ou não. Disto
decorre que a terceira principal peculiaridade do pragmatis-
mo político diz respeito ao fato de que, quando contrastado
com o pragmatismo social, por exemplo, o neopragmatismo
neste campo se manifesta, por conta dos motivos anteriores,
na maioria das vezes mais como uma revitalização dos estudos
sobre a teoria política de Dewey, do que propriamente como
novas e inovadoras teorias pragmatistas sobre a política. Exce-
ção flagrante a isto é, evidentemente, constituída por Richard
Rorty. Uma análise abrangente do tema que buscasse englobar
o chamado neopragmatismo não poderia jamais omiti-lo, ten-
do em vista suas cruciais contribuições ao tema da política,
em particular, e ao renascimento do pragmatismo, em geral.
Mas o objeto deste livro, mais uma vez, é recuperar o pragma-
tismo clássico e colocá-lo em diálogo com a teoria social e po-
lítica, estas sim contemporâneas ou não. Por isso, o exame de
Rorty terá de esperar por outra ocasião.
Com efeito, conforme veremos ao longo deste capítulo, a
teoria política desenvolvida por Dewey no começo do século
XX é perfeitamente condizente com a atual agenda da teoria
política contemporânea. Dewey realmente antecipou em vá-
rias décadas os recentes debates em torno, por exemplo, do
comunitarianismo e das formas deliberativa e procedimental
da democracia. Neste sentido, o pragmatismo político de
Dewey é ainda inesgotavelmente atual e inovador e apresenta
infinitas possibilidades de contribuição para os debates con-
temporâneos.2

124
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

Ao longo deste capítulo, por conseguinte, analisaremos a


teoria política de Dewey para demonstrar – seja através da
análise direta de sua obra, seja através da intervenção de al-
guns de seus comentadores e intérpretes – o quanto a atuali-
dade de suas reflexões faz com que o neopragmatismo no campo
político em grande medida prescinda de novas incursões, se-
não a de reatualizar e recriar seu pensamento. Conforme acre-
ditamos, e esperamos deixar claro nas páginas que se seguem,
Dewey possui efetivamente uma teoria do Estado e uma teo-
ria da democracia. Os principais temas que orientam seu pen-
samento político, contudo, são os da comunidade e da demo-
cracia. Conforme ele já nos indica na epígrafe deste capítulo,
ambos os temas estão demasiada e inevitavelmente conectados
um ao outro, sendo muito difícil, portanto, tratá-los como
duas categorias separadas. No entanto, nas próximas páginas,
a fim de prover uma exposição sistemática e efetiva tanto so-
bre o conceito de comunidade como sobre o de democracia,
os analisaremos separadamente – até porque, como veremos,
a compreensão de um implica necessariamente a compreen-
são do outro.

3.1. Comunidade
A idéia de comunidade consiste em um dos conceitos do
pragmatismo com mais reflexos na teoria política. Antecipan-
do-se em cerca de um século aos debates em torno do comu-
nitarismo que vem marcando presença constante na agenda
da teoria política contemporânea nos últimos anos, o prag-
matismo já apresentava um conceito de comunidade que, ao
ser agora resgatado pelo neopragmatismo, tem muito a con-
tribuir para os atuais debates sobre o tema.
Assim como se deu com os principais conceitos e idéias

125
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

que viemos analisando ao longo deste livro, também o concei-


to de comunidade ganhou forma pela primeira vez no prag-
matismo pelas mãos de seu criador, Peirce. E não apenas for-
ma; as características que Peirce atribuiu à idéia de comunida-
de a partir de seu conceito de ‘comunidade de investigação’
persistem até hoje, muito embora Peirce as tivesse aduzido
inicialmente a fim de retratar uma comunidade científica, de
investigadores. O conceito de comunidade de investigação de
Peirce já foi por nós tratado em momentos anteriores deste
livro ao abordarmos o contextualismo da matriz filosófica do
pragmatismo, no primeiro capítulo, e o tema da comunica-
ção, no segundo capítulo. Se até aqui, contudo, tal conceito
nos serviu para enfatizar o aspecto falibilista do pragmatismo
e sua constante capacidade de autocorreção, agora ele nos será
útil para indicar outras características que o pragmatismo as-
sume em seu conceito de comunidade.
A primeira destas características com a qual o conceito de
comunidade de investigação de Peirce contribui à formulação
de um conceito mais político de comunidade nos parece ser
uma espécie de ambivalência entre infinitude e finitude. Ao
passo que a comunidade de investigação propicia a perpetui-
dade do conhecimento, através de uma investigação que se
pretende contínua e incessante, por outro lado, ela indica as
limitações dos indivíduos que dela tomam parte. A comuni-
dade de investigação é necessária aos indivíduos na medida
em que eles precisam dela para confirmar suas idéias, crenças
e teorias, para obter significados. Além de não poderem obter
verificação e confirmação isoladamente, os indivíduos neces-
sitam da comunidade para alcançar a realidade, ou ainda para
distinguir o que é real daquilo que é irreal. É a comunidade de
investigação, afinal, que dita a realidade, fazendo com que a
convergência última e natural das opiniões de seus investiga-

126
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

dores se aproxime a cada instante do que é real. Ademais, os


indivíduos isoladamente não conseguem se livrar dos precon-
ceitos e caprichos que os impedem de enxergar a realidade;
apenas através da comunidade de investigadores é que eles
percebem que há algo maior que independe de seu próprio
pensamento.

O real, portanto, é aquilo que, mais cedo ou mais tarde, vai


ser finalmente o resultado da informação e do raciocínio, e
aquilo que por isso é independente dos meus e dos seus ca-
prichos (vagaries). Deste modo, a própria origem da concep-
ção de realidade mostra que esta concepção envolve essen-
cialmente a noção de uma COMUNIDADE, sem limites
definidos, e capaz de um aumento indefinido de conheci-
mento. E assim estas duas séries de cognições – o real e o
irreal – consistem naquelas que, em um tempo suficiente-
mente futuro, a comunidade vai sempre continuar a reafir-
mar; e naquelas que, sob as mesmas condições, vão sempre
então ser negadas.3

A comunidade permanece, portanto, ditando aquilo que é


real e aquilo que não é, hoje e sempre. O que é confirmado no
presente pode ser negado no futuro, pois quem vai determinar
isso é a comunidade, e não os indivíduos que a compõem. Os
indivíduos, afinal, são perenes, finitos; eles nascem, crescem e
morrem, enquanto a comunidade permanece. O que é torna-
do real pelos indivíduos que compõem a comunidade hoje
pode deixar de sê-lo no futuro em virtude dos novos e outros
indivíduos que irão então compor a comunidade. Assim, de
certa forma, a informação e o raciocínio não pertencem aos
próprios indivíduos, na medida em que dão vazão a algo abs-
trato, que vai além e independe deles. O conhecimento gera-
do pela investigação ganha vida e passa a ser gerido autono-

127
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

mamente, sem vínculos com seus autores individuais. Os in-


divíduos se definem ao passo que o conhecimento produzido
pela comunidade é indefinido; eles entram em contato com a
sua finitude ao se depararem com a infinitude da comunidade
em que vivem.

Não existem razões (...) para pensar que a raça humana, ou


qualquer raça intelectual, irá existir para sempre. Por outro
lado, não existe nenhuma razão contrária a isso; e, felizmen-
te, (...) não há nenhum fato que nos proíba de ter uma espe-
rança, ou um desejo calmo e agradável, de que a comunida-
de possa durar além de qualquer data determinável.4

Não obstante este desejo de Peirce, o que confere infinitude


à comunidade é também o fato de que ela é ilimitada em sua
extensão, abrangendo “todas as raças de seres com os quais
nós podemos vir a manter relação intelectual mediata ou ime-
diata”. Além de ser ilimitada no espaço, a comunidade tam-
bém é ilimitada no tempo, pois deve se estender “para além
desta época geológica, para além de todos os limites”.
A finitude dos indivíduos isolados, por sua vez, também se
faz sentir pela necessidade – lógica, segundo Peirce – de uma
completa auto-identificação dos interesses pessoais de cada um
com aqueles da comunidade. De acordo com Peirce, apenas
aqueles indivíduos que procedem a esta identificação de for-
ma integral são capazes de realizar inferências lógicas e váli-
das. O que faz com que os indivíduos identifiquem-se uns
com os outros na comunidade é a crença compartilhada por
cada um de que suas próprias inferências pessoais se validam
na medida em que são aceitas pelos demais homens que com-
põem a comunidade.5
Ao lado desta tensão entre finitude e infinitude que carac-

128
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

teriza a relação entre comunidade e indivíduo, vale resgatar


outro atributo do conceito peirceano de comunidade que ana-
lisamos anteriormente, ao tratarmos do tema da comunica-
ção. Estamos nos referindo à idéia de autocorreção, que possi-
bilita que a comunidade exerça permanentemente um papel
crítico, ao ser capaz de avaliar e rever seus próprios rumos e
decisões. A comunidade é, assim, uma comunidade crítica, na
medida em que estimula o desenvolvimento de hábitos críti-
cos entre os seus membros, através do exercício constante da
revisão e, portanto, do autocontrole sobre as ações futuras.6
Observe-se que quando tratamos do tema da comunicação
no capítulo anterior, inevitavelmente tivemos que nos referir,
algumas vezes, à idéia de comunidade. Como vimos com Peirce,
as duas principais idéias em jogo no seu conceito de comuni-
dade de investigação são a própria idéia de investigação e a
idéia de comunicação. Também com Mead, vimos como é
impossível falar em comunicação sem se referir a uma concep-
ção de comunidade. De fato, no pragmatismo, comunicação
e comunidade são conceitos necessariamente imbricados.
Em Mead, vimos anteriormente que a própria emergência
do indivíduo, de sua personalidade, depende da comunidade.
Além disso, analisamos também como a interação e a reflexi-
vidade que o caracteriza dependem do ambiente social, isto é,
da comunidade. Com efeito, Mead afirma que é justamente a
capacidade de cada indivíduo de, através da comunicação,
tomar a posição do outro, o que o torna membro de uma
comunidade, ou seja, o que lhe confere cidadania. “Isto o tor-
na parte da comunidade, e ele reconhece a si mesmo como
membro dela justamente porque toma a atitude daqueles
concernidos, e controla sua própria conduta em termos de
atitudes comuns”.7 De acordo com Mead, a medida na qual
os indivíduos podem tomar os papéis de outros indivíduos na

129
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

comunidade depende de vários fatores. Isto se deve ao fato de


que a comunidade pode, devido ao seu tamanho, transcender
a organização social, isto é, pode ir além da organização social
que torna possível a identificação entre os indivíduos. Um
exemplo que Mead fornece para ilustrar esta situação diz res-
peito à ‘comunidade econômica’. Esta comunidade incluiria
todas as pessoas com as quais se pode negociar em todas as
circunstâncias, mas ela representaria uma totalidade na qual
seria praticamente impossível para todos tomarem os papéis
dos outros. Outro exemplo seria o de uma comunidade de
religiões universais, na qual o grau de identificação necessário
jamais pode ser realizado. O problema comum destes dois
exemplos, bem como de qualquer outro que fosse escolhido
para ilustrar a mesma situação, consiste na existência de castas
no interior das comunidades, as quais tornam impossível para
algumas pessoas tomarem a atitude de outras, embora elas efe-
tivamente afetem e sejam afetadas por estas pessoas. É por isso
que Mead afirma que o desenvolvimento de uma comunidade
democrática implica a remoção das castas.8 E mais do que
isto:
O ideal de sociedade humana é uma sociedade que una as
pessoas tão proximamente em suas inter-relações, que de-
senvolva tão plenamente o sistema de comunicação necessá-
rio, que os indivíduos que exercitam suas próprias funções
peculiares possam tomar as atitudes daqueles que afetam.9

Temos aqui, portanto, novamente em cena a comunica-


ção. Se é a auto-reflexividade comunicativa que faz dos indiví-
duos cidadãos, é também a comunicação que pode, potencial-
mente, permiti-los viver em uma comunidade considerada
ideal. A comunicação é essencial no processo de aperfeiçoa-
mento da tomada ideal de papéis e, por conseguinte, no pro-

130
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

cesso de identificação entre os indivíduos, necessário à consti-


tuição da comunidade. Apenas a perfectibilidade da comuni-
cação pode remover os obstáculos e entraves à tomada de pa-
péis entre os indivíduos mutuamente afetados em uma comu-
nidade.

O desenvolvimento da comunicação não é simplesmente


uma questão de idéias abstratas, mas um processo de colocar
uma pessoa (self ) no lugar da atitude de outra pessoa se
comunicando através de símbolos significantes. (...) A co-
municação humana ocorre através de tais símbolos signifi-
cantes, e o problema é organizar uma comunidade que torna
isso possível. Se este sistema de comunicação pode ser torna-
do teoricamente perfeito, o indivíduo afetaria a ele mesmo
na mesma medida em que afetaria os outros. Este seria o
ideal de comunicação.10

A comunidade, assim, atinge seu estado ideal, segundo


Mead, quando a comunicação não encontra entraves à sua
realização. Ao mesmo tempo, a comunicação é considerada
ideal quando uma comunidade permite que ela se realize ple-
namente. Destarte, os conceitos de comunidade e comunica-
ção são, de certa forma, interdependentes em Mead, princi-
palmente no que concerne à tomada ideal de papéis entre os
indivíduos. E é justamente esta idéia, a tomada de papéis, que
une aqueles dois conceitos. Uma comunidade humana será
‘ideal’ quando os indivíduos se identificarem plenamente uns
com os outros; ao passo que, para que esta tomada de papéis
seja plena, é preciso que a comunicação entre estes indivíduos
se realize também plenamente, sem entraves – isto é, seja uma
comunicação ‘ideal’.11
A comunidade ideal para Mead, portanto, é uma comuni-
dade de comunicação ideal. Este conceito foi contemporanea-

131
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

mente arrebatado da obra de Mead por Habermas, que dele se


apropriou adicionando-lhe novas características. Com efeito,
Habermas acredita que o conceito de comunidade de comu-
nicação, tal como sugerido por Mead, possibilita a reconstru-
ção de uma intersubjetividade incólume que faz concessões
em consideração tanto a um entendimento mútuo entre os
indivíduos, como também às identidades dos indivíduos que
chegam entre si a um entendimento não constrangido.12 Esta
‘reconstrução’ a qual alude Habermas, como se sabe, baseia-se
não apenas na teoria da interação de Mead, mas em uma con-
jugação – ou complementação – desta com os conceitos de
fundação sagrada da moralidade e de ritual de Durkheim. A
‘lingüistificação do sagrado’ a que procede Habermas só é pos-
sível, segundo ele mesmo atesta, se a sugestão de Durkheim
for colocada em prática nos termos da reconstrução sugerida
por Mead, pois apenas assim “a comunidade religiosa que pela
primeira vez fez a cooperação social ser possível é transforma-
da em uma comunidade de comunicação”. Além disso, “quanto
mais a ação comunicativa retira da religião as idéias de inte-
gração social, mais o ideal de uma comunidade de comunica-
ção ilimitada e não distorcida obtém influência empírica na
comunidade de comunicação real”.13 Consolidando, por con-
seguinte, as idéias de interação social de Mead e integração
social de Durkheim, Habermas formula o seu próprio concei-
to de comunidade de comunicação ideal. Tal conceito haber-
masiano, antes de mais nada, visa a prover um modelo de for-
mação de vontade que seja ao mesmo tempo racional e impar-
cial – esta é a sua importância fundamental.
O processo de socialização dos indivíduos membros de uma
tal comunidade de comunicação ideal se dá da seguinte for-
ma: todos os indivíduos adquirem, na mesma medida, uma
identidade com dois aspectos complementares, um universa-

132
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

lizante e o outro particularizante. Por um lado, estas pessoas


criadas sob condições idealizadas aprendem a se orientar no
âmbito de uma estrutura universalista, isto é, aprendem a agir
autonomamente. Por outro lado, elas aprendem a usar esta
autonomia (a qual as torna iguais a todos os outros sujeitos
que agem moralmente) e a desenvolver suas subjetividades e
singularidades. Destarte, a comunidade de comunicação ideal
possibilita aos indivíduos tanto uma auto-realização como uma
capacidade de argumentação moral.14 Munidos desta capa-
cidade, os sujeitos da comunidade de comunicação ideal po-
dem colocar em prática um discurso universal que os possi-
bilita, de forma racional e imparcial, guiar suas vontades na
direção de um entendimento mútuo. Assim, deste modo, “a
unidade da coletividade apenas pode ser estabelecida e
mantida como a unidade de uma comunidade de comunica-
ção; vale dizer, apenas por meio de um consenso obtido co-
municativamente na esfera pública”.15 Cabe aqui ressaltar
que este último conceito habermasiano, mencionado no final
da citação acima transcrita, qual seja o afamado conceito de
‘esfera pública’, também encontra suas origens no pragmatis-
mo. Com efeito, o próprio Habermas ao avaliar suas relações
intelectuais com o pragmatismo admite a similaridade entre
seu conceito de esfera pública e as formulações pragmatistas
acerca de comunidades comunicativamente estruturadas, como
é o caso do próprio conceito de comunidade de investigação
de Mead.16
É preciso admitir que há uma similaridade no conceito de
comunidade de investigação tal como elaborado por Mead e
posteriormente por Habermas. Trata-se de um certo apelo
universalista, que se faz sentir pelo uso que os dois autores
fazem da noção de discurso universal e dos reflexos disso no
processo de socialização dos indivíduos membros da comuni-

133
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

dade comunicativa. Ademais, o que faz com que esta comuni-


dade seja de certa forma ideal – ou idealizada – para aqueles
dois autores é também a presença do elemento universalista.
Este breve excurso que fizemos na teoria política contempo-
rânea a fim de ilustrar a apropriação feita por Habermas do
conceito de comunidade de comunicação de Mead teve, por
um lado, acreditamos, a má conseqüência de interromper a
linearidade da narrativa histórica que viemos adotando me-
todologicamente nos outros capítulos deste livro. Contudo,
por outro lado, a boa conseqüência desta quebra na ordem
cronológica de nossa exposição nos parece ser o fato de que a
mesma propiciou, de certa forma, o isolamento destas duas
concepções universalistas do conceito de comunidade prag-
matista. A convergência entre Mead e Habermas se dá não
apenas no sentido de conceber um conceito de comunidade
substantivamente semelhante, mas também no sentido de
conferir a este conceito uma forma semelhante: a forma uni-
versalista.
Esta observação nos parece importante – e por isso insisti-
mos nela – porque queremos defender aqui o argumento de
que aquilo que pode ser considerado o conceito pragmatista
de comunidade não faz concessões universalistas. Isto porque,
em primeiro lugar, conceder à comunidade um caráter uni-
versal significaria violar o elemento contextualista do pragma-
tismo. Além disso, o universalismo a que aduzem Mead e
Habermas é demasiadamente fundacionalista, ao admitir o
discurso universal como o “ideal formal” da comunidade de
comunicação. Em outras palavras, a idéia de comunicação
nestes autores parece funcionar como uma verdadeira funda-
ção da comunidade. Sob o nosso ponto de vista, tais contradi-
ções com a matriz filosófica do pragmatismo são irreparáveis.
Uma coisa é, por exemplo, fazer a linguagem ocupar no neo-

134
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

pragmatismo o mesmo lugar que a experiência ocupava no


pragmatismo clássico – movimento verificado em Rorty, por
exemplo. Esta mudança de ênfase não afeta a matriz pragma-
tista, ou seja, não afeta aqueles três elementos que constituem
a matriz pragmatista (antifundacionalismo, conseqüencialis-
mo e contextualismo). Outra coisa, contudo, é conferir a este
conceito de linguagem (ou de comunicação) um caráter uni-
versalista, pois qualquer atributo universalista compromete,
conforme acreditamos, o contextualismo e o antifundaciona-
lismo que caracterizam o pragmatismo. Destarte, o que que-
remos argumentar aqui, portanto, é que tais contradições do
conceito de comunidade de Mead e Habermas (o que, no caso
deste último, apenas reforça nossa crença de que ele não possa
ser considerado um pragmatista, não obstante os vários usos
que faz do pragmatismo em sua teoria, conforme nos encon-
tramos demonstrando ao longo deste livro) não implicam o
fato de que o conceito pragmatista de comunidade tenha um
viés universalista. O conceito de comunidade que corresponde
com mais propriedade àquilo que pode ser considerado como
o (e não como ‘um’) conceito pragmatista de comunidade nos
parece ser, com efeito, o conceito de comunidade desenvolvi-
do por John Dewey.
O objetivo de Dewey em seu livro The Public and its
Problems é duplo. Ele quer, por um lado, compreender como a
era industrial (machine age), ao desenvolver a Grande Socie-
dade (Great Society), invalidou e desintegrou as comunidades
pequenas dos tempos passados sem gerar uma ‘Grande Co-
munidade’. Além disso, ele quer que o Público (public) descu-
bra a sua própria identidade, saindo do eclipse no qual se en-
contra. O desafio de Dewey, portanto, é investigar as condi-
ções a partir das quais a Grande Sociedade pode se converter
em uma Grande Comunidade.17

135
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Mas antes de analisarmos estas condições, e antes de des-


bravarmos este conceito ideal de comunidade, a Grande Co-
munidade, é preciso compreender o que Dewey entendia sim-
plesmente por comunidade. De acordo com ele, uma comu-
nidade em sua extensão total, livre de elementos estranhos,
consiste em um ideal. Deste modo, a idéia de comunidade
apresenta verdadeiras fases de vida associativa na medida em
que se libertam de elementos restritivos e importunos e são
contempladas como tendo atingido o limite de seu desenvol-
vimento.

Onde quer que exista uma atividade conjunta cujas conse-


qüências são apreciadas como sendo boas por todas as pes-
soas singulares que tomam parte nela, e onde a realização do
bem é tal que resulta em um desejo e esforço enérgicos para
sustentá-lo justo porque ele é um bem compartilhado por
todos, existe uma comunidade.18

Este conceito de comunidade envolve, por conseguinte, a


idéia de uma vida comunal, comunitária, na qual os membros
da comunidade compartilham uma idéia de bem e se esfor-
çam para concretizá-la através de uma atividade conjunta,
cooperativa. O engajamento em uma atividade associada ou
conjunta, por sua vez, é uma condição para a própria criação
de uma comunidade. Trata-se, entretanto, de um fenômeno
espontâneo; não há explicações para o fato de que os homens
unem-se em atividades associativas, diz Dewey. Por outro lado,
não é qualquer tipo de associação de pessoas, qualquer agrega-
do de ação coletiva, que constitui uma comunidade. Uma
associação por si própria é algo meramente físico ou orgânico,
um processo natural inevitável, portanto. Já uma comunidade
não é sustentada por processos físicos ou orgânicos, mas sim

136
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

por uma vida comunal moral, isto é, “emocionalmente, inte-


lectualmente e conscientemente sustentada”.19 Para uma asso-
ciação se tornar comunidade, por conseguinte, é preciso que
as conseqüências da ação coletiva sejam percebidas e se tor-
nem objeto de desejo e de esforço, ou seja, sejam estimadas e
buscadas por aqueles que as compartilham. Observe-se que
Dewey opõe-se às teorias contratualistas e a todas aquelas que,
segundo ele, implicam uma “autoria causal” do Estado. No
lugar destas, ele quer colocar uma “teoria das conseqüências
vastamente distribuídas que, quando percebidas, criam um
interesse comum e a necessidade de agências especiais para
manejá-lo”. Em outras palavras, na teoria do estado deweyana,
tanto este quanto o governo derivam da percepção comum
dos indivíduos acerca das conseqüências das atividades que
eles empreendem conjuntamente em virtude de uma associa-
ção inicial e naturalmente orgânica que independe de suas
vontades. Não há de se falar, portanto, em teoria da soberania
nem em direitos naturais.20
O que está em jogo neste conceito de comunidade é uma
concepção idealizada de vida comunal, isto é, um certo modo
de vida a ser perseguido como um ideal ético ou moral.21 Na
verdade, o que está em jogo é a idéia de participação. Para que
se tenha uma comunidade e não meramente uma associação
de indivíduos, é preciso que estes se constituam como mem-
bros efetivos (cidadãos) através de seu engajamento constante
nas atividades coletivas, bem como através do reconhecimen-
to das conseqüências compartilhadas destas atividades. Con-
forme afirma James Campbell, um dos principais estudiosos
contemporâneos do pragmatismo na teoria política e social,

A realização (fulfillment) humana vai ser encontrada na ex-


periência compartilhada, na busca cooperativa de soluções,

137
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

na contribuição ao bem comum. (...) O que o indivíduo


que busca ser realizado quer, Dewey declara, é participar.
(...) Esta participação é um ideal de comunidade não ape-
nas porque as pessoas vão ser mais felizes por isso, mas por-
que elas podem por meio disso crescer através da interação
e aprender a realizar uma tarefa de autogoverno cada vez
melhor.22

A participação na comunidade, na vida comunal, portan-


to, é fundamental para a formação moral dos indivíduos – ao
passo que é fundamental também para a formação da própria
comunidade. Em outras palavras, talvez possamos afirmar que,
no pensamento deweyano, a individualidade se forma através
da coletividade e vice-versa, ou seja, a individualidade de cada
membro da comunidade se forma através de sua participação
na coletividade, enquanto o todo coletivo, a comunidade, ape-
nas se constitui como tal por meio da participação individual
compartilhada por cada um de seus membros.23
Além da participação, outro requisito necessário para a cons-
tituição da comunidade é a educação. Todos os homens nas-
cem como seres orgânicos associados uns aos outros, mas não
nascem como membros de uma comunidade. É preciso apren-
der isso. Vale dizer, os homens devem ser ensinados a viver em
comunidade, e isto se torna possível apenas quando eles são
criados no contexto de tradições, perspectivas e interesses que
caracterizam uma comunidade. O meio que possibilita tal
inserção é justamente a educação. A instrução e o aprendiza-
do devem ser possibilitados incessantemente por qualquer
associação humana que se pretenda constituir como comu-
nidade.24
Diante disto, acredita Dewey, as escolas da comunidade
devem fornecer aos seus alunos um treinamento moral. A fun-

138
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

ção das escolas de manter a vida e promover o bem-estar da


comunidade representa uma responsabilidade ética das mes-
mas perante a própria comunidade. As escolas possuem, por
conseguinte, uma tarefa moral de cunho social que não pode
ser separada da tarefa intelectual; ao mesmo tempo, as escolas
não podem funcionar como uma instituição à parte da comu-
nidade, elas precisam operar como se fossem a própria co-
munidade. Neste sentido, as crianças devem ser tratadas desde
sempre como membros da comunidade em sua acepção mais
ampla, não se restringindo a educação para a cidadania no
conhecimento das leis e do sistema político, mas abrangendo
todo o conjunto de relações sociais das quais as crianças de-
vem participar e aprender a manter. A idéia de cidadania a ser
promovida pelas escolas é, portanto, integral: os indivíduos,
na própria escola, não devem aprender apenas a se portar di-
ante das leis e das urnas, devem aprender também a ser mem-
bro da sua família, membro de uma determinada atividade ou
associação profissional, membro de um bairro em particular,
enfim, membro da comunidade em todos os seus aspectos e
desdobramentos.
O objetivo moral das escolas é, por conseguinte, ensinar as
crianças a participarem da vida social. Para tanto, as próprias
escolas devem reproduzir internamente as condições típicas
da vida social daquela comunidade particular em que se inse-
rem, devem ser embriões da vida comunal típica da sua locali-
dade. Assim sendo, as crianças, nas escolas, devem ter os mes-
mos motivos para agir corretamente, bem como devem ser
julgadas pelos mesmos padrões que os adultos fora das esco-
las. Dewey é taxativo em sua crença de que o único modo de
preparar para a vida social é se engajando na vida social. Para
tanto, as escolas devem fomentar nas crianças o hábito moral
de participação na vida comunal, criando nelas um interesse,

139
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

que é ao mesmo tempo intelectual, prático e emocional, rela-


tivo ao bem-estar da comunidade.25
De acordo com Alan Ryan, um dos dois principais bió-
grafos intelectuais de Dewey, todos os escritos do mesmo
sobre a educação expressam uma “paixão comunitarista”. Para
ele, Dewey desejava que as escolas fossem, ao mesmo tempo,
uma comunidade, da comunidade e na comunidade. Ade-
mais, uma outra observação interessante de Ryan é que a con-
cepção educacional deweyana é tão fortemente enraizada na
idéia de que a educação é, acima de tudo, um processo de
socialização dos jovens no contexto de sua comunidade, que
torna o individualismo algo inconcebível no pensamento de
Dewey.26
Além da participação e da educação que a torna factível,
outro requisito necessário à constituição da comunidade é a
comunicação. Para Dewey, a comunicação é essencial no pro-
cesso de converter uma associação em uma comunidade e tor-
nar os homens membros dela. A comunicação é o meio pelo
qual os membros da comunidade podem compartilhar um
interesse comum nas conseqüências das atividades associativas;
interesse este que é constitutivo do desejo, do esforço e da
ação comum necessária para criar e manter a própria comuni-
dade. A comunicação, portanto, é necessária para que as pes-
soas se informem, percebam e conheçam as conseqüências da
vida comunitária e compartilhem um interesse comum a res-
peito dela. A comunicação, em outras palavras, é um pré-re-
quisito para a participação.27

Há mais do que um vínculo verbal entre as palavras co-


mum, comunidade e comunicação. Os homens vivem em
uma comunidade em virtude das coisas que têm em co-
mum, e a comunicação é o modo pelo qual eles vêm a pos-

140
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

suir coisas em comum. O que eles devem ter em comum a


fim de formar uma comunidade ou sociedade são objeti-
vos (aims), crenças, aspirações, conhecimento – um enten-
dimento comum.28

O vínculo existente entre a comunidade e a comunicação é


tão profundo que Dewey considera a comunicação uma das
‘condições indispensáveis’ para que a Grande Sociedade possa
ceder lugar à Grande Comunidade e, conseqüentemente, o
Público emergir de seu eclipse e reencontrar a sua identidade.
Para que isso possa acontecer, contudo, a comunicação preci-
sa, por sua vez, desempenhar simultaneamente diferentes pa-
péis e funções.
Segundo Dewey, não pode haver público sem que haja
publicidade. Em outras palavras, é preciso que todas as conse-
qüências relativas às atividades levadas a cabo na comunidade
sejam publicizadas, se tornem domínio da opinião pública.
Esta, a opinião pública, corre o risco de ser distorcida ou limi-
tada por qualquer coisa que venha a obstruir ou restringir a
publicidade e, como conseqüência, prejudicar o discernimen-
to das questões relativas à comunidade. Deste modo, é preciso
que haja difusão e disseminação absolutas dos assuntos comu-
nitários. “Um fato da vida da comunidade que não seja espa-
lhado de modo a ser uma possessão comum é uma contradi-
ção em termos”, diz Dewey.29 É preciso que as informações
comunais sejam distribuídas extensa e intensamente, porém
não de forma aleatória; elas precisam germinar, criar raízes e
dar frutos para a própria comunidade, com o compartilha-
mento de suas próprias atividades e conseqüências. O meio
que possibilita a publicização e a disseminação das informa-
ções comunitárias é, afinal, a comunicação.
A vida da comunidade, portanto, se sustenta através do

141
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

processo de comunicação. Mais do que meramente distribuir


informações, a comunicação envolve a realização de experiên-
cias compartilhadas através da ação cooperativa que permeia
os encontros verbais e práticos entre os membros da comuni-
dade.30 Ademais, a comunicação tem ainda o papel de harmo-
nizar os interesses dos indivíduos com aqueles da comunida-
de; ao se tornar consciente das atividades comunitárias, o in-
divíduo passa a ter a possibilidade de identificar os seus in-
teresses pessoais com os interesses da comunidade – tais inte-
resses passam a ser, portanto, interesses comuns.31

Os pensamentos e aspirações congruentes com eles [os ho-


mens] não são comunicados, e conseqüentemente não são
comuns. Sem tal comunicação o público vai permanecer obs-
curo e disforme, procurando espasmodicamente por ele mes-
mo, mas capturando e segurando sua sombra ao invés de sua
substância.32

Se a comunicação é, portanto, condição fundamental para


que o público saia de seu eclipse e a Grande Sociedade se torne
uma Grande Comunidade, ela não é, no entanto, a única con-
dição. Ao lado da comunicação, e em estreita relação com ela,
a investigação também desempenha importante papel na con-
cepção deweyana de comunidade. De acordo com Dewey, a
liberdade de investigação social e a conseqüente distribuição
de suas conclusões consistem em requisitos imprescindíveis à
consolidação do conhecimento necessário à organização do
público. Os métodos e instrumentos da investigação social (a
observação, o relato e a organização atual dos assuntos) devem
ser desenvolvidos sob os auspícios da liberdade de expressão.
A investigação, deste modo, forma uma espécie de ‘entendi-
mento comum’ sobre os assuntos humanos e comunitários: as

142
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

opiniões e as crenças relativas ao público pressupõem em sua


gênese uma investigação efetiva e organizada.33 “Apenas a in-
vestigação contínua (...) pode prover o material para a opinião
duradoura sobre os assuntos públicos”, esclarece Dewey.34
A investigação precisa também ser muito recente, atual e
contemporânea aos fatos na maior medida possível. A forma-
ção da opinião pública depende dos resultados da investiga-
ção social, de modo que a demora na divulgação destes pode
afetar a própria constituição do que virá a ser a opinião do
público sobre os fatos presentes de uma comunidade. É preci-
so que haja, por conseguinte, coordenação e seqüência lógica,
consecutiva, entre os eventos e a sua sistematização pelos pro-
cedimentos da investigação social. O que vai tornar isso possí-
vel é, mais uma vez, a comunicação. Ora, de que adianta pro-
duzir resultados e conclusões a partir de uma investigação que
se pretenda a mais ampla e profunda possível se eles não che-
garão ao conhecimento do público? A comunicação é necessá-
ria, não apenas para fazer os resultados da investigação chega-
rem aos ouvidos e olhos dos membros da comunidade, mas
para fazê-los chegar a tempo de formar uma opinião pública
devidamente informada e compartilhada. Além disso, ao mes-
mo tempo em que é a comunicação que leva embora as con-
clusões da investigação do pequeno círculo dos cientistas so-
ciais e investigadores para o seio da comunidade, é também
ela que traz para este pequeno círculo e para estas poucas pes-
soas o material bruto a ser trabalhado, ou seja, os dados sobre
os fatos e eventos ocorridos na comunidade.35 Sem a comuni-
cação, a investigação não seria possível, pois ela estaria des-
provida tanto de inputs como de outputs. Talvez por este moti-
vo Dewey tenha deixado escapar, em um certo momento, a
afirmação de que “a comunicação pode sozinha criar uma gran-
de comunidade”.36

143
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

(...) as condições que precisam ser satisfeitas para que a


Grande Sociedade venha a se tornar uma Grande Comuni-
dade; uma sociedade na qual as conseqüências sempre ex-
pansíveis e intrincadamente ramificadas das atividades as-
sociativas devem ser conhecidas no sentido pleno desta pala-
vra, de modo que um Público organizado e articulado ve-
nha à tona. O mais elevado e mais difícil tipo de investiga-
ção e uma arte de comunicação sutil, delicada, vívida e res-
ponsiva precisam tomar posse da maquinaria de transmissão
e circulação e soprar vida dentro dela. (...) A democracia vai
vir por si própria, pois democracia é o nome para uma vida
de comunhão (communion) livre e enriquecedora. (...) Ela
terá a sua consumação quando a livre investigação social esti-
ver indissoluvelmente casada com a arte da plena e móvel
comunicação.37

Se, por um lado, a relevância do papel da comunicação na


comunidade é uma característica comum entre os conceitos
de comunidade de Mead (e Habermas) e Dewey, por outro,
os efeitos desta semelhança são completamente mitigados jus-
tamente pelo próprio uso conferido à comunicação em cada
um dos dois conceitos. Enquanto a concepção de comuni-
dade meadiana-habermasiana, como vimos, se apóia na co-
municação para buscar uma projeção universalista, a con-
cepção deweyana se apóia na comunicação para afirmar o seu
caráter local, particular. Com efeito, uma das características
centrais do conceito de comunidade levado a cabo por Dewey
que ainda nos resta considerar é precisamente a idéia de loca-
lidade.
De acordo com Dewey, a criação da Grande Comunidade
precisa se dar lado a lado com a revitalização da comunidade
local.38 Afinal, conforme mencionamos antes, o que caracte-
riza a Grande Sociedade que Dewey busca tanto evitar é justa-

144
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

mente a impessoalidade nas relações humanas e sociais oca-


sionada pela inexistência de comunidades de pequena escala
em seu seio. A Grande Comunidade que a ela se opõe, portan-
to, é precisamente uma comunidade que preserve a estreita
proximidade e pessoalidade nas relações sociais, através do
contato físico e oral entre os seus membros. Mas apesar de ser
concebível uma Grande Comunidade na qual prepondere a
intercomunicação plena e livre, ela jamais possuirá todas as
qualidades que marcam uma comunidade local, diz Dewey.
Diante disto, a Grande Comunidade deve ser uma enorme
articulação de pequenas comunidades locais.
Nas comunidades locais impera a interação face a face, para
a qual Dewey afirma não ter encontrado substituto melhor a
fim de possibilitar uma comunicação próxima e direta entre
os membros de uma comunidade. As comunidades que possi-
bilitam este tipo de interação – que Dewey chama alternativa-
mente de comunidades locais, comunidades face a face e co-
munidades imediatas (immediate communities) – propiciam
relacionamentos humanos e sociais mais profundos, mais es-
táveis e mais cheios de vida. Entre outras coisas, isso ocorre
porque os contatos pessoais possibilitam o diálogo, vale dizer,
propiciam que as idéias sejam compartilhadas. “Idéias que
não são comunicadas, compartilhadas e renascidas na expres-
são são apenas um monólogo, e o monólogo não é nada mais
do que um pensamento fragmentado e imperfeito”, afirma
Dewey.39 Por conseguinte, as palavras faladas têm primazia
sobre as palavras escritas, afinal, estas só servem para disse-
minar aquelas. Segundo Dewey, os ouvidos estão mais pro-
ximamente conectados com o pensamento e com a emoção
do que os olhos: “a visão é uma espectadora; a audição é uma
participante”.40
Quando a interação próxima e pessoal é possível, e isso

145
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

acontece apenas nas comunidades locais, a inteligência pes-


soal de cada indivíduo circula de boca em boca dando origem
a uma inteligência social. É isto que confere realidade à opi-
nião pública. As comunidades locais, por conseguinte, funcio-
nam como meio de comunicação da inteligência; são elas que
possibilitam que a inteligência se difunda, circule e se concre-
tize. Mas para isto, é importante lembrar, as palavras precisam
ser ditas pelas bocas e escutadas pelos ouvidos. As palavras
escritas só ganham sentido – ou só fazem sentido – quando
são comunicadas direta, pessoal e proximamente. Só assim o
público se forma e se informa plenamente.41

A menos que a vida comunal possa ser restaurada, o público


não pode resolver adequadamente o seu problema mais ur-
gente: encontrar e identificar a si mesmo. Mas se a vida
comunal for restabelecida, ela irá manifestar uma plenitude,
variedade e liberdade de posse e gozo de significados e bens
desconhecidos nas associações contíguas do passado. Isto por
que ela será vigorosa e flexível assim como estável, responsi-
va ao complexo cenário mundial na qual está enredada.42

Portanto, é na comunidade local, no contexto da vida


comunal, que o público vai escapar de seu eclipse, encon-
trando-se e identificando-se. Mas é preciso observar que, con-
forme a citação acima transcrita deixa patente, esta comuni-
dade local não consiste em um retorno às condições das asso-
ciações humanas do passado, solapadas pela Grande Socie-
dade. Ao contrário, a transformação desta, pela qual Dewey
tanto anseia, consiste na criação de uma forma de associação
inteiramente nova, que é a Grande Comunidade – desenvol-
vida à semelhança das comunidades locais e composta por
inúmeras delas.43

146
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

Finalmente, o conceito de comunidade elaborado por


Dewey parece ter antecipado em quase um século muitas das
posições contemporâneas em torno do debate entre comuni-
tários e liberais que vem dominando a agenda da teoria polí-
tica nos últimos anos. Um bom exemplo disso nos é conferi-
do por Michael Sandel em seu livro Liberalism and the Limits
of Justice (1982), quando ele aduz a três conceitos de comu-
nidade, dois representativos do liberalismo e um representa-
tivo do comunitarismo, este destinado a se opor aos dois
primeiros. Os dois primeiros, que ele deriva do neoliberalismo
de John Rawls, são os conceitos de comunidade instrumen-
tal e comunidade sentimental. A ‘comunidade instrumental’
se baseia nas suposições individualistas convencionais que
tomam como dadas as motivações auto-interessadas dos agen-
tes; diante disto, a comunidade é concebida em termos in-
teiramente instrumentais, evocando uma imagem de ‘socie-
dade privada’ na qual os indivíduos encaram os arranjos so-
ciais como um encargo necessário e cooperam apenas com o
objetivo de atingir seus próprios fins. Já o segundo conceito
liberal de comunidade, a ‘comunidade sentimental’, segun-
do Sandel, é o que representa exatamente o liberalismo de
Rawls. Trata-se de uma comunidade na qual os membros
possuem alguns fins compartilhados e encaram o sistema de
cooperação como algo instrisecamente bom. Os interesses
dos indivíduos membros desta comunidade não são comple-
tamente antagônicos e, em alguns casos, se complementam e
se sobrepõem. A estes dois conceitos liberais de comunida-
de, Sandel opõe um conceito comunitarista, que denomina
como uma ‘concepção constitutiva de comunidade’. Esta
concepção que Sandel acredita ser um conceito ‘forte’ (strong)
de comunidade pode ser melhor descrita pelas suas próprias
palavras:

147
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Nesta visão forte, dizer que os membros de uma sociedade


estão ligados por um senso de comunidade não é simples-
mente dizer que um grande número deles professa sentimen-
tos comunitários e buscam objetivos (aims) comunitários,
mas que eles concebem sua identidade – o sujeito e não ape-
nas o objeto de seus sentimentos e aspirações – como defini-
da em alguma medida pela comunidade da qual eles são par-
te. Para eles, comunidade descreve não apenas o que eles
têm como concidadãos, mas também o que eles são, não um
relacionamento que eles escolhem (como em uma associa-
ção voluntária) mas uma ligação que descobrem; não mera-
mente um atributo, mas um componente constitutivo de
sua identidade.44

Observe-se como este ‘conceito constitutivo de comunida-


de’ representativo do comunitarismo de Sandel é semelhante
ao conceito pragmatista de comunidade de Dewey, que vie-
mos analisando até aqui. É possível afirmar, por conseguinte,
que Dewey era um comunitarista liberal, assim como é o caso
de Sandel e da maior parte dos comunitaristas contemporâ-
neos. Com efeito, Dewey apresenta características simultanea-
mente semelhantes e irreconciliáveis com o liberalismo. O fato
é que o liberalismo clássico era declaradamente um de seus
inimigos, ao qual ele chamava de ‘antigo liberalismo’, ao lado
do ‘antigo individualismo’ que ele também menosprezava.45
Na verdade, dicotomias como individual x social e individua-
lismo x coletivismo perdem sentido no contexto do pensa-
mento de Dewey. Conforme ele mesmo sustentava, pensar a
partir de tais dicotomias constitui um equívoco.46 No pensa-
mento deweyano, conforme acreditamos ter ficado evidente
até este momento da nossa exposição, não faz sentido pensar
nos indivíduos de forma separada ou independente do am-
biente social e de suas relações sociais. Os indivíduos constitu-

148
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

em-se como tal a partir da sociedade, e de forma dependente


dela. As dicotomias do liberalismo clássico se tornam, afinal,
conceitos interdependentes no pensamento político deweyano.
Em todo caso, arriscaríamos afirmar ainda que, em Dewey, o
conceito de comunidade se sobrepõe ao conceito de indiví-
duo. O indivíduo depende da comunidade para se constituir
como tal, mas a comunidade apenas depende dele quando ele
age coletivamente, participativamente, engajado nas ativida-
des comunitárias e embebido nas relações sociais que as cons-
tituem. Outro argumento é que o conceito de comunidade de
Dewey não depende de um rol de direitos apriorísticos dos
indivíduos a serem exercidos em face da sociedade. Ao contrá-
rio, além de não aduzir a um conceito de comunidade depen-
dente do direito, a idéia de liberdade que aparece em Dewey
tem uma conotação infinitamente mais positiva do que nega-
tiva. E nada melhor do que suas próprias palavras para de-
monstrarem isso:

A falácia real [do liberalismo clássico] reside na noção de


que os indivíduos têm uma tal dotação nativa ou original de
direitos, poderes e necessidades que tudo o que se requer da
parte das instituições e das leis é que se eliminem as obstru-
ções que elas oferecem ao “livre aparelhamento dos indiví-
duos”. A remoção de obstruções não tem um efeito liberta-
dor sobre tais indivíduos, como se eles fossem anteriormen-
te possuidores dos meios, intelectuais e econômicos, para
que aproveitem as condições sociais. Mas isto deixa todos os
outros à mercê das novas condições sociais trazidas pela libe-
ração dos poderes daqueles desvantajosamente situados. A
noção de que os homens são igualmente livres para agir ape-
nas se os mesmos arranjos legais se apliquem igualmente para
todos – a despeito das diferenças na educação, no comando
do capital e no controle do ambiente social o qual é forneci-

149
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

do pela instituição da propriedade – é um absurdo puro,


como os fatos têm demonstrado. Uma vez que direitos e
demandas verdadeiras, isto é, efetivas, são produtos de
interações e não são encontrados na constituição original e
isolada da natureza humana, seja moral ou psicológica, me-
ras eliminações de obstruções não são suficientes. Esta últi-
ma meramente libera força e habilidade na medida em que
isso foi distribuído por acaso por acidentes passados da his-
tória. Esta ação “livre” opera desastrosamente, uma vez que
a multidão está concernida. A única conclusão possível, tan-
to intelectual quanto praticamente, é que a obtenção de li-
berdade concebida como poder para agir de acordo com a
escolha depende de mudanças positivas e construtivas nos
arranjos sociais.47

Em conclusão, foi possível constatar ao longo das últimas


páginas que a comunidade pragmatista tem entre suas virtu-
des o fato de se caracterizar como uma comunidade aberta,
falível, crítica, e por isso responsiva; imaginativa, experimen-
tal, orientada para o futuro (foward-looking), flexível, embo-
ra estável.48 Ademais, pudemos perceber o quanto que o con-
ceito pragmatista de comunidade, tal como representado pela
contribuição de Dewey, está irremediavelmente associado ao
conceito de democracia. Apesar da dificuldade que tivemos
em tentar separar estes dois conceitos neste capítulo a fim de
tentar prover uma análise pertinente e uma exposição siste-
mática destes que consideramos os principais conceitos do
pragmatismo político, acreditamos que tenha sido possível
até aqui identificar e isolar, em alguma medida, os atributos
e idéias principais do conceito de comunidade. Nos resta
agora, portanto, analisar o conceito de democracia, de modo
a tentar compreender porque ambos estão tão inevitavelmente
ligados.

150
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

3.2. Democracia

Assim como o conceito de comunidade, a democracia tam-


bém recebeu sua forma conceitual final no pragmatismo clás-
sico pelas mãos de Dewey. Com efeito, por mais que as idéias
pragmatistas iniciais de James e, principalmente, de Peirce,
sejam essenciais para a formação do núcleo teórico que orien-
ta Dewey, foi ele quem se preocupou efetivamente em aplicar
tais idéias à política, do que resultou, sem dúvida, uma teoria
do Estado e uma teoria democrática de sua distintiva autoria.
As idéias de Dewey acerca da democracia, conforme ficará
claro nas próximas páginas, são de uma atualidade que im-
pressiona. Diante disto, o que viemos a chamar de pragmatis-
mo na teoria política vem se formando, à exceção contempo-
rânea de Rorty, muito mais a partir de um resgate das idéias de
Dewey acerca da democracia do que propriamente através da
elaboração de novas idéias sobre o assunto. Com efeito, há
nos últimos anos um número crescente de estudiosos que se
preocupam com a discussão crítica e a interpretação dos es-
critos políticos de Dewey sobre a democracia. É neste senti-
do, como já dissemos antes, que podemos propriamente fa-
lar de um pragmatismo político: no sentido de uma reatuali-
zação das idéias políticas desenvolvidas inicialmente por
Dewey na primeira metade do século XX. E destas idéias, ao
lado da idéia de comunidade, a democracia é sem dúvida a
principal.
Para entender o conceito de democracia em Dewey, é pre-
ciso partir de uma distinção que ele mesmo efetua. Trata-se de
distinguir a democracia, por um lado, como uma idéia e, por
outro, como um sistema de governo. À democracia enquanto
um sistema de governo, Dewey chama de democracia política.
Mas é com a ‘idéia de democracia’ que Dewey está mais preo-

151
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

cupado, ainda que os dois conceitos estejam conectados. Con-


tudo, é possível perceber facilmente na essência do pensamen-
to deweyano as linhas definidoras de cada uma destas duas
frações do conceito de democracia, e será com base nelas que
orientaremos nossa exposição a partir de agora.
A democracia como uma idéia (social ou moral, como
Dewey acrescenta indistintamente) consiste no modo de en-
carar o conceito de democracia que foi quantitativa e qualita-
tivamente mais desenvolvido por Dewey e também aquele so-
bre o qual parecia preferir escrever e pensar a respeito. Trata-
se, esta idéia, de acreditar que a democracia é um modo de
vida. Mas, antes de anteciparmos a essência do conceito de
democracia enquanto uma idéia social, é preciso ir por partes,
reconstruindo a trajetória da formulação deste conceito no
pensamento de Dewey.
A idéia de democracia é tão vasta e tão plena que, de acor-
do com Dewey, não pode ser exemplificada através do Estado.
Nenhum Estado, nenhuma hipótese de Estado, por melhor
que seja, é suficiente para exemplificar a idéia de democracia
em sua integridade. Isto porque a democracia, a sua realiza-
ção, transcende o Estado: ela se encontra e afeta, simultanea-
mente, todos os modos de associação humana dentro da co-
munidade. Para que a idéia de democracia seja realizada, por
conseguinte, ela precisa produzir efeitos sobre a família, a es-
cola, a religião, os empreendimentos (“industry”, no sentido
mais amplo que a tradução não confere), além de outras for-
mas de associação humana. Neste sentido, a ‘democracia polí-
tica’ – isto é, a democracia como um sistema de governo –
com seus arranjos políticos e instituições governamentais, con-
siste meramente em um mecanismo destinado a assegurar ca-
nais de operação efetiva para a ‘idéia’ de democracia. Diante
disto, as críticas, as desaprovações e mesmo as modificações

152
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

da “maquinaria” da democracia política não afetam a ‘idéia’,


que permanece sempre intocável. Em outras palavras, a de-
mocracia enquanto forma de governo, ou seja, a ‘democracia
política’ pode a qualquer momento ser revista, modificada,
sem que isso afete a idéia de democracia. Isto porque a ‘idéia’
irá sempre encontrar uma maquinaria política mais adequada
para, através dela, continuar funcionando.49
A primeira lição da teoria democrática de Dewey, portan-
to, é não confundir, e jamais identificar, a ‘idéia de democra-
cia’ com os seus “órgãos e estruturas externos”. Como a idéia
de democracia é inabalável, suas “formas políticas” estão sujei-
tas a críticas e crises constantes. Daí, segundo Dewey, ser um
erro repetir o velho bordão que afirma que o remédio para os
males da democracia é mais democracia. Afinal, se os males
vem a ser remediados por meio da adição do mesmo tipo de
“maquinaria” (leia-se instituições e arranjos políticos) já exis-
tente, ou mesmo por meio do aperfeiçoamento ou refinamen-
to daquela maquinaria, a democracia permanece doente, pas-
sível dos mesmos males. A cura para uma democracia em cri-
se, diz Dewey, apenas pode ser alcançada se ao velho bordão
for conferido um outro sentido, qual seja, o de retornar à pró-
pria ‘idéia’ de democracia. A solução para os males da demo-
cracia política reside assim em encontrar a substância da ‘idéia’,
em clarificá-la, compreendê-la, apreendê-la em seu sentido mais
profundo, de modo que se possa, então, possibilitar a crítica e
a reconstrução de suas “manifestações políticas”.50
De acordo com Dewey, é um erro considerar que foi a ‘idéia
de democracia’ por si mesma que produziu as práticas gover-
namentais encontráveis nos estados democráticos, isto é, o
sufrágio, a representação, a regra da maioria, entre outras. A
‘idéia’ apenas influenciou movimentos políticos concretos que
resultaram nestas práticas, mas não as causou. Em outras pa-

153
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

lavras, as formas assumidas pela ‘democracia política’ ao longo


do tempo, bem como as formas que se encontram consolida-
das atualmente, representam o efeito cumulativo de inúmeros
eventos de ordem histórica, e não simplesmente foram deter-
minadas pela ‘idéia’ de democracia. Assim, explica Dewey, a
intenção que levou à criação das conhecidas instituições da
democracia moderna foi a de satisfazer necessidades e deman-
das concretas, e não a de promover a ‘idéia’ democrática.
Destarte, considerar que o governo existe para servir sua
comunidade e que seus propósitos apenas são alcançados quan-
do a própria comunidade participa da escolha de seus gover-
nantes e da determinação das políticas por eles implementa-
das é pouco para Dewey. Isto corresponde apenas a uma parte
da idéia democrática, sua “fase política”. Dewey está certo de
que qualquer modificação que venha a ser implementada na
“maquinaria democrática” existente deverá fazer com que os
interesses do público se constituam cada vez mais como os
critérios e parâmetros da atividade governamental, de modo
que ele, o público, possa formar e manifestar seus propósitos
de forma cada vez mais decisiva. Dewey está certo também de
que muitas sugestões de reforma e melhoria da ‘forma política
da democracia’ são – e serão – permanentemente discutidas.
Por isso é que ele acredita que o seu papel não deve ser o de
engrossar este rol, mas sim o de discutir as questões mais pro-
fundas que estão por trás dele. Estas questões, que segundo ele
configuram um problema intelectual e não político, consis-
tem em tentar descobrir os meios pelos quais o público pode
reconhecer a si mesmo para definir e expressar seus próprios
interesses.51
Na busca pelas condições por meio das quais o público
pode funcionar democraticamente, retornamos ao tema da
comunidade e aos problemas a ele relativos que desbravamos

154
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

há algumas páginas atrás. Aqueles, afinal, são os problemas


que Dewey quer enfrentar, ao contrário de se preocupar em
sugerir aperfeiçoamentos para os governos democráticos – até
porque, enquanto a Grande Sociedade não se converter em
Grande Comunidade, “é de certo modo fútil considerar qual
maquinaria política irá servir a ela”.52

No exame das condições sob as quais o público disforme


agora existente pode funcionar democraticamente, devemos
proceder a partir de uma proposição da natureza da idéia
democrática em seu sentido social genérico. Do ponto de
vista do indivíduo, isso consiste em ter uma parte (share)
responsável de acordo com a capacidade de formar e dirigir
as atividades do grupo ao qual se pertence e em participar de
acordo com a necessidade dos valores sustentados pelo gru-
po. Do ponto de vista dos grupos, isso demanda liberação
das potencialidades dos seus membros em harmonia com os
interesses e bens que são comuns. Uma vez que todo indiví-
duo é membro de vários grupos, esta especificação só pode
ser cumprida se grupos diferentes interagirem flexível e
plenamente em conexão com outros grupos. (...) Um bom
cidadão considera a sua conduta como membro de um gru-
po político enriquecedora e enriquecida pela sua participa-
ção na vida familiar, no trabalho e nas associações científicas
e artísticas.53

É neste ponto, portanto, que os conceitos de democracia e


comunidade se encontram definitivamente. Encarada como
uma idéia, conforme nos diz Dewey na epígrafe deste capítu-
lo, a democracia não é uma alternativa a outros princípios de
vida associativa, mas é a própria idéia de comunidade. Em
suma, a idéia de democracia consiste em um ideal, um ideal
de uma comunidade levada ao seu último limite; uma comu-

155
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

nidade completa, perfeita. “A pura consciência de uma vida


comunal, com todas as suas implicações, constitui a idéia de
democracia”.54
De acordo com Dewey, por conseguinte, uma idéia de de-
mocracia deixa de ser apenas uma idéia utópica quando se
toma como ponto de partida a comunidade, ou melhor, o fato
da comunidade, com todos os seus elementos constitutivos.
Diante disto, Dewey acredita que todas as concepções tradicio-
nalmente associadas à idéia de democracia apenas adquirem
sentido e eficácia verdadeira quando estão vinculadas a uma
comunidade real. Deste modo, por exemplo, o famoso lema
revolucionário francês que clama por ‘liberdade, igualdade e
fraternidade’ precisa estar realizado na vida comunal, sem o
que ele consistiria em uma mera abstração ineficaz. Assim,
apenas quando está associada à comunidade, a liberdade con-
siste na “liberação e satisfação das potencialidades pessoais”; a
igualdade, por sua vez, implica o “compartilhamento das con-
seqüências da ação coletiva” por parte de cada indivíduo mem-
bro da comunidade; e, por fim, a fraternidade passa a ser “ou-
tro nome para os bens conscientemente apreciados” que pro-
vém da própria associação e por ela são compartilhados.55
O que há de essencial neste modo como Dewey encara a
democracia, vale dizer, em sua concepção de democracia como
idéia social, é que a democracia deixa de ser vinculada unica-
mente à política. A política passa a ser apenas um dos lugares,
um dos momentos, uma das formas que assume a democra-
cia. Quando não está revestida de sua “forma política”, por-
tanto, a democracia é muito mais ampla: ela se apresenta como
uma idéia que espalha seus efeitos de múltiplas formas, em
vários lugares ao mesmo tempo. Mas, de certa forma, pode-
mos dizer que essa multiplicidade de expressões da democra-
cia se concentra em um lugar, na comunidade.“A democracia

156
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

precisa começar em casa, e sua casa é a comunidade vizinha


(neighborly).”56 É na comunidade, afinal, que se encontram os
indivíduos, os grupos, as famílias, as escolas, as fábricas, as
igrejas, as associações de caráter científico e artístico, enfim,
todas as formas de associação humana. É na comunidade que
os indivíduos e os grupos podem se comunicar, interagindo
uns com os outros, compartilhando as atividades e as conse-
qüências das mesmas. Diante disto, talvez possamos afirmar
que, para Dewey, a democracia se encontra mais no social do
que no político – mesmo porque este último plano só deve vir
à tona quando o público se descobrir, e isso somente pode
acontecer através do social.
Neste sentido, a comunidade, ou, mais genericamente, a
‘vida associativa’ passa a significar, conforme nos aponta Robert
Westbrook, uma idéia de “democracia moral”.57 Não foi ao
acaso que Dewey escolheu usar este termo para se referir a
uma sociedade na qual “o bem de cada um é o bem de todos e
o bem de todos o bem de cada um”.58 A democracia é a
solidificação das possibilidades inerentes à vida comunitá-
ria, social; é um todo único no qual se incluem as potencia-
lidades e as capacidades dos indivíduos que são desenvolvi-
das através de atividades cooperativas levadas a cabo pela
comunidade. Contudo, se a democracia é uma forma de vida
comunal que oferece oportunidades intermináveis para o
desenvolvimento da individualidade em sua plenitude, é pre-
ciso que os indivíduos possam participar da direção das suas
vidas e da vida da comunidade na qual estão inseridos. Os
indivíduos membros das comunidades, portanto, devem par-
ticipar da formação dos valores individuais e sociais que re-
gulam a vida comum deles. Na medida em que a idéia de
democracia engloba esta noção de auto-realização, ou seja,
de constituição e consolidação recíprocas da individualidade

157
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

e da coletividade uma por meio do outra, estabelece-se uma


espécie de autogoverno.
Quando a auto-realização individual converte-se em auto-
governo, a comunidade converte-se em uma democracia
participativa. Com efeito, a idéia de democracia se expressa na
participação do indivíduo em todos os momentos e lugares da
vida comunal, dos quais a esfera propriamente política repre-
senta apenas um. Ao lado de todas as suas funções enquanto
membro da comunidade, os indivíduos possuem uma função
especificamente política, a de participar de forma “direta” e
“ativa” na regulação dos termos da vida associativa e na busca
do bem comum. Entenda-se por regulação a participação na
formulação, na definição e na implementação de políticas
públicas. Por políticas públicas, por sua vez, entendam-se po-
líticas que de fato constituem as necessidades e os interesses
do público, as necessidades e interesses ‘comuns’ no sentido
de serem necessidades e interesses da comunidade. Neste sen-
tido, o governo e suas instituições constituem apenas uma das
várias atividades associativas da comunidade. Os cidadãos
deweyanos não precisam de um governo que não seja o deles
próprios, a ser exercido de forma direta e constante – seja em
casa, na escola, no trabalho, nas inúmeras associações com
seus múltiplos fins: a democracia se faz a si mesma em toda
parte.59
Ao sustentar isso que inequivocamente é uma forma de
democracia direta, Dewey não abre mão da idéia de represen-
tação, mas confere a ela um outro significado, uma outra com-
preensão do que aquela que estamos tradicionalmente acostu-
mados a pensar. De acordo com ele, “nós comumente falamos
de alguns governos como representativos em contraste com
outros que não são. Pela nossa hipótese, todos os governos são
representativos”. O que faz com que todos governos sejam

158
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

necessariamente representativos é que eles pretendem manter


os interesses do público no comportamento dos indivíduos e
dos grupos.60 Um governo apenas é representativo quando o
público está definitivamente organizado em sua intenção de
assegurar o predomínio da prosperidade pública sobre quais-
quer outros desejos que cada membro individual da comuni-
dade tenha em seus papéis e ações não-políticas. Neste senti-
do, todos os indivíduos possuem uma “capacidade dual”, uma
enquanto oficial do governo e outra enquanto aquele que o
elege. Potencialmente, todos podem ocupar estas duas posi-
ções e trabalhar para que o bem-estar do público prevaleça,
assim como fazem em outras atividades associativas da comu-
nidade que não o governo. Em tese, portanto, todos os gover-
nos são de fato representativos – e esta afirmação de Dewey
não é nem um pouco contraditória no contexto de uma teoria
da democracia que considera as instituições governamentais
tão ou menos importantes que os demais desdobramentos da
vida comunal.61
A necessidade de participação para a constituição da co-
munidade, que vimos no item anterior deste capítulo, e a ab-
soluta indissociabilidade entre participação e democracia e entre
esta e a comunidade, que estamos vendo agora, nos leva a
supor que Dewey efetivamente antecipou em várias décadas
as recentes discussões da teoria política contemporânea em
torno das idéias de participação, cidadania participativa e
democracia participativa. Neste sentido, o testemunho de
Westbrook logo em uma das primeiras páginas da biografia
intelectual de Dewey é valioso:

Entre os intelectuais liberais do século XX, Dewey foi o mais


importante defensor da democracia participativa, isto é, a
crença de que a democracia como um ideal ético clama que

159
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

os homens e as mulheres construam comunidades nas quais


as oportunidades e os recursos necessários estão disponíveis
para cada indivíduo realizar plenamente suas capacidades e
poderes particulares através da participação na vida política,
social e cultural.62

Esta idéia de democracia que promove, simultaneamen-


te, a individualidade e o bem comum através de uma partici-
pação que não é meramente política, mas é, antes de tudo,
social, faz de Dewey, conforme acreditamos, um dos precur-
sores do tema da participação na teoria política. O que levou
Dewey a elaborar uma teoria da democracia – sem dúvida
normativa, ressalte-se – como esta, foi o seu desejo de opor-
se às concepções realistas de democracia vigentes no seu tempo
que sustentavam uma teoria elitista da democracia. Muito
antes de Joseph Schumpeter, a quem os novos teóricos da
democracia vieram a se opor nas últimas décadas do século
XX, Dewey se opunha no começo deste mesmo século ao
elitismo democrático de autores como Walter Lippmann e
Graham Wallas.63
A verdade é que a concepção de democracia avançada por
Dewey corresponde em grande medida àquilo que a teoria
política contemporânea vem denominando de democracia
deliberativa. Com efeito, o próprio Westbrook afirmou recen-
temente que se este termo já estivesse tão em voga enquanto
ele estava escrevendo sua conceituada biografia de Dewey
(publicada em 1991), ele teria preferido usá-lo ao invés de
‘democracia participativa’.64 O fato é que, como vimos na dis-
cussão específica sobre o conceito de comunidade algumas
páginas atrás, além da participação, há outra noção que é igual-
mente essencial para Dewey: a comunicação. Além disso, o
que torna o termo democracia deliberativa o mais adequado,

160
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

ao invés de ‘democracia participativa’ ou ainda ‘democracia


direta’, é o fato de que Dewey não abdica absolutamente, como
vimos, das instituições representativas.
Com efeito, a teoria da democracia deweyana funciona
combinando características das formas direta e representativa
de democracia, mas o que é imprescindível nestas últimas é
que elas internamente funcionem de modo inteiramente
deliberativo.

O ponto mais forte a ser feito mesmo em favor de tais for-


mas políticas rudimentares que a democracia já alcançou, o
voto popular, a regra da maioria e assim por diante, é que
em alguma medida elas envolvem uma consulta e uma dis-
cussão que revelam (uncover) as necessidades e problemas
sociais.65

Assim, de acordo com Dewey, o que faz com que o sistema


eleitoral com a sua regra de maioria não seja uma insensatez
absoluta é que, para que a maioria seja alcançada, por exem-
plo, faz-se necessário todo um processo de “discussão”, “con-
sulta” e “persuasão”. Vale dizer, as instituições representativas
não podem prescindir de um certo grau de deliberação inter-
na – sua maior (ou única) virtude segundo Dewey. E já que,
por uma questão de lógica, não existem governos que não se-
jam representativos, aquela fração política da vida associativa
que se chama governo deve, necessariamente, ser minimamente
deliberativa em seu interior.
Quanto aos problemas da ‘democracia política’, que Dewey
se abstém de discutir por considerar mais prementes as ques-
tões atinentes à ‘idéia de democracia’, podemos encontrar no
presente contexto de nossa análise uma indicação da posição
de Dewey sobre o assunto. Se o remédio para os males da

161
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

democracia não é mais ‘democracia política’ e sim mais ‘idéia


de democracia’, certamente Dewey concordaria que a “ma-
quinaria política” existente seria aperfeiçoada se aperfeiçoados
fossem também os procedimentos de deliberação que dela fa-
zem parte. A necessidade essencial, esclarece Dewey, “é o aper-
feiçoamento dos métodos e condições de debate, discussão e
persuasão. Este é o problema do público”.66 E este é também o
problema da democracia.
O que há de mais inquietante no desvelamento desta parte
da teoria da democracia de Dewey, contudo, é a percepção de
que todo o debate atual em torno da idéia de deliberação, que
vem ocupando o centro da agenda da teoria política contem-
porânea nos últimos anos, deliberadamente ignora a contri-
buição de Dewey sobre o assunto. É de saltar aos olhos o fato
de que praticamente nenhum autor contemporâneo faça men-
ção expressa a Dewey em suas postulações em prol de uma
democracia deliberativa. Conforme dizem James Bohman e
William Rehg na introdução da principal coletânea sobre o
tema, por eles editada em 1997, “até a metade deste século, as
teorias da democracia eram geralmente suspeitosas quanto à
deliberação pública”. Ora, se para eles as teorias elitistas só
passaram a existir com Schumpeter, não é de surpreender que
achem também que a idéia de deliberação surgiu apenas a par-
tir da década de 1980. Segundo acreditam estes dois teóricos
políticos da contemporaneidade, a idéia de democracia deli-
berativa apareceu pela primeira vez em um artigo de Joseph
Bessette, publicado em 1980 – e a partir daí “sua provocação
uniu o coro de vozes clamando por uma visão participativa da
política democrática”.67
Sem dúvida, como já mencionamos antes, a concepção de
democracia de Dewey é uma concepção normativa. Aliás, a
teoria política pragmatista como um todo que pode ser inferida

162
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

de Dewey também se antecipa neste caráter normativo, es-


tando ainda a oferecer, por conseguinte, inúmeras contribui-
ções para a teoria normativa contemporânea ainda em proces-
so de construção.68 Outro argumento que gostaríamos ainda
de ressaltar é que, em alguma medida, Dewey parece também
antecipar um certo procedimentalismo em sua teoria demo-
crática. Vale dizer, ao sustentar que a democracia deve ser
exercida deliberativamente no seio das múltiplas formas asso-
ciativas da sociedade, incluindo-se entre estas o governo e as
instituições propriamente políticas, Dewey não especifica um
determinado conteúdo substantivo constitutivo da idéia de
democracia. Ou seja, a democracia deweyana, além de não se
expressar pelas tradicionais vias do poder ou do interesse, não
está tampouco contida na concretização, por exemplo, dos tra-
dicionais ideais da liberdade ou mesmo da igualdade, assim
como também não visa a materialização de um sistema de di-
reitos. Se isto nos serve de argumento para afastar o pragma-
tismo político de Dewey do liberalismo, também nos serve
para indicar uma certa antecipação do procedimentalismo, mas
com uma diferença importante: ao contrário das investidas
contemporâneas em direção a uma concepção procedimental
de democracia, entre as quais a mais notória é a de Habermas,
a concepção de Dewey não é formalista e, muito menos,
dogmática.69
Outro argumento que Dewey desenvolveu na década de
trinta e que recentemente vem sendo utilizado por Habermas
e outros teóricos da democracia deliberativa, tais como Jean
Cohen e Andrew Arato – sem nenhuma menção, evidente-
mente, ao fato de que Dewey utilizou o termo antes –, é a
noção de democracia radical. Por esta idéia, Dewey entendia
o fato de que os meios e os fins da democracia são inevitavel-
mente inseparáveis.Ou seja, a democracia não é meramente

163
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

um fim, mas também não se resume em um meio; ela é ao


mesmo tempo meio e fim. Esses meios e fins podem ser de
qualquer espécie, pois sempre haverá um meio de concretizar
um fim. Assim, “não há nada mais radical do que a insistência
sobre métodos democráticos como os meios pelos quais mu-
danças sociais radicais são efetuadas”.70 Deste modo, afirma
Dewey, não haveria oposição, por exemplo, em sustentar meios
democráticos liberais combinados com fins que são socialmente
radicais.

O fim da democracia é um fim radical. Pois é um fim que


não tem sido adequadamente realizado em nenhum país em
nenhum momento. Ele é radical porque requer uma grande
mudança nas instituições sociais, econômicas, jurídicas e cul-
turais existentes.71

O que faz com que a concepção de democracia de Dewey


possa combinar, ao mesmo tempo, mecanismos diretos e in-
diretos, participação e representação, deliberação e procedi-
mento, liberalismo e radicalismo social, é justamente a sua
expressão por meio da ‘idéia de democracia’. Esta idéia, alter-
nativamente adjetivada por Dewey e seus comentadores como
sendo social, moral ou ética, não é nem forma nem substân-
cia, é algo ao mesmo tempo abstrato e concreto... é algo que,
em um sentido bem pragmatista, ainda está – e sempre estará
– sendo feito (in the making). Não existe, portanto, um prin-
cípio que expresse esta idéia, assim como não existe uma for-
ma nem um conteúdo predeterminado e tampouco um ponto
de chegada.72
A melhor forma de compreender esta idéia de democracia,
Dewey nos ofereceu em um artigo escrito por ocasião da co-
memoração do seu aniversário de oitenta anos.73 Este artigo,

164
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

que certamente poderá permanecer por todo o resto da histó-


ria democrática como um panfleto sobre a democracia, um
belo e vivo manifesto pela democracia, reitera a crença de que
a mesma não pode ser encarada meramente como um meca-
nismo político. A democracia, a ‘idéia’, afinal, é um “modo de
vida”. Mas este modo de vida não é qualquer modo de vida;
ele não pode, por exemplo, ser imposto de fora nem ser deri-
vado de nenhuma externalidade. Trata-se de um modo de vida
pessoal, constituído por cada indivíduo. Para entender a idéia
de democracia, portanto, é preciso perceber...

... no pensamento e na ação que a democracia é um modo


pessoal de vida individual; que ela significa a possessão e o
uso contínuo de certas atitudes, formando o caráter pessoal
e determinando o desejo e o propósito em todas as relações
da vida. Ao invés de pensar em nossas próprias disposições e
hábitos como acomodados a certas instituições, nós temos
que aprender a pensar nestas últimas como expressões, pro-
jeções e extensões das atitudes pessoais habitualmente do-
minantes.74

Por conseguinte, a idéia de democracia não tem que se adap-


tar às instituições, sobretudo às instituições políticas, mas, ao
contrário, são as instituições que têm de se adaptar não so-
mente à democracia, mas também aos hábitos dos indivíduos...
aos seus modos de vida. Em outras palavras – deweyanas, cer-
tamente –, a ‘democracia política’ deve se subordinar à ‘idéia
de democracia’.
Inevitavelmente associado à idéia de democracia como um
modo de vida, está um outro conceito importantíssimo corre-
lato à teoria democrática de Dewey: a fé. Evidentemente, não
se está falando de qualquer fé. Trata-se de uma fé democrática,
digamos assim. Esta fé deweyana, por sua vez, decerto expres-

165
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

sa a mais bonita das crenças do seu autor: a crença no “Ho-


mem Comum”.

Democracia é um modo de vida comandado por uma


operante (working) fé nas possibilidades da natureza huma-
na. Crença no Homem Comum é um artigo familiar do
credo democrático. Esta crença não tem base nem significa-
do senão quando significa fé nas potencialidades da nature-
za humana na medida em que esta natureza é exibida em
todo ser humano sem distinção de raça, cor, sexo, nascimen-
to e família, riqueza material ou cultural. Esta fé pode ser
decretada em leis, mas ela será apenas papel a não ser que
seja colocada em vigor nas atitudes que os seres humanos
possuem uns com os outros em todos as circunstâncias e
relações da vida cotidiana.75

A democracia é um modo de vida pessoal comandado


não apenas pela fé na natureza humana em geral, explica
Dewey, mas pela fé na capacidade dos seres humanos terem
um discernimento (judgement) e uma ação inteligente. Esta-
mos de volta aos conceitos pragmatistas de inteligência e
criatividade que estudamos no capítulo anterior. Vários au-
tores consideram que Dewey utiliza o conceito de inteligên-
cia muitas vezes como substitutivo da idéia de razão.76 De
toda forma, a inteligência é uma potencialidade de todo o
ser humano que, contudo, não se encontra plenamente de-
senvolvida sem a educação.77 Assim como a educação é es-
sencial para a constituição da comunidade, conforme vimos
antes neste mesmo capítulo, ela é também essencial para a
consolidação da democracia. Aliás, a prática da vida comu-
nal e da democracia nela embebida é também, por sua vez,
constitutiva do aprendizado e deste tipo de inteligência so-
bre o qual nos fala Dewey.

166
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

(...) O objetivo da educação é capacitar o indivíduo para


continuar a sua educação – ou o objeto e a recompensa do
aprendizado é a capacidade contínua de crescimento. No en-
tanto, esta idéia não pode ser aplicada para todos os mem-
bros de uma sociedade exceto onde o intercurso do homem
com o homem é mútuo, exceto onde exista provisão ade-
quada para a reconstrução dos hábitos e instituições sociais
por meio de um amplo incentivo originado dos interesses
eqüitativamente distribuídos. E isto significa uma sociedade
democrática.78

A capacidade da inteligência do homem comum para res-


ponder satisfatoriamente aos problemas sociais deve, por con-
seguinte, ser desenvolvida não apenas por meio da educação,
mas também por meio da prática cotidiana do exercício da
cidadania em uma sociedade democrática. O que propicia,
contudo, que a inteligência seja desenvolvida tanto nas esco-
las, como em outros lugares e momentos da vida associativa
comunal, é o livre exercício da comunicação. Em outras pala-
vras, na medida em que os indivíduos passam a ter plena opor-
tunidade de interagir, de discutir, de deliberar publicamente a
respeito dos problemas que envolvem a sua comunidade, sua
inteligência se desenvolve.79 O que está em jogo nesta noção
de inteligência, portanto, é também uma capacidade prática
de lidar com os problemas efetivos que a sociedade real apre-
senta cotidianamente. E se a educação promovida pelas esco-
las contribui para isso ao se constituir em um protótipo de
comunidade, ela sozinha não basta – é preciso que ela possa
ser estendida para as outras atividades e núcleos da vida
associativa. É preciso que os indivíduos tenham oportunidade
de aprender a pensar e a agir diante de todos os problemas da
sua comunidade – do contrário, afinal, esta não seria uma
comunidade democrática. A fé democrática, portanto, se tra-

167
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

duz na confiança nesta capacidade inesgotável do homem de


responder aos problemas da sua comunidade através do exer-
cício comunicativamente livre e prático de suas próprias res-
postas.

Pois o que é a fé da democracia nos papéis de consulta, de


conferência, de persuasão, de discussão, na formação da opi-
nião pública, a qual a longo prazo é autocorretiva, senão fé
na capacidade de inteligência do homem comum para res-
ponder com bom senso ao livre jogo de fatos e idéias que são
assegurados pelas garantias efetivas da investigação livre, da
reunião (assembly) livre e da comunicação livre?80

Dewey sabe perfeitamente que, no contexto de um proces-


so tão livre, e tão intrinsecamente autocorretivo de interco-
municação, é inevitável que surjam conflitos entre os indiví-
duos, dado que cada um tem a sua própria maneira de enxer-
gar necessidades, fins e conseqüências (afinal, a democracia é
um modo pessoal de vida). A solução para tais conflitos é a
“cooperação amigável” – que, como nos esportes, pode incluir
a rivalidade e a competição, porém não a força – a qual se
exerce, no âmbito da discussão e da inteligência, através da
tentativa constante de se aprender alguma coisa com aqueles
com quem discordamos e, nesta medida, fazer deles amigos
em potencial. Em outras palavras, as disputas e controvérsias
devem ser transformadas (ou, ao menos, encaradas como) em
empreendimentos cooperativos nos quais as duas partes apren-
dem ao possibilitar, uma a outra, a chance de se expressar. E
esta chance deve ser conferida não porque representa um di-
reito das pessoas, mas porque representa uma crença na ex-
pressão das diferenças, a qual consiste em “um meio de enri-
quecer a experiência de vida pessoal de cada um”.81

168
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

Em conclusão, a democracia deweyana é um modo de vi-


ver que acredita na experiência simultaneamente como meio e
como fim. Os processos e interações intercomunicativos ser-
vem, assim, para alargar e enriquecer esta experiência. A atua-
lidade do pensamento de Dewey mostra como é possível pen-
sar a partir de alguns dos conceitos mais atuais da teoria polí-
tica contemporânea, tais como deliberação, procedimento e
comunicação, sem, no entanto, precisar abrir mão de alguns
dos conceitos centrais da matriz filosófica do pragmatismo,
como é o caso do conceito de experiência.82 É possível, por-
tanto, e ao contrário do que pensam alguns neopragmatistas
como Richard Rorty, elaborar uma teoria política genuina-
mente pragmatista sem deixar de lado o conceito filosófico de
experiência – e, principalmente, sem precisar substituí-lo pela
idéia de linguagem. Como vimos com Dewey ao longo deste
capítulo, a comunicação é peça essencialmente necessária aos
conceitos pragmatistas de comunidade e democracia. Mas ela
não é suficiente. A comunicação só é relevante na medida em
que é ela que possibilita que a experiência seja permanente e
continuamente ampliada, alargada, enriquecida e perpetuada.
Diante disto, a comunicação é sempre secundária em face da
experiência; ela é sempre um meio, enquanto a experiência é
sempre, e ao mesmo tempo, meio e fim.
A democracia, afinal, não consiste em uma crença no po-
tencial ainda não inteiramente conhecido da comunicação,
mas, sim, consiste em uma crença nas múltiplas e infinitas
potencialidades da experiência humana e social. Por conse-
guinte, a tarefa premente de recuperar uma teoria política
pragmatista é efetivamente uma tarefa de recuperação, no sen-
tido de recriação. Não é preciso simplesmente um neoprag-
matismo que pretenda meramente buscar na matriz filosófica
do pragmatismo clássico elementos para se construir uma nova

169
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

teoria política pragmatista. O pragmatismo político de Dewey


é ainda uma teoria política viva. Sua atualidade e sua vitalida-
de precisam ser conhecidas e, a partir disso, re-criadas. E é
nisso que deve residir a inteligência e a criatividade dos novos
pragmatistas.83

Notas
1 The Public and its Problems, p. 148.
2 Ver Matthew Festenstein, Pragmatism and Political Theory, p. 9; Richard
Bernstein, “Community in the Pragmatic Tradition”. In: The Revival of
Pragmatism: New Essays on Social Thought, Law and Culture, editado por
Morris Dickstein, p. 151-153; Alan Ryan, John Dewey and the High Tide
of American Liberalism, p. 23 e 36. Diz Bernstein sobre isso: “One of the
primary reasons why there has been a resurgence of interest in pragmatism
is precisely because it helps us to move beyond some of the false antitheses
and entrenched extremes that mark recent debates” (p. 151). Os debates
da teoria política contemporânea aos quais Bernstein se refere em especial
são aqueles travados entre comunitários e liberais, e entre os multicultura-
listas de toda sorte. Já Ryan, um dos dois principais biógrafos intelectuais
de Dewey, diz: “The revival of his [Dewey] popularity in the last few years
owes much to the fact that so many of his ideas were calculated to soothe,
or rather to answer to, anxieties that we in the 1990s share with Americans
of 1890s. (…) That, I think, does much to explain both Dewey’s early
popularity and the current revival of his reputation. The resurgence with
a concern with community, both in the work of academic philosophers
and in the programs of politicians is one instance; the debate over the
benefits and dangers of multiculturalism in politics and education is
another. The noisy and muddled discussion of the need for ‘foundations’
for our moral and political allegiances is yet another” (p. 36).
3 “Some Consequences of Four Incapacities”. In: The Essential Peirce, vo-

lume I, p. 52.
4 “The Doctrine of Chances”. In: The Essential Peirce, volume I, p. 150.
5“Grounds of Validity of the Laws of Logic: Further Consequences of
Four Incapacities”. In: The Essential Peirce, volume I, p. 81.
6 Ver Richard Bernstein, “Community in the Pragmatic Tradition”. In:

170
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

The Revival of Pragmatism: New Essays on Social Thought, Law and Culture,
editado por Morris Dickstein, p. 142-143.
7 Mind, Self, and Society, p. 270.
8 Idem, p. 318.
9 Mind, Self, and Society, p. 327.
10 Idem, p. 327. Grifo nosso. Sobre os símbolos significantes falamos no
capítulo anterior, ao tratarmos especificamente da comunicação. Vale re-
cordar apenas que o que é relevante no símbolo significante é que o gesto
(no caso do gesto vocal, a linguagem) de um indivíduo que afeta outros
deve afetá-lo igualmente. Apenas quando o estímulo que um indivíduo
gera em outro ocasiona nele próprio a mesma resposta que gerou no ou-
tro, pode se dizer que o símbolo é um símbolo significante.
11 Não se deve entender o uso do ‘ideal’ em Mead no sentido que o idea-
lismo alemão conferiu ao termo. Trata-se simplesmente de mais um recur-
so contrafático, tão comum na teoria política normativa.
12 The Theory of Communicative Action, volume II, p. 2.
13 Idem, p. 91 e 96.
14 The Theory of Communicative Action, volume II, p. 97 e 145.
15 Idem, p. 82.
16Cf. Jürgen Habermas, “Postscript. Some Concluding Remarks”. In:
Habermas and Pragmatism, editado por Mitchell Aboulafia et alli, p. 228.
17 O conceito de ‘Grande Sociedade’ foi criado pelo teórico político britâ-
nico Graham Wallas, amigo de Walter Lippmann, este por sua vez um
grande adversário intelectual de Dewey. Tal conceito implica a idéia de
que as sociedades industriais modernas eram crescentemente abstratas e
impessoais, bem como crescentemente privavam seus membros de se en-
tenderem uns com os outros através de um contato pessoal em comunida-
des de pequena escala. Cf. Alan Ryan, John Dewey and the High Tide of
American Liberalism, p. 219. O conceito de ‘Grande Comunidade’ que
Dewey cria para se contrapor ao conceito de Wallas, como veremos nas
próximas páginas, insiste exatamente na direção oposta, qual seja na afir-
mação de que as sociedades industriais precisam ser recriadas a partir da
experiência das pequenas comunidades locais, nas quais o contato huma-
no se dá face a face.
18 The Public and its Problems, p. 149.

171
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

19 Idem, p. 151.
20 Ver,a respeito, o capítulo II e o início do capítulo III do The Public and
its Problems, especialmente p. 54 e segs e 87 e segs.
21Ver Richard Bernstein, “Community in the Pragmatic Tradition”. In:
The Revival of Pragmatism: New Essays on Social Thought, Law and Culture,
editado por Morris Dickstein, p. 147.
22 The Community Reconstructs: The Meaning of Pragmatic Social Though,
p. 87.
23Neste sentido, afirma um outro importante estudioso contemporâneo
do pragmatismo na teoria política, Matthew Festenstein: “Para Dewey, é
um aspecto da realização da minha individualidade, em seu sentido ple-
no, que eu participe da configuração dos contextos social e político que
são significantes na minha vida: a individualidade é apenas possível em
uma ordem social canônica que incorpora o autogoverno”. Cf. Pragmatism
and Political Theory, p. 7. Vale lembrar que também Mead, conforme vi-
mos antes, afirma que a individualidade se constitui a partir da socializa-
ção. A diferença, contudo, em relação a Dewey, é que em Mead a indivi-
dualização via socialização produz sujeitos, selfs, enquanto em Dewey pro-
duz cidadãos.
24 The Public and its Problems, p. 154.
25 “The Moral Training Given by the School Community”. In: The Essential

Dewey, volume I, p. 246-249.


26 John Dewey and the High Tide of American Liberalism, p. 147 e 175.
27 The Public and its Problems, p. 152-155.
28Democracy and Education. In: John Dewey: The Middle Works, p. 7-8.
Apud Matthew Festenstein, Pragmatism and Political Theory, p. 213, nota
133.
29 The Public and its Problems, p. 177.
30 Ver Thomas M. Alexander, “John Dewey and the Roots of Democratic
Imagination”. In: Recovering Pragmatism’s Voice, editado por Lenore
Langsdorf e Andrew R. Smith, p. 133.
31 Ver Matthew Festenstein, Pragmatism and Political Theory, p. 88.
32 The Public and its Problems, p. 142.
33 Idem, p. 166-167 e 176-177.

172
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

34 The Public and its Problems, p. 178. Observe-se que aqui o termo
‘opinião’ está sendo utilizado substituindo, de certo modo, o termo ‘co-
nhecimento’, no sentido de indicar a idéia de julgamento, de avaliação.
De acordo com Dewey, ‘conhecimento’ se refere ao que aconteceu, ao
que foi feito, ao passado, portanto. Enquanto que ‘opinião’ envolve a
idéia do que ainda há a ser feito, uma espécie de previsão do futuro –
falível, contudo.
35 Há uma passagem de Dewey neste sentido que vale ser reproduzida:
“The essential need, in others words, is the improvement of the methods
and conditions of debate, discussion and persuasion. That is the problem
of the public. We have asserted that this improvement depends essentially
upon freeing and perfecting the processes of inquiry and of dissemination
of their conclusions. Inquiry, indeed, is a work which devolves upon
experts. But their expertness is not shown in framing and executing poli-
cies, but in discovering and making known the facts upon which the former
depend”. Cf. The Public and its Problems, p. 208.
36 The Public and its Problems, p. 142. Observe-se que esta é a única passa-
gem deste livro (pelo menos a única que identificamos) na qual Dewey
fala em ‘grande comunidade’ sem utilizar letras maiúsculas no começo de
cada uma destas duas palavras. Talvez isso indique justamente que, con-
forme acreditamos, ele estivesse se referindo à comunicação como condi-
ção única para a criação de uma grande comunidade, e não da Grande
Comunidade – esta última, conforme exposto extensamente no livro em
questão, requer a satisfação de outras condições além da comunicação,
como viemos mostrando até aqui (a investigação, e mais indireta ou im-
plicitamente, a participação e a educação).
37 The Public and its Problems, p. 184. Os grifos são nossos.
38 Ver Robert B. Westbrook, John Dewey and American Democracy, p. 314.
39 The Public and its Problems, p. 218.
40 Idem, p. 219.
41Esta idéia está contida em um trecho que merece ser reproduzido:
“Publication is partial and the public which results is partially informed
and formed until the meanings it purveys pass from mouth to mouth”.
Cf. The Public and its Problems, p. 219.
42 The Public and its Problems, p. 216.

173
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

43 Ver Matthew Festenstein, Pragmatism and Political Theory, p. 95.


44 Cf. Liberalism and the Limits of Justice, p. 150.
45 Ver, a respeito destas categorias, dois livros de Dewey que não pudemos

contemplar aqui com o detalhe que mereciam: Liberalism and Social Action
e Individualism Old and New.
46 Ver, a respeito, The Public and its Problems, p. 185-194, quando Dewey

afirma que a antítese ‘individual x social’ constitui justamente um dos


problemas metodológicos das ciências sociais que precisa ser superado a
fim de que o público possa sair de seu eclipse, identificando-se e organi-
zando-se.
47 Cf. “Philosophies of Freedom”. In: Freedom in the Modern World, edita-

do por Horace Meyer Kallen, p. 249-250. Apud Hilary Putnam, “A


Reconsideration of Deweyan Democracy”. In: Pragmatism in Law and
Society, editado por Michael Brint e William Weaver, p. 239. Ver, ainda, a
respeito deste assunto, Alan Ryan, John Dewey and the High Tide of American
Liberalism, p. 358 e 359 e 367. Vale reproduzir o testemunho deste que é
um dos principais biógrafos intelectuais de Dewey: “Deweyan liberalism
is different. It is a genuine liberalism, unequivocally committed to progress
and the expansion of human tastes, needs, and interests; its focus is on the
self-development and autonomy of the individual; it is, if not a rationalist
in outlook, certainly committed to the rule of intelligence. Nonetheless,
it comes complete with a contentious world view and a contentious view
of what constitutes a good life; it takes sides on questions of religion, and
it is not obsessed with the defense of rights.(...) The individual it celebrates
is someone who is thoroughly engaged with his or her work, family, local
community and its politics, who has not been coerced, bullied, or dragged
into these interests but sees them as fields for a self-expression quite
consistent with loosing himself or herself in the task at hand. In practical
politics, such a liberalism has little use for the idea of the state at all but is
happy to think about the positive contributions of government. It is a
politics sensitive to the mild but continuous repressiveness of everyday
social life. (...) It is a politics that never had to be reminded of the existence
of “civil society” because it never forgot it. (...) Whether we call it liberalism
or social democracy is not particularly important; what is important is
that it is not a property rights-based liberalism – individual personality is
sacred, but few forms of ownership are – nor is it friendly to the command
economy.” Cf. John Dewey and the High Tide of American Liberalism,
p. 367.

174
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

48 Ver Richard Bernstein, “Community in the Pragmatic Tradition”. In:


The Revival of Pragmatism: New Essays on Social Thought, Law and Culture,
editado por Morris Dickstein, p. 149, e Alan Ryan, John Dewey and the
High Tide of American Liberalism, p. 359.
49 Observe-se como aqui operam claramente o contextualismo e o conse-

qüencialismo de Dewey. A ‘democracia política’ se adapta continuamente


ao seu contexto e ao seu fim, em ambos os casos à ‘idéia de democracia’.
50 The Public and its Problems, p. 143-144.

51 Idem, p. 145-146.

52 The Public and its Problems, p. 147.

53 Idem, p. 147-148.

54 The Public and its Problems, p. 149.

55 Idem, p. 150. Compare com “Philosophy and Democracy”, em que

Dewey se refere novamente aos ideais revolucionários como abstrações


quando dissociados da vida comunitária: “What is meant by democracy?
It can certainly be defined in a way which limits the issue to matters which
if they bear upon philosophy at all affect it only in limited and technical
aspects. Anything that can be said in the way of definition in the remaining
moments must be, and confessedly is, arbitrary. The arbitrariness may
however, be mitigated by linking up the conception with the historic for-
mula of the greatest liberal movement of history – the formula of liberty,
equality and fraternity. In referring to this, we only exchange arbitrariness
for vagueness.” Neste mesmo artigo, ele confere um conteúdo inteiramente
pragmatista às idéias de liberdade e igualdade, retirando delas todo aspec-
to metafísico, idealista ou fundacionalista. Vale reproduzir: “A philosophy
animated by the strivings of men to achieve democracy will construe liberty
as meaning a universe in which there is real uncertainty and contingency,
a world which is not all in, and never will be, a world which in some
respects is incomplete and in the making, and which in these respects may
be made this way or that according as men judge, prize, love and labor.
(…) Whatever the idea of equality means for democracy, it means, I take
it, that the world is not to be construed as a fixed order of species, grades
or degrees. It means that every existence deserving the name of existence
has something unique and irreplaceable about it, that it does not exist to
illustrate a principle, to realize a universal or to embody a kind or class.
(…) Fraternity is continuity, that is to say, association and interaction
without limit. (…) Democracy is concerned not with the freaks or geniuses

175
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

or heroes or divine leaders but with associated individuals in which each


by intercourse with others somehow makes the life of each more
distinctive”. Cf. “Philosophy and Democracy”. In: The Essential Dewey,
volume I, p. 71-78.
56 The Public and its Problems, p. 213.

57 Ao descrever a trajetória bibliográfica de Dewey, Westbrook menciona

que em um de seus primeiros (e menos conhecidos) livros, Ethics (1908),


Dewey já se referia à democracia como uma idéia social, denominando-a
de “democracia moral”. Cf. John Dewey and American Democracy, p. 164.
58 John Dewey and American Democracy, p. 248-249.

59 As semelhanças com o conceito de ‘espaço público’ desenvolvido no

final do século XX por Hannah Arendt e Jürgen Habermas são, mais uma
vez, evidentes. É lastimável, contudo, que não se encontre na obra destes
dois autores nenhuma análise ou menção à contribuição de Dewey.
60 Observe-se que o que Dewey chama de ‘interesses e necessidades do

público’ ou ‘interesses e necessidades comuns’ não poderia jamais ser iden-


tificado com a vontade geral rosseauniana, a qual, segundo Dewey, “com a
influência da metafísica alemã foi erigida no dogma de uma vontade abso-
luta mística e transcendente, a qual por sua vez apenas não é outro nome
para força porque foi identificada com razão absoluta”. Cf. The Public and
its Problems, p. 54.
61 The Public and its Problems, p. 76.

62 John Dewey and American Democracy, p. xiv-xv.

63 Cf. Graham Wallas, The Great Society (1914); Walter Lippmann, Public

Opinion (1922) e The Phanton Public (1925) – este último livro foi o que
moveu definitivamente Dewey a publicar, em 1927, o seu The Public and
its Problems, partindo do mesmo diagnóstico que os seus dois opositores,
porém encaminhando-se a uma direção completamente oposta, como res-
ta evidente.
64 Cf. “Pragmatism and Democracy: Reconstructing the Logic of John

Dewey’s Faith”. In: The Revival of Pragmatism, editado por Morris


Dickstein, p. 138.
65 The Public and its Problems, p. 206. O grifo é nosso.

66 Idem, p. 208. O grifo é nosso, com exceção do artigo ‘o’ cujo grifo é de

Dewey e por isso colocamos em negrito.


67 “Introduction”. In: Deliberative Democracy, editado pelos próprios James

176
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

Bohman e William Rehg, p. x e xii. Alguns dos principais autores sobre


democracia deliberativa e participativa que ignoram o pragmatismo polí-
tico e Dewey são, entre outros além dos próprios Bohman e Rehg: Jon
Elster, Joshua Cohen, Frank Michelman, David Held e James Fishkin. O
próprio Habermas, apesar de se mostrar um bom conhecedor do pragma-
tismo social de Mead e Peirce, jamais demonstrou expressamente ser um
leitor de Dewey e tampouco se referiu à sua teoria da democracia ao de-
senvolver seus conceitos de espaço público, deliberação e democracia pro-
cedimental. Como aponta Robert Westbrook neste sentido, as duas úni-
cas exceções, ou seja, os dois únicos autores que parecem vincular mais
claramente suas concepções de democracia deliberativa com Dewey são
William Sullivan e Benjamin Barber. Cf. John Dewey and American
Democracy, p. 550, nota 18.
68 Ver Matthew Festenstein, Pragmatism and Political Theory, passim.
69 É preciso mencionar que Habermas cita Dewey três vezes ao longo de
todo o seu Between Facts and Norms, apesar de não se dar ao trabalho de
agregar às referências nem mesmo uma breve análise do autor. Uma das
alusões a Dewey, contudo, se dá justamente no capítulo dedicado à demo-
cracia deliberativa, quando afirma que “ninguém trabalhou este ponto de
vista mais energeticamente do que John Dewey”. O ‘ponto de vista’ a que
se refere é que “o procedimento democrático é institucionalizado em dis-
cursos e processos de barganha pelo emprego de formas de comunicação
que prometem que todos os resultados alcançados em conformidade com
o procedimento serão razoáveis”. Cf. Between Facts and Norms, p. 304.
Convenhamos que Dewey jamais falou em ‘processos de barganha’ ou em
qualquer coisa semelhante que possa indicar isso. Parece ser um pouco
exagerado da parte de Habermas transformar a palavra ‘persuasão’, que de
fato Dewey emprega, em um processo de barganha. De todo modo, foi
feita a referência ao fato de que Dewey tratou do assunto, coisa que mui-
tos teóricos recentes da democracia deliberativa parecem ignorar. Está fal-
tando que algum deles se aventure a estudar o pensamento de Dewey de
forma mais sistemática, de modo a lhe conceder o seu devido lugar no
início da estrada da democracia deliberativa.
70 “Democracy is Radical”. In: The Essential Dewey, volume I, p. 339.
71 Idem, p. 338-339.
72 Observe-se como as origens experimentalistas do pragmatismo são in-
contestáveis neste conceito de ‘idéia de democracia’ de Dewey.

177
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

73 “CreativeDemocracy – The Task Before Us”. In: The Essential Dewey,


volume I, p. 340-343.
74 Idem, p. 341.
75 “CreativeDemocracy – The Task Before Us”. In: The Essential Dewey,
volume I, p. 341.
76Ver Richard Bernstein, Praxis and Action, p. 222; Robert Westbrook,
John Dewey and American Democracy, p. 356-361; Thomas M. Alexander,
“John Dewey and the Roots of Democratic Imagination”. In: Recovering
Pragmatism’s Voice, editado por Lenore Langsdorf e Andrew R. Smith, p.
138-142.
77 Sobre isso nos explica muito apropriadamente Richard Bernstein: “The

goal of education is the development of creative intelligence, but we must


keep in mind the distinctive meaning that this conception has for Dewey.
Intelligence is not to be identified with a narrow concept of reason
considered as the ability to make inferences and draw conclusions from
explicitly stated premises. Intelligence consists of a complex set of flexible
and growing habits that involve sensitivity; the ability to discern the
complexities of situations; imagination that is exercised in seeing new
possibilities and hypotheses; willingness to learn from experience; fairness
and objectivity in judging and evaluating conflicting values and opinions;
and the courage to change one’s view when it is demanded by the
consequences of our actions and the criticism of others. (…) There is no
simple or mechanical way of achieving the goal of creative intelligence,
for it depends on the subtle transactions with social environment that the
child encounters”. Cf. Praxis and Action, p. 222.
78 “Aims in Education”. In: The Essential Dewey, volume I, p. 250.
79 Sobre isso diz Dewey: “Until secrecy, prejudice, bias, misrepresentation,

and propaganda as well as sheer ignorance are replaced by inquiry and


publicity, we have no way of telling how apt for judgment of social polici-
es the existing intelligence of the masses may be. It would certainly go
much further than at present. Effective intelligence is not an original,
innate endowment. No matter what are the differences in native intelligence
(allowing for the moment that intelligence can be native), the actuality
of mind is dependent upon the education which social condition effect.
Just as the specialized mind and knowledge of the past is embodied in
implements, utensils, devices and technologies which those of a grade of
intelligence which could not produce them can now intelligently use, so

178
Capítulo 3
PRAGMATISMO E TEORIA POLÍTICA

it will be when currents of public knowledge blow through social affairs.


(…) A more intelligent state of social affairs, one more informed with
knowledge, more directed by intelligence, would not improve original
endowments one whit, but it would raise the level upon which the
intelligence of all operates. The height of this level is much more important
for judgment of public concerns than are differences in the intelligence
quotients”. Cf. The Public and its Problems, p. 209-211.
80 “CreativeDemocracy – The Task Before Us”. In: The Essential Dewey,
volume I, p. 342.
81 Idem. “If one asks what is meant by experience in this connection my
reply is that it is that free interaction of individual human beings with
surrounding conditions, especially the human surroundings, which
develops and satisfies need and desire by increasing knowledge of things
as they are. Knowledge of conditions as they are is the only solid ground
for communication and sharing; all other communication means the
subjection of some persons to the personal opinion of other persons. Need
and desire – out of which grow purpose and direction of energy – go
beyond what exist, and hence beyond knowledge, beyond science. They
continually open the way into the unexplored and unattained future.” Cf.
“Creative Democracy – The Task Before Us”. In: The Essential Dewey,
volume I, p. 343.
82 “Istate briefly the democratic faith in the formal terms of a philosophic
position. So stated, democracy is belief in the ability of human experience
to generate the aims and methods by which further experience will grow
in ordered richness. Every other form of moral or social faith rests upon
the idea that experience must be subjected at some point or other to some
form of external control; to some ‘authority’ alleged to exist outside the
process of experience. Democracy is the faith that the process of experience
is more important than any special result attained, so that special results
achieved are of ultimate value only as they are used to enrich and order
the ongoing process. Since the process of experience is capable of being
educative, faith in democracy is all one with faith in experience and
education.” Cf. “Creative Democracy – The Task Before Us”. In: The
Essential Dewey, volume I, p. 343.
83 Há dois artigos recentes sobre a democracia deweyana que efetivamente
apresentam uma recriação criativa dos argumentos de Dewey. Um deles é
o do neopragmatista Hilary Putnam (“A Reconsideration of Deweyan

179
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Democracy”. In: Pragmatism in Law and Society, p. 217-246), que intenta


encontrar em Dewey uma justificação epistemológica da democracia. O
outro é de Robert Westbrook (“Pragmatism and Democracy: Reconstructing
the Logic of John Dewey’s Faith”. In: The Revival of Pragmatism, editado
por Morris Dickstein, p. 128-140), que de tanto estudar o pensamento
de Dewey com lentes de historiador vem se mostrando um verdadeiro
neopragmatista, apto a discutir todos os seus aspectos políticos com uma
qualidade que poucos apresentam. Vale atentar no início do artigo de
Westbrook, justamente para esta idéia de que o neopragmatismo, seja pe-
las mãos dele, de Rorty, de Putnam ou de qualquer outro que se aventure,
consiste em uma re-criação do pragmatismo clássico que pode se dar de
forma mais ou menos fidedigna, literal, em cada um que tome para si a
tarefa.

180
Considerações finais

It is difficult not to notice a curious unrest in the


philosophic atmosphere of the time, a loosening of old
landmarks, a softening of oppositions, a mutual borrowing
from one another on the part of systems anciently closed,
and an interest in new suggestions, however vague, as if
the one thing sure was the inadequacy of the extant school-
solutions. The dissatisfaction with these seems due for
the most part to a feeling that they are too abstract and
academic. Life is confused and superabundant, and what
the younger generation appears to crave is more of the
temperament of life in its philosophy, even though it were
at some cost of logical rigor and formal purity.
William James (1904)1

The fact is that our situation is pluralistic. But the


question becomes how we are to respond to this pluralism.
There are powerful centrifugal tendencies toward
fragmentation. But there are also counter-tendencies –
not toward convergence, consensus, and harmony – but
towards breaking down of boundaries, a “loosening of
old landmarks”, and dialogical encounters where we
reasonably explore our differences and conflicts. In this
situation, the pragmatic legacy is especially relevant.
Richard Bernstein (1991)2

181
Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

Um intervalo de quase noventa anos separa estas palavras


de William James e Richard Bernstein, o que nos leva a pensar
que o pragmatismo, crença teórica que une estes dois auto-
res, apesar de ter permanecido eclipsado durante boa parte
destes anos, tem o potencial de, quando despertado, causar
esta perda de fronteiras, este pluralismo intelectual de que
falam ambos. Com efeito, conforme acreditamos ter demons-
trado ao longo deste livro, o pragmatismo transita entre a
filosofia, a sociologia e a ciência política, estabelecendo en-
tre elas múltiplas e inevitáveis conexões e falando uma única
linguagem: a do antifundacionalismo, do conseqüencialismo
e do contextualismo, com todos os conceitos que eles em si
envolvem.3
Além disso, como também acreditamos ter ficado patente,
os pragmatistas – clássicos e contemporâneos – provêm das
mais diversas escolas e filiações do pensamento, tendo recebi-
do sua formação acadêmica, na maior parte dos casos, em uma
área distinta daquela pela qual veio a se tornar conhecido.
Apenas para mencionar um exemplo, o próprio William James,
após desistir da carreira mal-sucedida de pintor, se formou em
química, anatomia comparativa e fisiologia, tendo sido anos
depois convidado pela mesma universidade na qual estudou
para lecionar psicologia e filosofia – áreas nas quais, como
sabemos, se tornou mundialmente conhecido. Além de faze-
rem sua carreira em áreas diferentes daquelas nas quais foram
formados, os autores pragmatistas também tendem a atuar em
uma área (que seja ou não de sua formação original), enquan-
to o seu trabalho é extensivamente recebido por outra. É o
caso, por exemplo, de Richard Bernstein, que, apesar de sua
filiação a um departamento de filosofia, tem sua obra ampla-
mente estudada nos departamentos de sociologia.

182
Considerações finais

Seriam muitos os exemplos a serem dados, mas, infeliz-


mente, não podemos prosseguir com eles aqui. O que im-
porta ressaltar é que, conforme acreditamos, o estado atual
das reflexões teóricas nos campos das ciências sociais se asse-
melha àquele descrito tanto por James como por Bernstein
nas epígrafes acima. Trata-se de um estado de coisas criativa-
mente pluralista e, neste sentido, pragmatista. Neste momen-
to, mais do que nunca, portanto, vale lembrar da metáfora
do pragmatista italiano Giovanni Papini, que mencionamos
na introdução deste livro. O pragmatismo é como um corre-
dor que alcança, simultaneamente, inúmeras e diferentes por-
tas, entre as quais transitam, em um movimento de entrar e
sair incessante, seus diferentes hóspedes que, no entanto, ja-
mais podem deixar de passar pelo corredor para fazer seus
caminhos.
Gostaríamos de argumentar, neste sentido, que atualmen-
te o pragmatismo não é apenas, como disse William James,
um “novo nome para antigas formas de pensamento”, mas é
também um antigo nome para novas formas de pensamento. Não
estamos apenas nos referindo ao surgimento, nos últimos vin-
te anos, do movimento neopragmatista, com as suas múltiplas
abordagens disciplinares e desenvolvimentos temáticos;
estamos nos referindo também a outras formas de pensamen-
to e a outros autores que, a despeito de terem sido ou não
leitores do pragmatismo e de terem ou não reconhecido ex-
pressamente essa influência, vêm desenvolvendo contempora-
neamente conceitos, concepções e teorias perfeitamente har-
mônicas com o pragmatismo. Conforme tentamos mencio-
nar ao longo deste livro, há reflexos visíveis do pragmatismo
no campo da nova filosofia da linguagem e do pós-modernis-
mo (no caso da filosofia), nas novas teorias da ação e da comu-
nicação (no caso da sociologia), nas atuais tendências comu-

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Pragmatismo
TEORIA SOCIAL E POLÍTICA

nitaristas e nas novas teorias da democracia (no caso da ciên-


cia política).
Queremos defender aqui a idéia, portanto, de que o prag-
matismo era um movimento intelectual à frente de seu tempo.
Conforme tentamos demonstrar a partir das aplicações do
pragmatismo nas teorias social e política, o ‘pragmatismo clás-
sico’ de Mead e Dewey, por exemplo, encontra-se na vanguar-
da do que há de mais recente e inovador na produção teórica
das ciências sociais contemporâneas. Neste sentido, o prag-
matismo, além de poder ser representado metaforicamente
como o corredor de hotel de Papini, pode também ser consi-
derado uma espécie de termo guarda-chuva, que abarca den-
tro de si múltiplas, variadas e infinitas tendências do pensa-
mento contemporâneo.
Nos resta clamar que o Brasil faça parte também deste
debate internacional que trouxe de volta o pragmatismo, e
um pragmatismo mais multifário do que nunca. O objetivo
deste livro foi o de, muito modestamente, tentar contribuir
para isso. Afinal, como bem ensina o pragmatismo, são as
crenças que nos conduzem à ação. E a crença que em mim se
formou como resultado dos estudos realizados para escrever
este livro, é que as instituições brasileiras, especialmente os
seus sistemas político e jurídico, precisam ser repensadas sob
os refletores coloridos do pragmatismo. Mas esta tarefa espe-
cífica não poderia ser realizada aqui e ficará à espera de outra
oportunidade. Por ora, esperamos que a recuperação do pen-
samento pragmatista intentada nestas páginas possa gerar
outras e novas iniciativas, chamando o pragmatismo para
fazer parte definitivamente das reflexões acadêmicas e inte-
lectuais nacionais.

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Considerações finais

Notas
1 “A World of Pure Experience”. Journal of Philosophy, Psychology, and

Scientific Methods, I (1904), p. 533. Republicado em Pragmatism and Other


Writings, p. 314.
2 The New Constellation, p. 338-339.
3 Nestelivro, optamos por trabalhar apenas com as aplicações do pragma-
tismo na sociologia e na ciência política, mas cabe ressaltar que o mesmo
evento que estamos descrevendo também teria ocorrido se tivéssemos tra-
tado também, por exemplo, do direito e da literatura, outras duas áreas
nas quais o pragmatismo (e o neopragmatismo) é muito presente.

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